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O RACISMO E A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA CONTRA AS

RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA A LUZ DO DIREITO FUNDAMENTAL


À PAZ

RACISM AND RELIGIOUS INTOLERANCE AGAINST RELIGIONS FROM


AFRICAN ORIGIN UNDER THE FUNDAMENTAL RIGHT OF PEACE

João Antônio da Cruz dos Santos1


Thais de Castilho Matos2

SUMÁRIO: Introdução. 1. Contexto histórico das religiões de matriz africana no brasil.


2. Estado laico x estado confessional. 2.1 A posição estatal brasileira . 3. Preconceito e
violência religiosa. 3.1 Intolerância religiosa. 3.2 Racismo religioso. 4. A liberdade
religiosa. 4.1 Fundamentos da liberdade religiosa. 5. O preconceito religioso e o direito
à paz. 6. Considerações finais. Referências.

RESUMO: No rol das garantias fundamentais constitucionais está presente o direito à


liberdade religiosa. Assim, vê-se que a liberdade de crença é uma garantia fundamental,
além de estar garantido também, na mesma Constituição, o exercício de um Estado
Laico. Porém, o que há de ser estudado neste capítulo é a influência histórica do
preconceito religioso contra as religiões de matriz africana, que acaba por configurar um
não exercício do referido direito fundamental e inibindo das pessoas o direito à paz e de
viver sem medo.
PALAVRAS CHAVE: Intolerância religiosa. Racismo religioso. Estado Laico.

ABSTRACT: In the rol of the constitutional fundamental guarantees it is the right of


religious freedom. As well, it’s clearly seen that the freedom of belief is a fundamental
guarantee, being also guaranteed, in the same Constitution, the performance of a secular
state. However, what is needed to study in this chapter is the historical influence of
religious prejudice against religions from African origin, which set up a non-practice of
1
Advogado. Pós-Graduado em Dir. Sistêmico com ênfase nas Constelações Sistêmicas pelo INFOR. Bacharel em
Direito pela UNIVALI. Presidente da Comissão de Direito Homoafetivo e de Gênero; Secretário da Comissão de
Igualdade Racial; e Membro da Comissão de Direito de Família e Sucessão da OAB Itajaí–SC. E-mail:
adv.joaosantos@outlook.com. Curriculo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0077799559073079
2
Advogada. Bacharel em Direito pelo Unicathedral. Vice-presidente da Comissão de Direito Homoafetivo e de
Gênero. Membro da Comissão de Direito Constitucional. OAB Itajaí-SC. E-mail:
thaisdecastilhomatos.adv@gmail.com

1
the referred fundamental right and inhibiting from people the right of peace and of
living without fear.
KEYWORDS: Religious intolerance. Religious racism. Secular state.

INTRODUÇÃO
Um dos mais fundamentais princípios constitucionais, o da liberdade religiosa,
não tem sido exercido plenamente pelos brasileiros frequentadores das religiões de
matriz africana, uma vez que o medo de sofrer represálias e violências publicamente os
inibe de viver seu direito fundamental, inclusive, o do direito à paz.
Á tempos a falta de reconhecimento da pluralidade religiosa brasileira vêm
disseminando um discurso de intolerância e racismo contra os frequentadores das
religiões de matriz africana e seus sacerdotes, os pais e mães de santo, demonizando
todo e qualquer aspecto que seja relacionado às práticas religiosas de matrizes africanas.
O que, consequentemente, afasta pessoas negras e não negras de frequentar os terreiros,
participar das tradições religiosas e se integrar na comunidade cultural como um todo.
É nítido que a intolerância e o racismo religioso ferem, diretamente, direitos
fundamentais do indivíduo que é praticante de quaisquer das religiões de matriz
africana. O direito à liberdade de crença, garantido pela Constituição Federal de 1988,
até o inestimável direito à vida são cerceados pela intolerância e o racismo religioso.
Todavia, mais do que isso, o preconceito religioso perturba o direito
fundamental à paz das pessoas que não conseguem, livremente, manifestar sua liberdade
de crença. Esse estudo tem a perspectiva de clarificar a importância do reconhecimento
a pluralidade religiosa, de forma a elucidar quais os danos causados pela cultura da
intolerância religiosa na vida daqueles que são colocados à margem da sociedade.
A partir do método dedutivo, a pesquisa visa compreender, a partir de um
conceito teórico, como a prática do direito à liberdade de crença se reverbera no Brasil e
como os hábitos socioculturais agem no combate ou na disseminação da intolerância.
Além disso, o objetivo de entender a realidade brasileira parte, principalmente, de um
estudo do contexto histórico que o Brasil está inserido.
E, ao conectar os fatos com a realidade atual brasileira, analisar-se-á o
ordenamento jurídico pátrio e quais ferramentas estão dispostas no combate à
intolerância e racismo religioso contra as religiões de matriz africana.

2
1 - CONTEXTO HISTÓRICO DAS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA NO
BRASIL
Rastros da intolerância e racismo religioso contra as religiões de matriz africana
no Brasil ocorrem desde da colonização das terras brasileiras até os dias atuais. A
história das religiões de matriz africana tem origem no continente Africano, em
diferentes regiões, e começa quando os povos africanos foram submetidos a escravos e
enviados ao Brasil em decorrência da invasão dos Portugueses no território brasileiro no
século XV, momento em que foi formado o sistema colonial e Imperial.
É necessário dizer que antes da invasão, exploração e ocupação dos portugueses
nas terras brasileiras, já existia o povo originário brasileiro, os povos indígenas, que
foram decimados, abusados e explorados pela vinda dos portugueses.
Os africanos foram mantidos escravos por mais de trezentos anos, eram eles
adultos, homens e mulheres, crianças, idosos que, através do sistema opressor
escravocrata, eram retirados dos seus países e mandados ao Brasil. Da mesma forma, os
povos indígenas também passaram pelo mesmo sistema de exploração.
Essas pessoas escravizadas vinham para suprir ausência de operários nos
empreendimentos advindos da colônia portuguesa no Brasil, uma vez que os
portugueses não remuneravam essas pessoas para tal função. A vinda desses negros,
através dos navios negreiros, era totalmente desumana e precária, incluindo, a falta de
alimentos e higiene básica. Por conta dessas situações, muitos se quer chegavam com
vida ao Brasil.
Esses africanos que foram mantidos e vendidos como escravos mantinham
preservadas, de alguma forma, regras e condutas de suas religiões, uma vez que muitos
buscavam um reconforto para resistir tamanha crueldade do sistema escravagista.
Destaca-se que essas pessoas cultivavam sua fé através do culto de divindades/entidades
africanas que tem ligação com elementos da natureza, sentimentos e emoções.
Dessa forma, ao analisar a questão religiosa para essas pessoas, vê-se que se tem
como pensamento de resistência. Por estarem longe do lar de origem, com tanta
opressão e violências, essas pessoas conseguiram preservar sua fé e sua cultura.
Entretanto, o sistema colonial e Imperial do Brasil não permitia o culto a outra
religião a não ser a Católica, que foi a religião oficial durante esse período.
Consequentemente, essas pessoas eram obrigadas a se adaptarem a esse novo contexto
religioso. A celebração, propaganda e o culto que fugiam a essa religião cristã, eram
proibidas e criminalizadas.

3
A repressão por parte do Estado, no que se refere as manifestações afro
religiosas, muitas vezes partia do critério moral que relacionava, e ainda relaciona, os
adeptos dessas práticas ao mal. Por consequência, essa se tornou uma forma de
controlar as vidas dos africanos e impor a cultura ocidental à essas pessoas, assim
desconstituindo suas referências e culturas africanas. Isto colaborou com a ideia social
de que essas práticas religiosas poderiam produzir malefícios à sociedade.
Na trajetória da história da construção do Brasil as religiões de matriz africana
foram adquirindo característica próprias, outros encontros culturais e religiosos foram
miscigenados e, dessa forma, serviu como alicerce a religiões de matriz africana.
Assim, o culto aos Orixás no Brasil surge em decorrência da vinda dos africanos
que foram escravizados pelos portugueses, surgindo às chamadas religiões afro-
brasileiras. Estão entre elas o Candomblé, a Umbanda, a Quimbanda, o Candomblé de
Caboclo, dentre tantas outras vertentes.
Consequentemente, o Brasil foi organizado sob as estruturas do colonialismo
escravocrata, do racismo, da violência física e psíquica e da imposição de religiões
cristãs, marcado pela perseguição aos fieis das religiões de matriz africana.

2 - ESTADO LAICO X ESTADO CONFESSIONAL


O Estado Laico é aquele que é neutro em relação à religião, tal Estado não
legisla em matéria religiosa e não tem preferência de crença. Dessa forma, esse é o
Estado que permite uma maior diversidade religiosa, já que além de não adotar uma
política de religião específica, também não adota postura anti-religiosa.
Sobre este aspecto, um estudo legislativo feito pela Consultoria Legislativa do
Senado Federal disserta:

A laicidade deve ser compreendida, no seu verdadeiro conceito, como


autonomia entre a política e a religião, e também como elemento de
neutralidade que permite a manifestação das diversas opiniões, seja de
religiosos, agnósticos, ateus, ou de quaisquer outras correntes políticas ou
doutrinárias, desde que nenhuma opinião formulada por alguma das
correntes de pensamento tenha caráter vinculativo. 3

3
GANEM, Cássia Maria Senna. Volume I - Constituição de 1988: O Brasil 20 anos depois. Os Alicerces
da Redemocratização. [Princípios e Direitos Fundamentais] Estado Laico e Direitos Fundamentais.
Brasília. 03 de outubro de 2008. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-
legislativos/tipos-de-estudos/outraspublicacoes/volume-i-constituicao-de-1988/principios-e-direitos-
fundamentais-estado-laico-edireitos-fundamentais Acesso em: 19 AGO 2022.

4
Já o Estado Confessional é aquele que tem uma religião como oficial, chamada
de religião de Estado. Diferente do Estado Laico, o Confessional reconhece uma crença
e tem preferências sobre ela.
Dentre os países da América do Sul, a Argentina está entre os que detêm uma
preferência religiosa, apesar de não se considerar um Estado Confessional. O artigo 2 da
Constituição Argentina diz que “el Gobierno federal sostiene el culto católico
apostólico romano”4, ou seja, o governo federal argentino apoia o culto católico
apostólico romano, dando preferência a esse segmento religioso.
É interessante ressaltar que, mesmo que um país tenha adotado o Estado
Confessional, isso não significa que não há liberdade religiosa, mas existe uma restrição
à essa liberdade.
É comum que neste modelo estatal exista uma pluralidade de religiões, porém,
não há alicerce governamental que assegure a livre manifestação das crenças, o que é,
indiscutivelmente, a base do pleno direito fundamental à paz (e à liberdade religiosa).
Sobre isso, é possível ler o posicionamento do doutrinador em Direito
Constitucional, André Ramos Tavares:

Quer dizer que nos Estados confessionais pode haver, como afirmado
anteriormente, liberdade religiosa, mas será ela mitigada em virtude
justamente do tratamento preferencial e privilegiado resguardado à religião
oficial. Ter-se-á, nesta última hipótese, provavelmente, mais uma tolerância
do que uma plena liberdade religiosa, especialmente no que tange à sua
divulgação e práticas. Logo, embora a neutralidade do Estado não seja
essencial à existência de pluralidade religiosa, esta só pode aflorar
plenamente em Estados que adotam o postulado separatista e a postura da
neutralidade religiosa5.

Uma posição ativa do Estado para a garantia da liberdade religiosa é uma etapa
fundamental para que a população daquele lugar possa, de fato, exercer, sem medo de
restrições, o direito à liberdade religiosa. E, exercendo esse direito é que o povo estará
munido de paz.

2.1 A POSIÇÃO ESTATAL BRASILEIRA


No artigo 19 da Constituição Federal de 1988 está disposto sobre a relação do
Estado com as instituições religiosas, vejamos:

4
ARGENTINA. Constituicion de la nation Argentina. 1994. Disponivel em:
http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/0-4999/804/norma.htm Acesso em: 18 AGO 2022
5
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. Liberdade de Religião e Neutralidade do
Estado. 18 ed. São Paulo. Saraiva Educação. 2020.

5
É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvenciona-los, embaraçar-lhes


o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de
dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de
interesse público; 6

Deste dispositivo vê-se que a posição do Estado brasileiro é a de laicidade, ou


seja, de acordo com a Norma Maior, o Estado é Laico e neutro em relação as plurais
religiões que existem.
Logo, o que se extrai dessa convicção é de que o Estado brasileiro, como laico,
deve proporcionar os mesmos benefícios, direitos e liberdade a qualquer segmento
religioso que seja, não havendo uma preferência. Essa liberdade e reconhecimento do
Estado influencia diretamente no modo como os praticantes religiosos vivem e
manifestam sua fé com segurança e paz.
Mas, apesar do dispositivo constitucional assegurar essa não vinculação do
Estado com religião específica, vê-se crucifixos e símbolos cristãos expostos em locais
públicos e políticos, como no Congresso Nacional, além dos dizeres “Deus seja
louvado” nas notas do real e do preâmbulo da própria Constituição Federal, onde está
presente a frase “[...]sob a proteção de Deus[...]”.7
E não há como não perceber os resquícios do período colonialista brasileiro em
que o Brasil tinha a religião Católica como oficial e todo e qualquer manifesto diferente
da cultura cristã era criminalizado. Com o avanço da sociedade e do sistema, não existe
nenhuma criminalização sobre se manifestar religiosamente, entretanto, os praticantes
das religiões africanas seguem com medo e sendo perseguidos ao exporem suas
religiosidades.
Levando em consideração a pluralidade religiosa e cultural existente dentro do
país, essas menções às religiões cristãs fazem com que outros segmentos religiosos não
se sintam representados ou reconhecidos. Além disso, dependendo da forma com que o
Estado se posiciona, pode embasar certos comportamentos intolerantes da população
contra aqueles adeptos às religiões de matriz africana.

3 - PRECONCEITO E VIOLÊNCIA RELIGIOSA


6
BRASIL. Constituição Federativa do Brasil, 05 de outubro de 1988. Brasília. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em 22 AGO 2022.
7
BRASIL. Constituição Federativa do Brasil, 05 de outubro de 1988. Brasília. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em 22 AGO 2022.

6
3.1 INTOLERÂNCIA RELIGIOSA
A intolerância religiosa acompanhou os tempos e o caminhar da sociedade e se
dá de formas diferentes daquelas do período colonial brasileiro, quando os povos negros
chegaram ao Brasil e foram impedidos de se manifestarem religiosamente em público e
foram, inclusive, obrigados a cultuar os símbolos cristãos.
Sidnei Nogueira, em seu livro eletrônico “Intolerância Religiosa”, expõe um
aspecto importante da intolerância religiosa:

No cerne da noção de intolerância religiosa, está a necessidade de


estigmatizar para fazer oposição entre o que é normal, regular, padrão, e o
que é anormal, irregular, não padrão. Estigmatizar é um exercício de poder
sobre o outro. Estigmatiza-se para excluir, segregar, apagar, silenciar e
apartar do grupo considerado normal e de prestígio. 8

É importante destacar que esse estigma é uma construção social, que é moldado
de acordo com a história e a cultura de cada lugar, o que significa que aqueles
considerados “certos e errados” vão variar conforme o contexto inserido. No caso do
Brasil, o candomblé, a umbanda e outras religiões de matrizes africanas são as
consideradas malignas e “fora do normal”.
Acontece que essa estigmatização resulta em discriminações violentas que
extraem desses povos seu direito de viver plenamente sua crença. Sobre a intolerância
religiosa sofrida pelas religiões afro-brasileiras, é possível até classifica-las em a)
ataques que ocorrem diretamente aos cultos dentro dos terreiros, com destruição dos
espaços e imagens sagradas; b) ataques diretos às pessoas que frequentam as religiões,
seja pela vestimenta ou qualquer outro aspecto visível da religião; c) ataques feitos por
cultos cristãos dentro de seus templos às entidades/divindades da umbanda ou
candomblé e d) ataques veiculados pelas mídias dos maiores grupos cristãos do país.
Um estudo feito pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do estado
do Rio de Janeiro, que é uma comissão composta por representantes do Ministério
Público, da Ordem dos Advogados do Brasil, Polícia Civil e da sociedade civil em
geral, e divulgado pelo portal nacional G1 de notícias 9, apontou que as religiões de

8
NOGUEIRA, Sidnei Barreto. Feminismos Plurais. Intolerância Religiosa. São Paulo, 2020. Disponível
em:https://books.google.com.br/books?id=FyThDwAAQBAJ&lpg=PT13&ots=oGfblK8uac&dq=intoler
%C3%A2ncia%20religiosa&lr&hl=pt-BR&pg=PT1#v=onepage&q&f=false> Acesso em: 05 SET 2022 .
9
G1. Estudo mostra que religiões de matrizes africanas foram alvo de 91% dos ataques no RJ em
2021. 22 de janeiro de 2022. Disponível em:
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/01/22/estudo-mostra-que-religioes-de-matrizes-
africanas-foram-alvo-de-91percent-dos-ataques-no-rj-em-2021.ghtml Acesso em 05 SET 2022.

7
matriz africana foram alvos de 91% dos casos de ataques violentos e intolerantes.
Dentro desse número, constatou-se que 56% das ocorrências têm como agressores
pessoas ligadas às religiões evangélicas.
Os frequentadores dessas religiões, bem como os sacerdotes pais e mães de
santo, vivenciam diariamente essas violências, tendo seus terreiros invadidos e
destruídos, sofrendo violência física nas ruas e sendo impedidos de manifestarem seus
cultos publicamente.
A intolerância religiosa atinge até os atos mais simples do dia a dia de uma
pessoa, como foi o caso da enfermeira Carolina Viegas, de 35 anos, que, estando no
ponto de ônibus vestida de roupas brancas e guias no pescoço, foi atingida por uma lata
de refrigerante atirada de dentro de um carro, junto de falas discriminatórias como “isso
é coisa de diabo” e “macumbeira”. Este relato foi veiculado pelo site jornalístico G1, de
alcance nacional, em julho de 2022. A vítima disse que sentiu, a partir daquele
momento, que foi retirada a sua liberdade de viver.
Ainda sobre casos de intolerância religiosa, no Brasil no dia 21 de janeiro é
celebrado o dia nacional de combate à intolerância religiosa e foi instituído pela Lei nº
11.635/2007 que veio como uma alusão a morte da mãe de santo, chamada de Ialorixá
no candomblé, Gildásia dos Santos e Santos, conhecida como Mãe Gilda.
De forma breve, Mãe Gilda foi vítima de intolerância religiosa. Em 1999, a
Folha Universal publicou uma reportagem com o título “Macumbeiros charlatões lesam
o bolso e a vida dos clientes”. Essa publicação foi veiculada com a imagem de Mãe
Gilda, que nada tinha a ver com o tal charlatanismo tratado na matéria. Em
consequência disso, Mãe Gilda teve seu terreiro invadido, sofreu demasiados ataques
verbais e físicos e, em 21 de janeiro de 2000, a saúde da sacerdotisa não resistiu aos
ataques e faleceu por um infarto fulminante.10
É de se saber que essas repressões não acontecem de forma legal, afinal de
contas o direito à liberdade de crença é garantido constitucionalmente, além de ter
tipificado o crime de intolerância religiosa 11. Entretanto, a ridicularização e a
discriminação acontecem vindo da própria sociedade que demoniza as tradições
religiosas de matriz africana.

10
CORREIO 24 HORAS. Vinicius Nascimento. Mãe Gilda: vida e morte de luta e resistência contra a
intolerância religiosa. Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/mae-gilda-vida-e-
morte-de-luta-e-resistencia-contra-a-intolerancia-religiosa/ Acesso em 17 FEV 2023
11
BRASIL. Código Penal. Artigo 208. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-
lei/del2848compilado.htm Acesso em 17 FEV 2023

8
Além da intolerância religiosa que esses grupos sofrem e os impedem de viver
uma vida religiosa plena e em paz, ocorre o racismo religioso, uma vez que a
religiosidade africana faz parte da cultura trazida junto dos povos negros. Vê-se, aqui,
outro aspecto de extrema relevância a ser analisado.

3.2 RACISMO RELIGIOSO


É de suma importância conceituar o que é o racismo religioso, uma vez que,
infelizmente, a separação da raça enquanto fenótipo ou genótipo, ainda é presente na
nossa sociedade. Praticantes de religiões de matriz africana, além de sofrerem a
intolerância religiosa, podem também, se entenderem enquanto negros, sofrer racismo
religioso.
O racismo religioso é uma manifestação de grande complexidade, destaca-se,
uma possível conceituação, o objetivo do racismo ultrapassa o ataque da sua fé e atinge
o indivíduo na sua forma de existir, de ser e de expressar sua crença. Assim, o racismo
religioso é inerente à cultura africana, ao recorte étnico-racial e a religião.
Dessa forma, o racismo é um sistema de opressão contra um grupo racial, e com
isto outro grupo se privilegia. Diante do qual, pode-se observar suas práticas, em
grande maioria, por parte de pessoas brancas, através de comportamentos sociais e
individuais contra pessoas negras.
Diante disto, ao se tratar sobre a questão da religiosidade, há uma repulsa social
em detrimento das religiões de matriz africana porque tem como base uma manifestação
cultural que é intrinsicamente associada a população negra.
Considera-se interessante citar algumas formas de violências que se dá o racismo
religioso, sendo elas: a violência moral, a violência psicológica, a violência física que
está cada vez mais frequente, a violência patrimonial nos centros de terreiros e a
violência simbólica envolvendo símbolos, liturgias e objetos sagrados.
Um exemplo sobre racismo religioso é o caso jurídico que teve repercussão
nacional sobre o sacrifício animal que algumas religiões de matriz realizam.
O Supremo Tribunal Federal (STF) através do Recurso Extraordinário (RE)
49460112, por unanimidade, entendeu constitucional a Lei estadual do Rio Grande do
Sul de número 12.131/2004, que permite o sacrifício de animais em ritos religiosos.
Uma das teses produzidas pelo Supremo foi que: “É constitucional a lei de proteção
12
Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 494601. Julgado em 28 MAR 2019. Disponível em:
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=751390246 Acesso em 09 DEZ
2022

9
animal que, a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de
animais em cultos de religiões de matriz africana”.
Antes de dizer o porquê esse exemplo ser racista, é extremamente necessário
entender como funciona esse sacrifício. Nas religiões de matriz africana são sacrificados
animais, como aves, carneiros e bodes (além de ser falso dizer que são sacrificados
animais “domésticos” como gato e cachorro). Esses animais sacrificados são usados
como oferendas e, posterior ao ritual, suas carnes servem como comida em festas para
os frequentadores, e seu coro é usado nos atabaques – instrumento musical.
Dessa forma, os animais são utilizados nos ritos e servem de comida
posteriormente, portanto, não existe nenhuma diferença entre quem consome uma carne
já abatida no mercado ou açougue, como exemplo. Neste mesmo sentido, outras
religiões utilizam do sacrifico animal nos seus ritos religiosos, porém são aceitos,
exemplo do catolicismo de consumir peixe na Semana Santa13.
Em outro aspecto, é notório o modo cruel que os animais são tratados pelas
grandes industrias da carne e pelos abatedouros, assim não há sentido proibir o
sacrifício nas religiões de matriz africana, e deixar estas indústrias lucrarem em cima
dos maus tratos aos animais.
Logo, quem repudia o sacrifício animal está atingindo as religiões de matriz
africana. Dessa maneira, o racismo ultrapassa a ideia de exclusão da raça e o ataque é
também sobre a cultura e a religião.
Ao utilizar a terminologia racismo religioso está abraçando questões étnico-
raciais, a cultura africana e religião. Por isso, a causa do racismo extrapola o ataque da
sua fé e atinge o indivíduo na sua forma de existir, de ser e na sua forma de expressar
sua crença, ferindo seus direitos, inclusive o de viver/estar em paz.
Neste ponto, acreditar no “achismo” que religiões de matriz africana são do mal,
faz com que perpetue a intolerância e o racismo, acarretando diversas consequências
prejudicais aos seus frequentadores por apenas exercer seu direito fundamental da
liberdade religiosa ao praticar sua crença. Muitos confundem a liberdade de expressão
(sendo essa expressão um pano de fundo para externalizar seu racismo e sua
intolerância) com discurso de ódio.
Portanto, a construção desse racismo religioso presente no Brasil é devido à
construção da nossa sociedade diante do pertencimento étnico, do passado escravocrata
e e de uma estrutura social de base racista.
13
RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

10
4 - A LIBERDADE RELIGIOSA
A liberdade religiosa é assunto tratado desde os primórdios da sociedade
humana, por ora atermo-nos aqui no Império Romano. Nesse período, o Imperador, que
era a maior figura de poder estatal, era um representante significativamente atrelado à
poderes divinos e sagrados.
Nos primeiros anos do cristianismo, houve embates diretos entre as crenças pré-
cristãs de adoração ao Imperador e os dogmas cristãos. Com isso se falou pela primeira
vez em liberdade religiosa: garantir o culto da igreja católica.
Todavia, ao superar esse embate, a igreja católica, e todos os seus membros,
passou a ter privilégios e posições do mais alto poder administrativo-estatal, de forma a
fazer com que as regras cristãs fossem consideradas verdades absolutas para todos os
indivíduos da sociedade, além de fazer parte da legislação daquele Estado. Tal posição e
privilégios perduraram por anos a fio e refletem até nos dias atuais.
Desse período é que se considera, segundo professor Jónatas E.M. Machado, que
“começa aqui a tradição, cujos efeitos ainda hoje se fazem sentir, de proteger a Igreja
Cristã à custa do sacrifício da liberdade das outras crenças.”14
E é a partir desse ponto histórico, período que atravessou séculos de poder da
Igreja Cristã, que se vê o impacto direto na intolerância religiosa que acontece contra as
religiões de matriz africana no Brasil. Sabe-se que a disseminação da demonização da
cultura afro-brasileira parte, principalmente, de líderes e praticantes de religiões cristãs.
Cita-se aqui um caso de intolerância religiosa, amplamente divulgado nas mídias
nacionais, das emissoras TV Record e Record News que foram condenadas em 2019
pelos ataques às religiões de matriz africana que ocorreram dentro dos programas
Mistérios da Igreja Universal do Reino de Deus e Sessão de Descarrego. O processo foi
15
aberto em 2004 por uma Ação Civil Pública 0034549-11.2004.4.03.6100 pelo
Ministério Público Federal, o Instituto Nacional de Tradição e Cultura Afro Brasileira
(Intecab) e o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e da Desigualdade (CEERT).
O programa veiculava, com frequência, insultos às religiões de matriz africana e seus
praticantes e ofendendo os rituais sagrados e demonizando-os.

14
MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade Religiosa Numa Comunidade Constitucional Inclusiva. 2ª
ed. Coimbra, Portugal. Getslegal. 2021.

15
Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Julgado em 06 ABR 2018. Disponível em:
https://web.trf3.jus.br/acordaos/acordao/buscardocumentogedpro/6494767 Acesso em 01 DEZ 2022

11
Tal caso é mais um reflexo da ideia de supremacia da religião Cristã que acaba
por colocar em risco a existência e livre manifestação da pluralidade de religiões e
crenças pertencentes à sociedade e cultura brasileira.

4.1 FUNDAMENTOS DA LIBERDADE RELIGIOSA


No Brasil, a Constituição Federal assegura a liberdade de crença no rol das
garantias fundamentais, o inciso VI do artigo 5º:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
[...]
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o
livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção
aos locais de culto e a suas liturgias;16

Não só é protegido o direito individual da crença, como é considerado


inviolável.
Inviolável é algo que não se pode ser violado, não se pode ser destruído ou
cerceado de qualquer maneira que seja. Em uma sociedade onde pessoas pertencentes às
religiões de matriz africana não conseguem participar de atos simples do dia a dia
usando, por exemplo, vestimentas típicas sem serem agredidas, não se fala de um pleno
exercício dessa inviolabilidade.
Além de liberdade de consciência, a norma constitucional também garante o
livre exercício dos cultos com a proteção dos locais designados para tanto. Logo,
aquelas comunidades que tiveram, e tem, seus terreiros invadidos e queimados não
gozaram dessa proteção.
Apesar dos contrapontos com a letra da lei e a realidade fática, é extremamente
importante destacar que o direito existe e está assegurado pela norma e deve ser
efetivamente atuante pelo poder do Estado.
Diante disto, vale retornar a jurisprudência do STF sobre o sacrifício de animais,
que como já descrito, garante a liberdade de crença para todas as religiões, incluindo, as
religiões de matriz africana.
Conforme consta na emenda do Recurso Extraordinário nº 494601:

16
BRASIL. Constituição Federativa do Brasil, 05 de outubro de 1988. Brasília. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em 22 AGO 2022.

12
Essa diretriz interpretativa decorre, ainda, da obrigação imposta ao Estado
brasileiro relativamente às manifestações das culturas populares, indígenas
e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo
civilizatório nacional, nos termos do art. 215, § 1º, da CRFB. É preciso dar
ênfase à perspectiva cultural não apenas porque, de fato, elas constituem os
modos de ser e viver de suas comunidades, mas também porque a
experiência da liberdade religiosa é, para essas comunidades, vivenciada a
partir de práticas não institucionais.17

Neste ponto, o STF esteve em conformidade com o artigo 215 da Constituição


Federal de 1988, onde está previsto neste artigo:

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais
e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização
e a difusão das manifestações culturais.
§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas
e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo
civilizatório nacional.18

Revela-se, neste artigo, a importância da história, da identidade e da cultura dos


afro-brasileiros, e também, à educação nas relações étnico-raciais construtivas,
promovendo o combate do racismo que perpetua e fere, em particular, os negros.
Assim, através promoção da cultura afro-brasileira os negros podem conhecer a
sua origem africana, passando a reconhecer a importância da história e da cultura
africana, bem como, pessoas brancas, poderão entender o seu modo de viver e pensar, e
por fim conviver de forma harmônica.
Revela-se, então, que nossa Constituição Federal de 1988 promove a livre culto,
a pluralidade das religiões e a cultura afro-brasileira, assim, garantindo o direito
fundamental a paz.
Consequentemente, conforme os dispositivos legais mencionados, a decisão de
optar em ser ou não adepto a qualquer tipo de religião fica a escolha de cada indivíduo,
e caso escolha, pode frequentar de forma livre, sem que o Estado, ou outro grupo
religioso, o impeça, dessa forma, estando em conformidade com o seu direito
fundamental a paz.
Vale mencionar, leis regionais que tratam diretamente sobre a promoção e
proteção da liberdade religiosa das religiões de matriz africana, dentre elas, destaca-se:
no Rio de Janeiro a Lei nº 8.113/2018 criou o Estatuto Estadual da Liberdade Religiosa
17
Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 494601. Julgado em 28 MAR 2019. Disponível em:
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=751390246 Acesso em 09 DEZ
2022
18
BRASIL. Constituição Federativa do Brasil, 05 de outubro de 1988. Brasília. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em 28 SET 2022.

13
e a Lei nº 9.210/2021 criou a Política de Combate à Intolerância Religiosa; em Salvador
Lei nº 9.451/2019 instituiu no município o Estatuto da Igualdade Racial de Combate à
Intolerância Religiosa; em São Paulo Lei nº 17.346/2021 regulamenta o princípio da
livre manifestação de crença em âmbito estadual.
E no ordenamento jurídico brasileiro podemos encontrar os tratados
internacionais que foram ratificados pelo Brasil e que possuem força de norma
constitucional. E falando sobre a liberdade religiosa, a Convenção Americana de
Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, que foi
firmada em 1969 e ratificada pelo Brasil em 1992, inclui o direito à liberdade de crença
no rol dos direitos humanos fundamentais a serem consolidados pelos países do
continente americano.
O artigo 12 da Convenção dispõe que:

Liberdade de consciência e de religião


1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse
direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de
mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e
divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em
público como em privado.
2. Ninguém pode ser submetido a medidas restritivas que possam limitar
sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de
religião ou de crenças. 19

Este é mais um dispositivo que mostra a importância da liberdade religiosa na


sociedade e, principalmente, na vida do indivíduo que faz parte dela. Além de ter seu
direito individual garantido nacional e internacionalmente, é dever do Estado garantir
que esse direito seja efetivamente usufruído para se alcançar o pleno direito (e exercício
da) à paz.

5 - O PRECONCEITO RELIGIOSO E O DIREITO À PAZ


É complexa a conceituação de paz, mas tal instituto não deve ser um ideal
abstrato, algo que pode ser esperado e que ocorra de forma espontânea, e sim, que
ocorrerá através da vontade e da ação promovidas pelo ser humano. Não possui um fim,
uma vez que as capacidades humanas são infinitas por ser, a pessoa humana, capaz de
estar em constante evolução.

19
OEA. Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). San José de
Costa Rica. 22 de novembro de 1969. Disponível em:
http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm Acesso em: 09
OUT 2022.

14
A cultura de paz vem sendo discutida no âmbito jurídico diante do progresso dos
direitos fundamentais advindo do direito à paz, sendo extremamente necessária para a
contemporânea complexidade social e do aumento expressivo de conflitos que
desemborca no Poder Judiciário.
Neste ponto, a busca por uma cultura de paz não significa a inexistência de
conflitos, ou minimizar sua existência, mas sim identificar que o conflito permeia à
humanidade, e assim, buscar caminhos resolutivos de forma não violenta, como através
do diálogo e das transformações de comportamento.
Infelizmente, o direito a paz pode parecer para alguns ser utópico, porém vem
ganhando notoriedade pelos operadores do direito, sociedade civil, esferas
governamentais, escolas, dentre outros, uma vez que as diversidades dos saberes se
comunicam. Em decorrência a isto, uma ação em conjunto é necessária para uma
comunidade pacifica e justa para todos.
Assim, o direito à paz nas últimas décadas vem configurando um importante
progresso para a teoria dos direitos fundamentais, uma vez que este direito se tornou
atualmente extremante relevante para o âmbito social, perante o crescimento dos
conflitos jurídicos.
No preâmbulo da Constituição Federal é possível encontrar as bases pelas quais
a Constituição, e a sociedade brasileira, deverá ser regida. E inclui-se nessa base a
“solução pacífica das controvérsias” além da “igualdade e a justiça como valores
supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na
harmonia social[...]”. 20De início, é nítida a preocupação com a paz e a harmonia desde a
criação da norma Maior.
O artigo 4º desse mesmo dispositivo constitucional, cita os princípios que regem
as relações internacionais da República Federativa do Brasil. O inciso VI faz explícita
referência à palavra paz quando inclui “a defesa da paz” 21como nítida preocupação não
só com a sociedade brasileira, mas também com a sociedade mundial.
Seguindo, o artigo 21, no inciso II, traz como competência da União “declarar a
guerra e celebrar a paz”, e como competência do Presidente da República no artigo 84
inciso XX “celebrar a paz, autorizado ou com o referendo do Congresso Nacional”,

20
BRASIL. Constituição Federativa do Brasil, 05 de outubro de 1988. Brasília. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em 20 NOV 2022.
21
Idem

15
22
além de mencionar a palavra paz em outros momentos ao esclarecer sobre estado de
sítio e estado de defesa.
Apontados os momentos em que a Constituição faz explícita alusão à palavra
paz, é possível perceber que o conceito de paz, e de viver em paz, está presente em todo
o corpo da norma Maior. Por mais que não se fale especificamente do “direito à paz”, a
Constituição traz, em diversos momentos, a importância da harmonia social e elucida
que os direitos individuais precisam da paz para serem efetivamente exercidos, como o
próprio direito à liberdade de crença, presente no artigo 5º, inciso VI.
Ora, ainda no artigo 5º em que estão dispostos os direitos e garantias
fundamentais, o inciso XI assegura que a casa é asilo inviolável do indivíduo, salvo nas
situações previstas como em caso de flagrante delito ou ordem judicial, que, diga-se de
passagem, são situações que visam atitudes estatais a assegurar a paz social. O inciso
XVI assegura a todos o direito de reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos
ao público: mais uma preocupação do Poder Constituinte em garantir a paz ao indivíduo
e à sociedade, celebrando que a forma de se reunir deve ser pacífica.
A Constituição Federal brasileira é uma constituição de paz. Vê-se em suas
linhas a preocupação em garantir que o povo viva em paz pois é assim que os direitos
fundamentais serão plenamente exercidos. Não é à toa que, esclarecido também nas
linhas constitucionais, em momentos de guerra alguns direitos podem ser limitados para
que se alcance a paz que é o caso do inciso XV do artigo 5º que diz ser livre a
locomoção no território nacional, mas não a qualquer momento e, sim, em tempo de
paz.
E a importância dada a paz é uma marca especial do constitucionalismo
contemporâneo tendo em vista que os períodos anteriores à segunda metade do século
XX foram períodos marcados por guerras territoriais, extensas, que afetaram o mundo
como um todo e revoluções em busca de um Estado que abraçasse cada vez mais as
necessidades da sociedade.
Na história do constitucionalismo, a importância aos direitos humanos
fundamentais teve seu ápice no século XIX, o chamado constitucionalismo social. Aqui,
nesse período, as constituições começam a dispor sobre o dever do Estado de promover
o bem-estar social. O autor Miguel Gualano de Godoy ensina que “nas constituições
sociais, o compromisso democrático revela-se na inclusão da sociedade como titular de

22
Idem

16
direitos sociais, que devem ser garantidos e realizados tanto quanto os direitos
individuais.”23
Assim, é a partir desse momento, com o advento da contemporaneidade após a
Segunda Guerra Mundial que se começa a aplicar efetivamente os direitos humanos
fundamentais, incluindo nesse rol a liberdade de crença e o direito à paz que, diga-se de
passagem, tem estado presente mais significativamente no final do século XX e início
do século XXI.
Logo, o Estado tem o dever de intervir efetivamente na organização social para
garantir que as pessoas possam usufruir de seus direitos fundamentais. Mais ainda, o
Estado sendo considerado laico possui a atribuição, e a competência, de garantir que a
liberdade religiosa e a pluralidade de crenças sejam asseguradas a todos os cidadãos.
Nesse sentido, Flávia Piovesan discorre sobre:

Confundir Estado com religião implica a adoção oficial de dogmas


incontestáveis que, ao impor uma moral única, inviabiliza qualquer projeto
de sociedade aberta, pluralista e democrática. No Estado laico, marcado
pela separação entre Estado e religião, todas as religiões merecem igual
consideração e profundo respeito, inexistindo, contudo, qualquer religião
oficial que se transforme na única concepção estatal a abolir a dinâmica de
uma sociedade aberta, livre, diversa e plural. 24

O combate à intolerância se faz mister ao garantir o direito à paz das pessoas


pertencentes a uma sociedade. Não há como se falar em uma vida em paz se não há a
garantia da liberdade de crença.
Historicamente, desde o berço da humanidade, a religião e a fé se fazem
presentes na vida do ser humano, sendo até um elemento quase que fundamental na
formação da personalidade e do caráter humano para aquele que tem a religião como
algo fundamental. Dessa forma, tirar essa liberdade de crença da pessoa humana é tirar
dela suas perspectivas de vida e, ao mesmo tempo, obrigar que uma crença apenas seja
considerada certa e oficial, aniquila toda individualidade e diversidade existente.
O Estado deve ser garantidor dessa liberdade religiosa, efetivo combatente da
intolerância para que o direito à paz alcance a todos os indivíduos da sociedade, dando
segurança e o direito a uma vida plena e sem medo.

23
GODOY, Miguel Gualano. Constitucionalismo e democracia: uma leitura a partir de Carlos
Santiago Nino e Roberto Gargarella. São Paulo: 2012, p. 50
24
PIVOESAN, Flávia. Direitos Humanos: desafios e perspectivas. In: UNESCO. Associação Palas
Athena. Cultura da paz: da reflexão à ação; balanço da Década Internacional da Promoção da
Cultura de Paz e Não Violência em Benefício das Crianças do Mundo. Brasília. 2010.

17
7 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos entendimentos da vida contemporânea, para o bem estar da sociedade e


atuação plena da democracia, se faz necessário que a paz seja insistentemente
promovida. E não de forma isolada, a promoção da paz deve andar lado a lado da
igualdade, da justiça social e da diversidade.
Todos os direitos humanos fundamentais já foram considerados utópicos em um
momento da história. O voto feminino, por exemplo, já foi algo considerado absurdo e
distante; então, mesmo que hoje haja a discussão de o direito à paz ser uma delirante
ideia utópica é preciso que seja debatido para que ocorra a mudança futura.
É dever constitucional do Estado garantir a paz, a liberdade de crença e combater
a intolerância. A forma como o Estado pode agir em relação aos temas de sua
competência é a partir de criações de Políticas Públicas Afirmativas e,
independentemente de qual seja o governo vigente, deve implementar e assegurar a
promoção da igualdade na comunidade e, inclusive, nas comunidades de terreiros.
O estigma em torno das religiões de matriz africana está, principalmente, no fato
de essa cultura estar marginalizada. Por consequência, o conhecimento e o acesso à
história dessas religiões são capazes de mudar os caminhos da intolerância e do racismo,
uma vez que incluiria nos saberes sociais o reconhecimento de que a pluralidade de
crenças é inegável e extremamente importante. Sobretudo em um país plural, histórica e
constitucionalmente, como o Brasil.
Resta clarificado que o direito à paz somente pode ser plenamente exercido
quando o cidadão consegue usufruir de todos os seus direitos e garantias fundamentais.
Logo, o combate à intolerância e ao racismo religioso se faz necessário para que as
pessoas possam viver sem medo e em paz independente de conflitos e ter a sua
liberdade religiosa garantida e protegida.

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Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>
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