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Esse texto apresenta os resultados iniciais de uma investigação que visa a registrar
e geolocalizar, em um mapa digital interativo, locais de culto relacionados às
religiões afro-brasileiras no Estado do Rio de Janeiro. Em seu estágio atual, nosso
mapeamento se baseia em um corpus de 158 notícias publicadas na imprensa
entre 1890 e 1941, e está centrado na cidade do Rio – mas sua ulterior expansão
para regiões como a Baixada Fluminense é já aqui proposta.
Durante o período em questão, embora os religiosos afro-brasileiros
tivessem sua liberdade de culto garantida pela Constituição Brasileira de
1891, suas práticas litúrgicas foram frequente e severamente reprimidas pela
polícia, com base em artigos do Código Penal de 1890 que puniam as práticas
do espiritismo, da magia e do curandeirismo. É justamente com base em
notícias que documentam a perseguição policial que nosso mapa digital foi
construído. Tanto quanto um panorama dos locais de culto afro-brasileiros, o
mapa se pretende, portanto, como um ato de memória contra o esquecimento
da repressão e como uma denúncia do racismo que a fundamentava, e cujos
efeitos podem ser sentidos no Brasil até hoje. Nas sessões seguintes, após
contextualizar a repressão policial à religiões afro-brasileira; detalhamos a
metodologia utilizada em nosso mapeamento; consideramos o potencial e as
limitações de nossas fontes; apresentamos alguns resultados provisórios; e, nas
considerações finais, delineamos as ações futuras que a investigação demanda.
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3 A latitude e longitude de cada local de culto seguem o padrão WGS 84. Elas são calculadas
usando uma função inserida em nossa planilha Excel, que retorna os valores de coordenadas de
um determinado endereço usando a API do Google Geocoding. Todos os valores de latitude e
longitude foram arredondados para 6 casas decimais.
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4 - Em todo nosso corpus, apenas dois jornalistas puderam ser identificados: Walter Prestes, que
escreve para O Malho em 1929; e Sylvio da Fonseca, que escreve para a Noite Ilustrada em 1941.
Locais de culto afro-brasileiros em
notícias sobre repressão policial
no Rio de Janeiro, 1890-1941:
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mapeamento digital e crítica das fontes
Essa circunstância explica também por que a grande maioria das “re-
portagens” se encontra no meio das notícias policiais. [...] Certamente,
as descrições do ocorrido baseavam-se, na maioria das vezes, nas
descrições dos policiais que tinham participado da “batida”, ou em
algum documento fornecido pela própria polícia.
Não obstante a “visão de fora” expressa nos artigos, existem várias pas-
sagens nas quais podemos vislumbrar elementos que identificam claramente
crenças e práticas religiosas afro-brasileiras. Por exemplo, um artigo de 1893
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no Diário de Notícias informa que o sacerdote Israel Reis, cujo local de culto
ficava na rua Souza Barros n. 13, “passa[ou] uma navalha na cabeça” de uma
de suas adeptas (Diário de Notícias, 23 abr. 1893, p. 1), indicando um tipo de
tonsura ritual ainda hoje comum em ritos de iniciação de denominações como
o Candomblé (SANSI, 2009). Em 1918, artigos relatam que, no “candomblé”
liderado por Rosa Ribeiro na rua da Passagem n. 175, “se rendia culto a ‘xan-
gô’” (Correio da Manhã, 10 abr. 1918, p. 3), e que a polícia lá apreendeu uma
palmatória ritual coberta com inscrições em língua iorubá (Ibidem). Em 1927,
em um local de culto localizado na rua Delfina Enes n. 188, o sacerdote Manoel
Ventura foi preso enquanto incorporava “Tranca da Rua” [sic] (O Globo,
22 jul. 1927, p. 3) – provavelmente uma entidade espiritual que, na Umbanda
e Quimbanda dos dias atuais, está relacionada a Exu.
Não podemos esquecer, no entanto, que passagens como essas estão disper-
sas por todo o corpus e esboçam um panorama fragmentário, desconectado das
cosmologias mais amplas dos religiosos, cujas vozes não chegaram até nós. Além
disso, no caso de alguns artigos muito curtos e especialmente das denúncias feitas
por terceiros, a identificação de uma denominação religiosa se resume à menção
dos termos “candomblé” e/ou “macumba.” Nesses casos, a própria identidade
do culto como “afro-brasileiro” permanece incerta. Em nosso mapeamento,
mantivemos essas evidências imprecisas, mas tendo consciência de que o que
elas indicam é, acima de tudo, um “possível” local de culto afro-brasileiro e o
momento em que ele estava ativo. Como acima indicamos, apenas a expansão
de nosso corpus poderá eventualmente desfazer tais incertezas.
As informações que mais nos interessam aqui - os endereços dos locais de
culto revelados pelos artigos de imprensa - permanecem sendo valiosas. Eles
constituem, de fato, a base para a construção do mapeamento que propomos.
No entanto, os endereços reportados têm suas próprias imprecisões e necessitam
ser considerados com cautela. Enquanto 100 artigos (63,3% do total) informam
endereços “completos,” com nome da rua e número da residência, 30 artigos
(c. 19%) informam apenas o nome da rua; outros 23 artigos (14,5%) indicam
localizações mais genéricas (uma estação de trem, um morro etc.); e, por fim,
5 artigos (3,2%) informam apenas o bairro onde estava localizado o local de
culto. Além disso, quando um endereço “completo” é relatado por mais de
um periódico, por vezes os números das casas não coincidem, provavelmente
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notícias sobre repressão policial
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mapeamento digital e crítica das fontes
5 Um exemplo extremo disso diz respeito a uma batida realizado em outubro de 1926 no centro
do Rio e reportada por dois jornais: enquanto o Correio da Manhã (3 out. 1926, p. 3) informou
que o local de culto era na “Rua Riachuelo n. 41.” O Globo (2 out. 1926, p. 2) relatou que ele se
localizava no “n. 141 da rua do Resende.” As datas e fotos do sacerdote e do devoto mostradas
pelos dois jornais confirmam que os endereços divergentes se referem, de fato, à uma mesma
batida policial. No momento, é impossível afirmar, portanto, qual desses endereços é o “correto.”
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Considerações finais
As incertezas sobre a real intensidade da repressão às religiões afro-bra-
sileiras que apontamos nos parágrafos anteriores nos reconduz à necessidade
de expandir o corpus de fontes usadas no mapeamento de locais de culto
aqui proposto. Atualmente, como vimos, ele é composto exclusivamente por
notícias relativas à repressão policial. Certamente, é importante expandi-lo o
corpus nesse sentido, mas a expansão deverá envolver outros tipos de fontes.
Além de processos criminais relacionados à repressão das religiões
afro-brasileiras6 e do vasto repertório de narrativas produzidas pelos próprios
religiosos,7 na imprensa carioca existem, ainda, artigos escritos por jornalistas e/
ou intelectuais cujo principal objetivo era apresentar as religiões afro-brasileiras
ao público leitor, e nos quais não se defende explicitamente a repressão ou
expurgo das religiões afro-brasileiras. Um caso paradigmático é o do já men-
cionado João do Rio, mas outros nomes poderiam ser aqui lembrados, como
os de Carlos Alberto Nóbrega da Cunha, Leal de Souza, Francisco Guimaraes
ou Benjamin Péret (VALLE, 2018). Geralmente estruturado como séries
contendo vários textos, este segundo corpus de artigos de imprensa também
apresenta endereços de locais de culto e imagens de religiosos e seus objetos
de culto. Mas ele tem a vantagem de ser composto por textos de maior fôlego,
que apresentam descrições detalhadas das práticas litúrgicas e, por vezes,
transcrevem discursos dos próprios religiosos. Isso permite uma aproximação
mais informada das práticas religiosas afro-brasileiras do que a que é possível
fazer com notícias sobre batidas policiais, usualmente sucintas e muito racistas.
Além disso, a expansão de nosso corpus deve ser pensada em um sentido
geográfico, visando à inclusão de locais de culto localizados em outras regiões
do Estado do Rio de Janeiro. Com efeito, em nosso levantamento, encontramos
locais de culto em cidades como Niterói, Petrópolis e da Baixada Fluminense,
que não foram incluídos no mapa aqui apresentado. Digna de nota é, por
exemplo, uma matéria ilustrada com fotos, publicada em 1930 em o Globo, que
reporta a repressão chefiada por Abelardo Ramos, então delegado regional da
6 Muitos processos do gênero podem ser encontrados, por exemplo, no Arquivo Nacional do
Rio de Janeiro. O potencial dos processos criminais como fontes para a geolocalização de locais
de culto foi já bem demonstrado por Velasco (2017).
7 Estas narrativas podem ser encontradas em textos publicados - como, e. g., o do sacerdote
Agenor Miranda Rocha (2000) -, ou, mais frequentemente, nas tradições orais das diversas
comunidades afro-brasileiras encontradas hoje no Rio de Janeiro. Como demonstrado por
Roberto Moura (1995) e outros autores, essas narrativas têm o potencial de revelar a localização
de antigos locais de culto e contribuir para a historicizaçãode sua distribuição espacial no Rio.
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