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funk é cultura, goste você ou não

Recentemente, no site “El Hombre”, foi publicado o texto de Artur Dias “A indefensável e insistente culturalização do funk
carioca”. É aquele tipo de artigo da ala da esquerda que eu chamo de Time Adorno de análise cultural: elitismo exacerbado combina-
do a melindres sobre a mercantilização que corrompe a verdadeira cultura popular.
Incidentalmente, é curioso encontrar esse tipo de artigo. Meses atrás, ganhou manchetes o projeto que passou no mestrado de
Cultura e Territorialidades da UFF que discutia o funk como representação cultural legítima. O tema de Mariana Gomes foi ampla-
mente criticado por ser um tema tido como trivial e indigno da academia, inclusive por colegas meus liberais. Imagino que eles se re -
gozijarão com o artigo de Artur Dias, que defende a ideia exatamente oposta.
Para Artur, o funk é um fenômeno artificial importado que não representa de fato a brasilidade. Comentando a perseguição
sofrida pelo funk à qual chamou atenção o jurista Nilo Batista, Dias afirma que não há paralelo entre a perseguição que o samba so-
freu no começo do século 20 e a perseguição e criminalização atual do funk. O samba, sempre segundo Artur Dias, se desenvolveu
“magnetizando pluralidade linguística, rítmica, melódica, estética, instrumental”, enquanto o funk sinal de banalização do “grotesco”,
tratando-se de um ritmo “monossilábico, enrijecido, uníssono, disforme, monocórdico”.
O samba ocorreu de “dentro para fora”, enquanto o funk é uma nacionalização tosca do miami bass americano; uma imposi-
ção cultural. O funk, no mais, apresenta um discurso ideológico
“elitista, reacionário e paternalista consistente em um moralismo às avessas (induzir a sociedade a interpretar coisificação da
mulher como luta feminista, pobreza como estilo de vida, ignorância como caricatura, conformismo como engajamento políti-
co, ostentação material como cidadania) interessado em processar o etnocentrismo, o higienismo e a marginalização que apri -
siona, domestica e submete as classes pobres na armadilha da segregação social.”
Palavras fortes. Caso alguém ainda esteja esperando, adianto que Artur Dias parece ter se esquecido de dizer por que nada disso pode
ser cultura.
Mesmo que todas as acusações dele fossem verdadeiras (e não são), não há nada que impeça um ritmo grotesco, monocórdi-
co, de discurso elitista e paternalista de caracterizar cultura popular.
Cultura não é só aquilo de que gostamos. Cultura engloba toda uma gama de experiências sociais – algumas delas nós não es-
tamos preparados para aceitar. Isso deveria ser óbvio para alguém tão obviamente de esquerda como Artur Dias. Afinal, de que servem
as extensas denúncias e lamentações sobre a “cultura do estupro” se cultura não puder englobar também aspectos sociais negativos de
um povo?
O mérito da qualidade cultural do funk nem entra aqui em questão. É fato que o funk é representação cultural, gostem ou não
eu, você ou Artur Dias.
Artur erra porque adota um conceito idealizado de “brasilidade”, no qual se encaixa o samba, mas não o funk. Brasilidade,
porém, não é nada mais que um delírio proto-totalitário que insiste em não morrer desde o movimento modernista no Brasil. Desde
então, a alta cultura e arte brasileira não desiste de procurar uma “identidade nacional”, uma “brasilidade”, um Macunaíma. É verdade
que o samba nasceu e cresceu no meio do povo, mas cresceu e se adaptou, internalizou outras expressões culturais, importou de fora
muitas expressões. O que falar do samba de gafieira? Do samba-exaltação getulista? De Ary Barroso e Noel Rosa? Imagino também
que não sejam expressões culturais, porque são oriundos da “elite”, importando elementos estrangeiros e atentando contra a nossa bra-
silidade.
É desconcertante ver pessoas que deveriam possuir um pouco mais de sensibilidade cultural se curvarem a nacionalismos
culturais toscos. Se o samba é expressão de brasilidade, o Nordeste e o Norte não devem ser muito Brasil, já que nestes lugares é gê-
nero musical relativamente menor.
Da mesma forma, é verdade que o funk é oriundo do miami bass. But that’s not a bug, it’s a feature. A Bossa Nova veio do
jazz (e era tocada pela elite). É compreensível que nacionalistas culturais como Artur Dias desconfiem do intercâmbio cultural. Mas
não há o que temer. As trocas culturais devem ser celebradas, a não ser que Artur queira ser o primeiro a dizer para os Racionais que o
que eles fazem não entra na conta da cultura brasileira porque é apenas a importação de um ritmo ameri… estadunidense.
Quanto ao discurso do funk carioca, the jury is still out. Valesca Popozuda canta sobre a libertação do corpo feminino, mas é
evidente que é um discurso que pode ser uma faca de dois gumes: pode tanto ser um grito de libertação quanto, em determinados
contextos, levar a mulher a um aprisionamento num papel social restrito.
Eu, ao contrário de Artur Dias, não vou enquadrar todo o discurso funkeiro sob um rótulo. Mas, infelizmente para ele, o funk
é cultura popular, sendo importada, elitista, comércio, o que for. Porque cultura engloba até aquilo que nós odiamos (estou curioso
para saber o que ele pensaria sobre os ritmos mais populares de onde eu moro, notadamente o forró “brega”).
De minha parte, porém, tenho uma visão mais otimista sobre o funk, até porque não estou preso a uma concepção de quase
cem anos de cultura nacional.
Afinal, “O tempo passa / O mundo gira / O mundo é uma bola”.
Erick Vasconcelos é mestrando em comunicação pela UFPE e ocasionalmente gosta de um proibidão. Seu último vício é a música
“Sou Favela” de MC Shevchenko e Elloco, cujo significado ele desafia qualquer habitante do sudeste brasileiro a decifrar.

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Urbanismo de luxo na excludente Dinamarca: o caso de Copenhague
Copenhague é uma das cidades com maior qualidade de vida que eu já visitei. Correção: Copenhague é a cidade com maior qua-
lidade de vida que eu já visitei. Não sou autoridade nenhuma, mas minha percepção é praticamente consenso, pois a cidade foi votada em
vários rankings como a melhor para se viver. Planejada até os últimos detalhes, Copenhague tem ar puro, áreas verdes, excelente mobili-
dade urbana e tanto construções novas como antigas são da maior qualidade arquitetônica.
É uma cidade refinada em todos os sentidos e que, urbanisticamente falando, tem servido de referência para estudiosos de cida-
des do mundo inteiro. Jan Gehl, que ajudou na transformação da cidade, foi a pessoa que cunhou o termo “Cidades Para Pessoas”, nome
de seu livro publicado em 2010 que virou um best-seller instantâneo em urbanismo. Seus ideais incentivam o uso da bicicleta (cerca de
40% dos moradores de Copenhague pedalam para se transportar) e focam na qualidade de vida geral dos cidadãos, e não estritamente no
fluxo de tráfego de veículos motorizados, um objetivo que muitos planejadores brasileiros possuem até hoje.
Copenhague e o trabalho de Gehl geraram uma legião de seguidores mundo afora, desde influenciando a criação de blogs como
o Cidades Para Pessoas, da jornalista Natália Garcia, até a criação de um termo próprio, “Copenhagenize“, se referindo a projetos que in-
centivam o uso da bicicleta no meio urbano e, é claro, uma “cidade para pessoas”. Gehl certamente fez um ótimo trabalho com a cidade
existente: 97% dos moradores se diz satisfeito com a cidade.
Mas se a cidade é tão boa, porque ela cresce tão pouco? Assim como produtos de luxo de altíssima qualidade e com oferta limi-
tada, Copenhague se torna acessível somente para um grupo seleto de pessoas, sendo a 15ª cidade mais cara do mundo para morar. É a
velha lei da oferta e demanda em ação.
Copenhague é capital da Dinamarca, um pequeno país escandinavo reconhecido pela sua alta qualidade de vida. A Dinamarca
possui duas políticas particularmente relevantes para o aumento do custo de vida (e não vou falar sobre gastos governamentais, presentes
também no resto da Europa): uma das economias mais livres do mundo e uma das políticas de imigração mais restritivas do mundo, ao
mesmo tempo. Isso significa que sua economia permite uma enorme geração de riqueza para aqueles que moram no país, mas sua políti-
ca migratória impede que pessoas de fora possam entrar e participar desse próspero ambiente econômico, ajudariam a baixar custos traba-
lhistas e preços ao competirem com os locais. Para manter o status quo e sua “hegemonia cultural”, a Dinamarca se tornou um grande
“clube de luxo”, já que pobres imigrantes não podem se tornar cidadãos: além de serem obrigados a falarem dinamarquês, é necessário
depositar cerca de R$50 mil em uma conta bancária estatal para cobrir as despesas do Estado de Bem-Estar.
Neste país de ricos, onde a renda per capita anual ultrapassa R$100 mil, Copenhague é disparada a maior cidade de todas. A ci-
dade possui atualmente cerca de 1.2 milhões de pessoas (mais de 20% do país) na sua Zona Metropolitana, sendo 550 mil na municipali-
dade de Copenhague propriamente dita. A segunda maior cidade do país é Aarhus (praticamente o porto de Copenhague), com apenas
250 mil habitantes. O resto da Dinamarca é formado majoritariamente por vilarejos de menos de 50 mil habitantes.
Em cidades, pessoas atraem pessoas: aglomeração populacional é o motivo pelo qual cidades existem, aproximando seres huma-
nos e facilitando trocas e interações entre eles. Assim, Copenhague é o principal ímã populacional do país, onde estão as melhores opções
de trabalho, educação, cultura e lazer, e onde os ricos dinamarqueses competem pelo recurso escasso que é o espaço urbano. Mesmo com
restrições imigratórias ao país, a cidade prevê crescimento populacional seguindo a tendência global de migração das zonas rurais para os
centros urbanos. Desenhada como uma joia preciosa, lá também há grande restrição no desenvolvimento das áreas centrais assim como
de novos bairros periféricos, uma relutância geral para receber mais moradores. Qual o resultado de pouca oferta para muita demanda? O
aluguel de um apartamento de um dormitório custa cerca de R$2600 por mês, sendo o m² médio para compra cerca de R$30 mil. O valor
é equivalente ao preço de um imóvel de luxo na praia de Ipanema (talvez até com vista para o mar), em um mercado brasileiro que en -
frenta suspeitas de bolha imobiliária devido ao crescimento recorde nos preços.
Assim, os planejadores “para pessoas” sofrem para criar mais oferta de imóveis sem modificar a sua estrutura urbana existente.
Mudanças legais foram feitas para permitir apartamentos nos sótãos de prédios antigos, mas a opção tem limitações já que normalmente
eles não possuem elevador. Aarhus, que também espera crescimento e sofre com falta de habitação, construiu contêineres para abrigar os
estudantes que vêm de fora. Em Copenhague, cidade que preza pela qualidade, isso é improvável. Enquanto alguns estudantes são obri-
gados a morar fora da cidade, impossibilitando o popular deslocamento de bicicleta e enfrentando altos custos de transporte, outros recor-
rem à sacos de dormir: verdadeiros nômades dormindo em sofás de cidadãos amigos, edifícios abandonados ou na reitoria da faculdade
como forma de protesto.
Outra opção tem sido lentas expansões nas periferias através de desenvolvimento de bairros planejados por parcerias público-
privadas. O primeiro grande projeto do bairro de Ørestad foi considerado uma falha pela falta de conectividade com a cidade original,
embora tivesse grande controle pelos planejadores municipais. O segundo grande projeto, chamado de Nordhavn, pretende acomodar 40
mil pessoas até 2050, o que deixa a desejar: a cidade prevê uma entrada de mais 100 mil pessoas nos próximos 10 anos.
Copenhague encontra-se em uma encruzilhada: caso a cidade se espalhe, crescendo demais nas periferias sem aumento de den-
sidade, não conseguirá sustentar a qualidade de vida com alto percentual de habitantes andando de bicicleta. Caso decida desenvolver sua
zona central para acomodar os novos habitantes no centro também perderá sua qualidade de pequena cidade européia, além de alguns
edifícios históricos. A terceira opção é tornar-se ainda menos acessível, congelando a estrutura urbana atual e forçando o aumento no pre-
ço dos imóveis. Imagine agora se a Dinamarca fosse um país acessível, finalmente abrindo suas portas para o mundo? Os problemas en-
frentados pelo urbanismo de luxo seriam exponencialmente maiores, pois o rígido planejamento que a cidade atualmente propõe é incom-
patível para receber as centenas de milhares de pessoas que migrariam para a cidade.
Alguns dirão que Hong Kong, Cingapura e Nova Iorque tem qualidade urbana muito pior que Copenhague, e são igualmente ca-
ras mesmo com muita construção. A primeira resposta para isso é que elas já permitem que muito mais pessoas usufruam da cidade: o
fato de terem dez ou vinte vezes o número de pessoas de Copenhague é um sinal de maior acessibilidade por si só. As 100 mil pessoas
que a capital dinamarquesa espera para os próximos dez anos é o equivalente ao que cada uma dessas cidades espera receber em menos
de dois: pessoas atraem pessoas. As três cidades situam-se em ambientes econômicos igualmente favoráveis à Dinamarca, aliados à po-
líticas imigratórias muito mais flexíveis. Apesar de Nova Iorque fazer parte dos EUA, que se fechou para imigrantes nas últimas décadas,
ela não só atrai os 300 milhões que vivem dentro do próprio país como faz vista grossa aos 500 mil imigrantes ilegais que lá residem, o
equivalente à municipalidade inteira da Copenhague central. Ao mesmo tempo, as três cidades também cometem o erro de limitar seu es-
toque de moradia, um contrassenso já que a aglomeração foi justamente o que as deixou atraentes em primeiro lugar.
Sim, Copenhague é uma cidade que funciona, e seu modelo é realmente um alto padrão de qualidade urbana. No entanto, assim
como todo objeto de luxo que possui uma alta demanda com uma oferta limitada, ela se torna exclusiva, disponível apenas para um pe-
queno grupo de pessoas. Se existem críticas direcionadas a condomínios de luxo, altamente planejados e fechados em si próprios, a mes-
ma crítica deveria se aplicar à Copenhague, que impede a entrada de novos moradores. As barreiras podem ser menos visíveis que cercas
e muros logo na entrada, mas as fronteiras dinamarquesas e urbanismo restritivo da sua capital certamente geram o mesmo resultado. A
“Cidade Para Pessoas” é uma cidade para poucos.
Anthony Ling é arquiteto e urbanista, Conselheiro Consultivo do EPL e autor do Blog rendering freedom.

www.facebook.com/groups/Calourada2014EPL

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