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Porém nem todos conseguiram criar situações, tramas e personagens

capazes de sintetizar as contradições típicas do desenvolvimento


histórico e social e o reflexo dessas condições objetivas na subjetividade
e na vida mental dos brasileiros.

Até que se tenha uma definição melhor, é a dialética do singular, do


particular e do universal que torna uma obra clássica. Clássica porque
extrapola os limites estreitos dessa particularidade e singularidade e se
dirige a todos os homens, distantes no espaço e no tempo. É como se o
escritor, ou o artista, descrevesse tipos humanos únicos, particulares,
acrescentando-os ao imenso catálogo com representantes de todas as
épocas e todos os povos, enriquecendo o registro da experiência
histórica concreta da espécie humana em sua multifacética e rica
variedade de manifestações sociais e existenciais.

Graciliano Ramos conseguiu registrar artisticamente os profundos


conflitos humanos, a desorganização e reorganização da vida
provocadas pelo impacto do desenvolvimento capitalista brasileiro partir
da década de 1930, época em que a modernização da sociedade se
acelerou sob a hegemonia conservadora. O modo de produção
capitalista consolidou seu domínio sobre o conjunto da sociedade
redefinindo as relações sociais e subordinando todas elas ao capitalismo,
à lógica da acumulação e reprodução do capital.

Este é o quadro de transformações aceleradas e perturbadoras em que


se movem personagens como Paulo Honório, Madalena, Luís da Silva,
Julião Tavares, Fabiano, Sinhá Vitória e tantos outros.

Em seu destino pessoal eles representam também o destino das classes


sociais. No ensaio Graciliano Ramos (1965) Carlos Nelson Coutinho
escreveu: “Nesta fusão de indivíduo e classe reside um dos pontos mais
altos do realismo de Graciliano. Seus personagens são sempre tipos
autênticos precisamente na medida em que expressam em suas ações o
máximo de possibilidades contidas nas classes sociais a que pertencem”.
Destino pessoal e destino de classe confundem-se na trajetória de seus
personagens.

Luís da Silva (Angústia, 1936) e Madalena (São Bernardo, 1934) são


pequeno-burgueses inconformados com sua existência opressiva e
alienada, desejosos de subir na vida, apavorados com a perspectiva de
proletarização. Incapazes de compreender as forças que comandam
seus destinos são também incapazes de lutar contra elas. Seus destinos
melancólicos e trágicos são marcados pela impotência e pelo
ressentimento.
Paulo Honório, o camponês que se tornou latifundiário (São Bernardo) e
Fabiano (Vidas Secas, 1947) parecem encarnar dois destinos
antagônicos para personagens de origem social semelhante.

Astuto, Paulo Honório consegue dominar as possibilidades de ascensão


abertas pelo capitalismo. Negocia, trapaceia, abre caminho sem medir
esforços nem escrúpulos. Usa o poder do dinheiro para – como um
Fausto sertanejo – se impor à decadente oligarquia rural. Dedica sua
vida a se tornar ele próprio um latifundiário. Consegue colocar-se acima
de sua classe, como conclui no final do romance. Conseguiu tornar-se
“um explorador feroz”, brutal e egoísta, como amargamente reconheceu.

A saga de Fabiano começa no mesmo ponto de onde Paulo Honório


partiu: a estreita, pobre, mesquinha vida do camponês do Nordeste,
massacrado pelo latifúndio e maltratado pela natureza.

Sua insatisfação – e dos seus – compara-se à animalidade da cachorra


Baleia: querem apenas se manterem vivos e, depois, se possível, obter
alguns modestos luxos, como a cama de couro que Sinhá Vitória queria.

Ao contrário de Paulo Honório, Fabiano busca seus meios de vida


zanzando de fazenda em fazenda até que o destino – semelhante ao de
multidões nordestinas – o coloca na estrada para a cidade e os centros
industrializados do litoral e, depois, do Sul.

O mais miserável e mais rústico dos personagens de Graciliano é,


contraditoriamente, o portador do futuro: na cidade ficará completa e
acabada sua condição de vendedor da força de trabalho no mercado
capitalista. Ele será um operário; seus filhos serão operários, num mundo
novo com contradições de outra natureza, que só poderão ser superadas
pela luta da classe operária e dos demais trabalhadores pelo socialismo.

Assim o destino de Fabiano indica o sentido do desenvolvimento da


sociedade brasileira, dos trabalhadores brasileiros, colocando-os –
juntamente com a sociedade – num novo patamar onde as contradições
da vida rural e camponesa são superadas e substituídas pelas
contradições próprias da sociedade capitalista.

Escritor comunista, o marxismo de Graciliano Ramos jamais lhe permitiu


a subordinação às imposições normativas características do zdanovismo
e seu realismo “socialista” na construção de suas obras.

Artesão exigente e minucioso do idioma, escritor enxuto, da palavra


exata, a forma artística se subordinava nas obras de Graciliano à
resolução do conteúdo.
O estilo memorialístico de São Bernardo, o obsessivo monólogo interior
de Angústia, a aparente descontinuidade e fragmentação de Vidas
Secas, subordinam-se rigorosamente às necessidades da trama, da
exposição da psicologia do personagem, da criação do ambiente social e
cultural onde eles se movem e da forma como esse ambiente externo,
objetivo, se reflete em seu espírito condicionando-o e moldando suas
ações.

Nas obras de Graciliano o socialismo emerge dessas contradições, como


saída para os conflitos sociais e humanos retratados. Emerge de forma
implícita, necessária, inscrita no desenvolvimento das situações e
contradições descritas. Graciliano não caiu na tentação do populismo
fácil e pseudo democrático praticado por tantos escritores de sua época,
que reproduziram de forma maniqueísta a consciência popular. Eles não
hierarquizaram as formas de manifestação dessa consciência. Mas as
abordaram de maneira acrítica e valorizando-as todas igualmente. Ora, a
consciência dos homens reflete de forma muitas vezes alienada e
distorcida as contradições da época em que vivem, enfrentadas no dia a
dia. Se todos os homens tivessem espontaneamente uma consciência
clara e precisa das condições de dominação, as sociedades divididas em
classe nunca poderiam ter existido!

Na obra daqueles escritores populistas o socialismo aparece como um


objetivo artificial, que não decorre da resolução da trama mas da mera
vontade do escritor de colocar essa bandeira na boca dos personagens.

Estas são algumas das características que fazem de Graciliano Ramos


um clássico, no sentido universal. Um escritor que não temia imposições
e enfrentou as contraLAFIdições colocadas pela vida. Que não buscou
soluções literárias fáceis e artificiais para essas contradições. Que não
tentou, de forma também artificial, resolver essas contradições em suas
obras mas que escreveu pela necessidade de registrar, de forma
artística, as dificuldades, mazelas e esperanças da vida de seu povo. E
que, dessa forma, contribuiu como poucos para uma consciência mais
profunda dos problemas da sociedade brasileira e das possibilidades que
seu desenvolvimento promete. E ajudou a ampliar aquele catálogo de
tipos humanos referido acima, de personagens característicos da vida
nesta parte do mundo e num período da história: o contraditório período
em que o modo de produção capitalista se tornou hegemônico na
formação social brasileira.
 REIFICAÇÃO

MULHER: HUMANISMO

EXPRESSÃO ESTÉTICA: ATRAVÉS DA ARTE, APROXIMAR-SE DO


REAL.

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