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Irene Santos

ORGANIZAÇÃO

NEGRO
em Preto e Branco
História Fotográfica
da População Negra de Porto Alegre

2005
© 2005 - Irene Santos
Todas as imagens e os textos foram gentilmente cedidos para esta obra e só podem ser reproduzidos, total ou parcialmente,
com a autorização expressa da autora, conforme a legislação vigente.

Coordenação editorial, projeto gráfico, diagramação


Irene Santos
Textos e entrevistas
Vera Daisy Barcellos
Silvia Abreu
Pesquisa histórica
Elenir Gularte Marques
Revisão
Oliveira Silveira
Consultoria de Artes Gráficas
Zoravia Bettiol

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Negro em Preto e Branco: história fotográfica da população negra


de Porto Alegre/ Irene Santos (org.) Porto Alegre:Do Autor, 2005

184p.:il

ISBN 85.905353.1.2

1.Fotografia histórica. 2.Fotografia em preto e branco


3. População Negra. 4.Porto Alegre: 1850 - 1980 I.Santos,Irene. II.Titulo.
CDU 77.065(=414) (816.51)
CDD 779.96.816.5
Bibliotecária Responsável: Sabrina Clavé Eufrásio - CRB10/1670

DISTRIBUIÇÃO
Irene Santos
Rua Vasco da Gama, 187 - Bom Fim - CEP 90420-111 Porto Alegre/RS
051.3533.2781
irenesantos@terra.com.br/ www.irenesantos.fot.br

FINANCIAMENTO
Irene Santos
ORGANIZAÇÃO

NEGRO
em Preto e Branco
História Fotográfica
da População Negra de Porto Alegre

2005
Texto para uma foto
Oliveira Silveira

O açúcar, o algodão
dos cabelos
Montanha com túneis de mina.
O eito,
as vergas e leivas da testa.
O charque do tempo no rosto.

Que céu nublado se reflete


nas duas cacimbas
dessa terra seca?
E que profundezas afloram
a esses dois
olhos-d’água?
Irene Santos/1979
Dedicatórias

Para
Fabia e Otelo Santos
e para todos os negros e negras
que já concluiram sua luta
por afirmação e reconhecimento
Para
Ricardo Costa e Juliano Barcellos Costa
e para os negros e negras
de todas as cores e etnias,
que enfrentam desafios diários
para manter sua dignidade e cidadania
Irene Santos
Para
Mariana Abreu Marmontel
e para todos os negros e negras que
ainda estão aprendendo a enfrentar as
lutas diárias e os desafios futuros
Silvia Abreu
Agradecimentos

A todos que, acreditando no projeto deste livro,


dedicaram generosamente o seu tempo,
compartilharam seu conhecimento
ou cederam para publicação,
a memória de suas famílias, gravada em fotografias

Adão Alves de Oliveira (Seu Lelé)


Alceu Collares
Aldino Paixão Flores
Alpheu Cachapuz Battista Jr
Altair Garcia Fogo
Amara Lopes da Rosa
Antônio Carlos Côrtes
Antônio Carlos Santos Rosa
Berenice Silva e Silva
Carmem Amora
Carlos Alberto Brito (Biá)
Claudinho Pereira
Deise Nunes
Dirney Alves Ribeiro
Dirnei Prates
Éder Luis Farias
Edilson Nabarro
Eloy Dias dos Angelos
Érico da Rosa Machado (Érico do Ogum)
Elenir Gularte Marques
Elza Ferreira Alves
Eni Neves
Família de Everaldo Marques da Silva
Família de Jacob Prudêncio Herrmann
Família de Julio Ferreira
Família de Pedro Homero
Gelson Oliveira
Giba Giba
Guarani Santos
Iara Neves
Iosvaldyr Carvalho Bittencourt Jr
Isete Maria do Nascimento
Irma Nascimento
Irmã Élida de Bastiano
Irmã Zuleima Maria Perondi
Ivone Fontes
Joaquim Lucena Neto
João Augusto Santos Silva (Caco)
Jones Lopes da Silva
Jorge Alberto da Silva Nascimento
José Laurindo Lopes
José Tarcisio de Souza
Júlio José Nunes
Loma Berenice Gomes Pereira
Lourdes Rodrigues
Lidia Garcia Varella
Lucia Helena
Lúcia Regina Brito Pereira
Luis Flávio Nascimento
Manoel Fernando Rosa e Silva
Maria Conceição Lopes Fontoura
Maria da Graça Magliani
Maria de Lourdes da Luz
Maria Guedes
Maria Isabel Ribeiro da Silva
Maria Lidia Magliani
Maria Helena Andrade
Maria Helena Montier
Maria Luísa Pereira de Oliveira
Maria Noelci Teixeira Homero
Marilene Leal Paré
Nádia Andrade Freitas
Najara Santos Silva
Neura Santos da Silva
Nilo Alberto Feijó
Odyla Junqueira
Oliveira Silveira
Olivia Pereira
Osvaldo Ferreira dos Reis
Paulo Chimendes
Paulo Paim
Paulo Ricardo de Moraes
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva
Renato Costa
Renato Rosa
Rui Barbosa
Sabrina Clavé Eufrásio
Sandra Maria da Rosa
Sirmar Antunes
Tamara Quiroga Brum
Maria Regina Borges Pinto (Tia Regina)
Vera Neuza Lopes
Vera Lucia Lopes
Waldemar Pernambuco Moura Lima
Wilson Pereira (Turquinho)
Zilah Machado
Zoravia Bettiol

FUMPROARTE
Memorial do Rio Grande do Sul/ Arquivo Histórico
Museu Joaquim José Felizardo/ Fototeca Sioma Breitman
16 - NEGRO em Preto e Branco

OS OLHOS DE
Acervo Renato Costa
ANASTÁCIA
Anastácia viveu escravizada na Bahia na primeira metade do
século 19. Inconformada, lutou como pôde contra sua situação.
Aos seus irmãos negros, também escravizados, falava sempre,
estimulando-os a lutar contra a humilhação e a injustiça. Deve ter
sido uma oradora brilhante pois seu discurso incomodou tanto seus
algozes que a decidiram calar à força. Colocaram-lhe uma mordaça
de folha-de-flandres e uma coleira de ferro, tão pesada, que
dificultava, até, seus movimentos. Não adiantou. Anastácia continuou
a transmitir sua revolta e a exortar à luta pela liberdade e pela dignidade,
através da força do seu olhar.

Não existem fotos de Anastácia. A fotografia só seria inventada por


volta de 1840, tempos após sua morte. As fotografias de negros,
escravos, libertos ou nascidos livres só começaram a aparecer na
segunda metade do século 19. Em Porto Alegre, o primeiro estúdio
fotográfico foi inaugurado pelo imigrante italiano Luiz Terragno em
1853. Ficava na esquina da Rua da Alegria [General Vitorino] com a
Rua do Rosário [Vigário José Inácio].

No século 19, os negros eram exóticos para o olhar dos europeus.


Por isso, fotografados nas ruas ou mesmo em estúdio, tinham suas
imagens copiadas sobre papel, exportadas e vendidas como
curiosidades no Exterior. Homens-objeto, modelos ingênuos que não
posavam, deixavam à mostra seu pensamento, seu sentimento. O
observador cuidadoso, veria no fundo de seu olhar, eterna, a chama
dos olhos de Anastácia.

Tempos depois do 14 de Maio , muitos negros estavam tão bem


de vida que já podiam ir aos estúdios encomendar suas próprias
fotos. No início do século 20, era de bom-tom ofertar aos amigos
fotografias de momentos importantes. Iam famílias inteiras, casais que
noivavam, meninas de vestido novo; tudo era motivo para uma boa
foto. A comunicação se estabelecia com o olhar de quem olhava a
foto, pelos olhos dos modelos. Seria o olhar altivo, direto, fitando a
lente do fotógrafo, uma atualização do olhar de Anastácia?

O objetivo desta obra é revelar o amor-próprio e a alegria da


identificação com a etnia negra, que se revela nos olhares
preservados nas fotografias de nossas familias porto-alegrenses.
Auto-retrato

Irene Santos

Fotógrafa. Licenciada em História/ UFRGS. Microempresária. Trabalha nas áreas de


fotografia , programação visual, design gráfico, web design.
18 - NEGRO em Preto e Branco

Índice

Os Olhos de Anastácia - Irene Santos ......................................................... 18

Prefácio - Marilene Leal Paré .................................................................... 20

A Casa de minha Mãe - Vera Daisy Barcellos .................................... 22

Os Primeiros TTempos
empos - Guarani Santos ............................................. 24

Ter ritórios Negros - Iosvaldyr Carvalho Bittencourt Jr ......................... 36


erritórios

Galinha com farofa, vinho sabiá e muita dança ............................... 50


Um dia Luanda foi aqui ................................................................... 54

Trabalho de Negro - Antonio Carlos Santos Rosa ............................... 58


Julinho Alfaiate .................................................................................. 66

As Caras Pretas - Antônio Carlos Côrtes ............................................. 68

Educação dos Negros e das Negras - Petronilha Beatriz Gonçalves


e Silva ........................................................................................................... 72
Com as bênçãos e a guarda de São Benedito ................................. 75
Doutor Veridiano Farias vence a intolerância racial .......................... 79

Cobrando a Dívida - Edilson Nabarro ................................................ 81


Carlos Santos .................................................................................... 82
Alceu de Deus ................................................................................. 84
Paulo Paim ........................................................................................ 85

Cabelo Bom - Isete Maria do Nascimento ............................................ 86


Pentes, tesouras e chapinha .............................................................. 92
A Bela Olívia ..................................................................................... 96
Beleza Pura ....................................................................................... 97
A Canela Preta - Jones Lopes da Silva ................................................................. 99
Futebol de Salão: Flávio ainda é o melhor “frente” ........................ 103
O homem das corridas de rua ........................................................................104
Atletismo ................................................................................................................. 106

Cor rentes da Fé - Osvaldo Ferreira dos Reis .................................... 108


Correntes
Origens do Batuque - Norton Figueiredo Corrêa ......................... 111

Palavra de Negro - Oliveira Silveira ................................................... 114


Como Negro - Paulo Ricardo de Moraes ........................................ 121
Teatro e Carnaval - Waldemar Pernambuco Moura Lima ................... 122

Recordar é viver - Nilo Alberto Feijó ................................................. 124


Seu Pretinho, o Moleque Tião ......................................................... 137

O Enredo do Nosso Samba - Claudinho Pereira ......................... 138

Chama que não se apaga - Joaquim Lucena Neto ....................... 142


Seu Lelé e as histórias de um rei negro .......................................... 149
Carlos Alberto Barcellos, o Roxo .................................................... 151

Cantando prá subir - Silvia Abreu ..................................................... 152

Ar te em Preto e Branco? - Renato Rosa ........................................ 166


Arte
Pedro Homero: a arte regida pelos Orixás ................................... 171

Com os pés na cozinha - Jorge Nascimento 172


..........................................
Cardápio Afro-gaúcho .................................................................. 174

Negro de Alma Preta - Maria Conceição Lopes Fontoura .................... 176

Fontes Consultadas .......................................................................... 180

Índice - 19
20 - NEGRO em Preto e Branco

PREFÁCIO
Marilene Leal Paré

Peço licença aos mais velhos, aos antepassados


africanos e afro-descendentes, para abrir as
páginas dos nossos retratos de orgulho de
sermos negros nesta terra chamada Brasil!
Através das fotografias,minha amiga artista Irene Santos, abre o álbum
de recordações dos momentos belos e felizes dos afro-gaúchos,
mescladas com textos brilhantes de estudiosos dos Movimentos Negros
do Estado do Rio Grande do Sul. São os encontros, as comemorações,
as festas familiares, os aniversários, as viagens, as formaturas, as crenças,...
o Carnaval! A beleza e elegância, as alegrias, as famílias negras sempre
as mostraram, às vezes fotografando e muitas vezes sendo fotografadas,
apesar do preconceito racial existente em nosso meio que procura
esconder a verdadeira cor da cara deste país!

A metodologia comportamental skinneriana de reforço negativo à


nossa auto imagem foi e continua sendo, maquiavelicamente, empregada
pela sociedade brasileira.

“Há um racismo histórico implícito nas relações em nosso país


expressando, nas mais diversas formas, uma pretensa superioridade branca e
uma inferioridade negra [. . .] A afirmação do mundo branco pela dominação
do povo negro trouxe consigo a depreciação estética, a igreja a dizer que preto
não tinha alma, o desmerecimento da cor da pele e dos traços físicos dos
escravos e das suas manifestações culturais e artísticas. Embora as bases
científicas do racismo fossem frágeis no âmbito acadêmico, ele foi capaz de
se afirmar como ideologia” (PARÉ, 2000, p. 94).
Nossa mente de negro brasileiro é condicionada a uma “feiúra física”
a qual não pode aparecer nas imagens públicas quaisquer que sejam.
Esse reforço condiciona trabalhando ora “suavemente”, como na
expressão “negro de alma branca”, ora com agressão direta, como em
“seu negro macaco”. Imagine sendo introjetados na psique da pessoa
negra, desde a tenra idade e por toda a sua vida, diariamente, elementos
condicionantes de baixa auto-estima, inibitórios e, conseqüentemente,
marginalizantes.
Cooley (1912)diz que o autoconceito pessoal é influenciado de maneira
significativa pelo que o indivíduo crê que os outros pensam dele. O autor
descreve a formação da auto-estima com base na interpretação da
realidade física e social por parte do indivíduo. No livro Tornar-se Negro ,
da Dra. Neusa Santos, há a afirmação de que

“[. . .] o negro brasileiro sofre uma violência racista exercida pela tendência
a destruir a identidade do sujeito negro. Este através da internalização
compulsória e brutal de um Ideal de Ego branco, é obrigado a formular para si
um projeto identificatório incompatível com as propriedades biológicas de seu
corpo. Entre o EGO e seu IDEAL cria-se, então, um fosso que o sujeito negro
tenta transpor às custas de sua possibilidade de felicidade, quando não de seu
equilíbrio psíquico” (SOUZA, 1983, p.03).
A auto-estima depende da qualidade das relações existentes entre a
criança e os que desempenham papéis importantes em sua vida. Embora
haja valorização da criança na família negra, ela se defronta com uma
batalha de autovalorização interna proveniente das relações adversas que
encontra fora dela. A família negra brasileira constitui-se provedora de
afeto, principalmente na presença da figura feminina da mãe que protege,
como observamos no texto sensível de Vera Daisy Barcellos; é ela que vem
dando sustentabilidade emocional à comunidade afro-descendente. De
nossas infâncias negras comuns na dor da pobreza material, a riqueza do
afeto das mulheres mães-avós-negras guerreiras a abarcarem os filhos(as)
de todos(as)...herança africana...

Salve Irene, que tal qual Mamãe OXUM, generosa, nos presenteia com
esta obra, resgatando e publicando o quanto nós nos gostamos,
mostrando nosso valor e amor próprios, ainda tão invisíveis para a
comunidade brasileira em geral, contribuindo, assim, no reforço positivo
à auto-estima da população negra de Porto Alegre!

Irene Santos

Marilene Leal Paré

Pedagoga com Habilitação em Orientação Educacional pela UFRGS. Especialista em


Aconselhamento Psico-Pedagógico pela UFRGS. Mestre em Educação pela PUC/RS.
Orientadora Educacional no Colégio de Aplicação da UFRGS.Coordenadora do
Programa de Educação Anti-Racista junto à pró-Reitoria de Extensão da UFRGS.

Prefácio - 21
22 - NEGRO em Preto e Branco

A CASA DE MINHA MÃE


Vera Daisy Barcellos

A idéia deste texto nasceu numa roda de conversa


informal. Ali estávamos a fotógrafa Irene Santos, a
jornalista Silvia Abreu e eu. Na ocasião, uma tarde fria
de agosto, entre xícaras de chá quente partilhadas,
definíamos alguns passos para incrementar o projeto
deste livro.
Falávamos das nossas características e do nosso comportamento como mulheres
negras, homens negros, enfim da cara, do estilo e do comportamento da família negra
sempre tão ausente e invisível nas publicações de nossas leituras. Somos diferentes!
Dizíamos e enfatizávamos em uníssono.

E naquela sala, com rabos de gatos se enroscando em nossas pernas, falávamos


alto e gesticulávamos muito, como se a nós ouvir, ali estivesse uma imensa platéia. Éramos
apenas três. Nossas vozes ressoavam através das paredes no silêncio da noite que se
fazia num bairro de classe média, reduto de moradores judeus, mas que antigamente
levava o nome de Colônia Africana. Que ironia...

No fluir da conversa, meditávamos. Ponderávamos sobre essa incrível resistência e


sobre essa capacidade de superação por tudo que a população negra havia passado.
Indagávamos: - Que poderosa força é essa que nos mantém desde a brusca arrancada
do solo africano, da travessia mórbida nos navios tumbeiros, da perda de identidade,
da baixa-estima, da violência dos anos de escravidão e o ficar à margem da sociedade
brasileira num pós 13 de maio até os dias de hoje?

A história aflorava aos borbotões e a vivência de cada uma também. E resolvemos


traçar nosso auto-retrato e escrever, cada uma a sua maneira, os nossos sentimentos e
as características de um povo diferente, especial, guerreiro e, fundamentalmente,
inteligente para superar todos os reveses. E, logo, nascia da percepção das risadas, das
gargalhadas e das falas altas misturadas, a lembrança das cantorias dos nossos familiares.

Na explosão de idéias, a constatação de que não somos adeptos do silêncio em


nossas casas e nos demais lugares que circulamos. Os encontros festivos nas ruas são
acompanhados de amplos gestos de afeto, batidas nas costas, passos de dança e
chamadas de nomes num tom de voz acrescido de alguns decibéis. Esta é a nossa
marca. A nossa essência negra. Nada é feito com discrição como se fosse uma resposta
ao longo silêncio a nós imposto. Somos abertos, sonoros, gritões e solidários.
A palavra solidariedade me remete à minha origem-matriz, ao meu passado. Me
transporta à casa de minha mãe localizada numa “avenida”, assim chamados na época
os espaços que os donos dos terrenos dividiam para alugar. Ali, uma mínima infra-
estrutura ou quase nada. A casa de minha mãe ficava no Bairro Cidade Baixa, mais
especificamente na Rua Joaquim Nabuco. Era a última de uma fila de casas, uma ao
lado da outra.

Eu era criança. Não morava com a minha mãe. De tempo em tempo me levavam
para visitá-la. Mas me lembro bem daquela casa pequena e apertada que zombava da
lei da física por sua inclinação indevida. O quarto, a sala, e um arremedo de cozinha.
Uma “meia aba”, assim diziam. No pequeno espaço do pátio, uma fileira de vasos de
argila e latas de banha de côco com espadas de São Jorge, arrudas, dálias vermelhas
cor de sangue e amarelas, e copos de leite, suas flores favoritas. No ar, o cheiro das ervas
pulverizado.

E naquele espaço, além dos meus irmãos e irmãs, minha mãe acolhia os filhos dos
outros, afilhados, sobrinhos, enfim uma multidão para os meus olhos infantis. Criei-me
vendo aquela casa sempre cheia. “Onde comem cinco, come mais um”, dizia, com
sabedoria, minha mãe sempre disposta a partilhar sua mesa tosca coberta por uma toalha
essencialmente branca, engomada e passada com pesado ferro à carvão.

A humilde casa de minha mãe, que pela solidariedade ampliava suas paredes, tinha
constante mesa farta. Adepta do ditado “de quem convida dá banquete”, os aniversários
eram regados à grande quantidade de comida. Cozinheira de mão cheia e doceira, a
“velha” Eva se empenhava. “Pode sobrar, mas comida não pode faltar”. Uma tirada, fruto
do inconsciente coletivo, para superar os tempos de apenas sobras e pouca comida nas
senzalas da casa grande. Dessa forma, múltiplos pratos se expandiam pela mesa e as
sobremesas marcadamente divinas, do pudim de leite ao sagú com creme, complementado
com o bolo com merengue e confeitos de prata.

Bom tempo aquele de saborosas lembranças... que me conduzem às várias casas


por onde minha mãe se fixou nos diferentes bairros da Cidade. Mas será esta que
descrevo a mais marcante de toda a minha infância. Ainda vejo minha mãe me
esperando, no abraço dado apertado, com cheiro de sabonete lavanda, naquela porta
sempre aberta a todos, sinônimo de aconchego recheado com odor de bolo de milho
recém-feito sob o fogo baixo do fogareiro Primo.

Que Deus a tenha, minha mãe!

Arquivo Particular

Vera Daisy Barcellos

Jornalista, empresária,militante do Movimento Negro. Atua no Núcleo de


Comunicadores Afro-brasileiros do Sindicato dos Jornalistas Profissionais/RS.
Assessora de Imprensa de Maria Mulher - Organização de Mulheres Negras. Foi
editora de projetos especiais do jornal A Voz da Serra, de Erechim. Foi repórter da
editoria de Esportes e de Carnaval de Zero Hora por 16 anos. Fundadora da revista
Tição no final dos anos 70. Recebeu o Prêmio ARI de Jornalismo em 1998.
Carnavalesca atuante na Academia de Samba Praiana.

A casa de minha Mãe - 23


OS PRIMEIROS TEMPOS
Guarani Santos

A diáspora negra, o maior crime continuado


da história da humanidade. Seguramente
foi o mais terrível, jamais acontecido em
todos os tempos. A mãe África, mãe de
todos os homens e de todas as raças, teve
seus filhos negros jogados para fora do
seu ventre.
Até hoje é complicado explicar a origem territorial de nossos
antepassados; no caso brasileiro, após a Proclamação da
Ruge
ndas República, em 1889, o ministro Rui Barbosa mandou incinerar
todos os documentos oficiais relativos à importação, venda e
compra de escravos. Literalmente o ministro queimou o passado
de todos os afro-descendentes.
Entretanto, se a presença branca no Rio Grande do Sul está
fartamente documentada, a presença negra aparece nos
documentos de forma subalterna e ocasional. Utilizada esta
documentação oficial, sabe-se que a presença negra no RS
começou com a expedição vinda de Laguna (SC ), comandada
Rugendas por João de Magalhães.
Aquarela de Hermann Rudolf Wendroth / Acervo Memorial do Rio Grande do Sul

V.Calegari/M.J.J.Felizardo/Fot.S.Breitman

Vista total de Porto Alegre em 1852

Foram trinta e um expedicionários e destes, vinte e quatro


eram negros escravos. Essa expedição era de reconhecimento,
Acervo Zilah Machado
pois o governo português projetava fundar uma base militar.
Em 1737 fundou o Forte Jesus Maria e José que daria origem
à cidade de Rio Grande. Portugal ocupava militarmente estas
terras. Negros libertos pertencentes à tropa, escravos e
escravas, também estavam no início da história do RS.
Porto Alegre inicia sua vida com a vinda dos casais
açorianos, ocupando partes da beira do Guaíba. Não era para
ficarem ali, mas problemas político-militares no interior do RS
determinaram sua fixação neste sítio. Este fato determinou que
a governança organizasse o vilarejo. Com a vinda dos agentes
do governo também vieram os escravos. A partir de 1772 não
há registros históricos documentais do número de escravos e
seus nomes. Seguramente todo o trabalho era feito por eles.
O calvário urbano em Porto Alegre começaria e também a
resistência contra a opressão escravista, por meio de
constantes fugas de escravos formando os primeiros
QUILOMBOS da cidade. Vejam a Ata da Câmara de Porto
Alegre em 31/03/1798:
“Nesta vereança se proveu a Estácio Dutra para capitão de mato do
distrito da freguesia desta vila e se passou edital sobre as rondas que o
1896 - Mulher com sombrinha mesmo devia fazer de noite”.

Os primeiros tempos - 25
26 -NEGRO em Preto e Branco

Mais adiante outra Ata da Câmara de 18/04/1798:


“Nesta vereança se deferiu a vários requerimentos, e se mandou fazer hua
marca F para marcar os escravos apanhados em quilombos, e assim mais um
tronco para o capitão de mato segurar os escravos que forem apanhados em
quilombos para neles se fazer a execução que a lei determina antes de entrar
na cadeia”
O primeiro jornal gaúcho foi o Diário de Porto Alegre, editado
de 1º de junho de 1827 até 30 de junho de 1828. Esta coletânea
de alguns anúncios, todos de 1827 (e conservando a grafia da
época), nos dá uma visão sobre a condição negra :
- Uma escrava de nome Francisca de nação rebola, idade de 25 anos,
estatura ordinária, beiços grossos e um sinal na testa como um círculo de um
vintém, fugiu em março. Quem a trouxer dirija-se a rua do Cotovelo (atual
Riachuelo) n º 70, que ganhará boas alvíssaras.
- Vende-se uma escrava parda, cozinheira, costureira, engomadeira e
rapariga. Quem a quiser comprar procure na rua da Igreja nº 25, à direita, na
esquina dos Pecados Mortais (trecho da atual Bento Martins).
- Quem quiser comprar uma molequinha nova (escrava-criança) cozinha
o ordinário. Quem pretender comprar dirija-se a rua do Arvoredo a casa nº 13 e
ali achará com quem tratar.
- Quem tiver uma ama-de-leite que seja sadia e saiba tratar crianças e queira
alugar, anuncie a sua moradia para ser procurado.
- Quem quiser comprar hum escravo marinheiro dirija-se a rua do Cotovelo
(atual Riachuelo), casa n0 70, ali achará com quem tratar.
Anúncios semelhantes eram comuns até 1884, quando no
RS terminou a escravidão formal.

Desenhos de Rugendas
Hugo de Biasi / Memorial RS

Engel Jr / Memorial do RS

Quiosque na Praça XV no final do século 19 Praça XV de Novembro em 1888

A palavra Redenção tem sua origem do latim redemptio, que


significa libertação. Daí explica-se o nome Parque da Redenção.
A palavra fotografia é oriunda do grego: photo, que tem como
significado luz e graphein, que significa gravar.
Portanto este trabalho é de extrema importância, pois, trás uma
luz que grava de maneira inédita nossa presença em Porto Alegre.

Irene Santos

Guarani Santos

Professor e Historiador
LIVROS PUBLICADOS:
- A violência branca sobre o Negro no RGS
- A Epopéia do Quilombo dos Palmares, 1987
- O Negro e a Constituinte, 1986
- O quê ler sobre o Negro no RS, 1984

Os primeiros tempos - 27
28 - NEGRO em Preto e Branco
Lunara /Acervo Museu JJosé Felizardo - Fototeca Sioma Breitman

1752 - chegada dos


primeiros casais açorianos
Libertos no final do século 19 em Porto Alegre
que iniciaram o
povoamento oficial da gleba
que daria origem à cidade
de Porto Alegre.
Durante 300 anos de tráfico, foram trazidos para
o Brasil cerca de 4 milhões de indivíduos negros
1772 - fundação em 26 escravizados. A maior parte pertencia à etnia banto e
de março da Vila de era proveniente da Costa de Angola e de Moçambique,
Porto Alegre.
da Guiné e do Congo.

1773 - a Vila de Porto Alegre


é elevada à condição de
H.R.Wendroth/ Memorial do RS
Capital do Continente em
25 de julho.

1822 - em 14 de novembro a
Vila ganha a denominação
de Cidade de Porto Alegre.

1852 - Igreja Matriz e Palácio do Governo com procissão


Mapa reproduzido do livro : A Fundação de Porto Alegre / Clóvis Silveira de Oliveira

Engel Jr / Memorial do RS Museu J.J.Felizardo/ Fototeca Sioma Breitman

Rua de Bragança (Marechal Floriano)

Rua da Ladeira, atual Gen.Câmara, no final do século 19

Antigo Caminho Novo (Voluntários da Pátria)

Os primeiros tempos -29


30 - NEGRO em Preto e Branco
Memorial do RS

Vista da
Cidade Baixa
Durante a administração de no século 19
José Marcelino de
Figueiredo a cidade foi
dotada de fortificações que a
Porto Alegre-Biografia de uma cidade
preservassem de investidas
armadas. A entrada para a
povoação foi fixada num
só ponto sendo praticada por
um portão. Dito portão
ficava na atual praça
Conde de Porto Alegre, por
muito tempo chamada de
Praça doPortão.
(FORTINI,1962)
Aguadeiro
1826 - Inauguração da
Santa Casa de Misericórdia. no final do século 19

Affonso Amoretty / Memorial do RS

Praça do Portão em foto reproduzida


do livro: Porto Alegre-Biografia
de uma cidade

Homem com menina - 1868


Memorial do RS

1835 - Em 20 de setembro
um enfrentamento entre
tropas governistas e
Solar da família de Bento Gonçalves em Camaquã
rebeldes gaúchos, nas
proximidades da ponte da
Azenha, iniciou a Revolta
Farroupilha. A cidade era
constantemente sitiada e os
farrapos procuraram
isolá-la ao máximo.
Hugo de Biasi / Memorial do RS
1841 - A resistência aos
vários cercos que sofreu no
período da Revolta dos
Farrapos valeu à cidade o
título, dado pelo Imperador,
de “mui leal e valerosa”.
1842 - Por um convênio
especial, a Santa Casa de
Misericórdia tomou a si a
sustentação dos filhos
abandonados, criando a
“Roda dos Expostos.”

Santa Casa de Misericórdia no final do século 19

Os primeiros tempos - 31
32 - NEGRO em Preto e Branco

Voluntários do Brasil

Os negros escravos oriundos de diversas nacionalidades


1845 - O barão de Caxias africanas foram importantes na ocupação e na defesa das
ordenou a demolição das fronteiras do Estado do Rio Grande do Sul, juntamente com os
fortificações e do portão de primeiros povoadores, as primeiras expedições militares e
entrada da cidade. demarcadoras, bem como tiveram uma participação importante
1850 - Lei Euzébio Queirós na Revolução Farroupilha, uma vez que teriam composto de um
proibiu o tráfico de escravos terço à metade do exército rebelde, conforme os cálculos do
para o Brasil. exército imperial.

1853 - Luiz Terragno, Na defesa do território e dos interesses rio-grandenses,


italiano, chegou a Porto mais de 100 negros ex-escravos que integravam o corpo de 600
Alegre e abriu um estúdio Lanceiros Negros, foram dizimados no célebre combate de
fotográfico na esquina da Rua Porongos, na madrugada do dia 14 de novembro de 1844,
da Alegria (General Vitorino) depois da traição promovida após acordo estabelecido entre o
com a Rua do Rosário . comandante farroupilha Davi Canabarro e o barão de Caxias,
este, representante das forças imperiais.( I. Bittencourt Jr)
1864 - Início da Guerra do
Paraguai que se estendeu
até 1870.
1887 - Assinados convênios
entre Brasil e países da Museu do Exército\Porto Alegre
Europa que viriam facilitar a
entrada de perto de tres
milhões de imigrantes
europeus até 1914
1890 - Em 13 de maio, por
ordem do Ministro da
Fazenda, Rui Barbosa, foram
incinerados todos os registros
relativos à escravidão
no Brasil.
Os uniformes dos batalhões de
voluntários não obedeciam um
plano padrão, mas todos
ostentavam no braço esquerdo
um distintivo de metal amarelo
com a Coroa Imperial e os
dizeres: Voluntário da Pátria
Memorial RS

Praça da Matriz em
1864. Soldados em
formação de
despedida na manhã
da partida para o front
da Guerra do Paraguai

Os Voluntários da Pátria foram criados pelo decreto 3371 ,


de 7 de janeiro de 1865, para reforçar os reduzidos efetivos do
exército de linha, quando da eclosão da Guerra do Paraguai.
D. Pedro II declarou-se o primeiro voluntário. Foi grande o
número dos que acorreram ao chamado às armas, o que
permitiu a organização de 57 batalhões. Ao término da
campanha no teatro de operações existiam 19 batalhões.
“É a mais linda tropa do Exército Brasileiro. Compõe-se unicamente de
negros. Brancos, indígenas ou mulatos, são dela excluídos. Os oficiais são
também negros: e nem por isso piores oficiais, pelo contrário. Conversei
propositadamente muito tempo com eles:. Estavam inteiramente a par de todos
os pormenores do serviço e orgulhosos do seu batalhão” São palavras do Conde
D’Eu em seu livro Viagem Militar ao Rio Grande do Sul.

“A guerra ... não foi um bom negócio para os


milhares de escravos libertos e ex-escravos mandados
para a linha de frente com a promessa, muitas vezes não
cumprida,de ganharem a liberdade depois do
conflito. As piores tarefas eram sempre entregues a
eles.” (BUENO,2004)
1870 - soldado negro com grupo de
oficiais na Guerra do Paraguai
(Memorial do RS)

Os primeiros tempos -33


34 - NEGRO em Preto e Branco

Liberdade sem asas*


*Verso do poeta Oliveira Silveira

Virgilio Calegari/Museu J.J.Felizardo - Fototeca Sioma Breitman

28/09/1871 - Lei do Ventre Livre torna livre


qualquer filho de escrava nascido no Brasil.
Os filhos menores ficavam em poder e sob
a autoridade dos senhores de suas mães, até a
idade de oito anos completos. Chegando o filho
da escrava a esta idade, o senhor da mãe tinha
a opção de receber do Estado a indenização
de 600$000 (seiscentos mil réis) ou de utilizar-
se dos serviços do menor até a idade de 21
anos completos.
28/09/1885 - Lei Saraiva-Cotegipe mais conhecida
como Lei dos Sexagenários, liberta os escravos com
mais de 60 anos, mediante compensações a seus
proprietários.
Na época, ainda existiam no Brasil, perto de
800 mil indivíduos escravizados e a média de
vida entre eles não chegava a 40 anos de
idade. Os sobreviventes não tinham condições
de indenizar seus senhores e nem de onde tirar
o seu sustento sozinhos.

Museu J.J.Felizardo/Fototeca Sioma Breitman

Porto Alegre foi a primeira cidade brasileira


a abolir a escravatura em 12 de agosto de
1884, quando um grupo de abolicionistas
caminhou pela Rua da Praia protestando
contra a escravidão.
As páginas 2 e 3 do Livro de Ouro da
Câmara Municipal registram ata da sessão
comemorativa da Abolição, que aconteceu
ao meio-dia de 7 de setembro de 1884.
Nessa mesma sessão, a título de celebrar
a libertação dos escravos na Cidade, os
vereadores aprovaram que o Campo do
Bom Fim passasse a denominar-se Campo Vendedores
ambulantes no
da Redenção. final do século 19
Ferrari/Museu J.J.Felizardo-Fot.Sioma Breitman Original cedido por Maria Luiza Pereira de Oliveira

Cozinheiro e alfaiate - final do séulo 19

Ferrari/ Museu J.J.Felizardo-Fototeca Sioma Breitman

O original escrito à mão numa folha de papel


almaço é uma carta de alforria concedida em
1884 por Maria Assumpção Barreto Vianna à
sua escrava Maria Rita em reconhecimento
aos seus bons serviços.

As cartas de alforria podiam ser onerosas,


quando vendidas aos cativos ou gratuitas, quando
concedidas sem ônus financeiro.
A alforria gratuita costumava impor condições
ao liberto como o cumprimento de determinada
tarefa e o tempo em que ele ficaria à disposição do
seu ex-dono, na média 4 anos, mas também poderia
ser até à morte de quem lhe havia dado a alforria.
Já o pagamento da carta onerosa, poderia ser
Estivadores no final do século 19
parcelado em vários meses ou até anos.

Os primeiros tempos - 35
TERRITÓRIOS NEGROS
Iosvaldyr Carvalho Bittencourt Jr

P orto Alegre foi testemunha de uma


mobilidade territorial demarcada por
ampla exclusão social, no período após
a abolição do regime escravo, quando
as famílias negras foram obrigadas a se
mudarem de lugares sem nenhuma
estrutura para outros piores...
Remetidos para o campo da Redenção, atual Parque
Farroupilha, os contingentes de negros ex-escravos deram
origem à Colônia Africana. Na capital gaúcha, a partir da
segunda metade do século XIX, o maior contingente de
negros se encontrava nas cercanias da cidade, no Areal da
Baronesa, na Cidade Baixa, imediações da atual Rua Lima e
Silva, e nas chamadas Colônia Africana e “Bacia”, atuais
bairros Bonfim, Mont’Serrat, Rio Branco e Três Figueiras. Nestes
territórios negros desenvolveram-se intensamente os cultos afro-
brasileiros. No caso destas últimas áreas tratava-se, em sua
origem (em torno da época da abolição), de uma “zona
insalubre, localizada nas bordas de chácaras e propriedades
que ali existiam, de baixa valorização e de pouco interesse
imediato para seus donos, que foi sendo ocupada por escravos
recém-emancipados”. Mais tarde, habitando em cortiços e
Arquivo Imágica
“avenidas”, isto é, conjunto de famílias negras ocupavam um
Irmãos Ferrari/ Memorial do RS

Vista da Cidade Baixa - início do século 20


Jacob Prudêncio Herrmann/ Acervo Bruno Herrmann

mesmo espaço e valiam-se de serviços sanitários e de


fornecimento de água coletivos. Deste modo, os negros
constituiriam os segmentos populacionais que caracterizariam
os denominados pioneiros do solo urbano, já que seguiriam
ocupando as áreas menos nobres da cidade, sem a mínima
ou com precárias condições de infra-estrutura urbana ou,
então, distantes e de difícil acesso viário. Consolidaram, assim,
Acervo Osvaldo F. Reis inúmeros territórios negros urbanos, a exemplo da Colônia
Africana, da comunidade da Luiz Guaranha, no Areal da
Baronesa, além de ocuparem os seguintes espaços urbanos:
Navegantes, Santana, Partenon, Ilhota, Vila Santa Luzia, Vila
Maria da Conceição, Vila dos Marítimos, Vila Jardim, Vila Mirim,
Rubem Berta, Vila Grande Cruzeiro, Vila Grande Pinheiro,
Cohab Cavalhada, Jardim Dona Leopoldina, Vila Restinga
Velha e Vila Nova Restinga.

Acervo Osvaldo F. Reis Compreendo “Território Negro Urbano”, aqui, como um


espaço de construção de singularidades sócio-culturais de
matriz afro-brasileira e que, ao mesmo tempo, é um objeto
histórico de exclusão social, em razão da expropriação
estrutural dos direitos sociais, civis e específicos fundamentais
dos negros brasileiros.
Os territórios negros urbanos podem perfazer um conjunto
de quilombos urbanos, vilas ou bairros com densa presença de
Moradores do Mont’Serrat nos anos 50 cidadãos afro-brasileiros ou localizados na Grande Porto Alegre.
Territórios Negros - 37
38 - NEGRO em Preto e Branco

Nas primeiras décadas do século XX, os negros estavam, em


grande parte, nucleados por sociedades, clubes ou associações,
a maior parte constituída por negros. Em 53 edições do jornal O
Exemplo, para o período entre os anos de 1909 a 1913, foram
feitos os registros presumidos de 62 clubes e associações negras
e de caráter recreativo,dançantes e de mútua ajuda. Estas
instituições comprovam a existência de uma ampla rede de
relações sociais no território urbano, entre os integrantes da
população negra de Porto Alegre. Dentre elas, as atuais
Sociedade Floresta Aurora e a Associação Satélite Prontidão.

Acervo Julio J.Nunes

Por este período, os negros ocupavam a esfera pública, e sendo


absolutamente normal “...o trânsito de biscateiros negros pelas
ruas e praças de Porto Alegre nos anos que se seguiram à
proclamação da República. Negras doceiras, negros carregadores,
barbeiros, moleques de recado...”. Os negros, sem dúvida,
existiam por toda a cidade, desde as ruas do Centro e, até
mesmo, nas casas assobradadas da elite provincial.
Grande parte da memória do campo afro-gaúcho está
marcada, em Porto Alegre, por meio da rede de relações
políticas da religiosidade. É uma referência primordial à figura
do príncipe Custódio e do seu respectivo assentamento de
Bará, o qual fora plantado na área central do centenário
Mercado Público. Para muitos batuqueiros, que realizam o
ritual do passeio como exigência da fase final de aprontamento,
o assentamento foi obra dos negros escravizados, enquanto ritual
de proteção.
No Mercado Público fica, ainda, o Bar Naval onde os negros
se reúnem, ao final do dia, para uma ampla sociabilidade
informal que faz persistir o ethos do negro brasileiro, de matriz
africana . De acordo com dirigentes de federações, existiriam
nos dias atuais, mais de dois mil terreiros em Porto Alegre. Além
de templos religiosos, os terreiros são assentamentos urbanos
e representam o modo como os negros, apesar da
discriminação, organizadamente ocupam o espaço da cidade.
Eles cumprem um papel religioso, cultural, social, histórico e
ecológico, no âmbito da metrópole.
A partir da década de 70, do século XX, os negros de Porto
Alegre foram bastante influenciados pelo movimento para a
garantia dos direitos civis dos negros norte-americanos e seus
líderes Martin Luther King, Malcolm X, Angela Davis, enfim, pelos
movimentos black-power e black-muslims; pelos processos de
descolonização e libertação das antigas colônias africanas e

Arquivo Tição

das ações de seus respectivos líderes Agostinho Neto, Leopold


Senghor, Amílcar Cabral e Samora Machel e acabaram por
estimular os processos políticos de reafricanização e do resgate
afirmativo do célebre herói negro Zumbi dos Palmares e demais
importantes personalidades negras brasileiras, assim
culminando com o Movimento Negro Unificado Contra a
Discriminação Racial (MNUCDR).
Os negros passaram a ocupar os espaços de sociabilidade
pública, no centro da cidade de Porto Alegre, por meio de
algumas esquinas, pontos de encontros, bares e galerias e
shopping centers .
Foi no âmbito deste território negro que o Grupo Palmares
foi criado, por iniciativa de Oliveira Silveira, Antônio Carlos Côrtes,
e outros, e que viriam a ser os mentores da proposição da
criação de uma data para a comemoração e exaltação nacional

Territórios Negros - 39
40 - NEGRO em Preto e Branco
Memorial RS
do herói negro Zumbi dos Palmares, atualmente consolidada,
também, como o Dia Nacional da Consciência Negra.
Nesses territórios, por meio das relações socioculturais,
os negros não somente realizam, até hoje, uma inscrição
com acento étnico-cultural afro-brasileiro, com um ethos
singular, como imprimem uma específica subjetividade, um
estilo de vida social multifacetado.
Praça da Matriz em 1940 Assim, os valores culturais, estéticos, éticos, sociais e
lúdicos são vivenciados pelos negros, que afluem ao centro
F.Engel Jr/ Memorial RS da cidade, valendo-se de um modo afirmativo da cultura afro-
brasileira. Muitos segmentos que surgiram persistem até os
dias atuais, enquanto outros desapareceram para dar lugar a
outros desejos, outras reivindicações políticas, outras
demandas sociais ou lúdicas, consolidando uma dinâmica
sociocultural na ocupação desta parte da cidade
Cito como exemplos os seguintes pontos de encontros: a
Esquina do Zaire, que foi ocupada pelos integrantes do
O Mercado e a antiga doca no século 19 Movimento Negro, adolescentes e carnavalescos negros; à
frente da Confeitaria Matheus, pelos antigos carnavalescos; os
Memorial do RS
Negros da Masson, na esquina da ex-Casa Masson; os
pagodeiros e sambistas que eram freqüentadores dos antigos
bares, situados nas ruas Riachuelo, Andrade Neves e José
Montaury; os DJs, MCs, rappers, funkeiros, dançarinos e
donos de equipes de som que se reuniam na Rua dos
Andradas, Galeria Chaves e no Shopping Rua da Praia; na
Galeria Luza; Lojas Guaspari, Mercado Público, em frente da
Galeria Malcon; no antigo Rian (lancheria) e à frente da Panvel;
Vista do Centro em 1940

Museu JJ.Felizardo/ Fototeca Sioma Breitman


Memorial do RS

1910 - Beco do Rosário (atual Aveida


Otavio Rocha) vendo-se ao fundo a
Igreja Evangélica Luterana da Rua
Senhor dos Passos
Praça da Alfãndega em 1928
em diversos bares como Caruso, El Bodegón, Sua Casa,
Palloti, Joa Jo, Pasteleto, Bar do Carioca e Bar JB.
Atualmente, a “Família Silva” é uma comunidade negra
que constitui um dos primeiros quilombos urbanos do País,
situado na cidade de Porto Alegre. O conjunto das famílias
negras é oriundo dos moradores da antiga Colônia Africana
que reuniu os negros ex-escravos, logo após a Abolição da
Escravidão, em Porto Alegre. Localizado no atual bairro Três
Figueiras, o quilombo urbano da “Família Silva” foi objeto de
realização de um laudo histórico-antropológico, sob a
orientação da Fundação Cultural Palmares, culminando com
o reconhecimento da identidade afro-brasileira e do direito ao
território ocupado há mais de setenta anos.

Irene Santos

Iosvaldyr Carvalho Bittencourt Jr

Professor da PUC/RS. Jornalista. Mestre em Antropologia/UFRGS. Doutorando em


Antropologia Social/UFRGS. Membro do IACOREQ (Instituto de Assessoria às
Comunidades Remanescentes de Quilombos).

Territórios Negros - 41
42 - NEGRO em Preto e Branco

Os territórios e seus habitantes

Museu J.J.Felizardo - Fototeca Sioma Breitman Irmãos Ferrari /Museu J.J.Felizardo - Fotot. Sioma Breitman

Praça da Alfândega no final do século 19

Virgilio Calegari - Museu J.J. Felizardo - Fototeca Sioma Breitman

1890 - Rua Lima e Silva e Praia de Belas

Atelier fotográfico de Calegari

Arquivo Imágica Acervo Renato Costa Acervo Maria Noelci Homero


Acervo Osvaldo F. Reis Acervo Antono C.Côrtes

Acervo Luciana Abreu da Silva

Museu J.J. Felizardo/Fototeca Sioma Breitman

Ponte de Pedra sobre o Riacho no início do século 20

Territórios Negros - 43
44 - NEGRO em Preto e Branco
Arquivo Imágica Acervo Carlos Alberto Brito

Acervo Osvaldo F. Reis Acervo Osvaldo F. Reis

Acervo Osvaldo F. Reis

Acervo Marilene L Paré


Acervo Éder Luis Farias
Acervo M.Noelci Homero Acervo Irma Nascimento

Acervo Irma Nascimento Arquivo Imágica

Territórios Negros - 45
46 - NEGRO em Preto e Branco
Acervo Manoel F.Rosa e Silva
Arquivo Imágica

1940 -Auditório Araújo Vianna localizado na Praça da Matriz


Arquivo Imágica Acervo Osvaldo F. Reis Acervo Luis Flávio Nascimento

Arquivo Imágica

Acervo Osvaldo F. Reis


Arquivo Imágica

Territórios Negros - 47
48 - NEGRO em Preto e Branco

Domingo no Parque
Acervo Antonio C.Côrtes
Considerado o
“pulmão verde” da
área central de Porto
Alegre, o Parque
Farroupilha tem uma
longa história,
reveladora das muitas
etapas do crescimento
da Cidade.
1807 - em 24 outubro
essa área,
inicialmente com 69
hectares, localizada
nos arrabaldes da
antiga cidade foi
doada pelo
governador Paulo
Gama, para fins de
conservação do gado
destinado ao abate. Acervo Osvaldo F. Reis Acervo Antonio C. Côrtes
Por isso ficou
conhecida como
Potreiro da Várzea,
ou ainda Campos da
Várzea do Portão.
1870 - em 26 de abril,
a Várzea passou a
denominar-se
Campo do Bom Fim,
em decorrência da
proximidade com a
recém construida
capela do Senhor Revista do Globo - 8/ 11/ 1947 Acervo Maria Isabel Ribeiro da Silva

do Bonfim .
1884 - em 7 de
setembro, a Câmara
Municipal propôs
a denominação de
Campo da Redenção,
celebrando o
movimento popular
que libertou os
escravos de
Porto Alegre.
Acervo Manoel F.Rosa e Silva Acervo Valdemar Brum

1935 - o parque
serviu à instalação
de exposição
comemorativa do
Centenário da
Revolução
Farroupilha. Em 19
de setembro , por
Decreto Municipal,
o Campo da
Redenção passou a Acervo Osvaldo F. Reis

ser denominado
Parque
Farroupilha. Mas
o nome Redenção
continua firme na
memória do povo
e, na maioria das
Acervo M.Noelci Homero
vezes, se sobrepõe
à denominação Acervo Antonio C.Côrtes
oficial.

1997 - foi efetuado


o tombamento do
Parque como
Patrimônio
Histórico e Cultural
de Porto Alegre.
Dos 69 hectares
originais, doados
pelo Governador
Paulo Gama Acervo Osvaldo F. Reis
permanecem apenas
40 hectares como
área efetiva do
Parque. Acervo Maria Regina Borges Pinto

Territórios Negros - 49
50 - NEGRO em Preto e Branco

Galinha com farofa, vinho Sabiá


e muita dança
Acervo Vera Neuza Lopes

Acervo Osvaldo F. Reis

Acervo Odyla Junqueira

“Só restaram boas lembranças!” O comentário de dona Altair


Garcia Fogo, 85 anos, vem recheado de sonoras risadas que ativam
a memória para os piqueniques dominicais da sua juventude. Festas
campestres, roupas coloridas e bailes vespertinos fizeram a alegria
de muitas famílias negras porto-alegrenses. “Posso dizer que o auge
dos piqueniques foi quando eu era bem jovem. A década de 30
estava, penso, no seu início e eu deveria ter uns 15 ou 16 anos. Ia
acompanhada por um grupo de amigas. É claro que não íamos
sozinhas, a família sempre estava junto. Afinal, naquele tempo, moça
direita não andava só”, conta dona Altair. Mas quando aconteciam
os piqueniques prevalecia a informalidade e as regras eram
relaxadas. Estes encontros sociais, como alternativa de lazer para a
população negra, vão durar até os anos 60.
Programados para a primavera e o verão, eram ansiosamente
aguardados pela comunidade. “Normalmente, os melhores
piqueniques aconteciam logo após o Carnaval.”, lembra dona Altair,
ao explicar que a rotina da semana era quebrada, inicialmente, pelas
festas de sábado à noite nos salões localizados na Colônia Africana
e nos bairros Cidade Baixa, Santana, Mont’Serrat e Auxiliadora.
Para ela, os piqueniques eram um complemento dos bailes.
Promovidos por clubes de futebol, sociedades e entidades
Acervo Antonio C.Côrtes
carnavalescas, os piqueniques aconteciam aos domingos.
Congregavam grupos familiares e tinham o propósito de
arrecadar fundos.
Cada grupo familiar convidado levava suas cestas com
salgados, sanduíches e doces colocados à venda nas barracas
improvisadas. Não faltavam gasosas geladas, refrescos feitos com
xarope de frambroesa, vinho Sabiá, cervejas e a “cachacinha”.
Aliado a tudo isto, o tradicional churrasco e o frango assado com
farofa. Depois do almoço, era aberto espaço para as danças com
a presença de orquestras e conjuntos musicais.
Os piqueniques, também, marcaram a infância e a adolescência
de Lídia Garcia Varela, 62 anos. “Sou do tempo em que a gente
precisava pegar a balsa para chegar nas praias da Alegria, das
Acervo Osvaldo F. Reis Pombas e do Veludo”. Júlio Ferreira, o seu Pretinho, se notabilizou
pela organização de piqueniques que fizeram história em Porto
Alegre. Um dos seus locais preferidos era a Parada 32 da Estrada
Passo do Feijó. Mas as famílias também iam para o campo do Rio
Guaíba F.B.C, ou para a Ilha da Pintada. O Grêmio Gaúcho era outra
opção de encontro para as domingueiras.
Dono de memória privilegiada, Érico da Rosa Machado, 72
anos, tem saudosas histórias dos encontros organizados pelos
blocos Embaixada da Alegria, Piratas do Amor e Boêmios da Cidade.
Esses grupos carnavalescos aproveitavam os campos do bairro
Mont’Serrat para promoverem seus animados piqueniques. Um
outro anfitrião e forte concorrente para o festeiro Júlio Ferreira,
lembrado por Érico Machado, “era o velho Aparício, um antigo
Acervo Osvaldo F. Reis
motorneiro da Carris, que se destacava por suas bem-sucedidas
festas campestres, na antiga Bacia do Mont’Serrat, que congregavam
uma multidão nas manhãs e tardes de domingo”.

Acervo Odyla Junqueira Acervo Antonio C. Côrtes

Acervo Osvaldo F. Reis

Territórios Negros - 51
52 - NEGRO em Preto e Branco
Acervo Osvaldo F. Reis

Uma das bandas que animava piqueniques em 1939

Territórios Negros - 53
54 - NEGRO em Preto e Branco

Um dia, Luanda foi aqui


Acervo Lucia Regina Brito Pereira

Tide em destaque abaixo e entre seus amigos e frequentadores do Luanda Bar

Nunca Luanda, capital de um país africano de língua


portuguesa, esteve tão perto dos noctívagos porto-alegrenses,
quanto o bar do Aristides da Silva, o Tide. Localizado na Rua
José do Patrocínio, quase esquina da Praça Garibaldi, o
Luanda Bar, um minúsculo botequim da Cidade Baixa, fez
história entre os amantes da noite e da madrugada.
O bar do Tide era um universo democrático protegido pelo
manto da noite. Deixou saudades e boas lembranças, entre os
seus freqüentadores, quando fechou suas portas no mês de
janeiro de 1988.
A história desse boteco começou em 1960. Seu primeiro
dono foi o artista plástico e pai de santo João Altair. Admirador
do continente africano, Altair batizou o bar com o nome da
capital de Angola e criou um cenário valendo-se de máscaras
e pinturas de guerreiros africanos que resistiram à passagem
do tempo. Depois de João Altair, o Luanda teve mais dois
donos que não deram ao local a devida expressão. Quando
Aristides da Silva, o Tide, se interessou pelo bar, ali permaneceu
por 17 anos. Para bem receber seus clientes, vestia um
avental, gravata e um boné branco.
Respeitava os bêbados, desde que eles não ultrapassem
os limites e não ficassem chatos. Aos que desrespeitavam as
normas da casa, a expulsão era certa.
O Luanda foi palco de frenéticas conversas, debates e de
muitas promessas não cumpridas. O bar de porta e janela, com
três ou quatro mesas alinhadas, abria depois das 21 horas e
só fechava depois das oito horas da manhã. Bom conversador
e ouvinte,Tide aguardava pacientemente a saída dos seus
últimos clientes naturalmente embalados pelos múltiplos
copos de bebida.
No decorrer dos anos, figuras ilustres marcaram presença
e o bar serviu também de ponto de encontro para acaloradas
discussões de propostas do Movimento Negro.
A atração do Luanda Bar, no entanto, era o sopão servido
em todas as estações. A idéia do caldo quente surgiu numa
madrugada fria de inverno. As pessoas chegavam ao bar e
pediam cachaça. Só que a bebida não era suficiente para
espantar o frio. Daí nasceu o sopão do Tide que ganhou fama
na cidade e passou a ser conhecido nacionalmente.
O sucesso do caldo residia na simplicidade da receita que
ganhava reforço de um molho picante feito com pimenta
vermelha. O ritual acontecia todas as noites. Tide arregaçava
as mangas da camisa... A galinha era lavada, cortada e
fervida aos olhos de todos os clientes na pequeníssima
cozinha que ficava atrás do balcão. Quando pronto o panelão,
ele gritava: “- olha a sopa quente...vão se afastando do
corredouro”. Incrível ilusão, o corredor não existia naquele
pequeno espaço lotado. E as pessoas encostadas ao balcão,
entretidas em suas conversas, apenas arredavam um pé, para
deixar passar, muitas vezes por sobre suas cabeças, o
fumegante caldo até a mesa de quem pediu.
Uma outra característica do bar, era a cerveja servida em
canecas, idéia que Tide trouxe dos bares do Mercado Público.
O Luanda funcionava de segunda a segunda, inclusive nos
feriados. Não fechava no Natal, nem, tampouco, na virada do
ano. As portas só foram definitivamente fechadas, quando
Aristides da Silva ficou cego e doente e não encontrou ninguém
com vontade e disposição suficiente para enfrentar, como ele,
as muitas noites e madrugadas atrás de um balcão.

Territórios Negros - 55
56 - NEGRO em Preto e Branco

A Rua da Praia é a
mais antiga de
O “footing” na Rua da Praia
Porto Alegre.
1799 - data provável
e na Galeria Chaves
Acervo Carmen Amora Acervo Alpheu C.Battista Jr
do primeiro
calçamento da rua,
no trecho que vai do
início até a Rua
General Câmara.
Deste ponto em
diante era
denominada Rua
da Graça.
1820 - viajantes
europeus como
Saint-Hilaire e
Nicolau Dreys
mencionaram a Rua
da Praia como a
única via comercial
“extremamente
movimentada,” a rua
Arquivo Imágica
mais extensa e a mais
importante em
respeito ao comércio
e à população.
Acervo Julio J.Nunes Acervo Odyla Junqueira
1843 - as ruas da
cidade receberam
placas pela primeira
vez, predominando a
denominação de Rua
da Praia
desaparecendo
definitivamente a
Rua da Graça. Acervo Najara S Silva

1865 - em 17 de
agosto, a Câmara
Municipal resolveu
comemorar o
aniversário da
Independência
trocando o nome da
Rua da Praia para
Rua dos Andradas.
Acervo Julio J.Nunes Acervo Alpheu C.Battista Jr Acervo Antônio C.Côrtes
1885 - o calçamento
de pedras
irregulares é
substituído por
paralelepípedos.
1913 - iniciou-se a
construção
intensiva de
esgotos em Porto
Alegre, sobretudo
no centro da
Cidade, atingindo a
Rua da Praia.
Como a obra
Acervo Amara Lopes da Rosa Acervo Odyla Junqueira
implicava “o
revolvimento do
solo”, a Intendência
Municipal
aproveitou para
trocar o calçamento
das ruas em
grande escala.
1923 - o trabalho
finalmente foi
concluído com o
requinte do
calçamento de
parelelepípedos
de granito em
mosaico.
1930 - inaugurado
o edifício Chaves
Barcellos com a
primeira galeria
Arquivo Imágica Acervo Dirney A.Ribeiro Acervo Vera Lúcia Lopes
comercial da
Cidade.

Territórios Negros - 57
TRABALHO DE NEGRO
Antônio Carlos Santos Rosa

H omens de pele escura, de


sorriso largo e sonoro, de alma
límpida e serena como um lago
ao amanhecer, fontes irradiantes
de felicidade, caráter firme,
profunda lealdade aos de seu
entorno, artesãos, músicos,
poetas e guerreiros.
Quem são eles?
Por que apesar de todas as suas qualidades morais,
profissionais e intelectuais, sempre apareciam como atores
em papéis secundários nos grandes festivais que a vida
proporcionava?
Suas histórias são tão grandes quanto diversas, tão
heróicas quanto naturais e rotineiras, tão emocionantes quanto
as desprovidas de qualquer sentimento. Alguns, apesar das
restrições de ordem social, conseguiram sobrepujar as
barreiras que lhes foram impostas e tornaram-se estrelas em
uma elite restritiva e conservadora.
Daí surgiram médicos, advogados, engenheiros, sociólogos,
professores, músicos, escritores, poetas e atletas que por suas
qualidades e denodo, deixaram o estrato em que viveram e
procuraram novos desafios, deixaram o planeta e foram ao
universo. Muitos preferiram manter o status quo. Constituíram
família, foram bons pais, bons irmãos, cunhados, amigos.
Desses ainda, alguns se destacaram em atividades
subalternas até onde lhes foi possibilitado o conhecimento. Foram
diretores, chefes, (lembram das portarias das instituições?),
especialistas e com uma característica fundamental: extremamente
zelosos de seus cargos e reconhecidos por seus superiores
hierárquicos. Outros não viram a luz da oportunidade e ficaram
marginalizados à beira do caminho, sobrevivendo apenas, pela
caridade das instituições assistenciais.
A grande interrogação que por certo perdurará por muito
tempo é por que apenas uns poucos se atreveram a desafiar o
contexto e partir à luta por um lugar ao sol?
Espírito livre e destemido? Sonhador e visionário?
Estrategista social? Estudioso, competente e audacioso?
Poderíamos alinhar uma centena de qualificativos aos homens
de pele escura, dentes alvos, sorrisos largos e almas
bondosas, mas deixemos que os estudiosos e cientistas
respondam com segurança nos anos vindouros. O que é
relevante é que eles se diferenciaram dos demais, saíram do
anonimato para o destaque, lutaram contra as concepções
conservadoras e ortodoxas, não tiveram medo de buscar seus
ideais, não se amedrontaram frente aos desafios que os
aguardavam, venceram e vencendo entraram para a história
pela porta da frente e hoje fazem parte do patrimônio social e
cultural. Foram políticos importantes, médicos famosos,
desembargadores, juízes, advogados, cientistas, músicos,
artistas e atletas que orgulham a todos nós seus familiares,
descendentes e admiradores.

Irene Santos

Antônio Carlos Santos Rosa

Mestre em Administração pela University of Southern California, Los Angeles,


Califórnia, USA. Graduação em Administração de Empresas pela Faculdade de
Ciências Econômicas/UFRGS. Diretor da Faculdade de Ciências Econômicas da
UFRGS.Vice-Presidente da Federação Espírita do Rio Grande do Sul. Professor dos
cursos de Graduação, Extensão e Pós-Graduação e Mestrado da Escola de
Administração da UFRGS

Trabalho de negro - 59
60 - NEGRO em Preto e Branco

Pegando no pesado...
“Aqui - prestem bem atenção porque vale a pena - como em todas as possessões espanholas
e portuguesas os negros e mulatos são OPERÁRIOS, quer dizer, homens esforçados,
trabalhadores, aqueles que têm necessidade de exercitar mais a inteligência, mas têm a
desgraça de serem escravos e, sobretudo, de serem negros.”
ARSÈNE ISABELLE, viajante francês que percorreu o Rio Grande do Sul nos idos de 1830

Irmãos Ferrari/ Museu J.J.Felizardo - Fototeca Sioma Breitman

Lavadeiras
na Praia do
Riacho no
final do
século 19

Memorial do RS Arquivo Imágica Acervo Maria Guedes

Acendedores de lampiões em 1901

Babá
Soldado
Acervo M.Noelci Homero Revista do Globo/PoA

Estivador

Jacob Prudêncio Herrmann/ Acervo Bruno Herrmann

Engraxate

Santeiros da Capela do Divino


Virgilio Calegari / Museu J.J.Felizardo - Fototeca Sioma Breitman
Espirito Santo nos anos 40

Colocação de trilhos na Avenida 24


de Outubro em 1907

Trabalho de negro - 61
62 - NEGRO em Preto e Branco

Acervo Zilah Machado

1928 - As duas moças, empregadas domésticas, faziam suas próprias roupas, costurando à mão
durante dois meses para aprontar um vestido
Arquivo Imágica

Motorista
Virgilio Calegaria/ Memorial do RS

Serviço de Assistência Pública inaugurado em 1901 pelo Intendente Municipal José Montauri

Trabalho de negro - 63
64 - NEGRO em Preto e Branco
Jacob Prudêncio Herrmann/Acervo Bruno Herrmann

Barqueiros vendedores de lenha no riacho da Cidade Baixa em 1930

Acervo Najara Santos da Silva Acervo Julie Jorge Acervo Oliveira Silveira

Julie Jorge, manequim e modelo Armando Hipólito dos Santos,


fotográfico advogado provisionado
Oficiais da Brigada Militar
Antonio Roneck - Foto reproduzida do livro Testemunha Ocular/Ed.Abril Acervo Oliveira Silveira

Professor José Maria Vianna Rodrigues

Cozinheiro do Palácio Piratini, na época da


Campanha da Legalidade, em 1961

Acervo Luis Flavio Nascimento Acervo Carmem Amora

Soldados em 1932

Acervo Manoel F.Rosa e Silva

Professora Celestina Rosa e Silva com suas 1940 - Dona Joana Pires, empregada doméstica
alunas do Curso de Magistério

Trabalho de negro - 65
Julinho Alfaiate

Nos últimos tempos, a memória


tem traído “seu” Júlio José Nunes,
o Julinho Alfaiate, morador antigo
do bairro Rio Branco e proprietário
de uma casa de esquina da
Casemiro de Abreu, uma rua que
no passado foi base do território da
Colônia Africana.
Aos 84 anos, dono de um corpo que, ainda, o envaidece - fruto
de caminhadas, hoje mais raras, e ginástica para idosos no Parque
Moinhos de Vento. Julinho Alfaiate definiu sua história de vida entre
linhas, tecidos e máquinas de costura importadas.
A pisada firme, a calça de linho displicentemente amassada,
o sapato branco de bico fino são herança de um passado clássico
da costura que preservava o estilo de cada cliente. “Naquele
tempo não se privilegiava a confecção seriada, como é hoje”,
explicou ao mostrar casacos e outras roupas com etiquetas de
sua grife pessoal e controle de qualidade por parte da associação
que congregava os alfaiates.
A escolha profissional de Julinho foi motivada pelo menino
que assistia a vida cheia de dificuldades do pai, “um simples
operário” e da mãe, “uma simples lavadeira”. Quando jovem,
ele sonhou ser poderoso. “Eu não queria ser mandado, queria,
sim, era mandar”. E foi este o lema que norteou sua bem
sucedida carreira de alfaiate independente.“Fiz roupa para
muitos magnatas, pessoas importantes da Capital e do Interior
do Estado. Era um doutor daqui, era um professor dali, ou seja,
só gente cheia de títulos que batia na minha porta”.
Irene Santos

Hoje a máquina Singer, uma de suas fiéis companheiras


de mais de 60 anos de profissão, está aposentada e já virou
objeto de decoração, assim como as linhas, réguas, tesouras,
moldes e os ferros de passar. Nos cabides, antigas roupas
complementam o cenário do atelier montado à entrada da
casa que resiste ao apelo da expansão imobiliária de olho
nesse metro quadrado valorizadíssimo, num bairro considerado
nobre da zona central da Cidade.
A folia carnavalesca também fez parte da vida de “seu” Julinho
Alfaiate e serviu para marcar a referência do seu atelier. Da sua
alfaiataria saía o bloco carnavalesco Imbrutus, integrado só por
homens, que percorria as ruas da Colônia Africana com suas
fantasias nas cores preto, azul e branco. Para Julinho Alfaiate, o
antigo álbum de fotos amareladas foi, aos poucos, ativando nele
saudosas lembranças desse bloco que marcou uma época do
Carnaval de Porto Alegre.

Trabalho de Negro - 67
AS CARAS PRETAS
Antônio Carlos Côrtes
Arquivo Imágica

Ao longo dos meus 56 anos de


janela sobre a história do negro
Arquivo Imágica em Porto Alegre, deito o olhar à
paisagem não de um Movimento
Negro mas à ação, ao longo da
nossa história recente, de um
Negro em Movimento . Como
Acervo M.Noelci Homero

agitador cultural, move-se em


diferentes direções: artes visuais
ou plásticas,artes cênicas e
carnaval de rua; cinema e vídeo;
Acervo Luis Flavio Nascimento literatura, música, artesanato,
folclore e o acervo concernente
ao patrimônio histórico e cultural.

Arquivo Imágica Acervo M.Noelci Homero Acervo Nádia A.Freitas Acervo M.Noelci Homero Acervo M.Noelci Homero
Acervo Antonio C Côrtes
O Negro em Movimento é a forma que melhor explicita a
dinâmica de um grupo social ajustado à sua verdadeira história
real e não à oficial e duvidosa.
Meu saudoso pai, Egydio Ribeiro Côrtes, no final dos anos
50 e início dos 60, ao ler os jornais da época, Correio do Povo,
Diário de Notícias, Folha da Tarde e A Hora, demonstrava
indignação pelo modo como eles tratavam os negros. Eis que
na crônica policial, escreviam: “eram quatro assaltantes, um
Acervo Valdemar Brum negro”. Não diziam a etnia dos demais. Quando todos eram
brancos, os jornais não destacavam isso para identificação da
matéria. Era flagrante aí o preconceito.
Ao deixar em relevo seu desconforto, meu pai ensinava a
mim e aos meus irmãos Egydio Filho e Elias, as primeiras
lições de luta pela dignidade da cidadania: que era um
orgulho ser negro e que nossos antepassados, rotulados de
escravos, haviam construído esta nação.

Acervo M.Noelci Homero Lembro que o pai desligava o rádio quando tocava a música
Mulata Assanhada cantada pelo Miltinho, cuja letra dizia. Ah! meu
Deus que bom seria se voltasse a escravidão, eu comprava esta
mulata e prendia no meu coração. O pai bem avaliava as agruras
de uma escravidão e ainda que fosse em música, não gostava que
sequer se cogitasse de uma volta à senzala.
Meus ouvidos ainda guardam a voz do pai, recomendando a
mim e meus irmãos, quando saíamos: - Levem a Carteira de
Identidade! O pai era contínuo do Departamento da Loteria do
Acervo M.Noelci Homero Estado, mas embora transitasse pelo inglês, italiano e espanhol,
possuindo ainda sólidos conhecimentos de português, mais o
curso de datilógrafo e caligrafia exemplar, não era valorizado por
seus chefes. Hoje, compreendo os motivos que o levaram, a certa
altura da vida, a experimentar depressão.
Em 1966, contando 18 anos, chamou-me a atenção o enredo
Trevo canta Zumbi, todos vestindo branco e pés descalços,
descendo a Avenida Borges de Medeiros. Nasciam em mim duas
paixões: Trevo de Ouro, campeã naquele ano, e o despertar pela
Arquivo Imágica saga de Zumbi.
Nos anos 70, me vejo em meio aos militantes negros em
movimento: Roberto Rodrigues, Luiz Paulo Assis dos Santos,
Jorge Antônio dos Santos (Jorge Xangô), Ilmo Silva, Vilmar
Nunes, Dirney Alves Ribeiro, Luiz Carlos Barcellos, Sílvio
Almeida e Oliveira Silveira. Local: Rua da Praia. Esquina com a
Borges de Medeiros,Porto Alegre. Hoje, Esquina Democrática. Nós,
sem saber, antecipávamos o nome pelo qual ficaria conhecida,
As Caras Pretas - 69
70 - NEGRO em Preto e Branco
Acervo Luis Flavio Nascimento Acervo Oliveira Silveira

Acervo M.Noelci Homero

Fundação do Grupo Palmares em 1971

Arquivo Imágica Ali discutíamos por horas a fio. Como rato da Biblioteca
Pública, descobri o livro do Edison Carneiro - O Quilombo
dos Palmares , o qual indiquei para Oliveira Silveira,
consoante ele mesmo registrou em bilhete manuscrito. Foi
inspiração para em 20 de julho de 1971 iniciarmos o
Grupo Palmares , ao lado de Vilmar Nunes, Oliveira
Silveira e Ilmo Silva. Este o real motivo porque passamos
a dizer NAO ao 13 de maio, da Princesa Isabel, que
assinou um ato burocrático formal, e SIM ao 20 de
Arquivo Imágica novembro de Zumbi dos Palmares (data da morte do líder
negro). Não admitíamos uma data imposta.
Avançamos na história, sem olhar pelo espelho
retrovisor. Guiamo-nos pela luz dos Orixás seguindo a
trilha dos nossos antepassados. Guerreiros. Heróis.
Dignos. A vanguarda apenas lançou uma semente de
mostarda, cuja árvore nasceu frondosa para proporcionar
sombra e abrigar irmãos sofridos.

Acervo M.Noelci Homero Em 1969, participei do Grupo de Teatro da Sociedade


Floresta Aurora que levou ao palco do Theatro São Pedro a
peça de Vinicius de Moraes, Orfeu da Conceição , sob a
direção artística do Aírton Marques. O elenco era composto
por 32 atores negros. A mídia registrou que a casa atingiu
sua lotação.
A história registra que o Brasil incentivou e financiou
campanhas na Europa pela vinda maciça de trabalhadores
do campo e da cidade das regiões ibéricas e anglo-saxônicas,
criando mecanismos de bloqueio para evitar a expansão da
miscigenação dos negros e índios brasileiros com
migrantes oriundos de países não-brancos. É o que
observamos em dois decretos.
O primeiro, de 28 de junho de 1890, determinou que os
agentes diplomáticos e cônsules brasileiros e a polícia dos
portos deveriam impedir a entrada de criminosos, mendigos,
indigentes e indígenas da Ásia e da África. Os africanos e
asiáticos só poderiam ser admitidos mediante autorização do
Congresso Nacional.
O segundo, de n° 7.967, de 18 de junho de 1946, estabelecia:
“ imigrantes serão admitidos de conformidade com a
necessidade de preservar e desenvolver o Brasil, na composição
de sua ascendência européia”.
Hoje, entendo porque os governantes tinham tanto medo
das caras negras. Era porque se os negros soubessem que a
Abolição não foi um ato de bondade da Princesa Isabel, mas
uma conquista da gente negra, que resistindo à escravidão
fugiu para formar muitos quilombos e estabelecer estratégias
de combate em busca da liberdade, começariam a elevar sua
auto-estima e fariam uma revolução na busca da dignidade
que lhes foi rasgada.
Na realidade, o negro foi personagem da sua própria
história, e, de forma subversiva, foi articulando e transformando
um jeito de ainda hoje, depois de ter passado por dura
escravidão e sofrer genocídio, estar presente neste País,
compondo a maioria da população. Por tudo isso, a história
do negro no Brasil merece correção de rumo. Como ensina o
poeta do samba Jorge Aragão: no carnaval, “o negro faz a
produção e assina a direção”.

Irene Santos

Antônio Carlos Côrtes

Advogado criminalista com atuação na área dos direitos civis. Radialista e apresentador
de televisão. Pesquisador da Cultura Negra, painelista e conferencista.Foi Secretário
Geral da Junta Comercial do RS- JUCERGS. Professor da disciplina Estado e Segurança
Pública, na Secretaria da Justiça e da Segurança Pública.-Academia de Polícia, em
2002/03. Foi Conselheiro Fiscal da Associação Riograndense de Imprensa. Foi presidente
da Sociedade Floresta Aurora.

As Caras Pretas - 71
EDUC AÇÃO
DOS NEGROS E DAS NEGRAS
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva

Educação é tudo... educação que a gente recebe na vida


e também aquela da escola. (Euclides Amaral)

Para ser uma pessoa educada, africanos


e também afro-descendentes por este
mundo afora concordam, é preciso
freqüentar escolas. Quanto mais avançados
forem os níveis de estudos que se atingir,
mais educado se é. Isto, evidentemente,
se esta educação não nos afastar do
nosso povo, das suas tradições, da nossa
identidade africana.
Se os estudos em escolas e faculdades nos levarem a esquecer
nossos antepassados, nossa comunidade, negar nossa negritude,
seremos, de acordo com a sabedoria de raiz africana, muito
escolarizados, mas nada educados.
Nós negros gaúchos, nós, negros brasileiros, se se avaliar a
profundidade da nossa educação simplesmente pelo tempo que
freqüentamos escolas, haverá julgamentos apressados que dirão
sermos pouco educados. Durante o período escravista e no pós-
abolição leis e normas sociais não escritas impediam nosso acesso
a escolas. A partir da Lei do Ventre Livre, criaram-se patronatos
agrícolas para acolher os meninos negros; orfanatos, as meninas
Acervo Petronilha B.G.e Silva negras. Ali, pensava-se preparar trabalhadores e trabalhadoras
Acervo Antonio C.Côrtes
para as atividades menos valorizadas, tidas como pouco
complexas e por elas pagarem-se salários baixos. Tentava-
se, assim, criar um lugar de negros na sociedade e no
mundo do trabalho.
Conscientes desta situação, nossos bisavós, avós, pais e
mães rebelaram-se e resistiram. Filhos de analfabetos se
alfabetizaram, concluíram o primário, o ginásio, chegaram à
faculdade. Filhos das lavadeiras, das cozinheiras, das
costureiras, dos foguistas, dos bedéis, dos operários se
tornaram professores, médicos, advogados, arquitetos,
funcionários públicos de escalão superior. Eles não vão passar
o que eu passei, eles vão estudar, estas palavras do maquinista
Ramão Fernandes, referindo-se aos filhos, ecoaram e ainda
ecoam no universo das nossas famílias negras.
Tios, primos, amigos se unem aos pais e irmãos do
estudante, seja moça ou rapaz, jovem ou nem tanto, para dar
o apoio afetivo, intelectual, material. Grupos do Movimento
Acervo Oliveira Silveira Negro incentivam e criam condições com a oferta, entre outras,
de reforço escolar, de curso pré-vestibular. A família e a
comunidade, cada uma a seu jeito, se vêem responsáveis pelo
sucesso dos que se empenham nos estudos.
Cada estudante que vence, a família se realiza, a
comunidade também. Educar-se, para nós negros, não é
caminho de realização individual. Toda a comunidade que
representamos e da qual fazemos parte, se afirma, torna-se
mais forte com a nossa realização.
Somos ainda poucos os licenciados, os bacharéis, os
mestres, os doutores negros. Muito poucos se considerarmos
o total da população negra, o total de mulheres e de homens
negros em idade de serem portadores destes títulos. Mas
mesmo assim, nem tão poucos: - Tu conheces o Fulano de Tal?
perguntou-me Vera Triumpho – Não, respondi – Graças a
Deus! Já tem negro que é doutor e a gente não conhece! Já
não somos tão poucos! - regozijou-se ela.
Acervo Valdemar Brum
Embora nossos antepassados escravizados tenham
chegado, ao Brasil, há quinhentos anos, os doutores e doutoras,
notório-saber negros, vivos, seniores no campo da pesquisa,
estão na faixa entre 50 e 60 anos de idade e começaram a obter
titulação a partir da metade dos anos 1980.
Por isso, ainda não temos negros, com formação em nível
superior, em número significativo para participar dos diferentes
níveis de decisão político e social. Por isso, batalhamos por
programas de ações afirmativas que garantam o acesso dos
Educação dos negros e das negras - 73
74 - NEGRO em Preto e Branco
Acervo M Regina B.Pinto
negros aos bancos universitários, e a realização de seus
estudos com sucesso.
Somos poucos, mas temos educação de qualidade,
porque não meramente técnica nem restrita a benefícios
individuais. Nossa educação,nos faz responsáveis pela
felicidade e progresso das nossas famílias e da comunidade
negra. Razão porque precisamos estar atentos à ação e ao
pensamento daqueles dentre nós que tem a formação de
escola e também aquela que vem da história e da cultura do
nosso povo afro-brasileiro, dos africanos. Juntamente com
eles e com nossa comunidade, que inclui a todos, também, é
Acer vo Manoel F.Rosa e Silva
claro, os que têm mais educação da vida do que de escola.
Tendo como suporte a nossa espiritualidade, vamos cada vez
mais participar da construção de uma nação brasileira
democrática que respeite, considere e se proponha a
transformar, naquilo que indicarmos, nossa situação histórico-
cultural, social, econômica de povo negro.
Continuemos buscando os bancos escolares, fortalecendo-
nos como negros, descendentes de africanos, participando da
construção da nação brasileira.

Irene Santos

Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva

Docente da Universidade Federal de São Carlos/ SP. Participa da coordenação do Núcleo


de Estudos Afro-Brasileiros desta Universidade. Conselheira da Câmara de Educação
Superior do Conselho Nacional de Educação, por indicação do Movimento Negro.
Com as bençãos e a guarda
de São Benedito
Arquivo Revista do Globo Arquivo Instituto São Benedito

O Asilo São Benedito foi fundado em 12 de Muitos anos depois, o Asilo virou Instituto
maio de 1912, destinado a atender crianças e passou a ter sua base de atendimento no
negras, especialmente meninas, órfãs e Bairro Belém Velho. Foi também alterado o
desvalidas, com o objetivo de serem amparadas regime de internato para semi-internato a fim
e educadas. Funcionou no Centro de Porto de manter as crianças mais ligadas à família.
Alegre, na Rua da Praia, depois na Rua Avaí e,
Atualmente, o Instituto São Benedito
mais tarde, na Rua Ramiro Barcelos. Era
acolhe crianças e adolescentes de famílias
mantido por donativos da comunidade e
pobres, de 4 a 14 anos de idade, que
dirigido pela Congregação das Irmãs do
permanecem na instituição, diariamente,
Imaculado Coração de Maria.
enquanto seus pais trabalham. Recebem três
As asiladas, desde cedo, mesmo brincando refeições diárias, reforço escolar, formação
com suas bonecas, aprendiam a cozinhar, religiosa e pedagógica, atividades esportivas,
bordar e costurar. Também recebiam aulas de recreação, clube da árvore, trabalhos
música e “um curso básico de letras primárias manuais, aulas de culinária e oficinas
e rudimentos em geral”. As meninas ali cresciam. (artesanato, pintura em tecido, dança, canto,
Adolescentes,”eram encaminhadas a casas de teatro, iniciação à informática e língua inglesa).
famílias, aptas a tomar conta dos serviços Contam, ainda, com atendimento psico-
domésticos”, escreveu o jornalista Carlos pedagógico, dando ênfase a um trabalho
Reverbel em 1948 para a extinta Revista do preventivo junto às famílias, para que as
Globo. Muitas casavam na Igreja das Dores, mesmas tenham condições de se estruturar
tinham filhos e trilhavam outros caminhos bem e assim, alcançar melhor qualidade de vida.
longe do Asilo.

Educação dos negros e das negras - 75


76 - NEGRO em Preto e Branco
Acervo Maria de Lourdes da Luz Acervo M. Conceição L Fontoura

Rapaz com o uniforme da


Escola Pão dos Pobres
“Bonequinha Preta” na festa da creche

ESCOLA PÃO DOS POBRES Acervo M.Noelci Homero

A Escola da Fundação Diocesana


Pão dos Pobres de Santo Antônio, é
uma instituição que faz parte da
história de Porto Alegre.
Foi fundada em 1895 pelo Cônego
baiano Marcelino de Souza
Bittencourt com o propósito inicial de
atender viúvas e órfãos de soldados
mortos na Guerra do Paraguai e na
Revolução Federalista de 1893.
O primeiro abrigo foi construído às
margens do Guaíba num terreno que
pertencera à Baronesa do Gravataí e
ao Barão do Nonoai, no chamado
bairro Praia de Belas.
Acervo Sirmar Antunes
Era um conjunto de pequenas casas
feitas para alojar 18 famílias que
viviam na extrema miséria.
Passados alguns anos, a escola
volta-se somente para crianças,
adolescentes órfãos e excluídos
sociais, acolhendo-os em
regime de internato.
Em 1930, o presidente Getúlio
Vargas inaugurou o prédio, onde os
meninos passam a aprender o
artesanato da carpintaria, da
encadernação e impressão de livros,
bem como atividades relacionadas
à funilaria, fabricação e restauração
de calçados.
Acervo M Noelci Homero Acervo M Conceição Fontoura Acervo Odyla Junqueira

Acervo M Noelci Homero

Formanda de Contabilidade
Acervo Neura Santos da Silva
Arquivo Imágica

Acervo Marilene Paré

Formando de Administração
de Empresas

Arquivo Tição Acervo A.C.Côrtes

Professora Geraldina da Silva

Educação dos negros e das negras - 77


78 - NEGRO em Preto & Branco

Doutor Veridiano Farias vence


a intolerância racial

Se não fosse a persistência, o primogênito do casal


Frankilin e Maria Farias teria passado a vida conduzindo os
bondes pelas ruas de Porto Alegre. Não que essa profissão
de motorneiro fosse um demérito. Só que esse não era o
desejo do então jovem Veridiano Farias. De dia, o bonde. À
noite, a música. “Um músico completo”, assim dizia quem o
conhecia.
Os elogios se justificavam. Veridiano era um multi-
instrumentista. Passava com facilidade suas pautas musicais
no piano, violino, saxofone, bateria e por todos os instrumentos
de percussão. E, de quebra, era ensaiador do bloco carnavalesco
Os Prediletos. Na coletânea dos amigos conquistados nas
noites de muita música, os nomes de Lupicínio Rodrigues,
Rubens Santos, Túlio Piva e do carioca Jamelão, entre tantos
outros.
Com todo esse talento, Veridiano Farias buscava outros
caminhos e tinha um sonho: queria ser médico. O tempo, no
entanto, mostrou para ele, jovem condutor de bondes, que
perseguir sonhos numa sociedade recém saída do período
escravocrata era uma tarefa nada fácil, principalmente para
quem era negro.
Por três vezes, Veridiano fez o vestibular para ingressar na
Faculdade de Medicina de Porto Alegre. E por três vezes, o
resultado apresentado era a reprovação. Muito estudioso, ele
sabia que tinha se saído bem nas provas e não admitia os
resultados negativos. Pleiteava revisão de provas e explicações
para as reprovações, mas a direção da Faculdade sequer lhe
dava atenção.
Após estas tentativas, Veridiano Farias foi para o Rio
Janeiro, onde fez sua inscrição para mais um vestibular de
Medicina. Foi aprovado, obtendo a segunda colocação. Foi a
vitória da persistência. Permaneceu por um ano na, então,
Capital Federal.
Acervo Éder Luis Farias
Para sobreviver e sustentar a família - a mulher, Isabel, e
os filhos Judith e William Jurandir - Veridiano tocava nas
orquestras cariocas. E fazia sucesso...
A vitória no vestibular da Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro avalizou a carta enviada ao presidente Getúlio Vargas.
Nesse documento,Veridiano expôs a intolerância do reitor e da
direção racista da Faculdade de Medicina gaúcha. O presidente
deu devida atenção ao pleito de Veridiano Farias. Ordenou que
Acervo Éder Luis Farias ele fizesse novo vestibular no Rio Grande do Sul e tivesse acesso
a todas as provas e solicitasse a revisão necessária. Resultado
final: aprovação e classificação geral: 2º lugar.
Por cinco anos, Veridiano cursou a Faculdade de Medicina.
Fez mais dois anos de Especialização em Dermatologia, prestou
concurso para a Saúde Pública, obtendo o primeiro lugar. Com
esse currículo de aprovações era o candidato certo ao cargo de
Diretor do Leprosário, em Itapuã. Não houve tempo. Um dia
antes de assumir, veio a falecer.

Irene Santos

Irene Santos

O Dr. Veridiano Farias foi homenageado


pela municipalidade e seu nome foi dado
ao logradouro que inicia na Rua Eça de
Queiróz e finda na Rua Farias Santos, no
bairro Petrópolis. Por coincidência, seu neto
Éder Luis Farias, na foto ao lado,
funcionário da ECT, durante dezesseis anos
entregou correspondências nesta rua.

Educação dos negros e das negras- 79


COBRANDO
Edilson Nabarro
A DÍVIDA

O Movimento Negro experimenta uma


de suas fases mais ricas e decisivas,
caraterizada pelo inconformismo,
resistência e positivação.
Durante quatro séculos, a lógica exploradora ocidental
naturalizou a idéia de que a inferioridade étnica, biológica e
cultural dos africanos justificava a humilhação e o sofrimento
de milhões de criaturas humanas.
As estruturas religiosas, jurídicas, ideológicas e
políticas trataram de criar os instrumentos práticos que
produzissem as desigualdades, baseadas na cor da pele
e na origem cultural dos indivíduos. Assim, Estado e
Sociedade se fundiram em um só Ente. Erigiram discursos,
condutas, atitudes e leis, de modo a consolidar o mundo dos
brancos , com seus símbolos, ícones e um amplo inventário
de conquistas e virtudes. Aos negros restava a resignação
e a tarefa de dia-a-dia sepultar suas esperanças.
Estamos agora diante de um novo tempo. A luta negra já
não mais suporta a idéia de que a inferioridade seja a
responsável por todos os indicadores de desvantagem social e
econômica que as famílias negras vivenciam. Tornou-se
insuportável um conformismo inócuo e dilacerante. Descobriu-se
também que o Estado brasileiro não apenas nada fez para
efetivar a integração do negro na sociedade como estabeleceu
os limites dessa integração. A herança do domínio colonial e as
leis republicanas fundamentaram a desproteção dos ex-
escravos.
O 14 de maio ainda está por vir com toda a plenitude das
medidas que garantam o estabelecimento de reparações sociais.
A sociedade brasileira aboliu a escravidão enquanto modo de
produção, mas manteve um preconceito e discriminação muito
mais perverso que o antigo regime. Passados mais de um século,
ou seja, três gerações, o Movimento Negro contemporâneo
reinventa um novo 14 de maio, dando significado à luta de Zumbi
dos Palmares e tantos outros guerreiros negros que lutaram por
liberdade.
As políticas públicas voltadas à recuperação social e
econômica dos negros, antes de tardiamente representar uma
obrigação do Estado Brasileiro para com uma parcela
significativa da sociedade, é ação indispensável para a
afirmação da democracia, da justiça social e do cumprimento
de todos os tratados internacionais de proteção dos direitos
humanos. A mão “generosa” do Estado, que tantos recursos
públicos disponibilizou às elites, agora deve assumir suas
responsabilidades com a “parte de baixo” da sociedade.
Como pode um País com uma população de significativa
presença africana não defender as virtudes da diversidade e
praticar a tolerância e o respeito a todas as culturas que
sintetizam os valores nacionais ?
A afirmação do orgulho da raça e a reconstrução de uma
identidade étnica, desprovida de ódios e temores, muito
dependem da aceitação por parte do Estado e da sociedade
brasileira de um novo pacto de relações políticas e sociais.
Combater o racismo até as últimas conseqüências, incluir com
mais rapidez e extensão os negros no centro dos benefícios,
das oportunidades e dos direitos, eis a tarefa que cabe aos
governos e à sociedade.
O Brasil não será altivo, verdadeiro e justo se não apagar
o rastro de iniqüidades provocadas pela escravidão, o
preconceito e o racismo. Caberá aos novos Zumbis manter
intacto a sua utopia e adubar o solo da liberdade e da

Irene Santos

Edilson Nabarro

Sociólogo Pós-Graduado/UFRGS. Militante do Movimento Negro desde a década


de 70. Um dos fundadores da Revista Tição e do MNU/RS. Nos últimos anos
participou de inúmeros debates, painéis e conferências sobre a temática racial.
Tem diversos artigos publicados em jornais e revistas. Foi assessor técnico do
CECUNE, Conselheiro do CODENE e Membro do Projeto Negro na Educação da
SE-RS. Atualmente é membro do Conselho Universitário da UFRGS

Cobrando a Dívida - 81
Carlos Santos
COBRANDO A DÍVIDA
Edilson Nabarro

Nascido em Rio Grande, Carlos Santos


foi o primeiro negro a assumir, em 1967,
a presidência da Mesa Diretora da
Assembléia Legislativa do Rio Grande
do Sul. Igualmente, inscreveu seu nome
na história do Executivo gaúcho ao
exercer por duas vezes, interinamente,
o Governo do Estado.Sua trajetória de
vida teve início em 9 de dezembro de
1904. A infância foi interrompida quando,
ainda menino, começou a trabalhar numa
metalúrgica em Rio Grande.
Dedicado, fez carreira em seu local de trabalho. O jovem operário
mostrava uma visível liderança que o conduziu, em 1935, ao cargo
de Deputado Classista na Assembléia Legislativa. Sua ascensão
ao Parlamento foi um fato inédito na sociedade gaúcha.
Com o advento da ditadura do Estado Novo, em 1937, o
Legislativo foi fechado. Carlos Santos retorna à sua cidade. Deixa
de ser operário e passa a trabalhar no Ginásio Municipal Lemos
Júnior. Estudar era preciso principalmente para concluir o curso
primário. Incentivado por amigos, foi adiante. Fez o secundário e
ingressou na Faculdade de Direito de Pelotas, onde recebeu o
diploma em 1950.
Mais do que a advocacia, a carreira política o fascinava. Nas
eleições de 1958 seu nome foi consenso na convenção do PTB e
Carlos Santos voltou a ser no ano seguinte deputado estadual.
Situação que se repetiu nos pleitos eleitorais de 1963, 1967 e 1971.
Com uma carreira solidificada no legislativo estadual, Carlos Santos
exerceu o mandato de deputado federal de 1975 a 1982, ocasião
em que elaborou projetos voltados para a área dos direitos humanos,
Arquivo da Assembléia Legislativa/RS)
ecologia, previdência, crianças carentes, pessoas portadoras de
necessidades especiais e questões habitacionais.
Quando todos julgavam que iria pleitear mais um mandato
na Câmara Federal, Carlos Santos resolveu parar. Estava com
78 anos e julgava que não tinha fôlego para enfrentar mais uma
maratona de vida pública. Suas atuações no plenário estadual
e federal tiveram o reconhecimento do Estado, em 1988, quando
recebeu do Governador Pedro Simon a medalha da Ordem de
Ponche Verde, no grau de Cavaleiro.
Diplomação do deputado Carlos Santos
O discurso de despedida parlamentar demonstra a
preocupação do Deputado com o preconceito e discriminação
racial presentes no País:
Arquivo da Assembléia Legislativa/RS)
“Minha esperança é de que esta nova geração saída das
universidades tenha força para realizar o que sempre foi meu
grande sonho: a elevação dos negros brasileiros a uma
situação condigna e reconhecida. Por três vezes da Tribuna
da Câmara, fiz apelos ao Presidente da República para que
não fizesse mais referências à não existência do preconceito
de raça ou de cor no Brasil. Ao afirmar que isto não existe ele
está prejudicando o negro porque realmente existe preconceito.
Inauguração do prédio da Assembléia Já José do Patrocínio dizia que, preconceito de raça, só nós
Legislativa em 1967
negros, podemos sentir. E é preciso sentir na própria carne a
“inexistência” do racismo no Brasil”.

Irene Santos

O logradouro situado na
Avenida Ipiranga com São
Manoel, recebeu a
denominação de
Esplanada Deputado
Carlos Santos, em 2004,
como homenagem da
Prefeitura de Porto Alegre
ao ilustre homem público
no ano do centenário de
seu nascimento

Cobrando a Dívida - 83
84 - NEGRO em Preto e Branco

Alceu de Deus
Fui o primeiro negro a chegar à Prefeitura de Porto Alegre
e ao governo do Rio Grande do Sul. O povo gaúcho depositou
em mim, filho de um negro analfabeto e de mãe índia, a
confiança para administrar este Estado e sua Capital.
Fui uma exceção.Tive forças para superar todas as
dificuldades e, durante quase cinqüenta anos, acordei às quatro
horas da manhã para estudar e ter condições de competir.
Não quero ser exceção. Quero ser uma regra.
Nós, negros, somos discriminados porque não recebemos
oportunidades iguais. Eu poderia dizer que não há racismo, mas
ele existe . Temos que reivindicar nossos direitos. Outras etnias
vieram ao Brasil por livre e espontânea vontade. Os negros, não.
Foram atirados em porões de navios imundos, tiveram suas
famílias separadas e enfrentaram o horror da escravidão.
Não somos superiores, nem inferiores. Somos iguais. Não
queremos enfrentamento com pessoas de outras raças mas é
preciso entender que o Brasil tem uma dívida social com os
negros.

Alceu de Deus Collares


1964 - Vereador em Porto Alegre
1970 - Deputado Federal mais votado
1974 - Deputado Federal mais votado do Estado
1978 - Deputado Federal
1986/1988 - Prefeito de Porto Alegre
1991/1994 - Governador do Estado do Rio Grande do Sul
1998 - Eleito pela 4ª vez Deputado Federal (1999/2003)
2002 – Eleito pela quinta vez Deputado Federal
2004 - Completou 40 anos de vida pública.

http://www.collaresonline.com.br
Ser um político negro
Falar sobre esse assunto, sobre nossa trajetória e sobre a
importância de “ser um parlamentar negro no Brasil”,
representa para nós, afro-brasileiros, um motivo de alegria.
Não apenas por termos nosso trabalho reconhecido, mas,
principalmente, por considerarmos as conquistas de cada um
dos negros de nosso País como grandes vitórias.

Dizemos isso porque, apesar de sermos praticamente


metade da população brasileira, infelizmente, ainda não nos
encontramos no mesmo patamar dos brancos. Muito já se
avançou, mas ainda não chegamos ao ideal. Precisamos, no
caso da vida pública, atentar para o fato de que existem setores
da sociedade que não são representados nas instâncias do
Estado e, na maioria das vezes, acabam sendo esquecidos.
Como diz a frase: “quem não é visto, não é lembrado”. Nós,
afro-brasileiros, somos agentes da mudança.

Por pensar assim é que, enquanto sindicalista, fui vice-


presidente da CUT em âmbito nacional. Fui deputado federal
por quatro mandatos e, atualmente, como senador, pauto meu
mandato nos direitos sociais. Isso para defender os cidadãos,
brancos ou negros. Cumpro meu papel como vice-presidente
do Senado, período em que vi aprovado o Estatuto do Idoso.
Agora trabalho para a aprovação dos Estatutos da Igualdade
Racial e da Pessoa Portadora de Deficiência.

Minha intenção é contribuir para elevar e melhorar a


qualidade de vida dos brasileiros, assim como a distribuição
de renda em nosso País. Por isso, ocupo um espaço que
entendo ser legítimo de homens e mulheres que têm
compromisso com a questão social. Nossa sociedade
precisa ter consciência da importância da nação negra na
construção de nossa história e, quando falamos em construir,
devemos olhar para nosso passado, nosso presente e
caminharmos para o futuro que desejamos: um Brasil
solidário e, de fato, igualitário.

Senador Paulo Paim

Cobrando a Dívida - 85
CABELO BOM
Isete Maria do Nascimento

A sociedade tem atribuído relevante


valor social e cultural à moda, que se
manifesta não só no vestuário como
também na maquilagem e nos cabelos.

Deve-se ressaltar que o vestuário não é


fator distintivo da população negra no
período retratado, razão pela qual não
nos deteremos neste aspecto. O cabelo,
este sim, é o traço mais relevante e o
que mais a diferencia.
Assim, a construção de uma imagem e de uma estética
tipicamente negras remete à importância do rosto no realce da
beleza e na valorização de traços, onde o cabelo exerce papel
Acervo M.Noelci Homero fundamental quando se quer compor um visual.
Acervo Valdemar da Silva Brum Arquivo Tição Acervo Elenir G.Marques

Acervo Antonio C.Côrtes

Arquivo Imágica

Acervo Marilene Paré Acervo Maria H.Ancrade Acervo Manoel F.Rosa e Silva

Acervo Carmem Amora

Acervo Neura Santos da Silva

Acervo Osvaldo F. Reis


Acervo M.Noelci Homero

Cabelo Bom - 87
88 - NEGRO em Preto e Branco

Em Porto Alegre, quase não existiam salões de beleza


com cabeleireiros especificamente voltados para a população
negra; os precursores foram o Marujo e a Georgina, o primeiro
localizado na Zona Norte e o último no bairro Bom Fim; ambos
utilizavam processos diferentes de tratamento, mas com a
mesma finalidade: alisar os cabelos. Mais tarde, surgiram
novos salões, com propostas diferenciadas.
Um aspecto importante a ser salientado é o da utilização
do cabelo, também, como símbolo de uma luta para elevar a
auto-estima e fortalecer a identidade racial, como fizeram os
movimentos negros, inspirados no Black Power.
Nesse período, que corresponde ao final dos anos 60, além
dos cabelos, houve a adoção de toda uma estética, incluindo
roupas e acessórios, como reflexo do “black is beautiful”,
movimento cultural e comportamental norte-americano.
Por conseguinte, a valorização da consciência racial leva
a população negra a repudiar expressões desrespeitosas e
eivadas de preconceito como “cabelo ruim”, “cabelo duro”,
largamente difundidas, inclusive através de músicas que
depreciam principalmente a mulher negra. Na verdade,
nosso cabelo é diferente e, através de cortes e penteados,
busca-se a valorização dessa diferença.
Nas imagens, estão retratadas inúmeras possibilidades
que o nosso cabelo oferece, adotando estilos diferentes, que
vão desde os penteados mais simples, leves e despojados
até os mais elaborados e charmosos; assumindo formas
diversas, ora soltos, ora presos, trançados, torcidos, enfeitados,
moldados em coques e topetes, exibindo volumes simétricos
ou não para realçar este traço da beleza negra.

Irene Santos

Isete Maria do Nascimento

Licenciada em Letras/ UFRGS. Professora


de Literatura e Língua Portuguesa
Acervo Maria Guedes Acervo Vera Neuza Lopes Acervo Maria Regina Borges Pinto

Acervo Osvaldo F. Reis

Acervo M.Noelci Homero

Acervo M.Noelci Homero

Acervo Odyla Junqueira

Cabelo Bom - 89
90 - NEGRO em Preto e Branco

Acervo Zilah Machado Acervo Marilene L.Paré

Arquivo Imágica Arquivo Imágica

Acervo M.Noelci Homero

Acervo Irma Nascimento

Acervo M.Noelci Homero


Arquivo Imágica Acervo Renato Costa

Acervo Paulo Chimendes

Acervo Renato Costa

Cabelo Bom - 91
92 - NEGRO em Preto e Branco

Pentes, tesouras e chapinha

O primeiro salão de beleza aberto para mulheres e jovens


negras em Porto Alegre nasceu do desapontamento de uma
adolescente com 16 nos de idade. Frustrada e humilhada
porque nenhuma cabeleireira branca quis cortar seus longos
e crespos cabelos, Georgina Pinto definiu o curso de sua vida
e tornou-se uma especialista no trato dos cabelos. Abriu o
“Salão Colored” sob a influência dos cortes e penteados das
cantoras do jazz norte-americano que via nas fotos das revistas
dos anos 50. Inicialmente aproveitou a garagem de sua casa
localizada na Rua Francisco Ferrer, em plena Colônia Africana,
para atender amigas e primas.
A notícia se espalhou pela cidade e logo o espaço tornou-se
pequeno. Sua marca registrada foram os alisamentos com pente
quente e os penteados sofisticados para festas. Mais tarde, ali
por volta dos anos 70, o mais antigo salão de beleza voltado
para mulheres negras lançava um novo método: o alisamento a
frio que logo ganhou um grande número de adeptas.
Ivone Fontes, 71 anos, que acompanhou Georgina
desde o início - eram primas - lembra dos penteados
elaborados feitos com o pauzinho lixado e encerado, “ótimo
para fazer os bucles, muito em moda na época”. Além
disso, prossegue Ivone, havia a tesoura marcel que servia
para frisar os cabelos. O pente quente está na lembrança
de Maria Izabel Ribeiro da Silva, 58 anos, que morava no
Interior e não tinha acesso aos salões de beleza. “Minha
mãe é que cuidava dos nossos cabelos e segundo ela o
segredo de um bom alisamento estava na lavagem. Se os
dedos rangiam no couro cabeludo era sinal que a cabeleira
fora bem lavada. O passo seguinte era separar os cabelos
desde a raiz, passar vaselina ou brilhantina Gessy e fazer
anéizinhos. Cobrir com um lenço e aguardar o dia seguinte.
Mas o melhor mesmo para deixar os cabelos bem lisos era
untá-los com óleo de mocotó misturado com duas gotinhas
de alfazema ou água de colônia. O processo era o mesmo
da vaselina; só no dia seguinte é que se soltavam os anéis
e começava o alisamento com o pente de ferro que era
aquecido no fogão a lenha”.
Acervo da família Silvio Alencastro - Arquivo Tição Irene Santos

Georgina Pinto

Pauzinho para fazer


bucles

Irene Santos Irene Santos

Salão Colored atualmente na Avenida Osvaldo Aranha


Acervo Adão Alves de Oliveira

Penteados da moda
dos anos 50

Cabelo Bom - 93
94 - NEGRO em Preto e Branco

A bela Olivia

Realmente, parece que o tempo


parou. E, na maturidade, Olívia Maria
Bica Pereira mantém, serenamente, a
beleza e o charme. Dois quesitos
fundamentais para que ela, uma negra,
conquistasse, em outubro de 1969, o
título de “A Comerciária do Ano”.

Recordar esse evento e a trajetória de Olívia é lembrar uma


Porto Alegre muito antes das galerias refrigeradas dos shopping
centers. Afinal, o melhor do comércio se concentrava no centro
da cidade. E a vitrine da moda e da elegância tinha um nome
pomposo: Rua dos Andradas, a nossa Rua da Praia.
O estrangeirismo - nomes alemães e italianos - marcava
as fachadas das lojas. O povo soletrava mal. Atrás dos
balcões de atendimento somente funcionários brancos. Não
havia no comércio porto-alegrense central reserva de
mercado para a população negra.
Por isso, quando cruzavam a porta de vidro da hoje
desaparecida e famosa Casa Louro - esquina da Avenida
Borges de Medeiros com a Rua da Praia -, muitos clientes se
surpreendiam ao ver a bela e serena Olívia Pereira. “As
pessoas não conseguiam esconder a surpresa e o embaraço
ao se deparar comigo à frente, ou atrás do balcão”, lembrou.
Mais do que pela beleza, Olívia Pereira entrou para a
história do comércio como a primeira balconista negra da série
de lojas existente no perímetro da Rua da Praia. “Com a minha
contratação abri espaço para outras pessoas negras. Naquela
época não havia negros no atendimento ao público ”, recordou
Com o decorrer do tempo, o que era espanto virou atração
da loja e Olívia passou a ser disputada pela clientela feminina
e masculina que queria ter o privilégio do seu atendimento.
Ao recordar sua trajetória de vida, Olívia revela que a sorte
foi sua grande aliada desde a conquista do primeiro emprego.
Com 19 anos começou a trabalhar como ajudante de
costureira na Casa Louro. Segundo ela, seu primeiro sinal de
sorte. Como costureira, sua produção, no entanto, não
correspondia e veio o aviso da demissão. O segundo sinal da
sorte aconteceu quando o dono da loja – João Sondermann – a
encontrou chorando pelos corredores e Olívia explicou que ia
ser despedida sem ter uma outra oportunidade de trabalho.
Da conversa com João Sondermann resultou a chance de
mudança de setor. Na ocasião, alguém lembrou ao dono da

Desfile exclusivo para clientes da


Casa Louro nos anos 60 (fotos do
acervo de Olívia Pereira)
Casa Louro que as vendas poderiam ser prejudicadas pelo fato
de ter uma negra no atendimento direto ao público. “Ele ignorou
o aviso e apostou em mim”, enfatizou. Olívia fez um estágio e
em poucos meses conseguiu atingir o mesmo grau de
eficiência das demais comerciárias.
“A Comerciária do Ano” foi um concurso em que as
candidatas recebiam o apoio da população, através de votos,
para passar à etapa final, ocasião em que eram avaliadas por
um corpo de jurados.
Cabelo Bom - 95
96 - NEGRO em Preto e Branco

A beleza era um pré-requisito, “mas não significava tudo”,


recorda Olívia ao dizer que se somava a este quesito o domínio
no desempenho da tarefa como balconista, a elegância, o
comportamento (etiqueta). “As exigências eram muitas – fizemos
três testes escritos e passamos ainda por entrevistas individuais
- nesse que foi, na minha opinião, um dos maiores concursos já
realizados no comércio gaúcho”.
Olívia Pereira chegou ao título superando mas de 50
candidatas do Interior e da Capital. A festa foi realizada no
Teresópolis Tênis Clube. Como prêmio à sua eficiência, beleza
e elegância, ganhou um apartamento de 32 metros quadrados
e uma viagem para Nova Iorque, onde viveu por duas semanas
seu sonho de cinderela. Hoje, passados 36 anos dessa
conquista, Olívia continua fazendo aquilo que mais gosta: deixar
as mulheres mais bonitas com as roupas que vende.

PERNAS
FAZEM PERDER A CABEÇA...

Linha 74 -Glória
“Na esquina da Av Borges de
Medeiros com a Rua dos Andradas,
manequins estavam desfilando na
passarela armada pela Casa Louro, na
sobreloja, para o público. O motorista
do ônibus número 113, da Glória, não
se conteve ante o espetáculo. E com o
veículo cheio de passageiros, uma das
mãos no volante, o resto do corpo para
fora, procurou observar melhor as
jovens que desfilavam acima
de sua cabeça.”
(Folha da Tarde, 05/11/1970)
Beleza Pura

“Minha participação no “Rainha das Piscinas” foi um ato de coragem. A


gente nunca sabe quando pode mudar a história. As pessoas deixam de
fazer as coisas por medo. Devem ter em mente que são capazes, que
podem. Decidi participar dos concursos porque, até então, não havia sofrido
nenhum tipo de preconceito. Depois, as discriminações me fizeram ver o
mundo de outra forma.”
Conta a lenda que foram necessárias três votações para que o seu nome
se confirmasse como o de Rainha das Piscinas do Rio Grande do Sul
naquele ano de 1984, o último concurso promovido pela Empresa
Jornalística Caldas Júnior. O cenário era o Gigantinho, onde o público
aguardava o nome da vencedora, entre as 78 candidatas representantes do
Estado. Depois de três nervosas apurações, e como se mantivesse o
resultado, o corpo de jurados decidiu confirmar o inesperado veredicto. Aos
16 anos, Deise Nunes de Souza mudava um padrão de beleza, tornando-
se a primeira mulher negra a conquistar um título estadual. Naquela época,
o Rainha das Piscinas superava em importância o concurso Miss Rio Grande
do Sul, evento que, historicamente, revelara mulheres bonitas para o Brasil
e o mundo. “Foi uma surpresa para mim, que não imaginava vencer o
concurso. Foi, também, a primeira vez em que percebi que minha cor era
motivo de discriminação”, revela.
Deise começou a tomar gosto pela passarela ainda cedo. Aos 13 anos
fez seu primeiro desfile, no Salão da Igreja Pão dos Pobres. Criou-se nas
piscinas do Grêmio Footballl Porto-alegrense, mas foi pelo Sport Clube
Internacional que disputou o título, a convite da direção do clube. O título
lhe abriu portas e ela continuou trabalhando como modelo e manequim. Em
1986, por influência da mãe, Deise decide participar do concurso Miss Brasil,
promovido pelo Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), tornando-se a
primeira mulher negra a conquistar esse título. Curiosamente, Deise
conquistou projeção nacional patrocinada pelo município gaúcho de Canela,
e não por Porto Alegre, sua terra natal.
Cabelo Bom - 97
A CANELA PRETA
Jones Lopes da Silva

C uriosa a situação do inventário das


pessoas. Suas provas mais definitivas
estão aninhadas no fundo de uma
gaveta, sumidas no roupeiro ou bem
guardadas em pastas de papelão, caixas
de sapato, às vezes. É um montinho de
fotos presas por atilho, outras estão
ali amassadas, amareladas, rasgadas,
renegadas. De qualquer jeito são
reveladoras. Pois bem, vamos vasculhar
esse armário da casa da mãe preta.
Acervo Osvaldo F. Reis

Lembra daquela foto do seu Pretinho? Uma em que ele aparece


com outros dois amigos em pose num campo de futebol. Há uma
bola de couro na frente deles, na época em que existia bola de
couro. Não se conhece a data. Nem se sabe de onde veio. Quantos
anos teria seu Pretinho? Ele jogava assim, de gorrinho? Quem o
conheceu das redondezas de Porto Alegre? Um craque de bola,
logo se vê pela imponência da figura e pela esperteza do olhar.
Como o nosso personagem nunca obteve a devida atenção
de alguém que escrevesse suas histórias, restam as fotos. Que
aliás dizem tudo.
Aqui há uma outra foto dele. Observem a intenção de
mostrar ao fundo uma várzea seguida de um povoamento.
Afinal, quem era o nosso craque, agora de boina em vez do
gorro? Vejam as pernas franzinas do seu Pretinho, entre as
meias erguidas e o calção de cano longo. Talvez seja ele um
descendente da histórica Liga Nacional de Futebol Porto-
Acervo Osvaldo F. Reis Alegrense. Ou melhor, a Liga da Canela Preta.
Pouco se sabe dela. Nasceu antes de 1920 na Colônia
Africana e se manteve até o início do profissionalismo no futebol,
em 1933. Sem chance nos times de gente de bem, negros,
mulatos e correlatos criaram campeonato próprio, algo como
um certame interno do apartheid de então. Era uma
polvadeira só, e dali brotaram craques anônimos de canelas
magrelas como as do seu Pretinho. Com o tempo, clubes
tradicionais como o Americano e o Internacional cresceram os
olhos e arrebanharam destaques da Liga. Ainda assim, no
início, incorporaram apenas mulatos, sararás, sarobas e saribas.
Uma outra foto. É o esquadrão do valoroso Leão da
Montanha. O nome é vistoso, o registro de 1940 e a formação
sugere um time de vila da Capital. O Leão, assim como está,
Acevo da familia de Everaldo Marques da Silva alinhado, nos conduz à idéia de seqüência: muito tempo
depois, a Canela Preta continua. Persiste até hoje.
Seria Osmar Fortes Barcelos, o Tesourinha, a legítima
perpetuação da Canela pelas pontas? Seria Everaldo um de
seus ídolos? Dos campinhos do morro da Glória à entrada
triunfal na cidade assomado em um carro de bombeiros com
a Taça Jules Rimet em punho. Enfim, Oreco, Claudiomiro,
Juarez, o Tanque, Escurinho, Tarciso, Doval, Dorinho, Alcindo,
Ronaldinho, Roger, Tinga, Diego e Diogo teriam emergido da
poeira dos redutos carecas da Liga, mesmo fora da época e
mesmo os não porto-alegrenses?

A Canela Preta- 99
100 - NEGRO em Preto e Branco
Arquivo Tição
Como seria a zaga do Canela? Com Aírton e Florindo? Quem
treinaria a seleção da Canela? Quem sabe o senhor desta foto?
Chama-se Cândido José dos Santos, o Bataclã. Reparem a
simetria dos braços em meio a um exercício físico, dos tantos
que fazia pelas ruas da cidade. Pelo rigor do rosto, é ele o
indicado ao comando deste time.
Já podemos devolver as fotos à caixa de sapatos.

Bataclã

Irene Santos

Jones Lopes da Silva

Jornalista há 27 anos. É repórter e faz parte do grupo de editores do jornal Zero


Hora. Participou da revista e do jornal Tição no início dos anos 80.
Acervo Wilson Pereira

LIGA D
DAA CANELA PRET
PRETAA
1910 é a data provável da criação
da Liga Nacional de Football Porto-
alegrense, apelidada Liga da Canela
Preta, que concentrou, inicialmente, os
seguintes clubes: Primavera, Bento
Gonçalves, União, Palmeiras, Primeiro
de Novembro, Rio Grandense, 8 de
Setembro, Aquidabã e Venezianos.

1950 - Esporte Clube 13 de Maio, da Colônia Africana


EVERALDO MARQUES DA S I LLVV A
lateral-esquerdo, foi um dos maiores craques da
história do Grêmio. Tinha 13 anos de idade quando
entrou para o Clube. Em 1967 ajudou o Brasil a
conquistar a Copa Rio Branco, em Montevidéu,
Uruguai. No ano seguinte, suas atuações mereceram
o aplauso da torcida e da crítica especializada e foi
O SPORT CLUB INTERNACIONAL, consagrado como um dos melhores laterais-esquerdo
fundado em 1909, tem o primeiro do País. Em 1970 sagrou-se tricampeão mundial no
registro de um jogador negro México. Em sua homenagem, naquele mesmo ano, o
Conselho Deliberativo do Grêmio fixou uma estrela
apenas em 1925 com a entrada dourada na bandeira do clube e entregou a ele o
do zagueiro Dirceu Alves título de atleta laureado. Em 27 de outubro de
1974, quando tinha 30 anos, um acidente de trânsito
encerrou sua carreira.

Acervo Família de Everaldo Marques da Silva

Everaldo

Jogadores do Grêmio e do
Internacional, posando
juntos para uma foto rara

A Canela Preta - 101


102 - NEGRO em Preto e Branco

Osmar Fortes
Barcelos,
Te s o u r i n h a ,
ponta-direita,
assinou o seu
primeiro contrato com
o Internacional em
1940. Dois anos
depois, o Vasco da
Gama, o levou para o
Rio de Janeiro. Foi
considerado o jogador Flávio Pinho - Florindo - também conhecido como
mais completo pela Gigante de Ébano, (à esquerda na foto) nasceu em 1929,
velocidade que em Nova Friburgo/ RJ. No campo atuava como zagueiro.
impunha em suas A torcida e a mídia o reverenciavam pelas jogadas fortes
jogadas e pelo drible e combativas, capazes de parar um dos melhores centro-
desconcertante que avantes da época: o gremista Juarez (a direita na foto).
aplicava em seus O catarinense Juarez Teixeira começou a jogar
adversários. no Grêmio em 1955, onde ficou até 1962. Tanque e
Leão do Olímpico foram dois apelidos marcantes do
lendário penta-campeão gaúcho (1956/1960). Entrou
para a história do Grêmio por ser o primeiro jogador negro
Acervo José Tarciso de Souza a integrar o Conselho Deliberativo.

Sioma Breitman/ Acervo Alpheu C.Battista


Jr

O mineiro José Tarciso de Souza


foi trazido do América/RJ em 1973 .
Durante 13 anos defendeu as cores
do Grêmio tendo sido o jogador que
mais participou do clássico Gre-Nal.
Graças à sua velocidade, o ponta-
direita recebeu o apelido de Flecha
Negra.Seu nome está na Calçada
da Fama do Olímpico.
S.C.Internacional em 1939
Acervo Alpheu C Battista Jr

Alpheu Cachapuz Battista foi considerado um dos mais perfeitos e velozes


zagueiros do futebol gaúcho. Levava o apelido de Soneca por causa de sua
calma preguiçosa f ora do campo. Começou a jogar no Internacional no início
da década de 40, onde sagrou-se hexacampeão gaúcho - 1940-1945; bi em
1947/1948. O início da carreira foi em Bagé, jogando primeiro na várzea, depois
no Grêmio Bagé e mais tarde no Guarani.
Futebol de Salão: Flávio ainda é o melhor “frente”

Ele parou de jogar futebol de salão há mais de 40


anos, mas dizem os especialistas e entendidos no
esporte que ainda não surgiu um “frente” tão bom
quanto Luís Flávio Silva Nascimento. Flávio foi o
primeiro jogador negro a pisar numa quadra de futebol
de salão no tempo em que a pequena bola era bem
mais pesada do que é agora e era recheada com crina
de cavalo. O garoto franzino e magro, mas rápido como
um raio, era o terror das defesas adversárias.

Flávio lembra que o futebol de salão veio para o Rio Grande


do Sul por meio da Associação Cristã de Moços do
Uruguai. Num encontro das duas ACMs - a gaúcha e a
uruguaia - o esporte foi implantado no Estado por volta de
1956. Tempos depois, Flávio cruzava as portas da ACM
para aprender a jogar. Uma vez por semana, a entidade
abria seu ginásio de esportes para os não associados. A
iniciativa tinha a função social de oportunizar o acesso a Fotos do acervo de Luis Flávio Nascimento
uma modalidade esportiva para aqueles que não tinham
recursos para freqüentar um clube.

Dos jogos que não valiam nada na ACM, o juvenil Flávio


foi convidado a integrar o time do La Salle e começou
acumular títulos. Foi bicampeão porto-alegrense e
bicampeão estadual. Suas atuações chamaram atenção
dos adversários. O Esporte Clube Cruzeiro resolveu
investir no talento do guri, colocando-o no time adulto.
Não deu certo. Foi emprestado para o Gaúcho, de
Canoas, onde permaneceu um ano jogando na categoria
juvenil. Neste mesmo período foi convocado para a
Seleção Gaúcha e logo conquistou a vaga de titular. Da
Seleção Gaúcha foi para o Selecionado Brasileiro.

Sua grande fase esportiva foi no Wallig, um dos melhores


times que surgiu no futsal gaúcho. Dono de uma jogada
rápida, bom drible e chute forte de bico, ele conta que o
grito que mais ouvia na quadra vindo dos seus adversários
era: “não deixa o Flávio jogar...”

O preconceito racial se revelou por inteiro quando no


auge da sua carreira, recebeu um convite para integrar
o time do Petrópole Tênis Clube, na época, um clube da
classe média alta. “Fiquei todo entusiasmado com o
convite e, também, com a possibilidade de freqüentar,
principalmente, a piscina, sonho de todo jovem negro e
pobre em pleno verão”.

As negociações para a assinatura do contrato estavam


bem encaminhadas, mas uma observação feita, na última
hora, pelo dirigente do clube mudou tudo e ficou gravada
para sempre: “Nós te queremos no Petrópole, mas tu não
podes freqüentar as dependências do clube. A mensagem
para mim foi clara, ou seja como jogador eu servia, mas
como cidadão, não. Não assinei o contrato”.

A Canela Preta - 103


NEGRO em Preto e Branco - 104

O homem das corridas de rua

O ritmo das passadas é sensivelmente lento, mas ainda


detém pique. Nem sempre foi assim. Houve uma época em que
Rui Barbosa, 90 anos, era o dono das corridas de rua e
literalmente voava para ser apontado como um dos melhores
pedestrianistas do Estado. A velocidade era sua marca e os
cronômetros atestavam. As pistas de atletismo e as avenidas de
muitos bairros de Porto Alegre foram cenários para treinos
diários, ritmos acelerados e muitas vitórias. Mas não é a idade
avançada que impede as participações de Rui Barbosa nas
corridas. Ele estaria correndo se não fosse uma persistente lesão
no joelho esquerdo.
O repouso é por recomendação médica, mas o temperamento
inquieto faz com que Rui não desista dos exercícios. “Em casa
eu não paro um instante. Estou sempre fazendo alguma coisa.
Aqui, as tarefas de limpar, lavar e passar roupas são minhas.
Se as pessoas observarem, cada um tem dentro de casa uma
academia de ginástica completa. O pessoal da minha idade tem
que perceber isto e dar um basta ao ócio”, salienta ao exaltar o
trabalho do cotidiano caseiro como cura para diversas doenças
que afetam os idosos.
Dono de uma memória privilegiada e capaz de reeditar os
melhores momentos e fatos folclóricos de sua vida esportiva, Rui
Barbosa relata que a paixão pelas corridas - foi várias vezes
campeão dos percursos de cinco, 10, 20 mil metros e Maratona -
começou na década de 30 quando cumpria o serviço militar.
Naquele tempo nada indicava que a sua vida estaria
definitivamente ligada à carreira esportiva.
Muito magro - pesava apenas 56 quilos - o soldado 39,
assim era chamado no quartel, não agüentava as sessões de
corrida realizadas sob o sol forte da Avenida Mauá e encerrava
os treinos antes do tempo sentando à beira das calçadas. “Não
dava para resistir... ainda mais que botavam a gente para correr
carregando nas costas uma mochila pesada e com coturnos em
vez de tênis”, conta. Logo ganhou fama de preguiçoso e quase
foi expulso do quartel.
Acervo Rui Barbosa
Felizmente, a magreza não era indício de alguma doença,
o que foi devidamente comprovado pela bateria de exames
médicos solicitada pelo comandante da corporação.
A punição por burlar os treinos foi cumprir uma longa
maratona que teve início na Salgado Filho, onde ficava o
quartel, com prosseguimento pela Borges de Medeiros,
Voluntários da Pátria, São Pedro, Benjamim Constant,
Cristóvão Colombo, Ramiro Barcellos, Osvaldo Aranha,
Venâncio Aires, João Pessoa e novamente Salgado Filho.
Sem o peso da mochila e sem coturnos, correu sem parar.
A conclusão do percurso, feito num tempo recorde, surpreendeu
o batalhão inteiro. Festejado, recebeu um prêmio de incentivo:
bananas, leite e aveia. acrescido da notícia que passava a
integrar a equipe do quartel com a condição de apenas treinar.
Nascia naquele momento o atleta Rui Barbosa.
”Foi um adeus às instruções e à farda - passei a andar
14 de setembro de 2003
à paisana - e ganhei algumas mordomias, como ser levado
todos os dias de carro para casa. Desde então não parei mais,
são mais de 70 anos dedicados ao esporte”.
Quando deu baixa no quartel foi para o Esporte Clube
Cruzeiro, antes havia passado pelo Gloriense. Defendeu as
cores da Sogipa e do Internacional e fez carreira no Grêmio
Porto-Alegrense, conquistando diversos títulos e tornando-se
atleta laureado.
Orgulhoso de sua longa carreira esportiva, Rui Barbosa só
tem um fato a lamentar: a perda de um álbum com suas
melhores fotos e textos publicados nos jornais relatando suas
múltiplas vitórias. Sobraram, no entanto, as medalhas de prata
Acervo Rui Barbosa

7 de setembro de 1940 , Desfile da


Mocidade na Avenida Borges de
Medeiros. Rui Barbosa é o segundo
à direita na segunda fila

A Canela Preta - 105


106 - NEGRO em Preto e Branco

Atletismo
Elza Ferreira Alves começou no esporte
defendendo a equipe de vôlei do Clube Náutico
Marcílio Dias, clube fundado por negros. Nos
anos 1957 e 1958 o Marcílio se destacava nas
competições de vôlei, basquete, atletismo e
remo.
Elza foi a primeira atleta negra a competir
pela Sogipa. Esteve também no Grêmio e no
Internacional. Sua especialidade no atletismo era
o heptatlo.

Acervo Elza F..Alves

Revista do Grêmio/ 21 - 1959

Grandes destaques do atletismo gaúcho e do


Troféu Brasil na década de 50/60 foram Érica
Lopes da Silva
Silva, Íris dos Santos
Santos, Aida dos
Santos
Santos, Leda T eixeira dos Santos, Maria de
Teixeira
Lourdes da C o n c e i ç ã o .
Érica Lopes da Silva
Acervo Aldino P. Flores

Aldino Paixão Flores foi considerado o maior fundista do


Rio Grande do Sul de 1958 a 1969. Conquistou 11 títulos
estaduais defendendo sempre o Grêmio Porto-Alegrense. Tem
mais de 320 medalhas individuais e 15 troféus por equipe. Foi
Acervo Aldino P. Flores recordista gaúcho e brasileiro e campeão do Troféu Brasil. Sua
especialidade eram as provas de 800, 1.000, 1.500, 3.000 e 3.000
com obstáculos, 5.000 e 10 mil metros. A carreira começou, em
1957, na 11ª Companhia de Comunicação, em São Gabriel. Um
ano depois veio para o Grêmio. Em 1962 foi apontado como um
dos melhores no esporte gaúcho, merecendo destaque como
atleta de pista e asfalto.

Isolino T aborda defendeu o Cruzeiro, o Grêmio e


Taborda
o Internacional. Foi campeão brasileiro, vice-campeão sul-
americano, várias vezes campeão estadual e da cidade,
recordista gaúcho e brasileiro de arremesso de peso e de disco
e ganhador do Troféu Brasil.

No vôlei e no basquete um jogador é sempre lembrado:


Kalunga
Kalunga. Destaque nas equipes do Grêmio, Petrópole e Inter
Isolino Taborda Integrou a seleção gaúcha de basquete e a brasileira de vôlei.

A Canela Preta - 107


CORRENTES DA FÉ
Osvaldo Ferreira dos Reis

A religiosidade do povo negro está


presente em todos os momentos de
sua existência. Quando os negros foram
arrancados de suas terras e trazidos
para as terras brasileiras, separados de
seus familiares, reunidos a outros negros
que, muitas vezes, não falavam a mesma
língua e tinham outros costumes,
restou-lhes apenas a fé em seus deuses,
para obterem as forças necessárias para
sua sobrevivência.
Cultuando os Orixás conseguiram estabelecer uma
linguagem comum. A religiosidade foi a grande ferramenta
Museu J.J.Felizardo-Fototeca Sioma Breitman
para preservarem a cultura africana no período triste da
escravidão. Praticar a religião africana é acreditar nas forças
da natureza, seja dentro das casas de matriz africana ou
durante as festas dos santos católicos que os negros
incorporam ao seu culto: aquilo que era uma imposição, virou
uma oportunidade de fortalecer a fé em suas crenças.
Os negros podiam participar, na confraria da Nossa
Senhora do Rosário dos Homens Pretos, na Confraria de São
Benedito, nas festas da Nossa Senhora dos Navegantes, de
São Jorge. Não importa, o que realmente interessa é a fé que
une este povo na certeza de que os Orixás jamais lhes virarão
as costas, pois todos somos filhos de pai e de mãe.
A religiosidade africana está alicerçada nesta união, na
junção das forças, na corrente da fé, que ilumina a nossa
estrada e na certeza de que os ensinamentos não foram
esquecidos. A religiosidade do povo negro está associada
à alegria, ao culto dos antepassados e o principal motivo
da festa é o povo. Quem não ouviu falar do toque do tambor
nas festas para orixás nas casas de: Xangô Omi (uma
liderança religiosa importante que ficou conhecida pelo
nome do seu orixá ), do Príncipe Custódio, do Antoninho da
Oxum, da mãe Andreza, do Manuelzinho do Xapanã, do Vô
Idalino do Ogum, da mãe Moça da Oxum, do Pai Jauri, da
mãe Nicola do Xangô, da mãe Apolinária e de tantos outros
que reverenciavam os orixás com toque forte do tambor que
se unia ao som da Banda de Música comandada pelo
Maestro Mendanha, na festa da Capela do Senhor do
Bonfim. A Banda do Maestro João Pena de Oliveira,
acompanhava os festejos da Nossa Senhora do Rosário e
da Nossa Senhora dos Navegantes. A fé dos negros se
renova e se expressa através do canto, da dança, das
oferendas que são dedicadas aos orixás, mas a energia é
distribuída a todos aqueles que necessitam e que
acreditam na força divina dos Deuses Africanos. Axé!

Irene Santos

Osvaldo Ferreira dos Reis

Advogado. Pesquisador da Cultura Africana

Correntes da Fé - 109
110 - NEGRO em Preto e Branco
Museu J.J.Felizardo - Fototeca Sioma Breitman
Festa dos
Navegantes
Acervo Lucia Regina Brito

Procissão de Nossa Senhora dos Navegantes em 1918 Grupo na festa da melancia nos anos 70
Acervo Osvaldo F. Reis

Acervo Osvaldo F. Reis

Acervo Osvaldo F. Reis

1940 - O barco Geni Naval transportando a imagem de


Nossa Senhora dos Navegantes

Irene Santos

Acervo João Augusto Santos Silva


Origens do Batuque
Norton Figueiredo Corrêa

Mãe Rita
(Museu J.J.Felizardo-Fototeca Sioma Breitman)

A fundação de grandes charqueadas de nível industrial, nos finais dos anos 1700, em Pelotas,
foi a razão principal para a importação de escravos negros para o Rio Grande do Sul.
A maior parte deles foi trazida de outros locais do Brasil, destacando-se o Rio de Janeiro,
mas é possível que alguns tenham vindo diretamente da África. Da mesma forma como ocorreu
em todo o País, cerca de 70% dos cativos eram bantos (do antigo Congo, Angola e Moçambique),
e 30% sudaneses (Nigéria e Benin).
Para se ter uma idéia da importância do charque, em 1833, em Pelotas, havia 5 mil escravos,
além de pardos e livres. Graças à atividade charqueadora, também, quase um terço dos 285
mil habitantes da população rio-grandense, em 1858, era composta por tais categorias.

Correntes da Fé - 111
112 - NEGRO em Preto e Branco

Destinado principalmente à alimentação dos escravos da


mineração, nas Minas Gerais, e às tripulações dos navios, o
charque produzia rios de dinheiro. Entre outros resultados,
temos o luxo e a suntuosidade da arquitetura de Pelotas, o
crescimento de sólidas empresas locais e a fundação do primeiro
banco gaúcho, o Banco Pelotense.
Algo diretamente relacionado a esta explosão de riqueza,
mas muito dificilmente mencionado na historiografia, é o fato
de que o Rio Grande do Sul deve à mão-de-obra escrava no
mínimo a construção das bases de sua infra-estrutura econômica.
Não custa lembrar, quando os primeiros imigrantes europeus
chegaram, já nos anos 1820, encontraram uma economia
regional em franco andamento, governo, estradas, cidades.
Por volta de 1850, o grande comércio charqueador entrara
em declínio. Paralelamente, o incremento da produção do café,
em São Paulo, demandava mais e mais braços, determinando a
venda de boa parte da escravaria gaúcha para o Sudeste.
Neste meio tempo, o crescimento de cidades, principalmente
Porto Alegre, provocara o surgimento de um mercado de serviços
urbano de consideráveis proporções – carregadores, artesãos,
serviçais domésticos e públicos, vendedores etc. - o que também
provocou o deslocamento de escravos para a capital da província.
Muitos deles foram atuar como “negros de aluguel” ou “de ganho”,
como eram chamados, que deveriam trazer para o senhor, no fim
do dia, semana ou mês, o que recebera.
A vida de muitos escravos urbanos era bem diferente dos
das charqueadas ou fazendas. Pelo fato de exercerem suas
atividades na rua, não podiam ser tão controlados como os
outros, sumiam mais facilmente da vista do senhor, além de
conseguirem juntar dinheiro com serviços extras, o que muitas
vezes resultava em alforria.
Aos poucos, a resistência constante do escravo em se
submeter às dificuldades cada vez maiores de fiscalização, vai
contribuir também para a desagregação progressiva do sistema
escravocrata. É nessa época – já estamos nas primeiras décadas
dos anos 1800 – que surgem as condições para a fundação dos
primeiros núcleos religiosos afro-brasileiros nas cidades mais
importantes do País. No Sul, esta religião é chamada de batuque.
Ao que se pode supor, o primeiro templo teria sido fundado em
Rio Grande, outros, depois, em Pelotas e finalmente Porto Alegre,
de onde, a partir do final dos anos 1950, a religião cruzou as
fronteiras do Uruguai e Argentina. Estimativas sugerem um número
Memorial do RS
em torno a 40 mil casas de culto no Estado, muito mais do que
no Rio, São Paulo e mesmo Bahia. O ritual, dirigido pela figura
da mãe (ou pai) de santo, cultua orixás africanos, sendo os
cânticos sagrados executados em jêje, ijexá, oió e nagô, línguas
originárias da África.
Na Capital gaúcha, o templo mais antigo de que se tem
notícia foi o da Mãe Rita, na Várzea, hoje Parque Farroupilha, nos
anos 1800. Após a Abolição, principalmente, as famílias negras
foram se instalando na então Colônia Africana, hoje bairro Rio
Branco e na Bacia (Auxiliadora-Mont’Serrat), naquele tempo
subúrbios da cidade, onde também surgiram muitas casas de
batuque. Dentre todos os chefes destaca-se a figura legendária
do Príncipe Custódio, integrante de uma família real africana que,
exilado pelos colonizadores ingleses de seu país, se instalou em
Porto Alegre na década de 1930, fundando uma casa de culto
na Cidade Baixa. Recebendo uma gorda pensão em libras,
convivia muito familiarmente com a alta sociedade local,
incluindo-se o Governador Borges de Medeiros que, diz-se, era
seu filho de santo.
Os templos religiosos afro-brasileiros exerceram e exercem
papel social importantíssimo na sociedade gaúcha, atuando
como locus de resistência, proteção, sociabilidade e de
construção de uma identidade coletiva para grandes segmentos
das massas negras urbanas.

Custódio Joaquim de Almeida, o Príncipe

Norton Figueiredo Corrêa

Professor da Universidade Federal do Maranhão. Doutor em Antropologia, especialista


em religiões afro-brasileiras. Autor do livro “ O Batuque do Rio Grande do Sul –
antropologia de uma religião afro-rio-grandense” . Porto Alegre, EDUFRGS, 1992.

Correntes da Fé - 113
PALAVRA DE NEGRO
Oliveira Silveira

Afora o trabalho braçal dos quatro


séculos em que trabalho era sinônimo
de negro construindo o Brasil para
beneficiários de outras raças, etnias ou
procedências nacionais, a imprensa, a
literatura, outras artes e formas
culturais demonstram eloqüentemente
a participação negra na vida brasileira
enquanto manifestação de seres
pensantes, expressão de sensibilidade
e ação por vontade própria.
A partir do século XVI (16 em arábico) o negro criou a
liberdade de Palmares - estado, país, reino, república... -
adentrando e ocupando nisso toda a centúria seguinte. E nesse
mesmo XVII, os anos 1600 no calendário parcial dos cristãos, a
oratura negra das letras de lundu, a literatura oral ou oralitura,
como diz a afro-mineira Leda Martins, estavam bem presentes,
com certeza.Já no setecentismo, o século XVIII dos minérios, o
maior brilho é do escultor, o artista Antônio Francisco Lisboa, o
Aleijadinho. Na literatura e na música, já aparece o sangue negro
em Caldas Barbosa e José Maurício, respectivamente.
No XIX (19 em arábico), quando nasce verdadeiramente a
literatura brasileira, o primeiro romancista é o negro Teixeira
e Sousa, mulato.E o primeiro editor nacional é um negro, o
mulato Francisco de Paula Brito, justamente o precursor,
também, da Imprensa Negra. Seu jornal, O Homem de Cor Cor,
1833, mudado para O Mulato ou o Homem de Cor Cor.Tudo em
lições de mestre Oswaldo de Camargo, escritor negro paulista,
em O Negro Escrito, livro de 1988. Paula Brito, editor ainda de A
Marmota Fluminense
Fluminense, o seu jornalismo em ação. A pesquisa
da jornalista negra Ana Flávia Magalhães Pinto para o mestrado
em História na Universidade Nacional de Brasília, UNB, localiza
novos títulos inclusive em 1833.
O maior escritor da época ou além dela, um polígrafo, senhor
dos gêneros literários e do estilo é o homem negro Machado de
Assis. Mulato, negromestiço, negróide ou misto afro....é tudo negro
no Brasil. E tem Luiz Gama, Cruz e Sousa – um continuum literário,
artístico, cultural, em crescendo, impondo-se aos séculos XX e XXI.
Sim, vinte e vinte e um.
Se ainda no século dezenove (XIX) José do Patrocínio era
escritor, empresário e jornalista negro dono de jornais – Gazeta da
Tarde
arde, 1877-1887, e A Cidade do Rio Rio, 1887-1903 – ou se o poeta
Cruz e Sousa tinha escritos abolicionistas ou simplesmente literários
em jornais de Florianópolis, em Porto Alegre quem marca forte é o
grupo do jornal O Exemplo
Exemplo. Cobrindo com interrupções e fases o
período 1892 a 1930, O Exemplo é iniciativa e organização de
negros. Antecipa-se à importante imprensa negra paulista e
paulistana: O Baluarte
Baluarte, Campinas, 1903, A PérolaPérola, São Paulo,
1911, O Menelick a seguir, O Clarim da Alvorada mais adiante.
O Exemplo
Exemplo, exemplar, foi seguido por outros órgãos gaúchos
como os pelotenses A Cruzada
Cruzada, 1905, e A Alvorada
Alvorada, 1907, ou A
Revolta
Revolta, 1925 em Bagé, A Navalha
Navalha, 1931 em Santana do
Livramento – informes de Marco Antônio Lírio de Melo, revista Porto
e Vírgula nº 29, novembro de 1996.
Em O Exemplo (mais vinculado ao meio negro nos primeiros
tempos), do diretor inicial Arthur de Andrade à derradeira direção
de Dario de Bittencourt, o grande destaque é para a visão, a
coerência, o espírito crítico e combativo de Esperidião Calisto, um
barbeiro jornalista muito politizado. E tem literatura, humor, informes
sobre teatro e clubes como o Floresta Aurora.
Se a imprensa negra de São Paulo acelerou com O Menelick
Menelick,
Alvorada, A V
O Clarim da Alvorada oz da Raça (da Frente Negra
Voz
Brasileira) e seguiu em frente, e se, no Rio de Janeiro, Abdias do
Nascimento e o Teatro Experimental do Negro lançaram o também
histórico Quilombo
Quilombo, 1948-1950, com sucedâneos na cena carioca
SINBA, Boletim do IPCN,
e fluminense (SINBA, IPCN na década de 70), no Rio
Grande do Sul houve, parece, um hiato a partir de 1930. Ou nos

Palavra de Negro - 115


116 - NEGRO em Preto e Branco
faltam registros. Mas a partir dos anos 60 sabe-se de informativos
de clubes – Sociedade Floresta Aurora, Clube Náutico Marcílio
Dias, Associação Satélite Prontidão... O Ébano é de 1962.
Marco inequívoco é Tição
Tição, de Porto Alegre (grupo Tição, 1977-
1980). Revistas Tição em 1978 e 1979, dois números, e a publicação
única do jornal Tição em 1980. Apresentação cuidada, boa
diagramação e conteúdo envolvendo história, debate sobre racismo,
questões sociais, políticas e culturais em geral, reafirmaram a
possibilidade de uma imprensa negra vigorosa, renovada, séria e
rica em abordagens, temas, profundidade.
Referência importantíssima, Tição dialoga com a imprensa
negra da década: o anterior e clandestino A Árvore das
alavras, Afro-Latino-América (in Versus), Jornegro, todos
Palavras
paulistas,, e outras publicações do Rio já citadas, sobre as
quais Amauri Mendes Pereira poderia falar melhor. Assim
Tição participa, muito significativamente, da construção dessa
história jornalística longa e heróica em nosso país.
Continuum literário nos séculos XX e XXI ccc (calendário
capenga dos cristãos ou calendário capenga cristão para
quem prefere as coisas mais ajustadinhas). É que além dos
citados Machado de Assis, Luiz Gama e Cruz e Sousa o século
dos anos 1900 teve o romancista e cronista Lima Barreto,
poetas como Líno Guedes e Solano Trindade, seguidos por
nomes como os de Oswaldo de Camargo e Carlos de
Assumpção que iniciando antes mas juntando-se aos novos,
fazem uma ponte para a literatura negra contemporânea.
Negra ou de negros.
O vigor dessa fase iniciada nos anos de 1970 é atestado
pela obra de escritores como Cuti, Éle Semog, Geni Guimarães,
Arnaldo Xavier, Paulo Colina, Adão Ventura, Miriam Alves, José
Carlos Limeira, Jônatas Conceição, Edson Cardoso, Conceição
Evaristo, Salgado Maranhão, Lepê Corrêa, Elisa Lucinda,
Eustáquio Lawa (Eustáquio José Rodrigues), Edimilson de
Almeida Pereira, Ricardo Aleixo, Lande Onawale, Cristiane
Sobral... A lista é longa.Os citados representam os omitidos,
injustiças à vista. E Cadernos Negros, com Esmeralda
Ribeiro e Márcio Barbosa na trincheira, representam uma
periodicidade anual iniciada em 1978, alternando conto e
poesia nas 27 edições completadas em 2004 com a marca
do Grupo Quilombhoje, em São Paulo.
Machado em seu tempo já escrevia peças teatrais. Em
meados do século XX Abdias do Nascimento escreveu e fez
montagens com o grupo do TEN. Rosário Fusco, Romeu
Crusoé e Ironides Rodrigues são também autores desse
período rico. E Cuti, Joel Rufino dos Santos e outros fazem a
dramaturgia contemporânea.
No Rio Grande do Sul, o poeta Luís da Motta publicou
comédia em O Exemplo (coleção 1902 -1905). O mesmo
jornal registra atividade teatral na Sociedade Floresta Aurora
desde o final do século XIX, resultando num duradouro Centro
Dramático do clube em começos do século XX. E desde o
início o semanário ostenta poemas de negros, seções
humorísticas deliciosas, prosa variada. Semanário de
LeoPardo traz em livro de 1926 as crônicas de Paulino de
Azurenha, escritas e m estilo primoroso entre 1905 e 1909
para o Correio do Povo. Mais uma preservação de Aníbal
Damasceno Ferreira. Preciosidade. O negro ou misto afro
Azurenha - LeoPardo - estava ao lado de Caldas Júnior na
fundação do Correio e continuou como redator do jornal.
Na última fase, 1916-1930, O Exemplo publica também
autores brancos, alguns poetas da época, e seria preciso
estudar a freqüência de negros em suas páginas. Para a
lacuna entre os anos de 1930 e 1960, é bom lembrar que
Antônio Lourenço, redator do jornal nos anos 20, publica
sonetos no Correio do Povo ao menos na década de 70 e
início dos anos 80, quando falece. Haverá outros autores
entre o período Vargas e a ditadura militar de 1964?
Pe s q u i s a r. A p a r t i r d e 1 9 6 5 o Te a t r o S a c i f e z b o n i t o
vencendo um Festival Martins Pena ou montando a peça Um
Cravo na Lapela, do dramaturgo branco Pedro Bloch,
organizado sob a presidência de Eloy Dias dos Angelos e
tendo Horacilda do Nascimento como vice-presidente. A
atriz Eni Maria das Neves e o ator Airton Marques representam
os seus demais colegas nesta citação.
Da mesma época, surgindo em 1964 ou 65 é o GTM,
Grupo de T eatro Marciliense
Teatro Marciliense, liderado por Luiz Gonzaga
Lucena e integrante do Clube Náutico Marcílio Dias. Aírton Silva
e Gelci Lemos exemplificam voz e talento no GTM. Pois o GTM
e o Grupo T eatro Novo Floresta Aurora (com os irmãos
Teatro
Mauro Paré e Marilene Paré, entre outros) montaram juntos lá
por 1969 o Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes, no
Theatro São Pedro, tendo Aírton Marques como Orfeu.O ator
negro gaúcho Breno Melo desempenhou esse papel no
cinema em Orfeu do Carnaval, de Marcel Camus, produção
franco-brasileira. O filme ganhou Palma de Ouro em 1959 no
Festival de Cannes. Lá por 1971, ano em que surgiu o Grupo
Palmares, de Porto Alegre, lançando a data 20 de novembro, foi

Palavra de Negro - 117


118 - NEGRO em Preto e Branco

possível assistir a uma atividade teatral no Floresta em que


sobressaíam o talento de ator não burilado e o potencial de
Jorge Antônio dos Santos.
O Grupo Cultural Razão Negra iniciou como Nosso T eatro
Teatro
em meados dos anos 1970 com a dramatização do conto
Esperando o Embaixador, de Oswaldo de Camargo, montando,
na seqüência, três peças escritas e dirigidas por um componente
do próprio grupo, Jaime da Silva: E Agora, Negra? (1979) e O
Convite (já em 1980) e uma outra intitulada o It..
A década de 70 tem na poesia o trabalho de Alsina Alves de
Lima, que em 1966 já mostra um poema sobre a condição
feminina em obra coletiva, Nossa Geração, do Diretório Estadual
de Estudantes (RS). Talvez não tenha conseguido publicar seu
livro Roda d’Água
d’Água, de modo que, após a sua morte, torna-se
mais precioso o volume 6 dos Cadernos Literários do Instituto
Cultural Português, editado em Porto Alegre em 1982. Ali estão
um comentário crítico de Antonio Soares sobre a escritora e
uma valiosa coleção de 15 poemas datados: 1966 a 1981. Em
Meu Poema, de 1971, ela diz:
Sendo pobre e mulher/ e sendo negra
quero meu poema/ como quero a vida
sem cerceamentos/ sem desencontros
sem segregação.
Palavra de negra. E numa trilha em que apareceriam, dos
anos 80 ao final do século, autores como Paulo Ricardo de
Moraes, poeta e contista com experimentações no texto
dramático e na área de vídeo; Ronald Augusto, poeta inventivo,
inquiridor da linguagem, com incursões também na crítica
literária, além de compositor e intérprete musical; Maria Helena
Vargas da Silveira, com poemas e prosa vária - contos, crônicas
e outras utilizações artísticas da palavra; ou Jorge Fróes, inédito
em livro mas com poemas e contos publicados esparsamente.
Irene Santos

Oliveira Silveira

Professor graduado em Letras e estudioso da Cultura Negra. Integrante do Conselho


Nacional de Promoção da Igualdade Racial da SEPPIR e da Comissão Gaúcha de
Folclore. Poeta, tem dez livros publicados a partir de 1962 e participa de antologias e
coletâneas no País e no Exterior. Militante do Movimento Negro.
Reprodução da edição facsimilada de O EXEMPLO feita em 1992 por Oliveira Silveira
para celebrar o centenário de lançamento do jornal

Palavra de Negro - 119


120 - NEGRO em Preto e Branco

Tição n 0 1 (março de 1978)


Redação:
Edilson Nabarro, Emílio Chagas, Jeanice Viola,
Jorge Freitas, Nazaré Almeida, Oliveira
Silveira, Vera Daisy Barcellos, Walter Carneiro

Jornal Tição
Tição, publicado em 1980
Redação:
Carmem Marilu, Ceres Santos, Edilson Nabarro,
Emilio Chagas, Helena Machado, Jones Lopes,
José Vainer, Jorge Freitas, Maria Lucia, Nelcira
Nascimento, Oliveira Silveira

Arquivo Tição

Tição n 0 2 ( agosto de 1979)


Redação:
Edilson Nabarro, Jeanice Viola, Jorge Freitas,
Oliveira Silveira, Valter Carneiro, Vera Daisy
Barcellos, Vera Lopes
Como Negro
Paulo Ricardo de Moraes*

O negro é como um remo


enfrentando a maresia
enverga, entorta e não quebra
transfoma a vida num dia
é o mar em céu aberto
é a imensidão vadia.

O negro é como uma folha


que responde à ventania
balança, dança e não morre
tem a briga por mania
é lindo que só o tempo
e feito de poesia.

O negro é uma folia


de dores e sentimentos
é corpo velho salgado
é jovem querendo vento
é busca de liberdade
em canto, guerra e lamento.

* Paulo Ricardo de Moraes é escritor e jornalista.

Palavra de Negro - 121


122 - NEGRO em Preto e Branco

Teatro e Carnaval
Waldemar Pernambuco Moura Lima

O teatro, como arte, expressa os sentimentos mais ecologia, da fauna, da flora e falam das lendas, das
íntimos dos seres humanos. Sua origem, remonta aos glórias e derrotas das grandes nações indígenas.Estas
primórdios das civilizações.As liturgias religiosas, os encenações burlescas, realizadas pelas tribos
momentos de conquistas e perdas, alegrias e tristezas, carnavalescas, passam a ser a expressão mais pura
foram e são as matérias primas na construção do drama, dos sentimentos dos negros que usam as tribos e o
da comédia, da tragédia humana.A arte teatral tem, carnaval como meio de se auto afirmar e, de uma forma
portanto, o compromisso de expressar o que vem da concreta, demonstrar, sua capacidade inventiva, sua
alma simples do povo e, mesmo os autores clássicos, criatividade, seu senso estético, sua dança, sua música
renomados internacionalmente, trabalham com estes contagiante.O sucesso das tribos carnavalescas junto
sentimentos humanos para produzir suas obras de arte. ao povo, que delirava com as músicas, as danças e
A comunidade negra de Porto Alegre não poderia ficar encenações as quais, só ocorriam na época do
omissa, fora do seu processo histórico, sem desenvolver Carnaval, fez com que alguns dirigentes destas
ações ligadas ao campo da dramaturgia, da arte teatral. agremiações promovessem Festivais de Arte Popular.
As primeiras informações que nos chegam, nos dão Estes Festivais, aonde as tribos apresentavam suas
conta da presença do poeta, artista, agitador cultural e peças teatrais, com um formato de grandes shows
teatrólogo, negro Solano Trindade, criando aqui em musicais, tinham um apelo muito forte e a comunidade
Porto Alegre um grupo de ativistas culturais negros, que negra porta-alegrense participava em massa destas
iniciam apresentações de recitais poéticos em saraus nas tardes festivas que ocorriam aos sábados ou domingos
casas de família ou nas sociedades negras da época.Os no então Cinema Castelo. É importante lembrar que estas
encontros culturais tinham, como não podia deixar de tribos carnavalescas surgiram nas Casas de Religião Afro
ser, uma proposta clara de incentivar a auto-estima dos e tinham tudo a ver com o sincretismo religioso africano
negros porto-alegrenses, mostrando para a sociedade que deu origem, aqui, a umbanda.Paralelamente a estas
em geral, porém, mais especificamente para os próprios ações culturais de cunho estritamente popular, temos
negros, sua competência criadora, seu espírito informações de grupos teatrais que encenavam peças e
combativo. Usando, desta forma, a arte como meio de pequenos esquetes nas sociedades beneficentes e
contextualizar o entorno social em que viviam. bailantes da época.
Com o passar dos anos e a própria evolução da Podemos registrar, também, a tentativa de
sociedade, a ação teatral patrocinada pela comunidade profissionalização de um grupo, através da criação do
negra porto-alegrense, antes limitada aos pequenos Teatro Infantil, onde se formou uma troupe de músicos,
encontros culturais, toma uma outra dimensão e ganha bailarinos, bailarinas e cantores que partiram em
as ruas.Surgem as Tribos Carnavalescas, cujos temas excursão para os países vizinhos, Uruguai e Argentina.
enfocam os conflitos entre as diversas nações indígenas,
os casos de amor entre pajés e índias de tribos rivais.
Teatralizam, cantam, e dançam também em defesa da

Irene Santos

Waldemar Pernambuco Moura Lima

Estudioso da Cultura Negra.


Militante do Movimento Negro.
Acervo Olivia Pereira

Programa e parte do elenco da peça Orfeu da Conceição montada pelo Grupo de Teatro Novo Floresta Aurora em 1969

Acervo Eni Neves

Aplausos
em cena
aberta

26 de outubro de 1959. No palco do Teatro São Pedro,


atores negros apresentam Orfeu da Conceição, texto
poético de Vinícius de Moraes. A peça - uma tragédia em
três atos, adaptação da lenda grega de Orfeu - começa Na capa do disco de Vanja Orico, a fotografia de Breno
morna, segundo os críticos da época, mas cresce no Melo, ator gaúcho protagonista do filme Orfeu do
segundo ato com a entrada de Eni Neves (no papel de Carnaval. O filme de Marcel Camus recebeu a Palma
Clio, mãe de Orfeu). Num magnífico trabalho dramático, de Ouro no Festival de Cannes de 1959, e é um dos
Eni leva a platéia a um aplauso insistente e espontâneo clássicos do cinema franco-brasileiro
em plena cena aberta. A estreante e jovem atriz negra
iniciava naquele ano uma longa e visceral relação com
os palcos de Porto Alegre.

Palavra de Negro - 123


RECORDAR É VIVER
Nilo Alberto Feijó

Historicamente é confirmado o Entrudo


como o início do Carnaval no Brasil. Em
plena fase do colonialismo português,
até o século XVIII. Mais tarde, nos séculos
XIX e XX, com o declínio do Zé Pereira,
confirma-se um estilo de Carnaval
realizado na Europa, com a participação
das Sociedades e onde surgiriam os
préstitos que eram os desfiles de Carros
Acervo M.Noelci Homero
Alegóricos, também chamados de
“Corsos”. .
Em Porto Alegre, o Carnaval apresentou quase o mesmo
modelo e a mesma trajetória que o Rio de Janeiro, diferindo
apenas nos períodos. No século 19, despontavam com
expressivo brilho as entidades da elite com desfiles alegóricos
dos Cordões de Sociedades.
Entretanto, é preciso destacar que as sociedades que
representavam a elite porto-alegrense, não aceitavam os negros
em sua esfera de convivência e muito menos permitiam que
participassem dos ricos e pomposos desfiles realizados nas
avenidas centrais de Porto Alegre. Apesar do risco da intolerância
e a perseguição das milícias da época, - sempre mais rigorosas
para com os negros, normalmente vítimas e alvos das
brincadeiras da aristocracia,- o carnaval de rua para eles era uma
opção de divertimento tendo como alternativas a periferia, locais
como a Cidade Baixa, mais especificamente o Areal da Baronesa,
a Colônia Africana e outros considerados menos nobres por serem
zonas habitadas predominantemente por negros.
Os negros perceberam muito cedo que necessitariam criar
os seus próprios espaços, pois faziam parte de um Estado cuja
composição étnica abrigava também portugueses, italianos,
alemães, e outros grupos fechados onde eles eram rejeitados
pela cor e condição social. A idéia da organização e formação
de grupos que pudessem associar aos divertimentos a
discussão de problemas comuns, a difusão de culturas,
conhecimentos diversos e outros paradigmas aos poucos se
incorporou ao sonho de materialização de locais próprios para
exercerem suas atividades. Na verdade passaram a entender
que, se não podiam freqüentar a sociedade dos outros teriam
que construir as suas.
No ano de 1872, dia 31 de dezembro, um grupo de ,
homens e mulheres, todos negros, alguns já tendo conquistado
a alforria, criava, no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, a sua
primeira sociedade: a Sociedade Floresta Aurora. Esta não
nascia carnavalesca, mas já em 1885 participava dos desfiles
de Carnaval das sociedades de Porto Alegre.
Esta idéia serviu como exemplo e logo no ano de 1902,
também em Porto Alegre, surgia a Sociedade Bailante Satélite-
Portoalegrense. Outras viriam depois, a maioria com enfoque
social, esportivo e carnavalesco, mas muitas delas com caráter
cultural e beneficente.
As grandes sociedades como os Venezianos, Esmeralda,
Menestréis, Sociedade Germânia, Os Vagalumes e outras
também importantes agremiações, por opção ou declínio,
diminuíam suas atividades quanto ao Carnaval de rua.
Representavam, no entanto, a parte mais seleta do Carnaval
da cidade, principalmente pelos bailes que realizavam em
suas sedes ou no Theatro São Pedro. A Sociedade Floresta
Aurora, instalada em sua sede à Rua Lima e Silva (Antiga

Recordar é Viver - 125


126 -NEGRO em Preto e Branco

Olaria) número 316, participava tradicionalmente das folias de


Momo tanto no Carnaval de rua como promovendo grandes
bailes para a coroação das Rainhas.
A Satélite possuía um terreno mas ainda não tinha sede.
Realizava seus bailes no Salão Ariopa, na antiga Ilhota ou no
Theatro São Pedro. Participava dos Corsos sempre destacando
suas Rainhas.
O Carnaval passava a uma nova fase e trazia consigo os
Cordões e os Blocos Carnavalescos, que se destacavam pela
simplicidade das fantasias, o colorido das “lanternas”, a
competência das “cozinhas” e a harmonia das “estudantinas”
que acompanhavam as belas músicas feitas por compositores
consagrados como Lupicínio Rodrigues, Johnson, Caco Velho,
João Pena, Nelson Lucena, Veridiano Farias, Albino Rosa , Alberto
Martimiano e outros.
Além de alguns remanescentes, passaram também a fazer
parte desta etapa do Carnaval Cordões como os Turunas,
Tesouras, Prediletos, Chora na Esquina, Fazendeiros,
Divertidos e Atravessados, Passa Fome e Anda Gordo, Ideal
da Zona, Filhos do Sul e outros como o Zona U, Tigres e Batutas.
A maioria destas entidades não tinha o luxo e a
suntuosidade das grandes sociedades, por não estarem como
elas agregadas ao poder. O Carnaval de rua sem o fausto das
sociedades tradicionais ganhava um novo colorido, uma
condição mais democrática e mais popular. Estava se reformulando
e tinha agora, o negro como ponto de referência.
Deve ser ressaltado, também, que boa parte destas
entidades carnavalescas possuía suas sedes, ainda que
alugadas ou emprestadas, o que garantia a elas presença nos
carnavais de rua e de salão.
Nos períodos de Carnaval, alem de assistir ou participar
dos desfiles de rua, a comunidade se programava para os
bailes mais tradicionais que aconteciam no Salão dos
Prediletos,, que passou por vários endereços mas que esteve
mais presente na Avenida Protásio Alves nº 809, e que algum
tempo depois, transferiu-se para a Rua Felipe Nery na
Auxiliadora e ali encerrando suas atividades, no Salão do Rui
ou do Alípio, onde os Turunas promoviam seus Bailes e que
posteriormente foi ocupado pelos Bambas da Orgia, na
esquina da Casemiro de Abreu com a antiga Esperança, hoje
Miguel Tostes, e ainda no famoso Salão do Licurgo, situado
na Auxiliadora ao lado da Igreja de igual nome.
Foto Barbeitos/Acervo Irene Santos

Rainha do Carnaval de 1932 da Sociedade Promptidão

Recordar é Viver - 127


128 -NEGRO em Preto e Branco
Acervo Osvaldo F. Reis

Baile no Saláo do Rui em 1940

O Floresta Aurora realizava festas burlescas em seus


salões na Lima e Silva. A Sociedade Prontidão também em
seus salões na Lima e Silva nº 377. Decorridos alguns anos,
mudou para outros endereços, fixando-se mais adiante na Rua
Barão do Gravataí nº 649 e atualmente tem sede própria na
Avenida Coronel Aparício Borges, 288. Promoviam-se festas
de Carnaval no Salão Ariopa, que era um clube esportivo da
Ilhota e no Theatro São Pedro.
Mais tarde encontraríamos o Salão da Cabral, dos
Democratas na Praça Garibaldi, o Tablado montado todos os
anos pelo Clube Náutico Marcílio Dias para os Bailes de
Carnaval e cuja sede se situava à Avenida Praia de Belas,
quase esquina com José de Alencar.
O Carnaval da Capital sempre foi seguido de perto pelo
Interior do Estado. Muitas sociedades foram fundadas ao longo
dos tempos e, em alguns momentos, Porto Alegre quase foi
superada pela organização de algumas cidades do Interior.
Em Pelotas temos ainda em atividade a Sociedade Fica Aí
Pra Ir Dizendo, e a Sociedade Chove Não Molha, mas outras, já
extintas tiveram também o seu apogeu. Em Rio Grande, o Braço
é Braço, depois o Oriente e o Recreio Operário e ainda, com
enfoque mais cultural, a Sociedade Floresta Aurora, certamente
uma homenagem à veteraníssima de Porto Alegre.Bagé
encontraríamos os Zíngaros e mais tarde o Aurora Social Clube,
também uma referência à Floresta Aurora, e que por longos dez
anos produziu as grandes festividades da cidade bajeense. Em
Acervo Éder Luis Farias

Os Prediletos com seu estadarte no carnaval de 1937.Na segunda fila, o quinto da esquerda
para a direita é o Dr. Veridiano Farias, mestre ensaiador do grupo.

Arquivo Imágica

Bloco dos Tesouras com seu estandarte,


no início do século 20

Recordar é Viver - 129


130 -NEGRO em Preto e Branco
Acervo Osvaldo F. Reis
Camaquã, a Honorato Soares. Em São Jerônimo, a comunidade
encontrava na sede do Grêmio Jeronimense o espaço para os
seus divertimentos esportivos e principalmente carnavalescos.
Em Santa Maria foi constituída uma das sociedades mais
antigas do Estado, a Treze de Maio, famosa pela realização de
bailes e festividades que marcaram época. Em São José do
Norte a comunidade construiu o seu espaço ao fundar a
Sociedade Recreativa Nortense, porém, fato de significativa
importância, ocorria em um distrito do município com o nome de
Capelinha. Como havia apenas um Clube, colocava-se a
orquestra no meio do salão e esta tocava ao mesmo tempo para
os negros que dançavam em um lado e os brancos que
dançavam no outro. Vamos encontrar no Interior situações em que
a orquestra tocava em dias alternados pra uma e outra etnia.

O período de após guerra, especialmente em Porto Alegre,


produziu algumas transformações no carnaval de rua. Os
grandes Cordões foram cedendo lugar a grupos menores.
Com o tempo surgiram as Tribos Carnavalescas.
Participantes do Bloco Não Vai Prá Ti Os Blocos Humorísticos e de Sociedades mudaram suas
com seu estandarte, em 1937
estruturas e propostas. Os bailes de carnaval das Sociedades,
no entanto, permaneceram com o mesmo gás, até o aparecimento
das Escolas de Samba.
Não há dúvidas que as Escolas de Samba, pelas suas
peculiaridades, conquistaram a comunidade carnavalesca,
colocaram-se numa posição hegemônica e iniciaram, embora

Acervo Osvaldo F. Reis

Não Vai Prá Ti em 1940


Acervo Socedade Floresta Aurora

Placa com o logotipo da


Sociedade Floresta Aurora

Rainha do Carnaval
de 1936

Acervo Berenice Silva e Silva Acervo João Augusto Santos Silva

Baile Carnavalesco na sede da Floresta Aurora ainda no Bairro Cristal Grupo na sede campestre do Cristal nos anos 50

Acervo Alpheu C.Batistta Jr. Acervo Berenice Silva e Silva

Carnaval de 1973

Grupo em baile na Sede da Floresta Aurora nos anos 50


Recordar é Viver - 131
132 -NEGRO em Preto e Branco

que timidamente, um processo de entrelaçamento étnico. Em


conseqüência, deve-se a elas e evidentemente a outros fatores
o declínio dos Bailes de Sociedade. Não vemos hoje o
estardalhaço da mídia destacando e anunciando os bailes
tradicionais das sociedades nem o entusiasmo e os preparativos
para as noites de Momo que aqueciam as pequenas e médias
sociedades. Em contraposição, a mesma mídia hoje investe
pesado nos desfiles de Escolas de Samba e acaba com isto
produzindo um êxodo expressivo de carnavalescos para
outras praças como Santa Catarina, São Paulo e especialmente
o Rio de Janeiro, além, é bem verdade, de outras concorrências
como o Axé Baiano, o Frevo Pernambucano e outras culturas.
Os Bailes de Carnaval perderam para as passarelas. É
tempo porém de retornar à poesia e o encanto dos tempos
de Ala Laô, Chiquita Bacana, Quem Sabe Sabe e outras. Esta
iniciativa, cabe especificamente às nossas Sociedades.

Irene Santos

Nilo Alberto Feijó

Compositor, pesquisador e estudioso da Cultura do Carnaval e da História das Escolas


de Samba de Porto Alegre. Presidente da Associação Satélite Prontidão. Foi presidente
do Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra /CODENE-
RS. Julgador de Carnaval de Porto Alegre.
Arquivo A.Satélite Prontidão

Logomarca da Associação
Satélite Prontidão
Arquivo A.Satélite Prontidão

1956 - inauguração da Sede Própria da Associação Satélite Prontidão

Acervo A.Satélite Prontidão

Acervo Eloy Dias dos Angelos

Miss Brotinho 1969 e 1970


Acervo Maria Regina Borges Pinto

“Miss Simpatia” no Clube Marcilio Dias

Recordar é Viver - 133


134 - NEGRO em Preto e Branco
Arquivo Tição Acervo Renato Costa

Fantasiadas no carnaval da Colõnia Africana no início do século 20

Acervo Eder Luis Farias

1929 - Rainha do Bloco dos Tesouras

Acervo Osvaldo F. Reis

Integrantes dos Turunas nos anos 30 1954 - Bloco Não Vai Prá Ti
Acervo Irma Nascimento

Fantasiadas - carnaval de 1935

Recordar é Viver - 135


136 -NEGRO em Preto e Branco

Seu Pretinho, o Moleque Tião

Júlio Ferreira, que, na juventude, também foi chamado de


Moleque Tião, nasceu em 10 de dezembro de 1921, filho de
Possidônio Ferreira e Doralice Monteiro Ferreira. Seu pai
integrava tradicional família negra que residia na Rua Joaquim
Nabuco, no bairro Cidade Baixa.
Pretinho nasceu nas imediações da Colônia Africana (atual
bairro Rio Branco). Jovem, passou a residir no bairro Auxiliadora/
Mont’Serrat. Por duas décadas - 1940 a 1960 - ele ocupa o
cenário social promovendo várias festas na Capital e nos
salões da Grande Porto Alegre. Deixou também sua marca na
organização de tradicionais piqueniques nos campos da Vila
Jardim, Três Figueiras, Passo do Feijó.
Os mais antigos, ligados ao futebol, vão lembrar dos
torneios que eram disputados nos campos de várzea da
Cidade, especialmente daqueles que aconteciam em pleno
dia de Natal. E, mais ainda, das competições futebolísticas
realizadas nos campos do Rio Guaíba, no bairro Navegantes.
Pretinho foi, em sua época, um animador social. Promovia
bailes nos movimentados e animados salões da cidade: Salão
dos Turunas, Salão do Rui, Salão Natal e outros que eram
animados por músicos da mais reconhecida competência.
Carnavalesco, fundou e desfilou em muitas entidades:
Grupo Carnavalesco Não Vai Prá Ti, Olho de Lá, Ai Vem a
Marinha, Fidalgos e Aristocratas, União da Vila do IAPI .
Desfilou em blocos humorísticos e ficou conhecido com a
personagem “Nega Maluca”.
Nos últimos anos de sua vida integrou ativamente a
Velha Guarda, da Academia de Samba Praiana, honrando
as cores da escola em seus trajes, nos quais o verde e rosa
eram uma constante.
Faleceu em 19 de novembro de 1999, perto de completar
78 anos idade, após viver uma vida intensa, casado com
Dona Corália Marta dos Reis Ferreira, teve 4 filhos, 10
netos e 2 bisnetos.
Tenda de lanches no carnaval do bairro Mont’Serrat

Fotos do acervo de Osvaldo F. Reis

“Nega Maluca” com o Rei Momo Vicente Rao

Recordar é Viver - 137


O ENREDO DO NOS SO SAMBA
Claudinho Pereira

“O Brasil é um país mestiço, com algumas ilhas


negras”. (Glória Moura, no livro “Os herdeiros da noite”)

A música popular brasileira sempre


desmentiu os temores de perda da
nossa identidade nacional.
A “invasão” da produção cultural estrangeira, embalada por
tangos, boleros, guarânias, fox-trotes e o que mais chegasse
pelas ondas do rádio, o berço esplêndido do Brasil, nunca deixou
os seus filhos sem trilha sonora de choros, maxixes, emboladas,
baiões - batuque das nossas raízes mestiças. “A autenticidade”
nacional, como afirma o historiador inglês Eric Hobsbawn, é
construído “essencialmente pelo alto”, mas deve também ser
analisada “de baixo, ou seja, em termos das suposições,
esperanças, necessidades, aspirações e interesses das pessoas
comuns, as quais não são necessariamente nacionais e menos
ainda nacionalistas”. Ou, como escreve Hermano Vianna, em seu
livro “O mistério do samba”, não é porque ficou definido que o
samba é a música brasileira por excelência, o “nosso” ritmo
nacional, que todo brasileiro vai se identificar com essa definição.
Ele pode continuar pelo resto da vida preferindo forró, vanerão e
nunca ouvindo samba.
Como lembra Hobsbawn, não podemos presumir que,
para a maioria das pessoas, a identificação nacional - quando
existe - exclui ou sempre é superior ao restante do conjunto
de identificações que constituem o ser social. De novo Vianna:
“a homogeneização nunca é perfeita a ponto de excluir toda
a heterogeneidade”. Assim, é de se perguntar: e o nosso
samba-enredo, ligação negra com os nossos antepassados,
Sergio “Japa” Sakakibara
onde fica? Será parte desta historia toda: “o samba agoniza,
mas não morre” - ensina um verso de Nelson Sargento. O
samba é matriz da música popular brasileira e sua corrente
principal. Reza a lenda que o vocábulo teria nascido do
encontro de dois verbos da língua nagô/iorubá: “san” (pagar),
“gba” (receber). O pesquisador (e sambista) Nei Lopes, em seu
livro “Sambeabá”, confirma que o vocábulo é sem dúvida
africaníssimo – mas não iorubano, e sim legitimamente banto.
Buscando comprovar a origem do samba, veremos que o
termo foi corrente também na região do Prata, como “semba”, para
designar o candômbe, gênero de música e dança dos negros
bantos da região de los hermanos. Não quero fazer uma tese
sobre a palavra samba, tenho mais perguntas que afirmações.
Aqui, minha principal indagação diz respeito às características
próprias do ritmo do samba-enredo de Porto Alegre.

Acervo Vera Daisy Barcellos

Afinal, por que o samba-enredo no Rio Grande do Sul é


mais acelerado do que o do Rio de Janeiro e de outras regiões
do País? Será influência da cultura dos imigrantes alemães ou
italianos, impondo um ritmo de marcha? Ou será herança de
alguma cultura africana específica, conservada pelos africanos
que chegaram escravizados ao sul do Brasil? Mas, se é um
critério geográfico ou não, pouco importa.
Certa vez, recebendo em Porto Alegre o grande mestre de
bateria carioca Marçal, víamos e ouvíamos o desfile das escolas
de sambas da Cidade quando percebi que ele ficou encantado
com o ritmo apresentado na avenida. Burramente, falei para o

O enredo do nosso samba - 139


140 -NEGRO em Preto e Branco
Sergio“Japa” Sakakibara

mestre que o samba das nossas escolas deveria ter uma


batida mais lenta, menos acelerada - como a das escolas do
Rio de Janeiro. Marçal me olhou com um ar estranho e
respondeu: “Aqui, o samba-enredo é lindo no ritmo e tem uma
cadência que eu nunca tinha ouvido. E esta é a beleza do
samba da sua terra; tem um diferencial do samba ouvido no
resto do País. O samba é isso: assim como o jazz, o samba
tem variações em cima de seu ritmo”.
A partir daquele dia, passei a ouvir o nosso samba com
outros olhos, digo ouvidos. Samba-enredo é uma modalidade
de samba que consiste em letra e música criadas a partir do
assunto escolhido como tema de alguma escola de samba (a
nossa grande ópera popular). E quando, em 1997, fui realizar
o documentário “Ilha Negra”, sobre o maçambique na
comunidade negra de Osório, no litoral norte do RS, pude
observar que ali havia uma verdadeira resistência negra, o
ritmo ali estava preservado, garantindo sua identidade cultural
através de festas e congadas (que existem, resistindo, em todo
Brasil – como verdadeiros quilombos).
A dança das congadas, a batida dos pés negros no chão
batido, tinha a sonoridade acelerada das nossas escolas de
samba, exemplo da característica sonora do nosso samba-
enredo, em virtude da nossa forte herança africana, no som
dos tambores e nos gestos dos corpos que dançam. A
travessia da calunga grande (o mar) trouxe a religião na alma,
e o ritmo no sangue.
Sergio “Japa” Sakakibara
A partir dali, passei a amar o nosso carnaval - como o
Cláudio Brito (o branco mais negro que conheço). Acelerado
sim, o samba-enredo gaúcho é deste jeito graças aos orixás
e ao talento dos nossos ritmistas, como Neri Caveira, Caloca,
Irajá e Mestre Nilton, e às composições de autores como Nilo
Feijó, Wilson Nei, Leleco Telles, Bedeu, Alexandre e tantos
outros de igual talento.
Certa vez, conversando com Nei Lopes, ele me disse que
era necessário que os nossos sambistas assumissem a tarefa de
falar sobre o samba - e creio que nós gaúchos precisamos falar
sobre o nosso samba-enredo para valorizá-lo, mostrá-lo ao Brasil
e ao mundo. Para mostrar aos contaminados pela massificação
cultural emburrecedora e discriminatória, que gaúcho tem samba
- na letra, no pé e no ritmo.
Só não podemos cair no polo oposto, uma armadilha que
terminou dizimando nossas tribos carnavalescas - outra
característica do carnaval popular de Porto Alegre (embora
algumas continuem resistindo heroicamente). Fica a tarefa.
E aqui vai também a saudação ao Charuto, nosso grande
folião do carnaval, e ao inesquecível Vicente Rao. Além de um
brinde para o carnaval da Rua Santana, para a “Rua do
Perdão” e para as muambas.
“Quem samba fica/quem não samba vai embora”.

Compadre, laroie.

“Diz-me o que cantas... /direi de que bairro és...”.


(Raul Pederneiras, início do século XX)

Irene Santos

Claudinho Pereira

Documentarista, radialista e DJ em Porto Alegre.

O enredo do nosso samba - 141


CHAMA QUE NÃO SE APAGA
Joaquim Lucena Neto

Pobre carnaval...
O tempo passa, a luta é constante como
a própria realidade da qual participa. A
classe dominante é camaleônica,
ideologicamente, e impõe seus interesses.
Sempre foi assim ao longo dos anos. O
estudo do Carnaval nos propicia o
aflorar de passagens e trajetórias da
etnia negra em nossa Cidade.
Arraiais diversos, ligados ao Carnaval, mostram,
geograficamente, o seu território urbano. A Colônia Africana, hoje
bairro Rio Branco, o Caminho do Meio, hoje bairro Bom Fim, a
Cidade Baixa e a Ilhota, hoje Areal da Baronesa; Joaquim Nabuco,
Venezianos, Praça Garibaldi e, mais recentemente ,os bairros
Santana, Partenon, Cavalhada, IAPI, Mont’Serrat, São José, Jardim
Botânico organizavam os coretos.
Mas tudo começou com a etnia branca, principalmente,
quando os açorianos vieram florescer o Porto dos Casais. Na sua
bagagem trouxeram, também, um belíssimo tesouro cultural: o
Entrudo. Um legado que cresceu, dividiu opiniões e cooperou
para que em 1837 ocorresse sua proibição.
Por volta de 1875, um Carnaval requintado e luxuoso
Acervo Nilton V .Amaral deslumbrava e alcançava seu apogeu. Sociedades carnavalescas
- Esmeralda e Venezianos -, cada uma delas com mais de 25
carros enfeitados e cenografados, desfilavam nas ruas ornamentadas
de flores e lanternas de papel. Este foi, com certeza, um evento
majestoso e de imaginável alegria. Em 1886, manchetes de
revistas, jornais e folhetins da época retratam a anemia folieira do
Carnaval, com os seguintes dizeres:
“Forças ocultas levam a um visível declínio o Carnaval porto-
alegrense. Os conservadores acabam com o Carnaval”.
No final do século desaparecem as sociedades carnavalescas.
É preciso, também, pinçar da memória o século XX. Mais
precisamente 1939, quando da fundação da primeira escola de
samba em Porto Alegre denominada “Loucos de Alegria”. A idéia
trazida do Rio de Janeiro por Nelson Lucena (violonista) e seu
irmão Joaquim Lucena Filho. Juntaram-se a estes: Valdemar
Lucena, Oswaldo e Mário Barcelos e Heitor Barros. No ano
seguinte, 1940, a família Lucena deixa esta Escola e funda uma
outra, a Escola de Samba “Gente do Morro”. A “cariocarização”
do nosso Carnaval tinha seu início, mas entremeando esse
período, ali pelos anos 40, surgem as tribos carnavalescas que
tiveram na década de 60 um esplendor esfuziante.
A Academia de Samba Praiana no Carnaval de 1961 traz
inovações de desfile inspirado na folia do Rio introduzindo no
Carnaval gaúcho a estrutura de uma escola de samba. Em 1972 a
Academia de Samba Relâmpago, idealizada por Joaquim Lucena
Neto, é uma escola igual às do Rio de Janeiro. Traz para Porto Alegre
um novo ritmo, introduzindo o repenique e o maracanã e propondo
diversas modificações para o nosso Carnaval: direção empresarial,
quadras de ensaio, gravação de samba-enredo, retirada dos
instrumentos de sopro, grandes bailes e participações em projetos
sociais. Essa escola fez um grande evento com as escolas cariocas
Mangueira, Portela, Império Serrano, Imperatriz e Salgueiro que a
batizam no estádio Olímpico. Em 1973, a Relâmpago vai ao Rio de
Janeiro, apresenta-se no programa Flávio Cavalcanti e recebe as
bandeiras das escolas co-irmãs cariocas.
Ao final do século XX, Bambas da Orgia e Imperadores polarizam
a preferência popular. Enfim, vamos viver o presente século XXI.
Vamos voltar à alegria de outrora de um carnaval pomposo, vamos
construir a pista de eventos (sambódromo). Envaideço-me, lacrimejo
de alegria, mas, é no Porto Seco... lacrimejo de tristeza. Lampejos
na memória lembram a religião afro perseguida e, depois, por
interesses políticos, sendo liberada. Nessas casas, o samba era
acolhido e fortificou-se na clandestinidade. Era difícil para as
autoridades perseguidoras dos sambistas diferenciá-los na roda de
samba ou nas rodas de orixás.

Chama que não se apaga - 143


144 - NEGRO em Preto e Branco

Hoje atiraram as cinzas do Carnaval no Porto Seco, esqueceram


de tirar as brasas. Tenho certeza de que elas acenderão a chama
da cultura. Esta nunca mais se apagará e o sambista poderá
cantar “... A vida só tem valor com o samba/o povo sorrindo/a
avenida se abrindo”. Mas sempre foi assim....pobre Carnaval!

Acervo Joaquim LucenaNeto

Primeiro titulo dos Acadêmicos da Orgia em 1971. À esquerda Joaquim Lucena Filho

Irene Santos

Joaquim Lucena Neto

Advogado. Militar da Aeronáutica. Mestre de Bateria Diretor de Harmonia, compositor


e incentivador do Carnaval de Porto Alegre
Acervo José Laurindo Lopes Acervo Irma Nascimento

1954 - Rainha do Carnaval do Bambas da Orgia

Hemetério Barros, um dos


fundadores do Bambas da Orgia

Acervo Adão A.de Oliveira

Desfile dos “Intocáveis”


em 1977 na Avenida
João Pessoa. Tocando
o gongo, Adão Alves de
Oliveira, o seu Lelé

Chama que não se apaga - 145


146 - NEGRO em Preto e Branco
Acervo Julio J Nnes

Sociedade Carnavalesca Imbrutus nos anos 40

Acervo Osvaldo F. Reis Acervo Renato Costa

1959 - Ranha do
Carnaval da Rua
Leopoldo Bier com
Coreto e Rainha do Carnaval de rua na Mariland em 1964 São Manoel
Acervo M.Regina B.Pinto Acervo M.Helena Montier

1975- Maria Helena Montier com o Rei Momo


Miudinho.Maria Helena foi intérprete dos sambas da
Imperadores e da Realeza e cantora de vários
conjuntos de sucesso nos anos 70
Acervo Renato Costa

Fidalgos e Aristocratas recebem a taça do


Carnaval de 1975

Acervo M.Regina B Pinto

1957 - Bambas da Orgia

Acervo Dirney A. Ribeiro

Alegoria e integranes do Aí Vem a Marinha 1967 - Trevo de Ouro desfila com enredo Brasil Império

Chama que não se apaga - 147


148 - NEGRO em Preto e Branco

Acervo M. Noelci Homero Acervo Lúcia Regina Brito Pereira

Correndo para chegar a tempo de


assistir o desfile da Rua Santana

Detalhe da platéia de um desfile de Carnaval no bairro Santana nos anos 50

Lista das ruas onde aconteceram os desfiles do Carnaval de Porto Alegre, na memória do
carnavalesco Érico Rosa Machado, da Academia de Samba Praiana:
1949 - Praça Senador Florêncio (Praça da Alfândega)

1951 - Rua do Arvoredo, atual Fernando Machado

1953 - Rua General Bento Martins esquina com Rua Fernando Machado
1955 - Praça da Alfândega

1956 - Rua da Margem do Arroio, hoje Rua João Alfredo

1960 - Avenida Borges de Medeiros esquina com a Rua da Praia (Esquina Democrática)
1962 - Avenida Presidente Franklin Roosevelt

1963 - Avenida Borges de Medeiros

1965 - Avenida João Pessoa

1970 - Rua João Alfredo

1971 - Avenida Loureiro da Silva conhecida como Avenida Perimetral

1980 - 2003 - Avenida Augusto de Carvalho


Seu Lelé
e as histórias de um rei negro
As histórias contadas por Seu Lelé sobre o Carnaval da década
de 40, especialmente do Areal da Baronesa, já valeram importantes
pontos no mundo acadêmico. Seu Lelé, que é Adão Alves de
Oliveira, 80 anos, exibe sempre com disfarçado orgulho a
publicação Rio Grande do Sul, Brasil, Etiópia: os negros e o
Carnaval de Porto Alegre nas décadas de 30 e 40. Uma dissertação
apresentada como requisito à obtenção de grau de mestre em
História pela Ufrgs assinada por Iris Graciela Germano.
Neste documento, em diferentes páginas, Seu Lelé, que foi o
primeiro Rei Momo Negro do Carnaval de Porto Alegre, serve de
fonte para explicitar o diferencial do carnaval do Areal da Baronesa
e da Rua Miguel Teixeira, duas bases marcantes da folia momesca
da Cidade Baixa.
Seu Lelé conta que a escolha do Rei Momo Negro nasceu de
uma aposta entre amigos feita em fevereiro de 1948. Com uma
coroa de papelão e um pano branco amarrado pelo corpo, Lelé
foi sagrado rei do Carnaval do Areal da Baronesa. No primeiro ano,
o título não passou de uma brincadeira para testar a coragem
daquele que se vestiria de rei. No ano seguinte, 1949, foi para valer.
Consagrado soberano, Lelé teve uma chegada apoteótica no
bairro: ele e sua corte (com apoio financeiro dos moradores)
pegaram um barco na Avenida Praia de Belas, passaram pela
Travessa Pesqueiro e desceram, sob o rufar dos tambores, na
Ponte de Pedras. Dalí seguiram para o coreto montado entre as
ruas Barão do Gravataí e Baronesa do Gravataí. “E a festa pegou
com a batucada do Nós Os Democratas, Grupo do Marquinhos,
X do Problema, Clarim, entre outros”, lembrou.
Seu Lelé dividiu o reinado do bairro até 1952 com outro Rei
que, também, marcou o Carnaval do Areal da Baronesa, o branco
Alfredo Raimundo Macalé que dominava o reduto da Rua Miguel
Teixeira. Mas a vida não foi só folia para Adão Alves de Oliveira. Em
sua carreira profissional o registro de porteiro de teatro, onde fez
ponta em algumas peças, o trabalho no extinto Banco Nacional
do Comércio e na Livraria do Globo e muitas outras andanças.
O apelido Lelé foi herdado dos campos de futebol, onde
mostrou habilidade e talento nas equipes do Nacional, depois
Força e Luz, Cruzeiro e por último o Flamengo, de Caxias do Sul.
Hoje, aos 80 anos, Seu Lelé se queixa das rasteiras que a memória
lhe prega, mas, organizado, soube guardar sua história de vida nas
Acervo Adão Alves Oliveira muitas fotos e reportagens feitas com ele.

Chama que não se apaga - 149


150 - NEGRO em Preto e Branco

Carlos Alberto Barcellos, o Roxo


O porto-alegrense Carlos Alberto Barcellos herdou do
padrasto o apelido - Roxo - que o tornaria conhecido nos
clubes de futebol, nas escolas de samba, nos conjuntos
musicais e na vida cultural de Porto Alegre e do Estado.
Nascido em 5 de novembro de 1941, ele cresceu
embalado pelos acordes musicais do samba que “rolava”
na Ilhota, Cidade Baixa e, mais especificamente, no Areal
da Baronesa. Era tempo de jogo de bola, de batucada em
lata de banha e de couro de gato virando tamborim.
O menino cresceu, virou homem e sua trajetória de
vida acabou aos 47 anos na fria manhã de 1º agosto de
1989. Hoje, como ontem, seu nome ainda circula de boca
em boca numa lembrança de quem abriu algumas
significativas fronteiras para a comunidade negra gaúcha
e porto-alegrense. Foi um tempo curto de existência para
quem fez muito.
O cidadão Carlos Alberto Barcellos, o Roxo, foi um
autoditada por excelência. De bem com a vida, fez dela a
sua grande escola. Em seu currículo, o Carnaval vai estar
sempre presente. Na folia carnavalesca exerceu quase
todas as funções. Dono de um ouvido privilegiadíssimo,
marcou presença como mestre de bateria, ensaiador de
“beleza” (alas), foi presidente e conselheiro da
Imperadores do Samba. Não ficou apenas na Vermelho
e Branco: dividiu seu conhecimento pela Academia de
Samba Praiana, Bambas da Orgia, Acadêmicos da Orgia
e pelo bloco carnavalesco “Prá Que Tristeza”.
Espalhou, também, sua energia pelas cidades do
Interior: Pelotas, Uruguaiana, Santa Maria, Campo Bom,
Taquari, São Leopoldo, onde a folia reinava soberana. Em
todos os lugares por onde passou deixou a marca de sua
luta permanente pelo respeito e reconhecimento do
samba e do carnaval como cultura popular e afro-
brasileira. O futebol também o encantou. Muitos dos seus
amigos o apontam como um grande talento no trato com
a bola nos clubes de Porto Alegre, Interior e fora do Estado.
Roxo não foi apenas sinônimo de Carnaval. Ao liderar
o conjunto musical “Café Som e Leite”, na década de 70,
estimulou o surgimento de inúmeros outros conjuntos que
marcaram época em Porto Alegre. Foram grupos de
Acervo Vera Daisy Barcellos
samba que romperam o círculo fechado das casas noturnas, embalaram festas em
clubes tradicionais da cidade e abriram espaços de manifestação não restrita ao
Carnaval, revelando assim, grandes nomes da música gaúcha.
Na universidade da vida, Roxo ganhou diploma de jornalista. E como cronista
em Zero Hora criou espaços para a comunidade negra que passou, como nunca,
a ver seus nomes e suas atividades registradas num jornal de grande circulação.
Em sua “Ala do Roxo”, fez folclore, centralizou informações e polemizou. Do jornal
se alçou às emissoras de rádio e à televisão. Como comunicador da Rádio
Princesa, onde mantinha o programa “Tarde de Sucesso” - antes havia passado
pela Rádio Gaúcha - abriu os microfones para o samba e para todos os assuntos
que envolviam a população afro-brasileira do Estado.
Além de comunicador, Roxo buscou a integração e o intercâmbio com
sambistas cariocas e paulistas trazendo, pela primeira vez, para Porto Alegre nomes
como Aroldo Melodia, Bebeto, Luís Melodia, Neguinho da Beija Flor, Alcione, Leci
Brandão, Marquinhos Satã, Reinaldo. Empreendedor por natureza, foi, também,
responsável por uma série de promoções e eventos que mexeram com a vida
cultural de Porto Alegre, sendo o maior deles o Samba Sul.
Carlos Alberto Barcellos, o Roxo, é nome da pista de eventos do Complexo
Cultural Porto Seco, como antes no Carnaval da Avenida Augusto de Carvalho. Esta
denominação foi aprovada na sessão solene realizada no dia 09 de agosto de
1989 na Câmara Municipal de Vereadores, oito dias após a sua morte, num
reconhecimento por tudo o que fez pela cultura do povo gaúcho.

Chama que não se apaga - 151


CANTANDO PRÁ
ANTANDO PRÁ SUBIR
SUBIR
Silvia Abreu

A música teve um papel importante na


ascensão social do negro em Porto Alegre,
tornando-se impossível dissociá-la da
história deste povo.
Aliviando a rudeza do trabalho escravo, a música manteve viva
a noção de pertencimento, preservando o vínculo com a Mãe África,
e garantindo sua identidade cultural. Cantando, os negros
exorcizavam seus medos e reverenciavam seus mitos. Ao som de
tambores e atabaques, emprestavam seus corpos, que, “cavalos”,
serviam de suporte para a passagem dos orixás durante as
cerimônias religiosas. Findo o ritual, cantavam para que os espíritos
“subissem”. Daí a expressão “cantar prá subir”, que também
descreve o esforço de superação das adversidades cotidianas, fato
que se aplica, plenamente, à luta histórica dos afro-brasileiros por
justiça e dignidade.
No período colonial, escravos e negros livres constituíram
a maior parte dos conjuntos instrumentais atuantes em
funções teatrais, religiosas e festivas em geral. No século
XIX, o emprego de escravos como músicos tende a diminuir,
mas não desaparece, conforme observa Maria Elizabeth
Lucas, no artigo Classe Dominante e Cultura Musical no RS:do
amadorismo à profissionalização: “ ( . . . ) e x- e s c r a v o s e
mestiços livres continuam a predominar como profissionais de
música em diversas regiões do País, e o Rio Grande do Sul
Acervo Zilah Machado
não fugia a isto”.
Arquivo Imágica
Um bom exemplo é o maestro Joaquim José de Mendanha,
que foi mestre da capela da catedral de Porto Alegre (1850-
1885) e exerceu a função de regente da maioria das festas
religiosas, espetáculos teatrais e saraus. É dele a autoria da música
do Hino Riograndense, encomendada pelos farroupilhas.A
partir da promulgação da Lei Áurea, em 1888, começaram a se
formar os primeiros redutos de negros em Porto Alegre.
A região escolhida ficava entre os atuais bairros Rio Branco
e Bonfim, e foi batizada de Colônia Africana. Nesta região, os
moradores realizavam suas festividades religiosas, as quais
atraiam a atenção da população do centro da cidade, conforme
descreve o cronista Achylles Porto Alegre: “(...) Nos dias de folia,
já de longe se ouviam a melopéia monótona do canto africano
e o som cavo de seu originalíssimo tambor. (...) O batuque
prosseguia pelo dia e pela noite adentro (...) Não havia, porém,
algazarra. O africano não grita. Era a melopéia, em coro, e ao
som compassado do tambor. (...) Havia também os batuques
ao ar livre. (...) dos mais populares era o do Campo do Bonfim,
Maestro Mendanha em frente à capelinha então em construção. Cada domingo que
Deus dava era certo um batuque ali, e o interessante é que
muita gente se abalava da cidade para ir ver a dança dos
negros”. (FARIA, 2001).
Acervo Sirmar Antunes O nascimento dos ranchos, como os Benguelas, Os
Baianos e Os Moçambiques, ainda no final do século XIX,
favorece a inserção dos negros no cenário musical porto-
alegrense. O músico Hardy Vedana observa, no entanto,
que, “muito mais do que o rancho, será o jazz, pela
diversificação dos instrumentos, que oferecerá maior
oportunidade para a demonstração do talento e criatividade
musical dos músicos negros (VEDANA, 1987). Acrescenta
que este estilo representou uma possibilidade para a
Violonista nos anos 40 independência financeira por meio do trabalho autônomo.
O autor ressalta, ainda, que será o jazz que vai abrir as
portas dos clubes, uma vez que estas associações antes não
aceitavam negros. Fotos do início da década de 20 mostram
a presença de negros na recém fundada Orquestra Sinfônica
de Porto Alegre. No jazz, e não somente neste estilo, dois
Acervo Éder L. Farias nomes se destacaram: os saxofonistas Marino dos Santos
e Paulino Mathias, que, por cerca de quatro décadas,
atuaram em vários grupos, entre eles a Jazz Band Espia Só.
Com o surgimento do rádio, um promissor mercado de
trabalho se abre, oferecendo aos artistas negros possibilidades
de mostraram seu talento. O período conhecido como Época
de Ouro do Rádio, compreendido entre o início dos anos 30 e
o final dos 50, foi o mais importante, destacando-se nomes
Cantando prá subir - 153
154 -NEGRO em Preto e Branco

como os cantores Bruno Thomas, Zé Carlos, as cantoras


Jazz em Porto Alegre/ H.Vedana
Horacina Corrêa, Carmen Del Campo, Dalila, Branca de Neve,
Maria Helena Andrade, Lourdes Rodrigues e Zilah Machado.
Lupicínio Rodrigues foi o nome que pontificou nesta época.
Como compositor ainda é o músico gaúcho mais significativo
na história da música popular brasileira. Ele também marcou
presença como animador da noite, apresentador de programas
de rádio e embaixador do samba e da boemia.
Um fato novo surge nos início dos anos 60. O advento da
televisão retira o espaço do rádio como mercado de trabalho
e palco de atrações musicais. A televisão conquista o grande
público e desperta o interesse dos patrocinadores. Na
programação musical das rádios, o disco substituiu os
Horacina Corrêa grandes elencos. A nova mídia, entretanto, não ofereceu a
todos igual oportunidade. Os músicos negros, em maior
parte, não foram acolhidos por estarem em desacordo com
HORACINA CORRÊA o padrão estético imposto por esse novo veículo de
Um nome que brilhava em 1936,
em plena Época de Ouro do rádio, comunicação. Começa aí, um gradual e contínuo processo
era Horacina Corrêa, a soberana dos de invisibilidade do negro na televisão.
programas de auditório. Dona de
uma voz potente que dispensava, O músico João Augusto Santos Silva, o Caco, coordenador
muitas vezes, o microfone, ela fazia
sucesso. Integrou vários conjuntos do grupo afro Odomodê, considera que os anos 50, 60 e 70
musicais e no carnaval se destacava foram pródigos em criatividade, principalmente para Porto
como uma das principais intérpretes
do bloco Turunas. De Porto Alegre
Alegre, que vivia, ainda, os ecos da sonoridade proporcionada
foi para o Rio, onde fez diversos pelos blocos carnavalescos originários dos redutos populares e
shows e participou de filmes feitos concentradores da população negra. “Era a musicalidade
pelos estúdios Cinédia e Atlândida.
feita por pessoas que encontravam nesse meio a oportunidade
de mostrarem o seu talento”, salienta.
A década de 70 também será importante pelo surgimento
de novos grupos musicais. “O tom reivindicatório presente nas
letras da música negra norte-americana influenciam o samba,
alterando seu ritmo, dando origem ao chamado samba/swing
ou o samba-rock, em Porto Alegre”, afirma Caco. Esta
mudança musical, segundo ele, é bem representada pelo
grupo Pau-Brasil (Bedeu, Leleco Teles, Alexandre, Lequinho,
Nego Luis e Cy) e pelo “guitarreiro” Luis Wagner. A partir dessa
proposta, que ganhou o Brasil graças ao trabalho feito por
Bedeu e companhia, os compositores negros “começam a dar
preferência à batida de raiz africana, fonte de múltiplas
diversidades sonoras e criativas”, conclui.
Os anos 70 também marcam o surgimento de conjuntos
musicais, quase pequenas orquestras, influenciados por similares
do Rio de Janeiro e São Paulo. Estes grupos, presença constante
nos bailes de entidades negras, eram contratados para animar os
bailes dos grandes clubes e sociedades porto-alegrenses.
Acervo Neura R.S.Silva
No repertório, imperavam sucessos da MPB e da música
internacional, com destaque para o samba. Entre estes grupos,
estão “Café,Som e Leite”, “Musical Porto Alegre”, “Evolução” e
“Samba Asfalto Show”.
A década de 70 também é marcada por uma profunda
renovação na música brasileira e seus reflexos são percebidos
na Capital. O romantismo boêmio dá lugar à modernidade.
Surgem os festivais universitários, que expressam uma
sonoridade tipicamente urbana. Estão em atividade Giba-Giba,
Neri Caveira, Loma, Lúcia Helena.
Ainda hoje, a música é uma espécie de salvo-conduto para
as populações marginalizadas que não têm acesso aos bens
culturais. Ainda hoje, a música é instrumento imprescindível
de luta e de pressão social. Ainda é ela que permite a
superação dos revezes cotidianos e faz crer que tudo pode
mudar. Os sons dos tambores do passado ecoam no ar,
reverberando o clamor ancestral por justiça e dignidade. Ainda
é preciso cantar prá subir...

Neura da Silva no dia do seu recital de


piano no Theatro São Pedro em 1953

Irene Santos

Silvia Abreu

Jornalista com atuação em veículos da Capital, Interior do Estado e centro do


País. Produtora cultural, recebeu, em duas ocasiões, o Prêmio Açorianos de
Produção em Artes Cênicas. Pós-graduada em Administração e Organização de
Eventos/ Faculdade de Turismo e Hotelaria Senac/SP. Integra a executiva do Núcleo
dos Comunicadores Afro-brasileiros do Sindicato dos Jornalistas/RS.

Cantando prá subir - 155


156 -NEGRO em Preto e Branco

Álbum de retratos
Jazz em porto Alegre/ H.Vedana
JAZZ BAND ESPIA SO
O Regional Espia Só, que depois seria a Jazz Band Espia Só,
foi a primeira banda de jazz a surgir em Porto Alegre, em 1923,
em plena febre das jazz bands. Liderado pelo flautista Albino
Rosa, o grupo era formado apenas por músicos negros.
Integraram a banda, Veridiano Farias, Binga, Severo, Heraldo
Alves, Marino dos Santos e Paulino Mathias. A Jazz Band Espia
Só era presença marcante nas festas dos clubes Satélite e
Prontidão e ainda animava bailes no Interior. Manteve-se em
atividade até o final de 1932.

Deste grupo, dois nomes se destacaram: Marino dos Santos e


Paulino Mathias. Virtuose no saxofone, o compositor Marino
dos Santos aprendeu a tocá-lo sozinho e ganhou fama nos
Jazz Band Espia Só bailes da Colônia Africana. Na década de 30 foi para o Rio de
Janeiro, onde virou sargento-músico aprovado em concurso.
Deu baixa no quartel, retornou para o Sul e acompanhou a
L UPICÍNIO R ODRIGUES evolução musical de Porto Alegre tocando no Jazz Carris, no
É no final dos anos 30 que um rapaz tímido, de voz curta e Café Colombo, na Rádio Farroupilha e, mais tarde, na Rádio
extenso talento, começa a expandir o nome do Rio Grande Difusora com seu próprio conjunto.
para o Centro do País.
Lupicínio Rodrigues nasceu em 19 de setembro de 1914. O também saxofonista Paulino Mathias tocou nos melhores
Criado na Ilhota, um reduto pobre da Cidade Baixa, o moleque clubes noturnos da cidade. Com 15 anos formou seu primeiro
bom de bola cresceu e foi autor do Hino do Grêmio, seu time conjunto, Os Boêmios , que se exibia em piqueniques e
de futebol preferido. aniversários com grande sucesso. O músico Hardy Vedana
Foi um homem de muitas paixões, transformadas em letra e assim se referiu a ele no livro Jazz em Porto Alegre: “Paulino
música e que atravessaram o tempo sem perder a validade. exibia uma grande técnica instrumental, como também
Versos que falavam das dores do seu coração. Boêmio, teve improvisava com muito gosto e maestria os sambas, choros e
várias casas noturnas e restaurantes na cidade. Entre eles os fox-trotes de sucesso (...)”. (VEDANA, 1987).
estavam o Jardim da Saudade, o Clube dos Cozinheiros, O
Batelão, o Galpão do Lupi, Vogue e o Bar Vingança. Sua R UBENS S ANTOS
grande alegria era reunir os amigos e cantar à mesa de um O grande parceiro de Lupi e um de seus melhores intérpretes
bar. Criador do gênero dor-de-cotovelo, Lupi deixou um rico foi Rubens Santos, também seu sócio em vários restaurantes
acervo, com letras que falavam dos seus muitos amores. Seu e casas noturnas. Carioca, Rubens veio parar em Porto
coração, que tanto o inspirou, falhou em 27 de agosto de 1974, Alegre por volta de 1941. Estava indo para Buenos Aires,
deixando uma cadeira vazia em muitos bares de Porto Alegre. mas acabou o dinheiro. Decidiu ficar por aqui, até conseguir
algum dinheiro.Nunca mais voltou. Na década de 90 gravou
seu primeiro CD pela Secretaria da Cultura de Porto Alegre
Capa da Revista Aplauso/ setembro de 2004
e voltou a reviver os anos de glória, cantando em Buenos
Aires e Montevidéu, com grande sucesso até o final de sua
vida em 2000.

Acervo Gelson Oliveira

Gelson Oliveira e Rubens Santos


Acervo Renato Costa

A NEGRA B RANCA DE N EVE


Zilah da Rosa, mais conhecida como Branca de Neve, foi
uma cantora que se consagrou nos programas de auditório
da fase áurea do rádio gaúcho, ao lado de outras estrelas
como Maria Helena Andrade, Zilah Machado, Elis Regina e
Lourdes Rodrigues. Assídua freqüentadora do Clube do Guri,
da Rádio Seqüência, e, mais tarde, do Programa Maurício
Sobrinho, no Cine Castelo da Azenha, ela se destacava pelo
estilo romântico de cantar incluindo no seu repertório boleros
e sambas-canção. Nascida em Bagé em 30 de abril de 1932,
desde pequena mostrava talento para o canto.
“A música era tudo na vida da minha mãe”, conta a filha,
Sandra Maria da Rosa. De temperamento alegre e ousado,
Branca de Neve rompeu com os padrões da época quando
optou pela carreira musical. Acompanhando orquestras e
conjuntos musicais da época, fez várias turnês pela Argentina,
Uruguai e Chile.
Morou por 20 anos em Buenos Aires. O retorno definitivo para Branca de Neve Acervo Sandra M.Rosa
Porto Alegre ocorreu em 1986, aos 54 anos. O convívio com o Conjunto
com a família durou pouco. Em novembro desse mesmo Vocal Coringas
ano veio a falecer, deixando um legado de rebeldia e do Ritmo em 1958
talento musical.

Acervo Renato Costa

1959 - Conjunto Vocal Coringas do Ritmo em apresentação no Salão Modelo Branca de Neve
Acervo Lourdes Rodrigues

L OURDES R ODRIGUES
Lourdes Rodrigues é uma casa cheia! E quando canta,
todos os santos descem para lhe fazer coro. Foi sempre
assim, desde pequena. Aos 10 anos, ela já encantava
parentes e amigos, cantando nas escadarias da João
Manoel com a Fernando Machado, no Alto da Bronze, ao
estilo das divas que admirava, como Dalva de Oliveira e
Carmem Miranda. Cantar seria o seu sacerdócio e,
mesmo hoje, passados mais de cinco décadas de
dedicação ao palco, continua a professá-lo, toda a vez
que sua voz se derrama generosamente sobre a platéia.
Lourdes Rodrigues nos ano 50

Cantando prá subir - 157


158 -NEGRO em Preto e Branco
Acervo Lourdes Rodrigues
Considerada a dama da canção, Lourdes Rodrigues
acompanhou os áureos tempos do rádio, testemunhou o
surgimento da televisão no RS e viu, aos poucos, os
espaços para os cantores da noite se estreitar. Poucos
resistiram. Ela é uma dessas que permanece.
O grande impulso para a carreira profissional veio aos
14 anos, quando venceu, por unanimidade, o concurso
“A Mais Bela Voz de Estudante do Rio Grande do Sul”,
na Rádio Farroupilha. A final foi disputada no programa
de Ari Barroso, no Rio de Janeiro, onde se sagrou
vencedora. A este primeiro título, somar-se-iam mais
outros 54, entre os quais: Favorita dos Estudantes,
Rainha do Rádio, Rainha do Carnaval e Cidadã Emérita
de Porto Alegre; posteriormente, receberia o Prêmio
Açorianos de Música, em duas ocasiões.

A consagração no Rio lhe valeria um contrato com a Rádio


Farroupilha, onde estreou profissionalmente no dia de
31 de agosto de 1952, no programa Roteiro de um
Boêmio, apresentando por Lupicínio Rodrigues. Junto
com Jonhson, o trio animava as noites de quinta-feira.
Na mesma emissora, ela era a atração do programa de
auditório Rádio Seqüência, que ia ao ar das 11h30min
às 13h. “O povo fazia fila para entrar. Eu tinha o maior
fã-clube da cidade”, relembra. O sucesso no rádio tornou-
a uma pessoa conhecida. “Eu e o Lupi éramos muito Lourdes Rodrigues em
requisitados para shows, tanto no Interior do Estado como 1975, no Restaurante
em São Paulo e Rio de Janeiro.” Chão de Estrelas

Com a inauguração da TV Piratini, em 1959, Lourdes ganha


um programa semanal, A Rainha Canta, acompanhada da
orquestra de Salvador Campanela. Era exibido semanalmente,
às 21h. A carreira musical não a impediu de levar uma vida
Em 1949, sua família muda-se para Porto Alegre, indo
como de qualquer mulher de seu tempo. Formou-se professora
morar na Cidade Baixa. O ambiente boêmio foi propício
pelo Instituto de Educação, lecionou na escolas Presidente
para o desenvolvimento do talento musical do garoto. Foi
Roosevelt e Inácio Montanha e durante 26 anos trabalhou num
um dos fundadores da primeira escola de samba da
cartório de Porto Alegre. Teve dois casamentos e três filhos.
Capital, a Praiana, em 1960 e seu primeiro presidente.
Depois vieram os anos de chumbo. “Havia muita
Na década de 60, Giba-Giba integra-se à vida cultural de
repressão, com a censura determinando o que se poderia
Porto Alegre, como músico e produtor cultural. Entre
cantar”, comenta. Surge, no centro da Cidade, o
outros trabalhos, integra, em 1967, o grupo “Canta Povo”,
antológico Adelaide’s Bar, na Marechal Floriano, onde
ao lado de Ivaldo Roque, João Palmeiro, Mutinho e as
se reuniam expressões da música como Alcides
irmãs Silvia e Laís. O grupo se manteve ativo até o final
Gonçalves, Darci Alves, Johnson, Demósthenes Gonzáles,
de 1969, quando implodiu, paradoxalmente, logo após o
Jessé Silva e, claro, o velho Lupi. Foram muitas as casas
anúncio de sua contratação pela gravadora Continental.
noturnas por onde se apresentou: Clube da Chave, Clube
dos Cozinheiros, Carinhoso, Batelão, Clube da Saudade,
O sucesso viria a se repetir com estréia do antológico
Chão de Estrelas. “Eu inaugurava todas as casas que
“Uma Mordida na Flor”, espetáculo que estreou no Teatro
abriam”, comenta. Foram bons tempos. “Tínhamos
de Arena em 1970, no qual dividia o palco com o violonista
trabalho, liberdade e segurança.”
Wanderley Falkemberg, a cantora Graça Magliani, o
compositor Luíz Santana, o percussionista Neri Caveira
GIBA GIBA e Chaplin. Giba-Giba define o espetáculo: “era um misto
Gilberto Amaro do Nascimento ou Giba-Giba, nasceu em de musical e movimento cultural, politico e estético.
Pelotas em 06 de dezembro de um ano que ele faz Reunia a intelectualidade alternativa em plena época da
q u e s t ã o d e n ã o r e v e l a r. S e u s p a i s , p e r c e b e r a m a repressão.
inclinação musical do menino, que aos oito anos já “Uma Mordida na Flor” trazia elementos novos para o
presidia um bloco carnavalesco infantil, chamado palco: figurinos coloridos (concebidos pela artista
“Meninas Afobadas”. Instrumentista, intérprete, letrista, plástica Maria Lídia Magliani), pés descalços, textos e
notabilizou-se pela popularização, no samba da Capital música, um certo tom de rebeldia e inconformismo
gaúcha, do sopapo, instrumento de percussão oriundo traduzido pela irreverência e pela voz potente de Graça
da região das charqueadas. Entretanto, cabe ressaltar Magliani. “Era a africanidade natural, a brasilidade, a fusão
que o primeiro a introduzir o sopapo em Porto Alegre foi do Rio Grande do Sul com a cultura real brasileira: índio,
o pelotense Luiz Carlos Machado, o Caloca. negro e europeu. Era, como disse o crítico Tarik de Souza, a
Acervo Giba Giba
manifestação do antropofagismo gaúcho”, conclui Giba-Giba.
“Uma Mordida na Flor” ficou cerca de seis anos em cartaz,
sempre lotando os teatros por onde passou.
Outro grande momento foi sua participação no espetáculo
“Em Palpos de Aranha”, que estreou em 1975, ao lado
de Cláudio Levitan, Chaminé, Zé Flávio, Graça Magliani,
Neri Caveira e Inácio do Canto. O trabalho misturava rock
e elementos regionais, música negra e solos da cuíca do
mestre Nery Caveira; unia as linguagens da música, do
teatro e das artes plásticas.
Até o final da década a produção seria intensa, com a
estréia dos espetáculos “O Osso – Uma Reflexão” (1976),
“Própolis – Cidade a Favor”(1977) e “Corredor da
Esperança” (1978), nos quais atuou como roteirista,
compositor ou diretor.
Giba Giba em 1975 no
show Em Palpos de
Aranha

GRAÇA MAGLIANI Arquivo Tição


Na década de 1970, a presença da cantora Maria da
Graça Magliani era marcante nos palcos porto-alegrenses,
principalmente nos shows “Uma Mordida na Flor” e “Em
Palpos de Aranha”. Instintiva, dramática, dona de uma
voz grave e rascante, ela causava furor em suas
aparições por sua maneira irreverente e despojada de se
portar em cena. O reconhecimento de seu talento não
ficou restrito à Capital. Graça atuou em São Paulo e no
Rio de Janeiro. Gravou com Chico Buarque, Caetano
Veloso, Gilberto Gil e, a convite do empresário João
Araújo, cantou com a grande diva do jazz, Ella Fitzgerald,
no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Nascida em Pelotas, Graça Magliani mudou-se com
a família para Porto Alegre aos dois anos de idade. Irmã
da artista plástica Maria Lídia, Graça começou a cantar
ainda menina. Aos cinco anos já participava de programas
de calouros na Rádio Farroupilha. Participou de vários
festivais universitários, sempre vencendo como melhor
intérprete. Aos 16, ouviu “Canto do Encontro”, de
Wanderley Falkemberg, e constatou que só a música
poderia expressar o que sentia. Uma tarde, encontrou o
compositor na loja “Aldeia 2”, ponto de encontro de Graça Magliani
artistas e intelectuais da época, o qual a convidou para
conhecer sua banda. Os ensaios começaram no porão
casa de Falkemberg.
O show “Uma Mordida na Flor”, marca a estréia LUIS VAGNER
profissional de Graça, que, a convite do empresário Rui Figura indissociável do movimento samba-rock ou swing,
Sommer, estreou no Encouraçado Butikim, na época, a Luis Vagner vem influenciando várias gerações de
mais famosa casa de espetáculos de Porto Alegre. O músicos brasileiros. Natural de Bagé, vive há mais de
espetáculo ficou três meses em cartaz. Pela primeira vez, três décadas em São Paulo, onde desenvolve intenso
a casa abrigou um grupo local. Após, o show foi para o trabalho como músico, compositor, arranjador e produtor
Teatro de Arena, onde permaneceu mais de um ano em musical.
temporada. O sucesso se repetiria no Teatro de Câmara Luis Vagner Dutra Lopes, o “Guitarreiro”, o “Doutor Swing,
e no Israelita. começou sua carreira musical aos nove anos de idade
Seu último trabalho foi no show “Em Palpos de tocando bateria na Orquestra Copacabana Serenaders,
Aranha”. Depois, Graça foi morar no Rio de Janeiro, a do maestro Vicente Lopes, seu pai, em Santa Maria. Em
convite de Antunes Filho e Flávio Império, onde 1962, já em Porto Alegre, formou o conjunto “Os The
permaneceu por seis anos. Quando regressou a Porto Jatsons”, com repertório de música instrumental. Em
Alegre, a cidade já não era a mesma. O País passara por 1966, surgiu “Os Brasas”, que foi contratado pela TV
transformações sociais, políticas e culturais. A disco- Excelsior de São Paulo. Na Paulicéia, seu talento foi reconhecido
music explodia e a noite já não oferecia espaço para o e logo passou a ser um dos músicos de estúdio mais requisitados
trabalho dos músicos. Graça Magliani não voltou mais da época. Com a extinção de “Os Brasas”,na década de 70, Luis
aos palcos. Sua voz, entretanto, ainda ecoa nas ruas da Vagner se tornou produtor, arranjador e compositor da RCA Victor.
cidade, as quais percorre cotidianamente cumprindo seu
destino de intérprete.

Cantando prá subir - 159


160 -NEGRO em Preto e Branco
Acervo Luis Vagner

No início da década de 70, lançou o


compacto simples “Moro no Fim da
Rua” (Continental). Seu primeiro LP
sairia em 1974, “Luis Vagner Lopes
Simples”. Seguiram-se “Guitarreiro”
The Jetson’s com Luis Vagner no centro da foto (1976), “Fusão das Raças” (1978),
Acervo Gelson Oliveira “Pelo Amor do Povo Novo” (1980).
Em 1985, apresenta o seu primeiro
disco totalmente reggae, “O Som da
Negadinha”.
Em 1987, converteu-se ao Budismo
Nitiren Daishonin. Nesta fase, produziu
dois discos independentes: “Cilada”
e “Vai Dizer que não me Viu”. Integrou
a primeira formação da Banda do Zé
Pretinho, de Jorge Ben Jor, em 1981.
Ben Jor o homenagearia com a
música “Luís Vagner Guitarreiro”.
Seus mais recentes trabalhos foram
lançados em 2002: o CD “Swingante”,
uma coletânea de seus maiores
sucessos, e o “Brasil Afro-Sulrealista”
(Paradoxx), que como diz Luis Vagner,
“(...) tem resgate, tem o agora e tem o
futuro, compreensão e aceitação da
maravilhosa confluência oculta da
nova mestiçagem(...)”

1980 - Gelson Oliveira em show no Salão de Atos da Reitoria da UFRGS

GELSON OLIVEIRA
No início dos anos 70, Gelson Oliveira era um tímido anos. Quando retornou, gravou seu primeiro disco,
observador da cena musical de Porto Alegre. Nesta “Terra”, em dezembro de 1983, em parceria com o
época, ele morava em Gramado, onde trabalhava como baterista Luiz Everling. “O disco tocava direto na Rádio
artesão e, nos finais de semana, como músico de baile. Band FM. Os shows lotavam. Era popular e sofisticado;
Na Rádio Continental, ouvia Giba-Giba, Nelson Coelho tinha jazz, samba e sotaque gaúcho”. Em 1993, lançou
de Castro, Jerônimo Jardim, Fernando Ribeiro, Hermes “Imagens das Pedras”, com participação de Gilberto Gil
Aquino, Carlinhos Hartlieb, músicos que, direta ou e Paulo Moura, disco com o qual ganhou o Prêmio Sharp
indiretamente, o incentivaram a vir morar na Capital para de Artista Revelação em MPB. Depois viriam “Tempo ao
aprimorar-se como compositor. “Era uma época de muitas Tempo (1977) e “Júlio Rizzo & Gelson Oliveira” (1999).
mostras e apresentações. Em todos os bares havia Músico consagrado, apresentou-se pela Europa e é hoje
artistas tocando. Ocupávamos todos os espaços, uma referência como cantor, compositor, arranjador e
inclusive os DCEs (Diretórios Centrais de Estudantes) diretor musical.
das universidades “, relembra.
Foi em uma destas mostras universitárias que conheceu,
em 1978, o cantor Nei Lisboa, que também iniciava sua LUCIA HELENA
carreira. Juntos, estrearam, em 1979, “Lado a Lado”, seu Sua vocação para o canto se manifestou ainda nos pátios
primeiro show em teatro, no Clube de Cultura. Um grande escolares, onde cantava para as colegas. O início da
sucesso. “Foi meu primeiro show profissional e com ele sua profissionalização se deu em 1970, aos 15 anos,
inaugurei minha carreira”, comenta. Logo depois, conheceu quando participou de um festival de música, em Bento
o maestro Paulo Moura, que lhe fez o convite para estudar Gonçalves. Lá, conheceu Luiz Coronel, Marco Aurélio
Música na Escola Villa-Lobos, onde permaneceu por dois Vasconcelos, Jerônimo Jardim, Ivaldo Roque e Mauro
Acervo Lucia Helena
Marques, artistas que viriam a despertar
seu interesse pela música do Rio
Grande do Sul. Nessa época, fazia
aulas de canto. Aos 16 anos, participou
da coletânea “Porto do Sul”. Para
satisfazer a família, que a queria
médica ou advogada, Lúcia Helena
chegou a cursar Direito, mas, aos 20
anos, abandonou o curso para se
dedicar exclusivamente à música. Foi
cantar no “Emboscada”, entre as ruas
João Alfredo e Venâncio Aires. Eram
os “anos de chumbo” e cantar certas
canções era perigoso. O local começou
a chamar a atenção pela proposta
musical.
O samba-canção e o estilo dor-de-
cotovelo, que imperavam nas casas
noturnas, deram lugar à modernidade,
representada pelas letras engajadas de
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico
Buarque de Holanda, alternados com
canções em francês, italiano e inglês.
Lúcia Helena teve destacada participação 1973 - Lucia Helena na Califórnia da Canção. À direita, Ivaldo Roque
em inúmeros festivais.
Na Califórnia da Canção Nativa de Neguinho da Beija Flor, Bebeto e
Uruguaiana, em 1972, defendeu um conjuntos como os Originais do Samba.
dos clássicos do cancioneiro gaúcho: Suas atuações como compositor e
“Gaudêncio 7 Luas”, de Marco Aurélio percursionista se dividam entre Porto
Vasconcelos e Luiz Coronel. Participou Alegre e São Paulo e foi assim por um
também da 3ª Califórnia, com Jerônimo longo tempo.
Jardim e o grupo Pentagrama. O carnaval foi também uma paixão
Na década de 1980, lançou seu dividida entre os Acadêmicos da Orgia,
primeiro LP “Lúcia Helena”, pela Imperadores do Samba, Garotos da Orgia
gravadora Velas. Nos anos 1990, foi e Areal da Baronesa.
morar no Rio, onde permaneceu por Ao morrer, em 1999, deixou uma extensa
cinco anos atuando no meio musical. obra musical e uma discografia que
Em 2001, lançou seu primeiro CD, “Foi precisa sempre ser constantemente
a Noite” (Velas). Recebeu vários ouvida para se entender porque Bedeu
prêmios ao longo de sua carreira, foi predestinado.
entre eles o Açorianos de Música em
1996 e em 2001.

com talento uma bateria e curtia IVALDO ROQUE


Jackson do Pandeiro. Em 1965 O catarinense Ivaldo Roque veio para
BEDEU abandona os estudos e passa a viver Porto Alegre em 1957. Tinha 18 anos e
“... um coração percussivamente da música tocando nos bares e bailes buscava uma nova vida longe de Laguna.
sofrido, apaixonado, vagabundo e acompanhado dos parceiros Luís Na bagagem, o violão e o cavaquinho,
sonhador...” Uma frase sonora e Vagner e Franco, integrantes de “Os companheiros inseparáveis das muitas
poética pinçada da apresentação Brasas”. Com eles, voa para São Paulo noitadas de samba e chorinho em sua
escrita por Bedeu para o disco disposto a ser famoso. O êxito nacional cidade natal.
“África no Fundo do Quintal” (1983). estoura, no início da década de 70, com Em Porto Alegre, a constatação de que a
Bedeu nasceu Jorge Moacir da Silva “Menina Carolina”, uma composição sobrevivência não viria apenas com os
em 04 de dezembro de 1946. O dividida com Leleco Teles, gravada por embalos musicais. Faz um curso de
apelido foi dado pelo avô e ninguém Franco num compacto cuja venda atinge linotipista e vai trabalhar na montagem
nunca soube de onde ele o tirou. O 100 mil cópias e lidera as paradas de do jornal Correio do Povo.
certo que o menino chamado Bedeu sucesso de todas as rádios. No início da década de 60, Ivaldo
ficou Bedeu pelo resto da vida e A genialidade de Bedeu está no novo Roque busca o aperfeiçoamento
assim foi conhecido no mundo ritmo que impõe na linha do samba rock, musical freqüentando aulas de violão
musical gaúcho e pelo País. A batida alegre e leve e muito suingue. clássico. Redescobre a música. Faz
ligação com a música começou Desperta a atenção de Jorge Benjor, Jair parceria com Zé Gomes e Vladimir
cedo. Aos seis anos já brincava com Rodrigues e Moacir Franco, que pedem Latuada e o sucesso acontece.
um pandeiro com devido ritmo e exclusividade das suas composições, O meio universitário é o universo de
sonoridade. Aos 12 anos já dominava mais tarde também gravadas por inúmeras de suas apresentações. O

Cantando prá subir - 161


162 -NEGRO em Preto e Branco
Acervo Loma B. Gomes Pereira
Som do Sul/ H.Man

Ivaldo Roque Loma no 60 Festival Terra & Cor de Pedro Osório, no final dos anos 70

marco de sua carreira artística, no urbana”, resume. Em poucos anos de ritmo genuinamente africano e que
entanto, tem como referencial o carreira, firmou-se a ponto de ser mantém suas características originais.
show “Rio Grande do Som”, num apontada pela imprensa gaúcha Hoje, integra o Grupo “Cantadores do
encontro marcado com Luís Coronel, como a melhor cantora em três anos Litoral”, ao lado de renomados e
Jerônimo Jardim e Mutinho. Logo consecutivos: 1978, 1979 e 1980. talentosos músicos e compositores
depois, intensifica uma aliança criativa No início da década de 80, já em nativos do litoral gaúcho.
com o compositor Jerônimo Jardim carreira solo, parte para o Rio de
e dá um salto de qualidade na sua Janeiro. Lá, apresenta-se ao lado de
carreira musical. A Califórnia da Canção artistas renomados como Amelinha e
Nativa de Uruguaiana e as Cirandas de Zé Ramalho, e participa de gravações
Taquara são cenários, onde suas canções de discos de Alceu Valença, Elza
ganham projeção. . Em 07 de abril de Soares, Cristina Buarque, Gilberto Gil,
1986, Ivaldo Roque morre, deixando Monarco e a Velha Guarda da Portela.
para todos um inventário musical que o Em 1983, lança seu primeiro disco,
tempo não apaga. “Loma”, considerado pela crítica
como o melhor LP do ano.
A partir de 1985, volta a fixar-se no
Rio Grande do Sul. Lança um novo
LOMA trabalho, “Toda Mulher”, e ao fim de
1989 é eleita pela crítica especializada
Loma descobriu-se cantora nos
e por representantes de entidades de
terreiros de umbanda e foi aprimorar
produção musical e de produção
sua arte, a partir dos 12 anos, no
cultural “a Melhor Cantora da Década”.
coral da escola. Aos 14 anos já
Em 1992, lança seu terceiro disco,
trabalhava na produção do programa
“Um Mate por Ti”, e é indicada ao
Vovô Bicudinho, na TV Gaúcha.
prêmio Sharp na categoria Cantora
Também atuou na TV Piratini, onde
Regional. Já por essa época acumulava
participava do programa de Antônio
aproximadamente 30 troféus de Melhor
Gabriel nas manhãs de domingo.No
Intérprete, conquistados em festivais de
início de sua carreira, na década de
Música realizados no Estado.
70, atuou na publicidade e sua voz
Em 1999, lançou “Além-Fronteiras”,
embalou vários jingles de sucesso.
que lhe conferiu o Prêmio Açorianos
Em um destes trabalho, conheceu
de Melhor Intérprete e Melhor CD da
Jerônimo Jardim, que a convidou
categoria MPB. Neste trabalho, sua
p a r a i n t e g r a r, c o m o v o c a l i s t a , o
versatilidade e força interpretativa se
Pentagrama, em 1973. O grupo foi
manifestam na forma de sambas,
um dos principais responsáveis pelo
salsas, maçambiques, maracatus,
movimento renovador da música Capa do LP: O samba e suas Origens
maxixes, carimbós e músicas do
produzida no Rio Grande do Sul e do conjunto Pau Brasil nos anos 70
cancioneiro gaúcho.
que projetou nacionalmente vários
A partir da década de 80, Loma passa
compositores e intérpretes radicados
a divulgar a cultura afro-litorânea,
em Porto Alegre.
representada pelas composições de
“Fazíamos um trabalho de fusão da
Carlos Catuípe e Ivo Ladislau, com o
expressão campeira com a linguagem
objetivo de divulgar o maçambique,
Acervo Julio Ferreira Acervo M.Helena Montier

Propaganda do Jazz Cruzeiro em 1940


Conjunto Satirisamba com a cantora Maria
Helena Montier em 1975

Acervo Maria Guedes

Acervo Sociedade Floresta Aurora

Conjunto Comodores nos anos 70

Acervo Sociedade Floresta Aurora

Conjunto musical nos anos 20


Conjunto atração de uma festa na sede da
Sociedade Floresta Aurora nos anos 70

Cantando prá subir - 163


164 -NEGRO em Preto e Branco
Fotos do acervo de Maria Helena Andrade

MARIA HELENA
ANDRADE, A ETERNA
RAINHA DO RÁDIO
Orgulhosa, ela abriu a caixa do
tempo. E dali guardadas, com presente
carinho, saíram todas as glórias do
passado: a faixa bordada, a coroa de
ouro e pedras semipreciosas, as fotos
Maria Helena no programa Rádio Seqüência
de uma época e os recortes de
jornais.
São tesouros que atestam uma de Dalva de Oliveira. A aprovação foi A carreira foi interrompida, mas o
suas maiores conquistas: o título de imediata. Ao ouví-la, Nelson ficou canto não. A voz, que encantava a
Rainha do Rádio de 1957. Aliás a encantado, não resistiu e passou a multidão dos auditórios, passou a
eterna, porque depois de Maria chamar outros músicos para apreciá- e m o c i o n a r uma outra platéia. As
Helena Andrade, ninguém mais ... la. Com a aprovação de todos, o cerimônias de casamento, os jantares
“é um título que guardo com muita primeiro contrato foi a s s i n a d o e de casais, as festas de aniversário e
honra, afinal eu fui a mais jovem Maria Helena passou a ser a eventos especiais em clubes da Cidade
rainha do rádio do Brasil, tinha sensação musical da Cidade. servem, ainda hoje, de palco para
apenas 15 anos”. As apresentações no Cine Castelo e a arte de Maria Helena Andrade. A
A fase de ouro do rádio gaúcho foi nos programas de auditório da Rádio música romântica tem sido pauta no
marcada pelos programas de auditório Farroupilha deram-lhe, também, o repertório que aquece os corações
lotado, ao meio-dia na Rádio Farroupilha apelido de Sapoti do Sul. “Eu era fã apaixonados. “Sou uma romântica
- “Rádio Seqüência”- e nas tardes de de Ângela Maria - que tinha o apelido incorrigível ”, afirma Maria Helena,
sábado, os concursos de calouros do de Sapoti - e cantava a muitos dos enquanto rememora momentos do
Clube do Guri. Foi neste cenário que seus sucessos , principalmente Orgulho, passado através das muitas fotos e
Maria Helena brilhou. No centro do País uma música lindíssima. Eu não recortes de jornais de um tempo em que
- Rio e São Paulo – o público suspirava imitava a Ângela, mas meu timbre de uma menina simples e elegante subiu
ao ouvir as divas do cancioneiro voz era muito semelhante”. ao estrelato do rádio gaúcho.
nacional: Ângela Maria, Nora Nei, A carreira de Maria Helena se
Elisete Cardoso, Dalva de Oliveira, expandiu por um período de cinco
Emilinha Borba . Um seleto grupo de anos. “Foram momentos especiais.
musas inspiradoras de Maria Helena O Cinema Castelo era o termômetro
Andrade. Nascida em Rio Grande sob do sucesso, assim como te elevava,
o signo da música e embalada pelo o público te derrubava. Felizmente
som dos discos de 78 rotações, aos eu me saí bem”. A crítica da época
nove anos já soltava a voz, cantando a e l e v a v a . Em seis meses, Maria
nos programas das rádios Cultura Helena assinalou um recorde de
Riograndina e Minuano. sucesso e prestígio no r á d i o . F o i
A cidade natal logo ficou pequena contratada pela Rádio Farroupilha
para o grande talento que emergia. e pela gravadora Mocambo, onde
Aos 14 anos, acompanhada da mãe gravou um disco de 78 rotações.
Enedina, Maria Helena veio para Escolhida candidata a Rainha do
Porto Alegre. As indicações a Rádio foi apontada como a maior
levaram à Rádio Farroupilha. Lá foi revelação do rádio sulino.Aos 19
ouvida por Nelson Silva, cantor, ator anos, o casamento e a opção de
e autor do Hino do Inter. No teste, parar em 1961. “ Parei porque quis,
Maria Helena cantou “Ave Maria do ninguém me pressionou”. 1958 - apresentação ao vivo no Grande
Morro”, um sucesso da consagrada Show Wallig, da TV Piratini
Acervo Zilah Machado
Elis Regina. Apresenta-se no Clube
dos Cozinheiros, casa de shows de
Lupicinio e Rubens Santos e em
programas de auditório.
Em 1971, Zilah vai tentar a sorte no
Rio de Janeiro, cantando em casas
noturnas e programas de rádio e TV.
Lá permanece até 1982. Reveza-se
entre o trabalho como diarista e as
gravações para a Odeon e CBS, como
integrante de coro. Em 1980, lança seu
primeiro LP,, ““Já Já se Dança Samba
como Antigamente” (CBS).
No Rio, cantou ao lado de Cauby
Peixoto, participando também de
musicais de Sargentelli, no Hotel
Nacional, e na Rádio Globo. Atuou
como atriz de teatro, cinema e rádio.
Participou dos filmes “Quem Matou
Pacífico?”, “As Manicures” e “Lúcio
Flávio, Passageiro da Agonia”. No
teatro, atuou nas peças “A Volta do
Apresentação ao vivo na televisão nos anos 50 Araraí” e “Sem tua Presença” e
i n t e g r o u o e l e n c o d a n o v e l a “A
Z ILAH M ACHADO Cabana do Pai Tomaz”, exibida no
Canal 5, em Porto Alegre. Em 1988,
Em sua modesta casa, na Rua São dos Sonhos”, lançado em 2000 pela
já em sua terra natal, lança seu
Francisco, no bairro Partenon, Zilah Prefeitura de Porto Alegre, referiu-se
segundo LP, “Lupiciniana” (CBS)
Machado faz planos para o seu a ela como “pérola escondida no Sul
e é homenageada pela Prefeitura
próximo disco, o quarto de sua do Brasil”. A convite dele, presentou-
Municipal com a Medalha Cidade
carreira. Sua intenção é realizar um se, em janeiro de 2004, no Sesc-
de Porto Alegre.
trabalho que evoque suas raízes, Pompéia, em São Paulo, no projeto
as lembranças familiares, os cantos “Sotaques do Samba”, ao lado de 14
primitivos legados de mãe para expressões nacionais do gênero.
filha, geração após geração, e que Zilah Machado nasceu em 13 de abril
ela, ainda hoje, entoa durante as de 1928 e foi criada na Ilhota, em Porto
obrigações religiosas. Alegre. Sua mãe, que era lavadeira,
Silva Abreu
Não será, contudo, passadista. Zilah morava ao lado da casa de Lupicínio
está sempre sintonizada com seu Rodrigues, que muitas vezes a pegou
tempo. Afinal, poucas carreiras têm no colo. “Essa menina vai ser cantora
tamanha longevidade. porque já chora afinado”, vaticinou ele,
A veia poética, revelada na maturidade, contrariando o desejo da mãe, que
se manifesta nas canções que queria que sua única filha fosse
compõe cotidianamente, e que, a professora.
despeito de revelar a influência do Aos três anos de idade, Lupi lhe
mestre Lupicínio, seu padrinho musical, ensinou a “Marcha do Jacaré”, uma
identificam um estilo muito particular. marchinha de Carnaval. Estudou no
Além de compositora e intérprete, Zilah Colégio Paula Soares, onde participou
também produz quadros de motivos do coro orfeônico. Como gostasse
afro, elaborados com desvelo. Zilah não muito de samba e seresta, sua mãe
têm a preocupação de exibí-los ao público. tentou dar outro rumo à vocação da
São, antes, mais uma manifestação da filha, colocando-a para estudar canto
vocação sensível da artista. lírico com o maestro Roberto Eggers,
Outro talento da cantora está nos com quem permaneceu durante onze
tambores que confecciona. Zilah anos.
ocupa-se de tudo: da escolha das Em 1962, abandona definitivamente
peças ao acabamento, com pintura o canto lírico e embarca para a
caprichada, em que predominam Argentina para uma temporada de
cores fortes e contrastantes e desenhos três meses com a orquestra do Zilah Machado com seus tambores
de motivo tribal. Mais um capricho Maestro Délcio Vieira. É o início de
para o seu próprio deleite. Zilah toca uma carreira internacional, que a
os tambores para evocar os santos levaria até o México.
e, também , sempre que compõe. . De volta a Porto Alegre, passa a
O crítico Carlos Callado, ao ouvir seu cantar na Rádio Gaúcha, quando
último disco, “Passageira da Nave vence um concurso para substituir

Cantando prá subir - 165


166 - NEGRO em Preto e Branco

ARTE
Renato Rosa
EM PRETO E BRANCO?
A jornalista Silvia Abreu me comunica, via e-mail, em expressão artística conhecida como erudita, por ser um
função do presente volume que “No capítulo sobre arte, trabalho com um matiz mais intelectualizado e sofisticado,
incluímos pequenas biografias e fotos de trabalhos de apesar da alta carga de dramaticidade que o trabalho dela
Wilson Tibério, Magliani, Djalma do Alegrete, Paulinho encerra. Djalma e J. Altair - este talvez por ser um artista naïf
Chimendes e Pedro Homero. Então, acredito que está tudo e também pai de santo - aventuraram-se em suas raízes
resolvido. De certa forma esta é quase a real ordem de afro-descendentes, utilizando os deuses africanos como
entrada em cena. Wilson Tibério efetivamente precede referência em muitas passagens de suas obras.
Magliani (Maria Lídia dos Santos Magliani) mas o mesmo
não ocorre em relação a Djalma do Alegrete (Djalma Outros artistas que enveredaram por esse caminho
Cunha Santos). Mais jovem, Magliani situa-se entre os foram Jaci Santos na escultura em pedra e madeira e Afro
dois, mas entre esses pintores e ela, interpõem-se o nome Marco (Marco Antônio Lopes), este influenciado pelo
de J. Altair (João Altair Barros), autodidata, que começou entalhador pernambucano Maurício Pacheco, um dos
a pintar em 1950. Wilson Tibério, nascido em 1923, é o poucos casos de artista negro, vindo de outra região, que
mais velho dos artistas citados, saiu do Brasil em 1943 e se instalou em Porto Alegre nos anos 70. Afro Marco
sua trajetória é inteiramente desconhecida no País. Uma dedica-se ao entalhe em praça pública, no Brique da
clara desatenção das pessoas que lidam com a questão Redenção e Jaci Santos teve uma morte estúpida após
da memória no Brasil, sinalizei esse fato, em co-autoria longo encarceramento em sítios prisionais. Começou
c o m D e c i o P r e s s e r, e m n o s s o d i c i o n á r i o d e a r t e s garoto, guiado pelas mãos dos professores do Atelier
plásticas, um verbete redigido em 1996. Até hoje a Livre e ainda adolescente, chegou a inaugurar, com
situação de Tibério permanece a mesma: um verbete exposição individual, a sala de exposições da sede
aparentemente imutável porque esconde a desatenção provisória na rua Lobo da Costa. De Pedro Homero, artista
citada. Pode-se fazer múltiplas leituras desse fato. de extração mais recente, nada posso acrescentar porque
desconhecia sua atuação até o presente momento, uso
No início de sua carreira, em Porto Alegre, nos anos palavras da jornalista Silvia Abreu: “...posso dizer que,
50, Djalma Santos agregou o nome da terra de nascimento a n t e s d e s e r p i n t o r, e l e e r a m ú s i c o . C o n s i d e r a d o
a seu prenome, para diferenciar-se do grande esportista primitivista, desenvolve seus trabalhos tendo como base
campeão do mundo da seleção de 1958, seu homônimo a religiosidade de matriz africana. “Minha arte é o meu
Djalma Santos. Ele representou, até as últimas conseqüências, referencial e a forma de eu viver o mundo negro em todos
e de modo exacerbado, a tragédia do artista/negro/ os sentidos”, afirma ele. Seus trabalhos têm percorrido o
brasileiro/marginal/homossexual, usou e abusou e pirou em mundo. Sua última série sobre os orixás chegou até à
sua liberdade individual sem poupar-se, sem medir Bélgica, na forma de cartões postais. Ele foi citado na
esforços. Imolou-se em vida, tornou-se um herói de si revista norte-americana “Callaloo”, editada por Steven
mesmo. Morreu pobre, desamparado, vitimado pelo mal do White, e recebeu, em 2001, elogios do artista plástico
final do século passado: Aids. Uma pena. Mesmo assim, francês Jean Durin.”
para que não se acuse o mercado de arte, o artista recebia
apoio da galeria Edelweiss, espaço tradicional de Porto Dispo m o s t a m b é m d e u m a r t i s t a , c o m b r e v e s
Alegre, dirigido pela marchand Anne Lore Kley. Sou participações em Porto Alegre, nos anos 80, hoje é
testemunha do que afirmo. Djalma tentou a sorte no Rio de uma referência da arte em Portugal, chama-se Renato
Janeiro, onde conseguiu desenvolver um trabalho pioneiro Rodyner e sua formação ocorreu no Atelier Livre da
junto ao que hoje se convencionou chamar de comunidade Prefeitura Municipal de Porto Alegre. E agora um
de base, favelados, que – ironicamente – não moram na momento Caras: encontrei Renato em Paris, num
base mas nos píncaros dos morros da cidade, donos das vernissage (atenção, esta palavra não leva eme ao
vistas mais belas – essa posse talvez seja um dos motivos final!!) em 2001, na Galerie Debret. Alguns meses
de tensão entre os donos da terra na base. Como sabemos, depois, recebo de Lisboa, a Caras/Portugal, em cuja
todo preconceito é perverso e um de seus lados mais edição loiríssima star Vera Fisher ganhara quatro
manifesto brota na diferenciação econômica. páginas e ele, sete. Nessa proporção. Um vitorioso.
Outro artista que atua em Porto Alegre desde os anos
Paulo Chimendes representa a opção da permanência. 70/80 chama-se Carlos Alberto Oliveira, pintor. Uma
Talentoso, ainda é um jovem artista, não recebeu o verdadeira revelação. A primeira pessoa a defender
reconhecimento do público (por enquanto, forçosamente seu talento foi o renomado artista plástico Danúbio
terá sua hora e vez) mas seus pares e alunos o tratam com Gonçalves, uma autoridade, cuja opinião é indiscutível.
muita cortesia e veneração. Justo e merecido. Magliani e Carlos Alberto participou de diversas e importantes
Paulo Chimendes percorrem o caminho tortuoso da exposições coletivas e destacou-se numa das edições
do Salão do Jovem Artista da RBS e a seu favor conta- homem para contar sua história. É um modo de contar
se uma curiosidade, é o único que faz uma abordagem (marcar) sua presença na vida, sua individualidade, sua
social mais direta, retrata operariado calçadista e impôs- afirmação como pessoa e isso importa muito. É o começo
se num meio claramente germânico: Novo Hamburgo. da liberdade entre os iguais. Depois disso é que seremos
Seu trabalho apresenta características de um pintor um quando o outro nos considera.
primitivo mas não é, considerando a elaboração e
tratamento dispensados a seus temas. A pessoa, sim, um Então, ressalvando a dita etnia - pegando por esse viés
homem simples, do povo. político, de todos, a pintora Magliani é, sem dúvida, o artista
mais destacado do Rio Grande do Sul. Sua foto encontra-se
Destacam-se ainda Sérgio Vergara e Luiz Armando Vaz, em exibição permanente no Museu do Negro, situado no
fotógrafos, Grace Patterson com seus retratos em pastel seco Parque do Ibirapuera, São Paulo. Visitamos juntos esse
e pinturas em acrílica e o escultor Nilton Maia com suas museu em dezembro de 2004, uma criação e antigo sonho
mulheres brihantemente modeladas em terracota.Ocupando- do genial artista brasileiro Emanoel Araújo, um defensor da
se com a impressão serigrafica e litografica, tornam-se fortes afirmação do negro brasileiro. Magliani consta numa espécie
presenças os impressores Donato e Nelcindo da Rosa, este de Pantheon ao lado de Ruth de Souza, Milton Gonçalves,
no Atelier Livre da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Outro Pixinguinha, Pelé, Leá Garcia e outras personalidades
valor da escultura em madeira chama-se Gutê (Carlos nacionais. Esse destaque foi pago com seu próprio sangue,
Augusto da Silva) artista que viveu um longo período na capital sua necessária luta, sua solidão, um talento enraizado e
paulista. Creio que esse panorama se completa com a citação entranhado, inabalável, porque apesar de todas as
de Miguel Barros(O Mulato) artista pelotense que, na década dificuldades que tenha enfrentado – e segue enfrentando –
de 40, foi aluno do genial João Fahrion em Porto Alegre e sem fazer concessões, soube colocar-se acima de todas as
que granjeou projeção fora do RS. bandeiras. Sua obra é apreciada em estados brasileiros
como São Paulo, Minas, Bahia e Rio de Janeiro. Sua obra
Por fim, dizer mais de artistas negros em Porto Alegre, tem significado no difícil mercado de arte nacional, isso é
de modo assim tão localizado é bastante delicado, raro, e mais ainda, é quase “impensável”, mesmo agora
primeiro porque nenhum usa, como vejo aqui no Rio, nessa entrada de século, quando o mundo teima em manter-
camisetas estampando “100% negro”, um meio válido se, por exemplo, ainda “masculino”, sem contar outros
de assumir-se já que, na outra ponta, contamos de preconceitos.
modo folclórico com Ronaldinho, o fenômeno, que
afirmou não ser negro, um engano de identidade que Ou seja: a luta continua.
– a meu ver – “mancha” uma biografia numa seara
onde Pelé é considerado “o orgulho da raça”. Da raça
humana espero. Negro é quem declara ser. Mas isso,
Rio de Janeiro, 29 de junho de 2005
aparentemente é outra questão, mas não é.

E antes que esqueça não posso me furtar a


responder a minha própria pergunta: Arte em P&B?
Nem em p&b – que para mim é fotografia – nem nada,
mas sim, arte como toda forma de expressão feita pelo

Irene Santos

Renato Rosa

Marchand e pesquisador. Autodidata. Desde os anos 60 publicou perfis de artistas


plásticos gaúchos nos jornais Zero Hora, O Exemplar, Jornal da Semana, Revista
Imagem News e Jornal do Brasil. Co-autor do “Dicionário de Artes Plásticas no
Rio Grande do Sul”, 1 ª edição, 1997, 2 ª edição, 2000, Editora da Universidade,
UFRGS - Prêmio Açorianos de Literatura 1998 – Categoria Especial.

Arte em Preto e Branco? - 167


168 - NEGRO em Preto e Branco

Litografia de Paulo Chimendes


Desenho de Maria Lídia Magliani feito para matéria publicada na revista Tição em 1 977

Arte em Preto e Branco? - 169


170 - NEGRO em Preto e Branco

Auto-retrato
Wilson Tibério: 1916 [Porto Alegre] ~ 2005 [França]

Escultura de Wilson Tibério

Acervo Dirney A Ribeiro Acervo Dirney A Ribeiro

Djalma do Alegrete nos anos 60, em


atividade com alunos da Funabem

Figurino criado por Djalma para uma


escola de samba de Pelotas/RS, em 1972
Pedro Homero: a arte
regida pelos Orixás
Texto de Oliveira Silveira

O artista Pedro Homero [ 26/03/1936 ~ 01/8/2005 ] era


natural de Porto Alegre, onde viveu 69 anos, 40 dos quais
na companhia dedicada de Ivete, sua esposa. Muito
conhecido enquanto músico, era também artista plástico.
Na atividade musical teve larga atuação na noite e
participou ativamente do carnaval, sendo por muito tempo
jurado no quesito harmonia.
Como compositor, criou sambas e também músicas
enquadradas em outros gêneros ou formas afro, além de
composições na linha regionalista que o levaram inclusive
aos palcos de festivais como a Califórnia da Canção Nativa,
em Uruguaiana, ou a Gauderiada, de Rosário do Sul, tendo
Adair Antunes, o Lalau, como um dos principais parceiros.
Não se dizia cantor, mas fazia a interpretação vocal quando
necessário. Instrumentista de cordas, executava violão,
violão tenor, cavaquinho e banjo, mas sua versatilidade
incluía a flauta transversal e o manejo talentoso da
marimba, um xilofone.
Como artista plástico, produziu bastante em pintura e
artesanato. Deixou o álbum Orixás, com 12 trabalhos, editado
pela Secretaria Municipal da Cultura e com uma terceira
edição no livro O povo negro no sul, da Associação Rio-
grandense de Imprensa e Sociedade Floresta Aurora. Houve
quem pensasse que os trabalhos de Pedro Homero fossem
ilustrações aos poemas que os acompanham no livreto. Na
verdade, quatro poemas tinham vida independente e já Oxalá, Mensageiro da Paz - pintura de Pedro Homero
haviam sido publicados: No caminho da casa-de-nação
(Bará), No mapa (Ogum), Batuque (Xangô) e Oferenda A obra deste negro gaúcho valoriza muito os temas
(Oxalá). Os oito restantes foram criados especialmente para alusivos à religião de matriz africana de que era
o álbum, motivados pela obra do artista e como homenagem praticante com reiterada paixão. Numa conversa com
à força e à riqueza das vertentes religiosas e culturais jeje e ele, informal ou mesmo de trabalho, era comum, fácil e
iorubá. Portanto, os poemas, na sua maioria, é que ilustram inevitável o assunto resvalar maciamente para orixás,
os trabalhos de Pedro Homero. batuque ou casa-de-nação, bacias, povo de santo.
Cinco de suas telas foram editadas em cartão postal na Pedro Homero era um cativante contador de histórias
França em 2003, fotografadas com maestria em Porto vivenciadas em Porto Alegre e dava gosto silenciar para
Alegre pela belga Christine Leidgens. Esse fato o deixou ouvir esses relatos. Compreendendo a importância do
muito contente e foi sentido por ele como um justo coletivo e do intercâmbio com outros criadores, integrou
reconhecimento ao seu talento. o grupo Frente Negra de Arte.

Irene Santos

Frente Negra de Arte: Silvia Viitória, Pelópedas Thebano, Pedro Homero, Tania Maria Borba, Américo Souza

Arte em Preto e Branco? - 171


COM OS PÉS NA COZINHA
Jorge Nascimento
Acervo Luis Flávio Nascimento

Festa de aniversário

Existe uma relação muito íntima entre os negros e a arte de


fazer comida . Foi através do ato de transformar ingredientes
em refeições completas, que muitos hábitos alimentares,
bastante singulares, foram transmitidos para famílias
inteiras. A cultura vinda da África foi fundamental para a
criação, evolução, transformação e conceito da atual
gastronomia brasileira.
Foi com cuidado e com carinho que as mãos negras pilotavam fogões de fumegantes
panelas, soltando seus aromas e perfumes e conquistando estômagos sedentos de momentos
prazeirosos . O olhar das cozinheiras e a habilidade de suas mãos negras criaram delícias como
o ponto da gema dos ovos, os molhos mais ou menos picantes, as crostas de carnes mais ou
Acervo M. Noelci Homero Acervo Julio J. Nunes

Acervo M. Noelci Homero

Mesa de doces em festa de aniversário

menos crocantes, leites com chocolates contendo misturas


secretas e pessoais que encantaram e ainda continuam
encantando cada comensal.
As mãos negras, ao longo destes últimos 500 anos,
aprenderam, copiaram e puderam, através da comida, perpetuar
os hábitos alimentares das variadas etnias e culturas que
formaram o mosaico brasileiro. São estas mãos negras
responsáveis pela evolução e estilo da cozinha brasileira. Quando
estas mãos negras mexiam as panelas com olhos atentos aos
gostos dos comensais de suas mesas, colocavam pitadas e mais
pitadas de muito amor, carinho, respeito. Ofertando as iguarias
mais esperadas, tanto no frugal almoço quanto no jantar mais
elaborado, são mãos negras que nos bastidores das cozinhas nos
fazem até hoje lembrar fases de nossa história e constróem a
Cortando o bolo dos 15 anos real gastronomia brasileira.

Irene Santos

Jorge Alberto da Silva Nascimento

Chef Jorge Nascimento tem reconhecida atuação no cenário nacional. Autor do livro
“OCASIÕES - Receitas práticas e dicas de culinária para todas as situações”. Professor do
Curso Superior de Gastronomia da Unisinos/RS, e do Curso de Hotelaria da PUC/RS.
Membro da Abaga (Associação Brasileira da Alta Gastronomia).

Com os pés na Cozinha - 173


174 - NEGRO em Preto e Branco

CARDÁPIO AFRO-GAÚCHO ou
comida de santo
na mesa de todo dia

Entradas
pipoca................................................................ Bará e Xapanã
amendoim .....................................................................Xapanã
acarajé............................................................................... Iansã

Refeições
sopa de legumes com carne de galinha ....................... Ibêji
peixe assado ......................................................................Bará
peixe ensopado com pirão.............................................. Bará
camarão frito ....................................................................Xangô
churrasco de costela acompanhado com farofa de mandioca
bem soltinha misturada com azeite de dendê ........... Ogum
galinha assada ............................................... todos os Orixás
carne de ovelha assada no forno ..............................Yemanjá
carne de carneiro assada no forno ...............................Xangô
carne de porco assada no forno, com farinha de mandioca
temperada.................................................................Odé e Odi
milho verde, cozido na água e sal ......Ogum e Nanã Boruku
caranguejo ou siri ......................................................Yemanjá
lingüiça com farofa .......................................................Ossâim
Sobremesas
canjica ...............................................................Oxum e Yemanjá
quindim ..............................................................................Oxum
pé-de-moleque ...............................................................Xapanã
pudim de leite ....................................................... Oxum e Ibêji
merengue grande ...........................................Oxalá e Yemanjá
laranja doce ou fruta .............................................................Obá
bananas ..............................................................................Ogum
cerejas ...................................................................................Oyá
bolos de farinha de trigo sem recheios ...........Xangô e Xapanã
doce de leite ..........................................................Oxum e Ibêji
doce de côco cozido com a casca .................Yemanjá e Oxalá
sagú com suco de uva .....................................................Oxum
salada de frutas .............................................bebida de Ogum
abacaxi...................................................................................Obá
Bebidas
cerveja ...............................................................................Ogum
champanha .........................................................................Iansã
vinhos ...............................................................................Xapanã

Fonte: Érico do Ogum

A grafia dos nomes dos Orixás está de acordo com o Dicionário de Cultos Afro-Brasileiros
de Olga Gudolle Cacciatore

Com os pés na Cozinha - 175


NEGRO DE ALMA PRETA
Maria Conceiçao Lopes Fontoura

Dizem que uma mentira repetida


infinitas vezes pode transformar-se
em uma verdade. As mentiras racistas
tentam assumir esta dimensão. Repetidas
de forma não crítica engrossam o
cotidiano de discriminações negativas.
Ter alma branca é uma delas.
Quantas pessoas dizem, com orgulho infantil, possuir
alma branca. Isto me faz recordar uma história do meu livro
de religião, quando estava no quinto ano primário. O texto
falava de dois meninos. Um era negro como uma noite sem
lua, de nome Xingu. Estudioso, obediente, não dizia palavrões
e nem jogava pedras. Como prêmio, dizia o livro, tinha a alma
branca. O outro menino era o Paulinho. Tinha a pele branca
como um papel, entretanto possuía a alma preta. A cor de sua
alma se relacionava ao fato de ser mau estudante, fazer mil
estrepolias e jogar pedras. O ensinamento da história
reforçava a importância de se ter a alma branca.
Por que não podemos ser negros de alma preta, sem que
isto signifique estar aliado com o mal ? Há quem não ligue
para o conjunto de expressões e frases que dão à cor preta
um significado negativo. Existe, sim, intencionalidade, ao se
atribuir à cor preta a característica de ser algo ruim. Assim
como é possível escolher uma roupa para usar, o mesmo se
dá com as palavras. A cor branca é associada a coisas boas.
A pomba branca da paz. O contrário ocorre com o preto, como
na história de Xingu e Paulinho. É preciso estar atento para o
Acervo Maria Noelci Homero

significado das palavras utilizadas. Através delas, muitas


vezes, podemos estar reforçando a discriminação negativa.
Existe um longo caminho a ser trilhado para vencer o
preconceito, a discriminação racial e o racismo que adoecem
a sociedade brasileira. Estes males sociais prejudicam tanto
as pessoas discriminadas quanto as discriminadoras. O
grupo dos discriminados precisa diariamente reafirmar sua
humanidade negada pelos racistas. De outro lado, o plantel
dos racistas padece do mal da ignorância, que os fazem
negar os direitos humanos das pessoas às quais discriminam
negativamente.
Analisar a presença negra, através de diferentes desenhos
e retratos, é um dos caminhos para desconstruir o racismo, a
discriminação racial e o preconceito.
Gravuras feitas por Jean-Baptiste Debret e Johan Moritz
Rugendas reproduzem figuras de mulheres e de homens
negros sempre exercendo uma atividade. As imagens
confirmam que as africanas, os africanos e seus descendentes
escravizados são os construtores históricos do Brasil.
Desempenharam, com exclusividade, todos ofícios durante os
quase quatro séculos de escravização. Atividades do campo
e da cidade eram feitas por mãos negras.
Os desenhos e as gravuras foram substituídos por
fotografias. Uma antiga máquina de tirar retrato ou uma
moderna câmara fotográfica digital capta diferentes
momentos de histórias negras. Resgatam a importância das
famílias negras circulares. Núcleo familiar que acolhe
parentes de sangue e por afinidades. Todos são bem-
vindos a este clã.

Negro de Alma Preta 177


178 - NEGRO em Preto e Branco

Outros retratos mostram que nossa beleza negra tem


cabelo bom, do nosso jeito. Crespo, carapinha, anelado,
trançado, mostrando a ligação com as raízes africanas. O
nariz é não-afilado. Os lábios são carnudos. As negras são
acinturadas e a bunda é saliente. Existe uma diversidade
negra que se apresenta e exige respeito.
O intelectual negro Hélio Santos afirma, com muita
propriedade, que no Brasil se tem a presença negra no
sangue ou na cabeça. A forma como o povo brasileiro se
comporta tem marcas indeléveis de africanidade..
Em todos setores da cultura brasileira está presente
uma parcela de África. Na literatura, escritoras e escritores
negros constróem uma estética literária negra. A música e
a musicalidade do povo brasileiro estão impregnadas de
marcas negras. As religiões de matriz africana e afro-
brasileira respeitam, valorizam e dialogam com a natureza.

Acervo Osvaldo F. Reis

Milhões de brasileiros professam as religiões de origem


africana. Porém o racismo faz com que elas ainda não
recebam o respeito merecido. A participação negra está
presente de modo indissociável em toda sociedade brasileira.
Vai do lúdico ao mundo da ciência.Quando conhecemos a
importância e o valor da presença negra no Brasil, temos a
certeza de que não precisamos de uma alma branca.
Irene Santos

Existem generosidade, beleza e esplendor em nossa


alma preta. Para quem ainda tiver dúvidas, volte ao início
do livro. Olhe atentamente nossas fotografias. Elas
retratam diferentes momentos da história de vida de
mulheres e homens negros, construtores históricos do
Brasil, que repartem graciosamente o seu largo continente
de Cultura Negra.
Só age assim quem tem verdadeiramente a alma preta!

Irene Santos

Maria Conceição Lopes Fontoura

Professora Licenciada em Letras Clássicas e Vernáculas /UFRGS. Mestra em


Educação/ UFRGS. Técnica em Assuntos Educacionais/ UFRGS. Diretora Executiva
de Maria Mulher --Organização de Mulheres Negras

Negro de Alma Preta - 179


180 - NEGRO em Preto e Branco

FONTES CONSULTADAS
ACHUTTI,Luiz Eduardo R. Ensaios (sobre o) Fotográfico . Porto Alegre:
Prefeitura Municipal, 1998

BUENO, Eduardo. Brasil: Uma História . 2. ed. São Paulo: Ática,2003

CACCIATORE,Olga Gudolle. Dicionário de Cultos Afro-Brasileiros . 3.ed.


Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1988

CARNEIRO, Luiz Carlos. P orto Alegre – de Aldeia a Metrópole? Porto


Alegre: Marsiaj Oliveira: Officina de História, 1992.

FARIA, Arthur de. Um Século de Música . Porto Alegre, CEEE, 2001.

FLORES, Moacyr (Organizador). Cultura Afro-brasileira. Porto Alegre: Escola


Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1980.

FORTINI, Archimedes. Porto Alegre através dos tempos . Porto Alegre:


Divisão de Cultura, 1962

FRANCO,Sérgio da Costa. P orto Alegre: Guia Histórico . Porto Alegre:Ed.


da Univesidade/UFRGS, 1988

GERMANO, Iris Graciela. Rio Grande do Sul, Brasil e Etiópia: os negros


e o carnaval de Porto Alegre nas décadas de 1930 e 40 . Porto
Alegre:Dissertação de Mestrado em História UFRGS/ 1995

MANN, Henrique. Som do Sul – A História da Música do Rio Grande do


Sul no século XX . Porto Alegre.TCHÊ, 2002.

RUSCHEL, Nilo. Rua da Praia . Porto Alegre:Prefeitura Municipal, 1971

OLIVEIRA, Clóvis Silveira de. A Fundação de Porto Alegre: Dados Oficiais .


Porto Alegre: Ed.Norma, 1987

PREFEITURA Municipal. Porto Alegre - Biografia de uma Cidade . Edição


comemorativa do Bicentenário da Cidade, 1940

SPALDING, Walter. Pequena História de P orto Alegre . Ed.Sulina, 1967


Porto

VEDANA, Hardy. Jazz em Porto Alegre . Porto Alegre: LP&M, 1987


Porto
Fontes Consultadas - 181
O livro NEGRO EM PRETO E BRANCO - História Fotográfica da População Negra de Porto
Alegre, recebeu o prêmio Açorianos de Literatura - Categoria Especial em dezembro de 2006.

Publicado na web em novembro de 2009


Porto Alegre/RS - Brasil

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