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PIERRE LUCIE

FISICA BASICA
Primeiro Volume
A GÊNESE DO MÉTODO
CIENTÍFICO

DA.
EDITORA CAMPUS LTHol land
uma casa da Elsevier/North-
Rio de Janeiro 1977
-

� 1977, Editora Campus Ltda.

Todos os direitos reservados.


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poderá ser reproduzida ou transmitida
sejam quais forem os meios empregados,
eletrõnicos, mecânicos. fotográficos,
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Projeto Gráfico
Ana Luísa Escorei

A Solange e Pierre
Editora Campus Ltda
Rua Japeri 35 Rio Comprido
Tel 284 8443
20 000 Rio de Janeiro RJ Brasil

Ficha Catalográfica
(Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte do
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ)

Lucie, Pierre.
L971f F (sica bâsica.
Rio de Janeiro, Campus, 1977-
5v. ilust.

Bibliografia.
Conteúdo: v.1. A gênese do método cienu'fico. - v.2. As leis fundamentais da
·r
dinâmica e a s(ntese Newtoniana. - v.3. Sistemas de muitas partículas. - v.4. Ele­
tricidade e magnetismo. - v.5. Fenômenos de propagação. Ótica f fsica.

'
1. F fsica 1. T(tulo li. Título: A Gênese do método cientifico 111. Título:

'
As Leis fundamentais da dinâmica e a s(ntese Newtoniana IV. Título: Sistemas
de muitas partículas V. Tftulo: Eletricidade e magnetismo VI. Título: Fenõ­
menos de propagação. Ótica f (sica. .
CDD - 530
77-0526 CDU - 53
fNDICE

INTRODUÇÃO À COLEÇÃO FÍSICA BÁSICA, 13


INTRODUÇÃO AO VOLUME 1, 17

Capltulo 1
O HOMEM E A NATUREZA
Introdução, 19
1.1 Os Fenómenos Astronómicos. 20
1.1. 1 Algumas Definições, 20
1.1.2 O Movimento Aparente das Estrelas. 22
1.1.3 O Movimento Aparente do Sol, 25
1.1.4 O Movimento Aparente da Lua, 28
1.1.5 O Movimento Aparente dos Planetas, 29
1 .2 Os Fenõmenos Físicos, 31
1.2.1 Os Elementos, 31
1.2.2 A Queda dos Corpos, 32
1.2.3 Os Projéteis, 32
Conclusão, 32

Capítulo 2
A COSMOLOGIA E A FÍSICA ARISTOT�LICAS
Introdução, 33
2.1 O Nascimento da Cosmologia Científica na Grécia Antiga, 34
2.2 A Cosmologia e a Física Aristotélica. 40
2.2.1 A Vida e Obra de Aristóteles, 40
2.2.2 A Cosmologia, 41
2.2.3 A F(sica. 43
2.2.4 Análise.Crítica da Filosofaa de Aristóteles, 47
Conclusão. 49
Capítulo 3 Capítulo 7
O APOGEU DA ASTRONOMIA GREGA: PTOLOMEU GALILEU - A DEFESA DO
COPERNICANISMO
Introdução, 51 Introdução, 117
3.1 O Modelo Heliocêntrico de Aristarco de Samos, 52
3.2 Ptolomeu, 54 Primeira Parte
3.3 Os Elementos Básicos da Astronomia Ptolomaica, 55 A VIDA E A OBRA, 117
3.3.1 A Ordem dos Planetas, 55
3.3.2 Excêntrico Versus Deferente - Epicic•o: O Caso do Sol, 56 7.1 Os Primeiros Anos (1554.160
21• 117
3.3.3 o Problema da Retrogressão dos Planetas, 59 7.2 Os Ano� de Luta (1602-1632).
3.3.4 O Equante, 60 7.3 ºA R.eª?3º da Igreja: A Condenação
118
de Galileu (1633)
Conclusão, 61 7.4 5 Ultimos Anos 11633-1642). 120
122
f
Segunda Parte
Capítulo 4 A CONTRIBUIÇÃO DE GAL
ILEU NA DEFESA DA COS
DE ARISTÔTELES E PTOLOMEU A COPÉRNICO MOLOGIA COPERNICANA
7.5 As 123
� _ scobertas Astronómicas e suas Conseqüênci
Introdução, 63 7.6 A Re1e1çao do Princípio a� 124
de Autoridade , 127
4.1 A Transmissão do Aristotelismo ao Ocidente. 64 7.7 As Novas Premissas Cosm
ológicas, 128
4.2 A Igreja frente ao Aristotelismo, 65 7.8 A Ordenação do Univer· so pe 1o Mov.imento Circ
4.3 A Astronomia da Idade Média, 68 -
7 ·9 A Refutaçao ular 130
dos Argumentos c ontra O Movimento Diurno,
4.4 A Física Medieval, 69 Conclusão, 139 134
4.4.1 As Tentativas Conceituais, 69
4.4.2 O Problema dos Projéteis e da Queda dos Graves, 71 EP(LOGO, 141
Conclusão, 73 BIBLIOGRAFIA, 145

Capítulo 5
A RENASCENÇA: A INVESTIDA CONTRA O MITO ARISTOTÉLICO
Primeira Parte
COPÉRNICO E TYCHO BRAHE
5.1 A Revolução Copernicana, 76
5.1.1 Biografia Resumida de Copérnico. 76
5.1.2 A Elaboração de um Novo Sistema do Mundo, 77
5.2 Análise Crítica do Sistema de Copérnico, 81
5.2.1 Comparação entre o Sistema de Ptolomeu e o Sistema de Copérnico, 81
5.2.2 O Lado Tradicional e as Contradições na Obra de Copérnico. 94
5.3 As Reações do De Revolutionibus, 95
5.4 Tycho Brahe: O Espírito de Precisão, 97

.,"
Capítulo 6
A RENASCENÇA: A INVESTIDA CONTRA O MITO ARISTOTÉLICO
Segunda Parte
KEPLER E BRUNO
6.1 Kepler, 101
6.1.1 A Vida, 101
6.1.2 A Obra, 103
6.2 Análise Crítica da Obra de Kepler. 112
6.2.1 A Contribuição de Kepler à Investida contra o Mito Aristotélico, 112
6.2.2 A Contribuição à Astronomia, 112
6.2.3 A Contriuição de Kepler à Elaboração do Método Cientifico. 113
6.3 Giordano Bruno, 114
Conclusão, 116
INTRODUÇÃO Ã COLEÇ
ÃO FISICA BÁSICA

O presente volume é
completa, cujos títulos o primeiro de uma série
são: de cinco. A coleção

Volume I A gênese do
método científico
Volume 11 As leis fund
amentais da dinâmica
niana e a síntese newto-
Volume 111 Sistemas de
muitas partículas
Volume IV Eletricidad
e e magnetismo
Volume V Fenômeno
s de propagação
Ótica Física
constitui um curso de
Física Básica destinado
técnicos e científicos da aos alunos dos centros
s nossas Universidades.

·�
O conteúdo do curso,
rem logicamente de seu bem como a metodolo
gia escolhida, decor­
objetivo: o que entende
para a Universidade? mos por Física Básica
Em poucas palavras, en
destinado, pelos imperat tendemos que um curso
ivos da reforma universi
de um espectro tão tária, a alicerçar o ensino
complexo quanto o que
Ciencia e Tecnologia, se costuma rotular como
deve fornecer ao estud
de Flsica clássica. ante uma sólida cultura geral
Já definimos assim seu
limites da Física inicia conteúdo. Este curso nã
da com Galileu e Newt o ultrapassará os
o seu apogeu com Lagra on, e cuja expressão atingiu
nge e Laplace, com Cla
Bernoulli, com Fourier, usius e Helmholtz, com os
com Fresnel, com Ampere,
Gauss, Faraday, com

13
ns nomes nas conste la­
pre en �o do conju�t ?. A int!?dução e specífica de cada volume assinalará es­
Maxwell, com Rayleigh, para citar somente algu ses cap1tul os. �m ul�1ma anal ise, o professor será o juiz do que deve ne ces­
cõe s de físicos e mat emáticos que el a bor a ram, no decorrer de três .
sariament e ser mclu id o no cu rso, do que pode ser exposto em rápida s pin­
d Física Clássica.
�culos, o monumento de saber que chamamos e
celadas e d o. q:1e pode . se r omitido. A escolha depe nde rá fundame ntalmen­
ção de inclu ir neste curso
Fugimos assim, de liberadamente , à ten ta
te da s cond1çoe s locais.
à a Moderna
os costumeiros elementos de relatividade e intro duçã o Flsic
as, os currí culos d os dois Em re ��mo, qui �emos ofere cer uma exposição razoa velmente com-
qu e ge ralment e int egram, nestas últimas décad .
teta , ?ª,, F 1s1ca clássica em nív el introdut ório, deixando-se a cada
obvia m e nte o ponto r,
primeiros ·anos de Física universitária.Respeitamos smo.
.
usuano a lte rnat1vas de esc:>lhas quanto a tópicos não fundament ais.
p a ssa d e um modi .
de vista dos def ensores do que, para nós, não qu e a
A metodo !og1a, acreditamos, tem uma certa origina lida de . Ao pro·
a exp e riênci a,
Reconhe cemos, po r termos tentado algumas vezes curarmos uma viga mestra que possa tornar mais coe rente, mais consis­
s aluno s que i ngr es­ . .
discussão do problema dos gêmeos pode suscitar n o
ntes tente, mais solidamente estruturada a exposição de tópicos ta-0 d',versos
que cert a s corre - .
sam na universidade, um interesse indiscutível, quant o a me canica da partícula e os fenôme nos de difração, por exem·
educacionais rotulam de motivação. pi o, pen..5amos que o me!hor seria nos escudarmos no tão falado e infeliz­
d aque las (frus­
Mas é t ambém dever, ditado pela análise imparcial mente tao pouco conhecido (ou pratica do) método científico
que o intere sse demo nstra do, neste
t radas) experiências, re conhe cermos O que caracteriz� o mét �d� ci�nt ífico em Física é a co�strução de
l tivida d e restri ta, ou por _ _
nível, por alguns dos aspectos paradoxais da re a
� ode ios matemat!�áve,s. A ms1st enc1a expl ícita, consciente, na elabora ­
da e ne(gia e m sist emas
problemas ligados diretament e à quantiza ção do çao de mod elos f 1s1co� e. na sua_ associação com os modelos matemáticos
casos a m a nifest ação
atômicos ou moleculares, é na maioria dos corre spondente s const1�u1 q le,t-motiv do curso, a t ônica domina nte em
deslumbramento qu e acompanha a
incompree nsão. ,
a ao e nsino t �os os cap1tulos; e nisto, acre ditamos, reside a originalidade metodoló­
Depois d e uma vida profissional int eiram ente de dicad gica a que nos referimos.
.
iência s, e nsaio s . .. sem conta,
da Física, de pois de tentativas, exper Esperamos pode r conduzir o leitor, sem de scontinuidades incô­
pode ha v er form a ção sólida em
resta-nos finalment e a certeza que não modas, dos modelos fáceis e intuitivos da mecânica da partícula com
tanto em ní ve l conce it uai como
Física sem uma compreensão profunda, seus. aspectos conc:et os, d� escala humana, até os mod elos infinita� ente
nt e e ssa comp re e nsã o , esse contato .
ope racional, da Física clássica.É some mais abstratos da ?t1ca Hs1c�, em que os sucessos iniciais retumbantes do
p nsam e nt o ci e ntífic o qu e carac­
int ele ctual com as grandes corr entes do e
modelo ondula tó rio nos fe�omenos de difração e de inte rferência, cedem
que p er mi t irã o às novas g erações .
terizam os séculos XVII, XVIII e XIX, lug�r a uma c�ít1ca essencial ou talvez mesmo existencial nas t entativas
nas n o ssas u n iversi dades esc aparem
de físicos e de enge nheiros forma dos de de mterpr �taçao de ?ertos fen ômenos l igados à polarização da luz. Pr epa­
m en t e e speci a lizada . Ess e tipo
aos perigos da formação monolítica rar-se- � assim o caminho para os mode lo s futuros da Mecânica Quântica
formação pode ter sua utilidade como e lem e n to da linha de mont agem
a limenta os des­
essencial mente matemático s.
do complexo científico, técnico ou mesmo social que ?º
O nív el curso é o que acreditamos a dequado e aconselháv el às

canc : de qualquer �/uno universitário . . . Acr editamos qu e um d�mínio


gen et icame nt e pouco permeável _
tinos de uma nação. No e nta nto, por ser nossas universidades. Não pretendemos ela borar um curso fácil ao al­
s modo s d e p e nsar ou de agir, por
a uma int egra ção horizontal com outro
u m const ituíd o p el a herança
se distanciar cada vez mais do tronco com. ra �o �vel dos conceitos (mais do que do formalismo) da chamada f/sica
a nossa cul t ura, a e sp eciali­
inte lectual cujo paciente acúmulo constitui ção clas�ica elemen�ar exige grande esforço e um trabalho prolongado e
o a ofer e cer par a a forma
zação exa cerbada tem p equena contribuiçã pa �1ente . �cr ;d1�amos qu e os problemas mais árduos irão requerer uma
de e e m muito s c a sos únic a
dos 1 (deres, dever precípuo da Universida· · maior pers1st enc!a dos alunos. Porém, sabemos que uma vez resolvidos,
justificativa de sua existência. teremos c ?nse gu1do parte do no sso objetivo: convencer e sta juventude de
nso. A maio­
O conteúd o deste curso pode parece r por demais· exte que as coisas do espírito, a formação honesta do homem e do cidadão
mes t res à Físic a Básica, e
ria das nossas unive rsidades consagra quatro se mudaram muJ,to �?�c? �;s?e o século de Péricles, e que os pequeno�
d a m a téria reunid a nos
não resta dú vida d e que o e studo aprofundado esforços, os fac li1tanos inte le ctuais soment e podem preparar aimas
a s v ezes se r - in e xe ­
ci nco volumes desta coleção poderá pare cer - e muit pequenas e futuras falências de carát er.
pode m ais pode m e­
qüível. M as, como diz a sabedoria popular, "quem com exceção �o volume 1, os capítulos te rminam com problemas
nos". Em cada um dos volume s do curso, . a lguns c a pítulos pod e m se r . _
resolv1dos e com series de exerc(cios, de questões conceituais e de pro-
post os de la do, sem que essas omissões prejudiquem seriam e nte a corn-
15
14
blemas. Os exerc1c1os são geralmente aplicações imediatas, ou quase INTRODUÇÃO AO VOLUME I
imediatas, da teoria desenvolvida no capi'tulo correspondente. São desti­
nados a firmar os conhecimentos (na terminologia de Bloom). As ques­
tões conceituais exigem muito mais, desde a compreensão dos conceitos
até a análise e a avaliação de certas situações propostas. Aconselhamos o
professor a discutir essas questões em sala de aula. Os problemas reque­
rem tudo o que precede - pelo menos os mais difi'ceis - e ao mesmo
tempo um domínio razoável do formalismo matemático. Este não ultra­
passa o ni'vel exigido nos cursos de cálculo e de álgebra linear introdu­
tórios. Para os casos de dúvidas a respeito de possíveis defasagens entre
os cursos de F i'sica e os de Matemática, acrescentamos complementos,
em final de capi'tulos, onde são expostos os algarismos necessários, de um
ponto de vista exclusivamente operacional.
A elaboração deste curso deve muito a muitos. Em primeiro lugar
a meus colegas do Departamento de Física da PUC, Rio de Janeiro onde
foi iniciado e - em parte - testado. Em segundo lugar a meus cole�as do
Instituto de Física da UNICAMP, Campinas (SP), onde prosseguimos
atualmente na elaboração do texto, num período de licença que nos foi
concedido pela PUC/RJ. Somos particularmente gratos à Direção do Este volume procura resumir a evolução do pensamento científico
Instituto de Física Gleb Wataghin, da UNICAMP, por nos ter dado a desde a Grécia até a revolução científica do século XVII. Iniciando-se em
oportunidade de continuar e ampliar em Campinas o trabalho iniciado no Aristóteles, termina com Galileu, ou melhor, com a contribuição de
Rio de Janeiro. Galileu para a derrubada do mito aristotélico e para a elaboração do
Evitamos citar nomes. São muitos e nos arriscaríamos a pecar por método científico. O volume 2 retornará, no seu primeiro capítulo, à
omissão. A todos, os meus sinceros agradecimentos. Tanto as críticas, obra puramente científica de Galileu e a seu papel na elaboração da
como as discussões e os incentivos nos foram particularmente preciosos. ciência moderna.
Agradecemos também o trabalho anônimo dos que contribuíram Nosso objetivo é dar aos alunos das nossas universidades um
para a boa apresentação dos livros: datilógrafas, desenhistas, diagrama- retrato acessível e razoavelmente completo do que constitui parte da
dores, compositores . . . herança que tornou possível a existência da nossa civilização. Além das
A Editora Campus emprestou à realização gráfica e à composição obras dos grandes mestres (Aristóteles, Ptolomeu, Copérnico, etc.... )
dos textos sua reconhecida competência. encontramos uma ajuda preciosa nos textos de Koyré, Kundt, Cohen e
muitos outros, citados na bibliografia que termina o volume.
Acreditamos que o conteúdo deste volume deva fazer parte inte­
grante e indispensável de qualquer curso de Física básica de nível
universitário.

1
1

Pierre Lucie, -0utubro de 1977 1

\
16 17
Capítulo 1
O HOMEM E A NATUREZA

INTRODUÇÃO

O objetivo da Física é o conhecimento da Natureza "inanimada".


Esse conhecimento é considerado satisfatório quando se desco­
brem, atrás da diversidade dos fenômenos, certas regularidades, certos
padrões de comportamento.
A existência dessas regularidades se traduz pelo que nós chamamos
de "leis da Natureza".
Tentemos entender isso por um exemplo. Sabemos que todos os
corpos "pesados" caem: uma pedra, um livro, uma moeda . . .
Nisto, isto é, no fato da queda, não há nada de notável, aparente­
mente: nós nascemos, crescemos, vivemos e morremos em um mundo em
que as coisas caem.
O que há de muito mais surpreendente é que dois objetos tão
diferentes como um livro e uma moeda, quando largados simultanea­
mente, caem juntos.
Eles caem juntos no Rio de Janeiro, em Brasília, em Belém, em
Paris ou mesmo - nos disseram os astronautas - na Lua.
Caem juntos em quaisquer circunstâncias, desde que largados si­
multaneamente e desde que sejam suficientemente pesados e compactos
(não cairiam simultaneamente, por exemplo, um livro e uma folha de
papel, a não ser que a experiência se faça na Lua).
Essa regularidade constitui uma lei da Natureza. No decorrer deste
curso, voltaremos muitas vezes a essa lei particular, e encontraremos
várias outras.

19
Devemos aqui abrir um parêntese. O que há de realmente extraor· abstração dos acidentes do relevo), limitado por uma circunferência
dinário é que, primeiro, existam tais regularidades e, segundo, que o chamada horizonte.
No horizonte a Terra se "junta" com a abóbada celeste; esta
homem tenha sido capaz de descobri-las, ou melhor, de descobrir algu-
abóbada é azul de dia e escura à noite, pontilhada de pontos bri­
mas delas.
Prestemos atenção à complexidade fantástica do mundo em que lhantes.
vivemos. Em grande parte, é verdade, fomos nós que o tornamos tão Todos os astros visíveis parecem presos à abóbada celeste. Alguns
complexo, e um exemplo disso é um automóvel ou um receptor de deles, como o Sol e a Lua, têm diâmetros aparentes apreciáveis a olho nu;
televisão. Mas não importa, podemos voltar à Natureza antes da interven­ outros (os planetas), quando vistos através de um bom binóculo, têm
ção do homem: o balançar dos galhos das árvores pelo vento, as mutações aparência de discos às vezes deformados. No entanto a imensa maioria
incessantes das nuvens, a chuva, os relâmpagos, as cachoeiras espumantes, dos astros visíveis aparecem sempre como pontos brilhantes, qualquer
o arco-íris . . . , todos ou quase todos os fenômenos naturais são de uma que seja o meio de observação; são as estrelas.
extraordinária complexidade. Para cada observador situado na superfície da Terra existe uma
O fato de que o homem tenha conseguido descobrir padrões direção privilegiada: é a vertical, indicada por um fio de prumo ou pela
ordenados e imutáveis de comportamento nessa Natureza aparentemente direção da queda de um corpo .
tão complexa e desordenada é certamente um motivo de satisfação e de A vertical de um ponto encontra a abóbada celeste em um outro
orgulho. ponto chamado zênite (fig. 1 ). Se imaginarmos que, abaixo do horizonte,
Com efeito a progressiva compreensão da Natureza conseguiu a abóbada celeste visível se prolonga por outra abóbada, invisível, para
livrar-nos de algumas das nossas superstições ancestrais e sobretudo do juntas formarem a esfera celeste, o ponto diametralmente oposto ao
medo irracional que muitos fenômenos naturais despertavam no homem zênite sobre essa esfera é chamado nadir.
primitivo.
Diz-se que os gauleses tinham pavor que o Céu caísse nas suas
cabeças. Boa parte deste curso é consagrada a mostrar quão infundado Zênite

era esse medo.


Abóbada
Celeste,
No entanto, a estrada em busca do conhecimento nem sempre é
larga e florida. Percorreremos juntos partes desse caminho, as mais
características, na lenta maturação do espfrito humano e na elaboração
do método científico. Veremos assim como alguns poucos privilegiados
foram capazes de entreabrir a porta estreita da verdade.
Voltemos pois à Grécia dos séculos V ou IV antes de Cristo.
Para o homem simples, livre da avalancha tecnológica, da poluição
atmosférica, dos arranha-céus das metrópoles, a Natureza se impõe pri·
meiro pelo magnífico espetáculo cujo palco é o céu: a dança do Sol, da
Lua, dos planetas e das estrelas. A seguir, atividades diárias, os fenô­
menos naturais corriqueiros, fornecem oportunidades sempre renovadas Nadir
de observação da Natureza.
FIGURA 1

. O horizonte de um lugar, com o seu zénite.


1 .1 OS F E NOMENOS AST RONOMICOS

1 .1 . 1 ALGUMAS DEFINIÇÕES Como vários fenômenos (desaparecimento progressivo de um navio


que se afasta, etc . . . .) provam que a Terra não é um disco, e sim uma
Para alguém que se mantenha em pé no meio de uma planície, a esfera (aproximadamente), cada observador tem o seu próprio horizonte,
Terra se apresenta como um disco, aproximadamente plano (se fizermos sua própria abóbada celeste e seu próprio zênite (fig.2).

20 21
Se observarmos o céu noturno durante várias horas, voltados para
o sul, as constelações aparecem acima do horizonte, à nossa esquerda
(isto é, no oriente) sobem, passam por um máximo de elevação acima do
horizonte, descem e desaparecem abaixo do horizonte, à nossa direita
(isto é, no ocidente).
A máquina fotográfica é preciosa para observar o movimento
aparente das estrelas. Se orientarmos o eixo ótico da câmara, em dire­
ção ao sul, e de 20 a 25° acima do horizonte (para o Rio de Janeiro
ou São Paulo), com um tempo de pose de duas a três horas, o filme
Terra revelado mostrará as trajetórias aparentes das estrelas, sob forma de
arcos de circunferência, todos eles centrados no mesmo ponto da es·
°
fera celeste. Esse ponto está a 23 acima do horizonte, no Rio de
°
Janeiro e em São Paulo, a 8 no Recife, a 1 3° em Salvador, e a 30 °
FIGURA 2 em Porto AI egre . . .
Cada lugar na Terra tem seu horizonte, sua vert ical, seu zênite.
Essas distâncias angulares são exatamente iguais às latitudes das
cidades, isto é, ao seu afastamento angular do equador terrestre.
1 .1 .2 O MOVIM ENTO APARENTE DAS ESTRELAS

Embora o movimento do Sol seja para nós mais óbvio, comecemos Pólo Su l ,-

Celeste / ,_...- ...,
por estudar o movimento aparente das estrelas, por ser ele o mais
simples.
A/ /
_J----- 1
.,,,,. \
, , .:,,
Como foi dito acima, as estrelas, visíveis somente à noite, apare- ;r .""-
, ,,
(/;/ ; ...., ..... ,e
,' '�J ,
cem sempre como pontos brilhantes. I ·, I '
I "" Terra I 1 '
A distância angular entre duas estrelas quaisquer é constante. Isto 1 I
8 I
significa que a configuração das estrelas, na esfera celeste, é uma confi· ••• '1- I

guração fixa. Uma outra conseqüência é que grupos de estrelas vizinhas �• I/

desenham no céu figuras geométricas também fixas. Algumas dessas / , .


')(
figuras são facilmente reconhecíveis: forrnam o que se chama de constela·
ções. Todos sabem reconhecer a constelação do Cruzeiro do Sul, por sua
forma característica.
Conforme a época do ano e a �ora da noite, uma determinada
constelação estará mais o u menos perto do horizonte, ou do zênite;
FIGURA 3
.
A esfera celeste, seus pólos, e o horizonte para a latitude do Rio de Janeiro ou de São Paulo.
poderá até acontecer que ela seja invisível.
Por exemplo, à meia-noite em meados de dezembro, no Rio de
janeiro, a estrela Rigel, na constelação de Orion, está praticamente no .
\

zênite; Rigel, de um branco azulado, é uma das mais bril hantes estrelas Por definição, o ponto da esfera celeste em torno do qual giram,
visíveis. Pode ser facilmente encontrada na frente das conhecidas "Três aparentemente, as constelações, é chamado pó/o sul celeste. Diametral­
Marias". Na mesma hora e no mesmo lugar, o Cruzeiro do Sul está justo mente oposto ao pólo sul, na esfera celeste, encontra-se o pó/o norte
acima do horizonte a sudeste, e Antares, a vermelha, da constelação do celeste.
Escorpião, é invisível. Existe uma estrela, a Estrela Polar, que coincide quase que exata­
Seis meses depois, à meia-noite de 1 5 de junho, a gigante Antares mente com o pólo norte celeste; no hemisfério sul não é possível ver o
°
está no zênite (ou quase), Rigel é invisível e o Cruzeiro do Sul está a 30 pólo norte, nem, conseqüentemente, a Estrela Polar. Mas para os habi­
acima do horizonte, a su-sudoeste. tantes do hemisfério norte, a Estrela Polar concretiza o centro em torno

22 23
do qual giram as constelações visíveis para eles. Nós não temos essa sorte. zonte de um lugar uma inclinação igual à latitude do lugar, com o pólo
Não há estrela que coincida com o pólo sul. sul acima do horizonte no hemisfério sul, e o pólo norte acima do
Se uma estrela estiver suficientemente próxima do pólo sul, (me­ horizonte no hemisfério norte.
°
nos de 23 para o Rio de Janeiro), ela será sempre visível, em princípio, O movimento em bloco das estrelas é sua característica mais
já que a circunferência que descreve está toda acima do horizonte. Seria importante. Se uma estrela nasce hoje às 9:00 horas da noite, nascerá
o caso da estrela A na fig. 3. Um exemplo é a estrela t3-Carina. Qualquer amanhã às 8:56, mas nascerá sempre no mesmo ponto do horizonte. (O
que seja a noite do ano, t3-Carina é sempre visível: encontra-se acima do adiantamento de 4 minutos se explica evidentemente pelo fato de que se
ho'rizonte. (No entanto a visibilidade, sobretudo imediatamente acima do as estrelas culminam com intervalos de 23 horas e 56 minutos, nascem
horizonte, é muitas vezes difícil. Por quê?) com o mesmo intervalo, em noites consecutivas.)
°
Se uma estrela dista do pólo sul mais de 23 (sempre para o Rio de
Janeiro) encontra-se ora acima, ora abaixo do horizonte (durante a
noite), conforme a época do ano. Ê o caso das estrelas B e C da fig. 3. 1 . 1 . 3 O MOVIMENTO APARENTE DO SOL
Assim é que, em dezembro, a constelação do Escorpião é invisível, pois é
durante o dia que se encontra acima do horizonte. Ê visível, no entanto, Como as estrelas, o Sol nasce sempre no oriente (lado do leste),
em junho. isto é, à esquerda do observador que olha para o pólo sul, culmina e
Há, por fim, estrelas que estão sempre abaixo do horizonte e põe-se no ocidente (lado do oeste).
conseqüentemente são sempre invisíveis. Ê o caso da estrela D na fig. 3. À primeira vista, poderíamos então pensar que o Sol é uma estrela
Um exemplo disto é a constelação da Ursa Menor, invisível no Rio de (o que efetivamente é) simplesmente mais brilhante que as outras e que
Janeiro, como em quase todo" o território brasileiro. ocupa, na esfera celeste, uma posição fixa em relação às outras estrelas.
O plano definido pela vertical e o pólo (ou o eixo sul-norte) da Isto no entanto não é verdade. Com efeito:
esfera celeste é chamado plano meridiano do lugar em que o observador
se encontra. Ê fácil ver que, no seu movimento, uma estrela atravessa o a. ao contrário das estrelas, o Sol não nasce nem se põe no mesmo
meridiano no instante da sua maior elevação acima do horizonte. Diz-se ponto do horizonte, em dias consecutivos. Para um observador no Rio de
que ela culmina. Na fig. 3, o plano da figura coincide com o meridiano. Janeiro ou em São Paulo, em 22 de dezembro o Sol nasce a sudeste,
Consideremos uma estrela qualquer visível para nós, Sírius, por culmina no zênite e põe-se a sudoeste (fig. 4 ) . É nesse período do ano
exemplo (incidentalmente, Sírius é a mais brilhante de todas as estrelas; que a duração do dia é a maior: o dia é mais longo que a noite.
encontra-se no prolongamento das Três Marias do lado sul). O intervalo A seguir, no correr dos dias e dos meses, o plano que contém a
de tempo que separa duas culminações sucessivas de Sírius (ou de trajetória do Sol se desloca para o norte e conseqüentemente o ponto em
qualquer outra estrela) é chamado dia sideral. O dia sideral dura aproxi­ que nasce o Sol se aproxima do leste, ao mesmo tempo em que o ponto
madamente 23 horas e 56 minutos. em que ele se põe se aproxima do oeste.
Embora de dia o brilho do Sol nos impeça de ver as estrelas, não A 21 de março, o Sol nasce exatamente a leste e se põe exata·
duvidamos que continuem seu movimento de rotação. Tornam-se visíveis mente a oeste, mas culmina mais para o norte, em relação ao zênite: 23 a
º
durante as eclipses totais do Sol e os gregos já sabiam que elas podiam ser 24 mais ao norte, ou seja, a latitude do Rio ou de São Paulo.Nesse dia,
vistas, olhando-as do fundo de um poço muito profundo. Finalmente, 21 de março, a trajetória diurna do Sol é o equador celeste.Sendo o
temos hoje em dia informações que os gregos desconheciam: se Sírius por equador cortado em duas partes iguais pelo horizonte, noite e dia têm,
exemplo culmina, no Rio de Janeiro, às 23 horas de hoje, culminará em 21 de março, exatamente a mesma duração.
aproximadamente 1 2 horas mais tarde na Austrália. Isto prova que as De março a junho, a trajetória solar continua a se afastar para o


estrelas completam o seu movimento de rotação pelo hemisfério da norte. O dia torna-se mais curto que a noite.A 22 de junho o Sol .nasce e
esfera celeste que é invisível para nós. se põe em pontos do horizonte ou mais ao norte de leste . e oeste,
Podemos agora resumir: as estrelas aparecem como pontos brilhan­ respectivamente. Nesse dia, o Sol culmina no ponto mais afastado do
tes, com posições relativas fixas na esfera celeste. Seu movimento aparen· zênite; é também o dia mais curto do ano.
te é um movimento de rotação em bloco em torno do eixo sul-norte da Depois de 22 de junho e até 22 de dezembro seguinte, a trajetória
esfera celeste, do oriente para o ocidente. Esse eixo tem sobre o hori- solar volta para o sul, vindo ocupar, em sentido contrário, todas as posições

24 25
que tinha ocupado de 22 de dezembro a 22 de junho. A duração do dia O deslocamento da trajetória solar, na esfera celeste, é um dos
volta a aumentar. fenômenos que diferenciam o comportamento do Sol do das outras
A 23 de setembro o Sol nasce de novo, como a 21 de março, estrelas.
exatamente a leste e põe-se exatamente a oeste. Nesta data, dia e noite
têm de novo a mesma duração. b. E m conseqüência do deslocamento da sua trajetória o Sol não
ocupa uma posição fixa em relação às estrelas na esfera celeste.
Observando-se, antes do amanhecer, as estrelas visíveis acima do

- - - - f -, _ _
j Zênite ponto do horizonte em que o Sol vai nascer, pode-se saber em que
constelação o Sol se encontra.
/ t ,,, 4', -...... ' Essas observações, repetidas dia após dia, mostram que o Sol se
/
/

1
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- - ,.....
desloca em relação às estrelas fixas. Assim é que, no solstício de verão, o
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/Oest}r 1 ,, ,, -;- , '• Sol se encontra na constelação do Sagitário. No início de fevereiro está
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1
- - .,. - ,
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em Capricórnio, no equinócio de outono, em Peixes, nos solstício de
1 _ - ç>o• '\ 1 , , , inverno está em Gêmeos e no equinócio de primavera, em Virgem,

r\
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voltando a Sagitário no solstício de verão.
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22 dez.- 2 3,se\· i
sentido do
movimento
FIGURA 4 das estrelas
No Rio de Janeiro e em São Paulo, o Sol culmina no zênite no solstício de verão. Em que época
do ano o Sol culmina no zênite., em Belém do Pará?

A seguir o dia torna-se mais longo que a noite, até que, a 22 de


dezembro, o ciclo se fecha, com o Sol mais próximo do sul, culminando
de novo no zênite.
Assim é que, nesse vai-e-ven:i, a trajetória solar inverte seu mó­
vimento duas vezes por ano: a 22 de dezembro, dia em que está o mais
ao sul, e em 22 de junho, dia em que está o mais ao norte. Na vizi­ 'solstíc,o de inverno
nhança dessas duas épocas, o deslocamento da trajetória de um dia
para o outro é muito pouco sensível. Parece que, por alguns dias a FIGURA 5
trajetória é estacionária. Por isso, essas duas datas são chamadas sol;tí­ Para ter o movimento aparente do Sol numa época determinada, escolha, na eclíptica, a posição
cios: o de 22 de dezembro é o solstício de verão; o de 22 de junho é- correspondente, e gire a esfera cefeste em torno dos eixos dos pólos.
o solstício qe inverno. ·
Por causa da igualdade do dia e,da noite, em 22 de setembro e 21
de março, o primeiro destes dias é chamado equinócio de outono e o Se representarmos as posições sucessivas do Sol, dia após dia, na
segundo, equinócio de primavera. esfe�a celeste, descobriremos que ele descreve, em um ano, um círcu!o

26 27
maior nessa esfera. Esse círculo é chamado ecl(ptica.O plano da eclíptica zona da eclíptica. Esses diferentes aspectos da Lua são chamados
faz ' com o plano do equador celeste, um ângulo de 23 1 /2 (fig. 5). fases.
º

o Sol descreve a ecl íptica em sentido contrário ao movimento de A Lua nova é quase invisível: apenas se vê um crescente brilhante
rotação das estrelas. Isto explica que, em relação às estrelas, o Sol se muito fino, na borda do disco lunar.
atrasa. Com efeito, efetua uma rotação diurna (intervalo entre duas O crescente visível passa a aumentar, e aproximadamente uma
culminações) em 24 horas, enquanto que as estrelas, como vimos, giram semana depois da Lua nova, a metade do disco lunar é visível: é a meia
em 23 horas e 56 minutos. Lua.
Posto que o Sol dá a volta da eclíptica em um ano, concluímos Duas semana·s depois da Lua nova, ou uma semana depois da meia
que recua aproximadamente de 1 ° por dia, em relação às estrelas. Lua, a totalidade do disco lunar é visível: é a Lua cheia.
1

d
A fig. 5 mostra três trajetórias características do Sol. A trajetória ·A parte visível volta a diminuir, para chegar de novo à Lua nova,
correspondente ao solstício de verão é a mais para o sul. Nesse solstício, duas semanas depois da _Lua cheia.
o Sol se encontra no ponto da eclíptica o mais afastado do equador, em O ciclo completo das fases lunares dura em média 29 1 /2 dias.
direção ao sul.
A trajetória do solstfcio de inverno, pelo contrário, é mais para o
norte: é descrita pelo Sol quando este ocupa o ponto da eclíptica o mais 1 . 1 .5 O MOVIMENTO APARENTE DOS PLANETAS
afastado do equador, mas agora em direção ao norte.
Finalmente, nos equinócios, o Sol se encontra em um dos pontos Há cinco planetas vis íveis a olho nu: Mercúrio, Vênus, Marte,
de interseção da eclfptica com o equador. Nos dias dos equinócios, a Júpiter e Saturno.
trajetória do Sol confunde-se, conseqüentemente, com o equador celeste. Para um observador principiante, é muito difícil diferenciar os
Como o horizonte encontra o equador em dois pontos diametralmente planetas das estrelas. Como as estrelas, os planetas se apresentam ao olho
opostos, é bem evidente que, nos equinócios, dia e noite têm igual sem instrumento (binóculo ou telescópio), como pontos brilhantes na
duração. esfera celeste.
Ê preciso não confundir os dois movimentos aparentes do Sol: o No entanto, observações repetidas noite após noite, mostram que
movimento diurno, de leste para oeste, compartilhado por todos os alguns desses pontos brilhantes se deslocam em relação aos pontos fixos
corpos celestes, e o movimento anual, em sentido inverso (de oeste para das estrelas: são os cinco pontos correspondentes aos cinco planetas.
leste), muito mais lento, ao longo da eclíptica. Em média, os planetas também recuam em relação às estrelas,
como o Sol e a Lua. Como no caso da Lua, as trajetórias dos planetas na
esfera celeste não se afastam nunca muito da eclíptica. Quando um
1 . 1 .4 O MOVIMENTO APARENTE DA LUA planeta é visível, ele se encontra sempre numa zona em forma de "cinta",
tendo a eclíptica como linha média. A essa zona d á -se o nome de
O movimento aparente da Lua é basicamente semelhante ao do zodt'aco. A largura do zodíaco é da ordem de 1 5 (para os cinco planetas
°

Sol; nasce no oriente, culmina, e põe-se no ocidente, e como o Sol, recua visíveis), isto é, 7 a 8 de cada lado da eclíptica.
°

em relação às estrelas. No entanto, esse movimento é muito mais rápido Mercúrio e Vênus dão a volta do zod íaco em um ano, em média.
do que o do sol: 1 3 por dia em vez de 1 . De modo que, no decorrer de Marte em 23 meses, Júpiter em 1 2 anos e Saturno em 29 anos.
° °

uma noite com Lua, podemos vê-la se deslocando de uma constelação à Esses valores, no entanto, são valores médios aproximados. Um
outra. ciclo de Júpiter, por exemplo, pode diferir sensivelmente dos 1 2 anos
Por outro lado, a trajetória da Lua na esfera celeste não é tão médios.
simples quanto a do Sol, embora não se afaste muito da eclíptica: no Existe um fenômeno característico que diferencia o movimento
máximo de 5 de um lado e de outro. dos planetas dó movimento de todos os outros corpos celestes: é o cha­
°

A intervalos médios de 27 1 /3 dias, a Lua volta a ocupar a mesma mado movimento retrógrado.
posição na esfera celeste. Dissemos acima que "em média os planetas recuam em relação
Há u m traço característico do fenômeno lunar: é a mudança de às estrelas". Há, no entanto, marcantes irregularidades nesse movi­
aspecto do disco da Lua, à medida em que descreve a sua trajetória na mento.
28 29
* * Vên us é muito mais fácil de se observar que Mercúrio, pois é O
.
* .
obJeto .
mais brilhante do céu. Quando Vênus se encontra a leste do Sol
** "seg�e" o S�I na sua trajetória e conseqüentemente se torna visível log�
d�po1s do por do Sol. O movimento retrógrado do planeta, através do
.lf-Touro
disco Solar, leva Vênus a oeste do Sol, precedendo-o então no seu
movimento diurno. Nesse caso Vênus aparece logo antes do nascer do
'* � .lf- Tr jetória de Marte
* * ·� ,.. Sol.
Aries
*:" • �-�ptica
Esse movimento oscilatório de Vênus, encontrando-se ora a leste
ora a oeste do Sol, aliado ao brilho intenso do planeta, tem chamado �
_

·
atençao de todos os que observam o céu noturno. Seu aparecimento ora


ª? entardecer ("estrela" vespertina), ora ao amanhecer ("estrela" �atu­
tma), pode levar o observador ocasional a pensar que se trata de duas
"estrelas" diferentes.
Os outros três planetas: Marte, Júpiter e Saturno, formam o grupo
.
FIGURA 6
Exemplo da retrogressão de Marte. dos planetas supenores. Ao contrário do que acontece com Mercúrio
e Vênus, a elongação desses planetas pode tomar todos os valores entre
zero (cgnjunção) e 1 80 (oposição).
º

E importante observar que os planetas superiores somente retro-


Consideremos um planeta qualquer: Marte, por exemplo. Noite .
gndem quando estão em oposição e que é durante o movimento retró­
após noite, vemos o planeta se deslocar para leste, através das constela­
grado que o seu brilho é mais intenso: Marte em oposição chega a ser
ções das estrelas fixas: é o movimento normal do planeta.- Mas chega um mais brilhante que Sírius.
tempo em que o movimento para leste se torna mais lento, até parar. A Terminamos assim a revisão dos fatos de observação comum nos
seguir, o planeta começa a deslocar-se para oeste (isto é, no mesmo senti­ fenômenos astronômicos. Note-se que não procuramos, até agora ne-
do que o movimento diurno das estrelas). Marte então deixa de recuar em nhuma "explicação" desses fatos.
relação às estrelas: está agora adiantando-se em relação a elas. É o Passemos aos fenômenos f ísicos.
chamado movimento retrógrado do planeta. No caso de Marte esse
movimento dura aproximadamente um mês e meio, depois do qual o
planeta diminui a velocidade do movimento retrógrado, pára e volta a
1 .2 OS FENÓMENOS FfSICOS
deslocar-se normalmente para leste.
A fig. 6 mostra uma retrogressão de Marte, através de Áries e de
1 .2.1 OS E L E M E NTOS
Touro. Observe-se que a trajetória do planeta mantém-se sempre na
proximidade da ecl i'ptica.
Todos os planetas retrogridem, mas com per(odos diferentes. De­ Para as primeiras civilizações, como ainda hoje para o homem
correm 1 1 6 dias entre duas retrogressões sucessivas de Mercúrio, 584 dias primitivo, as coisas da Natureza são constituídas de pouqu íssimos ele-
para Vênus, 780, 349 e 378 dias para Marte, Júpiter e Saturno, respecti­ mentos.
vamente. Em primeiro lugar vem a terra: sempre presente, ela pode se apre­
Até agora, o comportamento dos planetas parece seguir um padrão sentar sob aspectos diversos: barro, areia, pedra . . .
. A seguir vem a água, quase tão onipresente quanto a terra, mas
comum. Há no entanto um aspecto particular de seu movimento, que

No primeiro grupo encontramos Mercúrio e Vênus, os chamados


permite dividir o conjunto dos cinco planetas em dois grupos. decididamente di.��rente desta pela flui�:lez, a transparência, etc.
O ar, invisível mas indispensável à vida, leve, sempre acima da terra

1
planetas inferiores: eles se distinguem dos outros pelo fato de permane­ e da água, é o terceiro elemento.
Finalmente vem o fogo, com suas características especiais, e que
cerem sempre na proximídade do Sol. A distância angular do Sol a
tem a propriedade óbvia de ser ainda mais leve que o ar, pois a chama
Mercúrio, chamada elongação do planeta, não ultrapassa nunca 28º. Por sobe no ar .
sua vez a elongação máxima de Vênus é 45 .
°

1 31

l
30
Todos os objetos de uso comum naquelas primeiras civilizações são Capítulo 2
obtidos a partir desses quatro elementos.
Assim é que o ferro ou o cobre são obtidos tratando-se pedras
A COSMOLOGIA E A HSICA ARISTOTÉLICAS
(minérios) pelo fogo.

1.2.2 A QUEDA DOS C O RPOS

Abandonados a si mesmos, todos os corpos caem. Alguns, como as


bolhas de ar na água "caem" para cima, mas todos os outros, ou melhor,
todos os corpos mais densos que o ar, caem na direção da superfície da
.terra, e se não forem contrariados no início (como no caso da flecha
atirada pelo arco), caem segundo a vertical.
Na experiência diária, a vertical assume assim um lugar privile­
giado. Não é somente a direção que nosso corpo toma quando estamos
em pé. É também a direção seguida por todos os corpos que caem, para
baixo ou para cima. .
O movimento de queda tem uma característica fácil de se perceber:
uma pedra que cai vai sempre mais depressa. É verdade que a folha seca que
INTRODUÇÃO
cai da árvore parece escapar à tendência universal da queda: não somente
foge da vertical, como também não se acelera.. visivelmente ao cair. O
movimento da folha seca é muito complicado; nós o afastaremos, pelo Por volta do ano 480 antes de Cristo, chegava a Atenas, vindo de
� .
menos por enquanto, das nossas preocupações. lonia, um homem chamado Anaxágoras.
. :4-naxágoras era um físico amante da Natureza. Tornou-se conhe-
cido e influente tanto .�ela austeridade de sua vida, como por seus conheci­
1 .2.3 OS PROJÉTEIS mentos e amor pela c1encia.
A�t �s dele, os eclipses do Sol eram atribuídas às manifestações de
.
A pedra arremessada pela mão ou a flecha atirada pelo arco, ira ?e divindades malévolas que mergulhavam a Terra nas trevas para
constituem fenômenos aparentemente diferentes da simples queda. punir �s homens �or seus desmandos. Anaxágoras foi o primeiro a
O fato da pedra ou da flecha continuarem em vôo "oblíquo" descobrir a verdadeira causa dos eclipses: a interposição da Lua entre a
depois de perderem o...contato com o propulsor inicial (a mão ou o arco), Terra e o Sol.
não deixa de ser curioso.Observemos por enquanto que a pedra arremes­ Depoi� de trinta anos de cidadania ateniense, Anaxágoras foi
.
sada, depois dessa fase inicial de vôo para cima, acaba no entanto b� �1 ?0 da cidade que estava se tornando o centro cultural do mundo
retornando à Terra, como no caso da queda simples. c1vll1zado da _época, isto é, a orla oriental do Mediterrâneo.
1 . A razao do banimento de Anaxágoras foi que ousava afirmar e

1
ens1 �ar que o Sol era � �a pedra de fogo maior que o Peloponésio, uma
CONC LUSÃO pen,nsula_ ao sul da Grec1a, do tamanho de Sergipe.
Fo, talvez com esse "incidente" que começou a se constituir um
Neste primeiro capítulo descrevemos alguns fatos de observação ac�rv� que foi se enriquecendo no decorrer dos séculos, acumulando
comum ligados a fenômenos astronômicos ou aos que acontecem na vida prim_e,ro os tesouros da cultura grega clássica, mais tarde os trabalhos dos
diária. e �ud1tos do final da Idade Média e da Renascença, para finalmente eclo­
O resto deste volume e o seguinte procurarão mostrar como, a _
dir, no seculo XVII, no que hoje chamamos o método científico.
partir desses fenômenos e de alguns (poucos) outros, se construiu uma A Física nasceu na Grécia - onde a palavra significava a "Natu­
ciência: a Física. reza", o "Cosmos" - há dois mil e quinhentos anos.
32
33
Iniciou-se pela contemplação da Natureza: "Eu nasci", dizia Ana­ procura de urna teoria para explicar o movimento aparente dos corpos
xágoras, "para poder contemplar as obras da Natureza". celestes iniciou-se na Grécia, no quinto século antes da era cristã.

1
É bem verdade que, pelo menos no início, o sentimento e a "Salvar os fenômenos" era a preocupação fundamental da filosofia
intuicão se sobrepunham muitas vezes à razão. A escola clássica grega científica grega. Salvar os fenômenos, isto é, explicá-los, procurar uma
dese�volveu modelos admiráveis de pensamento lógico: Platão e Aristó­ unidade subjacente lógica, ordenada e cornpreens ível.
teles, entre outros, são exemplos disso. Mas no estudo da Natureza, eles
Assistimos então a tentativas de criação de modelos mecânicos do
subordinam a explicação dos fenômenos observados a teoriaselaboradasa
Univer.so, verdadeiras obras-primas de relojoaria cósmica, modelos esses
priori, não sentindo a necessidade de verificar ou "falsificar" essas teorias
que p·udessem dar uma explicação para o movimento aparente das estrelas,
pela experiência.
do Sol, da Lua e dos cinco planetas conhecidos.
A Física dos gregos antigos era uma Física das causas finais : tal
fato ocorria porque, se não acontecesse, a harmonia e a ordenação do A criação desses modelos mecânicos tornou-se possível graças à
Universo, do Cosmos, seriam perturbadas. conjugação de duas "correntes" intelectuais: em primeiro lugar, a filo­
Aristóteles e Ptolomeu, para citar somente os dois filósofos mais sofia grega é imbuída da m (stica da perfeição e da eternidade, ou talvez
importantes para nós neste início, construírarn uma Cosmologia e uma melhor, do "eternal ismo". Em segundo lugar, o sexto século antes de Cris­
Física que eram monumentos de lógica. Esses monumentos ruíram - to vê nascer Pitágoras, e com ele, a Geometria.
embora dois mil anos tivessem sido necessários para derrubá-los - porque A mística da perfeição e do eternalismo, por um lado, e o espírito
precisamente ignoravam o papel preponderante da experiência na elabo­ geométrico, por outro lado, geram então o movimento circular uniforme,
ração de urna teoria científica . o movimento perfeito, sempre idêntico a si mesmo, e por isso mesmo
No entanto, a volta à Ciência grega é indispensável para nós todos. imutável e eterno.
Em primeiro lugar porque, sem a herança grega, estaríamos hoje, inte­ É de fundamental importância observar que o movimento circular
lectualmente, muito mais pobres. uniforme dominará todas as Cosmologias, de Platão até Copérnico (inclu­
Em segundo lugar, pelo fato de ainda hoje muita gente continuar sive). Dois mil anos serão necessários para livrar de sua tutela os modelos
acreditando em divindades benévolas ou malévolas, às quais os fenô­ do Universo.
menos naturais devem cegamente obedecer. É pois interessante termos Não é menos importante observar que será a Física, ao descobrir e
algum conhecimento dos mecanismos mentais que conseguem separar o interpretar corretamente o princ t'p io da inércia, que tornará possível essa
natural do "sobrenatural": são esses mecanismos que iniciam a elabora­ libertação revolucionária.
ção de qualquer Ciência. Assim é que a Cosmologia científica nasceu da vontade de des­
Finalmente, se é bem verdade que ruiu o edifício da Cosmologia e cobrir uma ordem compreensível debaixo da desordem aparente dos
da Física gregas, o tempo não conseguiu, nem conseguirá destruir a movimentos dos corpos celestes.
crença de que o mundo é ordenado, a certeza de que existem meios
universais de descrição d<1 Cosmos, a convicção de que há urna unidade O movimento aparente das estrelas não oferecia muita dificuldade.
Com efeito, suponhamos que as estrelas estejam "cravadas" sobre urna
subjacente, uma permanência essencial embaixo das mudanças observa­
das e sobretudo a fé nas possibilidades humanas em entender essa superfície esférica, cujo centro coincida com o centro da Terra e cujo
unidade e em descobrir essas leis universais. raio seja bastante maior que o raio terrestre.
Pois, sem essa crença, sem essa certeza e sem fé, não haveria A fig. 1 mostra que o plano tangente à Terra no lugar do observa­
ciência nenhuma. dor corta a esfera das estrelas (ou esfera celeste) ao longo de uma
circunferência (o horizonte). Sendo o raio da Terra muito menor que o
( raio da esfera celeste, o horizonte é praticamente um círculo maior dessa
2.1 O NASCIMENTO DA COSMOLOGIA CIENTfFICA NA GRÉCIA f esfera.
,

ANTIGA A linha dos pólos terrestres encontra a esfera celeste em dois


l� '

pontos: respectivamente o pólo sul e o pólo norte celeste. O círculo


Embora a Astronomia tenha provavelmente nascido na Babilônia, maior da esfera celeste, perpendicular ao eixo dos pólos, é chamado
de dois a três mil anos antes de Cristo, a cosmologia científica, isto é, a equador celeste.

34 35
7

O modelo das duas esferas é uma constante em todas as cosmolo­


gias, de Platão a Copérnico (com exceção de Aristarco de Samos,. do qual
diremos algumas palavras mais adiante).
t
1

Mas se o movimento das estrelas era facilmente "explicável", os


movimentos do Sol, da Lua e dos cinco planetas eram por sua vez muito
mais complicados.
Essa complicação não era no entanto razão suficiente para aban­
donar o movimento circular. Platão (428-348 A.C.), no Tfmeo, reafirma a
esse respeito as exigências da filosofia grega: Sol, Lua e planetas devem
s ter movimentos uniformes em órbitas circulares .
Todavia, Platão é muito pouco explícito a respeito desses movi­
mentos. Foi um aluno dele, Eudoxo (400-347 A.C.) que, pela primeira vez
imaginou um modelo mecânico extremamente engenhoso para os movi­
mentos dos planetas, do Sol e da Lua. O modelo de Eudoxo é chamado
"modelo das esferas homocêntricas" (ou concêntricas).
"' Pólo Norte Vejamos, no caso do Sol, como funciona o modelo de Eudoxo.
Celeste'
'\

FIGURA 1
Ao girar em torno do eixo dos Pólos, a esfera celeste "carrega" as estrelas no seu movimento
diurno.

O ponto do horizonte faz com o eixo dos pólos um ângulo


igual à latitude do lugar do observador: 23 aproximadamente para o
°

Rio de Janeiro e São Paulo, 8 para Recife, 30 para Porto Alegre,


° °

etc. . . .
Imaginemos agora que a esfera celeste gire com movimento uni­
forme, no sentido indicado na figura, em torno do eixo dos pólos, e que
uma revolução se complete em 23 horas e 56 minutos. As estrelas, fixas
na esfera celeste, terão exàtamente o movimento observado e descrito na
seção 1 . 1 .2 do capítulo 1 .
Verifica-se sem nenhuma dificuldade que, no Rio de Janeiro e em
São Paulo, as estrelas cujo afastamento angular do pólo sul é menor que
23 , estão sempre acima do horizonte, enquanto que as estrelas, cujo
º

afastamento angular do pólo norte é menor que 23 , estão sempre


c e l e ste
°

abaixo do horizonte. Nota-se que, neste modelo, as estrelas que "nas­ FIGURA 2
cem" (isto é, as que não são constantemente visíveis nem invisíveis), O modelo de Eudoxo para o Sol.
A esfera interna gira lentamente em torno do eixo AB, em um ano. O Sol, "cravado" nessa esfera,
nascem sempre no mesmo ponto do horizonte, do lado do oriente, como
�·
percorre o seu equador - a eclfptica - de Oeste para Leste, no mesmo intervalo de tempo.
efetivamente se observa.
.
A esfera externa é a esfera das estrelas. Ela gira em um dia, de Leste para Oeste, em torno do e,xo
dos Pólos. A esfera interna é arrastada por ela, o que obriga o Sol, cada d i a , a descrever um
O modelo descrito acima é conhecido como "modelo das duas círculo paralelo ao Equador celeste.
esferas": a esfera terrestre e a esfera celeste.

36 37
A fig. 2 representa duas esferas: a esfera maior, ou exter� a, é a trajetória diurna passa a ser cortada desigualmente pelo hori:z;.o nte: a
esfera das estrelas; gira em 23 horas e 56 minutos em torno do eixo dos porção acima do horizonte é maior que a porção abaixo, passando o dia a
pólos, de leste para oeste. No interior dessa esfera encontra-se outra, ser maior que a noite. A fig. 3 ajuda a entender isso.
menor, que pode girar em torno do eixo AB. Os pontos A e B são fixos
na esfera celeste. O Sol está "cravado" em um ponto do equador dessa
esfera. Esse equador é chamado ecllptica. O eixo AB faz o ângulo de
23Y:zº com o eixo dos pólos, e em conseqüência, o plano da eclíptica
e o plano do equador celeste fazem entre si esse mesmo ângulo de
23Y:z . fI
º

Suponhamos primeiro que a esfera menor esteja fixa em relação à


esfera celeste. Em outras palavras, que a esfera menor não gire em torno
do eixo AB.
Está claro então que o Sol é arrastado pelo movimento da esfera
celeste, tendo um movimento diurno idêntico ao das estrelas: conforme o
lugar e m que o fixamos na eclíptica, descreverá em um dia uma circun­ Sul Norte
ferência de raio maior ou menor, mas sempre paralela ao equador
,/
horizonte
o
, 'Y" 1

celeste. ,,, 1

Ponhamos agora a esfera menor a girar em torno de AB, no sentido


,' 1 ,'

de oeste para leste, isto é, em sentido contrário ao movimento da esfera


�,.�
1 /

-�,,; /
,'
f':)

,'
/
,' "t>
O 1 <O

celeste, e suponhamos que essa esfera menor complete uma revolução em


/ �I � /
I I
,'

I/
um ano, o que corresponde a mais ou menos 1 ° por dia. Nessas condi­
,'

ções, ao movimento diurno do Sol sobrepõe-se um deslocamento muito


I O - I
latitude do
obse,vador : 23.52

lento ao longo da eclíptica, em sentido contrário do movimento diurno. I

Isso explica duas classes de fenômenos:


Em primeiro lugar, enquanto a esfera celeste dá uma volta, o Sol

Enquanto as estrelas giram 360 , o Sol somente gira 360 - 1 º (de


FIGURA 3
não chega a completar a sua, pois está "recuando" em relação às estrelas. Projeções das trajetórias solares diurnas, nos solst(cios e nos equinócios, sobre um plano perpen­

=
° °
dicular ao horizonte e ao equador celeste, isto é, sobre o plano meridiano do lugar do observador
recuo) 359 . O grau suplementar para completar a volta é percorrido (aqui, Rio de Janeiro ou São Paulo).
°

em 1 /360 de 24 horas, ou seja, 4 minutos, de modo que o Sol dá a sua


=
volta no céu em 23:56 + 00:04 24:00 horas.
Em segundo lugar, observemos o que acontece à trajetória diurna, Em 22 de dezembro ao meio-dia, o Sol se encontra no ponto Sv da
no decorrer do ano. Suponhamos que o nosso modelo foi construído de eclíptica, o ponto mais afastado do equador em direção ao sul. Nesse dia,
modo tal que, em 23 de setembro, o Sol se encontre em .n, interseção da a fração da trajetória solar acima do horizonte, em relação à trajetória do
eclíptica com o equador celeste (estamos supondo que a esfera do Sol horizonte é a maior possível: estamos no dia mais longo, ou seja, no
tem raio quase igual ao da esfera celeste, o que nos permite falar em solstício de verão.
"interseção" de dois equadores que pertencem a esferas diferentes). Depois do solstício de verão, o Sol cor;neça a aproximar-se, de
Nesse dia, 23 de setembro, o Sol descreve praticamente o equador novo, do Equador. A duração do dia diminui, embora ainda seja mais
celeste: nasce em pleno leste e põe-se em pleno oeste. Permanece 1 2 longo que a noite. No equinócio de outono o Sol está de novo sobre o

-..
horas acima do horizonte e 1 2 horas abaixo: o dia e a noite têm igual Equador celeste: o dia e a noite são de novo iguais.
duração; estamos no equinócio de primavera. Depois do equinócio de outono (21 de março), o Sol nasce e
Passado o equinócio e por causa da sua retrogressão ao longo da � põe-se ao norte da linha leste-oeste: o dia é menor que a noite . O Sol
eclíptica, o Sol começa a afastar-se do equador celeste; a cada dia que continua a afastar-se do Equador até 22 de junho, solstício de inverno.
passa, nasce e põe-se um pouco mais para o sul. Em conseqüência, a Nessa data o dia é o mais curto do ano, etc.. ..

38 39
Observe-se q.ue, ao descrever o comportamento do Sol no model? No Cosmos aristotélico, cada coisa, cada objeto, cada ser tem o seu
das esferas homocêntricas de Eudoxo, repetimos praticamente a descri- lugar próprio, o seu estado próprio. Se algo não estiver no seu lugar
ção do movimento observado, como na Seção 1� 1 .- 3 do ca_pítul? 1 . . natural, tenderá para esse lugar em virtude de uma "potenciabilidade"
Nosso objetivo não é no entanto fazer Astronomia e sim apreciar que lhe é própria.
como se elabora e se testa o modelo físico de um fenômeno natural. Em Partindo dessa premissa, Aristóteles construiu, numa extraordi­
conseqüência, não insistiremos sobre o modelo de Eudoxo. Nele, o nária síntese, um monumento de lógica alicerçado no senso comum, que
movimento aparente da Lua é satisfatoriamente reproduzido com três iria dominar, durante mais de dois mil · anos, o pensamento do mundo
esferas, uma terceira sendo necessária para que se consiga o movimento ocidental. .
de "balanço" da Lua, de um lado para outro da eclíptica. Tentemos descrever os aspectos característicos da Cosmologia e da
O movimento dos planetas era um problema mais difícil. Eudoxo Física aristotélicas.
utilizou quatro esferas para Júpiter e Saturno, cinco esferas para Mer­
cúrio, Vênus e Marte, e conseguiu reproduzir o movimento retrógrado,
graças a verdadeiros prodígios de arte geométrica. 2. 2.2 A COSMOLOGIA
Podemos então dizer que o modelo de Eudoxo explica perfeita­
mente o movimento aparente dos corpos celestes? O Universo está inteiramente contido na esfera das estrelas, que
Não. Em primeiro lugar, Eudoxo não explica como são produzidos Aristóteles recebe de Eudoxo. Fora dessa esfera, não há nada. Deixemos
os movimentos dessas esferas. a palavra a Aristóteles:
Em segundo lugar, as posições dos planetas dadas pelo modelo são "O Universo é finito, esférico, limitado pela esfera do Céu .. .
somente aproximadas. (sendo) claro que não pode existir lugar, nem vácuo, nem tempo, fora do
Finalmente, a variação do brilho dos planetas permanece inexpli­ e, "
eu .
cada: recordemos que Marte em oposição é quase tão brilhante quanto
Vênus, embora, em conjunção, seja ele um objeto pouco brilhante. Ora,
ao colocar os planetas sobre esferas concêntricas com a Terra, Eudoxo os
mantinha a distâncias invariáveis desta, o que faz prever um brilho
constante. E isto contraria os .fatos observados.
A cosmologia de Eudoxo é somente, no entanto, uma das pri­
meiras cosmologias gregas.

.
2. 2 A COSMOLOGIA E A FISICA ARISTOTÉLICA

2.2.1 A VIDA E OBRA DE ARISTÓTELES

Aristóteles nasceu em 384 antes de Cristo, naquela lônia que já


tinha dado Anaxágoras à Grécia. Morreu em 322 A.C., em Chalcis, pouco
depois de ter se retirado de Atenas.
Sua obra foi imensa e enciclopédica. Escreveu tratados de Filoso­
FIGURA 4

fia, de Política, de Ética, de História, de Biologia . . . No que toca a


O universo aristotélico.

Física e a Cosmologia, Aristóteles nos legou o seu pensamento em quatro


tratados: F/sica, Dos Céus, Da Corrupção e da Geração, Meteorologia. Dentro da esfera das estrelas, o Universo é construído da seguinte
O ponto fundamental da filosofia aristotélica é de que o Universo, maneira (fig. 4):
o, Cosmos, constitui um conjunto ordenado em que reina uma determi­ - em primeiro lugar, a Terra, esférica, imóvel e cujo centro coincide
nada e soberana hierarquia. · com o centro do Universo.

40 41
_ a seguir a Lua na sua esfera, ou melhor, com o seu conjunto de A esfera das estrelas, a ' que limita o Universo, é mantida em
esferas. movimento pelo "Primeiro Motor", de essência divina. O movimento das
estrelas é circular e uniforme; é o único movimento possível tanto para o
Entre a Terra e a Lua encontra-se primeiro o ar, e acima do ar uma Primeiro Motor, como para a primeira matéria (o éter). Com efeito,
"espécie de fogo", que Aristóteles descreve como "uma exalação quente somente o movimento circular uniforme é perfeito, eterno, sem começo
e seca da Terra" . nem fim, já que ele é sempre idêntico a si mesmo. Somente ele pode ser o
A parte do Universo situada dentro da esfera da Lua é chamada movimento natural daquilo que é perfeito e eterno.
"mundo sublunar". É o mundo das coisas diretamente l igadas ao homem,
O movimento da esfera das estrelas é transmitido por atrito às
o mundo das coisas perecíveis, em constante movimento ou em mudan­
esferas sucessivas: daí a necessidade de contigü idade dessas esferas.
ças contínuas, até encontrarem seu lugar próprio ou seu estado natural. Ê Mas o atrito gera calor; é um fato de observação comum. Acontece
o lugar que Aristóteles estudará na sua F ísica e na sua Meteorologia. então que o atrito gerado pelo movimento relativo das esferas aquece os
Da esfera da Lua (inclusive) até a esfera das estrelas, encontram-se corpos celeste, o que explica tanto o seu brilho, como o calor que
"os Céus". Os Céus incluem, na ordem, as esferas da Lua, de Mercúrio, irradiam.
de Vênus, do Sol, de Marte, de Júpiter, de Saturno e finalmente a esfera O movimento da última esfera, a da Lua, põe em movimento a
das estrelas. "exalação" que lhe é contígua, aquecendo-a ao mesmo tempo. Por sua
Cada um desses corpos celestes se acha "cravado" sobre a sua vez, o fogo sublunar em movimento arrasta parcialmente o ar situado
própria esfera, e os movimentos desses corpos são explicados, como em abaixo dele: assim se explicam os ventos, as turbulências e em última
Eudoxo, por sistemas de esferas homocêntricas. O modelo possui ao todo análise os movimentos imperfeitos (não circulares uniformes) caracterís­
55 esferas. Sete dessas esferas contêm, nas suas superf ícies, os sete corpos ticos do mundo sublunar.
celestes diferentes das estrelas ( Lua, Sol e os cinco planetas). As esferas Resumamos os traços principais da Cosmologia aristotélica:
intermediárias fornecem as ligações mecânjcas necessárias para a repro­ O Universo é esférico, finito, cheio: a Terra, também esférica, é
dução dos movimentos observados . Notemos, para futura referência, que imóvel e se encontra no centro do Universo.
as 55 esferas do Universo aristotélico são conexas: não há intervalo entre Os Céus, o mundo supralunar, são feitos de éter, substância de
duas esferas sucessivas. essência divina, eterna e imperecível; são constituídos por um sistema de
No entanto, Aristóteles não se contenta em reproduzir simples­ esferas homocêntricas, contíguas com a esfera das estrelas no exterior e a
mente o modelo de Eudoxo. Quer explicar a transparência dos Céus e ao esfera lunar no interior.
mesmo tempo satisfazer a uma das exigências básicas da sua visão do A esfera das estrelas é movida uniformemente por um motor
Universo: a impossibilidade do vácuo. divino. Por atrito, o movimento dessa esfera se transmite às outras, o que
Afirma ele então que as esferas que compÕem os Céus são feitas de mantém a Lua, o Sol e os planetas em movimento.
uma substância desconhecida no mundo sublunar: o éter.
Ouçamos outra vez Aristóteles:
2.2.3 A FfSICA
" . . . existe na Natureza uma substância diferente das que conhe-
cemos . . . antecedendo a todas elas e mais divina que essas . . . e a glória
Para Aristóteles o mundo sublunar contrasta duplamente com os
superior de sua natureza é proporcional à distância que a separa do nosso
Céus.
mundo".
O éter é cristalino, inalterável, imperec(vel, transparente e impon­ - em primeiro lugar, os elementos dos quais são feitos as coisas e os
derável". seres terrestres são diferentes do éter. Esses elementos são em número de
As esferas dos Céus são, pois, feitas de éter. Os objetos celestes por quatro: terra, água, ar e fogo.
sua vez, desde a Lua até as estrelas, são condensações locais do éter das - em segundo lugar, o movimento natural desses elementos � dos
esferas. Elas não são feitas de fogo, como queriam alguns dos predeces­ corpos que eles formam não é o movimento circular unifor �e, mov1 �en­
� sores de Aristóteles. O seu brilho e o calor que elas emitem serão to este reservado ao que é perfeito. Os movimentos naturais dos obJ�tos
explicados logo adiante. sublunares são o movimento retilfneo em direção do centro (do Univer­
Como são produzidos os movimentos das esferas celestes? so) e o seu "contrário", o movimento retiHneo afastando-se do centro.

42 43
Tomemos como exemplo uma pedra, diz Aristóteles. A pedra é A Física aristotélica diferencia os movimentos naturais (pedra que
feita de terra. O seu lugar natural é o centro do Universo. Larguemos a cai, fogo que sobe), dos movimentos violentos (pedra lançada para cima,
pedra que estava na nossa mão. Não se encontrando no seu lugar flecha arremessada pelo arco). Como vimos, os movimentos naturais têm
natural, isto é, no centro, ela põe-se em movimento em direção a esse como causa a tendência, inerente a cada corpo, de procurar o seu lugar
centro, "para baixo". Esse movimento natural tende a levar a pedra próprio. Pelo contrário, os movimentos violentos (ou contra a Natureza)
para o seu lugar natural. Se a pedra pudesse ir até o centro do Uni­ devem ser produzidos por agentes externos, por forças. Para Aristóteles
verso, pararia naquele ponto e permaneceria eternamente em repouso. qualquer movimento de um grave que não seja a queda simples requer a
De modo que, para Aristóteles, o repouso é um estado em con­ ação de uma força: cessando a força, portanto, cessa o movimento.
traste com o movimento, que é somente um porvir, uma transição que De que maneira age essa força? Sempre por contato, diz Aristó·
leva, ou tende a levar, ao repouso. teles. Não há possibilidade de ação à distância, e conseqüenu:m1t:11lc, e
necessário que haja contato entre o agente motor e o que é movido.
Como no caso da terra, o movimento natural da água é para baixo
Essa condição é obviamente satisfeita no caso do cavalo que puxa
p �r ? o cent�o. Se�do no entanto mais leve que a terra (menos densa:
a carroça e nos exemplos semelhantes. Mas há uma categoria de movi­
d1r�mos hoJe), a agua tem o seu lugar natural acima da terra. Ê por essa
mentos violentos em que o problema da força motriz é muito mais
razao que os mares tendem a recobrir a esfera terrestre.
complicado: o caso dos projéteis. O que continua movendo a pedra que
Terra e água são elementos pesados, que constituem os corpos
nós arremessamos, depois dela ter perdido contato com a nossa mão?
grav �s. Esses corpos tendem a cair, a ir para o centro em razão da sua
Aristóteles responde que o papel de agente motor é assegurado
g:avtd �de, que é yara Aristóteles uma qualidade intrí,1seca dessa matéria
pelo meio - ar ou água - no qual o projétil se desloca. Ao arremessar a
(isto e, da matena composta de terra e água);. a gravidade impele os
pedra, a mão comunica o seu poder próprio ao ar próximo à pedra; esse
graves a procurarem o seu lugar próprio.
poder comunica-se, por contigüidade, a partes cada vez mais afastadas do
Ora, já que a gravidade é, para Aristóteles, um atributo intrínseco ponto de partida, perdendo no entanto, a cada transmissão, um pouco de
dos corpos pes�dos, deduz-se logicamente que, quanto maior a quanti­ sua intensidade. Chega então um momento em que o poder motor do
_
dade �� matena gra�e, t�nto �aior será a gravidade dos corpos, e meio está esgotado: o movimento violento cessa, iniciando-se a fase de
.
consequentemente mais rap1do sera o seu movimento natural. movimento natural, que reconduzirá o projétil ao seu lugar próprio.
N� Física aristotélica, a velocidade de queda de um corpo é 'l Ao lado das forças motrizes, Aristóteles reconhece a existência das
proporcional a seu peso. forças de resistência.
Não é, aliás, fato de observação comum que, se largarmos duas Nos movimentos naturais, essas forças são exercidas pelo meio (ar
bolas de mesmo tamanho, sendo uma de· ferro e outra de madeira, do ou água). Conceitualmente, no entanto, essas forças não têm nada em
alto ?e uma torre, a bola de ferro atingirá o solo antes da bola de comum com as forças de .atrito que nos são familiares. Voltemos ao
madeira? exemplo da pedra que cai no ar: nos instantes sucessivos da queda, a
Em oposição à terra e à água, o movimento natural do ar e do pedra ocupa posições em que se encontrava o ar, e esse ar estava no seu
fogo, el ;m �ntos leves, é para cima, afastando-se do centro. É por isso que lugar natural. Ora, ao ar repugna ser desalojado do seu lugar próprio, e a
o ar esta acima da terra e da água. Sendo por sua vez mais leve que O ar O gravidade da pedra deve constantemente vencer essa repugnância: daí a
fog <: procura o seu lugar natural acima daquele, isto é, nos confins da força de resistência.
.
reg1ao sublunar.
E r umo, uma coisa sublunar somente se "realiza", atinge seu
. . � �� .
• Essa mesma idéia, de que um corpo "luta" contra um desloca­
mento que tende a afastá-lo do seu lugar natural, se encontra de novo no
propn � ser , se e�t1ver no seu lugar próprio. Por essa razão, a definição caso da resistência aos movimentos violentos. Nesse caso, diz Aristóteles,
. . . a resistência é provocada pela gravidade própria do corpo.
aristot�l1ca do movimento e a de que é o ato que permite a "realização"
das co1sas ou, conforme suas próprias palavras, "o ato do ser em Poderíamos ser tentados a "equacionar" as relações entre veloci­
. . . dade do movimento, força motriz e força de resistência.
potencia, enquant ? estiver em potência". Uma vez no seu lugar próprio,
o s�r estará realizado e permanecerá em repouso. Não é pois ne­ No caso dos movimentos naturais, a força motriz é o peso P do
. . corpo, e Aristóteles afirma que a velocidade da queda v é proporcional ao
-cess �no expl1car o repouso: é a própria natureza do corpo que u
explica. peso. Quanto à resistência, ela se mede pela densidade d do meio, e a

44 4!>
velocidade é inversamente proporcional a essa resistência. Teríamos en­ É bem verdade que, em Astronomia, a Matemática, ou mais
tão, para os movimentos naturais: precisamente a Geometria, tem o seu papel. Mas é somente um papel
secundário. A Geometria permite construir modelos, como o de Eudoxo
que descrevem satisfatoriamente os fenômenos observados. Mas a cons�
trução do modelo somente é possível depois de se saber que a Terra está
no centro do Universo e que os corpos celestes têm movimentos circu­
lares uniformes. Ora, essas informações dependem exclusivamente do
onde faltaria talvez a inclusão de uma constante de proporcionalidade. raciocínio físico, que fixa os lugares naturais (centro para a Terra) e os
Para os movimentos violentos, a força motriz é F, e a resistência movimentos naturais (o movimento perfeito para o que é perfeito).
passa a ser o próprio peso do corpo. A velocidade continua sendo
inversamente proporcional à resistência, de modo que teríamos:
2.2.4 ANÁLISE CR(TICA DA FILOSOFIA DE ARISTÓTELES

1
V -
F
p Tentemos agora sintetizar os aspectos principais da filosofia na-
tural de Aristóteles.
;I
No entanto, essas tentativas de "matematização" de nada valeriam. Ela parte de dois conjuntos de observações comuns e de convic­
Em primeiro lugar, as fórmulas precedentes dependem de várias condi­ çõe- subjetivas com as quais qualquer um de nós não pode deixar de
ções acessórias para serem aplicáveis. Uma delas: a força motriz deve ser concordar.
sempre maior que a resistência, sem o que não haveria movimento. Uma Em primeiro lugar, vivemos numa Terra que nos dá a sensação de
outra: nos movimentos violentos, a força deve ultrapassar um certo limiar imobilidade total; nessa Terra, observamos que certos corpos caem e
mínimo, para mover o corpo. Pois, como explica Aristóteles, reduzin­ outros sobem.
do-se o peso do corpo à metade do seu valor inicial, ele percorrerá a Em segundo lugar, vemos que os corpos celestes descrevem traje­
mesma distância na metade do tempo, ou o dobro da distância no mesmo tórias em torno da Terra, com movimentos de uma regularidade impres­
tempo; reduzindo-se a força motriz e o peso à metade dos seus valores sionante. Esses movimentos celestes despertam em nós sentimentos de
iniciais, distância e tempo conservarão os mesmos valores. Mas se a força admiração pela sua beleza e majestade.
for diminuída sem que o peso o seja, nada nos assegura que o corpo Inicia-se então a elaboração de uma teoria do Universo, tendo
entrará em movimento. como premissas dois postulados:
Em segundo lugar, tentativas de matematização da Física aristo· I A Terra está imóvel, no centro do Universo.
télica seriam frontalmente contrári�s à própria filosofia de Aristóteles. II O Universo é esférico, finito e tem uma estrutura supremamente
Com efeito, Aristóteles afirma que somente uma explicação f/si­ ordenada.
ca pode levar-nos a entender os fenômenos físicos. Por explicação
A esses dois postulados, Aristóteles acrescenta o que poderíamos
física, ele entende uma argumentação baseada nas propriedades intrín­
chamar de proposições complementares. Para o que nos concerne, as
secas dos corpos: elementos que os compõem, gravidade, etc ... Rejei­
ta assim, a priori, uma filosofia natural em que a explicação éonsistiria principais são:
na reconstrução dos fenômenos observados numa linguagem puramente há cinco elementos: éter, terra, água, ar e fogo;
abstrata e racional. Argumenta ele que os corpos físicos, objetos dos 2 o éter, elemento perfeito, compõe os Céus, onde reina a perfeição;
movimentos, diferem radicalmente dos seres matemáticos, em que o 3 os outros quatro elementos, imperfeitos, alteráveis, compõem o
movimento não pode existir. Assim é que, partindo da Matemática, o mundo sublunar, imperfeito e alterável;
físico nunca poderá encontrar a realidade e o movimento permanecerá 4 cada um dos elementos possui o seu lugar natural:
inexplicável. Como exemplo, poderá ele justificar que todos os corpos para o éter: os Céus;
não se movem espontaneamente, com o mesmo movimento? .Que al­ para a terra e a água: o centro do Universo;
guns se movem para baixo e outros para cima? Ou que os movimentos para o ar e o fogo: a região entre a Terra e o limite superior do
dos corpos celestes são circulares e uniformes? mundo sublunar;

46 47
r
1 5 existem somente três movimentos naturais:
- o movimento circular uniforme para o éter e os corpos celestes;
o movimento retilíneo em direção ao centro para os corpos graves;
o movimento retiHneo afastando-se do centro para os corpos leves.
Em outros termos, não há necessidade da experiencia porque, o
que ela forneceria, seria uma contribuição qualitativa ou quantitativa: a
descrição do fenômeno (como acontece?), e nunca uma corroboração,
· inútil como vimos, das suas causas.
6 todo corpo (sublunar) que não estiver no seu lugar natural tem
tendência a voltar para ele, pelo movimento natural que lhe é próprio;
7 existe um "Primeiro Motor", de essência divina, que põe em CONCLUSÃO
movimento a esfera celeste. Esse movimento comunica-se ao Universo
inteiro. Frente a esse quadro, há somente uma conclusão: a Flsica aristo­
télica não é ciência.
Os postulados fundamentais e as proposições complementares i:mbora partindo de uma doutrina que pode ou não parecer
constituem a doutrina básica da filosofia natural aristotélica. razoável (este não é o ponto), ela é incapaz de deduzir objetivamente,
Alguns aspectos dessa doutrina são desde já evidentes: rigorosalllente, conseqüências verificáveis pela experiência. É ainda
a. Ela é centrada sobre a necessária estruturação do Cosmos, estru­ menos capaz de prever fenômenos ainda não observados, sendo conse­
turação essa que deve conduzir a uma determinada hierarquia, fruto de qüentemente, estéril.
um conceito puramente subjetivo. Essa conclusão não retira nada do aspecto estético da obra de
Recordemos por exemplo "a glória superior do éter, proporcional Aristóteles, nem do seu valor como instrumento de persuasão. Voltando
à distância que o separa do nosso mundo". ao que dissemos na Introdução a esse capítulo, a filosofia aristotélica
b. Partindo dessa premissa da hierarquização do Universo, a doutrina impregnará, por mais de dois mil anos, o pensamento ocidental, por sua
aristotélica está irremediavelmente ligada às causas finais. Qualquer fenô­ beleza, pela lógica de sua construção, e pelo apelo quase irresistível que
meno natural obedece ao imperativo de respeitar ou de restaurar a ordem sua concordância com o senso comum exerce sobre qualquer um que· a
superior do Cosmos. conhece.
Em conseqüência, é muito mais importante perguntar-se por que a Aristóteles nos legou a curiosidade para o estudo da Natureza, a
pedra cai, que como ela cai. convicção de que essa Natureza se molda em leis universais que regem o
c. Essa doutrina é, também pela mesma razão, necessariamente quali­ seu comportamento; legou-nos também a fé na capacidade humana em
tativa. Preocupa-se com a substância, a essência das coisas, pois é em entender essas leis e em descobrir a ordem suprema do Cosmos.
função dessa substância, dessa essência, que em determinadas condições De modo que não faltou a Aristóteles o esp/rito científico. Fal­
tal corpo se comportará de tal maneira. A pedra cai, não porque é tou-lhe, sim, o método.
pesada, mas porque procura o seu lugar natural e o lugar natural das
pedras é o centro do Universo. A gravidade é somente o mecanismo
interno que põe a pedra em movimento em direção ao centro.
d. Em conseqüência do que precede, a abstração matemática, que
despiria os corpos das suas individualidades, das suas essências, não tem
lugar na filosofia natural.
Daí segue que a demonstração racional torna-se imposs (vel. Aris­

I
tóteles não demonstra, argumenta. Não tenta provar, tenta convencer. A
Física e a Cosmologia aristotélicas são obras de dialética.
e. É pois por todas essas razões que Aristóteles nunca recorre à
experiência. Parte da observação comum (a pedra cai), e se pergunta
·imediatamente o "porque?" do fenômeno (não o "como?"), responden ­
do a essa pergunta pela regra de estrutura que a hierar quJzação do
Cosmos impõe ao fenômeno (procura do lugar natural).

48
49

J
Capítulo 3
O APOGEU DA ASTRONOMIA GREGA: PTOLOMEU

INTRODUÇÃO

)/ Para podermos entender como o pensamento científico evoluiu, a


partir de Aristóteles, até chegar a sua futura culminância, no século
XVI 1, precisamos recorrer à Astronomia.
A Física com efeito iria ficar praticamente impotente até Galileu,
se descontarmos as tímidas tentativas da escola parisiense e da escola
mertoniana, no século XIV {capítulo 4).
Uma das razões dessa impotência é que, para dar seus primeiros•
passos, a Física precisava libertar-se da MetaHsica, em _particular do
Cosmos aristotélico. Em outras palavras, para que a Física moderna
pudesse nascer, era preciso primeiro destruir o mito aristotélico.
Ora a derrubada do Universo aristotélico iria tornar-se possível
graças à obra dos astrônomos, em particular da Astronomia renascentista.
Ê bem evidente que a Astronomia renascentista não nasceu do
nada. Ela tinha a herança da Astronomia grega.
Este capítulo nos mostrará o desenvolvimento atingido por essa
Astronomia nas mãos de Ptolomeu, sucedendo à tentativa frustrada de
heliocentrismo de Aristarco de Samos.
O modelo ptolomaico é ainda um modelo puramente fenomeno­
lógico, obra de matemático somente preocupado em "salvar os fenô­
menos", obra indiscutivelmente imbuída do esteticismo metafísico fun­
• dado no movimento circular uniforme.
i Mas essa obra iria ser o instrumento de trabalho de todos os
astrónomos até Copérnico e Kepler.

51


1
üentemente
3.1 O MODELO HELIOCENTRICO DE ARISTARCO DE SAMOS efeito, a Terra (com a torre) se deslocaria para leste e conseq
a pedra encontraria o solo a oeste da torre.
O modelo cosmológico de Eudoxo, adotado por Aristóteles, era No entanto, a pedra cai realmente ao pé da torre.
a velocidade
um modelo geocêntrico. Nos modelos geocêntricos, a Terra ocupa o 2 Se a Terra girasse sobre si mesma e em torno do Sol
s tão violen tos que nada poder 1 a
centro do Universo. desses movimentos provocariam vento
"bom senso ": hoje em dia, quando
Todos nós sabemos que os modelos geocêntricos são obsoletos e resistir. Isto é um argumento de
ar a mão para fora do carro, para
foram substituídos pelo modelo heliocêntrico; veremos no capítulo 5 as andamos de automóvel, basta coloc
rápid o do autom óvel provo ca.
razões desta substituição. sentir o vento que o deslocamento
evidente que
Nos modelos heliocêntricos, o Sol ocupa o centro, não mais do Em conseqüência desses ventos violentos, parecia
ficari a "para trás", não poden do acom-
Universo e sim, mais modestamente, do nosso sistema solar. tudo o que voa, nuvens e aves,
r
No entanto os modelos heliocêntricos não nasceram com Copér­ panhar a Terra no seu movimento.
sem nenhuma
nico. Os �regos antigos já os conheciam: o mais famoso foi imaginado, no .No entanto as aves voam em qualquer dire.;vJ,
. dificuldade.
terceiro seculo antes de Cristo, por Aristarco de Sarnas.
a teria que ser
Mil e oitocentos anos, portanto, antes de Copérnico, Aristarco 3 Um movimento de rotação da Terra sobre si mesm
um a volta por dia. Essa veloci� ade
enu�ciou corretame�te a hipótese segundo a qual a Terra tinha um duplo muito rápido, já que ela daria .
ífuga s" enorm es: tudo que esta na
movimento de rotaçao: em torno do eixo dos pólos (movimento diurno) provocaria, dizia-se, "forças centr
is, rocha s . .. seria pr jetado vio(en­
e ao redor do Sol (movimento anual). superfície da Terra, homens, anima ?
s
crosta terres tre sofren a esses efeito
Para explicar o movimento diurno das estrelas, a hipótese heliocên- tamente na atmosfera. A própria s.
. tremo res de terra e . catac lismo
tnca de Aristarco era equivalente ao modelo geocêntrico. Com efeito, os centrífugas, ocorrendo continuamente
gregos conheciam o que podemos chamar de "relatividade ótica" ou No entanto, nada disso se observa.
o argumento da
"visual" do movimento; qualquer objeto se move em relação a um outro O último argumento contra o heliocentrismo era
e para a descrição correta do fenômeno·, tanto faz supor que a esfera das paralaxe. Vejamos em que consiste.
estrelas gira em torno da Terra (parada) ou supor que a Terra gira sobre si
mesma no interior da esfera celeste (fixa).
O sistema de Aristarco tinha uma vantagem: resolvia de maneira
extremamente engenhosa o problema da distância da Terra ao Sol e à v\\ //'x
Lua, bem como o problema das dimensões próprias desses astros. �-lstrol,,
/, \
No entanto a hipótese de Aristarco não encontrou praticamente ,' \
'
n�nhum eco. Por quê? /
/
\
\
,'
Havia evidentemente um argumento metafísico: deslocar a Terra /
/ 1
\
,' \
do :e� lugar privil�giado no centro do Universo, além de requerer uma I \
_ I \
\
a�dac1a intelectual tn�omum, feria frontalmente a tradição aristotélica já I
,' \

firmemente estabelecida, destruía a hierarquia do Cosmos e com ela toda ,/ \


1
\
uma filosofia erguida sobre o senso comum, sobre os lugares naturais e ,,
vr
\
/ \

sobre as essências das coisas.


Mas é provável que o modelo heliocêntrico tenha sido rejeitado, .f�\
. . \] 1
pnnc1pal11;e�te, por causa dos argumentos físicos que, na época, eram
1rrespond1ve1s. Esses mesmos argumentos, aliás, iriam opor-se a toda
tentativa de heliocentrismo até Copérnico (inclusive).
Vejamos quais são esses argumentos. numil CC• til CPOCil

FIGURA 1
1 Se a Terra girasse de oeste para leste, dizia-se, uma pedra largada ângulo (AX, BYl.
do alto de uma torre não cairia ao pé da torre: durante a queda, com A paralaxe de uma estrela é a metade do maior

53
52
Suponhamos que a Terra gire em torno do Sol. Em janeiro (fig. 1) os Céus são esféricos e os objetos celestes têm movimentos circu-
a Terra se encontra em A. Seis meses depois, em junho, encontra-se em lares;
B, diametralmente oposto a A na órbita terrestre. Consideremos agora 2 a Terra, no seu conjunto, é sensivelmente esférica;
uma estrela da esfera celeste. Em janeiro essa estrela é vista na direção 3 a Terra se encontra no centro da esfera celeste;
AX. Em junho, é vista em direção BY, diferente de AX. O ângulo (AX, 4 o raio da Terra é desprezível em comparação com o raio da esfera
BY) varia conforme o peri'odo de seis meses considerado (janeiro-junho, celeste;
fevereiro-julho, etc.) A metade do maior valor do ângulo (AX, BY) é por 5 a Terra não tem nenhum movimento próprio;
definição a paralaxe da estrela. Definida assim, a paralaxe torna-se igual 6 existem dois movimentos fundamentais nos Céus: o movimento de
ao maior ângulo debaixo do qual, da estrela, ver-se-ia o raio da órbita rotação em torno do eixo dos pólos do equador celeste (movimento
terrestre. diurno) e o movimento em torno do eixo dos pólos da eclíptica (movi­
Ora, os astrônomos gregos não obse�varam nenhuma paralaxe, de mento anual). É o modelo das esferas homocêntricas de Eudoxo.
nenhuma estrela.Em conseqüência, eram obrigados a negar o movimento A partir do livro li e até o final do Almagesto, Ptolomeu se
da Terra em torno do Sol. preocupa unicamente em construir modelos geométricos na tradição de
Havia evidentemente outra possibilidade: se o raio da esfera das Eudoxo; modelos muito mais sofisticados que o das esferas homocên­
estr�las !osse tão grande em comparaç.ão ao raio da órbita terrestre, que tricas*, modelos no entanto puramente fenomenológicos. Para Ptolomeu,
as d1reçoes AX e BY fossem praticamente paralelas, então não se obser­ não se trata de construir uma Astronomia racional, dedutiva, e sim de
varia nenhuma paralaxe. Mas essa solução dava para o raio da esfera descobrir mecanismos que possam permitir a determinação precisa das
celeste um valor tão grande que era "obviamente" absurda*. posições dos planetas. Não há a menor preocupação em saber se os
O heliocentrismo levava portanto a dificuldades de ordem meta­ deferentes, epiciclos, excêntricos, etc ..., que formam a base dos mo­
física e física: Aristarco de Samos caiu no esquecimento. delos ptolomaicos, têm alguma realidade.
O próprio Ptolomeu fixa sem equívoco seus objetivos:
3.2 PTOLOMEU " ...Nosso problema é explicar, no caso dos cinco planetas como
também no caso do Sol e da Lua, todas as irregularidades aparentes a
Ptolomeu viveu no segundo século da era cristã. Sua obra está partir do movimento circular uniforme (esse movimento sendo apro­
contida em um tratado formado de treze I ivros - "A Composição Matemá­ priado à Natureza das coisas divinas, as quais são alheias às disparidades e
tica de Cláudio Ptolomeu", mais conhecido pelo nome de "Almagesto" desordens) ..."
(Almagesto é uma corruptela do hispano-árabe "ai Magiste", o Grande Torna-se claro que, partindo-se a priori do movimento circular
Tratado, título dado à Composição pelo seu tradutor árabe do século IX ). uniforme, o problema é combinar o número necessário desses movi­
O Almagesto é a soma de toda a grande tradição da Astronomia mentos para "salvar os fenômenos" caso por caso, planeta por planeta.
gr�ga, a síntese das obras de Eudoxo, de Heráclides de Pontus, de
Arrstarco de Samos, de Apolônio de Perga e de Hiparco, acrescentadas à
obra original do próprio Ptolomeu. 3.3 OS ELEMENTOS BÁSICOS DA ASTRONOMIA PTOLOMAICA
Ptolomeu é um matemático, mais precisamente um geômetra.
Trata pois os problemas astronômicos como matemático e a estrutura da 3.3.1 A ORDEM DOS PLANETAS
sua obra reflete perfeitamente essa atitude.
Dos treze livros que compõem o Almagesto, o livro I é o único Quais são as distâncias relativas dos cinco planetas à Terra? Em
.
dedicado a especulações cosmológicas e físicas. Nele Ptolomeu declara outros termos, como se ordenam as órbitas dos planetas?
sua fé na doutrina aristotélica, afirmando sucessivamente que: Deixemos a pala':'ra a Ptolomeu:

* Ca da é�oca t�m os seus "óbvios". Hoje sabemos que as estrelas estão efetivamente muito longe • Não se pode dei xar de notar uma certa incoerência entre a afirmação do livro 1 (adoç !o do
do Terra . a ma,s perto d: nós, a a do Centa � ro, dista mais de 4 anos-luz. Em conseqüência, a model o de Eudoxo) e as construções ptolomaicas subseqüentes. Na rea lidade Ptolome� nao dá
. nenhum a indicação de como o sistem a ex cêntrico-deferente-epicic l o-equante. que examin aremos
pa �alaxe de uma estrela nao ultrapassa nunca 1 , o que explica que os gregos não podiam medi-la.
Fo, somente em 1838 que, pe la primeira vez. mediu-se uma paralaxe. a seguir. é consistente com o modelo das esferas homocêntricas.

54 55
" ... os primeiros matemáticos concordavam em que todas essas da Terra, esses arcos parecem desiguais. O ângulo ATS A é com efeito
esferas (dos planetas) estivessem mais perto da Terra que a esfera das menor que AOS A , enquanto que PTS p é maior que POS p . De modo
estrelas fixas, e mais afastadas da Terra que a esfera da Lua; (concor­ que ATS A é menor que PTS p e conseqüentemente, para um observador
davam também em que) as três esferas, das quais a maior é a de Saturno, terrestre, o Sol se move mais lentamente na vizinhança do apogeu que na
vindo depois, em direção à Terra, a de Júpiter, e abaixo desta a de Marte, vizinhança do perigeu.
estivessem mais afastadas da Terra que as outras, incluindo a do Sol. Por
outro lado, as esferas de Vênus e de Mercúrio são colocadas pelos
primeiros matemáticos abaixo da do Sol. A
Não se dispondo de outro meio para resolver o problema dada a
ausência de paralaxe para essas estrelas, único meio de determinar dis­
tâncias lineares, a ordem escolhida pelos primeiros matemáticos parece a
mais fidedigna, com o Sol fornecendo uma separação natural entre os
planetas que podem se encontrar a qualquer distância angular do Sol e
aqueles que não podem, movendo-se sempre na sua vizinhança".
Ptolomeu adota assim a ordenação do Universo aristotélico.Obser­
vemos porém que a tradição toma o lugar da razão: Ptolomeu confessa
que, na ausência de paralaxe observável, o seu modelo (isto é, o geocen­
trismo) é incapaz de provar que a ordem das órbitas planetárias seja essa
ou aliás qualquer outra.

p
3.3.2 EXCÊNTRICO VERSUS DEFERENTE - EPICICLO:
FIGURA 2
O CASO DO SOL
O modelo do excêntrico para o Sol. O Sol descreve o excêntrico de centro O com movimento
uniforme. Um observador na Terra T mede no entanto uma velocidade angular maior na vizi·
A primeira e mais fundamental anomalia (irregularidade) que se nhança do perigeu P que na vizinhança do apogeu A.
observa no movimento dos planetas, do Sol e da Lua, é que a velocidade
angular aparente desses corpos celestes não é constante. Essa é a única
anomalia observada para o Sol. Se acrescentarmos o fato que o Sol não O SISTEMA DEFERENTE - EPICICLO
retrogride, o caso do Sol é o mais simples de todos: é o que Ptolomeu
estuda em primeiro lugar, no livro 111 do Almagesto. Ptolomeu mostra a seguir que a mesma conclusão não somente
Para explicar a variação da velocidade aparente do Sol, diz Ptolo­ qualitativa, mas também quantitativa, pode ser obtida por um modelo
meu, dois modelos equivalentes são possíveis. completamente diferente.
Suponhamos (fig. 3) que da Terra T como centro, tracemos uma
circunferência, chamada deferente, e com o mesmo raio que o excêntrico
O EXCÊNTRICO
da fig. 2.
Na fig. 2, a terra T está no centro do Cosmos. Do ponto D distinto A seguir, com o ponto E do deferente como centro, tracemos uma
de T, como centro, descrevamos uma circunferência e suponhamos que o ),
outra circunferência, chamada epiciclo, e cujo raio é igual à excentrici­
Sol S descreve essa circunferência com movimento uniforme. Os pontos dade OT da fig.2.
A e P representam respectivamente os pontos em que o Sol se encontra o Coloquemos o Sol em A, no epiciclo: estamos na época do apogeu.
mais afastado da Terra (apogeu) e o mais próximo da Terra (perigeu). Imaginemos agora que o plano do epiciclo gire uniformemente em
Marquemos dois arcos iguais: AS A na proximidade do apogeu, e torno de T, sobre o plano do deferente, em sentido oposto ao do movi­
PSp na proximidade do perigeu. Por hipótese, o Sol descreve esses dois mento diurno (o Sol descreve a eclíptica em sentido contrário ao
arcos em tempos iguais; os ângulos AOS A e POS p são iguais. Mas vistos movimento das estrelas), e que, ao mesmo tempo, o Sol descreva o

56 57
\
epiciclo com a mesma velocidade angular e no mesmo sentido que o do
Mostra-se facilmente que a combinação dos dois movimentos des­
movimento diurno (isto é, em sentido contrário ao movimento do plano
critos dão ao segmento EA (ou seja, o centro do epiciclo-Sol) uma dire­
do epiciclo em torno de T).
cão fixa no espaço. Em conseqüência o Sol descreve uniformemente a
�ircunferência tracejada de centro O (fig. 4), com TO = EA.

'1
Note-se que essa nova circunferência é idêntica à circunferência
que representa a trajetória do Sol no modelo excêntrico da fig. 2: está
1
'1 provado que as duas representações são cinematicamente equivalentes.
1
'E A demonstração da equivalência, esboçada acima, é um mero jogo
geométrico; não teria maior interesse se não f�sse para most!ar �ue,
+ também para Ptolomeu, trata-se de um jogo de geometra. Os excentncos,
deferentes e epiciclos não têm para ele nenhuma realidade.

H
1 .
1
1 3.3.3 O PROBLEMA DA RETROGRESSÃO DOS PLANETAS
1

'1
1
1 Basicamente, o modelo deferente-epiciclo explica facilmente a re­
trogressão dos planetas.
1

'1
1

1
1
1
1
1

FIGURA 3
O modelo deferente-epic i clo para o Sol. Na figura o Sol
está no apogeu.


T

.l(! FIGURA 5

t
(a) O modelo deferente,epici clo para a retrogressão dos planetas. (b) Uma trajetóri a possível: o
planeta retrogride em 1 2 3 4.

Imaginemos com efeito (fig. 5a) um deferente cor:n centro na


FIGURA 4

Terra T. Um planeta P descreve o epiciclo no mesmo sentido que o d�


, Trajet.6:ia �o Sol (.em tracejado) produzida pelo modelo deferente-ep
do excentrico da fig. ic iclo. O raio OA é i gual ao
rotação do centro E sobre o deferente (isto é, contrário ao do movi­
2, e a distânc ia TO é a mesma nas duas
ticamente equ,.valentes. figuras: os do is sistemas são c inema­
mento diurno) .
58
59
É bem evidente que se a velocidade angular do planeta no epi­
ciclo for suficiente, ele retrogredirá todas as vezes que se encontrar
mais perto da Terra ou seja, nos pontos iguais a P na fig. 5a, ou a 1 2 3 4
na trajetória possível representada na fig. 5b p

3.3.4 O EOUANTE

No entanto, o modelo simples deferente-epiciclo não permite a


Ptolomeu explicar satisfatoriamente as anomalias dos planetas.
Deixemos de fado a "anomafia zodiacal", isto é, a lenta oscilação
FIGURA 7
do planeta de um fado para outro da eclíptica, que Ptolomeu resolve
O caso de Mercúrio. O centro O do deferente gira uniformemente em torno do ponto G, simé­
dissociando os planos respectivos do deferente e do epiciclo, do plano da
trico da Terra Tem relação ao equante O.
eclíptica, para fixar-nos somente na "anomalia em relação ao Sol", isto é,
nas ir �egularidades do movimento do planeta ao longo da eclíptica
(aproximadamente). Mesmo com um deferente excêntrico em refação à O deferente é centrado em O, excêntrico em refação à Terra T
ecl r'ptica, não é poss ívef "salvar razoavelmente os fenômenos". (centro da eclíptica, isto é, da trajetória anual aparente do Sol). A
Ptolomeu recorre então a um outro artifício geométrico: o direção TO é a direção do apogeu do planeta. O ponto D, simétrico de T
equante. em refação a O, é o equante.
Acontece que, agora, o centro E do epicicfo gira uniformemente
A sobre o deferente, não mais em refação ao centro O desse deferente, mas
+: direção do apogeu em relação ao equante D. Em outros termos, a reta DE gira uniforme·

.
do planetn
mente em torno de O. O planeta continua girando sobre o epicicfo com
velocidade angular constante.
Graças a- esse artifício, Ptolomeu dá conta com boa precisão dos
movimentos dos planetas, com exceção de Mercúrio.
O caso de Mercúrio é muito mais complicado; um estudo detalha·
do sairia dos limites desta breve apresentação da astronomia ptolomaica
. (fig. 7) .
Ot 1 CONCLUSÃO
1

T•
O que se pode dizer da Astronomia ptolomaica?
Não se trata evidentemente de contestar a intefigência do modelo,·
cuja elaboração só foi possível graças ao culto que os gregos tinham pela
Geometria. ,,
FIGURA 6
Tampouco podemos negar a Ptolomeu o ter "salvo os fenôm �nos ,
O modelo deferente-epiciclo para
simétrico da Terra T, centro da ecllp
Vénus, Marte, Júpiter e Saturno.
O equante é o ponto O pelo menos dentro da precisão das observações permitidas pelos instru­
tica, em relação ao ponto O, centro
do deferente. mentos-da época. • . .
IJ Aliás o sistema ptolemaico e·xplicava tão bem as aparenc1as, que foi
'1 entusiasticamente recebido e que, até Copérnico, todos os astrônomos
A fig. 6 representa o modelo completo para Vênus, Marte, Júpiter
consideravam o mecanismo excêntrico-deferente-epiciclo-equante como
e Saturno.
um elemento indispensável à solução de qualquer problema astronômico.
60
61
Capítulo 4 ÉRNICO
que� pr�cisão das observações aumen­ ES E PTO L OMEU A COP
Em conseqüência, à medid� OE ARISTôT
EL
as d scr
1 ��anc1as entre o modelo e os dados
tava e que apareciam pequen
centav a-se um ep1c1clo sobre o epiciclo, deslocava-se o
da observação, acres
centro do deferente - . . e a co m plexidade do modelo aumentava cada vez
mais_ Chegou- se a tal ponto que, segundo consta, o rei Afonso X de Leão
e castela, no século XIII, teria declarado:" ... se o Criador me tivesse
consultado antes de iniciar seu trabalho, eu lhe teria sugerido algo mais
simples".
Essa complexidade é evidentemente a primeira nuvem no quadro.
No entanto, mais grave talvez que a complexidade do modelo, há
nele algo dificilmente aceitável para um aristotélico: o equante. Para não
aumentar indefinidamente o número de círculos, Ptolomeu abandona de
fato a uniformidade do movimento circular, embora tente salvá-la em
relação ao equante
.
Há nesse artifi'cio um aspecto pertubador do ponto de vista
estético, tão importante na doutrina aristotélica.
Mas há. na introdução do equante, como aliás também na do
excê ntrico, do deferente, do epiciclo, um elemento mais pertubador
ainda: todos esses artifícios são invenções de matemáticos, introduzidos
com a finalidade exclusiva de "salvar os fenômenos". Não têm nenhuma
realidade física. O
INTRODUÇÃ filósofo �e
Com Ptolomeu então, o que realmente acontece, é o divórcio entre é o últi mo gr ande
!º�ma qu e A ristót
el e s , rande astro·
a Astronomia matemática e a Astronomia física. Da mesma . m u é o seu ulf,mo g
olo
G c1a antiga, Pt
e
A partir de Ptolomeu, enquanto os filósofos e os cosmólogos
cosmolo , go da re XVI,
continuavam insistindo no movimento circular uniforme das esferas oce ntos an
os, até O século
tr em
celestes por razões flsicas (Física dos movimentos naturais sfê
Aristó­ nomo .
ourante p rati
camente mil e
on
qu
tec
a
r n o es t udo do Un ive
rso, ·
se1a
novo - .,n. a ac
e
teles), os astrônomos matemáticos respondiam que a única coisa que os reaIme nte ante
nada de 1 menos dur
interessava era elaborar modelos geométricos que pudessem prever corre­ í ic a, sej a em Astron;::�� t ífica na E ur ;p ���:� é ni co,
F s de cien de Cop r
tamente a posição dos astros, não se preocupando com a realidade desses No ent anto, a qu sep ara m to , . da
al , Id ade
os
em F ,s,ca, o fin
e
modelos.
e d sse s quatorze se' cu\ ne gar q ue , or em qu e
art
sa, e não se p od
e
Não queremos dizer que os argumentos "físicos" dos seguidores de
p e
ntes Ac
ontece p
ou a se r .inten ças imp ort anti ga e o
cheg ciar m udan ?, .re a
Grécia
Aristóteles tivessem muito peso, sobretudo aos nossos olhos. Mas o que a u a n te n
Média ch ego P�: �; fazem a "p o? I
e
estu ,o s que
� dos séculos V 11
atitude dos seus defensores deixava transparecer transcendia o valor pró­
nh u m do s o s ast ron omos ar abes n em S an to
prio dos argumentos utilizados: afirmavam que o Cosmos é regido por leis ne
� n a r a nem sécu IV
tisn; :� ��c�la Parisiens: do � : ol��;°a e a Física
pós-renascen os om
universais. Não importava que essas leis tivessem co nsonâncias meta­ m os f1s1 c qu a ·
a ressenti r ssos substan
e
e IX n e gr e
físicas ou teológicas. O que importava precisamente era a fé nessa .,,
/'
Tomás de A
qui� o, _eh
��:�: e q�e não p od
eri a h av ��:�� e rmanecesse
p
m
universalidade. m, p or essenc1a, t o'ô s·seu s cam1
esta va u as e qu a n
uma das d
n
Ora, é bem evidente que nada disso se encontra no modelo do oa
ciais em nenh . o de con.1unto de com
Ptolocneu. Ternos aqui o arquétipo da teoria ou do modelo ad hoc. É o os um� v, sa- apidamente
separados. . lugar t ent arem eci a rem o"s r
exemplo típico de soluções separadas para cada problema, sem que nada .
eir o a, ap r
Em p rim ós· em seguid (odo.
possa fazer prever, de antemão, qual será a solução final em cada caso. gr ga ch egou. a '. ura nte esse per
heran ça e
i�o ;vo lui u d
Mais uma vez trata-se exclusivamente de "salvar os fenôrnenos" a qual· ento c,en :�f
como o Pen sam
63
quer preço.

62
,,
4.1 A TRANSMISSÃO DO ARISTOTELISMO AO OCIDENTE

A partir do século 1 1 antes de Cristo, Roma começa a estender sua


hegemonia ao Mediterrâneo oriental. A Grécia passa a ser, de fato,
J foi
'Logo após ter sido traduzido em latim, no século XI 1 , Aristóteles
absorvido, divulgado e ensinado pelas Universidades. A Universidade
de Paris acabava de ser fundada; a de Oxford · ia sê-lo em breve. Esses
pontos altos da cultura ocidental tornar-se-iam os centros de difusão do
província romana, mas a ciência continua pt errogativa da cultura grega. aristotelismo.
A escola de. Alexandria ainda estará, durante muito tempo, em franca H á uma razão para isso: Aristóteles é tipicamente destinado aos
atividade; Ptolomeu será o seu último representante. estudiosos, · aos eruditos. Não se deixa assimilar diretamente pela massa,
É curioso observar quão impermeáveis à ciência são os romanos. pelo povo, pois o aristotelismo é muito mais ciência que filosofia. É pelo
Roma parece interessar-se somente pela Lei, pela Arquitetura e pela seu valor intrínseco de saber cient(fico que se impõe, e não por uma
Guerra. Alguns diálogos de Platão, apenas, são traduzidos por Cícéro. filiação a uma atitude teológica ou religiosa, como se tinha imposto o
Aristóteles permanece desconhecido, como permanecem ignorados Eucli­ platonismo, ou melhor, o neo-platonismo de Santo Agostinho, séculos
des e Arquimedes. antes.
Sete séculos se passam. No século V da era cristã o Império Até pelo contrário: o aristotelismo parece de início imcompatível
Romano, que cinturava todo o mar Mediterrâneo, começa a ceder aos com a fé cristã. Suas doutrinas, em particular a afirmação da eternidade
golpes das invasões bárbaras vindas do norte. O império ocidental apa­ do Universo, são inaceitáveis para uma religião baseada no conceito fun­
ga-se melancolicamente com a ascensão de um rei bárbaro em Roma. O damental do Deus-Criador e da religião revelada.
...
ocidente refugia-se, ironicamente, em Bizâncio, capital do império orien­ Ora o papel da Igreja estava se tornando preponderante em todos
tal, às portas do Bósforo. Sucumbirá por sua vez em 1 453, frente aos os setores da atividade humana. Não resta dúvida de que ela é em grande
turcos. Mas, antes de sucumbir, já terá transmitido para outras mãos a parte responsável pel'a história do pensamento científico ocidental duran­
herança da ciência e da filosofia gregas. te a Idade Média e a Renascença.
É uma estranha saga que se desvenda, ao se seguir, passo a passo,
através dos meandros da história, o ines..,erado caminho pelo qual chegou
até nós a fonte de nossa civilização e cultura.
A partir do século VII a dominação árabe começa a suceder à 4.2 A IGREJA FRENTE AO ARISTOTELISMO
romana, no Mediterrâneo ocidental e meridional; e é com um surpreendente
entusiasmo que, apenas consolidada a conquista política, o mundo islâ­ Os treze séculos que unem o declínio da filosofia e da ciência da
mico inicia a conquista da civilização, da filosofia e da ciência gregas. Grécia antiga à renascença científica dos séculos XVI e XVII são caracte­
Todas as obras científicas são traduzidas, comentadas, muitas vezes, infe­ rizados pela hegemonia crescente da Igreja sobre a atividade intelectual
lizmente, interpretadas e deturpadas. na Europa.
Enquanto isso acontece a leste, a Europa ocidental mergulha nas Esse domt' n io foi, no início, circunstancial: a Igreja era o único
trevas da barbaria política, social e intelectual, que iria submergi-la do corpo constituído a dispensar a educação, em todos os níveis, de modo
século VI até o século XI. que foi levada a estender cada vez mais a sua influência .
Mas, com as investidas árabes na Europa, principalmente na Espa­ Influência, porém, ou domínio, não são necessariamente benéficos
nha, por um lado, e com as tentativas de penetração da cristandade no ou maléficos.
Oriente Próximo, por outro lado, inicia-se a difusão da nova cultura Como se situa, quanto à evolução da ciência, a ação da Igreja na
árabe, isto é, dá cultura grega "islamizada" no mundo ocidental. O Oci· Idade Média e na Renascença?
dente através dos árabes, retoma contato com a civilização helênica. É A atitude da Igreja mudou várias vezes, de um pólo a outro, duran­

invasões mouras do século XI 1, que a Europa conhece finalmente as


por intermédio do filósofo Averróis, que se fixa na Espanha, depoi. das te esse período. Mas, de um modo geral pode-se dizer que, entre os
séculos X e XVI, a Igreja encorajou o desenvolvimento do espfrito cien­
obras de Aristóteles e de Ptolomeu. É graças à influência árabe que o tífico; foi resolutamente contra, antes do século X, e de novo depois do
Ocidente começa a emergir do obscurantismo e conhece, do século XI ao início do século XVI 1 .
XIV, um período de intensa atividade intelectual e artística que permite Nos primeiros séculos da sua história, o cristianismo tinha que
a eclosão da arte gótica e da filosofia escolástica, em particular. lutar por sua própria sobrevivência. A Igreja, recém-fundada, devia fazer

64 65

L
·· • · a, a ·i ntransigênc ia ,inici al ce.deu lugar aos poucos a
obra de proselitismo e ao mesmo tempo defender-se contra seus a dver­ Em consequenc1 .
e s tolerante.
· s compree nsiv a, ma is flex1vel mai
sários, numerosos e poderosos. uma at�tude mai do árabe, seja pela Esp
anha, seJ �
Entrincheirou-se então atrás das Escrituras: a palavra divina devi a � a�do os contatos com o mun es, ao conhec1-
. ram as obras gregas,
em traduções árab
fo rnecer todas as respostas à curiosida de humana, po is co ntém tudo o por B 1zanc1 0, lev� bros de ord ens relig iosas, a
que o homem precisa conhece r. mento dos estud1osos, .quase todos eles mem, . ses eso ur s de u ma
. raiou os estudos e as anal i ses des
Igreja aceitou e enc�
t o
Ouçamos Santo Agostinho ( século IV), um dos fundado res da
a. •
Igreja Católica : cu ltura qua se esquecid leit ura o gr n •
des c1ass1cos gre·
que
" . .. qua ndo então surge a pergunta do que devemos acreditar a A� deslumbramento inic ial em
s a

: os mosteiros se transfor maram


a d

su ced eu o ent usia smo


respeito da Religião, não é necessário procu rar entender a natu reza das gos suscitava, ciava o dve nto
que u ma atividade febril prenun
coisas, co mo fazia m os que os gregos chamavam de physici; ta mpo uco cent ros de estudos em
a

devemos fica r a la rmados se o cristão desconhece a fo rça e o número dos dªs futuras Un
ive rsidades. .
lân cia d s aut orid ade s cat ólic as mant i n�a-�� a1e r·
elementos, o movimen to, a o rdem e os eclipses dos co rpos celestes, a No en tanto , a vigi ens ina· o em
comentar Aristóteles; outra era
a

forma dos Céus, as espécies e a natureza dos anima is, das plantas, da s ta. Uma coisa era ana lisar e
povo. . .
pedra s, das fontes, dos rios, das montanhas; (se desconhece) a cronologia praça púb lica ' divulgá-lo pa ra o ve rsão o_r�g inal , a�te.n-
- de que Ari stó eles em
e a agrimensura, os sinais que prenunciam as tempesta des e mil o utra s Ora nao resta dúvid a . ,
que u m conci lio prov1nc1al
t

coisas que esses filósofos têm desco be rto ou pensam ter descoberto .. . er inac eitá vel par a a lgre�a. Tanto _e
tica, . Meta-
o ens inam ento da F ísica e da
Basta ao cristão acreditar que a causa única de todas a s criaturas, sejam i o em Par·, s, em 1 2 1 o , pro tbtu
a

reunºd
elas celestes ou te rrestres, visíveis ou invisíveis, é a bondade do Cria dor, física aristotélicas. . ,, · · · , 1 .
Deus único e verdadei ro, e que na da existe, a não se r Ele, que não deva a rna r A is óte les ace itáv el, era preciso cnst�arnza- o" ·.
Pa r o , no
coube a Santo Tomas de Aq uin
r t
Ele a sua existência". A tarefa dessa c ristianização
a to

A ciência então era inú til; não somente inútil como também peri­
século XI 1 . · �· a .·. nove séc ulos
gosa : iniciou-se o crepúscul o do sabe r, que iria se transfo rmar rapida­ ígnios da Provi· denc
Há uma certa simetria nos des .
estilo, e o gen 10 reI"1910 de so
mente na s t revas em que se estagnou o Ocidente até o século X. f ndeza do espírito, a magia do
Foi assim que, no quart o século, um esc ritor de certo reno me, tificado o Deus tra nscendente ��: i ���
���� ����t�nho tinham iden e
Lactantius, preceptor de um filho do imperador C o nstantino, ridicula r i­ dente ao ser e ao
pensamento.. E.ra .ª90
de Platão tra nscen .
zava os adeptos da esfericidade da Terra co m o argumento de que, nos r�r Aristóteles ao cnst1arns�o
Santo To�ás de Aq uino incorpo Aristó·
a n t ípoda s, as pessoas fica ria m de ca beça para baixo. comentou um a traduçao de _ .
O dominicano Sa nto Tom . as
No sexto século, Kosmas, um monge de Alexandri a, construía uma r do xt ego po r outro dom m1c ano ,
te\es feita di retamente a pa rt i ações das traduções
cosmolo gia "bíbl ica" em que o Universo tinha a f o rma do ta bernácul o
Guilhe rme de Moerbeke, o que
ev1!�av� ;; de . turp a sua o bra
que o Senhor mandara Moisés co nst rui r no deserto . . . ue ocupa m ��t 1�:;ente toda
árabes. Nesses co men�á�io�; q ' onado com a beleza e'
O que aconteceu, pa ra que a Igreja muda sse de atitude? a "Suma Teo\091ca
°
, Sant Tom as ' p ·· 1dos pe1 a fe
Ve rifico u-se pri meiro uma recrudescência da ativida de mar ít ima éli�a: fo i até os e�tremos pe rm1t
�f;;i�� da Cosmologi a aristot
em d ireção ao Mediterrâneo oriental e o estabelecimento de relações avel pel a ,!greJ a.
cri stã para torna r Ar istóteles ace1t_ . obra aris­
comerciais com o Oriente próximo. H ouve a penetração árabe na Espa­ por . •ser _ convencidª." . A
Acontece que a Igreja ansi ava como aben­
nha, e no outro ext�emo da bacia mediter rânea , as sucessiva s C ruzadas, a
a er um a fon e ines got áv� l ,�e sap1enc1a, q�� �urtr
totélic a e dia .
parti r do século XI . Assim, os vínculos do Ocidente com o lslã torna­ to d: '.de1as legado pel
t
er
a

çoado m ná, n árid o des . . o­


Ja acei�sse a cosm
a

ram-se mais est reitos, favo recendo os cantatas da Eu ropa com u ma cul­ t1u assim que a lgre
o
m1
a

A dia léti c om is a per


tura desconhecida e florescente. d� Uni�erso c�iado
a t t

logia aristotélica como model o desencadeada


s

Em segundo lugar, a si tuação da Igreja Católica tinha mudado


A nova reviravolta dar-se-ta mu
:º;
ito �a ,� tar e �;�
muito. A insegurança dos primeiros séculos, sucedeu um período de del o de Cope rn1co . .
com o apoio de Galile u ao mo
confiança e de tranqüilida de, justificadas pela expa nsão incessante do
Cristianis mo, pela hegemonia quase absoluta da Ig reja nos centros nervo­
" à stro � a . Físic
Vejamos agora o que aconteceu , � ; �� �� durante a fa se
a na segun-

é, nos secu os
sos do mundo ocidental e pela autorida de inconteste do Sumo Po ntífice. da fa se da Idade Médi a, isto
67
66
"esclarecida" desse período, em contraposição à fase anterior de obscu­ tradição astronômica grega, abrindo assim o caminho para Copérnico,
rantismo e de estagnação. Tycho Brahe e Kepler.

4.3 A ASTRONOMIA DA IDADE M É D I A .


4.4 A F I SICA M E D I EVAL

Depois d a "descoberta" de Ptolomeu, o Almagesto tinha sido o 4.4.1 AS TENTATIVAS CONCEITUAIS


livro de trabalho dos astrônomos árabes. Eles não puseram em dis­
cussão a cosmologia das esferas, dos deferentes e dos epiciclos. Nad , Elas se resumem praticamente nos trabalhos da Escola de Oxford e
disso os interessava. Uma das coisas que queriam saber era como deter­ da Escola Parisiense, no século XI V; tanto em Oxford como em Paris
minar com precisão a direção de Mecca a partir das posições das estre­ começava a aparecer a preocupação de tornar a F ísica quantitativa, de
las e isto em qualquer ponto do Mediterrâneo que então dominavam: matematizá-la. Não resta dúvida de que Galileu que, quase trezentos anos
tinham que prosternar-se frente à Cidade Santa para suas preces. mais tarde, concretizaria essa matematização, deve muito aos oxfor­
Surgiram então numerosos observatórios na orla mediterrânea. dianos e aos parisienses.
A conseqüência foi dupla: em primeiro lugar constituiu-se um A Escola de Oxford é representada principalmente por Thomas
corpo de observadores excelentemente treinados; em segundo lugar, as Bràdwardine, William Heytesbury, Richard Swineshead (chamado o
observações se tornaram mais precisas, o que fez que muitas coordenadas Calcu/ator) e John Dumbleton. Ensinavam no Merton College por volta
celestes levantadas por Hiparco e Ptolomeu tivessem que ser corrigidas. de 1330-1340 e por essa razão são freqüentemente chamados de "mer­
E m se tratando de planetas, as correções do Almagesto tinham tonianos" pelos historiadores.
geralmente conseqüências embaraçosas: para continuar a salvar as aparên­ Qual foi a contribuição dos mertonianos? Basicamente, tentaram
cias, havia necessidade de acrescentar um novo epiciclo sobre o epiciclo fazer emergir o conceito de velocidade instantânea de um móvel e da
já existente, o que complicava cada vez mais o modelo. variação no tempo dessa velocidade, isto é, da aceleração.
Enquanto os astrônomos árabes da Escola de Damasco discutiam Não é necessário insistir no movimento uniforme cuja velocidade é
as modificações possíveis do modelo ptolemaico, a Europa começava a se constante. A propósito dos outros movimentos surgiu uma terminologia
interessar pelas coisas da Astronomia. Não pela Astronomia em si, mas nova: os movimentos diformes eram os movimentos não uniformes.
pela Astrologia. Dentro desses últimos, os mertonianos se dedicaram particularmente aos
A Astrologia, certamente mais velha que a Cosmologia, tinha uma movimentos uniformemente diformes: são os movimentos em que a velo­
importância considerável para a intelectualidade da Idade Média. Raros cidade varia de quantidades iguais em tempos iguais. São os movimentos.
eram os reis e pri'ncipes que não tinham um astrólogo oficial, junto a suas que hoje chamamos de uniformemente acelerados ou desacelerados.
cortes. Ao mesmo tempo que os mertonianos tentavam definir o conceito
de velocidade, faziam também a primeira tentativa de matematização do
Da necessidade de conhecer-se exatamente a constelação ascen­
. conceito. Essa tentativa foi frustrada: sem o cálculo diferencial não há
dente na hora do nascimento do "paciente", decorreu outra necessidade:
gerais e o cálculo diferencial iria aparecer somente no século XVI 1 ; d e
a de se conhecer, com a maior precisão possi'vel, as posições dos astros possibilidade de se definir matematicamente uma velocidade em termos
em todas as horas de todos os dias do ano, no passado e no futuro! _
modo que os mertonianos foram obrigados a raciocinar sobre casos parti­
Ora, o mundo islâmico dtspunha dos profissionais de que a Europa culares e a utilizar artifícios de cálculo que não teriam grande interesse,
estava carente. Os soberanos europeus convidaram esses astrônomos: eles não fosse o fato deles representarem realmente o primeiro passo para
não se contentaram aliás em equipar e operar novos observatórios, pois uma futura algebrização da Física.
introduziram na Europa, entre outras coisas, os algarismos "árabes" (que Passemos à Escola Parisiense. É representada por Jean Buridan,
tinham recebido da fndia) e o uso da álgebra. reitor da Universidade de Paris e por Nicolas Oresme, diretor do Colégio
Pouco depois da "abertura" ocidental, o mundo islâmico fechou-se J ' de Navarra daquela Universidade.
sobre si mesmo, temeroso da deturpação de sua fé nos cantatas com o Buridan e Oresme eram contemporâneos dos oxfordianos, cujos
cristianismo. Mas já havia transmitido ao Ocidente a chama da grande trabalhos conheciam. Como os oxfordianos, sentiam, talvez intuitiva-
68 69
mente, que a chave para um estudo quantitativo do movimento estava na
compreensão dos conceitos de velocidade e de aceleração.
Mas os parisienses sofriam das mesmas limitações operacionais que
os oxfordianos e encontravam a mesma dificuldade em algebrizar o movi-
mento.
Oresme então recorreu à representação geométrica. a b
Representava a duração total do movimento por um segmento de
reta (ab na fig. 1 ) . Em cada ponto (instante) desse segmento pode ser FIGURA 2
levantada uma perpendicular e sobre essa perpendicular pode-se lançar As velocidades sucessivas no movimento uniforme.

um comprimento representando a velocidade do móvel naquele instante


(cd na fig. 1 ).
correr do movimento e, na terminologia confusa da Idade Média a velo­
cidade total era por definição proporcional ao espaço percorrido pelo
móvel durante o movimento.
(a) Então, prosseguia Oresme, a soma das velocidades representa ("a
d ( b) menos de uma constante de proporcionalidade", acrescentaríamos hoje)
o espaço percorrido pelo móvel.
1

Ora, voltemos à fig. 2. A soma da infinidade de segmentos que


representam as velocidades sucessivas e que recobrem inteiramente a fi.
gura (um retângulo no caso) não é então, dizia Oresme, a área dessa
figura?
Conseqüentemente, a área da "configuração" representa o espaço
e
percorrido pelo móvel durante o tempo ab !
b
a e b a O q1·.e há de extraordinário nessa história toda é que Oresme che·
gou a um resultado correto (como todos nós sabemos, a área debaixo do
gráfico velocidade-tempo é efetivamente proporcional ao espaço percor­
FIGURA 1
Representação geométrica, por Oresme, do movimento uniforme (ai. e do movimento uniforme·
mente diforme (b). rido), por uma sucessão de erros que não hesitaríamos, hoje, em quali-
ficar de "monstruosos".
Assim é que um movimento uniforme será representado pelo No entanto, depois de Oresme, Kepler e Galileu na sua juventude
retângulo da fig. 1 a e um movimento uniformemente diforme, com velo­ cometeram praticamente os mesmos erros.
cidade inicial nula, pelo triângulo da fig. 1 b. De onde se conclui que a elaboração de conceitos básicos é uma
Reconhecemos, nas representações de Oresme, os futuros gráficos operação extremamente dif/cil.
velocidade-tempo.
Oresme no entanto foi mais longe; segundo ele, suas "configura­
ções" iriam permitir se chega�r ao espaço percorrido. 4.4.2 O PROBLEMA DOS PROJÉTEIS E DA QUEDA DOS GRAVES
De que maneira?
O móvel, dizia Oresme, tem em cada instante uma certa veloci­ Aristóteles nunca se preocupou muito com as questões de veloci·
dade. As velocidades sucessivas são representadas pelos segmentos verti­ dade e de variações da velocidade de um móvel. Para ele, o movimento
cais (perpendiculares ao "tempo" ab da fig. 2). não passava de uma fase de transição durante a qual o móvel procurava o
Se então, dizia ainda Oresme, somarmos todas essas velocidades seu lugar natural do Cosmos e portanto carecia de maior importância.
sucessivas, teremos a "quantidade de velocidade" do movimento. Esforçou-se por identificar as causas do movimento, as forças motoras,
Ora .(é sempre Oresme que fala), a quantidade de velocidade é a mas vimos no capítulo 2 o quanto faltava para elaborar corretamente
velocidade total, isto é, o maior valor atingido pela velocidade no de- essas noções.

70 71
A base da análise aristotélica era o princípio segundo o qual uma Conclui-se que a impulsão é uma certa qualidade incorporada ao
força constante produz uma velocidade constante: o século XIV nem móvel pelo agente motor, capaz de manter o movimento violento en­
cogitou de discutir a validade desse princípio. quanto o seu efeito predominar sobre a resistência do ar e sobre a
Mas Aristóteles acrescentava que a causa do movimento é neces­ gravidade, as quais "consomem", "gastam" a impulsão, esgotando-a
sariamente exterior ao móvel e somente pode se exercer por contato. depois de um certo tempo.
Lembremos sua "explicação" do movimento dos projéteis: depois de Não há como negar que a teoria da impulsão era bastante sedutora,
deixar a mão que o projetou, a pedra continua a se movimentar pela ação talvez por suas consonâncias intuitivas. Jean Piaget por exemplo, estu­
do ar. dando a formação do conceito da força em crianças, observa que o
Ora, a fraqueza dos argumentos aristotélicos, nesse ponto parti­ conceito de impulsão, semelhante ao dos físicos parisienses do século
cular, não tinha escapado a seus contemporâneos; tampouco escapou aos XIV, é sistematicamente utilizado pela criança ao interpretar fenômenos
críticos do século XIV. A pergunta fundamental permanecia a mesma: a de observação simples, como a subida da bola de um pêndulo depois de
quo moveantur projecta? O que move os projéteis? atravessar a r'>sição de equilíbrio, no decorrer de suas oscilações.
Jean Buridan nos deixou uma análise crítica da solução aristo­ A noção de impulsão permitia também a Jean Buridan explicar a
télica. Seus argumentos são primeiro de ordem lógica: por que razão o ar, aceleração dos graves no decorrer da queda.
no caso do movimento do projétil, teria ele sozinho a faculdade de Essa aceleração era incompatível, na Idade Média, com a idéia de
continuar a mover-se, para por sua vez mover o projétil? Por que o uma fôrça motora constante (o peso). Buridan propôs então a teoria
projétil não possuiria essa mesma faculdade? segundo a qual a força da gravidade, ao exercer o seu papel de levar o
Mas há também argumentos Hsicos: como conciliar a resistência corpo para o seu lugar natural, gera a cada instante, no móvel, uma força
óbvia do ar ao movimento, com o seu papel propulsor? Por que razão complementar, a impulsão, que somando-se à gravidade multiplica os
uma pedra, embora mais pesada que uma pena, vai mais longe que esta? efeitos desta. No início da queda o corpo é somente movido pela
Essas dificuldades, entre outras, deixam prever que os parisienses gravidade e por essa razão começa caindo devagar. Passando, a seguir, a
iriam procurar uma solução completamente diferente da solução de ser movido pela impulsão adquirida, sua velocidade aumenta.
Aristóteles. A teoria da impulsão é a contribuição mais importante da Idade
Assistiu-se então à elaboração, por Buridan, da teoria da impulsão Média à Física. Essa contribuição é tanto mais significativa porque
("impetus" em latim). auxiliará na tarefa de demolição do mito aristotélico, que seria iniciada
O essencial dessa teoria reside no abandono do axioma aristotélico na Renascença.
da exterioridade das causas · do movimento: Buridan transferia para o
móvel a capacidade que Aristóteles atribuía ao ar, de armazenar e con­
servar a força inicial do propulsor.
Ouçamos Buridan: CONCLUSÃO
" Enquanto o propulsor move o projétil, imprime nele uma certa
impulsão, uma certa potência capaz de movimentar na direção mesma Depois de quase mil anos de estagnação, o pensamento ocidental
em que o propulsor move o projétil, seja para cima, para baixo, ou de retomou o contato com a tradição, a cultura e a ciência gregas.
lado, ou circularmente. Quanto maior a velocidade com que o propul­ O estudo dos grandes clássicos gerou ao mesmo tempo a crítica a
sor move o projétil, mais possante é a impulsão que nele imprime. É seus métodos e conclusões. Assistiu-se, então, no final da Idade Média, a
essa impulsão que movimenta a pedra depois que o atirador cessou de um duplo fenômeno:
movê-la. No entanto, pela resistência do ar como também por causa da
gravidade, que inclina a pedra a mover-se em sentido diferente do - em primeiro lugar, o sistema ptolomaico ameaçava sucumbir sob o
sentido em que a impulsão possui a potência de mover, essa impulsão peso da sua complexidade. O relógio geométrico tornava-se cada vez mais
se enfraquece continuamente; então o movimento da pedra é cada vez complicado, sem no entanto ganhar substancialmente em precisão. O
mai � lento: a impulsão é finalmente vencida e destruída, a ponto da caminho estava aberto para se reformular em outros moldes, não so­
gravidade sobrepor-se a ela, movendo a partir daí a pedra em direção a mente o problema dos movimentos dos planetas, como o próprio pro­
seu lugar natural". blema da estrutura do Universo.

72 73
- em segundo lugar, os trabalhos das Escolás de Oxford e de Paris Capít�lo 5
representavam por um lado os primeiros passos em direção à matema­ A Rl::'NASCENCA
tização da Física e por outro lado, com a teoria da impulsão, uma A INVESTIDA CONTRA O MITO ARISTOTÉLICO
primeira tentativa de unificação conceituai do movimento dos projéteis e
da queda dos graves.
primeira parte
Filosoficamente, essa mesma teoria da impulsão tinha certas cono­ COPÉRNICO E TYCHO BRAHE
tações que a tornavam talvez mais importante como instrumento polê­
mico do que como teoria física: era a primeira cunha que se introduzia
na estrutura aristotélica, até então monolítica.

INTRODUÇÃO

Cronologicamente, costuma-se apontar o ano de 1453 (tomada de


Constantinopla pelos turcqs) como o início da Renascença. O término é
mais impreciso e difere conforme o ponto de vista considerado.
A razão é que, antes de ser uma época, a Renascença foi um estado
de espírito. Representou a transição entre a Idade Média e os chamados
Tempos Modernos. Essa transição, rápida nas artes, nas letras e na
filosofia, foi muito mais lenta e muito mais difícil no campo da
ciência.
A Renascença foi primeiro uma época de intensa curiosidade em
que se procuraram novos caminhos tanto nos mares (o descobrimento do
Brasil é fruto da Renascença), como no pensamento.
Foi uma época de intensa atividade artística e literária em que se
reformulou o problema do homem frente à religião, à filosofia e à
ciência.
Ao mesmo tempo em que o homem tomava consciência da sua
inteligência, descobria que essa inteligência, a serviço da independência e
da autonomia do pensamento, podia levar às estonteantes aventuras da
criação intelectual.
Foi durante a Renascença que nasceu, realmente, o humanismo.
Evidentemente, para construir uma filosifia nova em torno do
homem e de tudo o que se relaciona com ele, era preciso destruir
primeiro os velhos conceitos, esquecer tradições, apagar certos modos de
pensar e a seguir preencher as lacunas assim criadas.
74 75
Em filosofia e em ciência, o grande inimigo da Renascença foi a bispo de Ermland, · que o mandou �� 1491 y ara a U� i� ersidade d� C ra­
_
síntese aristotélica, porque · nela precisamente todos os problemas es­ cóvia, onde estudou Direito e Med1cma. Foi e_m Cracov1� qu� Copern1co
tavam resolvidos: não deixava mais nada para que o homem, nas suas
ª.
teve seus primeiros contatos com a Astronomia, graças amizade_ que o
tentativas de independência intelectual, pudesse exercer sua autoridade. ligou ao astrônomo Albert d� Brudzewo. Bru_dzewo ensinava o sistema
_ .
Ora, todo mundo sabia que pelo menos algumas das soluções ptolomaico e comentava Anstoteles na Un1vers1dade.
propostas por Aristóteles estavam flagrantemente erradas. De algumas Em 1497, Copérnico foi para Universidade de Bolonha, na Itália,
para todas era somente um passo a transpor. onde aprendeu o grego, estudou Platão, sem no entanto se descuidar da
D_e modo q � e o espírito crftico da Renascença foi perfeitamente Astronomia que voltou a cultivar como colaborador do astrônomo
caracterizado no t i tulo da tese que o filósofo Petrus Ramus defendeu na Doménico de Novaro .
Sorbonne em 1 536: "Tudo o que Aristóteles ensinou está errado". Naquele mesmo ano de 1497, a influência do tio bispo tinha vai ido
N�tura! �ente, supondo-se que a destruição da F ísica e da Meta- a Copérnico sua nomeação como cônego de Frauenburg, de modo que
. em 1 50 1 Copérnico voltou à terra natal para assumir o seu canonicato.
ffs1ca anstotellcas pudesse ser levada a bom termo, era preciso pôr algo
no lugar. Ne�sa tarefa de reconstrução a Renascença não foi sempre feliz. Apenas instalado, porém, a nostalgia das lides universitárias o fez voltar à
Por essa razao, ao lad o d o seu aspecto luminoso, brilhante, generoso, a Itália, a Pádua, onde retomou os estudos de Medicina e de Direito, com
_ uma breve pausa, em 1 503, para conquistar o doutorado em Direito
Renascença teve tambem as suas sombras. Pois antes que se construa uma
Canônico, em Ferrara.
�etafi'sic_a e uma F ísica novas, o que seria obra do século XVII não se
tin �a mais nenhum critério de aferição para decidir da veracidade ou da Frauenburg, no entanto, reclamava o seu cônego: diante da insis­
falsidade do que se dizia, se escrevia e se ensinava. tência do tio, Copérnico retornou à Polônia em 1 506. Durante 37 anos,
até sua morte em 1 543, dedicou-se aos seus estudos sobre Astronomia,
. Dessa forma, a �enascença em parte involuiu para um passado que que o conduziram à elaboração de um novo sistema do mundo.
mu1 �os pensavam extinto: nunca se acreditou tanto em bruxaria, em
magia n:gra; nunca houve tanta crença nos demônios; nunca a Astrologia
esteve tao florescente.
Tudo isto pode parecer muito longe da Física: nem tanto assim .
Veremos que essa volta parcial ao obscurantismo foi um fator determi­ 5. 1 . 2 A ELABORAÇÃO D E UM NOVO SISTEMA DO MUNDO
nante na mudança de atitude da Igreja em relação à ciência.
Mas voltemos a um enfoque mais restrito. O que aconteceu em Os contatos de Copérnico com a Astronomia, em Cracóvia e em
Astronomia e em Física, na Renascença? Bolonha, tinham despertado nele uma viva curiosidade pelas coisas do
Como nos outros ramos do saber, assistiu-se ao lento desmorona­ céu. O seu retiro na tranqüilidade de Frauenburg, a partir de 1 506,
mento �o e�ifí �io aristotélico, embora as fundações fossem tão sólidas permitiu-lhe meditar longamente sobre o sistema ptolomaico e suas
q_ue mais _dois s�culos pelos menos seriam necessários para que os .vestí­ imperfeições.

. Os artesãos da renovação foram, em Astronomia: Copérnico


gios do aristotelismo fossem esquecidos. A primeira crítica que Copérnico fazia ao sistema de Ptolomeu
referia-se ao equante: com o equante, Ptolomeu tinha se afastado do
Tycho Brahe e Kepler. mandamento aristotélico do movimento circular uniforme. Ora, para

.
Na Física, as mudanças foram menos marcantes: reteremos o nome
de G1or?ano Bruno; embora não fosse um cientista, teve importância não
despreztvel na elaboração das grandes teses galileanas.
t
·I
Copérnico (como mais tarde para Tycho Brahe e, durante muito tempo,
para Kepler), era simplesmente impensável que os astros pudessem ter
outros movimentos além dos circulares e uniformes.
A segunda crítica de Copérnico era dirigida à complicação extrema
a que os sucessores de Ptolomeu tinham sido levados pelo desejo de
5.1 A REVOLUÇÃO COPERNICANA
sempre "salvar os fenômenos".
Finalmente, Copérnico acrescentava que aquela complexidade
5.1 . 1 BIOGRAFIA RESUMIDA DE COPÉRNICO
toda se tinha mostrado inútil, já que nem a multiplicação dos epiciclos
conseguia fazer coincidir os fatos observados com as previsões do
. Nicolaus Coppernicus nasceu em Thorn, na Pomerânia, então pro­ modelo.
vi,nc1a polonesa, em 1473. Órfão aos doze anos, foi adotado por um tio,

76 77
ª ª a difi culdade
dizendo: " ... (devemos nos
Copérnico conto�� � undo é O centro da gravidade terrestre ou um
Havia, decididamente, na Cosmologia ptolomaica, algo que não r
perguntar> se ? cen� � é que um? certa
funcionava. e cho que a gravidade nada mais
outro. Por mim, partes de enc,ontrar-se na sua unidade e
Deixemos então Copérnico nos explicar o seu pensamento:
apet"ncia
e natural . · · que t"em as ,
" . . . Ora, tendo longamente meditado sobre a incerteza do ensina­ . ·indo-se na forma de um g lobo · -
. e nao
integridade, reun es para Copérnico, iam para a
s grav
Terra,
mento dos matemáticos em relação à composição dos movimentos das De mod o q u tendem a
esferas do mundo, aborreceu-me· o fato de que os fi lósofos que tinham do M ::do, sim�lesmente porque os semelhantes
para O centro
estudado com tanto cuidado até as menores coisas relacionadas com este unir-se.
mundo, não ofereciam nenhuma expl icação certa para os movimentos da
máquina do Universo, que tinha sido construída para nós pelo mel hor e o
mais perfeito dos artistas.
Por essa razão, resolvi ler os livros de todos os filósofos que pu­
desse conseguir, para ver se alguns deles já tinham cogitado que os movi­
mentos das esferas do mundo pudessem ser diferentes dos que os mate­
máticos ensinam nas escolas. E achei, primeiro em Cícero, que Nicetus
pensava que a Terra se movia. Mais tarde encontrei também em Plutarco
que alguns outros tinham tido a mesma opinião.
. . . Partindo daí, comecei também a pensar na mobilidade da
Terra. E, embora a opinião parecesse absurda, posto que outros antes de
mim tinham tido a liberdade de imaginar uns círculos a fim de deduzirem
os fenômenos dos astros, pensei que também a mim seria permitido
procurar ver se, ao admitir algum movimento da Terra, não seria possível
encontrar uma teoria mais sólida da revol ução dos orbes celestes.
Assim é que, dados os movimentos que mais adiante atribuo à
Terra, achei finalmente, por meio de longas e numerosas observações
que, se os movimentos dos outros astros errantes fossem relacionados ao
movimento (orbital) da Terra, e que esse movimento fosse tomado por
base da revolução de cada um dos astros, não somente se deduziriam os
seus movimentos aparentes, como também a ordem e as dimensões de FIG URA 1 . fissional" é
vulgarização. O modelo "pro
todos os astros e orbes, e que se encontraria no céu uma coesão tal que mod elo copernicano, esquematizado para fins de
O
não se poderia mudar nada em nenhuma de suas partes sem produzir muito mais complexo.
confusão nas outras e no Universo inteiro".
Essas palavras são extraídas do prefácio, dedicado ao Papa Paulo érnico
o modelo, proposto por Cop
I l i , da obra máxima de Copérnico: De Revolutionibus Orbium Coeles­ Qual foi então o sistema ou
tium ( Das Revoluções dos Orbes Celestes), publicada em 1 543, ano da para substituir o de Ptolomeu? . . .
rema s1mp.h c1d d .
sua morte*. À primeira vista é de uma ext t� concên­
m por sete or e ou esferas
No entanto, antes de l ançar a Terra no espaço, era preciso mostrar Os corpos celestes se reparte
tricas (fig. � ). . . fixas.
que ela não tinha necessariamente que ficar no centro do Mundo. das é a esfera das estrelas
A primeira esfera, ? maior de tO '. er e a de
Para Aristóteles, o centro do Universo era o lugar natunu dos o, vmdO a seguir a de Júpit
graves, e conseqüentemente da Terra. A segunda esfera e a de Saturn
Marte. nto o orbe
ra: arrasta no seu movime
A Terra pertence à quinta esfe
•. Consta que Copérnico recebeu o primeiro exemplar impresso do De Revolutionibus no dia da Lua, centrado na Terra.
mesmo de sua morte, 24 de maio de 1 543. 79

78
Vênus e Mercúrio ocupam respectivamente a sexta e a sétima es- lugar, mostra que o mundo, bem como todos os corpos celestes, são
feras. esféricos " . . . seja porque essa forma é a mais perfeita de todas, seja
Todas as esferas giram, com exceção da primeira, a esfera das porque é a forma cuja capacidade é a maior e a que convém melhor para
estrelas fixas, "que contém tudo e se contém a si mesma, estando por tudo conter e tudo abranger".
isso mesmo imóvel". A seguir ". . . lembra que o movimento dos corpos celestes. é
A esfera de Saturno gira em 30 anos*, a de Júpiter em 1 2 anos, a circular. Com efeito, a mobilidade [própria] da esfera é a de girar: por
de Marte em 2 anos. esse ato, ao mover-se uniformemente em torno de si mesma, expressa sua
O período da esfera da Terra é de 1 ano, sendo esse movimento forma, a do corpo simples em que não se pode encontrar começo nem
orbital combinado com um movimento de rotação em torno de seu eixo fim, nem distinguir um do outro."
com' período de um dia. Esse movimento diurno explica os movimentos Em conseqüência, Copérnico dispensava o "Primeiro Motor" de
diurnos aparentes do Sol, dos planetas e das estrelas. Aristóteles. Mas, no mais puro estilo aristotélico, fazia do movimento das
O período da esfera de Vênus é de 9 meses e o da esfera de Mer­ esferas uma propriedade essencial, inerente à forma geométrica desses
cúrio, de 80 dias. corpos.
Finalmente, "no meio de todos (os astros) repousa o Sol. Com
efeito, nesse templo esplêndido, quem colocaria essa luminária em outro
ou melhor lugar, que este de onde ele pode iluminar tudo ao mesmo
tempo? " 5.2 ANÁLISE CR(TICA DO SISTEMA DE COPÉRNICO
Este sistema é um modelo de primeira aproximação. Foi o modelo
que Copérnico propQs no Livro I do De Revolutionibus, o único cuja 5.2.1 COMPARAÇÃO ENTRE O SISTEMA D E PTOLOMEU E
leitura está ao alcance do leigo, pois os outros cinco são, a exemplo do O SISTEMA D E COPÉRNICO
Almagesto, obra de profissional para profissional.
O modelo exposto acima é pois um esquema destinado à vulgariza­ O sistema de Copérnico "salva os fenômenos", pelo menos à
ção, sendo exatamente assim que deve ser considerado. primeira vista, tanto quanto os salvara o sistema de Ptolomeu. Se con­
Com efeito, se os movimentos aparentes dos astros são perfeita­ siderarmos o modelo copernicano profissional, com sua complexidade
mente explicados qualitativamente pelo modelo, como veremos logo comparável a de Ptolomeu, a precisão da concordância do modelo com
adiante, o esquema falha completamente no teste da precisão. as observacões é da mesma ordem de grandeza: nem melhor, nem pior.*
A leitura dos cinco livros seguintes do De Revolutionibus passa Isto pode 'se entender facilmente se atentarmos ao fato de que Copér­
então a ser um exercício bastante frustrante, em que vemos Copérnico nico trabalhava com os mesmos dados que Ptolomeu. As posições astro­
abandonar a esplêndida simplicidade do ·seu modelo primitivo para acres­ nômicas utilizadas na Renascença eram as das "Tábuas Afonsinas", com­
centar excêntricos,defl;lrentes e epiciclos no mais puro estilo ptolomaico, piladas no século X I I I , a partir do Almagesto, pelos astrônomos do rei
com a exceção notável do equante, do qual não precisava para conservar Afonso X.
uniformes os movimentos de rotação. Não é pois na precisão que devemos procurar a superioridade, se
Assim é que o movimento da Terra necessitava de um deferente e for o caso, do modelo copernicano. É nas explicações qualitativas de
dois epiciclos, enquanto que Mercúrio, por exemplo, utilizava um excên­ movimentos e de fenômenos celestes fundamentais que Copérnico con­
trico, um deferente e um epiciclo. segue sobrepor-se a Ptolomeu, graças ao seu modelo esquematizado, de
Ao todo, o sistema de Copérnico utilizava 34 deferentes, excên­ extraordinária simplicidade.
tricos e epiciclos! Enunciemos cuidadosamente as hipóteses do modelo para os movi­
Resta ver como Copérnico resolveu o problema do movimento dos mentos da Terra ( fig. 2):
orbes. Deu sua solução no Livro I do De Revo/utionibus. Em primeiro
a. a Terra descreve uniformemente uma circunferência cujo centro é
o Sol, num período de um ano (movimento anual ou orbital);
• Inexplicavelmente, na representação geométrica do seu modelo simples, reproduzido na fig. 1 ,
Copérnico d á aos perlodos dos planetas valores diferentes dos que ele mesmo calculou, valores
estes mais precisos. • Essa precisão é da ordem de dez minutos de grau.

80 81
------
\
\
\
\

4"
,,,..,'

--- ---
_ _
_ >( __
,,"
-':..-----
\

-
,,,,,"'

,
I
I
I
I
I
I
I

\
I
FIGURA 2
As hipóteses fundamentais de Copérnico para o movimento da Terra, no modelo simplificado.
Por razões de clareza, a representação acima está grosseiramente fora de escala.

b. o eixo dos pólos da Terra conserva, no movimento orbital, uma


direção fixa em relação às estrel as fixas* . Essa direção faz um ângulo de
2312º com a normal ao plano da órbita. Na terminologia moderna diría­
mos que, no movimento orbital, o eixo da Terra tem um movimento de
translação circular;
e . além do movimento orbital, a Terra tem um movimento de rota­
ção própria, em torno do eixo dos pólos (movimento diurno ) . Esse movi­
FIGURA 3 modelo copernicano.
o das estrelas no
mento, ta mbém uniforme, tem período de um dia, ou 1/365 de ano;
O movimento diurn

pequeno e �
d. o movimento anual e o movimento diurno processam-se no mesmo
. órbita terre stre e. ex(:e_mamenteólos celestes e
sentido: sentido horário para um observador que se encontrasse no pólo da do s
Posto que o ra 1? da esfera celeste, a pos1çao _ a :Osição da Terra
sul. o r se a
comparação c�ma na ��fera celeste, qualquer que 1
a

Vejamos agora corno esse modelo explica alguns fenômenos funda­ Praticamente fix . dos pólo _ s) en-·
.
or t
b' a. pen d'cu l ar ao e1xo vart a
mentais. na. sua . a1 terrestre (per içao
• . cuja pos celeste,
O plano equ aton º ºn o de uma circu , nferenc1a
t

celeste alela e uador


MOVIMENTO DIURNO DAS ESTRELAS contra a esfera as qu: s� �antém sempre par efeª·�o,�o decorrer do
com o tempo , m ao norte
deste . Com 1 lamente a
A fig. 3 representa a esfera das estrel as fixas e a órbita da Terra, ntrando- se ora ao I ora
terres t�e se deslo a �arale Na fig. �
enco rial
com o Sol no centro. l, o p��n� .equato l) ora abaixo (norte�. d Sol. do movi-
O eixo dos pólos terrestres encontra a esfera celeste em dois pon­ movimento anua�do ora ac1m a (su . a na d ,seussão -
si mesmo, passa xo do Sol . Isto terá impo rta• nc1 ra celeste
e. ta?
tos diametralmente opostos: os pólos celestes. nto, a esfe ­
enco ntra-se abai
do S_
? , logo adiante. No �nta à Jer a qu e para o movi l
mento apa rente raçao co a distância do Sol ao �o P1a'no equatoria
I

grande em compa � mitir que a interseç


pode m os a 83
menta diurno,
* Se desprezarmos uma lenta rotação do eixo da Terra, em torno da normal ao plano da eclíptica.
Essa rotação, devida ao fato de que a Terra não é exatamente esférica, se processa em 26.000
anos. A ela se deve o fenômeno da "precessão dos equinócios".

82
terrestre com a esfera celeste coincide praticamente com o equador
celeste.
Nessas condições, para u � observador terrestre, o movimento

.. .
Sol projetado
diurno da Terra traduz-se por um1! rotação diurna da esfera celeste, em
,'
ou'"eclipti�i-�I �
sen tido oposto ao da rotação da Terra; para esse observador, as estrelas ,• • ' •

,'
IS
descrevem, em um dia, círculos paralelos ao equador terrestre, no sen tido - r --­

do orien te (leste) para o ocidente (oeste).


I
,--- I
.,..,
O que precede equivale praticamente a colocar a Terra no centro
....

p �,,,. ..."" ,'


da esfera celeste, como no geocentrismo ptolemaico. A diferença porém
I

. · · .;·;,-<..'
I

é que agora o movimento diurno é explicado pela rotação da Terra, e não


I
I

,"
I
...�'?'
mais pela rotação da esfera celeste.
·
... ·
.

�"
.
.·º e,

MOVIMENTO DO SOL AO LONGO DA EC LfPTICA


Vejamos como o modelo de Copérnico explica o movimento apa·
rente do Sol ao longo da eclíptica (movimento anual).
Na fig. 4 encontramos novamente a esfera celeste, com o Sol no
centro. O equador celeste é paralelo ao equador terrestre, dividindo a
esfera celeste em dois hemisférios: o hemisfério sul que contém o pólo
sul e o hemisfério norte que con tém o pólo norte.
O plano da órbita da Terra faz um ângulo de 23%0 com o plano
equatorial (o mesmo ângulo que o eixo da Terra faz com a normal ao
plano da órbita). A interseção do plano da órbita com o plano equatorial
FIGU RA 4
celeste é a reta OP, que passa evidentemen te pelo Sol. .
mo_delo copern1cano.
Enquanto a Terra descreve a su
a órbita, o

O movimento anual do Sol, no


Suponhamos que a Terra, no seu movimento anua l, esteja na posi·· Sol descreve aparentemente a eclípt
1�. .
. são convencionais. Eles represent
am

ção represen tada na figura. Um observador terrestre verá o Sol "proje­ os eqµ1noc1os e os so1stíc·os
Os s ímbolos que caracterizam quan do o ast rônomos gregos
ncontrava o Sol , naque'ia; datas
tado" na esfera celeste em S. Cha maremos a essa projeção de "Sol . as casas do Zod íaco em que se e .
s

· z há uns 2000 a nos.


s utilizara m pela primeira
(tave z Hip col ra (para nós no hem1s·
eclipticial". À medida que a Terra descreve a sua órbita, o Sol eclipticial ' .1os d Outono e de Primave
e

tivam;_nt �
e os equ_1n . c
o
spec por s�a vez
ar

'f e n represe nta a (Bal nç ) ,{J e �


(Carne.iro) e n � da Libr
o

descreve, no mesmo sentido, um círculo maior na esfera celeste: a eclípti· féria Sul). 'f é o signo de A:ri�
re

ricórnio, e o
m

d Cap
a
igno
a

rno, sendo o primei r o o


s de vera o e de inve
ca. A ecl/ptica é a interseção da esfera celeste com o plano da órbita representam os solstício
s o

gu do o do Cânc er. ondem mais às po·


terrestre.
s .
equ1n óc'os" esses signos não corresp
Devido à chamada "precessão dos
e n

. . s· Ass·1
' rcio m é que ' na época atual, o Sol
1

s e nos so1st .
Assim é que, por causa do movimen to anual da Terra, vemos o Sol sições reais do Sol. n os equ,·n6cio �
o, nao e en c ntr mais em A1ries, e sim
, em Peixes.
eclipticial descrever a eclíptica em um ano. O movimento do Sol eclipti­ eclipticial, no eAuinoc10 de Outo
n s o a

cial se faz no mesmo sentido que o movimento orbital terrestre e conse­


qüentemente em sentido oposto ao movimento diurno das estrelas: o Sol ç_p S1_ da eclíptica*. Con
seqüentemente, encontra-se
retrogride ao longo da ecl/ptica, em relação às estrelas. creve a metade 'Y �
no hemisfério norte celeste. sul do Sol e
A inclinação do plano equatorial terrestre em relação ao plano da terrestr� pa�sa
É a época em que o plano equatorial ,,��
rado
"
para o
órbita, com a correspondente inclinação do plano equatorial celeste em h i fér io nort e '
conseqüentemen e o �n:i : \ �:�� � �! �:a � " .
ª
mbr
t
.
t
relação a o plano da eclíptica, tem conseqüências interessantes. a s
s
o nos o
t

Sol, enquanto o hem1sfer10 su l (


a

Olhemos p ara a figura: a Terra demora seis meses para percorrer


cada uma das metades, OIP e PVO, da sua órbita. Quando a Terra se
os precedentes.
significado dos s ímbol
encon tra na metade OPI, como indicado na figura, o Sol eclipt icial des- * Veja a legenda da fig. 4, para o
85
84
Em outros termos, é a época em que os raios solares são mais
obl (qüos no hemisféri o sul e mais próximos da vertical no hemisfério
norte.
Ou ainda, é a época em que o Sol se encontra mai s próximo do
horizonte, ao norte, para quem vive no hemisfério sul, e mais perto do
zênite, ao sul, para quem vive no hemisféri o norte.
De modo que, enquanto a Terra percorre a metade OPI da sua
órbita, faz em média mais frio no hemisfério sul que no hemisfério norte.
Isso corresponde ao outono e ao inverno para o hemisfério sul, à prima­
vera e ao verão para o hemisfério norte.
O que precede se inverte durante o percurso da metade PVO da
órbita. O plano equatorial terrestre passa agora ao norte do Sol. O Sol
eclipticial, que se encontra no hemisfério sul celeste, descreve a metade
n y3 'Y da ecl íptica; o hemisfério sul terrestre é mais quente (primavera e
verão) e o hemisfério norte mais frio (outono e inverno).
Vejamos agora o que acontece nos pontos "críticos" da órbita.
Primeiro, suponhamos a Terra em O. O Sol eclipticial está em 'Y.
Nesse dia, o movimento diurno da Terra faz esse Sol eclipticial descrever
CELESTE

o equador celeste (em que sentido? ) . No equador (em Belém, por


· exemplo) o Sol culmina no zênite. Em todos os lugares da Terra, dia e
FIGURA 5
r celeste) e nos solst (cios (trópicos!.
Trajetórias do Sol eclipticial nos equinócios (equado
noite têm a mesma duração. Estamos pois no equinócio. Qual dos dois?
Ao atravessar a posição O da sua órbita, para nós no hemisfério sul, a
Terra vem das estações quentes, entrando nas estações frias. Trata-se MOVIMENTO RETRÓGRADO DOS PLANETAS
portanto do equinócio de outono, dia 21 de março. (É o equinócio de
primavera para o hemisfério norte.) Parã os movimentos dos planetas as hipóteses copernicanas são:
Mais tarde, no dia 22 de junho, a Terra se encontra em 1 (fig. 4), o a tod os os planetas descrevem órbitas circulares em torno d o Sol;
Sol eclipticial em a. A trajetória diurna do Sol eclipticial é um paralelo b: os planos das órbitas dos planetas coincidem praticamente com o
ao equador celeste. Esse paralelo é chamado trópico de Câncer (fig. 5). plano da eclíptica; . · d
De todas as trajetórias diurnas, é a que se encontra a mais afastada do c. os perío dos dos planetas variam no mes�o sentido que o raio
equador celeste, em direção ao norte. No hemisfério sul estamos no órbita: maior o raio, maior o período e consequentemente menor a vel o�
solstício de inverno (dia mais curto e noite mais longa do ano). É o cidade do planeta sobre a sua órbita.
solstício de verão no hemisfério norte (dia mais longo e noite mais curta
Vei·amos agora' à luz dessas hipó teses, como se explica o fenôme�o
do ano). , · - a T_erra e Marte estao
Em 23 de setembro a Terra se encontra em P (fig. 4). É o equi­ da retrogressão. Quando Marte esta em coniunçao , , .
dos contran�s, se
nócio de primavera no hemisfério sul, de o uton o no hemisfério norte. O na posição em que dois automóveis, andando em senti o "automove 1 ,,
cruzam numa estrada (fig. 6a). O "automove · I" Terra ve .,
n,
Sol eclipticial, em descreve de novo o equador celeste, co m igualdade
eclip ticial, de oeste para 1 este . e
A

do dia e da noite. Marte andar no mesmo sentido que o Sol


Finalmente, em 22 de dezembro, a Terra se encontra em V (fig. 4); ' o movimento anua l "normal" do planeta. . . - a Terra e Marte
o Sol eclipticial em J3 descreve agora o trópico do Capricórnio (fig. 5), Pel o contrário, quando Marte esta em opos1çao, ssa um outro
ra) ultrapa
que é, entre todas as trajetórias diurnas, a mais afastada do equador em esta-0 na p'osição em que um "automóvel" (Ter
a ve o auto moveI" Marte andar
direção do sul. É o so lstício de inverno no hemisfério norte (dia mais (Marte) (fig. 6b). O "automóvel Terr . , ._
leste para oeste. e O m ovi
,, A ,, ,

em s enti do c ntrá rio d S l eclip ticia l, de


curto e noite mais longa do ano) e o solstício de verão no hemisfério sul o o o

(dia mais l ongo e noite mais curta do ano). mento retrógrado do planeta.
87
86
o seu período (e note-se a gratuidade desse argumento), isso funcionava a
contento para Saturno, Júpiter e Marte, mas deixava uma dúvida inso­
lúvel para Mercúrio e Vênus.
· De qualquer maneira, o problema do período apresentava-se no
modelo de Copérnico com u m aspecto novo: s.e realmente os planetas

.'.
giravam em torno do Sol, então era provavelmente mais interessante
,,
'
, definir o período como o tempo que levava o planeta para voltar ao

'.
..
' mesmo ponto da esfera celeste, para um hipotético observador situado

'
no Sol (período sideral).

.
1 Acontece porém que qualquer medição de tempo referente a u m 1
'
planeta somente pode ser feita a partir da Terra .
\

''
\ 1
1 , O problema então é o seguinte: como se pode determinar o perío­

--
,
', ....... \\ Marte ,'
---..;...��
',
do sideral de um planeta a partir de observações efetuadas na Terra?
Vejamos a solução de Copérnico.*
1

........... S' : \ M ' .. ... .....


...

.... ____ 4)_. __4)_....... ,

S': Sol eclipticial


M': Marte projetado sobre P1Planeta)

G
a eclíptica .--:::

Q) 0T
F I G U RA 6-a FIGURA 6-b
p
\
Marte em conj unção: a sua projeção na eclíp­
�arte em oposição: a sua projeção na eclíp­
tica se desloca no mesmo sentido que o sol tica se desloca em sentido oposto ao do sol
eclipticial. eclipticial; é a retrogressão do planeta. p
Tereira T �
(al (b) Ccl
T=O T= 1 ano T = 1 ano + l ano
3
Observemos que Marte aparecerá mais brilhante quando está mais
próximo da Terra: isto se dá na época da oposição e nesta época Marte es­ FIGURA 7
tá regredin.do. Tudo isto está de acordo com o que se observa. Período sinódico de um planeta (hipotético) cujo período sideral é de 4 anos.

P E R fODOS DOS PLAN ETAS


Tomemos o caso de u m planeta superior. Na fig. 7, vemos o pla-
A hipótese hel iocêntrica obrigava a formular um problema suple­
mentar: o do período dos planetas em torno do Sol. neta P com a sua órbita, maior que a órbita da Terra T.
No modelo geocêntrico não havia dificuldade: o período de u m Consideremos uma configuração definida do sistema Terra (T).
planeta era o tempo que decorria entre duas voltas sucessivas d o planeta Sol(S) Planeta(P), uma conjunção por exemplo (fig. 7a). Decorrerá u m
no :nesmo ponto do zodíaco, para um observador terrestre (período certo intervalo de tempo entre essa conjunção e a próxima, representada
zodiacal). na fig. 7c. A esse intervalo de tempo dá-se o nome de período sinódico
É ber,:i �erdad; que havia algo de estranho para os planetas infe- do planeta ( Tsin . ). Representaremos o período sideral do planeta por
. Tsid. e o período da Terra por T.
nores, Mercun? . e Venus: o período zodiacal médio era de u m ano para
amb?�· Isso d1f1culta a colocação relativa desses planetas. Com efeito, Tratando-se de u m planeta superior temos Tsid. > T.
adm1� mdo-se, como faziam os "primeiros matemáticos", aos quais se
refena Ptolomeu, que u m planeta distava mais da Terra quanto maior era * Traduzida em. notação moderna.

88
89
Em torno do Sol, o planeta anda do ângulo 21r/T . por uni·da e
de te mpo, enquanto que a Te rra anda de 21r/T.
s,d.
Se.gue-se que, por un idade de tempo, a Terra adianta
neta do angulo:
d

so bre o P1 a_
TABELA 5.1
PERIODOS SINÓDICOS E SIDERAIS DOS PLANETAS
Período Período Valor Atual
1
S i nódico Side ral
21r 21r
T
= 21r (
1
T ).
Calculado
Tsid.
Saturno 378 dias 29, 1 anos 29,5 anos

Por outro lado entre d as conJ· nçoe Júpiter 398 dias 12, 1 anos 1 1 ,9 anos
- �ucess1vas, isto é, no d ecor-
rer de um período s'i nódico � n , a �
. erra �a uma volta a ma is que o Marte 779 d ias 687 dias 687 d ias
planeta ou seja, ad ianta-se d e 2/
Essa obse rvação nos to Vênus 583 dias 224 dias 225 dias
e ra e
adiantamento da Terra por un i���� di::���� ;i; i d expressar o
e

2 sm. · 87 d i as 88 dias
De modo que: Mercúrio 1 1 5 dias

1
21r (- RAIOS R E LATIVOS DAS Ó R B ITAS DOS PLAN ETAS
T
Conhecendo os períodos siderais, Copérn ico podia determinar os
raios relat ivos das órbitas dos planetas.
ou ainda :
Vejamos o caso de um planeta superior.*
Suponhamos que, em d eterminada época, o Sol e o planeta P
estejam em oposição (f ig. 8). Já que a Terra, no seu mov i mento orbital, é
-- =
Ts,·d. T Tsin. ma is rápida que o planeta, chegará uma época em que a Terra em T' e o
planetà e m P' ocuparão posições tais que o ângulo ST'P' seja reto: (o Sol
e o planeta estarão em quadratura). O triângulo ST'P' permitiria calcular
A relaç_ão Preced�nte permite pois calc SP' (raio da órbita do planeta) em função de ST' (raio da órbita da
ular o per íodo si de ral. de u m
PI aneta superior, a partir do P,:ríodo s
i nódico observado. Terra), desde que se conheça o ângulo T' SP'.
ostra-se que a relaçao correspond - Ora esse ângulo é a d iferença entre o ângulo TST' e o ângulo PSP',
ente, para os planetas
ri ores : infe-
sendo esses ângulos respectivamente descritos pela Terra e pelo planeta,
durante o inte rvalo de tempo (J conhecido, que separa a opos ição da
quadratura.
= + Sendo Tr e Tp os períodos respectivos da Terra e do planeta,
T Tsin .
te mos

�i ?s a artir _dessas TST' = 21r (J/T7 e PSP' = 21r (J /TP


relaçõe�. i� tr�m:�;� ���u� :��0°�/�i:����! i�oi1cos ci
i

eterminados
ª º

de modo que
por Copérnico, a partir das observaço
_es de H..i parco, de Ptolomeu e das
suas próprias. A segunda oluna mostra os valores dos períodos sidera is 1
calculados a partir dos d� eced ntes para os períodos s inódicos. T'SP' = 21r e ( +­ __
Tp
)
r
Finalmente, na terceira coli�:, ��con :ram-se os valores atualmente acei -
tos para os períodos siderais.
• Para os planetas inferiores, o conhecimento do período é desnecessário.
90
91
p

Assim é que, pela primeira vez na história da Astronomia, conse­


guia-se determinar a ordem respectiva das órbitas planetárias, e isto por
p
meio de deduções lógicas baseadas nas observações.
Embora incompletas e resumidas, as considerações precedentes
bastam para mostrar a fecundidade do modelo copernicano.
Estamos agora diante de duas teorias, duas hipóteses: o geocen­
trismo da tradição grega e o heliocentrismo de Copérnico.
Qual das duas devemos escolher, se é que devamos escolher uma
delas?
Em matéria de $implicidade, pode parecer que Copérnico é muito
superior a Ptolomeu, desde que nos limitemos ao seu modelo elementar,
sem os epiciclos do modelo profissional.
Mas, por um lado, nada garante que uma teo·ria científica deva ser
escolhida pelo critério da simplicidade, embora o elemento estético con­
tido numa construção simples e elegante seja certamente tentador. Por

11
outro lado, a simplicidade copernicana é somente aparente, pois não
resiste ao teste da precisão : 'para igualar-se a Ptolomeu nesse particular,
Copérnico deve levar o seu modelo a um grau de complexidade com­
FIGURA 8
parável ao de Ptolomeu.
Determinação do raio
· da 6r b'1ta de um plane
Consideremos no entanto o que poderíamos chamar de coerência
ta superior. interna da teoria. Enteridemos por isso o grau de rigor estrutural, que
poderia ser caracterizado como a possibilidade de se explicar os fenô­
A determinação de SP' em função . . menos relevantes da teoria pelo menor número de hipé?teses iniciais.
. s por Cop de ST' e, agora 1med1ata *
Os resu I tados obtido érnico estão na Tabela abai�o: A teoria ptolomaica é uma teoria ad hoc: cada caso (planeta) é
tratado separadamente, utilizando-se os ingredientes (excêntrico, epici­
TA BE LA 5.2 clo, equante . . . ) necessários e suficientes para "salva·r o fenômeno".
RAIOS RELA TI VOS DAS ÓRBIT Por isso, a teoria ptolomaica se assemelha a uma "colcha de reta­
AS DOS PLANETAS lhos"; é uma teoria incoerente.
Valor obtido Pelo contrário, o heliocentrismo copernicano consegue explicar a
Valor aceito maioria dos fenómenos celestes conhecidos na época a partir de um
por Copérnico
atual men te número reduzid íssimo de hipóteses: todos os planetas, inclusive a Terra,
Saturno 9, 1 74 giram em torno do Sol; a Terra tem um movimento diurno sobreposto a
9,53 9
Júpiter 5,2 1 9 seu movimento orbital; a esfera das estrelas é fixa.
Marte
5,203 Movimento diurno, retrogressão do Sol ao longo da ecl íptica,
' 1,5 20 1 ,524 movimento retrógrado dos planetas, brilho máximo de Marte em opo­
Te rra 1 , 000 sição, elongação máxima dos planetas inferiores, fases da Lua . . . , todos
1 ,000
Vênus 0,7 1 9 esses fenômenos são explicados logicamente (geometricamente) a partir
das hipóteses iniciais.
' 0,7 23
Mercúrio 0,376 0,387 A teoria copernicana é pois uma teoria muito mais coerente,
muito mais econômica, q:.ie a teoria ptolomáica.
* Na reard
.
, ade, esta é uma versão
sim n·icada
Possui também outra qualidade extremamente importante para
excentricos, deferentes
e epicicl os· o cáliu:o é

mui
processo utilizado por Cop
to mais complicado.
érnico. Com os uma teoria científica: além de explicar mais "economicamente" todos os
fenômenos que a teoria ptolomaica explicava, a teoria copernicana
92
93
T

fazer a teoria ptolomaica · o


perm ite prever a ordem relativa , .
.
das órb.i tas P1anetarra _
s, o que nao podia
h e 1ocen trrsmo é, co�seq ·
r· · tri smo a magnífica simplicidade do primeiro modelo, embora ao preço
compreensivo que o geocentris mo uentemente, mais
menos ou de fatos suscetíveis · .torn_a um maior número {exorbitante para a época) de romper com o movimento circular uni­
de fenô-
conc1uamos : a, precisãodeigual
exp 1 1caçao.
.
forme; segundo, um Galileu e um Newton, que iriam :finalmente, com
dad� do modelo eleme ( que obrrga uma nova Ft'sica, derrubar os argumentos f/sicos contra o movimento da

.
ntar pref r . n �o-lhe a sacrificar a simplic

.

. pto/oma1c
. a, por ser ma, is
teona copernicana deve ' } � o modelo "profiss Terra.
ser Pre,end.a à teona ional" )
a É nessa luz que se deve apreciar o que convencionalmente se
coerente, mais econômica e maI·s compreensiv chama de "revolução copernicana".
No entan to, a .* a
aceitação do he ,.iocen . Na evolução do pensamento científico, Copérnico aparece como o
acompanhar-se de certa . rrsmo de
Copérnico deve
s reservas.
VeJam os por que. homem que preparou e permitiu a verdadeira revolução do século XVII.
t

As alterações à estrutura do Universo, que propunha, não poderiam con­


cretizar-se sem que se processasse primeira uma renovação total da pró­
5.2.2 O LADO TRAD pria est rutura da epistemologia científica.
ICIO AS CONT R A D I Ç
NA OBR A D E ÕES
COP�� ��
Em Copernrco
' , como em quase
h , uma mi.stura
ª. todos os
homens da Renasc 5.3 AS REAÇÕES AO DE REVOLUTIONIBUS
do antigo e do mo ença
de1xar .d� ser com o d erno , uma confluência
que ia ser. do que i�
. Vimos no capít Nas primeiras décadas depois de sua publicação, a obra de Copér­
t ham um fundo dê ulo 2 que a e7s�olog1a e a ísica nico teve relativamente pouco eco na opinião pública. Os astrônomos,
� senso comum di ,F aristotél icas
ª.Jur sua formação m �t� negavel. únicos a poderem ler o De Revolutionibus na íntegra, eram unânimes em
tradici onal·
o mun�� es�err?o e Copérni co não
c1rcu,aar uniforme, os finito, o movimento reconhecer o seu valor, do ponto de vista estritamente técnico: viam no
. orbes e a� es feras,
Revoluttonibus. tudo isso está presen De Revo/utionibus o digno sucessor do Almagesto . A tese central do
te no De
Daí decorrerem . . . movimento da Terra era geralmente rejeitada, mas isto não impedia
Terra �o espaçó, transfo contrad i ões mev1tave1
, s. Uma
coisa é lançar a . que se utilizassem as técnicas de cálculo que Copérnico tinha exposto
e�sa atitude revolu rmá-la n�m outro
cioná ria com os planeta ; outra coisa é em todos os detalhes. O con senso geral pode provavelmente ser resu­
manda mentos de uma conci liar
c1onal. mido na opinião do astrônomo inglês Thomas Blundeville: "Copér­
F ísica tradi-
. Na sua cosmologia . nico . . . afirma que a Terra se movimenta e que o Sol permanece
, Copérnico repete
trnha f�lhado na sua Arrstarco de Sarnas. imóvel no meio dos céus ; graças a essa hipótese errada, conseguiu
�sso tinha sido
tentativa de ôr
Terra em movimento Este
principalmente d!idoª e seu fra- melhor do que nunca [calcular] os movimentos e revoluções das esfe­
trnha conseguido aos argu mentos
vencer. flsicos que não ras celestes ".
Ora, Copérnico é tão Aos poucos, no en tanto, aumentava a audiência do De Revo/u­
a�s mesmos ar�um impotente uanto .
entos. Os capítulos vi Arrstarco em res tionibus e de sua estranha tese. Comentários e interpretações da obra iam
� '· e VIII do De ponder
sao uma prova insofis Revolutionibus saindo do círculo estreito dos profissionais e começavam a difundir-se
mável dessa impotenc1
, Pode mos nos pergu a. en tre os leigos. Em conseqüência, a paixão entrava nos debates e os
. ntar então O qu: t
Copern1co se ele, er.' ª advindo do s is argumen tos técnicos eram substitu ídos por argumentos metafísicas.
ou melhor se su tema de
Arrstarco não teve: o ra nao ! �esse
primeir� um ep � � ' tido as chances que Copérnico começou a ser ridicularizado: os argumentos da oposição eram
er que ma devolv
er ao hefiocen- os conhecidos argumen tos aristotélicos, o que mostra quão profunda­
• Duas observa
ções·· ai a Astrono
mente a Renascença, embora empenhada na derrubada do aristotelis mo,
·
isso é uma questão
de conven .enc
m1a geocentn
. .
· .ca era e ainda é
utilizada
. ainda estava imbuída de algumas das suas idéias. Dizia-se que o movi­
1. • 1a. observamos as est l para a navegaçao.
mento da Terra infringia o senso comum e as leis do movimento, tendo
fundamental · supre - Mas
macia
d
re as a part ' d
niana: não existe out sistema copernicano aparecer Terra; b) a verdadeira e
sido proposto gratuitamente por um tolo.
ro sisi°
ema em que as á no �ua�ro da
mente. acelerações dos pi mecânica newto-
anetas se expressem
mais simples- No en tanto, a reação mais violenta cont ra o copernicanismo viria,
94 não do público esclareddo, e sim da Igreja .

95
Çlual era a situação da Igreja católica naquel e fin
aI da Re nasce�ça? Essas pe rguntas, esses dilemas atormentavam a fé e de mo nstravam
E inegável que pesava uma grave am eaca · sobre ª sua he�e,:noni a . O
protestantism o tinha cind ido a sua unidade . aheresia do copernicanismo.
�u ter_anos _e ca lv 1 nistas cu l­ A Igreja C atólica foi lenta a entrar na contenda . No entanto, colo­
pavam-na pel a onda de anticlerica lism
_ ue t,n h� inva dido cada mai s uma vez em posição defensiva sobre questões fundamentais de
final da Idade Média, pela progr a Europa no
s ªº � heres,a , da supe rsti
o

venalidade �e certas ordens reli ção, pela doutrina, não podi a mostra r-se menos cristã que a Igreja protesta nte ;
io:a! p,e/ 0 afroux�';1e�to da mo ra lida . tanto mais que, nos prime iros anos do século XVII, o copernicanismo
e pel o esvazi amento da autorida ' de
� e das cupu 1 as ecl es1ast1cas. iria ter em Galileu seu mais a rdoroso e ao mesmo tempo seu mais te mível
O que queria m os protestantes er
. . .
s1m pl1c 1 dad e da litu rgia e a u n:' re_torno a· pureza da alm defenso r.
à e.st rita observanc , a dos a, à
Escritu ras. Neste ponto em . manda mentos das Em 1p16, Roma colocava o De Revolutionibus no lndex, no rol
ula
liberdade de interp reta;ão ! ;��� r, ce�:� rava m a Igreja Catól ica pela das obras proibidas.
ª
q .. a p�rm1t 1 o em certos come
Bi'blia. Segundo el es não h . ntários da
a v a n ecessidad e n
nem de p rocura r e� ou e m d e interpreta r
tros uga res as fontes do
; a Bfb li a,
saber, já que ela é o 5.4 TYCHO BRAHE: O ESPl RITO D E PRECISÃO
°
repositó rio da di vina r
eve l ação.
Ora , a obra de Copérnico foi ,
seu auge a efervescência pro pu bl',�ada n_a epoca em que Tycho Brahe nasceu na Dinamarca em 1 546. Estudou prime iro em
che ga va a
vocada pe l a d 1ssensa
de Trento, cujo objetivo · 1 e
o p rotestante : o Concí lio Cope nhage n e a se guir na Al emanha, em Le ipzig, em Rostock e final­
p rinc'P
Igreja, foi instal ado em 1 4 ; . ra tratar de:se probl e ma interno da mente em Augsburg.
5 5 o, s anos depo is da pu
Revolutionibus. ' blicação do De Em 1 563, aconteceu um fenômeno cel este interessante: uma con­
Copé rnico a tra iu cedo o aná junção dos três plan etas superiores, Marte, Júpiter e Saturno.As Tábuas
tema dos Iuteranos : " . . . T Afonsinas prev iam a data dessa conjunção, mas essa previsão estava erra­
ouv ido a um astrólo em-se dado
go que tenta m stra r que
e o firmamento, o Sol e � a Terra gi ra, e não os Céus da de um mês. As mais recentes Tábuas Prutênicas, compil a das com os
a Lu ' a . . . sse tolo quer invert .
da Astrono mia mas a Esc er toda a ciê nci a dados de Copérnico, erravam também de vários dias. Essas di screpâncias
' n tu ra sacra nos d',z (Josue, 1
o rdenou a o Sol qu
e pa rasse e não à T ,, O: 1 3) que Josué impressionaram o jove m Tycho, então com 1 7 anos. Pressentiu quão
. erra . estéreis permaneceriam as discussões e m torno do geocentrismo e do
. . Ca Iv 1 no nao _ ta rdou e m junta
r sua , voz ao co ro
lutera no. Cita ndo o
prime iro verso do sa lmo 93 helio centrismo, enquanto não se dispusesse de dados mai s precisos sobre
,, · " a T rra e ta mbém estave -
mover-se p erguntava : "quem se a
e
, · 1 , nao podendo as pos ições dos corpos cel estes. Foi provavelmente nessa oportunidade
tre era a colocar a autorid
Copé rnico' acima da a uto ri dade � ade d e que decidiu consa gra r a vida à Astronomi a, o que o levaria, ma is tarde , a
do Esp (rito Sa nta"> " propor o seu próprio sistema do mundo.
A ir · a dos p rotesta ntes er , ·
o p:ee� s 1 v?l: �
ções do De Revo/utionibu ':_U lto das implica­ Já em 1 572, Tycho tinha conseguido instalar um observatório na
s e� �e� a ça o ª fe c rista
ameaçador. era certame nte su a cid ade natal e naquele mesmo ano d ava sua prime ira c o ntribuição à

Como se poderia "desce r a · Astronomia: a descoberta de uma nova estrela, que se tornou em pouco
os fe n�s,, ou ,,subir aos tempo excepcionalmente brilhante, na constelação da Cassiopéia. (Sabe­
Terra, em vez de ocupar o céus" se a
centro �� � nivers ' o,
del e ? se movesse em tor
no mos hoj e que se tratava de uma "nova " ou de uma "supernova".)
Como poderia o ho mem a Em 1 574 Tycho Brahe viajou pa ra a Al emanha e em 1 57 5 para a
o mes mo tempo que a Ter Itália. Uma mensagem do seu rei, Frederico 1 1 , o fez voltar para a
seu lugar intermediário e ntr ' . . ra, perder o
e de mo • nios e a nios ">
Se a Terra pa rtic ipasse do · Dinamarca : foi para receber, das mãos do monarca, a doação da ilha de
mov,� · ento dos Céus
tamente, da mesma natur seri a , imp lici - Hven, com a condição de a li instalar um grande observatório, às custas da
eza que os obJetos celeste
deria ser ela, a o mesmo s. Como, então, po­ Co roa.
te m Po o lugar de pecado e
a gênese a tinha
relegado? ' de iniq üid ade em que Na construção do obse rvatório, que chamou de Uraneborg, Tycho
Ou, inversa m ente se os . . Brahe deu a medida dos seus tal entos de experimentador, projeta ndo e
Céus 1c1
Terra, participando entã�
da sua natur dirigindo pessoalmente a construção de todos os instrumentos de obser ­
poderiam ser e les a residênci
a do trono d paéJrt evimentoi mpe feiçõ s, como vação. Esses instrumentos represe ntavam u m progresso gigantesco, em
e Deus ? da
ez ed matéria de precisão, so bre tudo o que existia antes.
e
96
97
\

Graças a seus instru n:,ent_os e às suas refinadas técnicas d� observa­


ção (que incluíam , pela p rimei ra vez, correç ões para a refraçao at �os­
férica), Tycho Br�he levantou as posições de 777 estrelas e dos cinco
planetas, com maior precisão que quatro minutos de arco. Pa�a que se
aprecie melhor essa proeza, é bom recordar que essas observaçoes era.m
feitas a olho nu.
Tycho Brahe trabalhou em Uraneborg com os seus alunos, de 1 576
a 1 596, mas já por volta de 1 580 co meçou a elabo rar o seu sistema .do
mundo.
Não tinha observado paralaxe para as estrelas, concluindo que, se
a Terra se movesse em torno do Sol como o queria Copérnico, a esfera
das estrelas deveria ter um raio centenas de vezes maior que a esfera de
Saturno. Tycho Brahe recusou-se a aceitar essa conseqüência "impos­
sível" das suas próprias observações: não havia outra escolha senão voltar
ao geocentrismo. Mas isto não significava necessariamente voltar a
Ptol omeu.
Co m efeito, Tycho Brahe era certamente sensível à coerência do
modelo copernicano e principalmente ao fato de que esse modelo, e ele
só, permitia determinar a ordem das órbitas planetárias. Procurou então
um sistema que pudesse conciliar o geocentrismo com as vantagens do
sistema de Copérnico.
No sistema de Tycho Brahe (fig. 9) a Terra, imóvel, vo lta a ocupar
o centro do Universo. Não tendo a Terra nenhum movimento, Tycho é
obrigado a pôr em movimento a esfera celeste, para explicar o movi­
mento diurno das estrelas, como no modelo ptolomaico.
O Sol gira em um ano em torno da Terra, numa órbita-circular. FIGU RA 9
Mas, e nisto reside a novidade, os cinco p�anetas giram em órbitas circu­ Tycho Brehe.
O modelo de
lares em torno do Sol que arrasta assim o conjunto no seu movimento em
torno da Terra.
Geometricamente, o modelo de Tycho Brahe é absolutamente
\, h Brah e - - mais dignas de
As l ições de Ty� �,lustre ;i��c�:�o, Kepler,
respeito porque�
contribuíram par
a
_ do seu mais
equivalente ao modelo simplificado de Copérnico. Olhando- s e para a nas maos
fig. 9, é bem evidente que um hipotético observador situado no Sol verá . f'ma1 do heliocentrismo.
vitória
a Terra girar numa órbita circular intermediária entre a de Vênus e a de
Marte, compondo de novo o sistema copernicano. Por essa razão, Tycho
Brahe conseguiu efetivamente determinar a ordem dos orbes planetários:
mas o seu modelo se ressentia do seu caráter híbrido entre o geocen­
trismo e o hei iocentrismo.
A grande contribuição de Tycho Brahe à formação do método
científico não foi de ter p roposto um novo sistema do. mundo . O que
trouxe de realmente novo foram, por um lado, técnicas refinadas e me·
lhores instrumentos de observação; por outro lado a demonstração de
que o espírito de precisão e o trabalho árduo e sistemático são indispen­ 99
sáveis em trabalhos cient(ficos.
98
Capítulo 6
A R ENASCENÇA
A INVESTIDA CONTRA O MITO ARISTOTÉLICO

Segunda Parte
KEPLER; BRUNO

6.1 KEPLER

6. 1 . 1 A VIDA

Johannes Kepler nasceu em 1571 na cidade de Weil, em Wurtem­


berg, então um feudo da Áustria; nasceu de um pai que o abandonou
para guerrear como mercenário nas planícies de Flandres, e de uma mãe
versada nos feitiços e sortilégios das bruxas. Essa mãe, Katherine, que
por pouco não morreu queimada em praça pública, abandonou também
o jovem Johannes para seguir, com o marido, as hordas do Imperador.
Kepler ficou aos cuidados de tios e avós que viviam bêbados e em
' , brigas constantes; cresceu, ou melhor sobreviveu numa casa de dois
cômodos em que chegaram a morar onze pessoas, numa promiscuidade
sórdida.
Quando os pais voltaram das suas aventuras guerreiras, foi para
iniciar uma vida nômade, que levava a família de cidade em cidade, vida
essa cujas vicissitudes foram responsáveis pelo tempo anormalmente
demorado que o jovem Kepler levou para terminar seu curso primário.
No entanto, suas qualidades intelectuais eram evidentes, tão evi­
dentes que seus mestres, vencendo a indiferença paterna, conseguiram
mandá-lo para o seminário e de lá para a Universidade.
Embora quase sempre doente, de constituição muito frágil e apesar
do seu caráter irascível, de sua língua mordaz e cáustica que multiplicava
os inimigos, fez brilhantes estudos e aos vinte anos diplomava-se pela
Universidade de Tübingen. Três anos depois era chamado pela Universi-

101
dade de .Gratz, capital de Styria (província austríaca), para ensinar Mate­ Kepler permaneceu em Praga até 1 6 1 2 e foi nesse período, o mais
mática e Astronomia. fecundo de sua vida, que elaborou a sua obra fundamental, a "Astro­
Em Gratz, o início de sua carreira foi menos que brilhante: na nomia Nova".
ausência de alunos, pois como reconheciam os seus superiores, "o estudo Bárbara tendo falecido em 1 61 1 , Kepler casou-se de novo em
da �atemática não é para qualquer um", ensinava Latim e publicava 1 6 1 3 e no mesmo ano foi transferido para Linz onde continuou seus
calendários astrológicos. trabalhos. No entanto, dificuldades de toda sorte se erguiam à sua frente.
Esse gosto pela Astrologia, bem da época e que nunca abandonaria A mais extravagante, a mais chocante de todas foi o processo em que as
Kepler, o ajudava também a sobreviver, acrescentando alguns proventos autoridades eclesiásticas de Wurtemberg acusavam de bruxaria a mãe de
ao seu escasso salário. Kepler, Katherine. . Durante seis anos, de 1 6 1 5 a 1 62 1 , Kepler lutou para
Foi em Gratz, como veremos, que Kepler, aos 24 anosI teve a salvá-la de perecer queimada em praça pública, empreendendo viagens
1nsp1raçao que marcaria toda sua vida e sua obra: a de que o Universo é
11• • - li • •
sucessivas entre Linz e sua terra natal, redigindo ele mesmo as petições
constituído em torno de certas "harmonias" geométricas. Em 1 596 do processo. Finalmente Katherine foi solta.
publicava sua primeira obra, o "Mistério Cosmográfico"; embora pro­ Foi num contraponto a essa alucinante dança macabra que Kepler
pondo uma solução errada ao problema do Universo, essa obra tornou escreveu as " Harmonias do Mundo" e o "Epítome da Astronomia
Kepler conhecido nos meios universitários da Europa. Copernicana".
Em 1 597, Kepler casou-se com Bárbara von Mühleck filha de rica Kepler passou os últimos anos de sua vida tentando fugir do palco
família, mas de uma avareza tal que nunca deixou Kepler' desfrutar de movediço das lutas religiosas, ludibriado pelo jogo pai ítico dos seus pro­
sua fortuna pessoal, mesmo nos momentos da mais negra penúria. Pouco tetores, sua resistência j á quebrada, alma errante ao longo dos caminhos
tempo depois o casal viu-se forçado a deixar Gratz: eram protestantes que o levavam de Linz a Ulm, de Ulm a Ratisbona, de Ratisbona a Praga,
numa cidade predominantemente católica e começavam a exacerbar-se as de Praga a Sagan, de Sagan de novo a Ratisbona, de Ratisbona a Praga, a
paixões religiosas que iriam dilacerar a Alemanha durante cinqüenta Sagan, a Ratisbona . . . quase sempre doente, praticamente obrigado a
anos. mendigar a subsistência, vendendo seu cavalo por dois florins, ou pe­
O destino quis que, praticamente na mesma época, Tycho Brahe dindo emprestado algum dinheiro aos mercadores da estrada.
fosse obrigado a fugir da Dinamarca .onde acabava de subir ao trono Johannes Kepler morreu em Ratisbona no dia 1 5 de novembro de
Cristiano V, filho de Frederico 1 1 , e muito menos disposto que seu pai a 1 630.
a�urar a arrogância do astrônomo ao mesmo tempo que suas extravagân­ Numa de suas últimas cartas escreveu:
cias, custeadas pelas burras do tesouro real. "Quando desaba a tempestade e que o Estado ameaça de soçobrar,
Tycho Brahe, devido à fama de que gozava, não teve dificuldades nada de mais nobre nos resta senão colocar a âncora dos nossos estudos
em ser acolhido em Praga pelo Imperador Rodolfo, que instalou para ele pacíficos no solo da eternidade".
um observatório no vizinho castelo de Banatek. Em Praga, Tycho Brahe
acolheu por sua vez, em 4 de fevereiro de 1 600, Johannes Kepler.
Os dois homens eram diferentes em quase todos os aspectos:
Tycho era nobre, Kepler plebeu; Tycho era rico, Kepler paupérrimo · 6.1.2 A OBRA
Tycho tinha uma saúde exuberante, gostava de festanças e de banquetes:
Kepler era de saúde periclitante e tinha um temperamento hipocon­ 9 de junho de 1 595, em Gratz: no decorrer de uma aula, Kepler
?ríaco. Havia no entanto alguns traços comuns entre eles: ambos eram desenha no quadro negro um triângulo equilátero com os seus círculos,
1r�scíveis, cáusticos, sempre dispostos a discussões violentas; ambos eram inscrito e circunscrito. Tem então uma "visão profética": o mundo deve
�e1m ?s_?s; _ambos tinham paixão pela Astronomia e tinham uma brilhante estar construído em torno de simetrias geométricas.
mtel1genc1a. Essa idéia não sairia nunêa de sua mente.
Men ?s de dois anos depois da chegada de Kepler, Tycho Brahe Ele mesmo diz que em Tübingen, aluno do astrônomo Maestlin,
. tinha ouvido deste a descricão do sistema copernicano. Tinha aderido
falecia, vít1m� de seus excessos de bebida e comida. Logo após O Impe­
rador promovia Kepler ao posto de Matemático Imperial, como sucessor logo a Copérnico porqu.? "s�a solução era geometricamente mais simples
de Brahe. e mais satisfatória".

102 103
No entanto Kepler não se contenta com o modelo puramente Essa surpreendente construção foi proposta na primeira obra de
descritivo de Copérnico. Quer mais. Quer uma razão, seja ela f ísica ou Kepler, o "Mistério Cosmográfico", em 1 596.
metafísica, da ordem e da harmonia do sistema. Quer saber em particular O que há talvez de mais surpreendente ainda é que 25 anos mais
por que os raios das órbitas e os períodos são o que eles são. tarde, na ocasião da segunda edição do livro, Kepler, j á sabendo que
Começou assim a perseguição às leis dos movimentos dos planetas. aquilo tudo não passava de um sonho, fazendo em notas ao texto violen­
De uma visão profética à iluminação, vemos o jovem Kepler, cujos tas autocríticas à sua obra de juventude, acrescentava no entanto: " . . . é
conhecimentos de Matemática ainda eram muito parcos, armar um fan­ com prazer que me lembro das muitas voltas que dei, das paredes sem
tástico sistema do mundo em que as esferas planetárias eram alternada­ fim ao longo das quais tateava na escuridão da minha ignorância, até
mente inscritas e circunscritas aos cinco únicos poliedros regulares da encontrar a porta por onde entrava a luz da verdade . . . "
geometria euclidiana!
A esfera de Saturno, a maior de todas, era circunscrita a um cubo, O "Mistério" não se contentava em determinar os raios relativos
das órbitas planetárias. Pretendia também explicar as diferenças entre as
no qual a esfera de Júpiter estava inscrita. Esta, por sua vez, era circuns­
velocidades respectivas dos planetas ao longo de suas órbitas. Kepler já
crita ao tetraedro, no qual estava inscrita a esfera de Marte, etc. .. .
A ( vai a sucessão de esferas e poliedros: sabia que essa velocidade diminui à medida que o raio da órbita aumenta.
Supôs então que existia uma "alma motriz" no centro do Universo, isto
é, no Sol, e que essa alma empurrava o planeta com tanto mais vigor
Esfera de Saturno quanto mais próximo do Sol se encontrava o planeta. A força motriz ia
Cubo se exaurindo com a distância, o que "explicava" que a velocidade dos
Esfera de Júpiter planetas mais afastados fosse relativamente menor.
Tetraedro Logo depois do "Mistério", Kepler iniciou nova corrida a uma
Esfera de Marte outra quimera: a construção do Universo em torno de harmonias musi­
Dodecaedro cais. Suponhamos, dizia ele, que os Céus estejam cheios de ar. O atrito do
Esfera da Terra ar contra os planetas em movimento produziria um som, cuja altura
lcosaedro dependeria da velocidade do planeta.
Esfera de Vênus No entanto, para determinar a relação entre as freqüências emiti­
Octaedro das pelos seis planetas (os intervalos, como se diz em Acústica), era
Esfera de Mercúrio necessário conhecer as velocidades respectivas com grande precisão, ou
seja, conhecer exatamente as posições dos planetas em épocas sucessivas.
Observe-se como o Criador tinha feito bem as coisas: existindo E como Kepler não ignorava que o grande artesão da precisão era Tycho
cinco, e somente cinco, poliedros regulares, somente poderiam existir seis Brahe, foi nele que depositou as suas esperanças. Numa carta a Maestlin,
planetas, os seis conhecidos, precisamente. dizia: "É somente Tycho que eu aguardo; ele me explicará a ordem e o
Mas a coincidência (ou a Providência) não parava aí. Está claro que arranjo das órbitas . . . Então espero que um dia, se Deus me conservar
esse quebra-cabeça geométrico, uma vez armado, somente admitia uma em vida, construirei um edif ício maravilhoso".
solução para os valores relativos dos raios de todas as órbitas. Ao chegar em Praga, no in ício de 1 600, para iniciar sua cola­
Acontece que esses valores relativos eram quase que exatamente os boração com Tycho Brahe, Kepler recebeu a incumbência do levanta·
valores que Copérnico tinha determinado! mente da órbita de Marte: de repente descobriu o que é, realmente, a
Ouase que exatamente . . . Havia discrepância para Júpiter e para Astronomia.
Mercúrio. Passemos sobre os múltiplos incidentes que marcaram a associação
Kepler dispôs do caso de J úpiter com facilidade: afirmou simples­ dos dois astrônomos, o mestre (Tycho) e o discípulo (Kepler). Depois da
mente que os dados de Copérnico deviam estar errados. morte de Tycho, Kepler estava finalmente de posse dos dados referentes
Quanto a Mercúrio, Kepler trapaceou, literalmente. Para "en­ a Marte: os seus próprios e os de Tycho Brahe. Tratava-se das co? rden�­
caixar" a esfera de Mercúrio no octaedro, ele a fez tangenciar não as das de Marte em dez oposições escalonadas entre 1 580 e 1 600, as quais
faces, mas os lados do quadrado que constitui a base média do poliedro. juntaria mais tarde as de 1 602 e de 1 604.
104
105
Convencido de que Marte detinha os segredos dos movimentos
páginas manuscritas, Kepler encontrou finalmente uma circu_n:erência
planetários, Kepler empreendeu en-tão a tarefa da determinação da
centrada no meio O de SE, e que passava pelas quatro opos1çoes que
órbita.
tinha escolhido para o primeiro teste.
Rejeitando os epiciclos copernicanos, Kepler conservou no en­
Faltava verificar se as oito outras se distribu (am sobre a mesma
tanto a hipótese a priori da órbita circular, excêntrica em relação ao Sol.
circunferência.
Voltou também ao equante ptolomaico e supôs que o planeta tinha Ora sete das oito oposições restantes coincidiam com a órbita
velocidade angular uniforme em relação ao equante E, simétrico do Sol S circular q�e ele tinha achado, com precisão da ordem de dois ! três
em relação ao centro O da órbita (fig. 1 ). minutos de arco, isto é, dentro dos limites de precisão das observaçoes de
Tycho Brahe.
. _
No entanto, para uma delas, a posição observada e a pos1çao cal­
A culada divergiam de oito minutos!
Marte Oito minutos de arco: pouco mais de um oitavo de grau! Um
Ptolomeu, um Copérnico, poderiam ter desprezado essa pequena dife­
renca. Mas, dizia Kepler, "se a divina bondade nos deu um observador
co�o Tycho Brahe, devemos agradecer essa dádiva e fazer bom uso
dela". Tycho Brahe nunca poderia ter errado de oito minutos!
Foi um momento em que, possivelmente pela primeira vez na
História da Ciência, a honestidade intelectual de um homem se sobrepôs
a seu espfrito aventureiro. O Kepler do "Mistério Cosmográfico", o
,s Kepler que tinha "entortado" os fatos para empurrá-los dentro de uma
1
hipótese a priori, capitulou diante de fatos indiscut(veis e irredutíveis e
rejeitou uma teoria que não concordava com os dados.
1
.
E finalmente convenceu-se de que, depois do geocentrismo, depois
1

do movimento uniforme, o último dos mitos aristotélicos, o mito


1
p
FIGURA 1 pseudo-sagrado da circularidade dev�a também se� aband�na� o.
A órbita de Marte nas primeiras tentativas de Kepler. Mas, se a órbita de Marte nao era uma c1rcunferenc1a, o que po­
deria ser?
A órbita é circular, excêntrica em relação ao
Sol S; o planeta se move com velocidade angular
uniforme em torno do equante E. A e p são
respect ivamente o afélio e o periélio.
Reexaminando os dados de Tycho Brahe e colocando todas as
oposições na órbita, pelo menos aproximadamente circular, que tinha
O problema de encontrar uma órbita circular que passasse pelas
obtido, Kepler não tardou a perceber que a velocidade
_
?º planeta e�a
maior no periélio (ponto mais próximo do Sol) que no afel10 (ponto mais
doze oposições conhecidas de Marte era fantasticamente dif ícil, em pri­
afastado do Sol).
meiro lugar pela ausência de instrumentos de computação, em segundo
Então abandonou provisoriamente a perseguição à ór�ita de M � rte
lugar pela falta de desenvolvimento de Kepler em cálculos numéricos. Se
e voltou a uma das suas primeiras idéias fixas: qual é a relaçao que existe
acrescentarmos que aquela tarefa foi empreendida por Kepler em meio a
entre a distância de um planeta ao Sol e sua velocidade?
inúmeras dificuldades materiais e morais, poderemos talvez avaliar no seu
Começava assim uma estonteante "comédia de er �os".
justo valor a tenacidade e a força de vontade que foram necessárias. .
Em primeiro lugar, Kepler voltou a esquecer os oito minutos, pesa­
Kepler encontrou uma e outra na sua fé inquebrantável, na crença de que
delo de tantos meses, e supôs que as órbitas planetárias eram círculos
podia, sozinho entre todos os outros estudiosos da época - entre os excêntricos, com um movimento angular uniforme do planeta em torno
quais contava-se Galileu - desvendar pelo menos alguns dos mistérios do do equante.
Universo. .
Nessas condições, demonstrou que a velocidade do planeta ( �farte)
Depois de meses de um trabalho insano, de esgotamento físico e .
respectivamente no periélio e no afélio era inversamente proporc,onal a
de miséria material, depois de 70 tentativas sucessivas, ao longo de 900 distância do planeta ao Sol nessas duas posições. (Isto estava certo.)
106
107
A seguir, generalizou o resultado para todas as posições do planeta Teremos:
1
ao longo da trajetória, º, que estava errado, e para todos os planetas, em­
bora os dados que possu 1sse fossem somente relativos a Marte. SP = Cte/ Vp
Representando-se então por VA a velocidade de um planeta qual · = Cte/Vp,
quer em um p�n.to qualquer A da sua órbita, e por SA sua distância ao
Sol, teremos, d121a Kepler: Cte/ Vp1

VA · SA = Cte
SP' = Cte/Vp ,
ou
ou ainda, somando:
SA
SP + SP 1 + . . . + SP' = Cte (
p
1
+ - Vp1 - + . . · +
y- , Vp ,

Obviamente, o inverso da velocidade em um ponto é uma medida


do tempo que o planeta leva para percorrer um arco muito pequeno em
torno desse ponto. De modo que o parêntese do segundo membro é uma
medida do tempo que o planeta leva para ir de P a P'.
1

Vejamos agora o primeiro membro: é a soma de todas as distâncias


1
p
do Sol aos vários pontos do arco PP'. Essa soma, diz Kepler - e aí vem
1
··.. .
outro erro - é uma medida da área do segmento PSP' (recordemos que
1
1
encontramos um erro análogo em Oresme, no cap.4).
P
�·:;,.
·�-
j

' �' +o
�.....,....,, I
s
De modo que:
A área varrida pelo raio-vetor de um planeta (isto é, pelo segmento
Sol-Planeta) é proporcional ao tempo.
-�

lv .
Isso pode ainda se enunciar da seguinte maneira:

R O raio-vetor de um planeta varre áreas iguais em tempos iguais.


Nessa incrível comédia de erros e por uma não menos fantástica
R

coincidência que fez com que todos esses erros se cancelassem no final,
Kepler acabava de descobrir uma lei correta, que ia ser conhecida como a
2.ª lei (de Kepler), embora a tivesse descoberto antes da 1 .ª.
FIGURA 2

;r� �ª; �reeas. �ee dois setor�s t�is que PSP' e RS R' tiverem a mesma área, o planeta percorrerá A 2 .ª lei, conhecida também como "lei das áreas", é de 1 602, e foi
publicada na obra principal de Kepler, a A stronomia Nova, em 1 609.
o p R R m tempos 1gua1s os
.
Tendo descoberto a relação entre velocidade e posição de um
planeta, voltou ao problema da órbita de Marte.
Três anos seriam necessários para resolver o problema, três anos de
1

Consideremo agora (e tra�uzindo em intenso labor em que vemos Kepler hesitar várias vezes na iminência da
� . termos modernos) um
setor tal que P�P na Fig. 2 e descoberta, recuando cada vez para refugiar-se em estranhas obsessões,
p P2 . imag inem os a infinidade de pontos
P :3 · · · da orbita entre P e P', com as distâncias correspondentes perseguindo uma realidade que lhe escapava e mesmo no final, com a
S 1 , 5 2 , S P3 , . , . solução nas mãos - uma elipse - não sabendo reconhecê-la e recome·
108 109
í
çan do tudo de novo e sen do novame
n te surp reen d'.do
co� a volta da
elipse pela "porta dos fundos", conforme
su a próp r ., a expressao. É po rém absolutame nte certo e exato que a razão entre os peri'o­
Fma1 mente e m 1605 Marte estava ven dos de dois planetas quaisquer é precisamente igual à razão entre as
que cha mamos hoje a sua 1 .ª lei ou cido K ep 1er ti• nha obtid
lei das órbitast oo potências 3/2 [dos raios] das esferas ".
As órbitas dos planetas são elipse Estava assim descoberta a chamad a 3.ª le i, ou lei harmónica, q u e
s' com o So I ocu
focos. pando um dos em te mos mode rnos se e nu nci a:
r

Mas essas duas leis não sa Existe uma razão constante entre os quadrados dos periodos
tisfaziam a K. ep ler : falt
cobrir as f amosas "ha rmo ava-lhe ai nd a de
s- (T) e os cubos dos semi-eixos maiores (a) das órbitas dos planetas:
T2/a 3 = Cte.
nias" gu1
segundo ele, devia m n ecess a e �d e a j uven tude e que,
a riame��= i �:�� i
- Foi em Li n z, nos an o . x !r n o n1ver�o. . ,
s mais d1f (�eis
çoes, q u e Ke pler voltou �e u ma vida J a cheia de Ao mesmo tempo que escrev i a as "Ha rmon i as do Mu ndo", Kepler
m ais u ma vez a antiga afli­
cido . de que as velocid obse� sã?. Estava conve

las e os acordos pof1fo


a des dos n­ preparava um compêndio de suas descobertas e de suas teorias astro­

1
rel acro n adas, de alguma . P Ian etas nas suas orb i tas dev ia m esta r nômicas ao q u a l deu, cu riosamente, o nome de Epftome da As tronomia
, . ma neir a, com a s esc a
da musica r enascentista . . · • nicos Copernicana.
são o relato fan tástico
As H. �ntas
das t/��
/º Mu n do, pu blicad as em 1 6 1 9
O Ep/tome é u m a obra respeitável. Nele Kepler gen era lizo u a
mon ias . Aqu i está um n a ivas e K;pler de
descob rir essas har�
,, exemplo do seu conteu todos os pl anetas os seus resultados anteriores rel ativos a Ma rte, publi­
do:
XI - Proposição. A ra cados na Astronomia Nova, de modo qu e o Ep(tome descreve o sistema
o seu movimen to perieli zão e nt·re O movim • en to afel ra l d e Sa
al deve ser 4.5, u ma ter _ turno e solar como p raticamente o f azemos hoje. As três leis estão a í, embora
dos movimentos de Júpit 5 · ça maior, mas a [razão sem particu la r relevo, bem como a descri ção do movi mento dos pl anetas,
. e r, ·6, u ma te rça me ]
nor".
Ma is ad.iante a propós , as retrog ress.ões, os e clipses, etc.. . .

" · · · 1 :4 e' rela cionado


,"to da ,grande conso nâ
oitava, de Vên us e Me rcú
rio:
n cia " de 1 :4, a
du pla Mas, no Ep/tome, Kepler volto u ta mbém aos seus so nhos de juven­
tu de em torno dos ci n co polied ros regu l ares e se i nter rogou de novo a
com O octaedro · · ·
nessa raz ão ; ora
há u ma r pois o número 4 está respeito da caus a do movimento dos planetas .
' u �dran gu l ar es
razão en tre suas
esferas [ in���i�: � cr rcuns _ co n
, dj.g_? no octaedro e a No entanto, o ano era 1 6 1 8: muitas co isas t in ham acontecido
. v
crrta ] e 1 : 2.11
. . Evide n temen te, Ke pler não ti ha esqu ecido . desde o "M istério Cosmográfico". Duas, p articu l armente, têm relevância
rnscrrto a esfer a de Mercúr q u e o Criador tinha na mudanç a de a titu de de Kepler em rel ação a sua p rime i ra obra. Por um
io n o octae�ro, ao q u al Ele
esfe ra de Vên us ! . . . tin ha circunscrito a lado Ga lileu, desde 1 61 O, sabia que o Sol girava em torno de seu eixo,
Porém, co isa curiosa e . pel a observa ção das manchas solares através do telescópio e Kepler tinha
dade de Kepler, visioná qu e reflete t�. bem a ?U la persona
rio e cientista, há ��� P, li­ co nhec i mento desse fato. Po r out ro lado, o méd i co e físi co inglês
berta que se enco n tra n Ha
o Liv ro V cap. 3· Trad . rm�n1as uma desce- Gilbert, contemporâ neo de Kepler e Galileu , tinha estudado a fundo as
, u z1mos (l ivreme
" · · · apos ' n te) ·· proprieda des dos corpos imantados e Keple r tinha lido o "De M agn ete"
achar os verdade· r 1· t
e demorado, fin al­
ções de Tycho Brahe, g alos das esfe ras pelas observa- pu blicado por Gilbert em 1 600.
raç as a u � ��a � rt
mente a razão certa a o con�(nu o
. entre os er í dos : [os Operou-se então, em Kepler, uma cu riosa mud ança : vi u na rota ção
tard1amente . . . se r aros das] esferas
ap r ese ntou � s� . , embora do Sol e nas p ropriedades atrativas ou repulsivas dos corpos ima ntados, a
c.oncebi da mental me ; � oce qu iser saber a°'. data
n te em 8 d
ma ço deste an� 1 6 1 8, exat a, fo i 'J)ossi bilidade de substituir a explicação meta física do "Mistér io" (se­
tida a cálculos i n felizes porém subme­ gu ndo o qua l eram "a lmas" qu e empu rravam os plan etas), por u ma
e rejeit
. ada co�o fa lsa, fi na lmente
volta e m 1 5 de maio,
. com nova ten tativa'· rasga ch amada de explica ção ffsica.
meu espírito dian te ra m-se en ta-o as trevas d
da prova magna, fru to o Imaginou u m i menso vórtice magnético criado no. éter pel a rotação
meditações de 1 7 an os do meu trab alho e das
sobre as observações de m i nhas do Sol, o q ua l " . . . segu ra o planeta, ora atraindo-o, ora repeli ndo-o, ou
da d escoberta q
u e n o i nício
B rahe, e taI fo1. o .impacto
eu hesitando entre as duas ações, . . . obr igando também o pl aneta a gi rar
ando, e q u e eu
tese entre as minhas p e nse .
1 es t ar sonh
hipóteses. incluía a com ele [Sol] e, ju nto com o plan eta, ta lvez todo o éter q u e o cir­
110
cu nda ".

111
6.2 ANÁLISE CRl'TICA DA OBRA DE KEPLER Como a s leis de Kepler se referem ao Sol como centro (ou foco)
do movimento dos planetas, a adoção da astronomia kepleriana era ao
A obra de Kepler é, como sua vida e seu espírito, ao mesmo tempo mesmo tempo uma vitória do heliocentrismo. Vitória talvez modesta:
fascinante e confusa, sofrida e inspirada. com efeito, os que seguiam Kepler nos seus cálculos, porque eles eram
Ao analisá-la, devemos deter-nos em três aspectos fundamentais, muito mais simples, não o seguiam necessariamente em sua fé no modelo
que dizem respeito às contribuições de Kepler à luta contra o aristo­ heliocêntrico. Muitos astrônomos que utilizavam as três leis ainda eram
telismo, em segundo lugar, à Astronomia, e finalmente à elaboracão do fundamentalmente aristotélicos e somente viam no modelo de Kepler um
método científico. instrumento que lhes permitia exercer suas profissões melhor e com
menos esforço. No entanto, quer seja por convicção, quer seja por como­
dismo, o heliocentrismo ia ganhando adeptos e utilizadores em número
6.2. 1 A CONTRIBUIÇÃO D E KEPLER Ã INVESTIDA CONTRA O cada vez maior.
MITO ARISTOTÉLICO

A contribuição mais importante é o rompimento com a circulari­ 6.2.3 A CONTRIBUIÇÃO DE KEPLER Ã ELABORAÇÃO DO
dade dos movimentos dos planetas ou melhor, com a doutrina clássica MÉTODO CIENTl FICO
°

segundo a qual esses movimentos somente podem ser produzidos por


combinações de movimentos circulares. A 1 .a lei ou lei das órbitas, é um Como Aristóteles, Kepler acreditava na ordenação do Cosmos, mas
golpe sério contra o aristotelismo. Não nos esqueçamos de que nem essa ordenação passava a ter um cunho matemático, geométrico. A estru­
Copérnico, nem Tycho Brahe tinham conseguido desvencilhar-se do mo­ turação do Universo em torno dos cinco poliedros regulares foi tipica­
vimento circular. mente uma idéia kepleriana: foi Deus quem criou o Mundo, isto é indis­
Golpe sério, porém não decisivo: faltava-lhe a convicção do pró­ cutível, mas esse Deus era um geômetra.
prio descobridor! Tal era, ainda, a força da herança clássica que Kepler Sente-se assim, pela primeira vez, a procura de uma unidade funda­
considerava a 1 .ª lei como um tanto esdrúxula: aceitava dificilmente que mental, essencial, que devia expressar-se em linguagem matemática. Essa
ela viesse ameaçar uma harmonia geométrica que, sem ela, teria sido é provavelmente a contribuição mais importante de Kepler para a evolu­
perfeita. Sente-se que, para Kepler, a elipse era um círculo imperfeito, ção e a maturação do pensamento científico.
deformado. Essa mesma idéia está presente nas três leis do movimento dos
De modo que Kepler, como Copérnico, foi contra Aristóteles na planetas. Kepler partiu dos dados precisos da observação e, pelo método
medida em que tinha que respeitar os dados da observação, mas não o foi mais difícil, o das tentativas sucessivas, chegou a descobrir não uma, mas
além d o necessário. Em particular, o Universo de Kepler continuava esfé­ três relações gerais entre esses dados, três relações válidas para todos os
rico e finito. satélites de um mesmo sistema planetário.
É bem verdade que, embora tendo superado, em parte, a física
6.2.2 A CONTRIBUIÇÃO Ã ASTRONOMIA celeste "substancial" e o falso esteticismo do movimento circular "per­
feito"; embora tendo ousado estender a física terrestre dos (mãs de
Essa contribuição é sem dúvida extremamente importante. Com Gilbert à mecânica celeste do sistema solar, havia ainda em Kepler um
efeito, pela primeira vez na história dessa ciência, dispunha-se de três leis fundo óbvio de misticismo e de apriorismo. Aquele Deus geômetra, que
enunciadas em linguagem matemática, válidas para todo o sistema solar e arquitetou o Universo em torno dos cinco poliedros regulares, proibia
que, conseqüentemente, permitiam determinar as posições futuras dos ipso facto, que o número de planetas ultrapassasse de seis; e a procura
planetas dentro da aproximação dos dados observados e não mais, como das harmonias celestes em torno de acordos musicais é certamente obra
antes, dentro da aproximação de um modelo teórico ad hoc como o de funâmbulo pré-científico.
·
modelo ptolemaico. É também verdade que Kepler não teve forças suficientes para
. A Astronomia de Kepler era pois, pela primeira vez, uma astro­ elevar-se, das três leis, Dté a teoria geral que as contém. Várias são as
nomia exata, e foi imediatamente e unanimente adotada pelos astrôno­ razões do seu insucesso: em primeiro lugar, "geometrizou" a teoria
mos profissionais do Ocidente. errada, a dos poliedros regulares. Em segundo lugar, não poderia ter
112
113
passado das leis à teoria sem uma Física do movimento. E a F ísica de
" . . . se, d e u m lugar exterior à Terra, algo fosse lançado para a
Kepler, com seu Universo finito, seu conceito errado de forças como
Terra (essa coisa] por causa do movimento da Terra perderia a direção
produtoras de velocidades e não de acelerações, era ainda aristotélica; e
retilí�ea [do seu movimento], como acontece com o navio, quando
finalmente, admitindo-se que esses obstáculos fossem vencidos, Kepler
este desce o rio: se alguém, que se encontra à beira do rio, l_ançar uma
não possuía a desenvoltura matemática necessária para conseguir aquele
pedra na direção do navio, errará o alvo, e isto proporcionalmente à
objetivo.
velocidade do navio. Mas se alguém se colocar sobre o mastro do
De modo que Kepler não poderia ter chegado à Lei da Gravitação
navio, e se este �ndar tão rapidamente quanto queiram, então o tiro da
pedra não se' desviará de uma linha sequer. D� m�do que a pedra_, ou
Universal.
Em contrapartida podemos nos perguntar - gratuitamente - se
qualquer outro grave, atirada do mastro em d1reçao a um p�nto situa­
Newton, sem a·s Leis de Kepler, a teria descoberto.
do ao pé do dito mastro, ou a qualquer outro ponto do navio, prosse­
guirá em direção ao alvo em linha reta.
6.3 GIORDANO B R UNO Do mesmo modo, se alguém no navio atirar uma pedra para
cima, em direção ao topo do mastro, essa pedra voltará para baixo
seguindo a mesma linha, qualquer que seja o movimento do navio,
Embora Bruno fosse filósofo (e péssimo matemático), embora sua
desde que não haja oscilações"..
obra máxima, a "Ceia das Cinzas" seja tumultuada e confusa, acredita­
E mais adiante:
mos que tenha o seu lugar nessa nossa peregrinação em busca do método "Imaginemos dois homens: um no navio em movimento, o outro
científico, pois é raro encontrar-se, em um homem da Renascença, uma fora do navio; que ambos tenham a mão no mesmo ponto do ar, e que
visão tão larga do Universo e, em certos aspectos, tão profética. desse ponto, no mesmo instante, cada um deles deixe cair uma pedra
A contribuição de Bruno à corrente científica que começava a se sem dar-lhe nenhum impulso: a pedra do primeiro . . . sem se desviar
formar foi dupla. de sua linha [vertical] irá para o lugar fixado de antemão; enquanto
Por um lado, entendeu que a revolução copernicana implicava que a do segundo será desviada para ré. E isto é devid� ao fato de � ue
necessariamente no abandono total do Cosmos aristotélico. Não hesitava .
a pedra que sai da mão do homem levado pelo navio, e consequen­
em afirmar (obviamente sem provas) que o Universo era infin.'to, e pos­ _
temente se move com o mesmo movimento que este, possui uma certa
sivelmente povoado por sistemas solares análogos ao nosso. O que era força interna que a outra pedra não possui, a que sai da mão do
duplamente impensável. Por esta e outras heresias Bruno foi queimado homem que se encontra fora do navio .. . [de modo que] as coisas que
vivo, em praça pública, na Roma de 1 600. * estão ligadas ao navio [por se encontrarem a bordo dele] se movem
Em segundo lugar é em Bruno que encontramos, pela primeira vez,
com ele· uma das pedras, a que se move com o navio, leva consigo a
a noção praticamente moderna de sistema ffsico e do princfpio da rela­
força d� motor, enquanto que a outra não tem nenhuma participação
[nessa força].
tividade do movimento.
O melhor é deixarmos Bruno falar. Ele queria refutar um dos
Percebe-se assim o que há de novo no raciocínio de Bruno em
argumentos físicos contra o movimento da Terra: o da pedra que se
relação a Aristóteles e mesmo a Copérnico: os corpos que estão na
deixa cair e que, se a Terra se movesse, não poderia chegar ao solo na
Terra participam do seu movimento não porque sejam de mesma
vertical d o ponto de partida. Bruno então imaginou** certas experiên­
"natureza" que a Terra, mas porque pertencem, com a Terra, a um
cias feitas a bordo de um navio que se movesse na superfície da água
mesmo sistema físico (mecânico), da mesma maneira que os corpos
com movimento retilíneo uniforme (essa última condição não foi expli­
que estão no navio participam do movimento deste porque formam,
citamente formulada, mas estava obviamente no pensamento de
com o navio, um mesmo sistema físico.
Bruno). Dizia ele:
E quando Bruno diz que a pedra que se deixa cair do �astro
.
atingirá o convés ao pé do mastro, qualquer que se1a o n:iov,mento
• Sua atitude foi provavelmente responsável, em grande parttj, pela reação da Igreja Católica que (retilíneo uniforme) do navio, pouca coisa falta para concluir � ue essa
condenará Copérnico, na sua obra, em 1616, e Galileu mais tarde. experiência (ou qualquer outra aliás) não seja capa� � e nos diz�� se o
_
• • A experiência somente foi feita mais tarde, provavelmente· por Gallé, na França. por volta navio está ou não em movimento. E este e o pnnc1p10 da relat1v1dade
de 1625.
(clássica) do movimento.
114
115
CONC LUSÃO capítulo 7
GALILEU
Embora a contribuição da· Renascença à formação e à evolução do A DEFESA DO COPE.RNICANISMO
pensamento científico tenha sido desigual, confusa, perturbada por mui­
tos fatores estranhos, tentemos caracterizá-la em seus traços essenciais.
Na síntese aristotélica, o mundo formava um Cosmos não somente
ordenado, mas ordenado por obra de uma hierarquia supranatural, meta­
f(sica: o mundo supralunar, de natureza divina, era superior em qualidade
ao mundo sublunar, corruptível e perecível� A Terra .se encontrava no
centro do Universo em virtude da estrutura mesmo desse Universo: sendo
grave, a Terra devia naturalmente se encontrar no lugar natural dos
graves, isto é, no centro.
O surgimento do heliocentrismo exigia naturalmente, em primeiro
lugar, que essa concepção do mundo fosse destruída.
É assim que Copérnico nos diz que se os graves vão para o centro
da Terra, não é que se dirijam para o centro do Universo; é simplesmente
porque querem retornar para a Terra onde se encontram os seus seme­
lhantes, os outros graves; e isto acontecerá qualquer que seja o lugar da
Terra no Universo. O raciocínio copernicano tenta substituir uma causa I NTRODUÇÃO
natural a uma razão metafísi.ca, de ordem superior.
Deslocando a Terra do seu lugar privilegiado para fazer dela um Com Galileu, chegamos a um dos pontos altos da história do pen­
corpo celeste, semelhante em status aos outros planetas, Copérnico samento científico. Sua obra é tão importante que lhe consagraremos
suprime a preponderância qualitativa do mundo supralunar sobre o dois capítulos, este e o primeiro capítulo do Volume 1 1 desta Coleção.
mundo sublunar. Na realidade, essa própria subdivisão torna-se sem Nesses dois capítulos, trataremos sucessivamente dos dois aspectos
sentido. De modo que, do ponto de vista epistemológico, Copérnico mais importantes da vida e da obra de Galileu: em primeiro lugar, a
ajudou realmente a destruir a hierarquia do Cosmos aristotélico, embora defesa do copernicanismo, que o levou a entrar em conflito com a
nada na sua obra mostre que tivesse tido consciência disso. ciência "estabelecida", conflito esse que culminou com a sua condenação
No Universo de Copérnico há ordem, mas não há hierarquia. pela I greja Católica; no primeiro capítulo do próximo volume estuda­
Tycho Brahe introduz um elemento novo: o espírito de precisão. remos a contribuição puramente científica de Galileu, caracterizada pela
Kepler, assimil.ando esse espírito, consegue descobrir leis corretas para os eclosão do método, ou talvez melhor, do racionalismo científico.
movimentos planetários. Se não vai além das leis, se não chega à síntese
da gravitação universal é que, basicamente, faltava uma Física em que
pudessem se integrar os fenômenos terrestres e os fenômenos celestes.
Essa integração estava além das forças da Física renascentista, embora
um Bruno tivesse dado provas de que era capaz de pensar o impensável. Primeira Parte
Precisava-se primeiro de um Galileu, para que a grande síntese A VIDA E A OBRA
pudesse finalmente emergir com Newton.

7.1 OS PRIMEIROS ANOS ( 1 564-1602)

Galileu Galilei nasceu a 1 5 de fevereiro de 1 564, em Pisa, no


ducado de Toscana. Naquele mesmo ano de 1 564, morria Miguelângelo
e nascia Shakespeare.

116 117
Em 1581 inscreveu-se na Universidade de Pisa, onde seguiu cursos ("Mensageiro Sideral"), dedicad'o ao Grão-Duque Cosimo l i , e no qual
de Filosofia e de Medicina. No ano seguinte, encontrou na Universi­ resumia as suas primeiras descobertas astronômicas.
dade o matemático Ricci e começou a estudar geometria, mas em 1 585, A dedicatória a Cosimo 1 1 tinha sua razão de ser: Galileu queria
por carência de recursos, viu-se obrigado a abandonar os estudos e a voltar para a Toscana e aproveitou a oportunidade para pleitear ao Grão­
voltar para a família, que se tinha mudaao para Florença. Duque um posto na Universidade de Pisa ou em Florença.Acrescentava
Em Florença, leu Arquimedes, deixou-se empolgar pela elegância ele que não desejava ensinar, para poder dedicar-se completamente às
de raciocínio e pelo rigor do matemático grego e escreveu seu primeiro suas pesquisas.
trabalho científico, La Bilancetta. A seguir, iniciou um estudo para a Cosimo l i aceitou de bom grado: em julho de 1 6 1 O Galileu era
determinação dos centros de gravidade dos sólidos. nomeado Primeiro Matemático e Filósofo do Grão-Duque de Toscana.
Esses trabalhos valeram a Galileu uma certa fama e em 1 589 Em setembro deixava Pádua e voltava para Florença.
assumiu a cadeira de Matemática da Universidade de Pisa. Em 1 6 1 2, observou manchas sobre a superfície do Sol, entrando
Em 1 590-1591 estudou a ciclóide, descobriu suas propriedades em polêmica com o padre jesu (ta Christopher Scheiner, que também
essenciais, começou o estudo da queda dos corpos, e escreveu um tra­ tinha observado as manchas e afirmava que eram planetas. Galileu de­
tado, o De Motu, em que expôs as suas primeiras tentativas de solução do monstrou que as manchas pertenciam realmente à superfície solar, em
problema da queda dos corpos. três cartas que a Academia dei Lincei - que o tinha acolhido em 1 6 1 1 -
Em 1 592 Galileu se encontrava na Universidade de Pádua, perto de publicou em 1 61 3.
Veneza; as circunstâncias da mudança são mal conhecidas: talvez dese­ Já naquela altura a oposição a Galileu, nos meios acadêmicos e nas
jasse trocar a atmosfera mais conservadora de Pisa pelo clima de relativa esferas rei igiosas, tomava corpo. Essa oposição iria crescer sem parar,
liberdade da República Veneziana; talvez os pesados encargos financeiros ativada e envenenada pelas polêmicas apaixonadas que o próprio Galileu
que teve que suportar depois da morte do pai, em 1 591, o tivessem alimentava.
. Em 1 6 1 8, três cometas apareceram. Galileu afirmou que se tratava
obrigado a procurar em Pádua uma situação mais lucrativa que a que
tinha em Pisa. de fenômenos atmosféricos, sendo duramente criticado por outro jesuíta,
Em Pádua, escreveu para seus alunos um curso de Mecânica (Le o Padre Horatio Grassi. Alguns anos depois, em 1 623, Galileu replicava
Meccaniche) onde se encontra, pela primeira vez, uma teoria clara e ra­ com li Saggiatore ("O Provador"), obra mordaz, sarcástica, onde os argu­
cional sobre as máquinas simples: o plano inclinado, as alavancas, as mentos do Pe. Grassi eram ridicularizados.
rol danas. Em 1623 o Cardeal Maffeo Barberini, amigo e protetor de Galileu,
foi investido como Papa sob o nome de Urbano VI 1 1 . Galileu, já inteira­
mente convertido ao copernicanismo, quis aproveitar a circunstância
7.2 OS ANOS D E LUTA ( 1 602-1632) para lançar uma grande obra em defesa do sistema de Copérnico. Come­
çou a escrever em 1625 e publicou em 1 632 o Dialogo sopra i due
Os trinta anos seguintes foram marcados pela luta incessante de massimi sistemi dei Mondo: Ptolomáico e Copernicano ("Diálogo sobre
Galileu para fazer triunfar o copernicanismo. os dois principais sistemas do Mundo: Ptolomaico e Copernicano").

.'.
Em 1 604 apareceu uma supernova na constelação da Serpente e O Diálogo, que dura quatro dias, é uma troca de idéias entre três
como a paralaxe dessa estrela era nula, Galileu concluiu que se tratava de personagens:
um objeto situado na esfera das estrelas fixas. Em conseqüência, dizia Salviati, o porta-voz do próprio Galileu;
ele, os Céus não são imutáveis, como queria a doutrina aristotélica. Deu Sagredo, representando o leigo esclarecido e permeável aos argu­
três aulas sobre o assunto na Universidade, e imediatamente e/'\trou em mentos de Salviati;
violenta polêmica com os defensores da cosmologia tradicional. Simpl (cio, representante empedernido e esclerosado da tradição
O ano de 1 609 constituiu-se num marco fundamental na história aristotélica.
da ciência: Galileu construiu um telescópio e o dirigiu para o Céu. Na Embora mais moderado que o Saggiatore, o Diálogo é também
seção 7 .5 deste capítulo apreciaremos o alcance e as conseqüências das uma obra polêmica, ém que Galileu tentava demonstrar a validade do
descobertas qu.e o n ovo instrumento tornou possíveis. Assinalemos por copernicanismo a partir de argumentos tirados da observação, do racio­
. .
enquanto que Já no i n (cio de 1 6 1 O, Galileu publicava o Sidereus Nuntius cínio e da experiência (Ver abaixo a 2.ª parte deste capítulo).

118 119
7.3 A REAÇÃO DA IGREJA: Esse mesmo Galileu, o Galileu da época do processo era, além do
A CONDENAÇÃO DE GALILEU ( 1 633) mais, um homem cujo pensamento científico já estava amadurecido. Esse
pensamento, iria expô-lo, alguns anos depois, nos Discursos; mas desde já
A atitude da Igreja Católica e a conseqüente condenação de Gali­ J. sabia-se que a sua maneira de estudar a natur�za . �ra muito estranha: em
leu foram obviamente ligadas ao caráter excessivamente polêmico que vez de procurar as respostas nos textos tradicionais e nos autores consa­
tinha sido observado em suas atividades desde q�e voltara para Flo­ grados, gabava-se de investigar diretamente os fenômenos e por meio de
rença e Pisa. Suas relações com a Igreja foram marcadas por um processo deduções puramente matemáticas, pretendia chegar a conclusões neces·
de lenta deterioração que ele se recusava aliás, pelo menos no início, a sárias. Ora isso, sem dúvida, era querer cercear o livre arbítrio e a onipo­
levar muito a sério. tência divina. Era querer, como dizia Urbano VI l i , na véspera do pro­
Galileu não entendia a perseguição implacável dos "clássicos" e cesso, ao embaixador florentino, "impor condições a Deus".
particularmente dos eruditos religiosos de Roma e de Florença. Era um Do outro lado estava a Igreja Católica, estrutura organizada, com
. católico convicto e para ele, sua fé não devia nunca ser posta em dúvida. um poder enorme sobre o povo, através do ensino e do verbo dos seus
Ê bem verdade que, em matéria de filosofia natural, recusava às Escri­ ministros, bastião da fé cristã, guardiã das Escrituras e arauto exclusivo
turas qualquer credibilidade. Segundo ele, os textos sagrados procedem das suas interpretações.
por imagens, comparações, analogias, para serem facilmente acessíveis ao No entanto, no início daquele século XVII, essa mesma Igreja
povo ignorante. Mas sua interpretação ao pé da letra, quando se trata de Católica via uma Europa conturbada, dividida pela Reforma, ferida por
interrogar o Universo, poderia expor a própria Igreja ao ridículo, se mais guerras infindáveis em que a defesa da fé era muitas vezes somente um
tarde se descobrisse que o texto contradiz a natureza: ora era precisa­ pretexto.A Santa Sé via com pesar e espanto certos príncipes católicos
mente o que acabava de descobrir com seu telescópio. aliarem-se por razões de estado aos exércitos protestantes. *
De modo que, longe de hostilizar a Igreja, Galileu pretendia pres­ E, precisamente no meio dessa confusão política, nessa hora de
tar-lhe um favor. extrema gravidade para os próprios destinos do catolicismo, um leigo
Partindo então da premissa de que "a Santa Bíblia nos ensina como ousava pôr em dúvida a doutrina cristã, atrevia-se a interpretar as Escri­
ir ao Céu e não como o Céu é feito", tentou impor o copernicanismo. . . turas e ameaçava abrir uma nova frente de luta .
Era um homem culto, u m escritor de grande fluência, um estilista
O erro que o Papa e o Sacro Colégio não queriam cometer era o de
consumado e também um polêmico feroz, que manipulava o sarcasmo
com uma maestria incomum. li Saggiatore, e ainda mais o Diálogo exar­
subestimar o adversário. O perigo era real, porque o copernicanismo
defendido, interpretado e divulgado por Galileu, ameaçava toda a estru­
cebaram as inimizades e o número de opositores foi sempre crescendo.
tura acadêmica da Igreja. Ouçamos Arturo d'Elci, reitor da Universidade
Algumas vozes da Igreja se fizeram ouvir: em 1 616, após a con­
de Pisa:
denação oficial do copernicanismo, Galileu foi advertido para que não

Barberini, agora Urbano VI 1 1 , os seus projetos de elaboração do Diálogo.


"Quantos jovens, despertados e atraídos pela ciência, não terão
defendesse suas teses. Em 1 624, foi a Roma para discutir com seu amigo

Urbano VI 1 1 concordou com a publicação, desde que Galileu não afas­


sido seduzidos pela novidade ·das tes'es de Galileu, deixando-se assim
afastar dos caminhos seguros da filosofia aristotélica, para seguir cami­
nhos novos onde tudo está transtornado e onde se ensina a ver o mundo
tasse, na conclusão da obra, a possibilidade da onipotência divina ter
em outra perspectiva? Se não se resistisse a essa tendência, as Universi­
criado um Universo não-copernicano.

partir da publicação do Diálogo, Urbano VI 1 1 retirou a sua amizade,


dades e as Escolas esvaziar-se-iam, e os eminentes Mestres para os quais
Estranhamente, Galileu não seguiu a recomendação do Papa e a Aristóteles permanece o guia inconteste, seriam cada vez menos
ouvidos".
embora estivesse ainda disposto a manifestar sua clemência.
As vesperas do processo, o próprio Urbano VI li encarregou-se de
De um lado, então, tinha-se um Galileu brilhante, às vezes até à
fixar as posições:
petulância, convicto de que suas opiniões a favor do . copernicanismo
deviam ser aceitas sem maiores discussões, e por isso mesmo intransigente "Não é de se desejar que, pelos tempos que correm, algum novo
até à arrogância, talvez vaidoso e sem humildade, mas não sem religião, dogma fantástico venha a firmar-se naqueles espíritos florentinos, sempre
exercendo com sua forte personalidade uma atração inconteste sobre os
espíritos esclarecidos e curiosos da época. • Como por exemplo, na França, o Cardeal Richelieu.

120 121
sutis e curiosos em excesso, ainda mais que o Sr. Galileu, com sua prosa ensinamentos que ainda podia dar: Viviani a partir de 1639 e Torricelli
maravilhosa, é capaz de persuadi-los de qualquer coisa". em 1641 .
Estava em jogo a autoridade da Igreja, que defendia sua unidade já Naqueles nove anos, Galileu estruturou a parte mais significativa
corroída, e forçoso é reconhecer que as "novidades do Sr. Galileu" não r da sua obra científica, os Discorsi e dimostrazioni matematiche intorno a
.pareciam, na época, muito importantes frente aos riscos possíveis due nove scienze ( "Discursos e demonstrações matemáticas a respeito de
Era preciso pois agir, e agir rapidamente. A Santa Sé sentira na duas novas ciências"). As duas novas ciências são, por um lado, a resis·
própria carne quão onerosas tinham sido as tergiversações e as demoras tência dos materiais, por outro lado, os problemas dos movimentos dos
em combater a Reforma. graves.
No dia 1 .0 de outubro de 1 632, Galileu foi intimado a comparecer Os Discursos reúnem os mesmos interlocutores do Diálogo, mas o
perante o tribunal da Inquisição. Sentindo-se doente (já estava com 68 conteúdo é agora puramente científico e não mais polêmico.
anos), pediu um adiamento, que lhe foi concedido, mas ao término do O texto dos quatro primeiros dias de discussões entre Salviati,
qual devia ser encaminhado a Roma, "carceratus et ligatus cum ferris", se Sagredo e Simpl ício, foi publicado em 1638. Galileu trabalhava na con­
necessário fosse. tinuação da obra (forças de percussão e teoria euclidiana das proporções)
Finalmente, em 20 de janeiro de 1 633, Galileu chegava a Roma cujo texto ditava a Viviani, já que a cegueira o impedia de ler e escrever,
para ser julgado. Compareceu quatro vezes perante o tribunal, que o quando a morte o surpreendeu, em 9 de janeiro de 1 642.
declarou suspeito de heresia. Em 22 de junho ouvia a sentença, no
Convento dominicano de Santa Maria sopra Minerva, ajoelhado e vestido
com a camisola branca dos penitentes: foi condenado à prisão perpétua,
que o Papa comutou para prisão domiciliar. O tribunal exigia também Segunda Parte
uma abjuração públ ica e Galileu, numa humildade patética, declarou A CONTRIBUIÇÃO DE GALILEU ..
"abjurar, abominar e detestar aqueles erros e aquela heresia". NA DEFESA DA COSMOLOGIA COPERNICANA
Era um ancião de quase 70 anos que sofria essa humilhação; era o
mesmo homem que iria ainda, nos poucos anos que lhe restavam, sobre­ Em 1 597, numa carta escrita a Kepler, Galileu se confessava
por-se a essas contingências e abrir o caminho ao racionalismo científico. adepto da cosmologia copemicana "já há alguns anos", embora não
Não nos cabe julgar: ainda hoje, os especialistas em História da estivesse disposto a entrar na contenda para defendê-la publicamente,
ciência estão divididos quanto às responsabiliades e as culpas, no julga­ receando ser alvo de críticas e cair no ridículo.
mento de Galileu. Talvez um pouco mais de liberalidade por parte da No entanto, trinta e seis anos mais tarde, enfrentava o tribunal da
Igreja, na sua posição teológica, e um pouco mais de humildade por parte Inquisição por ter defendido, no Diálogo, aquelas mesmas teses que, na
de Galileu, nas suas polêmicas, tivessem contribuído para um clima juventude, o deixavam ap�rentemente indiferente.
menos denso de tensões e de ódios, na hora do julgamento. Na segunda parte deste capítulo, caracterizaremos as etapas suces­
sivas que firmaram Galileu numa convicção tão profunda e tão sincera
que esta o levou a arriscar a própria vida.
7.4 OS ú LTI MOS ANOS ( 1 633-1642) Evidentemente, se o Galileu de 1 597 se recusava a defender o
copernicanismo, . era porque a nova cosmologia heliocêntrica não tinha
De 1 633 até a sua morte e depois de uma curta estadia em Siena, ainda provas suficientes para convencer, para persuadir, embora fosse
Galileu residiu quase sem interrupção numa casa . de campo que possuía preferível, a seus olhos e por razões de simplicidade, à doutrina ptolo­
em Arcetri, perto de Florença. Sua saúde já estava ameaçada <em 1 637 maica.
ficou cego), mas os nove anos passados em Arcetri foram os mais pro­ Ora, a partir de 1 609, as descobertas astronômicas realizadas com
pícios, os mais fecundos, para a sua produção científica. o telescópio forneciam ao próprio Galileu argumentos novos e a seu ver
Apesar da vigilância da Inquisição, a vida de Galileu em Arcetri era decisivos a favor do copernicanismo.
tranqüila; a atmosfera de trabalho era estimulante. Recebia freqüente· O caminho para a própria conversão e para convencer os incré·
mente visitantes ilustres; tinha também, para reconfortá-lo, a presença e dulos estava aberto. Porém, antes de segui-lo até as suas últimas conse­
o respeito de dois cientistas que foram juntar-se a ele para receber os qüências, três condições restavam a preencher:
122 123
- em primeiro lugar, libertar-se do princípio de autoridade represen­ regiões de sombra, análogas às sombras projetadas por cumes montanho­
tado, por um lado, pelas Santas Escrituras, por outro lado, pela tradição sos nos vales ou nas planícies que eles dominam. Galileu observou tam­
aristotélica; bém qué essas zonas de sombra diminuíam à medida que os raios solares
- a seguir, elaborar novas premissas que tornassem possível uma incidiam mais perpendicularmente· sobre a superfície lunar.
nova cosmologia. Isso exigia, evidentemente, a derrubada das premissas Concluiu então a existência de um relevo lunar semelhante ao
aristotélicas; relevo terrestre. Dissipava-se assim o mito aristotélico de uma Lua perfei­
- finalmente, construir uma mecânica compatível com o heliocen­ tamente esférica e polida. ( Recordemos que somente a forma esférica
trismo e particularmente com o movimento diurno da Terra. perfeita convinha aos corpos celestes.)
A Jarefa era gigantesca e Galileu não teve forças suficientes para
b. Manchas solares
completá-la. No entanto, a evolução do pensamento de Galileu durante
aqu�l as três décadas no caminho da conversão ao copernicanismo foi Em julho de 1 6 1 O, ao observar o Sol, Galileu notara a presença de
.
de�1s1va para a maturação e a elaboração da sua obra puramente cien­ manchas obscuras no disco solar. Durante dois anos, voltou periodica­
tífica, coroada pelos Discursos. mente ã observação dessas manchas e em 1 6 1 3 publicou as suas conclu­
É isso que torna essa evolução particularmente interessante. sões. Quais eram elas?
Em primeiro lugar as manchas se deslocam de oeste para leste,
paralelamente ao equador solar, percorrendo a largura do disco em mais
7.5 AS DESCOBERTAS ASTRONÓMICAS E SUAS ou menos 1 4 dias. Em segundo lugar, as manchas não têm uma forma
CONSEOÜ Ê N C I AS fixa, nem uma existência permanente. Algumas desaparecem no decorrer
do trânsito. Outras se dividem em várias manchas menores, ou ao con­
E m 1 609 em Pádua, chegava ao conhecimento de Galileu a notícia trário, várias delas se juntam para formar um mancha maior.
de que u � holandês tinha inventado uma luneta "que fazia aparecer Galileu concluiu que as manchas pertenciam à superfície do Sol, e
_ que o Sol girava em torno de seu eixo em 28 dias aproximadamente.
mwto próximos os objetos afastados".
Galileu decidiu imediatamente construir um instrumento seme­ De modo que, contrariamente ao que ensinava a doutrina aristo­
lhante. Fixou uma lente plano-côncava e outra plano-convexa às extremi­ télica, um corpo celeste estava sujeito a mudanças, a "gerações" (apareci­
dades �e um tubo de chumbo e observou que, utilizando-se a lente mento das manchas) e a "corrupções" (desaparecimento das manchas).
plano-concava como ocular, os objetos ficavam "sensivelmente aumen­
tados e aproximados". c. Fases de Vénus
O telescópio fazia assim sua aparição.
A partir do mês de outubro de 1 6 1 O, Galileu observou sistemati­
Depois de apresentar o instrumento às autoridades de Veneza, camente Vênus, e descobriu que o planeta apresentava fases semelhantes
Galileu dirigiu o telescópio para o céu e, a partir do outono de 1609 às fases da Lua. Concluiu que:
sucederam-se as mais extraordinárias descobertas. Pela primeira vez �
homem podia ver detalhes dos corpos celestes com os olhos em vez de - Vênus gira efetivamente em torno do Sol;
vê-los somente pela imaginação. - Vênus, um .planeta, não tem luminosidade própria: "estou certo,
As principais descobertas astronômicas de Galileu relatadas a se­ escrevia ele ao Pe. Clavius, de que os planetas não têm luminosidade
guir, não o são necessariamente por ordem cronológica'. Escolhemos a própria e somente brilham quando iluminados pelo Sol, o que não é o
ordem de exposição pelas conseqüências que essas descobertas iriam ter. caso, creio eu, das estrelas fixas".

a. Relevo da Lua Portanto, a Lua, Vênus e por ex'tensão todos os planetas, tinham
algo mais em comum com a Terra. Nenhum desses corpos celestes possui
Alguns dias depois d a conjunção (lu.:i nova), Galileu observou que luminosidade própria. Todos eles, como a Terra, somente refletem e
.
a lm �a de de �arcação entre a zona iluminada e a zona obscura apresen· espalham a luz que recebem do Sol.
tava irregularidades. Continuando a observar a zona iluminada à medida As descobertas do relevo da Lua, das manchas solares, e das analo­
que a Lua se aproximava da quadratura (meia' Lua) observou pequenas gias entre os planetas e a Terra, levaram então Galileu a rejeitar de vez,

124 125
com base na observação, a hierarquia do Cosmos aristotélico. O mundo
T 7.6 A REJ EI ÇÃO DO PRI NCfP I O DE AUTORI DADE
supralunar não era mais nem menos "nobre" que o mundo sublunar.
Como este, estava também sujeito a mudanças. O obstáculo aristotélico O princípio de autoridade é a aceitação cega dos ensinamentos das
"substancial", que dava aos corpos celestes um comportamento a priori Escrituras; é também o Magister dixit. É preciso não su �estimar o peso
diferente do comportamento dos corpos terrestres, desaparecia. Galileu _
que esses mandamentos tinham na época; no entanto Galileu devia liber­
podia então aceitar racionalmente que a terra fosse incluída entre os tar-se deles.
planetas de um sistema heliocêntrico.
Novas descobertas iriam inclinar ainda mais a balança para o lado a. Autoridade das Escrituras
do heliocentrismo. Em três cartas célebres, Galileu contestou que se dê às Escrituras
Santas uma interpretação I iterai nos assuntos de filosofia natural, isto é,
d. Os satélites de Júpiter no estudo da natureza. Essas cartas são respectivamente de 1 6 1 3 (�o
Cardeal Castelli), de 1 6 1 5 (à Grã-Duquesa de Toscana) e de 1633 (a El10
E m janeiro de 1 6 1 0, Galileu observava Júpiter e descobria os seus Diodati).
quatro maiores satélites* , aos quais deu o nome de "planetas medi­ O argumento de Galileu era o seguinte: todo mundo sabe qu�,
ei anos", em homenagem ao Grão-Duque de Toscana. mesmo em questões de fé, as Escrituras dei �am às vezes de t�aduzir
Acabava de observar um sistema solar em miniatura. Tinha final­ literalmente o verbo divino. Para que a massa ignorante, o povo inculto
mente a prova de que a Terra não é necessariamente o centro do Uni­ possa entender os mandamentos de Deus, as Escrituras recorre� muitas
verso, já que havia corpos celestes girando em torno de um outro planeta. vezes a parábolas, a com�arações, a analogias ne � �empre e�p l íc1tas, mas
A existência observada dos satélites de Júpiter era um argumento
que, se fossem tomadas ao pé da letra, conduziriam a m1udo a verda­
de peso - embora i.ndireto - a favor do heliocentrismo. _
deiras heresias. Chegariam a mostrar, dizia Galileu, um Deus irado, ou
arrependido, ou vingador e maldoso, o que não corresponde evidente­
e. Observações de Marte, Vênus e Mercúrio mente à realidade.
Desde Ptolomeu sabia-se que Marte em oposição é mais brilhante Ora se as Escrituras não devem ser interpretadas literalmente em
que em qualquer outra posição; porém, a olho nu, Marte apresentava-se certas que�tões que tocam a fé, por que haveríamos de segui-las ao pé da
como u m objeto pontual. letra em questões de filosofia natural? .
Galileu observou Marte com o telescópio. Viu então que não se De modo que Galileu recomendava que, no estudo d � Universo, �e
tratava de um ponto brilhante e sim de um disco e que, quando o planeta observasse primeiro o que acontece e que se tentass� uma in�erp�e�açao
_
estava em oposição, esse disco era não somente mais brilhante, como racional das observações, utilizando-se assim os sentidos e a 1nteligenc1a
também muito maior que na época da conjunção. que o próprio Criador nos deu. Insistia em que se observasse a natureza:
Da mesma forma, Vênus é seis vezes maior na época da conjunção em vez de apegar-se às Escrituras: "Será, perguntava ele, que a Obra e
inferior (Terra - Vênus - Sol) do que na conjunção superior (Terra - menos augusta que o Verbo? ".
Sol - Vênus). O mesmo acontece com Mercúrio. b. Autoridade da tradição aristotélica
t
k
Esses fatos estavam evidentemente previstos pela teoria hei iocên­
trica, mas tanto para Copérnico como para Kepler eram meras conjec­ Rejeitando de início o enciclopedismo d� � outrina arist?télica,
_
Galileu afirmava claramente que o homem deve l1m1tar os seus ob1et1vos,
1
turas que deviam se verificar se a teoria heliocêntrica estivesse certa, mas
que ainda não tinham sido comprovadas pela observação. quando se propõe a estudar o Universo. Pela primeira �ez, algué � enten­
dia que o conhecimento da natureza pelo homem e necessariamente
lt
Em 1 6 1 3, depois da publicação do "Sidereus Nuntius" ( 1 61 0) e
das "Cartas sobre as manchas solares" ( 1 6 1 3), Galileu estava convicto da limitado. Somente Deus tem a infinita capacidade de tudo compreender
instantaneamente. No Primeiro Dia do Diálogo, Salviati afirma que "o�
lt
veracidade da teoria hei iocêntrica . A conversão .total exigia, no entanto,
o rompimento com toda uma tradição de autoridade i mposta. mais sábios reconhecem espontaneamente que a ciência que possuem e
ínfima".
Quanto à autor-idade do próprio Aristóteles, Galileu tentou con­
· • Até hoje, foram descobertos 14 satélites de Júpiter. vencer os seus adversários de que o Mestre não era infal ível e que ele
126 127
mesmo, com sua vasta inteligência e sabedoria, seria o primeiro a reco­ mente, a física terrestre podia ser utilizada para tirar conclusões a res­
nhecer os seus erros, se fosse confrontado com a evidência das observa­ peito dos fenômenos celestes.
ções. Ouçamos Salviati, no Segundo Dia do Diálogo. Seguindo nisto Copérnico e Kepler, Galileu abandonou então o
" . . . Será que o senhor duvida do fato de que Aristóteles mudaria mito de um Cosmos hierarquizado. Mas, também como os seus predeces­
de opinião e corrigiria os seus livros se tomasse conhecimento das recen­ sores, Galileu acre<;füava numa ordem universal. Dizia ele, no Primeiro
tes descobertas astronômicas? Que se converteria a doutrinas que são Dia do Diálogo: "Admito que o mundo seja um conjunto dotado de
agora tão evidentes, e que renegaria todos esses espíritos mesquinhos e todas as dimensões, e por essa razão é perfeito; acrescento que, sendo
limitados que teimam em conservar cada uma de suas palavras [de Aris­ perfeito, é por necessidade perfeité'mente ordenado, isto é, composto de
tóteles ] ; não entendem eles que, se Aristóteles fosse como imaginam, partes dispostas segundo a melhor ordem poss ível".
seria um imbecil, um egoísta, uma alma bárbara, u m tirano arbitrário, A primeira premissa cosmológica é pois a de um Universo arde-
que veria nos outros homens um gado estúpido e capaz de dar prioridade nado.
a sua vontade [de Aristóteles], acima das percepções dos sentidos, da Esse Universo é finito ou infinito? Observando a Via Láctea, Ga­
experiência e da própria natureza. lileu notou que o leve véu que a caracteriza para um observador sem
São os seguidores de Aristóteles que lhe vêm conferindo tamanha instrumento, se resolvia, no telescópio, numa infinidade de estrelas.
autoridade e não ele próprio. E sendo mais fácil abrigar-se atrás do es­ Concluiu corretamente que essas estrelas estão mais afastadas que as
cudo alheio do que descer na arena a descoberto, tremem e não ousam outras, visíveis a olho nu. Em conseqüência, a "esfera das estrelas fixas"
afastar-se um passo [da autoridade_ de Aristótel_�s]_. Para não aceitarem a têm uma certa profundidade, uma certa espessura. De quanto é essa
modificação de um único ponto sequer no céu de Aristóteles, negam sem . profundidade? Em outros termos, pode-se afirmar que o mundo é finito,
pudor o que percebem no céu da natureza." . como quer a tradição aristotélica e com ela, aliás, Copérnico e Kepler?
E quando Simplício pergunta: ·:."_ ou que ele é infinito, como queria Bruno? Galileu não se pronunciou;
"Mas se renunciarmos a Aristóteles, quem mais será o guia da ,; não concluiu, por falta de provas suficientes. O telescópio lhe permitia
ciência? Cite o nome de um autor!", afirmar que o Universo é mais extenso do que se acreditava; mas nada
Salviati responde: provava que fosse infinito.
"Um guia é necessário nos pa (ses desconhecidos, selvagens; somen­ No Universo galileano, ordenado mas sem hierarquia, os fenô­
te os cegos precisam de proteção numa plan ície aberta. E os que são
cegos o que fazem de melhor é ficarem em casa. Mas quem tem olhos
l menos naturais não se explicavam mais pelas qualidades "substanciais"
ou "essenciais" · dos corpos. Não havendo mais a preponderância da

l
corporais e espirituais, que os tome por guia!" "essência", o conceito de lugar própri9 perdia o seu conteúdo. Assis­
E quando se discute ou se estuda algum fenômeno natural, Salviati timos com Galileu a uma democratização do ·espaço. Qualquer coisa
pede aos aristotélicos que " . .. apresentem suas razões e suas provas . . . podia encontrar-se em qualquer lugar.
mas que não se apoiem unicamente em citações ou na autoridade de u m Essa democratização do espaço f(sico é a segunda premissa cosmo­
autor . ..; pois nossas pesquisas têm como objeto o mundo tal como o lógica galileana.
percebem nossos sentidos e não um Universo de papel!". A Terra, em particular, podia ser tratada como qualquer outro
Tendo-se libertado do manto pesado da autoridade e da tradição, planeta: não tinha mais a necessidade ontológica de permanecer no cen­
Galileu estava pronto a empreender a tarefa de construção de uma cos­ tro do Universo.
mologia copernicana. Tendo rejeitado o mito das "essências" e, com ele, o mito dos
"lugares próprios", Galileu viu-se forçado a rever também o conceito
.tradicional de movimento. Recordemos que, na doutrina aristotélica, o
7.7 AS NOVAS PREMISSAS COSMOLÓGICAS ·movimento era um processo transitório que levava um "ser em potência"
para, o seu lugar natural, onde ele se "realizava"; o repouso no lugar
As descobertas astronômicas já ti11ham convencido Galileu de que natural, pelo contrário, era um estado.
a hierarquia "substancial" ou "essencial" de Aristóteles era inexistente. Galileu insistiu primeiro em mostrar que não há diferença essencial
Todo o Universo - visível no telescópio - estava, pensava Galileu, entre repouso e movimento: fez isso de um modo extremamente interes­
sujeito às mesmas regras (às mesmas l�is, diri'amos hoje); conseqüente- sante, no Primeiro Dia do Diálogo, ao mostrar que um corpo que se deixa
128 129
cair adquire de maneira cont/nua todos os "graus" de velocidade a partir
do repouso*. Galileu concluiu que o "grau a partir do qual o móvel inicia
o seu movi mento, é o da extrema lentidão, isto é, do repouso". Já em o
1
1

1 6 1 9, no Discorso dei/e Comete, afirmava que " . . . o movimento . . .


não pode produzir no corpo nem calor nem frio, nem qualquer alteração,
com exceção da mudança de lugar, em resumo, nada mais, como se ele
estivesse imóvel".
Do ·ponto de vista ontológico, estava assim estabelecida a equiva­
lência conceituai entre movimento e repouso e, portanto, a indiferença
de qualquer corpo para com um ou outro desses estados.
E nisto temos a terceira premissa cosmológica de Galileu.
Tinha então, diante dos olhos, um Universo em que os corpos
podiam, indiferentemente, permanecer em repouso em qualquer lugar ou
movimentar-se em qualquer direção. FIGURA 1
A primeira premissa exigia no entanto que ordenasse este Uni- (a) Um corpo cai em queda livre ou sobre um plano inclinado: o movimento é acelerado por·
verso. que o corpo se aproxima da Terra.
(b) Se o corpo for lançado para cima, livremente ou sobre um plano inclinado, o movimento é
retardado, porque o corpo se afasta da Terra.

7.8 A ORDENAÇÃO DO U N I V E RSO PELO MOVIM ENTO


CI RCULAR

Aproveitando a democratização do Universo, Galileu transpôs para do volume 1 1. Deixemos falar Galileu, por exemplo nas "Cartas sobre as
manchas solares".
a escala cósmica os resultados das experiências que efetuava na Terra, no
laboratório. Esse passo, essencial para o futuro da ciência, é de impor­ "Observei que . . . os graves têm inclinação para o movimento de
tância capital. descida, esse movimento sendo executado por eles por meio de uma
Essas experiências são muito simples e dizem respeito ao compor­ propriedade intrínseca e sem necessidade de um motor externo*, todas
tamento dos corpos frente à gravidade. Mas para começar, o que era a as vezes que não se acham impedidos por algum obstáculo.
gravidade para Galileu? Ao contrário . . . esses mesmos corpos têm repugnância pelo movi­
Era um atr:ibuto da matéria, uma força certamente, mas urna força mento de subida, de modo que nunca se movem dessa maneira, a menos
pertencente ao corpo, permanente nele, agindo conseqüentemente do que sejam projetados violentamente por um motor externo.
interior**, e que obrigava o corpo a se movimentar em direcão Finalmente . . . são indif�rentes em relação ao movimento hori­
. ao centro zontal, pelo qual não têm nem inclinação nem repugnância."
da Terra, "centro comum dos graves". O conceito galileano de gravidade
era assim vizinho do conceito copernicano, embora mais evoluído. Mas de que movimento horizontal se está tratando? De um movi­
Partindo dessa base, Galileu observou a queda dos corpos, livre­ mento sobre um plano horizontal? Certamente não. Com efeito, notava
mente ou sobre planos inclinados. Observou também o que acontece Galileu, um plano horizontal, sendo tangente à esfera terrestre em um
quando se projetam corpos para cima (fig. 1 ). Suas observações e suas ponto (fig. 2), tem todos os seus outros pontos mais afastados do centro
conclusões se encontram dispersas em toda a sua obra. Evidentemente, da :re�:ª· � e mo�? que, se colocássemos o corpo no ponto B da fig. 2, ele
. _
elas o levarão à lei da queda dos corpos, que estudaremos no capítulo I teria inclinaçao para descer em direção a A.
Galileu entendia por movimento horizontal um movimento sobre
urna superfície esférica, cujos pontos são equidistantes do centro comum
' Contrariamente à opinião comum (e em parte experimentalmente intuitiva) segundo a qual o dos graves (fig. 3). Portanto, prosseguia ele:
corpo começa a cair com uma velocidade inicial não nula.
' ' O conceito de Galileu ainda está longe do conceito newtoniano da mecânica clássica. em que a
força gravitacional é exercida do exterior (da Terra sobre um ccrpo, por exemplo). * Outra referência à gravidáde. que esclarece ainda mais a posição de Galileu.

130 131
movimento. Assim é que um navio . . . tendo recebido um impulso sobre
um mar tranqüilo, mover-se-ia em torno do nosso globo sem parar, . . . se
todos os obstáculos ou impedimentos pudessem ser removidos".
Com o que precede, Galileu mostrava aos seguidores de Aristóteles
que o movimento circular (uniforme) é tão "natural" - segundo a pró­
pria terminologia aristotélica - quanto o movimento retilíneo para os
corpos de nosso mundo e conseqüentemente também para a Terra e para
os planetas.
Ora, Galileu já se tinha persuadido de que a "ordenação perfeita"
do Universo somente era possível de duas maneiras: pelo repouso ou pelo
movimento circular. Não mais - a distinção é fundamental - por uma
razão estética, como em Aristóteles, mas simplesmente porque o movi­
mento circular era o único que podia conservar sempre semelhante a si
FIGURA 2 mesmo o sistema formado pelos corpos que giram (planetas) e o centro
Sobre um plano horiwntal, um grave não permaneceria "indiferente" ao movimento ou ao em torno do qual giram (o Sol).
repouso. Com efeito. em B ele está mais afastado do centro da Terra que em A. Ele teria portanto
"inclinação" a descer de B para A. Assim é que, no Primeiro Dia do Diálogo, Salviati podia dizer:
"Podemos concluir racionalmente, parece-me, que a condição sufi­
ciente para manter uma ordem perfeita entre as partes do mundo é a de
que os corpos móveis se movam circularmente . . . pois somente o re­
O··· ·· ·· ... pouso e o movimento circular são aptos à conservação da ordem".
Ora, o modelo copernicano era precisamente construído em torno
de movimentos circulares uniformes. Nada se opunha a que Galileu se
sentisse convencido de sua veracidade e pronto a tentar convencer os
outros.

FIGURA 3
Se um corpo pudesse se movimentar �obre uma superf(cie esférica concêntrica com a Terra, o
movimento uma vez iniciado continuaria indefinidamente se não houvesse obstáculos (atritos,
em particular).

" . . . todos os impedimentos tendo sido removidos, um grave colo­


cado sobre uma superfície esférica concêntrica em relação à Terra será
indiferente ao repouso ou ao movimento . . . e permanecerá no estado FIGURA 4
em que tiver sido colocado. Isto é, se colocado em repouso permanecerá O movimento de rotação p;ópria de uma esfera homogênea· (ou de uma roda, ou de c1m disco), é
assim. E se posto em movimento para oeste, por exemplo, manterá esse também um movimento "natural".

132 133
É bem verdade que Galileu tinha observado o movimento de rota­ R ESPOSTA GALILEANA AOS ARGUMENTOS
ção própria do Sol (pelas manchas solares) de modo que, a rigor, o Sol DA PRIMEIRA CATEGORIA
não estava em repouso. Mas tinha também observado que na superfície
da Terra o movimento de rotação de uma esfera em torno de um diâ­ Galileu seguiu praticamente a resposta de Bruno (cap. 6), refor­
metro era um movimento "natural" no sentido de que, uma vez iniciado, çando-a e sistematizando-a.
continuaria indefinidamente (se não houvesse atrito).Seu argumento era Em primeiro lugar, dizia ele no Segundo Dia do Diálogo, um
engenhoso. Consideremos uma esfera homogênea (fig. 4) com um diâ­ movimento não pode alterar as relações mútuas de um conjunto de
metro fixo (eixo). A um elemento A podemos sempre associar outro corpos; desde que todos os corpos do conjunto participem daquele
elemento B, simétrico a A em relação ao eixo. Ora, quando A está movimento.
subindo (com "repugnância"), B está descendo ("com inclinação"). Referia-se de novo ao exemplo de um navio. Um observador ter­
Entende-se que "repugnância" e "inclinação" possam compensar-se, de restre sabe que o navio se movimenta em relacão à Terra. Mas um
modo que, no seu conjunto, a esfera continua girando, "indiferente- observador fechado no interior do navio não te� nenhum meio de sa­
mente". / ber se o navio está em repouso ou em movimento (supondo-se eviden­
O movimento próprio do Sol se enquadrava portanto perfeita­ temente um movimento uniforme sobre um mar tranqüilo). Assim é
mente no esquema. que um objeto largado no navio cairá perpendicularmente ao convés; se
Aliás, o problema era o mesmo para a Terra; o mesmo tipo de largado do alto do mastro cairá a seu pé . . .
argumento convencia Galileu de que, além do seu movimento de trans­ Ora, acrescentava Galileu, uma torre está para a Terra como o
lação circular, a Terra podia ter um movimento de rotação própria em mastro está para o navio. Para Galileu (ver acima á Seção 7 - 8) o
torno de seu eixo: era o movimento diurno do modelo copernicano. movimento circular "horizontal" era um movimento "indiferente" para
No entanto, vimos nos capítulos anteriores que esse mesmo movi­ os corpos e não afetava, pois, em nada, qualquer outro movimento que o
mento , diurno tinha sido, desde Aristarco, um obstáculo a qualquer corpo pudesse ter.
modelo heliocêntrico, pelos argumentos f(sicos contra o qual esbarrava e De modo que, continuava ele, a pedra no alto da torre participa
que ninguém, até então, tinha conseguido derrubar. desse movimento de rotação "indiferente" de todos os corpos (inclusive
Era portanto a vez de Galileu de medir-se com os argumentos a torre) na superfície da Terra. Ao ser largada, vai comportar-se em
contra o movimento diurno. relação à torre como a pedra no navio se comporta em relação ao mas­
tro: cairá ao pé da mesma; nem de um lado nem do outro, mas exata­
mente na vertical do ponto de largada.
7.9 A REFUTAÇÃO DOS ARGUMENTOS CONTRA O que Galileu acabava de enunciar - embora implicitamente -
O MOVIMENTO DIURNO era a conservação do movimento circular em torno do centro da Terra
e está claro que esse mesmo argumento de conservação explicava (para
Apresentemos mais uma vez esses argumentos: pertenciam, basi­ Galileu) o movimento das nuvens, o vôo dos pássaros . . . que acompa­
camente, a duas categorias distintas. nham "naturalmente" o movimento da Terra, junto com o ar no qual
Os da primeira categoria (pedra que cai do alto de uma torre, se movem.
movimentos das nuvens, das aves .. .) baseavam-se no fato (pressuposto)
Veremos logo o que está errado nesse conceito; no entanto, não
de que um corpo terrestre provisoriamente separado do seu suporte
podemos deixar de anotar o progresso efetuado desde Bruno.
(terrestre) não poderia acompanhar a Terra no seu suposto movimento
de rotação, atrasando-se para o oeste. Na análise do problema da queda, Galileu estava duplamente
Ora, nada disso aconteçe: a pedra largada do alto da torre cai ao pé errado: em primeiro lugar, não há conservação do movimento circular.
da torre�e não a oeste) etc .. .. O que Galileu tinha em mente era, provavelmente, uma forma ainda
A segunda categoria pertenciam os efeitos da força "centrífuga": imatura da lei da inércia.
se a Terra girasse em torno de seu eixo, não deixariam de se manifes­ Em segundo lugar, ainda que houvesse conservação do movimen­
tar, "projetando" ao longe todos os objetos soltos na superfície da to circular, Galileu, em princ ípio, teria errado outra vez ac afirmar que
Terra. a pedra cai ao pé da torre.

134 135
1
:os

A \ ele. E é não menos verdadeiro que a razão da pedra cair ao pé da


torre, se não prova a conservação do movimento circular, revela no en­
\
\
\

tanto algo de conceituai mente muito próximo: a lei da· inércia.


\
\
\
B
'e
\

RESPOSTA GALI LEANA AOS ARGUMENTOS DA


SEGUNDA CATEGORIA


Neste caso, Galileu foi menos feliz: faltava-lhe evidentemente
uma dinâmica ainda inexistente. Vejamos rapidamente qual foi sua ati­
pólo sul
tude em relação aos argumentos baseados na força centrífuga.
A primeira observação de Galileu era de que, se um corpo em
movimento circular se solta do vínculo que o mantém nesse movimen­
to, é ao longo da tangente (e não do raio) que o corpo continuará a
I

mover-se. A fig. 6 mostra isso no caso de uma pedra girando na extre­


midç1de de uma corda.

FIGURA 5
A velocidade do cume A da torre é maior que a do pé B. pois A é mais afastado do centro. Em A B e o
conseqüência, aceitando-se a conservação do movimento circular, a pedra cairia em a Leste do
e. 1
pé da torre. 1

\\
A conservação do movimento circular está errada. No entanto é verdade que a pedra, ao cair,
sofre um desvio para Leste (embora muito pequeno, no caso das torres "usuais ").

, , ,.
1 '
1 ' ,.
1 ' ,.

�,.
I I ,'

Com efeito (fig. 5), numa Terra em rotação, o cume A da torre o


(suposta no equador para simplificar), tem uma velocidade maior que o
pé B. Se a pedra largada em A conserva a sua velocidade inicial hori­
zontal, superpondo essa velocidade à velocidade de queda, adianta-se
durante a queda, em relação ao ponto B. Conseqüentemente irá cair a
leste desse ponto* .
FIGURA 6
Embora errada, a resposta aos argumentos da primeira categoria
Uma pedra gira, amarrada na extremidade de uma corda. Seguindo Galileu, diríamos que:
continha, essencialmente, um fundo verdadeiro, que permitiu a Galileu
1. Se a corda quebra no instante em que a pedra passa por A, é ao longo da tangente que a pedra
dar, intuitivamente, uma solução certa numa primeira aproximação. É continua o seu movimento.
perfeitamente correto, do ponto de vista experimental, dizer-se que a 2. O afastamento da pedra em relação à circunferência, muito pequeno no in ício (BE por
pedra cai ao pé da torre, pois o pequeno desvio para leste, previsto exemplo), · cresce mais rapidamente que o espaço percorrido pela pedra. Por exemplo, se
pela teoria certa, não poderia provavelmente ter sido observado por AD = 3AB. DF > 38E.

• Na realidade, é efetivamente isto o que acontece, embora esse "desvio para leste" seja muito
pequeno para alturas de queda de "uma torre". A solução exata do problema é difícil e somente A seguir, Galileu notou que, no início do movimento ao longo
seria dada duzentos anos mais tarde, pelo matemátic<> francês Coriolis. No entanto é curioso
obs.:?rvar que se Galileu tivesse interpretado corretamente a premissa (errada) da conservação do
da tangente, o corpo se afasta muito pouco da trajetória circular _ e 1;s �e
movimento circular, teria tido; no desvio para leste, um argumento positivo a favor do movi­ afastamentó inicial é- tanto menor quanto maior for o raio da traJetoria
mento diurno. (fig. 7).
136 137
CONCLUSÃO

Ao term i n armos esse resumo d a luta de Galileu em prol do


coper n icanismo, muitas perguntas surgem e muitas dúvidas aind a per·
manecem.
Algumas dessas perguntas e dessas dúvidas são estéreis, por serem
merame nte especul ativas; por exemplo, será que os tri n ta a n os de esfor·
ços, de polêm icas, que cul m i nara m n a a ngústia e o medo fin a l, no
processo, co n seguira m co n ve ncer os co ntemporâneos de G a lileu da vali·
dade do coper n icanismo?
O que rea lmente importa é o fato de que, depois de G a lileu,
nenhum dos homens que se sobressa íra m col aborando para o desenvolvi·
men to d a ciência ja mais puseram em dúvida o heliocentrismo.
FIGURA 7 Nesse particular é provável que as descobertas astro n ômicas de
Supondo-se velocidades lineares iguais, um corpo que sairia pela tangente à circunferência maior Galileu te n ha m tido muito mais peso que as su as refutações aos a rgu m en-
permaneceria mais tempo perto da trajetória circular que o que sairia pela tangente à circun· tos contra o movime nto diurno.
ferência menor. Compare os afastamentos AB e CD. a uma mesma distância ao longo das
tangentes. O que a defesa do copern ica n ismo trouxe de positivo para a
elaboracão da F ísica ?
Ora , n otava Ga lileu, a circunferênci a terrestre é tão gra nde que a Em pri meiro lugar: a eclosão do co n ceito de sistem a inerci a i , isto
distânci a e ntre a circu nferênci a e a tangente é a i nda imperceptível a é de um sistem a cujo movi me nto próprio é sem efeito (é "indiferente")
vári as m ilhas do po nto de co ntato. para os movimentos rela tivos dos vários corpos que o compõem. O
1

Isso posto, Galileu fa zi a observa r que para impedir que um corpo exemplo do navio mostra que Galileu se n tiu, fisicamente o q � e er a � m
se a faste ao lo n go de uma ta ngente, n uma trajetóri a circul a r, b asta lhe � , ,
siste ma inerci a i; embora sem en unciar formalmente o prtnc 1 pio cl ass1co
aplicar u ma força que a nule os efeitos da "te ndê n cia centrífuga".
da relativid ade, não pa rece haver dúvidas ter en tendido cl a ramente que
No caso da Terra essa força é evidentemente a gravid ade. um movi mento de tra nslação u n ifor me do conju nto não influe n ci a nos
Até aqui a exposição de Ga lileu está correta , ma s é na conclusãn movimen tos relativos dos corpos con tidos no siste ma, seguindo-se neces·
que vai surgir o erro. sari a mente que nenhuma experiência mecâ n ica co n duzid a no sistem a
Com efeito, ba sea do n o a rgu mento da legenda d a fig. 7 , Ga lileu poderá detectar o seu movi me nto de translação.
atribuía aos pontos d a Terra lineares igu a is (em vez de a ngul a res),· _ . . .
A esse respeito, a ú n ica fa lha conceitu a i de Ga lileu foi ter e nten-
con clui n do que os efeitos centrífugas era m inversamente proporciona is dido que a tra nsl ação do siste ma era uma transl ação_ circ� l ar em tor�o _d a
à d i stâ n ci a a o cen tro! Terra . Sabemos hoje que a definição de um sistema 1 nerc 1 al, em mec�n 1 �a
Ora , dizi a ele, o ra io da Terra é tão grande que esses efeitos são
clássica, é a de um sistema em translação retillnea u n iforme em relaç?� as
muito pequen os, e como a tangente se confunde praticamen te com o
estrelas "fixas". Ma s é difícil culpa r G a lileu por ter pe nsado como f 1 s 1 co,
arco (se mpre n o caso d a Terra), a gravidade é se mpre suficiente pa ra
e portanto não ter podido a bstrair-se d a on ipres�nte gr�vid ade. Para
faze r volta r à superfície um corpo que tenderia a escapar ta n gen cial­
men te. Ga lileu, u m corpo se m g ravid ade era simplesmente 1 m pensa�el. E n ess�s
_
con dicões um movimento i n erci a i retil ín eo é evide ntemente 1 mposs 1 vel
Era dessa man eira que G a lileu refutava o argu men to ptolomaico
· Depois do sistem a in erciai, a co ntribuição ma is importa nte � ue a
dos efeitos centrífugas con tra o movimento d i u rno.
defesa do copernica n ismo trouxe foi o co n c� ito de co:iser�açao do
Embora sej a efetivamen te a gravidade que mantém os objetos na _ _
movimento. M a is um a vez o pensa mento de Galileu nao foi 1nte 1 ra men te
superfície d a Terra , o raciocín io de Galileu - baseado n a di m inuicão
do "efeito cen trífugo" com a distâ ncia - estava substa ncia lme n te errado.
Fa ltava-lhe evide n temen te uma dinâmica correta da rotação, que seria ·
• Não será inútil acrescentar que: a) a rigor, ·-
um mov;,.,ento r.,.i ·neo
,..·1 1 uniforme é impossível;
• • • ª
desenvolvid a mais tarde por Huygens e por Newton. b ) qualquer um de nós aceitaria o navio (ideall de Galileu co�o reforencial inerciai, para
maioria das experiências que surgem. digamos, em um curso de Física básica.

138
139
correto . O seu "princípio de conservação" referia-se a um movimento EPl LOGO
°

circular uniforme em torno da Terra. Mas não há dúvida de que, também


neste ponto, a sua intuição foi surpreendente, pouco importando que as
origens do pensamento galileano se encontrem provavelmente no con-
ceito medieval de impulsão.
A contribuição de Galileu foi decisiva por ter ele entendido que o
movimento uniforme é um estado, indiferenciável conceitualmente do
repouso e que conseqüentemente se perpetua - como o repouso - a
menos que um agente externo venha a perturbá-lo. Nisto está a chave da
"lei da inércia" que os sucessores* de Galileu enunciarão, tanto màis
comodamente porque antes deles, Galileu tinha vivido essa lei, embora
não a tivesse enunciado.
Finalmente, a defesa do copernicanismo implicava na aceitação da
composição de movimentos. A Terra tem um duplo movimento: o de
translação circular em torno do Sol (movimento anual) e o de rotação em
torno do eixo dos pólos (movimento diurno). Esses dois movimentos se
associam, se compõem, cada um deles agindo corno se o outro não
existisse.
Essa composição se introduzia implicitamente no pensamento gali· Ao refutar os argumentos contra o copernicanismo, Galileu tinha
leano ao mesmo tempo que desaparecia o conceito aristotélico do sido levado a esboçar algumas premissas mecânicas novas. Embora ainda
"movimento-processo", cedendo lugar ao do "movimento-estado". A imprecisas, as "leis" enumeradas - conservação do movimento hori­
partir do momento em que Galileu entendeu que o movimento não afeta zontal, composição dos movimentos - foram também utilizadas por
em nada o corpo, que é indiferente à natureza do corpo, em outras Galileu na obra que assinala o início da F ísica dos tempos modernos e na
palavras, que determinado movimento não é específico de determinado qual se encontra a gênese do método científico: os "Discursos sobre duas
corpo**, nada impedia que um mesmo corpo pudesse ter vários movi­ novas Ciências", escritos no retiro de Arcetri, já no final da vida.
mentos simultâneos; esses movimentos não podem se tolher mutua­ Nos "Discursos", Galileu sistematiza o estudo dos fenômenos
mente, já que o corpo, intrinsicamente, os ignora a todos. naturais: esse estudo deixa de lado, finalmente, as conotações medievais,
Gal ileu daria uma demonstração perfeita de como manipular esse para transformar-se numa investigação científica.
princípio de superposição ou de composição, ao tratar do problema dos Sendo extremamente importante que entendamos o mecanismo de
projéteis. base dessa investigação, resumiremos os passos sucessivos que Galileu deu
no estudo dos problemas que escolheu: são os. passos que daremos, no
estudo dos nossos.
Em primeiro lugar, há a observação do fenômeno.
A observação suscita geralmente uma pergunta, que caracteriza a
existência de um problema.
Galileu tem a intuição de que tanto a pergunta como a solução do
problema devem ser elaboradas numa linguagem especial: a linguagem
matemática. É precisamente nisto que reside a chamada "revolução
científica do século XVII".
• Descartes e Newton. Ora, para que o fenômeno estudado possa ser tratad? matematica­
mente é necessário caracterizá-lo por um conjunto de parametros susce­
tíveis de medição: é a chamada construção do modelo f/sico.
. . Como por exemplo, em Aristóteles, o movimento retilíneo para baixo é especifico dos corpos
compostos de terra e água.

140 141

l
Esse modelo deve obedecer, decide o investigador, a certas leis, O grande mérito de Galileu foi ter entendido ou pressentido que a
e/ou teorias, e/ou hipóteses. chave do método científico estava precisamente na passagem abstrata do
O conjunto dessas leis, teorias e hipóteses impostas ao modelo real inicial (observação) para o real final (experiência).
físico permite escrever certas equações e/ou inequações, que constituem Estava assim consumado o corte epistemológico que iria tornar
o modelo matemático do problema, isomorfo do modelo físico. A possível o desenvolvimento da ciência moderna.
solução dessas equações e/ou inequações fornece, no papel, uma resposta
provisória à pergunta inicial e permite geralmente fazer previsões verifi­
cáveis quanto às respostas a outras perguntas P,orventura surgidas no
decorrer da investigação.
No entanto, sendo os modelos - com suas leis, teorias, hipó­
teses . . . - construções humanas, resta saber se a natureza concorda com
a resposta encontrada. H á somente um meio de sabê-lo: voltar à expe­
riência.
A experiência consiste em produzir no (aboratório - quando for
possível - o modelo físico que está sendo testado. Para tanto, o investi­
gador deve evitar introduzir, no modelo real, parâmetros que tinham sido
considerados irrelevantes na elaboração do modelo físico. Esse cuidado é
parte do chamado "controle da experiência". H á porém parâmetros que,
embora indesejáveis, por não pertencerem ao modelo teórico, são inevi­
táveis. A presençà do investigador, com seus instrumentos de J1ledição, é
talvez o exemplo mais comum. O controle correto da experiência consis­
te em minimizar a interferência desses parâmetros nos resultados da
experiência. No entanto, para se poder julgar corretamente quanto à
validade dos resultados, é necessário se conhecer (pelo menos em ordem
de grandeza) a perturbação introduzida neles pelos parâmetros indese­
jáveis. A determinação dessa perturbação é comumente chamada cálculo
de erros.
O resultado da experiência, corretamente interpretado, permitirá
decidir da propriedade ou não dos modelos físicos e matemáticos elabo­
rados, bem como das leis, teorias e hipóteses que tinham sido impostas
pelo investigador.
Tentemos esquematizar o que precede:
r - - ---------------------------------- 1
I I
1-
·

:1 1-1
Leis Teorias Hipóteses
i i i
SOLU '
MODELO F IS I CO :,.����9co
SÔRIA
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M 1
:
L _ - - - - - - - - - - - - - - - - - - ·- - - - - - - _ _ _ _ _ _ .J
PE RGUNTA OU
PROBLEMA EXPERIÊNC I A
'---- - � concorda
ela solução:
OBSERVAÇÃO DO não concorda: problema
FENÓMENO voltar a resolvido

143
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