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Campinas
2019
Chryslen Mayra Barbosa Gonçalves
.
Campinas
2019
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
Agradeço aos meus pais, Ednalva Trindade Barbosa e Silvano Renato Gonçalves, pela luta
diária para que eu possa ter as oportunidades que tenho hoje. À minhas irmãs Isabelly
Chrystiny, Isadora Emanuelly e Gabrielly Louise por serem a grande fortaleza da minha vida.
Agradezco a los achachilas y a las awichas, al Tata Illimani y a la Pachamama por aceptarme
en su mundo.
Agradezco a los Colectivos La Curva del Diablo, Nacionalismo Aymara, Jichha, Tambo
Colectivo Ch’ixi, por los diálogos y materiales para esa investigación.
Agradezco a los amigos Pedro Pachaguaya Yujra, Eliane Pinheiro, Yola Mamani Mamani,
Wilmer Machaca, Magali Vianca, Claudia Condori, Elizabeth Huanca, por la interlocución en
estos meses en tierras andinas.
Agradezco a Silvia Rivera Cusicanqui, Nico Tassi, Abraham Mancilla, Constantino Lima y
Luis Claros por las entrevistas y diálogos.
Agradeço aos amigos e amigas, Jordana Barbosa, Maysa Oliveira, Jaqueline Oliveira, Mayanna
Nunes, Lucas Maciel, Nathália, Marina Sousa, Ralyanara Freire, Julia da Silva, Maiane,
Zacarias Tsambe, Felipe Mattos Johnson – pelo carinho, pelos diálogos e pelos poemas nos
momentos mais obscuros -, Paloma, Evandro, Duvan Escobar e todos os que acompanharam a
minha trajetória. Agradeço à Lunara Galves pela paciência na leitura deste texto.
Agradeço ao Núcleo de Consciência Negra da UNICAMP por existir, por me fazer existir, pela
luta.
ELE NÃO!
“En nuestro território conviven no sólo distintas razas
e lenguas, sino vários niveles históricos... Varias
épocas se enfrentan, se ignoran o se entredevoran
sobre una misma tierra o separadas apenas por unos
kilómetros […] Las épocas viejas nunca desaparecen
completamente y todas las heridas, aún las más
antiguas, manan sangre todavía” – Octavio Paz
Esta dissertação propõe compreender alguns debates acerca dos sujeitos políticos e das
identidades construídas em território andino boliviano, especificamente em diálogo com a etnia
andina Aymara. O objetivo principal desta pesquisa é apresentar alguns discursos identitários
relacionados com vivências de grupos aymaras, neste caso com a família Chambi, com quem
estruturei parte importante das reflexões em torno ao universo em estudo. Procuro relacionar
algumas preocupações anticoloniais com a proposta de Silvia Rivera Cusicanqui, a mestiçagem
ch’ixi, compreendendo suas críticas às teorias da mestiçagem na Bolívia. Partindo pela
descrição dos aportes metodológicos que foram determinantes para a minha entrada ao campo,
apresentam-se algumas especificidades da etnia Aymara e da memória coletiva por meio dos
intelectuais e militantes indianistas e kataristas (movimentos políticos de quéchuas e aymaras).
Para além de uma discussão em torno da proposta teórica de Silvia Rivera Cusicanqui, dialoga-
se também com algumas reflexões que partem da minha participação no curso de Sociología de
la Imagen que a autora leciona no Tambo Colectivo Ch’ixi, localizado na cidade de La Paz. São
apresentadas algumas teorias contemporâneas da mestiçagem na Bolívia, mantendo um debate
entre estas perspectivas, das quais, algumas defendem um viés harmônico e outras sustentam o
conflito como determinante na análise da mestiçagem, e com as perspectivas dos
atores/intelectuais aymaras do campo. Estas narrativas situam-se através de um diálogo com as
preocupações do ch’ixi, que são apresentadas com referências a esta categoria em trabalhos
sobre economias e sobre a estrutura política do Estado Plurinacional da Bolívia, bem como as
suas críticas, vindas da própria academia e dos movimentos políticos aymaras.
Palavras-chave: Mestiçagem; Índios; Antropologia; Bolívia.
.
ABSTRACT
This dissertation proposes to understand some debates about the political subjects and the
identities built in Bolivian Andean territory, specifically in dialogue with the Andean ethnic
group Aymara. The main objective of this research is to present some identity discourses related
to the experience of Aymara groups, in this case with the Chambi family with whom I structured
an important part of the reflections around the universe under study. I try to relate some
anticolonial concerns with the proposal of Silvia Rivera Cusicanqui, the Ch'ixi miscegenation,
including her criticisms of the theories of miscegenation in Bolivia. Starting from the
description of the methodological contributions that were determinant for my entrance to the
field, some specificities of the Aymara ethnicity and of the collective memory are presented
through the intellectuals and militant Indianists and Kataristas (Quechua and Aymara political
movements). In addition to a discussion around the theoretical proposal of Silvia Rivera
Cusicanqui, I also had some reflections on my participation in the course of Sociology of the
Image that the author teaches in the Tambo Colectivo Ch'ixi located in the city of La Paz.
presented some contemporary theories of mestizaje in Bolivia, maintaining a debate between
these perspectives, some of which defend a harmonic bias and others support the conflict as a
determinant in the analysis of mestizaje, and the perspectives of the actors / intellectuals
aymaras of field. These narratives are based on a dialogue with the concerns of the ch'ixi that
are presented with references to this category in works on economies and on the political
structure of the Plurinational State of Bolivia, as well as their critics, coming from the own
academy and of the Aymara political movements.
GLOSSÁRIO..........................................................................................................................19
INTRODUÇÃO......................................................................................................................22
CAPÍTULO I: “KOLLÍVIAS: Territorialidades, identidades, estratégias e perspectivas
político-intelectuais aymaras” ................................................................................................34
Bolívia andina como cenário....................................................................................................34
CHUQUIAWU MARKA e EL ALTO: Migrações, Identidades, Economias.............................43
Contextualização dos aymaras em território boliviano............................................................50
Indianismo e Katarismo............................................................................................................56
Expressões atuais......................................................................................................................63
La Sirena y el Charango………………………………………………………………………………92
La chola Aymara.....................................................................................................................106
Crítica à crítica........................................................................................................................142
CONCLUSÃO.......................................................................................................................154
REFERENCIAIS BIBLIOGRÁFICOS..............................................................................157
ANEXOS................................................................................................................................164
Anexo 1. Certificado de Óbito de António Chambi Huanca, pai de Don Ascencio Chambi
Verástegui, falecido marido de Dona Hilda. (Documento cedido pela família).....................164
Anexo 2. Certificado de Óbito de Fortunato Mamani Huanca, meio-irmão de Don Ascencio
Chambi Verástegui, falecido marido de Dona Hilda. (Documento cedido pela família).......165
Anexo 3. Certificado de Óbito de Margarita Huanca Verástegui, mãe de Don Ascencio Chambi
Verástegui, falecido marido de Dona Hilda Chambi. (Documento cedido pela família).......166
Anexo 4. Certificado de Óbito de Rolando Chambi Mamani, filho do primeiro casamento de
Don Ascencio Chambi Verástegui, falecido marido de Dona Hilda Chambi. (Documento cedido
pela família)............................................................................................................................167
Anexo 5. Certificado de casamento de Antonio Chambi Guanca com Margarita Guanca
Verástegui, pais de Don Ascencio Chambi Verástegui. (Documento cedido pela família)....168
Anexo 6. Diálogos com Silvia Rivera Cusicanqui (08/12/2018)............................................169
1
Evidencio que este Glossário foi construído considerando todas as limitações epistemológicas no exercício da
tradução.
20
Y.
Yatiri: Sábido Aymara, xamã;
22
INTRODUÇÃO
Deste modo, o ch’ixi é a proposta de uma mestiçagem descolonizadora que dialoga com
a epistemologia indígena (em especial a Aymara, que é a língua que dá nome à proposta),
segundo Silvia Rivera, é um exercício de evidenciar o lado indígena que carregamos, em crítica
à construção de uma mestiçagem colonial que pressupõe a superação dos elementos indígenas
do ser mestiço. Em Aymara ch’ixi significa a cor cinza que é manchada por muitos pontos, uma
cor que à distância pode parecer homogênea, mas que ao aproximar-nos podemos perceber que
em sua constituição existem milhares de pontos negros e brancos, nesta lógica, para a autora a
mestiçagem boliviana pode ser vista como fusão à distância, mas se olhamos mais de perto
podemos perceber os pontos (brancos e indígenas) que constituem conflituosamente esta
identidade4.
2
Como proposto pelo meu interlocutor Roger Adan Chambi, utilizo Aymara com maiúscula quando aparecer no
singular, bem como utilizo com a primeira letra minúscula quando aparecer no plural, isso por tratar-se de uma
nação, prática comum entre os integrantes dos movimentos intelectuais e políticos que analiso.
3
Tais movimentos serão analisados detidamente no primeiro capítulo, no entanto, de maneira sucinta, o indianismo
é o movimento tomado como mais radical que aparece nos anos 1960 e toma visibilidade com as obras de Fausto
Reinaga, seu sujeito político é o índio. Já o katarismo é um movimento mais ligado às estruturas estatais, critica
as propostas revolucionárias do indianismo. Existem dois katarismos determinantes nos anos 1980, o primeiro é o
de Genaro Flores e Victor Hugo Cárdenas, mais vinculado ao movimento camponês, e o segundo é o de Fernando
Untoja, perspectiva mais ligada ao liberalismo e que toma o Aymara urbano como foco. Indianismo-katarismo e
Indianismo-tupakatarista são duas subvertentes dos primeiros movimentos que serão desenvolvidas no primeiro
capítulo.
4
Nos primeiros trabalhos de Silvia Rivera onde aparece a categoria ch’ixi, esta não está definida enquanto
identidade, mas como movimento descolonizador. Mais adiante, nos últimos livros da autora, como apresentarei
nesta dissertação, a categoria se aloca em um discurso identitário entre um “ser” ch’ixi e um fazer ch’ixi, chegando
à proposta de um “mundo ch’ixi”.
23
Meu interesse pela categoria ch’ixi surgiu através de leituras das perspectivas pós-
coloniais e decoloniais, leituras dos processos históricos, das produções de conhecimentos, do
acesso aos espaços de enunciação, por meio da categoria “subalterno”5. Silvia Rivera, deste
modo, conceptualiza o ch’ixi com as mesmas preocupações de descolonização das perspectivas
pós-colonial e decolonial, com o objetivo de encontrar um “sujeito descolonizador”, o ch’ixi
assim é lido por Rivera em alguns trabalhos como sujeito, em outros como categoria e em
alguns momentos é categorizado como processo de mestiçagem, compreendendo que, segundo
a autora, não existe uma diferenciação na epistemologia Aymara para o que se pensa e o que se
faz (teoria e prática), sendo portanto uma justaposição de fatores.
Minha proposta, por um lado, consiste em apresentar sucintamente quem são os aymaras
com os quais travei contato em território boliviano, especialmente entre a província Murillo e
Omasuyus (ver Mapa I). Por outro lado, estruturo um diálogo com uma literatura mais
generalizada de antropólogos, historiadores, cientistas sociais e intelectuais que tratam sobre a
aymaridade, indigenistas e indianistas, categorias que também serão diferenciadas no primeiro
capítulo. Compreender a influência desta epistemologia na construção de teorias anticoloniais
é importante justamente porque grande parte dos referenciais dos movimentos de pensamento
críticos supracitados utilizam os processos históricos aymaras, como a revolta de Tupak Katari
em 1781, como exemplificações das potencialidades dos “subalternos”6. Tais utilizações nos
demonstram um rompimento com escalas locais, nacionais e globais, uma vez que processos
históricos e produções de conhecimento construídas em localidades podem ser
instrumentalizadas em propostas críticas do conhecimento científico, deixando em evidência a
concepção de Chakrabarty (2000) de “provincializar Europa”, e de Restrepo (2016) quando
enfatiza que todo conhecimento é localmente produzido, localizado, corporalizado, subjetivado
e construído a partir de processos históricos. Assim sendo, o conhecimento que se propõe como
universal é provincializado em benefício dos diversos conhecimentos subalternizados nos
5
Para os autores do pós-colonial, a ideia de subalterno tem relação com a construção de discursos sobre
determinados sujeitos com a finalidade de construir uma estrutura de dominação sobre eles, um exemplo são as
populações que foram colonizadas nos territórios hoje chamados América, África e Ásia. Segundo Spivak (2010),
os subalternos são “as camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos
mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social
dominante” (SPIVAK, 2010.p.12).
6
Ver MIGNOLO, Walter D. El pensamiento Decolonial: Desprendimiento y Apertura. Un manifiesto in
Grosfoguel; Castro-Gómes. “El Giro Decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del
capitalismo global”. Bogotá: Siglo Veintiuno del Hombre Editores, Instituto Pensar, 2007.
24
processos coloniais, um trabalho que segundo Hofbauer (2009) já vem sendo realizado pela
antropologia ainda que apresente um histórico de aliança com perspectivas colonizatórias7.
Minha pesquisa se volta para a produção de conhecimentos nos andes bolivianos e por
isso, percebe a etnografia como fundamental e indispensável. Tanto a convivência com a
família aymara Chambi e suas redes de relações no período de oito meses8 que estive em
território boliviano, quanto compor o curso de “Sociologia de la Imagem” ministrado por Silvia
Rivera Cusicanqui e o curso de “Etnografía/interlegalidad” ministrado pelo antropólogo
Aymara Pedro Pachaguaya Yujra, ambos no Tambo Colectivo Ch’ixi9, todas essas experiências
me fizeram compreender um pouco mais acerca dos mundos aymaras, da epistemologia
Aymara, das estratégias junto à Jurisdição Indígena do Estado Plurinacional da Bolívia e de
tantos outros aspectos desta população extremamente heterogênea, que pretendo explorar mais
detalhadamente no primeiro capítulo.
Por último, mas não menos importante, utilizo um exercício analítico provocado pela
banca de qualificação, o tempo-presente. A coetaneidade (FABIAN, 1983) me parece
indiscutível na construção de uma análise dialógica, para a epistemologia Aymara que tive
acesso, o tempo presente é caracterizado como akapacha, aqui-ahora, “el espacio tiempo en el
que la sociedad camina por su sienda” (RIVERA CUSICANQUI, 2015. p.211). Construir um
diálogo akapapacha é um movimento de perceber como o tempo pode ser reconstruído
enquanto categoria analítica, para o akapacha o tempo do agora só pode ser pensado em uma
relação de revivamento do passado, que é carregado nas costas do agora, e de uma constante
construção do futuro que não é enunciado, mas é agenciado. Assim, tomar os interlocutores,
militantes e os referenciais históricos e atuais como intelectuais igualmente posicionados na
análise, é um desafio a mais desta pesquisa.
7
HOFBAUER, Andreas. “Entre olhares antropológicos e Perspectivas dos Estudos Culturais e Pós-coloniais:
Consensos e Dissensos no trato das diferenças” – Niterói, n. 27, p. 99-130, 2. sem., 2009.
8
O trabalho de campo aconteceu em duas partes, a primeira de dezembro de 2017 até março de 2018, e a segunda
aconteceu de outubro de 2018 até a primeira semana de fevereiro de 2019.
9
Espaço auto-organizado criado por Silvia Rivera Cusicanqui.
25
MAPA I: Província de Omasuyos e sua posição com relação a La Paz. Disponível em:
https://www.educa.com.bo/geografia/provincia-omasuyos-mapa. Acesso em: 20/01/2019
26
***
O que os autores mais influentes dessa linha expõem é a exigência de um lugar para a
enunciação dos sujeitos que foram subalternizados e silenciados em processos de colonização.
Os autores do pós-colonialismo se atêm a alguns referenciais ocidentais como: Foucault,
Deleuze, Derrida, Gramsci e Marx. No entanto, buscam redimensionar criticamente as ideias
dessas matrizes teóricas, a fim de conceber novas narrativas sobre o Outro. A teoria pós-
colonial constrói análises que buscam abarcar especificidades relacionais de pontos
geográficos menos visibilizados pela “história Oficial”11.
10
A historiografia é aqui entendida por estes autores como uma nova escrita e memória da História
11
O conceito “história Oficial” é lido aqui atrelado ao que Stuart Hall (2010, p. 431): “La hegemonía es una forma
de poder basada en el liderazgo por un grupo en muchos campos de actividad al mismo tiempo, por lo que su
ascendencia demanda un consentimiento amplio y que parezca natural e inevitable.”. Deste modo, a história
Oficial enquanto hegemônica constrói um consenso ao redor da própria narrativa impedindo possíveis
questionamentos.
27
Ina Kerner (2016), por sua vez, desenvolve uma análise do pós-colonial como teoria
crítica global, levando em consideração que a proposta dos autores pós-coloniais é a
transcendência do nacionalismo metodológico. Para isso, a autora apresenta quatro aspectos da
teoria como crítica global:
12
“primeiro, eles [os autores] escapam do nacionalismo metodológico e do eurocentrismo; segundo, eles são auto-
reflexivos e marcados por experiências periféricas e por uma sensibilidade particular às relações globais de poder
que frequentemente levam à críticas dessas mesmas relações e seus efeitos; terceiro, transcendem as fronteiras das
disciplinas acadêmicas e, portanto, são altamente transdisciplinares; e, quarto, eles buscam resistência,
transformação e mudança, de modo que estejam ligados ao debate político e à ação dentro e fora da academia.”.
A partir daqui todas as traduções que aparecem em notas são minhas.
28
Para Grosfoguel, a diferenciação das duas teorias, decolonial e pós-colonial, está nas
oposições binárias discurso/economia e sujeito/estrutura, respectivamente relacionadas ao
pós-colonial e ao decolonial. Essa polaridade seria uma herança do dualismo cartesiano
mente/corpo, que permeia as Ciências Humanas (Grosfoguel, 2007, p.15). Dessa oposição,
Grosfoguel exclui os autores Gayatri Spivak e Immanuel Wallerstein que, segundo ele,
conseguem lidar satisfatoriamente com a justaposição entre fatores culturais e econômicos.
Grosfoguel (2007) considera essa divisão dualista como vulgar, pois conteria, pelo lado
decolonial, um reducionismo econômico e, pelo pós-colonial, um reducionismo culturalista.
Segundo o autor, no decolonial a cultura está entrelaçada à economia-política, não sendo
puramente derivada desta. Para Grosfoguel (2007), por exemplo, a estrutura econômica não se
desvincula de uma base etno-racial de poder 14.
Mignolo (2007) considera que as teorias pós-coloniais têm em suas bases os autores
da teoria crítica (Foucault, Gramsci, Derrida) e as experiências das elites nas ex-colônias.
Neste sentido, para Mignolo (2007), a genealogia dos pós-coloniais é o pós-estruturalismo
francês, diferentemente do decolonial que tem genealogia no próprio período colonial, nos
autores cronistas e nos movimentos indígenas e criollos15. A partir, por exemplo, da
13
“transição do colonialismo moderno à colonialidade global” (GROSFOGUEL, 2007, p.13. tradução minha).
14
Grosfoguel concebia que a estrutura do capitalismo moderno se configurou em bases racistas, sua análise
vincula-se à de Wallerstein em “O capitalismo histórico” (1985), que considera a estruturação do racismo como
uma manutenção da força de trabalho precarizada e “uma ideologia auto-repressora, modelando e elimitando
expectativas” (WALLERSTEIN, 1985. p.67).
15
A categoria criollos nos países falantes do espanhol é direcionada aos descendentes de europeus que nasceram
em território das ex-colônias.
29
cosmologia andina, os decoloniais resgatam cronistas como Waman Poma de Ayala16, como
uma reconfiguração das bases culturais do pensamento, que deixa de ser unicamente greco-
romana e assume traços múltiplos, como os andinos. Assim sendo, a genealogia do
decolonial, segundo Mignolo, é pluriversal, ou seja, proveniente de muitas ontologias.
Enquanto a genealogia dos pós-coloniais está intimamente relacionada ao
neocolonialismo da Ásia e África do século XIX, os decoloniais têm sua genealogia no século
XVI na constituição das colônias ibéricas. Isso configura dois momentos históricos bastante
distintos: o Renascimento e o Iluminismo.
A antropóloga Alison Spedding Pallet (2011)17, constrói uma análise acerca das teorias
anticoloniais em contextos bolivianos, suas influências, seus aportes e, inclusive, seus
equívocos. Spedding examina também, de que modo a antropologia desenvolve críticas à
prática antropológica, as quais dialogam com as preocupações descoloniais, uma extensão da
perspectiva discursiva à antropologia ocorre através da compilação Writing culture de Clifford
e Marcus (1985). Nas palavras da autora:
Subtitulado “La poética y la política de la etnografía”, esta colección juntó a
antropólogos con una crítica literaria y propuso que los textos etnográficos
no deberían ser leídos como descripciones transparentes, que permitían ver a
través de sus palabras para percibir directamente la realidad de los pueblos
y culturas que investigaban, sino como artefactos literarios que creaban el
efecto de realidad de la misma manera que una novela o una piza de teatro.
Lo que hace convincente el texto son los artificios de su redacción, que en el
fondo son formas retóricas aunque suelen disfrazarse con un estilo de
objetividad científica, que elimina la presencia de la o el investigador para
asumir una voz equivalente al narrador omnisciente de la novela
decimonónica clásica, que sabe perfectamente todos los pensamientos y
16
Waman Poma de Ayala, inca cronista, serviu de intérprete para alguns europeus na década de 1590, escreveu
a sua obra “Nueva Crónica y Buen Gobierno” como uma carta ao rei da Espanha no final do século XVI e começo
do século XVII.
17
Nos países espanofônicos o sobrenome que marca no momento das citações é o penúltimo, assim me apropriarei
deste padrão para citar os autores destes países e que escrevem nos mesmos.
30
18
“Com o subtítulo "A Poética e a Política da Etnografia", esta coletânea reuniu antropólogos com uma crítica
literária e propôs que os textos etnográficos não deveriam ser lidos como descrições transparentes, o que lhes
permitia ver através de suas palavras para perceber diretamente a realidade dos povos e culturas que investigaram,
mas como artefatos literários que criaram o efeito da realidade da mesma maneira que um romance ou uma peça
de teatro. O que torna o texto convincente são os artifícios de sua escrita, que são basicamente formas retóricas,
mas muitas vezes disfarçadas com um estilo de objetividade científica, que elimina a presença do pesquisador ou
assume uma voz equivalente ao narrador onisciente da novela clássica do século XIX, que conhece perfeitamente
todos os pensamentos e motivações de seus personagens.”
19
“Se existe uma alternativa à meta-narrativa do capitalismo, aparentemente ela ainda não foi localizada"
20
“redes de dependência econômica fora do controle dos Estados”
21
“Viver das remessas, longe de ajudar a descolonizar, compromete-os mais com o capitalismo dos ex-
colonizadores e com as políticas que favorecem em primeiro lugar o crescimento do norte industrializado”
31
***
Para a construção deste texto estive quatro meses no estado de La Paz, Bolívia, um
primeiro momento entre dezembro de 2017 e março de 2018 e outro período entre outubro de
2018 e fevereiro de 2019. Estive primeiramente em contato com os integrantes do Tambo
Colectivo Ch’ixi, em quermesses de apoio à Terra Indígena Isiboro-Secure (TIPNIS) e durante
o curso de Sociologia de la Imagen. Em um segundo momento, a partir de fevereiro, comecei
um envolvimento mais íntimo com a família Aymara Chambi, fui adotada por eles pela relação
que desenvolvo com um dos integrantes, Roger Chambi. Esta relação me possibilitou
experiências em festividades aymaras e ritos como: queimas de mesas para a Pachamama
(wajtas), velórios aymaras, bem como um envolvimento direto com a economia familiar na
22
“Para mim, ‘descolonizar’ representa a busca de esquemas de pensamento que efetivamente desentronizam o
processo colonial e as categorias resultantes dele, da sua posição central”
32
fabricação de churros nas madrugadas frias dos andes. Compreendo estes sujeitos como
possibilitadores desta pesquisa, uma vez que aprendi aspectos da epistemologia Aymara no
cotidiano, nos diálogos com a mãe, Dona Hilda Chambi, e percebendo a comunicação
estruturada entre os membros da família. Confesso, como investigadora, que os espaços abertos
nos movimentos políticos possibilitados pela minha relação com Roger Chambi, integrante do
Colectivo La Curva, foram extremamente importantes para compreender as críticas construídas
desde outro lado, que não somente o acadêmico, um exemplo disso foi a entrevista com
Constantino Lima, conhecido historicamente como Takir Mamani, um dos fundadores do
indianismo, contato que só tive acesso pela mediação de Roger Chambi.
É importante situar aqui que a minha relação com Roger Chambi é um vínculo afetivo
amoroso, o que auxiliou a minha entrada em alguns espaços não como antropóloga, mas como
parte de uma família. Compreendo que todos os sujeitos enunciadores que produzem
conhecimento em antropologia não o fazem a partir de supostas neutralidades, é sempre um
conhecimento corporalizado, subjetivado, generificado, que me parece a maior riqueza do fazer
antropológico. A contribuição de uma antropóloga negra, como eu, pode aparecer na construção
de sentidos que este corpo e esta subjetividade possibilitam em campo, estar vinculada
afetivamente com o meu interlocutor tornou-se um elemento determinante para produção desta
dissertação. Roger Chambi, além de ser um grande intelectual, político militante e advogado
especializado na Jurisdição Indígena, foi o maestro que me ajudou a ter sensibilidade e
transformar as minhas relações afetivas em possibilidades analíticas deste mundo tão
abigarrado, uma pequena contribuição entre tantas. Este processo de ser afetada (FRAVET-
SAADA, 2005) possibilitou com que eu pudesse sentir em carne própria os mundos que meus
interlocutores, minha família, produziram em relação com a minha presença.
O meu contato com bibliotecas localizadas em La Paz, também foi um elemento muito
importante para o desenvolvimento deste trabalho, visto que me possibilitou o acesso a livros
sobre temas de mestiçagem e descolonização que não estão disponíveis nas redes e tampouco
nas bibliotecas das universidades brasileiras. Um exemplo é a biblioteca geral da Universidad
Mayor de San Andrés (UMSA) e a da Facultad de Ciencias Sociales, no entanto, não foram
somente bibliotecas de instituições, mas também os acervos particulares de antropólogos como
Bernd Fisherman e de indianistas-kataristas como Iván Apaza Calle.
Paz, dentre elas, a entrevista com Luis Claros sobre seu livro “Traumas e ilusiones: el
‘mestizaje’ en el pensamiento boliviano contemporâneo” (2016), a entrevista com o indianista-
katarista Abraham Delgado Mansilla, com os integrantes do Colectivo La Curva e um diálogo
com o antropólogo colombiano Eduardo Restrepo. O diálogo com Silvia Rivera Cusicanqui foi
um momento muito importante para a minha compreensão de sua teoria, e a transcrição deste
está no subitem Anexos. Devido às limitações de uma dissertação em não dar conta da riqueza
de informações apresentadas, está disponível também, em anexo, um dos diálogos que tive a
oportunidade de gravar com a família Chambi, especificamente com Dona Hilda Chambi como
protagonista. Creio não ser capaz de suprir todos os valiosos ensinamentos de Dona Hilda nesta
dissertação, mas acredito que em algum dia, os interessados pelo tema possam limpar a poeira
da capa desta tese ao retirá-la das estantes da biblioteca, e que sejam para si importantes as
palavras dessa grande mulher, sua história lida por ela mesma
34
23
Saia rodada de camadas que usam algumas mulheres aymaras.
24
Tecido aymara usado para carregar crianças e produtos. O awayo é tecido por mulheres aymaras.
25
Segundo Ruy Mauro Marini (1997), esta categoría surge pós 1960-1970 explicando a formação de subcentros
econômicos e políticos de acumulação. Os países de posição subimperial, como o Brasil, passavam a se posicionar
entre o centro (Europa e EUA) e a periferia (os chamados países do terceiro mundo) de maneira intermediária.
26
“Escuta, o que você quer fazer aí?”
35
que a paisagem cruceña me remetesse a alguns cenários pantaneiros do Mato Grosso do Sul27,
o trânsito de sujeitos andinos rompia com as continuidades. Cholas28, homens com ponchos, os
awayos carregados de produtos ou com os bebês e suas bochechas vermelhas, seus olhos
rasgados, alguns adultos com abarcas29 levavam seus q’epis30 com fiambre31 que comiam
sentados em algum canto da rodoviária. Todas essas características me pareciam familiares pela
relação que estabeleci com a literatura andina antes de colocar meu corpo nesta pesquisa.
Evo Morales é eleito presidente da Bolívia nas eleições de 2005 com 54% dos votos,
ainda que com as rejeições dos movimentos autonomistas do Oriente boliviano compostos pelos
Estados de Tarija, Beni, Pando e Santa Cruz de la Sierra33, a chamada Media Luna (ver Mapa
II). Tais movimentos surgem no ímpeto das “Guerra del agua” y “Guerra del Gás” de 2000-
2003, que ocorriam nas terras altas, com uma das pautas para o referendum sobre o futuro das
reservas de gás na Bolívia34, as agendas políticas dos movimentos da Media Luna eram
27
O cenário me parecia familiar especialmente pela quantidade de latifúndios e monoculturas, como a própria cana
de açúcar, demonstrando de que modo a Reforma Agrária de 1953 afetou o território do país de maneira desigual.
28
Mulher Aymara ou Quechua de indumentária de pollera, manta e chapéu
29
Sapatos abertos de couro normalmente utilizados nas zonas rurais.
30
Tecido grosso que envolvem a comida para mantê-la quente.
31
Comida levada em q’epis, normalmente contém produtos andinos como batatas, ovos, chuños, milho e charque
de lhama.
32
Retornarei a esta categoria mais adiante.
33
A divisão geopolítica do Estado Plurinacional da Bolívia conta com Estados (Departamentos), Províncias
(regiões de um Estado que decidem assuntos locais, por exemplo Murillo e Omasuyos), Municípios (La Paz, Santa
Cruz de La Sierra, Cochabamba) e Cantones, Autonomias Indígenas Originario Campesinas (definem o território
ancestral).
34
Em 2000 na cidade de Cochabamba ocorreu a “Guerra da Água”, revolta popular contra a privatização do sistema
de gestão de águas. Em outubro de 2003, estoura uma revolta, especialmente na cidade de El Alto, contra a
36
exportação do gás natural produzido no Estado de Tarija, exportação que ocorreria pelo Chile segundo políticas
do então presidente Gonzálo Sánchez de Lozada. Ambas as revoltas foram construídas em sua maioria por aymaras
e quéchuas urbanos que reforçavam suas identidades políticas nos processos reivindicativos.
35
Assies compreende que os regionalismos que se fortalecem nesse período histórico (2000-2003), começam a
organizar-se ao redor de um padrão étnico (ASSIES, 2006, pp. 87-105)
36
"A nação se surpreendeu diante de diversas imagens onde os adeptos da Nação Camba e da União da Juventude
agrediram uma mulher indefesa que usava a saia e o chapéu típicos dos Andes"
37
“A nação ficou surpreendida frente à diversas imagens nas quais os adeptos da Nação Camba e da União Juvenil
agrediam uma mulher indefesa que levava postos a pollera e o chapéu típico dos Andes” (tradução minha).
38
Não desconsidero a existência de uma heterogeneidade de sujeitos nas terras baixas, inclusive as diversas
populações indígenas que habitam estes territórios (ayoreos, guaranis, mosetenes, yuracares, chiquitanos, dentre
outros).
37
colocadas como as nações39 com maior número de pertencentes autodeclarados. Tal censo de
2012 demonstra uma redução das pessoas que se autodeclaravam indígenas, de 62% a 41%
desde o censo de 2001. Uma das causas possíveis dessa redução se deve ao fato de que o atual
governo de Evo Morales, ao legitimar a existência de 36 povos indígenas na Bolívia,
territorializou o indígena em áreas especialmente rurais. Enquanto no período de 2001, com os
conflitos existentes em contextos urbanos como a cidade de El Alto, localizada em La Paz,
muitos Aymara-urbanos se autodeclaravam aymaras sem desassociar o ser indígena do contexto
urbano em que estavam inseridos. O Censo de 2012 é lido, deste modo, como uma mudança na
auto-afirmação de parte dos 58% do total de habitantes maiores de 15 anos que se declarava
não pertencer a nenhuma das 36 nações.
***
39
A denominação “nação” às populações indígenas do território boliviano, está instituída na Constituição do
Estado Plurinacional da Bolívia como: “Es nación y pueblo indígena originario campesino toda la colectividad
humana que comparta identidad cultural, idioma, tradición histórica, instituciones, territorialidad y cosmovisión,
cuya existencia es anterior a la invasión colonial española.” (Artículo 30, parágrafo I). Desde 2009 a República
da Bolívia foi modificada para Estado Plurinacional da Bolívia, transformando as discussões acerca das populações
indígenas e instituindo o Pacto de Unidad que unificava a figura jurídica de representação como “indígena
originária campesina”.
40
Traduzido do Aymara como “mal de altura”, o soroche é um mal-estar provocado pela altitude dos andes.
38
q’epis, ch’uspas, cholets, ch’ullos, já não eram categorias isoladas de uma paisagem comum,
mas constituíam todo o cenário andino.
TABELA DE COMIDAS
41
Segunda montanha mais alta da Bolívia localizada em La Paz e um dos achachilas (avôs) aymaras.
42
No livro organizado por Alexis Arguelo “No me jodas no te jodo: Crónicas escritas por y para El Alto” (2018),
há uma crônica de Óscar Martinez sobre a história real de um pinguim que foi encontrado na Feira 16 de julio, o
animal estava sendo vendido por um comerciante de animais como “ave exótica” e o preço variava segundo a
preferência do cliente, com ou sem casaco.
43
El Alto é considerada cidade racializada porque é constituída pela migração de aymaras, população que sofre
determinação racial pelo processo de colonização. O termo é utilizado por autores do indianismo como Carlos
Macusaya em seu livro “Desde el sujeto racializado. Consideraciones sobre el pensamento indianista de Fausto
Reinaga” (2014), segundo Macusaya em um diálogo que tivemos, ele retomou este termo de Reinaga,
“racializado” aqui significa o sujeito que passou por um processo de produção de sentidos determinando-o como
pertencente a uma determinada raça, neste caso, a raça índia, esse processo é apropriado pelos indianistas
positivando esta categoria em favor das próprias demandas, Macusaya transforma esta em uma categoria analítica
importante para os estudos das populações aymaras e quéchuas. Avtar Brah (2006) utiliza o termo “racialização”
compreendendo os processos historicamente específicos no qual grupos foram racializados por meio de
significantes distintos da “diferença”, assim para ela, “cada racismo tem sua história particular” (BRAH,
2006.p.444). A minha utilização da palavra “racializada” para definir a cidade de El Alto, tem relação com um
40
desde as zonas mais elitizadas de La Paz, construiu-se a ideia desdenhosa de cholets como o
chalet do cholo44, o que foi tomado pelos sujeitos alteños de maneira afirmativa, os cholets hoje
são as construções arquitetônicas andinas mais conhecidas e mais utilizadas para as diversas
festividades que permeiam os costumes aymaras. Uma característica estética dos cholets é a
utilização de símbolos tiawanacotas45, como a chakana - cruz andina encontrada nas ruínas de
Tiwanaku -, isso aliados a uma imensa quantidade de cores, pilares, lustres, luzes florescentes,
azulejos46 e imagens ligadas às propagandas e consumo.
Foto II: Cholet, evento de formatura de um dos irmãos Chambi (Foto minha) 47
diálogo desenvolvido junto aos grupos indianistas e kataristas, e à minha compreensão de que o termo é a categoria
analítica que melhor define os processos aqui analisados.
44
Categoria de mestiçagem construída de forma ofensiva para significar os migrantes rurais racializados.
45
Tiwanaku é um sítio arqueológico de uma civilização andina localizado às margens do lago Titicaca.
46
Os atuais cholets chegam a representar desenhos dos Transformers e demais símbolos da “cultura ocidental”.
47
Não é banal a minha posição quando tirei esta foto, porque estava localizada no espaço determinado para a
família Chambi, como convidada. Do mesmo modo, as demais famílias tiveram seus espaços delimitados no andar
superior entre os pilares, como é possível ver na imagem.
41
Percebi desde as primeiras relações com a família Chambi que quanto mais comida te
oferecem melhor é a sua relação com quem oferece. Este foi um dos meus maiores desafios,
tanto a comida, quanto a bebida (em geral a cerveja se toma em um só gole), são meios de
demonstração de carinho, muitas vezes também podem representar um determinado status
social em casos, por exemplo, de comemorações como: casamentos, morenadas e formaturas.
48
“Para que não adoeça, para que esteja bem no caminho, tem que saudar sempre a avó: ‘Boa tarde, avozinha’,
tem que dizer”
49
“A batata vai chorar, não tem que jogar fora a batata. Ela não vai produzir mais!”
42
castigar”50, fiquei sem reação, agarrei a bacia das mãos de Dona Hilda que tratava de secar os
pés e me desculpei, com ela e com a água.
Em muitas relações que estabeleci com a família Chambi, me invitaron51 muita comida
e muita bebida. A comida em geral continha uma imensidade de tipos de batatas, em especial o
ch’uño, que é o alimento mais importante da gastronomia Aymara. Quando me ofereciam
cerveja, havia o costume da ch’alla, que consiste em despejar uma pequena quantidade da
bebida no solo como oferenda à Pachamama52.
50
"Não tire sarro da água, ela pode te castigar”
51
Relativo a “convidar”, “oferecer”, palavra muito usada em situações de festividades.
52
Madre Tierra, divindade Aymara.
53
O começo da minha afetação com os Chambi, no sentido de me tornar parte da família, não está claro nas notas
de campo, tampouco nas minhas lembranças. Até hoje, a afetação acontece em alguns momentos e é questionada
em outros, as relações entre familiaridades e estranhamentos são linhas tênues, em momentos sou a yerna de
Achacachi e em outros sou la brasileira.
54
Música boliviana presente em todas as comemorações populares.
43
Essa relação conflituosa com a língua, foi um grande obstáculo para o estabelecimento
de diálogos com os interlocutores/possibilitadores desta pesquisa, o que foi sendo amenizado
através da paciência e pedagogia de Dona Hilda Chambi nas muitas conversas que tivemos
quando cozinhávamos, enuqanto trabalhávamos na produção de churros - o que mantêm a
economia da família - e quando assistíamos às novelas colombianas e turcas55 nos fins de tarde.
55
Pelo fato de não haver uma produção de telenovelas bolivianas, o consumo de novelas brasileiras, mexicanas,
colombianas e turcas é muito comum.
56
Pueblos aqui não tem necessariamente o mesmo significado que “povos” ou “populações”, uma vez que se trata
de uma territorialidade, não somente de identificação, mas de um espaço geográfico.
57
A dança retomada por Sanjinés acontecia na província de Omasuyus, com o objetivo de melhorar as colheitas,
um dos habitantes oferecia sua vida em benefício da comunidade. A roupa utilizada para o culto pode ser vista no
Museo de Etnografía y Folklore em La Paz, é certamente um dos elementos mais ostentosos da exposição de
máscaras.
44
Xavier Albó (1987) defende que esse sujeito Aymara que se constitui em espaços
urbanos pela migração, carrega os “ejes de permanencia”, ou seja, costumes que o vinculam
com os aymaras rurais, dentre eles, as festas, ritos tradicionais, feiras e mercados, e sobretudo
a medicina tradicional59. Pensando na heterogeneidade interna dos aymaras que o trabalho de
campo me possibilitou perceber, tampouco é possível pensar o Aymara urbano como um
apêndice do Aymara rural, existe uma ressemantização de muitas práticas no contexto urbano,
bem como a formação de novas relações econômicas, sociais e políticas, que caracterizam o
Aymara urbano. Segundo Antezana (1993), o que determina esse sujeito urbano são os
58
Mais informações em Mamani, Pablo Ramirez. “El rugir de la multitud: levantamiento de la ciudad Aymara de
El Alto y caída del gobierno de Sánchez de Lozada” (2004). Para o autor, os sucessos de outubro de 2003,
denominado Octubre Negro, mostraram o topo máximo da inconformidade da população racializada com o
sistema de governo neoliberal. O pedido era gás para todos os bolivianos e não para a exportação, além de uma
assembleia constituinte para reformular a estrutura do Estado, onde as maiorias, populações indígenas rurais e
urbanas não fossem mais sujeitos de exclusão. Octubre Negro foi, para o autor, um cenário onde a população
indígena mostrou para as elites dominantes da Bolívia que não era possível pensar o país sem a participação das
comunidades camponesas, originárias e dos indígenas que compunham a cidade. A efetividade mesma das
mobilizações deu-se pelas estratégias de bloqueios e marchas, nas quais, as Juntas Vecinales de El Alto
mobilizavam símbolos e recursos aymaras para articular e ativar um bloco hegemônico, dentre os símbolos
mobilizados estavam a whipala, a folha de coca e personagens históricos da memória coletiva como Tupac Katari
e Bartolina Sisa.
59
A categoria tradicional está em suspensão, não significando uma condição fixa, mas práticas comuns que
permanecem historicamente, ainda que por meio de transformações.
45
60
Denominativo em Aymara para referir-se às pessoas que vivem comodamente, tanto no âmbito material quanto
espiritual.
61
Esta negação não se trata, necessariamente, de uma negação discursiva, mas de um silêncio acerca da própria
identificação, o filho em questão evitava falar sobre o assunto.
62
Morenada é uma dança Aymara proveniente dos Yungas e da região andina de Taraco.
63
Tipo de intercâmbio como reciprocidade estrita, voltarei a falar sobre isso mais adiante.
46
comunidade, bem como suas criações de lhamas, paisagem capturada por mim enquanto
caminhava pelas montanhas.
FOTO 3. Família Chambi minutos antes de apresentar-nos para a comunidade de Ch’ojñapata (Foto minha)
***
Félix Patzi (2009) analisa como as práticas econômicas aymaras podem auxiliar no
desenvolvimento de um sistema comunitário contrário às determinações individualistas do
capitalismo, em suas palavras: “el sistema indígena se erige como un modelo antagónico a la
64
"Além disso, 4 em cada 5 indígenas trabalham no setor terciário da economia, que é de 76%, sendo o comércio
o ramo mais importante (26%)".
65
“A chola representa, em síntese, uma permanente dicotomia e confrontação que reflete sua localização
intermediária entre dois mundos em constante inter-relação."
48
Ainda que Patzi defenda que o sistema indígena tem sua base comunal, o autor analisa
a heterogeneidade dos aymaras, incluindo os qamiris urbanos que, segundo ele,
refuncionalizaram as práticas recíprocas dos aymaras em benefício próprio:
66
"O sistema indígena se ergue como um modelo antagônico à lógica capitalista”
67
Espaços sagrados que em castelhano pode ser traduzido como “abuelos”. É importante sublinhar que para os
Aymaras os espaços também são sujeitos, como evidenciado anteriormente em um dos diálogos com Roger
Chambi, sendo assim as denominações em aymara de palavras que significam avôs, avós e pais para montanhas e
demais espaços é uma constante.
68
“Com tudo isso se consolidou a exploração de aymara à aymara, que obviamente é uma relação social alheia à
cultura indígena, mas é uma relação social contemporânea dentro da sociedade indígena. Por essas simples razões,
não podemos ver os povos indígenas como uma identidade única e unitária.”
69
Juntas Vecinales são organizações de vizinhos de uma determinada zona ou vila.
49
Para Xavier Albó, deste modo, é a própria desconfiança que gera o comunitarismo, sendo uma
justaposição sincronizada de individualismos, o que pode estabelecer alguns diálogos com a
perspectiva de Untoja.
Outro livro que nos dá luz às questões acerca da economia Aymara é “KAWSACHUN
COCA: Economía campesina cocalera en los Yungas y el Chapare” (2005) de Alison Spedding
Pallet. A autora estrutura um rechaço às metanarrativas neoclássicas da economia política que
analisam a produção e rentabilidade da terra, apresentando como é tecida a racionalidade
econômica dos aymaras camponeses produtores de coca dos Yungas e Chapare boliviano.
Spedding mostra como a produção nestes espaços tem o ayni como base, afastando-se das
perspectivas de “força de trabalho” como parte de uma medição concreta da categoria valor. O
objetivo principal do trabalho desses produtores é a manutenção da família, segundo a autora
70
Os manuscritos deste livro desapareceram durante o golpe ditatorial de García Meza (1980-1981) e só foram
publicados três anos depois.
71
Às vezes o egoísmo e a desconfiança se manifestam mais vividamente precisamente nas mesmas ocasiões de
comunitarismo observadas até agora. Talvez não seja pura chance que a mesma raiz ayni, que designa a forma
mais conhecida de ajuda mútua, também seja usada para formar um verbo que significa "discutir".
50
um dos exemplos históricos utilizados, é que ainda em processos de depressão do preço da coca
(como nos anos 80), não deixaram de produzi-la e não modificaram para plantações mais
rentáveis, uma vez que o Estado não intervinha no desenvolvimento de políticas como a compra
de excedentes, em épocas de depressão a coca lhes parecia uma opção mais rentável a largo
prazo. Neste sentido, para Spedding a relação dos aymaras com a produção da folha de coca
não pode ser analisada de maneira romântica, mas compreendendo a entrada mesma destes
sujeitos no Mercado.
No prólogo de Franklin Pease, ao livro “Nueva Crónica y Buen Gobierno” escrito pelo
cronista Waman Poma de Ayala (1980 [1615]), há uma explicação didática sobre a repartição
do Tawantinsuyu - conhecido como Império Inca, que em Quéchua e Aymara significa Cuatro
cuartos del Mundo – no Diagrama em anexo pode-se perceber as quatro partes Chinchasuyu ao
norte, Collasuyu ao Sul, Antisuyu à leste e Constisuyu à oeste. Collasuyu representa o território
andino ao que depois denominou-se Bolívia, por esse motivo sua população é conhecida como
Kollas72. As partes do Tawantinsuyu estavam divididas entre hanan e urin, acima e abaixo, não
só o território geral, mas também os próprios suyus eram divididos entre partes hanan e urin,
segundo Isabel Yaya (2013), as partes de cima possuíam funções mais prestigiosas do que as
debaixo. A determinação territorial também tinha relação com processos distintos de
administração política do Tawantinsuyu, as partes de cima fazem relação aos incas que
expandiram o território por meio de conquistas, como o conhecido Inca Yupanqui, Pachacuti.
Por outro lado, a parte urin tem relação com os primeiros incas, com menores políticas
expansionistas: Manco Capac, Sinchi Roca e Lluqui Yupanqui.
72
A utilização de algumas letras faz parte da castellhnização de palavras em Aymara, como a letra “c” em
Kollasuyu.
51
Uma das revoltas mais importantes vigente no imaginário dos movimentos políticos
aymaras é a Revolta de Tupak Katari e Bartolina Sisa em 1781, especialmente os dois cercos à
cidade de La Paz. Ambos ficaram conhecidos por lutar contra o Império Espanhol em Alto Perú
(posteriormente Bolívia), criticando os tributos indígenas e as formas de trabalho aplicadas aos
indígenas, a mit’a e encomienda. Julián Apaza, nascido na localidade de Ayoayo, adotou o nome
de representantes de duas grandes rebeliões que ocorriam na colônia no mesmo período, Tupac
Amaru II em Cusco75 e Tomás Katari em Chayanta76. Acompanhado por sua esposa Aymara
Bartolina Sisa e por seu exército, estruturaram um primeiro cerco à cidade de La Paz em 13 de
março de 1781, com duração de 109 dias, os objetivos do cerco eram impedir o abastecimento
à cidade de La Paz pressionando um dos territórios mais importantes de Alto Perú em favor de
suas demandas, para isso duas tropas se posicionaram em dois lugares estratégicos: a Ceja de
El Alto e Pampajasi. Com a entrada do exército de Ignacio Flores77, o exército de Tupak Katari
recuou e se dirigiu à tomada da comunidade de Sorata.
73
Conflito entre Bolívia e Paraguai pelo território do Chaco.
74
Desenvolvida mais adiante.
75
Tupac Amaru II ou José Gabriel Condorcanqui foi um líder quéchua que construiu uma rebelião em 1781 contra
a exploração indígena pela colônia do Peru.
76
Tomás Katari foi um quéchua que liderou uma rebelião contra os tributos indígenas em 1781 na província de
Chayanta, Potosí.
77
Liderança das tropas que representavam a Audiência de Charkas.
53
1781, suas últimas palavras são rememoradas nos movimentos aymaras atuais como promessa
de redenção: “A mi solo me matará, pero mañana volveré y seré millones” 78.
Segundo Sinclair Thomson (2010), Tupak Katari era diferenciado de Tupac Amaru nos
estudos históricos por parecer mais radical, era também analfabeto e não falava castelhano,
tampouco se envolvia nos círculos das elites mestiças e espanholas como Condorcanqui (Tupac
Amaru). Nas palavras do autor:
Quizás como una forma de evitar la incómoda conclusión de que 1781 fue
escenario de una guerra de razas, diversos autores la han considerado en
última instancia como una cuestión de ‘el campo contra la ciudad’. No debe
sorprendernos que estos trabajos no exploren profundamente las perspectivas
indígenas, ni nos brinden una mejor comprensión de la figura de Tupaj
Katari. El líder aymara es evocado en ellos en forma más bien retórica o
descolorida, mayormente como un caudillo audaz y astuto. En conjunto, esta
literatura nos ofrece una imagen poderosa de la irresuelta confrontación y el
trauma social vigentes, aunque no explota sus raíces ni busca explicarlas.
(THOMSON, 2010, p.252)79
Zárate Willka, em 1899, se torna uma grande representação histórica com proposta de
liberação dos aymaras, estrutura um levante militar Aymara no Altiplano e nos valles. Ao
perceber a potência do poderio militar de Willka, o federalista José Manuel Pando lhe propõe
a devolução das terras pertencentes aos aymaras se este se integrasse ao exército Federalista
contra o governo conservador80. No livro “KOLLASUYO: História indígena de la República de
Bolívia”, Manuel Sarkisyanz desnuda os objetivos dessa proposta de aliança:
78
“Só me matará, mas amanhã eu voltarei e serei milhões”
79
“Talvez, como forma de evitar a desconfortável conclusão de que o ano de 1781 foi palco de uma guerra de
raças, vários autores o consideraram como uma questão de "campo contra a cidade". Não deveria nos surpreender
que essas obras não explorem profundamente as perspectivas indígenas, nem nos dêem uma melhor compreensão
da figura de Tupaj Katari. O líder aymara é evocado neles de uma maneira bastante retórica ou descolorida,
principalmente como um líder ousado e astuto. Em geral, essa literatura nos oferece uma imagem poderosa do
atual confronto não resolvido e do trauma social, embora não explore suas raízes ou procure explicá-las.”
80
Em 1898, o exército federalista de Pando enfrentava o governo conservador da República, representado pelo
presidente Severo Fernández Alonso que governava a Bolívia por 20 anos, os conservadores mantinham a capital
na cidade de Sucre, enquanto os federalistas queriam transferir à La Paz.
54
Outra característica evidenciada pelo autor, é que parte substancial dos indígenas que
compunham o exército eram privados de armamentos82, tendo que lançar-se de maneira suicida
em “avalanchas humanas” contra o exército inimigo (SARKINSYANZ, 2013, p.102), o
número de perdas provenientes do exército indígena foi imensurável.
Com a vitória das tropas de Pando e sua ascensão como presidente, tem início o
desenvolvimento de rebeliões de aymaras contra latifundiários, exigindo a devolução de suas
terras. Cria-se uma ambivalência em relação às promessas de Pando aos indígenas, em um dos
processos penais mais conhecidos da história boliviana, os aymaras responsáveis pelos
assassinatos no Processo de Mohoza são condenados, enquanto os não-indígenas responsáveis
por mortes aymaras e por saques das comunidades não são citados. Zárate Willka é absolvido
neste tribunal e vai ao encontro de Pando para cobrar as promessas da aliança. Nas palavras de
Sarkisyanz:
Tal vez Zárate, el Willka, después de haber caído preso nuevamente, fuera
abaleado por encargo de los gobernantes “en la fuga”, en un momento no
claro. Lo que sí se sabe a ciencia cierta, es que una parte de su tierra, en el
81
“Correspondendo à expansão da guerra civil, a guerra indígena também se expandiu, e com ela a desmoralização
das tropas do governo, e assim também o medo da população da cidade aos rebeldes. Pando recebeu em 16 de
março de 1899 um conselho confidencial: 'Devemos usar as bandas de índios para tudo; depois eu vou te mostrar
o caminho para se livrar deles '”
82
“Las armas de los aymaras consistían casi únicamente de hondas, mazas y lanzas, reforzadas acústicamente
por los pututus.” (SARKISYANS, 2013.p.102)
55
A imagem de Zárate Willka seria retomada pela memória dos aymaras em movimentos
posteriores tanto quanto a imagem traidora de Pando.
Em 1956, uma figura importante para a história Aymara aparece no cenário político,
Laureano Machaca. Proveniente de La Paz, Machaca se autoproclama presidente da república
Aymara. Segundo Sarkisyanz, Laureano Machaca foi secretário da Federação de Camponeses
na província Camacho, muitos dos indígenas desta província se concentraram em torno a essa
figura, que viria a gerar propostas de um retorno ao Tawantinsuyu. Após a Revolução Nacional
de 1952, muitos índigenas foram armados, esse armamento foi usado em favor do projeto de
república Aymara proclamado por Laureano Machaca, removendo dos seus postos as
autoridades locais. Suas tropas começaram então a ocupar outras comunidades com
expectativas de um retorno à estrutura incaica. Em 21 de outubro de 1956, Laureano Machaca
foi ferido de morte pela traição de aymaras leais ao governo, pertencentes ao povoado de
Escoma. Os últimos momentos de Laureano Machaca são rememorados em Sarkisyanz de
maneira poética:
A categoria analítica “guerra de raças”, é o que tece relação entre os três momentos
históricos, Tupak Katari, Zárate Willka e Laureano Machaca estruturaram projetos de reação à
subalternização histórica sofrida pelos aymaras. Finalmente, a ânsia de modificação de status
83
“Talvez Zárate, o Willka, depois de ter caído prisioneiro novamente, foi baleado em nome dos governantes "em
fuga", em um momento pouco claro. O que se sabe ao certo é que uma parte de sua terra, no ayllu La Rivera,
chegou precisamente às mãos do Comandante General Pando via venda.”
84
“Dizem que em seus últimos momentos ele implorou às divindades Pachamama e Wiracocha que reduzissem o
status dos brancos ao dos índios. Supostamente, os aymaras hostis ofereceram o "presidente" Laureano Machaca
como um sacrifício humano para alcançar a libertação: seu sangue se estenderia aos quatro pontos cardeais para
fertilizar a Pachamama, enquanto sua carne teria sido consumida.”
56
entre brancos e índios demonstra um conflito racial atravessado por um orgullo herido Aymara,
como observa Roger Chambi.
Indianismo e katarismo
Os movimentos políticos e intelectuais aymaras têm uma relação muito importante com
alguns teóricos que acedem a espaços privilegiados e começam a questionar as estruturas
sociais. Um dos mais conhecidos é Fausto Reinaga, caracterizado por alguns militantes como
o fundador do movimento indianista. No entanto, existem rompimentos com a perspectiva de
Reinaga, e a construção de uma proposta katarista vai em direção à um sujeito distinto, como
propõe Ivan Apaza Calle85. De ambos movimentos surgiria a proposta de um “Nacionalismo
Aymara”, pensado de maneira teleológica por alguns integrantes desta linha, mas também
criticado por autores/militantes do indianismo. A importância de desenvolver acerca de tais
movimentos se dá pela influência que estes têm sobre muitos intelectuais da descolonização,
como Silvia Rivera Cusicanqui, que é elemento central na análise deste trabalho.
Fausto Reinaga Chavarría (1906-1994), deve ser lido a partir dos seus diferentes
momentos na teoria social, segundo Chambi y Gonçalves (2018), é necessário enfatizar seus
diversos avatares na sociedade boliviana, suas distintas fases. Reinaga é natural da comunidade
Aymara-quéchua de Huahuamikala, Potosí. Aproxima-se de leituras marxistas a partir de sua
formação em Direito na Universidad Mayor y Pontífice San Francisco Xavier de Chuquisaca.
Com o desenvolvimento de trabalhos junto à perspectiva marxista boliviana nos anos 1950,
Reinaga sofre uma frustração86 com as saídas políticas comunistas e dá início à suas análises
que vão impulsionar o movimento indianista. É na sede do governo em La Paz, que Reinaga
planteia suas ideias acerca da categoria “índio” como sujeito da liberação, além de considerar
a Bolívia uma nação fictícia, construída sobre “duas Bolívias”, uma Bolívia indígena e uma
Bolívia blanco-mestiza87 (CHAMBI; GONÇALVES, 2018.p.183).
Seus dois trabalhos mais importantes que enfatizam o projeto indianista são: “La
Revolución Índia” (1970) e “La Tesis Índia” (1971). Segundo Ayar Quispe (2011), a categoria
85
Militante do Colectivo La Curva del Diablo.
86
Dentre as frustrações de Reinaga está o afastamento que o movimento marxista cria em relação aos indígenas,
buscando seu “sujeito revolucionário” através da categoria “proletários”, categoria complexa em contexto
boliviano (REINAGA, 1971).
87
Essa elite é nomeada pelos indianistas como q’aras, palavra em Aymara que significa desnudo, pessoa que não
possui nada, ladrão. Foi a denominação dada aos espanhóis no processo de invasão colonial ao Tawantinsuyu.
57
índio é retomada por Reinaga a partir da relação intelectual que este estabelece com a peruana
Domitilia Quispe e sua máxima: “Si con el nombre de índio nos oprimieron con el nombre de
índio nos vamos a liberar”88 (QUISPE, 2011, p.18). A categoria “índio” é englobante, no
discurso reinaguista, aos oprimidos do sistema colonial. Outros autores, como Constantino
Lima e Luciano Tapia são, também, representantes da fundação do movimento indianista, junto
a Reinaga. No entanto, segundo Escarzaga (2016), a teoria de Reinaga está menos afundada na
amnésia social boliviana justamente pela materialização de suas ideias em forma de livros e
pela difusão de suas obras. O índio é, assim, um sujeito racializado que através do indianismo
busca sua liberação da opressão colonial. Por seu processo junto ao movimento marxista
boliviano, especialmente o MNR (Movimiento Nacionalista Revolucionário)89, Reinaga chega
à conclusão, de que nem a esquerda boliviana dá conta de suplantar as condições coloniais a
partir das quais os índios foram subalternizados.
88
"Se com o nome de Índio nos oprimem com o nome de Índio vamos nos libertar”
89
No contexto da Revolução de 1952, o MNR modifica a categoria índio por camponês, essa foi uma tentativa,
segundo Reinaga, de modificar uma condição de racialização para uma condição de classe, invisibilizando os
processos coloniais sobre os índios. Em um diálogo com Roger Chambi, ele explica que os aymaras politizados
utilizam a categoria raça porque a categoria etnia foi acionada pelos discursos multiculturais dos anos 1990 como
categoria política (e não necessariamente analítica, como utiliza a antropologia), etnia no seu uso político denotava
grupos reduzidos e em extinção. A ideia de nação Aymara ganha força nos conflitos a partir dos anos 2000,
abarcando, segundo Roger Chambi, classe e raça, bem como as mudanças possíveis nos processos de migração.
90
Segundo Silvia Rivera Cusicanqui (1995), os aymaras fizeram uma modificação nesta trilogia moral
acrescentando Ama llunk’u, do aymara “não seja servo”.
91
"Para saber o que é o índio, você tem que ser índio, porque aquele que é apenas 'culturalmente' índio só pode
revelar o índio. Mas quem é índio de carne, coração, cosmos e raça, não apenas 'revela' o índio, mas também rebela
o índio! "
58
92
"Precisamos tirar Cristo e Marx do cérebro do índio!"
93
“Eu também, como Górgias, quando o último momento chegar, vou levantar a última taça da minha vida, uma
taça borbulhante de vinho Inka; 'líquido de sol e luz coalhada', por aquele índio amauta que depois de minha morte,
dê o primeiro passo adiante, daquele índio que depois de minha morte, supere-me em consciência, pensamento,
paixão, ação, para construir sobre o entulho desta comunidade boliviana, uma refulgente sociedade do Terceiro
Mundo”
94
Ayar Quispe, filho de Felipe Quispe Huanca, foi assassinado no ano de 2015, seu pai, militante do Ejército
Guerrillero Tupak Katari, denuncia o Estado Boliviano como responsável pelo assassinato de Ayar.
59
Constantino me explica que esta tem uma função especificamente contestatária, em suas (fortes)
palavras: “Índio significa mierda, ya... entonces vamos a ser índios, vamos a agarrar la mierda
y al blanco lo vamos a hechar!”95. A ideia de contestatária, é assim, uma apropriação da
categoria à qual foram encerrados os sujeitos aymaras e quéchuas, em benefício dos interesses
destes mesmos sujeitos, o “hechar mierda” tem uma conotação de ressemantizar os símbolos
coloniais e tomá-los como elementos de luta anticolonial.
95
"Índio significa merda ... então vamos ser índios, vamos pegar a merda e vamos jogar no alvo!".
96
"Eu o vi como um índio, até por causa de seu nariz aquilino como o meu!"
60
por lutar como índio, relata. Descrevo um fragmento de uma das músicas sobre seu caminho
entre Lima e Pacajes:
Pachamama, ya estoy de vuelta; Pachamama, por tu camino; Ciudad de
Piedra, vengo a pedirte refugio, a tus cuidados, a tu protección; Vengo, ya
estoy, de tus senos voy lactar; Caminando voy por todo el mundo; ya estoy
viejo antes de tiempo de tanto pensar; Porque soy indio rebelde que no acepto
derecha e izquierda; levantemos estos puños y los q’aras temblaran,
temblaran; Perseguido soy por todo el mundo; torturado soy por estos q’aras
y felipillos97, porque soy indio rebelde, que voy a lucha hasta aplastar;
castigando al verdugo obligando a escapar. (Entrevista, 11 de setembro98 de
2018)99
97
Felipillo foi um nativo que guiou Francisco Pizarro até o Tawantinsuyo, Constantino Lima faz referência aos
indígenas que se aliam aos interesses dos mestiços contra os interesses dos seus pares.
98
Esta entrevista foi realizada no período em que viajei à Bolívia para um evento da CLACSO, por casualidade
tive esta grande oportunidade.
99
“Pachamama, estou de volta; Pachamama, pelo seu caminho; Cidade de Pedra, venho pedir refúgio, ao seu
cuidado, à sua proteção; Eu venho, eu já estou, de seus seios vou amamentar; Andando eu atravesso o mundo todo;
Eu já sou velho antes do tempo de tanto pensar; Porque sou um índio rebelde que não aceita a direita e a esquerda;
levantemos esses punhos e os q'aras tremerão; Eu sou perseguido em todo o mundo; torturado sou por estes q'aras
e felipillos, porque sou um índio rebelde, que vou lutar até esmagar; punindo o carrasco forçando a sua fuga.”
61
100
Katarismo é um termo proveniente da palavra Katari que em Aymara significa “serpente”, alguns movimentos
kataristas fazem referência direta à Tupak Katari.
101
UNTOJA Fernando, “Katarismo y Poder kolla, propuesta ideológica y política”, 2016, en: grupo-
minka.blogspot.com
62
As ideias de memória longa e memória curta citadas pelo autor, tem relação
respectivamente com os processos de lutas anticoloniais, como o cerco de Tupak Katari, e dos
sucessos da Revolução de 1952. O katarismo de Genaro Flores tem início após os processos de
1952, e, segundo Ticona, é influenciado diretamente por este período.
Em 1964, a Bolívia sofreu um golpe militar. René Barrientos criou o pacto militar-
campesino para domesticar os indígenas e camponeses (Ticona Alejo, 2000), entre os acordos
do pacto estava, a manutenção do reparto de terras promovido pela Reforma Agrária e que os
sindicatos apoiassem os chefes militares. Compreendendo a esterilização dos movimentos
sindicais por parte do pacto, atores políticos como Genaro Flores impulsionam a formação de
um sindicato independente, a Confederación Sindical Única de los Trabajadores Campesinos
de Bolívia (CSUTCB), que em 1979 sepultou o pacto militar-campesino.
O katarismo de Genaro Flores e Victor Hugo Cárdenas, surgiu nesta conjuntura,
tomando proporção no campesinato vinculado à memória longa de Tupac Katari como sujeito
histórico. Por meio de Genaro Flores o movimento katarista introduz o indígena nos
movimentos sindicais, não somente como raça como pensavam os indianistas, nem somente
como classe como pensavam os MNRistas, mas uma junção entre classe, raça e sindicalismo
(Ticona Alejo, 2000). Víctor Hugo Cárdenas (eleito vice-presidente em 1993-1997), dizia que
existem três correntes que deveriam se articular para o katarismo: a sindical, a cultural e a
política, estruturando uma proposta mais global, superando o reducionismo classista (MNR) e
o reducionismo étnico (indianismo).
A segunda expressão do katarismo é a de Fernando Untoja, filósofo e economista
Aymara que percebe o katarismo como uma retomada da ideia de katari, ou serpente, que tem
um significado para os aymaras de terremoto ou “tembor desde abajo”. O katarismo de Untoja
condena a perspectiva de “guerra de raças”, se afasta também do campesinato e da ideia de
102
"O katarismo e o indianismo passam a ser fruto imprevisto da revolução de 1952 a partir de duas perspectivas:
é o produto de suas conquistas parciais (educação, participação política dos indígenas e camponeses) e também
produto do caráter inconclusivo dessas conquistas. O primeiro abriu horizontes e despertou novas expectativas.
Seu caráter inacabado gerou uma frustração que fez reaparecer a 'memória longa' de um confronto centenário com
o Estado"
103
Na minha perspectiva o grande problema do trabalho de Esteban Ticona Alejo é não diferenciar o indianismo
e o katarismo, nem em pautas, tampouco em genealogias.
63
classe que estruturava o katarismo de Genaro Flores e Víctor Hugo Cárdenas. Para Untoja,
através de uma aristocracia Aymara deve haver o desenvolvimento de cientistas e intelectuais
aymaras para a criação de uma hegemonia kolla. Nas palavras de Untoja: “Queremos la
burguesía aymara capaz de pelearse con la oligarquía boliviana o con algunos burgueses que
existen, industriales” (Entrevista, 31 de agosto de 2018)104.
Expressões atuais
104 "Queremos que a burguesia aymara seja capaz de lutar com a oligarquia boliviana ou com algum burguês
industrial existente"
105
Mallku em Aymara significa “condor”. Na organização política aymara é o maior cargo de liderança.
106
"Este anúncio brilhante e bem-sucedido de 'Voltar' está sendo cumprido, desde que Tupak Katari estava em
retirada, mas agora retorna encarnado e empunhando o fusil das novas gerações emergentes".
107
Página do facebook: https://www.facebook.com/LaCurvaDelDiablo/ ; Canal do Youtube:
https://www.youtube.com/channel/UCqx2UaSkfwQKMz0Zmkmg_2A ; Blog:
http://colectivocurva.blogspot.com/ Acesso em: 02/02/2019
64
surge em maio de 2009, dentre seus militantes mais importantes é possível evidenciar Carlos
Macusaya, Wilmer Machaca e Pablo Velásquez, gerações recentes, filhos de migrantes aymaras
que se consolidam em La Paz e El Alto (DELGADO MANCILLA, 2017). Isso determina
especialmente, uma rede de militantes aymaras urbanos que legitimam em sua teoria e prática
o aymara como identidade também em espaços urbanos. Através do Periódico PUKARA de
Pedro Portugal Mollinedo108, um dos espaços mais conhecidos de difusão de conhecimentos
produzidos por aymaras, os integrantes do grupo MINKA divulgam suas perspectivas políticas,
sociais e teóricas de um indianismo-katarista próprio. Tecendo ideias indianistas a partir de
Fausto Reinaga e Pedro Portugal, e kataristas por trabalhos de Fernando Untoja, o grupo produz
uma alternativa articuladora às duas vertentes. Segundo Abraham Delgado Macilla (2017), o
indianismo-katarista é uma corrente de pensamento e ação política e filosófica, gestada a partir
do início do presente século (DELGADO MANCILLA, 2017, p.92).
108
Antropólogo e katarista Aymara.
109
"Quando saí da escola, entrei na Universidade Indígena que eu não gostava muito porque dependia do governo,
mas havia muitas coisas que poderiam ser resgatadas, então adquiri mais identidade e já me considerava como ...
bem, eu sou daqui, então eu tenho que fazer algo mais. Mas eu não tinha o meu espaço, eu queria um espaço e
conheci os garotos da La Curva e mais ou menos nós concordamos com as coisas que queríamos, então por que
não criamos nosso próprio espaço? Ninguém vai nos dar um espaço, então aí é onde nasce. "
65
O movimento Nacionalismo Aymara tem sua maior expressão entre alguns militantes
como Abraham Delgado Mancilla e Magali Copa Vianca. Em seu livro sobre pensamento
político Aymara (2017), Delgado Mancilla desenvolve teoricamente algumas categorias
importantes à esta perspectiva. O autor evidencia o evento “Katari vuelve... Primera marcha
por la reconstrucción espitirual de Tupaj Katari y por la dignidade de los pueblos originários”
em Peñas 2006, lugar onde o personagem histórico foi assassinado, um momento importante
para a formação do Nacionalismo Aymara. Neste evento, a memória de Tupak Katari articulou
diversas concepções políticas aymaras e o indianismo-katarismo teve sua gênese.
110
Na concepção de Delgado Mancilla, o katarismo proveniente de Fernando Untoja rememora o katari como
símbolo importante dos andes, traduzido como serpente. Por outro lado, na concepção de Felipe Quispe Huanca é
necessário retomar a memória de um sujeito histórico, Tupak Katari, gestando o Indianismo-Tupakatarista.
111
“A primeira base fundamental do indianismo-katarismo é a rearticulação e contextualização da história, do
discurso e da teorização dos indianistas, dos indianistas tupakataristas e dos kataristas. Isto é, rearticula a
interpretação de atores índios e kollas (porque essas interpretações são quebradas). Ele não lê diretamente como
os I-TKs, a Julián Apaza como um tácito Tupak Katari. Pelo contrário, entra em dois seres compostos em Um, e
seu desdobramento. Abrange a civilização Kolla /índia levantada pelo katarismo, sem deixar o ser humano, o índio,
como sujeito histórico.”
66
nación.” (DELGADO MANCILLA, 2017.p.151). Sua linha teórica para pensar a nação vem
dos trabalhos de David Copp, que lê a categoria como grupo que existe por muitas gerações em
um espaço, que tenham as características de história, tradicionalidade, culturalmente
homogêneos e que sejam considerados diferentes em relação às demais nações, carregando um
desejo coletivo de constituir um Estado.
Busco mostrar neste capítulo a teoria de Silvia Rivera Cusicanqui, socióloga boliviana,
anarquista, que é contemporânea dos debates indianistas-kataristas, bem como pós-coloniais e
decolonias, e propõe a construção de um projeto de descolonização ansiado por parte crítica das
ciências humanas das últimas décadas. Cusicanqui é uma das fundadoras do Taller de Historia
Oral Andina (THOA) nos anos 80, que tem como projeto o resgate de relatos históricos da
Bolívia para a revalorização das identidades indígenas. A autora é aposentada pela Universidad
Mayor de San Andrés, La Paz, onde lecionava o curso de Sociologia da Imagem. Foi Docente
Visitante nas Universidades da Columbia (NY); Austin (TX); Jujuy na Universidad Andina
Simón Bolívar; La Rábida (Huelva), e na Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales de
Quito. Recebeu em 1990 a Bolsa Guggenheim. Participou de movimentos kataristas e cocaleros
na Bolívia, deixando claro em sua perspectiva a apologia à despenalização da folha de coca.
Em 2010 lançou o livro "Principio Potosí. ¿Cómo podemos cantar el canto del Señor en tierra
ajena?", juntamente com uma exposição de fotografias no Museo Reina Sofía, Espanha,
resgatando o conceito de “colonialismo interno” de Casanova em sua teoria.
Segundo Sarkisyanz (2013), Silvia Rivera Cusicanqui é ao mesmo tempo katarista, com
influência direta de Genaro Flores, e indianista, por construir um afastamento das organizações
marxistas pela concepção que difundiam sobre os indígenas. Tanto no período ditatorial de
Bánzer, quanto no de García Meza, Silvia Rivera foi presa e torturada, tendo seus manuscritos
pessoais confiscados e queimados. Nas palavras do autor, Silvia Rivera “se ve a sí misma como
un intermédio entre la consciência de clases de la organización agraria de Genaro Flores y la
de los indianistas” (SARKISYANZ, 2013, p.422)112.
Um pensamento abigarrado
112
"Ela se vê como um intermédio entre a consciência de classes da organização agrária de Genaro Flores e a dos
indianistas"
68
(pronuncia-se txerri). No diálogo que realizei com Silvia Rivera Cusicanqui no Colectivo
Ch’ixi, tive a oportunidade de conhecer um pouco mais da trajetória da autora. Ela caminhava
de um lado a outro na sala, enquanto relatava que começou a criticar a esquerda boliviana entre
os anos 1970, o que a aproximou do movimento katarista, especialmente porque o golpe militar
de Hugo Bánzer Suárez em 1971 levou parte considerável das lideranças kataristas para um
refúgio nas comunidades de origem, momento em que Silvia Rivera desenvolvia um trabalho
de campo na comunidade de Pacajes. Ela se associa à luta de Genaro Flores113 e participa do
primeiro Congresso realizado pela CSUTCB, auxiliando na construção da tese política desta
organização. A relação da autora com o movimento katarista dura, segunda ela, até 1988,
quando Genaro Flores é retirado da direção por grupos da esquerda boliviana: “y yo le había
advertido a Genaro Flores, que estaba muy encantado con unas gentes de la izquierda, que era
medio peligroso que se meta con ellos, pero no me hizo caso y, bueno, al final le hicieron un
golpe y lo sacaron.” (Entrevista, 8 de dezembro de 2018)114. Enquanto relatava, Silvia Rivera
caminhava próxima à sua ñatita115, que compunha uma mesa rodeada por flores, o familiar
chapéu de aba longa de Silvia sombreava parte de seu rosto, sendo quase impossível perceber
suas expressões quando acessava suas memórias.
113
Silvia Rivera relata que durante seu exílio no México enviou os manuscritos da sua obra “Oprimidos pero no
vencidos” para Genaro Flores, que se encontrava em um exílio na França, quem incentivou a autora à publicá-lo.
114
"E eu tinha avisado Genaro Flores, que estava muito encantado com algumas pessoas da esquerda, que era meio
perigoso para ele se envolver com eles, mas ele não me ouviu e, bem, no final eles fizeram um golpe e retiraram
ele”
115
Trata-se de um crâneo cultuado pelos aymaras, normalmente cada ñatita recebe um nome e é festejada no dia
8 de novembro, dia de las ñatitas.
69
116
Dialogando com a exposição de Ailton Krenak no evento “Epistemologias do Sul” que aconteceu na UNILA
(2017), utilizo a interpretação que ele nos ofereceu do poema “Erro de Português” de Oswald de Andrade: “Quando
o Português chegou/ Debaixo de uma bruta chuva/ Vestiu o índio/ Que pena! Fosse uma manhã de sol/ O índio
tinha despido o português”. Para Krenak a roupa no poema é uma metáfora do ocultamento do índio, em suas
palavras é um processo de “nos esconder de nós mesmos em uma criação de simulacros”, por este motivo o índio
é significado a partir de uma perspectiva colonial.
70
117
Baseada nos escritos do boliviano Zavaleta Mercado, Silvia Rivera Cusicanqui percebe o processo de
modernização da Bolívia vinculado a duas condições, a construção de cidadanias de segunda classe para os índios
e ao arcaísmo das elites. No livro “Lo Nacional-Popular en Bolivia”, Zavaleta Mercado desenvolve de que maneira
as elites bolivianas estiveram envolvidas em uma “paradoja señorial”, com a manutenção da dominação
oligárquica no processo da Revolução Nacional de 1952, neste contexto o autor cunha o termo “formación
abigarrada” criticando o conceito de uma “formação econômico-social” para Bolívia, uma vez que este último
conceito compreende a articulação dos modos de produção desconsiderando a verticalidade hierárquica de uns
sobre outros. A “Formación abigarrada” é uma hipótese que contempla uma qualificação mútua entre diferentes
estruturas econômico-sociais que na própria concorrência não mantêm uma forma “pura” ou “previa”, são diversos
momentos constitutivos concorrentes (RIVERA CUSICANQUI, 2010).
71
“devir índio”, mas um “devir gente”. Este projeto de descolonização não propõe a romantização
das categorias indígenas em detrimento das categorias europeias, mas um diálogo possível que
não visa a destituição de algumas epistemologias em favor de outras.
118
“Ao contrário, e analisando dados de pesquisas antropológicas recentes, propus a ideia de que a mestiçagem
leva a um reforço da estrutura de castas, através de um complexo jogo de mecanismos de segregação, exclusão e
auto-exclusão que subordinam os setores cholos urbanos aos mecanismos clientelistas propostos pelo sistema
político tradicional e os condenam à degradação, ao anonimato coletivo e à perda de um perfil diferenciado, ainda
que, paradoxalmente, todas essas renúncias sejam impostas em nome de uma identidade cidadã que resulte nos
fatos, formal, ilusória e precária.”
73
Silvia Rivera Cusicanqui situa que as identidades (Aymara e Quechua) foram forjadas
pelo processo colonial, porque carregam a marca do estereótipo racial, da intolerância cultural
e de um esforço em “colonizar as almas” (RIVERA CUSICANQUI, 1995, p.35). Assim, as
contradições coloniais são renovadas em processos liberais e populistas na Bolívia, no sentido
de criar elementos para forjar novas (ou velhas) identidades. A constituição da identidade
Aymara como conhecemos nos dias atuais, para a autora, se dá no século XVIII, considerando
que o Aymara, assim como o Pukina, figurava como línguas entre os ayllus durante o
Tawantinsuyo, sendo a experiência colonial unificadora desta identidade como tal. Desta
maneira, foi durante as revoltas de 1780-1781 (Tupac Amaru e Tupak Katari), que a identidade
é evidenciada como categoria política.
A constituição, no período dos ciclos rebeldes do século XVIII, de uma identidade sobre
a língua Aymara evidencia a epistemologia presente e retoma elementos importantes como o
Nayrapacha (“el pasado-como-futuro”), uma característica comum às populações étnicas
segundo Silvia Rivera, mas também comum a um setor subalterno do próprio ocidente, como
Walter Benjamin quando confronta a catástrofe do nazismo com a frase: “Ni los muertos
estarán a salvo del enemigo si este triunfa (1969).” (RIVERA CUSICANQUI, 1995.p.44). O
Nayrapacha é, para ela, um exercício epistemológico comum a muitos espaços geopolíticos, o
que me parece um movimento de diálogo entre a epistemologia Aymara e outras
epistemologias, deslocalizando o Aymara e alocando-o em sua possibilidade analítica.
A autora faz uma relação frequente em seu texto entre cholo e índio, utilizando muitas
vezes índio-chola como definição identitária, chegando a situar um debate feito por Ignacio
Mendoza (representante do sector criollo) em um evento sociológico nos anos 1970. Segundo
ela, o autor apresentou a cholificación como um conceito central de análise social, perspectiva
que foi criticada por indianistas e kataristas presentes no evento, que inspirados pela obra El
índio y el cholaje boliviano de Reinaga, fizeram uma defesa da categoria índio frente às
categorias de mestiçagem como o cholo (RIVERA CUSICANQUI, 1995, p.55). A análise de
Silvia Rivera deste debate foi que os próprios referenciais utilizados por Reinaga eram aymaras
cholificados que passaram por espaços aculturantes como a escola, o quartel e a universidade.
Esta perspectiva é criticável no contexto do trabalho da autora que em muitos textos associou a
apropriação destes espaços institucionais por aymaras urbanos (e não cholificados), como
formadora da posição política indianista e katarista.
74
As identidades índio e cholo são analisadas por Silvia Rivera como identidades não
apenas “para sí” nem “em si”, mas “para otros”, uma vez que ela nasce de um confronto de
imagens e auto imagens, seja de estereótipos ou contra estereótipos, em suas palavras: “Es
decir, que la identidad de uno no se mira en el otro como en un espejo, sino que tiene que
romper o atravesar este espejo para reencontrar un sentido afirmativo a lo que en principio no
es sino un insulto o prejuicio racista y etnocéntrico.” (RIVERA CUSICANQUI, 1995, p.57)119.
Desta forma, a autora defende que existe uma definição da identidade dos sujeitos, não somente
a partir de uma auto identificação, mas a partir de uma hétero identificação que é externa ao
sujeito, mas que o mesmo pode ressemantizá-la no sentido de afirmar sua própria identidade,
seria o caso da identidade índia apropriada e rearticulada pelo movimento indianista, no entanto,
aqui a autora defende que o mesmo exercício pode ser direcionado ao ser cholo.
Este conflito entre a questão identitária e as lutas kataristas e indianistas foram cruciais
na formação política de Silvia Rivera, ela associa sua afinidade com a perspectiva katarista e o
reconhecimento de sua identidade mestiça como um paradoxo que aparece muitas vezes como
construtivo. A partir do momento em que ela começa a perceber o conflito entre sua identidade
e sua perspectiva política, a autora associa a opressão feminina com a opressão índia, uma vez
que envolvem sofrimentos similares, dentre eles o silêncio cultural, uma identidade imposta e
a luta por igualdade vinculada à defesa pela diferença.
Para além de uma hipótese, o ch’ixi é plasmado em uma figura histórica boliviana na
obra “La identidad ch’ixi de un mestizo: En torno a la voz del campesino, manifiesto anarquista
de 1929” (2011), o militante Aymara anarquista da Guerra do Chaco (1932-1935), Luis
Cusicanqui, autor do manifesto “La voz del campesino. Nuestro reto a los grandes mistis del
119
“Isso quer dizer que a identidade de uma pessoa não é vista na outra como num espelho, mas que precisa romper
esse espelho para redescobrir um sentido afirmativo para aquilo que, em princípio, não passa de um insulto ou
preconceito racista e etnocêntrico.”
75
Estado” (1929). Este personagem redige críticas à elite q’ara120, em um exercício em que se
mescla o castelhano com o Aymara e o Quéchua, construindo o que Silvia Rivera denomina
“castimilliano”, uma língua franca intercultural que permitiu adaptar e recriar metáforas
libertarias e indígenas da política a partir de um denso tecido testemunhal (RIVERA
CUSICANQUI, 2011, p.194).
Um exemplo são as duas formas de pensar o “nós” em Aymara. A primeira é o nanaka
compreendido como excludente, a segunda é o jiwasa que inclui o interlocutor. Enquanto
nanaka tem uma abordagem para a alteridade, uma afirmação das características de uma
determinada cultura, o jiwasa tem um vínculo com a interculturalidade, e isso se evidencia no
manifesto de Luis Cusicanqui no excerto: “Alerta hermanos indios de la raza americana que
la sangre vertida sea el anuncio de la revolución” (RIVERA CUSICANQUI,2011.p.203)121.
Esta expressão de uma raça americana é a expressão do jiwasa, dos despossuídos pela
colonização e pelo colonialismo interno, estruturando sua crítica aos q’aras.
Além disso, o ch’ixi é uma categoria operacionalizada em um espaço construído na
cidade de La Paz, o “Tambo: colectivo ch’ixi”, onde atuam diversos sujeitos, incluindo a própria
Silvia Rivera Cusicanqui. O espaço foi construído coletivamente por aymaras, mestiços e
colaboradores para que as discussões tenham um suporte arquitetônico autônomo. Além de
discussões teóricas, desenvolvem trabalhos de cultivo da terra para a alimentação do coletivo,
promovendo uma manutenção autogestionada122.
120
Elite mestiça branca que desconsidera as condições dos aymaras.
121
"Alerta aos irmãos índios da raça americana, que o sangue derramado seja o anúncio da revolução"
122
Mais informações dispostas no blog do coletivo: http://colectivachixi.blogspot.com.br/
76
Meu primeiro contato com o Tambo Colectivo Ch’ixi, foi em uma Quermesse realizada
no dia dezessete de dezembro de 2017, esta foi organizada para arrecadar fundos para a luta do
TIPNIS123, vendendo artesanatos feitos por esses grupos das terras baixas, além de comidas
(Anticucho, Chicarrón e Quesumacha) e bebidas. Pedi para auxiliar nos trabalhos de
construção da Quermesse, às 9 da manhã cheguei no endereço combinado. Ivan, que faz parte
do Colectivo há muitos anos, recebeu-me e me delimitou algumas funções. O espaço do
Coletivo é uma casa de dois andares, há um canteiro de algumas plantas que eu não soube
identificar, umas trepadeiras em arames que cercam um pedaço do quintal. No andar de baixo
fica a cozinha e uma parte aberta com algumas mesas, em cima estão as salas onde ocorrem os
cursos. Na parte externa há dois banheiros, um banheiro seco (fossa séptica) e um banheiro
comum. As paredes da casa, feitas de adobe, eram adornadas com garrafas plásticas que juntas
formavam figuras de flores no interior do adobe. Fiquei impressionada com a quantidade de
árvores e plantas que rodeiam o quintal, há um certo aspecto rural na constituição física do
Tambo124, o que remete à relação com a organização e a episteme que seus participantes
mantêm, uma sociologia com as mãos na terra.
Nas imediações do Colectivo conheci Sara, uma integrante que me contou do processo
de formação do espaço, de se tratar de um local ocupado, diz também que há sete anos compõe
o Tambo. De acordo com Sara, essa casa foi construída na zona de Tembladerani – bairro da
cidade de La Paz - e cedida pela dona para que alguém pudesse cuidar, segundo ela, a dona do
local tinha receios de viver na região porque havia muitos tremores (temblores), o que dá nome
à zona. Sara me relata que Silvia Rivera paga as contas necessárias para a manutenção do
espaço, incluindo o salário do Maestro125, senhor Aymara que trabalha nos serviços mais
pesados e cotidianos para a conservação do Tambo. Sara conheceu Silvia quando era aluna do
curso de Sociologia na Universidad Mayor de San Andrés, comenta que foi a partir de Silvia
que chegou ao Coletivo e começou seu envolvimento com os projetos, no entanto, enfatizou
123
Trata-se do Território Indígena e Parque Nacional Isiboro-Sécure, desde 2010 o governo de Evo Morales
anunciou a construção de uma rodovia que atravessa esta terra indígena, provocando diversas manifestações com
temas de auto-determinação já previstos na atual Constituição Plurinacional.
124
A palavra Tambo representa o espaço em que os aymaras reservam seus alimentos, é também uma figura
incaica. Para Soruco (2012), os tambos eram espaços de depósito, mas também abrigavam viajantes.
125
No dia 8 de dezembro em que realizo uma entrevista no Colectivo com Silvia Rivera, Roger Chambi é
convidado por Silvia Rivera para trabalhar com o Maestro na construção civil. Depois da entrevista, Roger Chambi
comentou que o Maestro é da comunidade de Sorata, próxima a Achacachi, “Él es mi paisano!”, relatou-me.
77
que há diversos interesses e perspectivas entre os sujeitos que compõe o Coletivo, ainda que
tenham objetivos em comum.
***
126
Aqui utilizo a categoria “cholo”, como alusão a pessoas do Peru que participavam do curso, uma vez que esta
categoria em território peruano tem outras determinações comparada ao território boliviano, e que havia uma
autoidentificação dos próprios alunos.
127
"A descolonização do olhar consistiria em libertar a visualização dos laços da linguagem e em reatualizar a
memória da experiência como um todo indissolúvel, no qual os sentidos corporais e mentais se fundem"
78
têm sido retratados pelos trabalhos acadêmicos. Durante o diálogo ele acessava algumas
memórias:
128
Produção cinematográfica do diretor boliviano Jorge Sanjinés.
129
“Lembro-me de que em 2016 eu comecei a escrever crônicas para contar algumas experiências que tive desde
a infância, boa parte dessas crônicas não foram publicadas e permanecem inacabadas, e eu me lembro que estava
escrevendo uma vez sobre a criação de senso comum a partir das imagens no caso de "A Nação Clandestina", eu
estava tentando analisar como a mensagem visual além do conteúdo sociológico e de todos os problemas políticos
que o filme mostrava. O que me interessou foi como a ideia de ser Aymara estava sendo projetada em imagens.
Então, ao escrever isso me veio à mente uma passagem antiga, quando era criança, uma memória quando eu tinha,
imagino, uns oito ou nove anos, eu ia com minha mãe na loja e ela estava com a sua carriola, íamos comprar gás
e lembro-me que um homem veio, um cara alto com óculos, com sua câmera, e ele perguntou à minha mãe se
poderia tirar uma foto. Eu sempre andava com a minha mãe segurando a sua manta, minha mãe sempre me dizia
para pegar sua manta para que eu não me perdesse, então eu olhei para isso e minha mãe disse que sim. Então o
senhor se acomodou para tirar a foto e minha mãe começou a arrumar suas tranças porque estavam um pouco
despenteadas, ch'ascosa dizemos em Aymara, então minha mãe queria se arrumar pra sair bem, obviamente, na
79
foto, e o senhor lhe disse que não, que não se arrumasse, que estava bem assim como estava, e ele tirou uma foto
e foi isso, nós dois fomos embora. Lembrei-me desta passagem quando eu estava escrevendo esta crônica sobre a
ideia do Aymara, e me veio à mente justo o que Walter Benjamin disse sobre a realidade ser diferente nos olhos
da câmera, eu acho que este exemplo da minha infância com minha mãe mostra claramente essas palavras que
Benjamin disse, não? Porque o senhor disse: ‘Não, não se arrume, assim está bem’, e eu comecei a pensar ‘Estava
bem pra quem?’ Porque minha mãe, ao saber que era uma foto, queria sair bem, queria sair de sua maneira de ser
apresentável, agradável, mas para a outra pessoa, que estava tirando a foto, provavelmente, não sei porquê, porque
era uma imagem pitoresca e casual de uma pessoa em El Alto daqueles tempos e, bem, ele tirou do seu modo, mas
minha mãe não queria sair assim.”
130
“Acredito que este sujeito, quando tirava fotos de si mesmo, usava seus próprios critérios para escolher a melhor
foto”
80
Silvia Rivera apresentou o ch’ixi a partir das preocupações com a construção da imagem.
O ch’ixi é mostrado por ela, como um mestiço com muita afinidade com o índio, neste momento
perguntei a ela como poderia definir as duas “identidades limites” que constituem o ch’ixi, índio
e europeu, ela me respondeu que não se trata de identidades, mas identificações acionadas em
momentos históricos específicos. O ch’ixi, explica ela, é um choque de contrários, energizante.
Esclareceu ainda, que esta palavra em Aymara representa animais, “que son de arriba, pero
también de abajo”132, como sapos, serpentes, lagartos, que para Silvia Rivera representam o
caos do mundo de baixo, manqapacha.
131
"construção de uma hermenêutica, um gesto de descolonizar. Pensar a paisagem do solo em que pisa, um
ambiente ao qual tem relação"
132
“que são de cima, mas também de baixo”
133
“Que não tem uma cor definida, não é algo querido”
134
“É o sapinho da fertilidade”
135
“Compra senhorita, são os animais fundadores da civilização”
81
comprar uma pedra em que estavam lapidados um sapo, uma serpente e um lagarto, exatamente
os animais ch’ixis, assim lidos por Silvia Rivera Cusicanqui.
Existem algumas leituras da mestiçagem que Silvia Rivera afasta da mestiçagem ch’ixi,
naquela mesma aula ela definiu as perspectivas de Bolívar Echeverría, que pressupõe o
desaparecimento do índio, e de Martín Barbero, que pensa a mestiçagem como fusão em uma
análise histórica, como um pa-chuyma (em Aymara significa “dois corações”, pa é um prefixo
vinculado ao número dois que em Aymara é paya), uma divisão de dois mandatos na qual um
é cumprido à medida em que trai o outro. Essa divisão, para a autora, é a paralisação do sujeito
mestiço que não suporta uma visão do positivo contido na própria oposição.
Durante o curso, fomos visitar alguns museus localizados em La Paz. Nos encontramos
no Museo de la Revolución de 1952, Silvia Rivera nos explicou as iconografias nas paredes,
pintadas pelos muralistas Miguel Alandia Pantoja e Wálter Sólon Romero. Analisando as obras
de Miguel Alandia Pantoja, em uma parte do mural que parecia retratar as vitórias da Revolução
de 1952, havia uma imagem de um homem com traços aymaras saindo da Puerta del Sol, objeto
arqueológico encontrado em Tiwanaku, com os punhos fechados e diante deste, como símbolo
da Revolução, uma mulher branca com um bebê branco nos braços elevados, ao seu lado, duas
pessoas oferecem comida e “glórias” à imagem da criança.
Silvia Rivera havia solicitado uma apresentação final do curso em formato de imagem,
montagem ou ato estético. O mural de Pantoja não saia da minha cabeça e decidi associá-lo à
uma imagem muito discutida acerca da mestiçagem no contexto brasileiro, “A redenção de
Cam”, obra de Modesto Brocos, artista espanhol que retratou sua visão acerca da mestiçagem
no Brasil no princípio do século XX. A obra de Brocos, representa uma criança nos braços de
uma mãe negra, do lado esquerdo sua avó preta com as mãos ao alto parece agradecer o
embranquecimento do neto e, à direita, um homem branco sentado demonstra satisfação ao ver
o filho. A ideia de redenção no processo de mestiçagem, mais especificamente biológico nos
82
dois casos, parece estar presente neste momento histórico boliviano, em especial com a negação
nas pautas da Revolução em reconhecer os índios e suas especificidades de organização
territorial e política. Não é meu objetivo aqui, aprofundar a análise entre o processo de
mestiçagem brasileiro e boliviano, no entanto, a partir das obras iconográficas, podemos
perceber como existe uma relação entre os discursos de identidade nacional. É este o tipo de
mestiçagem que Silvia Rivera propõe combater.
136
Foto tirada durante a visita feita ao Museu da Revolução de 1952. Neste momento, Silvia Rivera expliava a
pintura de Pantoja nas paredes superiores.
83
O que chama a atenção é que, dentre outros personagens, o livro é dedicado a Ayar
Quispe, filho de Felipe Quispe Huanca, indianista e um dos fundadores e militantes do EGTK.
Em uma entrevista realizada no dia oito de dezembro de 2018, em pé e de costas para a mesa
que eu permanecia sentada, Silvia respondeu segura à minha pergunta acerca do movimento
indianista: “no, no tuve prácticamente ninguna relación con los indianistas”137. Informação
que torna esta dedicatória mais interessante, uma vez que está direcionada à um dos indianistas
mais ortodoxos, em especial no tema de identidade. Em um fragmento do livro “Indianismo-
katarismo” de Ayar Quispe (2014), o autor deixa claro sua posição acerca do que concebe como
sujeito do indianismo e das identidades que em sua perspectiva estão em conflito:
137
“Não tive praticamente nenhuma relação com os indianistas”.
138
“Quero alertar o leitor que este trabalho não é a voz de um 'índio submisso', que está totalmente satisfeito ou
feliz com a situação colonial, mas é a voz de um 'indianista', que foi um dos fundadores e membro do Exército
Guerrilheiro Tupak Katari (EGTK ). Nem é a voz de alguém que detém o título acadêmico de licenciado ou doutor;
é a voz de um 'índio agricultor' que vive na comunidade 'Ajaría Chico'. Portanto, a voz que estou emitindo é a
mesma voz do índio oprimido e discriminado. Por isso, o que escrevo só será compreendido por aqueles que sofrem
e sentem a opressão. Eu não falo para os q'aras, porque eles nunca concordarão com essas ideias indianistas, que
querem a libertação do índio. Em vez disso, eles vão querer silenciá-lo e, para esse fim, alguns começarão a latir
como cães bravos e outros vão rosnar como porcos sujos; tudo será feito, já que o perigo do indianismo é,
evidentemente, já proverbial para o q'ara opressor.”
84
No desenrolar de seu livro, Ayar Quispe defende uma identidade índia que discrepa com
a possibilidade de uma mestiçagem descolonizadora. O autor define neste fragmento, que seu
texto só pode ser compreendido por quem sofre a opressão colonial, a leitura do nós como
jiwasa, atribuída por Silvia Rivera a Luis Cusicanqui, está presente nas palavras de Quispe,
sendo portanto plausível, estabelecer possíveis diálogos a partir desta dedicatória que Silvia
Rivera faz à Ayar Quispe. A própria imagem de Ayar Quispe no contexto nacional sustentando
a categoria índio enquanto sujeito político pode dar algumas pistas deste diálogo, se o ch’ixi é
a identidade que evidencia seu “lado índio”, os trabalhos indianistas de positivação do sujeito
índio podem fornecer bases importantes para esta mestiçagem descolonizadora de Silvia
Rivera.
Silvia Rivera Cusicanqui (2018), por outro lado, começa a sua defesa de uma
mestiçagem descolonizadora mostrando as diferenças existentes entre o ch’ixi e a proposta
abigarrado de Zavaleta Mercado, a autora afirma que a “camisa de força” em Mercado, deu-se
quando este associou o estado-nação com revolução/renovação. Contrariamente ao proposto
como abigarrado, a epistemologia ch’ixi é apresentada como um esforço de superação dos
binarismos hegemônicos, esmiuçando a heterogeneidade que constitui as sociedades (RIVERA
CUSICANQUI, 2018, p.17).
139
“Caminhando com o passado diante dos seus olhos e o futuro nas suas costas”
140
A autora apresenta em seus primeiros textos (1995), o nayrapacha como um exercício muito próximo do que
ela vai apresentar mais tarde como qhipnayra, isto se dá porque os dois conceitos carregam sentidos
complementares, o nayrapacha é metafórico e interpretativo, mas é apresentado especialmente como uma
ferramenta para “caminhar pelo aqui-agora do cotidiano” (RIVERA, 2015, p.207). Segundo Rivera, a partir do
nayrapacha é possível resgatar símbolos de outras culturas em termos próprios, um exemplo é a apropriação feita
pelos aymaras das palavras Deus e Jesus, retirando o maiúsculo das primeiras letras e modificando os sentidos que
estas palavras têm para a cultura ocidental. Já o qhipnayra (qhipha como costas e nayra como olhar), é um
exercício de caminhar pelo presente, carregando o futuro nas costas: qhip nayr untasis sarnaqapxañani. Ambos
conceitos têm relação com a temporalidade Aymara, o nayrapacha movimenta os sentidos no cotidiano e o
qhipnayra demonstra que a construção de sentidos se dá no “caminhar pelo akapacha”, tempo presente, que se
constrói na constante relação com os outros tempos.
85
energizado, por la fricción, que nos impulse a sacudir y subvertir los mandatos coloniales de
la parodia, la sumisión y el silencio” (RIVERA CUSICANQUI, 2018, p.86-87)141.
Já a crítica estruturada por Silvia Rivera aos decoloniais, estabelece que estes últimos
não sabem lidar com as contradições presentes no intelectual colonizado, durante a entrevista,
Silvia Rivera comenta que os mesmos são uma “moda essencialista”: “consideran que los
índios son colonizados y que solo ellos son sujetos de uma descolonización, descalifican a los
mestizos y yo creo que es una posición muy esencialista y despolitizada” (Entrevista, 08 de
dezembro 2018)143. Em todos os discursos e escritos da autora, notei uma recusa a qualquer
essencialização.
O que cria a possibilidade de um mundo ch’ixi, para Silvia Rivera, como horizonte de
transformação emancipatória, é um “viver em meio de mandatos opostos” um equilíbrio entre
diferenças irredutíveis, seja entre homens e mulheres, seja entre índixs e mestizxs (RIVERA
CUSICANQUI, 2018, p.56). Como epistemologia, o ch’ixi é um modo de construir
conhecimento descolonizador. Em Aymara existem duas formas de traduzir a palavra “pensar”,
141
"Em um tecido ch'ixi, uma mestiçagem explosiva e reverberante, energizada, pela fricção, que nos impele a
abalar e subverter os mandatos coloniais da paródia, submissão e silêncio"
142
Silvia Rivera define a diferença entre modernização e modernidade índia, a primeira ordena um apagamento da
índia/índios interior, enquanto a segunda se refere ao tecido cotidiano e as lutas históricas das comunidades que
sobreviveram ao assalto do capital e do estado (RIVERA, 2018, p.38-39).
143
"consideram que os índios estão colonizados e que só eles são sujeitos de uma descolonização, desqualificam
os mestiços e creio que é uma posição muito essencialista e despolitizada"
86
CORREGIMIENTO
CORREGIDOR AFRENTA
AL alcalde ordinário por dos
huevos que no le da mitayo
Províncias
como
FIGURA 3. (GUAMAN
POMA DE AYALA, 1615,
p.499)
144
"Ninguém que fala contra o desenvolvimento vai conseguir trabalho nas instituições do mundo 'em vias de
desenvolvimento'."
87
ALCALDES
COMO LE CASTIGA EL
CORREGIDOR
al pobre del alcalde ordinario de su
majestad
dale
trae dos huevos que falta
ay por amor de dios
como
FIGURA 4. (GUAMAN POMA DE
AYALA, 1615, p.796)
Nas duas imagens feitas por Guaman Poma de Ayala no começo do século XV, é
possível perceber uma relação de violência do corregidor, figura de um funcionário real
responsável pela parte jurídica da colônia, para com autoridades indígenas por falta de dois
ovos no pagamento de tributos à coroa. Explicando o abuso dos corregidores, Waman Poma de
Ayala relata:
que los dichos corregedores y padres y encomenderos quieren muy mal a los
indios ladinos que saben leer y escribir, y más si saben hacer peticiones por
que no le pidan en la residencia de todo los agravios y males y daños; y, si
puedes, le destierra del dicho pueblo en este reino. ((GUAMAN POMA DE
AYALA, 1615, p.495)145
Waman Poma de Ayala utiliza o artifício da palavra escrita vinculada à iconografia para
relatar ao rei da Espanha, Felipe III, as arbitrariedades sofridas pelos indígenas por parte dos
responsáveis pela justiça. Corregir pode ser traduzido ao português como sinônimo de corrigir,
145
“que os referidos corregedores e padres e encomenderos não gostam dos índios ladinos que sabem ler e escrever,
e mais se souberem fazer petições para que não peçam na residência de todas as queixas e males e prejuízos; e, se
puder, expulsá-los da comunidade mencionada neste reino”
88
neste caso, punir e submeter aqueles que não estejam de acordo com a hierarquia colonial.
Waman Poma de Ayala é caracterizado por Silvia Rivera Cusicanqui como ch’ixi. Durante a
entrevista com a autora, ela me relatou: “Guaman Poma es precisamente la identidad ch’ixi es
un indio colonizado, pero donde luchan los dos contrarios permanentemente, en su texto está
todo entremezclado y yuxtapuesta la parte colonizada y la parte libre.” (Entrevista, 08 de
dezembro de 2018)146. Em uma das aulas do curso de Sociologia da Imagem, Silvia Rivera citou
um trabalho escrito pela antropóloga Alison Spedding junto ao Taller de Historia Oral Andina
(THOA), o livro de literatura “Manuel y Fortunato”, foi feito a partir de histórias orais de
aymaras das comunidades que o THOA teve acesso. Na narrativa do livro é possível visualizar
uma imagem de Waman Poma de Ayala que dialoga com a constante disputa pä chuyma de
Silvia Rivera. A descrição estética de “Felipe”147 aparece na narrativa quando este jovem se
depara com os dois protagonistas do livro em um bar.
Al igual que ellos llevaba unku148 corto, camisa con valona, calzones
acampanados, abarcas y sombrero, pero a diferencia de los Quiruas, todo,
aunque muy limpio, estaba hecho de remiendos. Los calzones eran el
cementerio de diez vestidos de telas diferentes y el unku mostraba docenas de
zurcidos de hilos y habilidades variosísimas. Sólo el sombrero era algo nuevo,
aunque evidentemente barato. Le faltaban dos dientes de adelante y cabello
cortado al oído era más blanco que gris. (SPEDDING, 1997, p.228-229)149
146
"Guaman Poma é precisamente a identidade ch'ixi é um índio colonizado, mas onde os dois opostos lutam
permanentemente, em seu texto está tudo misturado e justaposto a parte colonizada e a parte livre."
147
Modo pelo qual é referenciado Felipe Waman Poma de Ayala no livro.
148
Manta andina usada por aymaras e quéchuas.
149
“Como eles, usavam um unku curto, uma camisa com uma carteira, calças boca de sino, abarcas e chapéu, mas,
ao contrário dos Quiruas, tudo, embora muito limpo, era feito de remendos. As calças eram o cemitério de dez
vestidos com tecidos diferentes e o unku mostrava dezenas de fios de cerzidos e muitas habilidades diferentes.
Apenas o chapéu era algo novo, embora obviamente barato. Nele faltavam dois dentes da frente e o cabelo cortado
ao ouvido era mais branco que cinza.”
150
"Esses mestiços são a praga e o castigo do reino", ele disse, "pessoas loucas, pleitistas, casta ruim ... saúde!"
89
pela falta de dinheiro para pagar a justiça, sendo retirado o cacicazgo de seu pai, “La plata no
más manda”.
Así me han hecho a mi, vieras, yo que soy señor legítimo de mi tierra, nieto
de Topa Inca Yupanqui, porque mi madre Doña Juana Curi Ocllo fue hija del
Inca, Coya y señora, reina deste reino, y mi padre Don Martín Guamán
Mallqui de Ayala, segunda persona del mismo Inca. El príncipe Don Melchor
Carlos Paullo Topa Wiracocha Inca, el quien fue a Castilla, fue mi tío y los
demás señores Incas mis tíos, primos son. Y mira como hey terminao, tan
pobre y roto, solo con mis ochenta años encima, todo por haber salido de mi
tierra para servir a Dios y Su Majestad, dejando casa y hacienda…
(SPEDDING PALLET, 1997.p.229-230)151
No desenrolar da história, Felipe lhes repreende pelo consumo da folha de coca, “Y qué
hacen ustedes con esa hoja del diablo?”152 (SPEDDING PALLET, 1997.p.231). Diante da
reposta de que se tratava da coca doce dos Yungas, Felipe demonstra interesse e pijcha
acompanhado por lejía153, enquanto relata seus pesares. Em um determinado momento, Felipe
é surpreendido pela figura de um padre conhecido que grita seu nome.
“Y cuántas veces me has jurado que has dejado de beber? ¡No te puedo
dejar ni media hora que vayas a la chichería! Si te encuentro borracho
una vez más te voy a botar sin misericordia”
“Sí padre… discúlpame nomás padre…” (SPEDDING PALLET, 1997,
p.232-233)154
151
“Assim eles fizeram comigo, você viu, eu sou o legítimo senhor da minha terra, neto de Topa Inca Yupanqui,
porque minha mãe Doña Juana Curi Ocllo era a filha do Inca, Coya e senhora, rainha deste reino, e meu pai Don
Martín Guamán Mallqui de Ayala, segunda pessoa do mesmo Inca. O Príncipe Don Melchor Carlos Paullo Topa
Wiracocha Inca, aquele que foi para Castela, era meu tio e os outros senhores incas meus tios, são primos. E olha
como eles terminaram, tão pobres e quebrados, somente com meus oitenta anos no topo, tudo por ter deixado
minha terra para servir a Deus e Sua Majestade, deixando a casa e a propriedade ...”
152
“E o que vocês fazem com essa folha de coca do diabo?”
153
Acompanhamento para o pijchar coca à base de menta, estevia e outros produtos.
154
"O estranho levantou o chapéu, que caíra no chão, limpou-o apressadamente da poeira e dos restos de coca e
aproximou-se do padre, que saiu novamente. Fortunato se levantou e foi até a rua para desaguar. Viu os dois se
afastando, o padre falando furiosamente e o estranho de chapéu na mão, inclinando a cabeça. 'Sim, sim, padre, eles
me fizeram beber ...'
'E quantas vezes você me jurou que parou de beber? Não posso te deixar nem meia hora para ir ao chichería! Se
eu te encontrar bêbado mais uma vez eu vou te mandar embora sem piedade'
90
Silvia Rivera explica que antes de poder denominar essa epistemologia, que em muitos
momentos torna-se identidade quando utiliza o verbo “ser”, ela definia suas reflexões como
“esa mezcla rara que somos” (RIVERA CUSICANQUI, 2018, p.79). No texto “La identidad
ch’ixi de un mestizo”, analisa o manifesto anarquista de Luis Cusicanqui, no qual ocorre um
choque de contrários. Esta perspectiva reflete no significado da palavra ch’ixi como a cor cinza,
que à distância se vê apenas como cinza, mas quando aproximado é possível perceber os pontos
que o compõe, brancos e negros, um cinza mosqueado. Representa os animais que podem
“atravessar fronteiras”, ou seja, que encarnam polos opostos de maneira reverberante (RIVERA
CUSICANQUI, 2018, p.79). A autora aprendeu a palavra ch’ixi de Victor Zapana, um escultor.
“Ch’ixinakax utxiwa”, disse ele à Silvia Rivera, explicando o poder destes animais que são
duas coisas ao mesmo tempo.
No entanto, quando Silvia Rivera Cusicanqui situa um “índio interior” como passível
de resgate pelo ch’ixi, não fica determinado exatamente o que ela compreende como índio. Em
um fragmento do livro a autora desenvolve acerca da epistemologia indígena, explicando o que
a diferencia, em suas palavras: “una epistemologia en la que los seres animados o inanimados
son sujetos, tan sujetos cuanto los humanos, aunque sujetos de muy otra naturaleza” (RIVERA
CUSICANQUI, 2018, p.90)155. A evidência feita à essa epistemologia, parece uma forma de
resgatar elementos para a construção de uma epistemologia ch’ixi, um exercício que distingue
esses “mundos alternos”, como propõe a autora, do antropocentrismo do atlântico norte.
Em muitos momentos do meu campo essa epistemologia indígena apresentada por Silvia
Rivera tornou-se perceptível. Como já mencionado aqui, Dona Hilda Chambi sempre se
incomodava quando alguém da família jogava batatas no lixo: “La papa va llorar!”, dizia. Em
uma tarde conversávamos diante da televisão enquanto preparávamos a massa para a produção
de churros, quando Dona Hilda reclamou de dores nas pernas, ela explicou que sentia tantas
dores porque a família não queimava mais mesas para as doze awichas na comunidade de
Ch’ojñapata. Quando perguntei quem eram essas awichas (avós), ela me respondeu contando
a história de 12 irmãs que viviam na região em que hoje se encontram as comunidades de
Ch’ojñapata e Patapatani, um llanqha (espírito maligno) havia se apaixonado pelas irmãs e
elas se tornaram awichas, vivendo desde então debaixo de uma montanha. Dona Hilda me
relatou que há muitos anos, sua avó foi avisada por um yatiri local, que as awichas estavam
irritadas pelo esquecimento que sofriam por parte dos habitantes da comunidade, desde então,
sua família sempre queimava mesas às awichas consultando o yatiri sobre o que elas queriam
receber. Há alguns anos esse yatiri faleceu e nenhum outro vivia na região, o que fez com que
as awichas retornassem ao esquecimento: “Por eso tengo dolores fuertes hoy, porque mi mamá
ha olvidado las awichas. Ellas nos están castigando!”156.
Uma das perguntas que me chamava mais a atenção enquanto percorria as páginas dos
livros de Silvia Rivera e durante suas aulas no Colectivo, era justamente acerca da identidade
Aymara, à qual a autora sempre faz referência na construção da sua teoria. No diálogo que
tivemos em dezembro de 2018, perguntei se o ch’ixi apagava a identidade Aymara157 quando
se apresentava enquanto identidade, a autora me respondeu que o ch’ixi era o reconhecimento
do indígena e não seu apagamento, era a depuração das duas identidades em conflito, que
formam um choque mais frutífero que o choque colonial.
Para entender um pouco mais acerca da crítica que Silvia Rivera faz às teorias da
mestiçagem, apresentarei uma análise sobre as teorias da mestiçagem, exercício presente no
próximo capítulo.
156
“Por isso hoje tenho dores fortes, porque minha mãe esqueceu as awichas. Elas estão nos castigando.”
157
Quando falo de “identidade Aymara” me refiro sempre à identidade enquanto identidade política, como situado
no primeiro capítulo, e não como uma entidade homogênea e fixa.
92
Neste capítulo estão presentes alguns trabalhos sobre o tema da mestiçagem na Bolívia
desenvolvidos nos últimos anos, estas investigações dialogam com referenciais ditos
“clássicos” da mestiçagem boliviana, como Alcides Arguedas com seu livro Pueblo Enfermo,
e Franz Tamayo em sua obra mais conhecida La creación de la Pedagogia Nacional. Analisarei
também o trabalho de Carlos de Mesa em La Sirena y el Charango, dialogando com relatos
importantes do meu trabalho de campo junto à família Chambi. Além disso, há aqui dois sub-
capítulos discutindo temas muito importantes que atravessam a mestiçagem boliviana no
território andino, a chola e a construção da choledad como discurso de mestiçagem.
La Sirena y el Charango158
Uma das análises mais atuais acerca do processo de mestiçagem na Bolívia, e que é
contemporânea aos trabalhos de Silvia Rivera Cusicanqui, é o livro “La Sirena y el Charango”,
do historiador Carlos D. Mesa Gisbert. Apresento aqui um pouco da perspectiva de Carlos D.
Mesa acerca do que é a mestiçagem na Bolívia, situando suas críticas a algumas leituras da
“identidade boliviana” a partir da história, religiosidade e demais práticas culturais,
especialmente da Bolívia andina.
158
Cheguei à esta referência graças a Abraham Delgado Mancilla, em uma de nossas conversas sobre a mestiçagem
ch’ixi de Silvia Rivera Cusicanqui.
159
"Na verdade, houve uma 'contaminação' mútua, uma coexistência subterrânea, mas tolerada de cosmovisões"
93
Já Franz Tamayo, segundo Carlos D. Mesa, sofre uma grande influência do idealismo
alemão em sua leitura da identidade mestiça. Para Tamayo a força vital da mestiçagem vem do
índio, por suportar todas as dificuldades da paisagem andina. No livro La creación de la
Pedagogía Nacional (1910), Tamayo determina as influências de cada identidade na formação
do sujeito mestiço, sendo a herança do branco a inteligência e a facilidade compreensiva,
enquanto do índio é herdada a vitalidade, como explicação de sua sobrevivência ao dificultoso
cenário andino. Tamayo ainda pensa o índio em suas limitações de compreensão, para ele o
índio é capaz apenas de compreender a “coisa mesma”, quando se trata do inteligível. No
entanto, em sua análise do processo de mestiçagem que posteriormente se desenvolveria na
160
“[...] do líbero a sua belicosidade, a sua auto-absorção, o seu orgulho e vaidade, o seu individualismo acentuado,
o sua bombástica oratória, o seu nepotismo invencível, o seu fulanismo furioso e, do índio, a sua submissão aos
poderosos e fortes, a sua falta de iniciativa sua passividade diante dos males, sua inclinação indominável a mentir,
engano e hipocrisia, sua vaidade exasperada por motivos de pura aparência e sem nenhuma base ideal, seu gregário,
enfim e, no final de tudo, sua tremenda deslealdade”
161
Existem trabalhos sobre os discursos de mestiçagem no Brasil que podem dialogar com as perspectivas da
mestiçagem de Alcides Arguedas na Bolívia, a autora Giralda Seyferth (2002), apresenta as políticas de
branqueamento do Estado brasileiro até o Estado Novo, anos 1930, em especial no Sul do país, aliadas às leis de
imigração. A partir dos debates sobre a imigração, a autora situa a questão racial como um elemento que gravita
na preocupação do Estado e dos intelectuais com a entrada de determinadas nacionalidades. Para autores que
pensavam a mestiçagem como presente à constituição do Brasil, é o caso de Nina Rodrigues, o mestiço carregava
um desequilíbrio mental. Para Rodrigues, o predomínio de mulatos na população brasileira aparece como um
problema nacional, os mestiços de negros e índios são caracterizados por este autor (e por autores que ele
influenciará) como biologicamente inferiores. Entre os anos 1920-1940 Oliveira Vianna considerou que a
variedade racial e miscigenada do país deveria ser encarada como um problema nacional, a influência das raças
negras e índias determinaria a “configuração atual de um povo cromatizado e de baixa estatura (os tipos cruzados
ainda muito próximos das raças inferiores que ajudaram a formá-los).” (SEYFERTH, 2002, p.133). Para esta
perspectiva sustentada por Oliveira Viana a arianização da sociedade brasileira por meio da entrada de imigrantes
brancos (arianos) seria uma saída à “degradação racial”.
94
Bolívia, a personalidade do branco seria a que pereceria sobre a personalidade do índio contidas
no sujeito mestiço. Para Carlos D. Mesa, as análises de Arguedas e Tamayo não estão distantes
no sentido de que ambos sustentam uma leitura de falta de inteligência criativa do índio (MESA
GIBERT, 2013, p.36-37).
Sobre o que Mesa entende por mestiçagem, existe uma contradição intrínseca em seu
texto, a mestiçagem ora aparece como uma carga biológica, ora com uma descrição puramente
cultural y étnica. Em alguns fragmentos, Mesa associa a mestiçagem a um processo de mescla
de sangue: “Porque está inevitablemente mesclada en nuestras venas y en nuestra cultura”
(MESA GISBERT, 2013, p.50)163. Utiliza, para enfatizar esta perspectiva na América Latina,
o trabalho de Carlos Fuentes Todos los gatos son pardos (1970), em que uma índia Malintzin
dá a luz ao seu filho e do “conquistador” Hernán Cortés no México, entre os pedidos da mãe
está: “sal, hijo de las dos sangres enemigas”164. Carlos D. Mesa, examinando o fragmento de
Carlos Fuentes chega à conclusão de que: “Ese es el terrible principio de esta América Latina
nuestra. Ese el sello de los hijos de una violación, y a la vez de una extraña seducción de
sangre, humo y violencia” (MESA GISBERT, 2013, p.48)165. Em passagens do livro, o autor
demonstra uma leitura mais poética dos processos de mestiçagem, aqui a utilização da palavra
seducción, para ler a violação sofrida pelas indígenas, parece harmonizar o processo de
violência colonial. Em outra passagem, o autor nega a existência das violações de mulheres
durante o processo colonial, sustenta que a mestiçagem é de caráter cultural mais do que étnico,
uma vez que grande parte da população não tem uma gota de sangue espanhol (MESA
GISBERT, 2013, p.193). Esta afirmação é a contradição do que o autor diz anteriormente acerca
do sangue nas veias do mestiço.
162
"Ao longo da história faziam parte do corpus nacional boliviano."
163
"Porque é inevitavelmente mesclada em nossas veias e nossa cultura"
164
“Sai, filho dos dois sangues inimigos”
165
"Esse é o princípio terrível desta nossa América Latina. O selo dos filhos de uma violação, e ao mesmo tempo
de uma estranha sedução de sangue, fumaça e violência "
95
O autor ainda faz uma análise acerca do Barroco, como expressão da identidade mestiça
e como resultado criativo da mescla de duas culturas. O artista plástico Raul Lara, para Mesa,
é a grande expressão artística deste Barroco, mas a preocupação de Mesa está mais vinculada
com a representação iconográfica e artística do que com uma hermenêutica destas
representações, um exemplo é a obra de Lara “Van Gogh en el altiplano”, uma imagem de Van
Gogh com sua “bola de coca” em uma bochecha, vestido de mineiro. No fundo da obra é
possível ver um nevado e diante de Van Gogh um sujeito de costas com seu ch’ullo parece estar
dialogando com a figura principal. Contudo, o grande mérito de Raul Lara parece ser o de trazer
o pintor holandês para a realidade dos mineiros de Oruro, sua terra natal.
Outro aspecto que para Mesa determina o processo de mestiçagem é a escrita, ou como
ele situa, a burocracia imperial espanhola. Para o autor, a massiva utilização por parte dos
indígenas da “América Andina” de selos em papéis e assinaturas para confirmar sua
autenticidade, é um símbolo do legado da palavra escrita espanhola, esse legado é evidenciado
para o autor como um elemento da mestiçagem. Para colocar em dúvida esse legado como
construção de uma identidade mestiça, relato um evento que aconteceu durante o meu trabalho
de campo no mês de outubro de 2018. Roger Chambi e eu fomos convidados para auxiliar na
organização do Primer Encuentro de Autoridades de Justicia de Abya Yala, na comunidade
Aymara de Parcopata, no decorrer do evento fui tomada como representante internacional em
166
Desenvolverei mais adiante um pouco da religiosidade andina que tive acesso, colocando os sujeitos
interlocutores e possibilitadores desta pesquisa em diálogo com as premissas de Mesa.
167
"A sereia, como tantos outros personagens e elementos que eram originalmente europeus ou indígenas, já são
referências mestiças "
96
favor da justiça originária e me fizeram falar algumas palavras que fomentassem a existência
do evento. O que enfatizo deste evento foi o último dia em que todas as autoridades de dezenas
de Ayllus me pediram para assinar o caderno que levavam, observei o caderno de uma das
mulheres autoridades que dialogou comigo no caminho que percorremos até Parcopata, nele
havia uma descrição detalhada de tudo o que foi apresentado durante as reuniões, a senhora
Aymara relatou que necessitava explicar tudo para a sua comunidade, porque estava ali como
representante, disse enquanto eu assinava seu caderno, que o cargo de autoridade não deveria
apagar os deveres que uma pessoa tem com a comunidade, é uma responsabilidade a mais que
se assume. Esse evento parece demonstrar que a apropriação da escrita entre os aymaras não
está desvinculada de sua relação com a comunidade, tampouco de sua própria ontologia, a
escrita se configura como um instrumento para consolidar e legitimar a responsabilidade que a
autoridade tem com o Ayllu.
Uma semana antes do dia de Todos los Santos, Dona Hilda Chambi reúne alguns
componentes da família para a preparação de pães em um forno público. O lugar, localizado na
Avenida Costanera em El Alto, estava repleto de pessoas desde a madrugada do domingo
anterior ao dia de Todos los Santos. Aguayos coloridos e repletos de ingredientes, enfeitavam a
longa fila composta por crianças, adultos, jovens visivelmente irritados por terem acordado
cedo e cholas sentadas sobre suas polleras, aguardando o momento para sovar a massa que será
necessária na produção dos diversos tipos de pães que serão ofertados nas mesas aos seus
mortos. Dona Hilda me explicou, enquanto esperávamos na fila, que este ano fariam apenas três
97
arrobas de farinha, uma vez que não estávamos mais nos três anos após a morte de seu marido:
“Cuando una persona muere hay que hacer por três años una mesa grande, de un quintal de
harina, esa es la tradición!”168. Levamos todo um dia na preparação dos pães, separamos a
massa e deixamos que crescessem em grandes recipientes preparados pelos responsáveis do
forno público. O lugar era extremamente quente e com menos ar que o normal dos andes, uma
mesa central estava disposta para o corte das massas e para a preparação das T’ant’awawas169
pelos trabalhadores do forno, enquanto as famílias retiravam os pedaços de massa já
descansados e levavam para uma mesa externa, onde enchiam as empanadas de queijo
misturado com ají amarillo, o papel dos filhos, em geral, era cruzar as beiras das empanadas
delicadamente para que o queijo não vazasse dos pães, lembrando que a qualidade da estética
das empanadas, estava simbolicamente relacionada com o carinho que se sente pelo visitante170.
168
"Quando uma pessoa morre, você tem que fazer uma grande mesa por três anos, de um quintal de farinha, essa
é a tradição!"
169
Em Aymara t’ant’a é traduzido como pão e wawa como criança, na tradição de Todos los Santos, esse é o pão
que será doado às crianças que virão rezar para os mortos, as t’ant’awawas são feitas em diversos formatos, como
cholitas, cavalos, homens aymaras com seus ch’ullos, todas elas representando os mortos. Nas t’ant’awawas são
inseridas carinhas de gesso de cholitas, de homens aymaras com seus ch’ullos e imagens de cavalos, dependendo
a figura que se deseja representar.
170
Aquele para quem fazem a mesa.
98
anos, despejavam os pães assados sobre os aguayos estirados pelas senhoras. Cada família era
responsável por levar algo que identificasse suas latas, no nosso caso, eram as latas com pedaços
de papelão da marca de produtos Kris.
FOTO 8. T’ant’awawas
que serão oferecidas para
Don Ascencio Chambi,
do lado esquerdo pode-se
perceber os pedaços de
papelões Kris – Foto
minha.
Dona Hilda me deixou responsável por levar os pães no aguayo até a parte externa do
forno, neste espaço, muitas mulheres com suas wawas (crianças) estavam sentadas perto de
99
panos estirados no chão, esperando a chegada dos pães quentes para espalhá-los e esperar que
esfriassem. Os panos de Dona Hilda estavam em um canto que ela havia preparado, ela se
posicionou em uma das pontas esperando que eu trouxera as oferendas quentinhas. Quando
todas as prendas estavam mais frias sobre os tecidos, Dona Hilda juntou as quatro pontas
fazendo um embornal e cada um de nós carregou os pães cuidadosamente até a casa. O aroma
da massa, uma mescla de farinha de trigo com farinha de milho, perfumava o ambiente.
No decorrer da semana, parte dos pães foi consumida pela família, outra parte foi
presenteada aos seres queridos que vieram visitá-los, mas as oferendas principais foram
guardadas carinhosamente para a ilustre visita, que chegaria no dia primeiro de novembro.
A festividade de Todos los Santos tem início ao meio dia do 1 de novembro, é nesta hora
que chegam as almas. A mesa de Don Ascencio Chambi, o falecido esposo de Dona Hilda,
começou a ser preparada às 11:00, enfeitávamos tudo enquanto a filha mais velha preparava a
comida preferida do pai. Construímos a mesa com todos os elementos e no ápice, foi colocada
a foto do visitante. Roger me advertia: “Hay que acompañar el papá, no tenemos que dejarlo
solito!”172. Almoçamos juntos à mesa e passamos toda a tarde em família, conversávamos sobre
como foi Don Ascencio, vimos fotos antigas, assistimos filmes, era um momento em que a
família compartilhava tudo com o visitante, com sua presença.
171
Planta aquática utilizada por aymaras e quéchuas para a construção de barcos.
172
"Temos que acompanhar o pai, não o deixar sozinho!"
100
FOTO 9. Mesa de Todos los Santos para Ascencio Chambi Verástegui - Foto minha173
Exatamente às doze horas do dia seguinte era necessário “despachar” a alma, nesta
ocasião viriam familiares e pessoas estranhas à família para rezar ao morto, e em troca, receber
um pouco da comida que decorava a mesa. Saímos às ruas de Villa Adela, um sem número de
mesas eram dispostas na rua, desde a praça para muito além de onde a vista alcançava.
Caminhamos entre as mesas de muitas famílias, ali senhores, senhoras e crianças perguntavam
aos donos das mesas: “Se lo rezaré?”, com a afirmativa, os mesmos entoavam uma canção em
Aymara como oração para as almas:
173
Foto tirada antes da chegada do visitante, o prato preferido de Don Ascencio, bisté – carne cozida, batata em
tunta e caldo –, era preparado pela irmã mais velha.
101
Finalizada a entoada, os que recebiam junto aos que ofertavam diziam em uníssono:
“Que se reciba la oración”. Roger me explicava que a oração era um diálogo com a alma que
voltaria ao mundo dos mortos pelo caminho que percorreu ao morrer. Percebi que muitas das
pessoas que víamos em situação de rua, caminhavam de mesa em mesa para entoar a oração,
ao comentar isso com Roger ele me explicou: “La gente que reza, generalmente, es gente de
bajos recursos. Entre ninõs y personas mayores van a rezar a las mesas para obtener pan,
frutas, galletas y dulces. Esa fecha mucha gente vá encontrar alimento a cambio de oraciones.
El hacer la mesa en vía pública y ofrecer los alimentos a la población es un modo de
compartir!”175. Nosso objetivo era chegar até o Cemitério de La Paz, no entanto, levamos todo
o dia percorrendo as mesas de Villa Adela.
174
“Anjo de glória, anjo do céu
Quem é seu pai?, se te perguntarem
Quem é sua mãe?, se te perguntarem
São José Pai, tem que dizer
Virgem Maria, tem que dizer
De onde vem com tanta pressa?, se te perguntarem
De um mundo chuvoso, do centro do mundo,
deve dizer
Eu passei por três calvários
Eu passei por três calvários
Deve dizer, pequeno anjinho” (tradução minha)
175
"As pessoas que rezam, geralmente, são pessoas de baixa renda. Entre crianças e idosos vão rezar nas mesas
para buscar pão, frutas, biscoitos e doces. Nesta data, muitas pessoas encontrarão comida em troca de orações.
Fazer a mesa nas vias públicas e oferecer comida para a população é uma forma de compartilhar!”
102
***
176
“Nossa, outra vez pão de Todos los Santos? Já estão duros!”
177
“Tem que comer todo o pão, não pode jogar fora. O pão é sagrado!”
178
Forma despectiva de categorizar as pessoas brancas de classe alta.
179
“Eles eram Mórmons”
103
em um cholet, onde serão oferecidas às divindades as mesmas regalias que desfrutavam estes
qamiris em suas festas pessoais.
180
“Esta Ñatita é pré-colombiana”
181
“Poderíamos comprar uma coroa de flores assim”
182
“Não, Chrys, agora você deu vontade para a Ñatita, não pode fazer isso, elas são muito poderosas.”
183
Antojo pode ser traduzido como anseio, mas como apresentarei mais adiante é uma categoria que carrega
sentidos próprios.
184
“É possível oferecer coca?”
104
vez um pouco alterado. Confesso que foi extremamente complicado, diante da minha
curiosidade do que seria mais pertinente oferecer, compreender que as Ñatitas poderiam
antojarse com as minhas perguntas, isso me trouxe à memória uma ocasião em que comentei
com Roger se poderíamos fazer uma mesa para agradecer a Pacha e ele enfático disparou:
“Ahora hay que hacer, no se puede antojar la Pacha”185. Em outra ocasião, compramos velas
para as pedras que Roger possui da wak’a (espaço sagrado) La Curva del Diablo e deixamos
em algum lugar que não lembrávamos, neste momento, Roger foi até a venda da esquina,
comprou duas velas e as acendeu diante das pedras, “No se puede antojar la wak’a!”186, me
disse.
Na circunstância do cemitério, senti que havia uma barreira entre a minha perspectiva e
a de Roger, eu precisava perguntar para não parecer inconveniente, mas não compreendia que
tudo ao meu redor era sujeito, as perguntas em si já eram inconvenientes. Senti uma impotência
por me dar conta da minha limitação em insistir com perguntas, Roger olhava as flores e
escolhia as que mais gostava: “Casera, vendeme coquita, con una lejía de menta más!”187 dizia
para a senhora sentada em um canto com seu barril de coca. Voltamos a entrar na sessão em
que se encontravam as Ñatitas, carregando duas coroas, duas velas e um saquinho de coca.
Rezamos para a Ñatita de Silvia Rivera e fomos caminhar pelo cemitério.
Dias depois dialoguei com Roger sobre a categoria antojar, ele relatou que existem
muitas entidades que podem antojarse, o antojo da Pachamama tem relação com as
necessidades desta entidade, informação dada por meio de um yatiri. Roger me relatou uma das
conversas que teve com Don Felipe Quispe, El Mallku, em que Don Felipe explicava que para
a Pacha, era necessário ir a um yatiri para perguntar qual o tipo de mesa que esta divindade
necessitava, não era qualquer mesa que satisfaria seu antojo, os yatiris, por meio da leitura da
coca, diriam se é uma mesa branca, com ou sem feto de llama (phuyu), dentre outros elementos
possíveis. No caso do antojo de divindades, como as Ñatitas e as Wak’as, Roger explicava que
existia uma determinação mais subjetiva de quem crê, se uma pessoa diz ou pensa que pode
fazer algo para essas divindades e não o faz, será considerado tacaño e será castigado, em suas
palavras: “Si nosostros tenemos dinero y podemos comprar algo para la Ñatita, no devemos
privarnos de hacerlo, mientras más mejor. Por eso cuando tu me dijiste: ‘Compraremos tal
cosa’ y teníamos la posibilidad de hacerlo, si yo me negaba estaría haciendo mal a la Ñatita y
185
“Agora teremos que fazer, não podemos deixar a Pacha com vontade”
186
“Não pode deixar a w’aka com vontade”
187
“Caseira, vende-me coquinha, com lejía de menta”
105
ella nos castigaría”188. O que informava meu companheiro, neste momento, era a relação de
comunicação que havia entre os sujeitos presentes, um alargamento da categoria de pessoa para
além do que minha epistemologia poderia alcançar.
FOTO 12. Queima de mesa para a Pachamama, Dona Hilda Chambi ch’allando - Foto minha
***
A defesa de Mesa Gisbert (2013) de uma Simbiose Religiosa, deixa de considerar alguns
aspectos fundamentais para o entendimento das religiosidades, dentre eles, a ontologia dos
sujeitos que cultuam algumas divindades. Como situado acima, o fato de apropriar alguns
símbolos ou datas religiosas da cultura “ocidental”, não determina a lógica pela qual os aymaras
vão desenvolver sua própria religiosidade. As ñatitas são benzidas em igrejas por padres
católicos, o que não quer dizer que se cultua esse símbolo em todos os espaços católicos, o que
diferencia o catolicismo ortodoxo do catolicismo Aymara. Dona Hilda Chambi me dizia que
não fazem mesas na Zona Sur, ou seja, nos espaços mais brancos e elitizados, isso pode ser
explicado porque a mesa para Todos los Santos é um elemento bem específico da epistemologia
188
"Se temos dinheiro e podemos comprar algo para a Ñatita, não precisamos nos privar de fazê-lo, quanto mais,
melhor. É por isso que quando você me disse: 'Podemos comprar isso' e nós temos a possibilidade de fazer, se eu
recusasse, estaria fazendo mal para a Ñatita e ela nos puniria”
106
Aymara, de uma lógica de morte. Em outro momento, enquanto olhava o crucifixo que Dona
Hilda tem em sua cozinha, perguntei se ela era católica, ela, olhando firmemente para o
crucifixo feito de palha me respondeu: “Yo creo en jesus, así como sé que existe la
Pachamama!”189. Dona Hilda me apresentou um elemento que eu já conhecia por meio de
alguns referenciais históricos, o politeísmo e a possibilidade de apropriação religiosa entre os
aymaras. Ela me relatou que em sua comunidade, há muitos anos, os representantes da Igreja
Católica construíram uma Igreja no local onde os comunários costumavam rezar para a w’aka,
desde então, rezavam para as divindades das montanhas e para jesus.
La chola Aymara
Todas as teorias que eu escutava ou lia sobre a identidade Aymara, colocava em debate
com Dona Hilda Chambi. Uma das ocasiões foi quando escutei, em um programa de Maria
Galindo (representante do grupo Mujeres Creando), uma entrevistada dizer que não usava a
pollera e não se vestia como chola porque isso a limitava, não poderia fazer ondas no cabelo e
colocar uma calça jeans, essa era a limitação apresentada pela entrevistada. Quando expus isso
à Dona Hilda, ela me respondeu: “Nosotras tenemos muchos tipos de polleras, cuando salimos
a una fiesta, cuando vamos a cosechar, nuestra pollera no es limitada, es parte de quien
somos!”190. Quando questionada acerca da escolha por usar a pollera ela me respondeu,
enquanto enrolava nos dedos a massa dos churros que seriam produzidos na madrugada:
“porque es lo que somos”. Em nenhum momento me pareceu uma limitante a escolha estética
identitária para Dona Hilda, todas as vezes que se referia à pollera ela sorria, falava da
diversidade que tinha, das cores, e todas as vezes que se aprontava para dançar a morenada,
expressava uma elegância inigualável que me absorvia.
Dona Hilda pode ser caracterizada como a imagem da Chola Paceña, porque utiliza os
adereços que compõem essa identidade: a pollera ou saia longa com pregas e camadas, por
cima de uma dezena de manqhanchas (saias de renda); a manta de tecido grosso segurada por
um alfinete; suas tranças compridas com tullmas (fitas de tecido grosso ou lã de carneiro) nas
pontas; e o chapéu borsalino. Alguns elementos são inseridos no seu vestuário dependendo do
espaço em que se encontra e das condições, um exemplo está em quando ela se arruma para
189
“Eu acredito em Jesus, assim como sei que a Pachamama existe!”
190
"Temos muitos tipos de polleras, quando saímos para uma festa, quando vamos colher, nossa pollera não é
limitada, faz parte de quem somos!"
107
entregar churros entre os vendedores locais, o aguayo carregado sobre as costas é um elemento
importante. Outro exemplo, está em quando se arruma para alguma festa importante, as jóias
sobre o chapéu, brincos e um alfinete (chamado tupu em Aymara) especial para segurar a manta
são elementos determinantes.
Em uma das madrugadas que despertamos para preparar os churros, dia 2 de fevereiro,
aniversário de dois dos filhos de Dona Hilda, ela começou a contar-nos um pouco de sua vida
até o momento do nascimento do seu primeiro filho. Aproveitando sua disposição em falar
sobre memórias, perguntei sobre duas fotos que ela guardava, e que me foram mostradas pelos
filhos no dia da mesa de Todos los Santos, de quando trabalhava na casa do ex-presidente da
Bolívia. Ela me explicou que fugiu de Ch’ojñapata para a cidade de La Paz com nove anos de
idade para trabalhar de empregada doméstica nos bairros da elite paceña, isto porque queria ter
acesso às roupas mais novas que não poderia comprar com a renda da família. Dona Hilda
caminhou cerca de vinte e cinco quilômetros para chegar até o pueblo de Achacachi, onde
tomou um ônibus com destino a La Paz. Na época, Dona Hilda era falante de Aymara e não
191
É importante dizer que o espanhol falado pelas cholas com quem tive contato é bem vinculado à estrutura
linguística do Aymara, um exemplo é a aplicação de gêneros em frases como: “Mi mano está rojo”, a palavra
mano que em espanhol está vinculado ao gênero feminino é determinada com o adjetivo rojo, vermelho em
espanhol, ao invés da utilização de roja. Isso se dá porque a mesma frase na língua Aymara não apresenta
determinação de gênero. Peredo (1992), denomina esta língua como “casti-imillano”, um castelhano das imillas
(meninas em Aymara), maiormente relacionado às cholas e que tem alguns traços como “dice-diciendo” (“siw-
siwa”), como uma afirmação do que se constata, um exemplo utilizado por Peredo é: “ ‘... mi hija no va a ser así’,
dice que decía (VIOLETA).” (PEREDO, 1992, p.116). Outro artifício do casti-imillano é o espelho, ou seja, dizem
algo e voltam a repetir em outra ordem, um exemplo é: “... los dos es igual para mí, para mí igual es. (Violeta).”
(PEREDO, 1992, p.117).
108
tinha nenhum conhecimento do castelhano, foi com o trabalho de empregada doméstica que ela
aprendeu esta segunda língua, conta. O motivo pelo qual ela deixou o trabalho e voltou ao
campo, tem relação com uma das fotos em que está Dona Hilda com uma criança em seus
braços, ela foi contratada para “acompanhar” o ensino desta criança nos Estados Unidos, mas,
segundo ela, não conseguiu deixar a Bolívia.
D. Hilda: Es su hijito del General, tenía que irme a Estados Unidos. Yo tenía
que irme a cuidar a ese niño en Estados Unidos y yo me he escapado del
avión, me he asustado por los gringos en el avión.
D. Hilda: Sí, me escondí detrás de los autos, de los taxis que se estaban
viniendo del general, sé venirme corriendo. Me estaban llevando.192
FOTO 13. Dona Hilda Chambi segurando o filho de Hugo Bánzer Suárez, na parte traseira da foto, a dedicatória:
“Para Hilda”, acompanha a data (1972) e algumas palavras em inglês.
Depois de Q’itar (escapar em Aymara) do avião, e por uma doença da mãe, ela voltou
para Ch’ojñapata e conheceu Don Ascencio Chambi Verástegui, com quem se casou aos
quatorze anos de idade. Entre as confidências de Dona Hilda nesta manhã nublada e fria, o
cheiro de óleo quente mesclado com o cheiro do doce que recheia os churros, sorrisos
192
“D. Hilda: Este é o filho do General, eu tinha que ir para os Estados Unidos. Eu tinha que ir para cuidar dessa
criança nos Estados Unidos e fugi do avião, fiquei assustada com os gringos no avião.
Chryslen Mayra: Sim?
D. Hilda: Sim, eu me escondi atrás dos carros, dos táxis que vinham do general, vim correndo. Eles estavam me
levando.”
109
193
"Se os homens dos Andes não aceitam que a Whipala e o pututu, símbolos quase sagrados de sua 'alteridade'
são, como a pollera e o charango, filhos de mestiçagem cultural, eles não assumiram algo central: que o passado
não se hipoteca, não se embarga, se assume ou não se assume.”
194
Whipala é a bandeira da nação Aymara, já o pututu é um instrumento de som construído com chifres de animais
utilizado em momentos de conflito social.
110
Acredito que esta perspectiva analítica de Mesa, a parte de ser política, considerando
sua relação com o Movimiento Nacionalista Revolucionario, é pouco justa com as práticas dos
sujeitos que utilizam os elementos citados. Com exceção de intelectuais e pessoas vinculadas
aos movimentos políticos e artísticos, a Whipala e o Pututu, continuam sendo elementos
importantes para a cultura Aymara, o primeiro como símbolo da nação e o segundo como um
instrumento de organização política195. No entanto, de todos os símbolos evidenciados por
Mesa, a pollera é o que utilizarei para desmistificar a mestiçagem construída pelo autor.
Considerar que os elementos apropriados pelos sujeitos transformam sua relação com a
própria cultura pode parecer uma perspectiva ultrapassada pelos estudos antropológicos, mas
continua construindo sentidos em diversos espaços, por isso necessitamos nos debruçar sobre
essas teorias. Acredito que Sahlins contribui com elementos importantes para o debate,
especialmente seu trabalho “O pessimismo sentimental e a experiência etnográfica: Por que a
cultura não é um ‘objeto’ em via de extinção (Parte I)” (1997), neste texto o autor defende que
a entrada de alguns sujeitos no mercado não deve ser lida como aculturação, mas deve ser
problematizada a partir de pressupostos epistemológicos, compreender as sociedades em um
contínuo desaparecimento é, também, compreendê-las em uma contínua reestruturação, que
pode ter relação com processos de colonização, mas que não deve se limitar a isso quando
consideramos suas modificações. Para Sahlins, a “tarefa da antropologia agora é a
indigenização da modernidade” (SAHLINS, 1997, p.53), ou seja, perceber o movimento de
dentro das epistemologias indígenas ao apropriar a modernidade a partir dos próprios termos,
construindo outras agências no interior da modernidade, que se quer universal e homogênea.
Isto não tem que ser lido como um elogio romântico aos processos de contatos violentos entre
as culturas indígenas e modernas, mas uma reflexão da complexidade destas relações quando
analisamos sociedades que apropriaram a cultura ocidental para sua própria existência. Sahlins
sugere que a inserção dos grupos tradicionais à economia global pode ser um enriquecimento
mútuo, em especial, quando as culturas tradicionais ocupam estes espaços nos próprios termos.
Um exemplo dado por Sahlins, é a utilização da moeda pelos Mendi da Nova Guiné, que
infundem seus próprios significados nos objetos estrangeiros, assim consideram a
masculinidade e feminilidade vinculadas ao dinheiro nos espaços de troca, deste modo, ainda
que os bens sejam europeus, as necessidades atribuídas a eles não.
195
Esta análise não considera os usos de tais símbolos feitos pelo Estado.
111
Lissete Sahonero em “El Traje de la Chola Paceña” (1987), constrói uma análise acerca
desta vestimenta considerando uma suposta imitação feita pelas aymaras de trajes ocidentais e,
sua perpetuação no tempo, perdendo sua “categoria original” de estrutura e transformando-se
em um estilo permanente, valorizado pelas “classes populares”. A autora compreende a chola
196
A dissertação de Duvan Ricardo Murillo Escobar junto aos Misak em território Colombiano, me parece
interessante para o tema da tradição em movimento. Escobar constrói um metálogo com o misak Javier, onde
temas sobre a categoria “originário” são tocados. Javier comenta que: “el Misak de ahora debe seguir tejiendo en
ser multilingüe y multicultural enfocado en la intracultural, fortaleciendo y revitalizando en cada momento
nuestras memorias y prácticas culturales, y lo transcultural donde se contemple lo común de todas las culturas
en términos universales sin desmeritar la realidad actual; debe ser intercultural mirando teniendo en cuenta los
procesos económicos, políticos y sociales de las demás culturas del mundo.” (ESCOBAR, 2017, p.124). Duvan
evidencia a facilidade dos Misak na inclusão de elementos exteriores nos procesos de aprendizagem, essa
perspectiva está muito próxima ao que apresenta Sahlins, especialmente a uma lógica que pensa a tradição como
movimento.
197
Apresentação durante o Primer Encuentro del GT: Derecho, Clases y Reconfiguración del Capital,
disponibilizada pelo Colectivo Jichha, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=I4fiQPgLwz8
198
Festa anual que acontece em honra à Jesus del Gran Poder, uma figura do catolicismo local.
199
A relação entre economia e etnicidade será desenvolvida por mim durante a pesquisa de doutorado nesta mesma
instituição.
112
como um sujeito mestiço que carrega um traje de origem espanhol, mas que, ao mesmo tempo,
contêm um plano de fundo “autóctone” (SAHONERO, 1987, p.9).
A autora retoma a genealogia espanhola da palavra chola como chulo, que segundo a
Real Academía Española significa “individuo do povo baixo de Madrid, que se distingue por
certa afetação e beleza no traje, e no modo de produzir-se” (SAHONERO, 1987, p.23 trad.
minha). O feminino de chulo é chula, que dentre suas características utiliza uma saia longa com
uma blusa enfeitada e, sobre os ombros, carrega uma manta. A autora estrutura sua observação
em um ir e voltar no tempo, associando as primeiras utilizações do termo aos usos direcionados
atualmente para essa identidade, em suas palavras: “La palabra ‘chola’ (femenino) se sigue
utilizando en el sentido de ‘mujer de pueblo’, mientras que el masculino ‘cholo’, se usa en
Bolivia en forma despectiva, de acuerdo a su calidad moral, como hombre ruin, vil.”
(SAHONERO, 1987, p.23)202.
Esta divisão entre as duas palavras, chola e cholo, é sustentada no livro “El índio y el
cholaje boliviano” de Fausto Reinaga, no qual o autor retoma a perspectiva de Gustavo Adolfo
Otero de que a proliferação da palavra cholo no Alto Perú (como era definido o território
200
"Eles usam camisetas, até o joelho, sem tamanho nem feição e trazem por capa uma manta quadrada de oito
palmos, que suas mulheres tecem, lã de gado que eles têm aqui, em alguns eles jogam cores que fazem alguma
diferença e gala"
201
A autora não delimita o que compreende como “classes populares”, tampouco há em seu texto uma distinção
entre indígenas e mestiços.
202
"A palavra 'chola' (feminino) ainda é usada no sentido de 'mulher do povo', enquanto o masculino 'cholo' é
usado na Bolívia de maneira depreciativa, de acordo com sua qualidade moral, como um homem mau, vil .”
113
boliviano no contexto colonial) é feita de maneira depreciativa, a palavra cholo seria, para ele,
proveniente da Guatemala que, nos primeiros dias da colônia assim denominavam os cachorros
peludos, feios e sujos. “Luego se usó en la misma forma infamante que el chulo de los bajos
fondos madrileños” (REINAGA, 1964, p.9)203. O que os autores comunicam aqui, é a
impossibilidade de ler a chola vinculada ao cholo enquanto uma única identidade, este será um
elemento fundamental para compreender os discursos de cholaje mais adiante.
Según Peter Mc Farren “... una de las cosas que más llama la atención de
los visitantes de La Paz, es que las indias aymaras lucen el infaltable
sombrero hongo o bombín. Las mujeres aymaras, que dominan el comercio
minorista en la capital, usan bombines negros, marrones o grises, mientras
venden frutas y verduras, o minicomputadoras. En otros países, este modelo
de sombrero lo usan los hombres, pero los varones bolivianos prefirieron otro
estilo. Cuenta una historia que el embarque de bombines llegó a Bolívia por
equivocación, y un avispado comerciante convenció a las aymaras que usarlo
les garantizaba fertilidad”. (SAHONERO, 1987, p.43-44 – grifo meu)204
Uma informação muito importante deste fragmento retomado por Sahonero, é de que os
“visitantes de La Paz” percebiam as mulheres que apropriaram o chapéu borsalino como “índias
aymaras”, as mesmas que dominam o comércio minorista na cidade – a chola de mercado -, ou
seja, de postos comerciais menores. A perspectiva de outra autora que analisa a identidade
chola, Ximena Soruco, contraria esta afirmação, para Soruco em “La ciudad de los cholos.
Mestizaje y colonialidad en Bolivia, siglos XIX y XX” (2012), a definição da identidade chola
está tanto no âmbito do mercado, quanto no âmbito da urbanidade, como um sujeito mestiço.
Soruco pensa o mestiço/cholo como um setor que começa a se fazer notar durante o
século XIX, isto se dá pela modificação nos discursos criollos de nação, uma vez que já não é
possível, após 1825, manter o discurso de que este setor não deve se envolver na mão-de-obra
203
"Então foi usado da mesma forma infame como o chulo do submundo de Madrid"
204
Segundo Peter Mc Farren "... uma das coisas que mais chama a atenção dos visitantes de La Paz, é que as índias
aymaras usam o inevitável chapéu-coco ou bombín. As mulheres aymaras, que dominam o comércio minorista na
capital, usam bombíns negros, marrons ou cinzas, enquanto vendem frutas e vegetais, ou minicomputadores. Em
outros países, esse modelo de chapéu é usado por homens, mas os bolivianos preferiam outro estilo. Conta a
história de que o embarque de bombíns chegou à Bolívia por engano, e um comerciante esperto convenceu as
aymaras de que usá-lo garantia a fertilidade.”
114
por ser “coisa de índio”, com uma clara divisão de postos entre estes e os setores mestiços e
indígenas, o que obriga a que os criollos modifiquem seu discurso sobre si mesmos.
Desde 1874, com o auge da prata e do estanho na economia boliviana, o Estado deixa
de depender do tributo indígena (o que não significa que deixa de depender da mão de obra
indígena, pois os trabalhadores das minas são quéchuas e aymaras), a partir desta estrutura o
Estado começa a expropriar as terras comunitárias, uma vez que anterior a este período, estava
em vigência um pacto implementado pela colônia de que o pagamento de tributos por parte dos
indígenas possibilitaria a proteção da propriedade comunitária por parte do Estado (Platt, 1982).
A aliança entre Zárate Wilka e o partido liberal de Pando, apresentada no primeiro capítulo,
surge deste mal-estar. Neste sentido, para Soruco, a primeira fonte de legitimação deste bloco
dominante de La Paz é tentar impedir a “guerra de razas” que poderia irromper.
Na perspectiva da autora com a construção do discurso de nação voltado para uma lógica
dicotômica criollo-indio, o espaço intermediário entre Estado e comunidade começa a ser
ocupado pelos mestiços possibilitando uma ascensão econômica deste setor. Ainda que a autora
não defina o que diferencia estas três identidades, além da questão econômica e territorial, uma
205
"[...] os setores criollos tiveram que transformar seu discurso sobre si mesmos, os outros e a nação que
imaginavam de acordo com as disputas entre as elites regionais para adquirir a hegemonia nacional, mas também
em resposta à dinâmica social daqueles que dominavam; isto é, às alianças de resistências e interpelações de
inclusão política dos mestiços e indígenas a quem eles tinham que impor a ideia de uma nova nação ".
115
lógica que atravessa o trabalho de Soruco é a de que a determinação da identidade indígena está
vinculada ao território rural.
Ligada à tese de Barragán (1997), Soruco analisa a “população mestiça feminina” que
apropria a roupa espanhola durante a Colônia com fins de ascensão social, a opção deste setor
pela manutenção da vestimenta no século XIX, quando se torna anacrônica à moda criolla,
constitui o estigma racial da chola. Para Barragán (1997) a manutenção da vestimenta
anacrônica institui sobre essas mulheres uma diferenciação entre o sujeito indígena e o sujeito
criollo, sendo possível a interação com ambos mundos.
Um sucinto trabalho de Josermo Murillo Vacareza, intitulado “La Pollera” (1982), faz
uma análise da indumentária tanto socialmente quanto historicamente situada, compreendendo
a construção desta identidade vinculada à pollera especialmente durante a Guerra do Chaco.
No entanto, como em todos os trabalhos que tratam o tema das cholas e suas vestimentas, a
mestiçagem é uma análise indispensável, Vacareza direciona sua crítica para a lógica de
identidade nacional, que considera a pureza étnica do nativo na base da sociedade e o prestigio
cultural de um grupo superior incontaminado no ápice, o mestiço para o autor está em um setor
referenciado como impróprio no interior destes discursos. Acerca da genealogia dos termos, o
autor se refere a cholo em uma raíz árabe, na qual a palavra chul significa “joven ágil y
vigoroso”, mas a apropriação espanhola do termo, aplicou este a pessoas que trabalhavam em
oficinas e na área de artesanatos na Espanha (VACAREZA, 1982, p.15). Para Vacareza, a
apropriação boliviana do termo cholo, relaciona tanto o significado árabe, quanto a
ressignificação espanhola, o cholo era pensado como ágil e vigoroso, mas também como o
sujeito que desenvolve trabalhos em setores artesanais da economia, diferente dos mitayos
indígenas que trabalhavam no setor servil. Essa entrada no setor mercantil boliviano é uma das
características que vai perdurar na determinação da identidade do cholo.
116
O autor não explica a diferença entre a identidade do cholo e da chola, sendo a pollera
associada à segunda. A pollera seria uma forma demonstrativa de melhor posição com relação
às comunidades indígenas, uma vez que definia a diferença da chola entre as mulheres aymaras
e as mulheres brancas, ocupando um espaço intermediário. Para ele, as mulheres criollas
seguiram os padrões de moda europeu, enquanto as cholas não, estas últimas são lidas por
Vacareza como anacrônicas. O anacronismo é determinado pelo autor a partir da categoria
“moda”, ou seja, a moda como fenômeno da vida social institui uma imitação por imposição ao
costume, variações socialmente aprovadas que se propagam a todas as classes sociais
(VACAREZA, 1982, p.43-44). Para Vacareza a distinção entre as roupas apropriadas pelas
classes altas e o uso da pollera, se dá porque as primeiras modificam suas vestimentas com o
tempo e com as transformações da moda, enquanto o uso da pollera permanece de maneira
anacrônica.
Parece-me uma análise pouco apurada da pollera considerá-la fixa em um tempo. Tanto
os diálogos com Dona Hilda, quanto o próprio campo nas comunidades e na cidade de El Alto,
me mostraram as transformações da pollera no tempo, a chola antigua do começo do século
XX representada em muitas festas de Morenada, utilizava uma pollera mais curta com uma
bota de salto, as polleras utilizadas em festas como o Gran Poder são mais volumosas e com
tecidos específicos, distintos das polleras utilizadas no cotidiano. A Comadre Remédios
206
"precisamente a divisão do trabalho que se pronunciou tão sincronicamente quanto a mestiçagem, destinou aos
aborígenes a serem sustentados pela produção da terra e atribuiu aos mestiços a produção artesanal, desde que os
espanhóis e seus filhos os criollos tinham o privilégio de não trabalhar. "
117
Loza207, foi uma chola vinculada ao Partido CONDEPA (Conciencia de Patria) de Carlos
Palenque, a luta pela qual ficou conhecida tem relação com a posição desta enquanto chola nos
espaços políticos e a utilização de maquiagens e elementos estéticos antes impossíveis de
associação com a chola. Remédios Loza e muitas outras mulheres, como Yola Mamani
(militante do grupo Mujeres Creando), representam modificações possíveis na vestimenta,
demonstrando que se esta é lida a partir da perspectiva criolla, sempre será considerada
anacrônica, mas se começarmos a analisá-la a partir da perspectiva da chola, o anacronismo
perece.
207
Nascida em 1949, a comadre Remédios Loza faleceu durante a minha estadia em La Paz em dezembro de 2018.
Remédios foi a primeira mulher de pollera a conduzir um programa na rádio boliviana, nos anos 1980 foi a primeira
mulher de pollera a se tornar representante política no parlamento boliviano, seu partido era o Conciencia de
Pátria (CONDEPA), partido de Carlos Palenque, el compadre, ambos tornaram-se figuras conhecidas e amadas
pela população boliviana porque ajudavam pessoas necessitadas nos programas de rádio e televisão em que
trabalhavam. Em 2018, semanas antes do falecimento de Remédios Loza, participei junto aos movimentos
aymaras, do festival Aymara Fest, festival de música Aymara, na ocasião Remédios Loza, que já padecia de câncer
e não pôde comparecer ao evento, enviou um áudio para os coletivos aymaras evidenciando a importância da
língua e da identidade Aymara.
208
"refere-se ao intercâmbio comercial de favores sexuais em troca de dinheiro de seus amantes criollos"
209
“Nesse eixo discursivo econômico, propõe-se que o discurso racial moderno sobre o cholo não se baseie apenas
nos níveis ideológicos da etnicidade, de gênero e a normatividade moral criolla, mas também na definição de uma
"economia étnica" (Harris, 1995) que interrompe a gestação de uma "burguesia chola". Nesse sentido, a análise da
118
Uma das obras analizadas por Soruco escrita nesta temporalidade é El cholo Portales
de Enrique Finot (1926), segundo a autora esta é a obra que melhor representa o discurso de
antimestizaje210. Nesta obra, Finot conta a história de César Pérez Benavente, que acolhe em
sua casa dois sujeitos inseridos nesta identidade cholo/chola, Domitila Gonzáles e o filho
Evangelino Portales. Segundo Soruco o “senhor” Benavente desenvolve uma “missão étnica”:
“apoyar la educación de Evangelino para convertirlo en un ‘hombre decente’.” (SORUCO,
2012, p. 107)211. Evangelino, caracterizado como cholo, se forma em Direito, mas a “fuerza
atávica de la raza híbrida convierte al sumiso protegido en un traidor” (SORUCO, 2012,
p.107)212. A ideia de antimestizaje proposta por Finot nesta obra sustenta o estereótipo sobre os
sujeitos caracterizados como cholos, que mesmo levados a condições mais privilegiadas
existem males inerentes deste sangue mesclado. A imagem da chola, Domitila Gonzáles, como
sujeito que se sacrifica pela ascensão do filho, deixando de lado a pollera e se submetendo a
condições de “prostituição” por joias e elementos que representam uma ascensão econômica,
também constrói sentidos sobre a imagem da chola.
"antimestiçagem" a partir dos textos literários é complementada por uma aproximação à constituição de códigos
culturais de uma elite chola que se desenvolve com autonomia da esfera letrada, interrompendo constantemente o
tempo homogêneo da modernidade boliviana.”
210
Existe uma corrente na antropologia, representada pelos trabalhos de Márcio Goldman e José Antonio Kelly
Luciani, que trabalha outra ideia de antimestiçagem – neste caso como contramestiçagem -, no entanto, por estar
mais focada ao universo boliviano optei por construir este diálogo em outro espaço.
211
"Apoiar a educação de Evangelino para transformá-lo em um" homem decente. "
212
"força atávica da raça híbrida transforma o submisso protegido em traidor"
213
"Finalmente, este é um corpo-mercadoria (in) desejado porque nele se inscreve a marca racial, a chola torna-se
não apenas uma prostituta, mas uma mestiça grotesca que gera repugnância"
119
Los criollos se obsesionan con el cuerpo de la chola porque éste más que
ningún otro interrumpe su proyecto de pureza racial. La chola no es blanca
ni es indígena, y ella – a diferencia del cholo – ha decidido encarnar esta
diferencia en su propio cuerpo. La vestimenta de estas mujeres constituye un
código visual diferenciado (indisciplinado) en la sociedad estamental
boliviana. Las polleras, la manta que cuelga de su espalda y el sombrero
borsalino corresponden a una moda europea anacrónica, y los elementos
indígenas que completan el conjunto (tupo o prendedor que sostiene la
mantilla), las trenzas anudadas por bolas de lana, el aguayo (tejido andino
que se cuelga en la espalda) convierten a esta presencia en un indeseable
subversor de la pureza (post) colonial que se debe limpiar. (SORUCO, 2012,
p.116-117)214.
Em Tamayo, a chola deixa de ser representada como sujeito sexualizado e passa a ser
construída como madre de la nación. Ainda que Tamayo coincida com Arguedas de que não
existe uma possibilidade de redenção para o sujeito cholo, seu projeto está vinculado a uma
transformação do indígena, por meio da pedagogia, em um mestiço, representação do
desenvolvimento da nação (SORUCO, 2012, p.142). Ainda que Arguedas e Tamayo sejam
214
Os criollos são obcecados com o corpo do chola porque mais do que qualquer outro interrompe seu projeto de
pureza racial. A chola não é branca nem indígena, e ela - ao contrário do cholo - decidiu incorporar essa diferença
em seu próprio corpo. O vestuário dessas mulheres constitui um código visual diferenciado (indisciplinado) na
sociedade estatal boliviana. As polleras, a manta que pendura em suas costas e o chapéu borsalino correspondem
a uma moda européia anacrônica, e os elementos indígenas que completam o conjunto (tupo ou alfinete que segura
a mantilha), as tranças atadas por bolas de lã, o aguayo ( O tecido andino que está pendurado nas costas) torna essa
presença um subversor indesejável da pureza (pós) colonial que deve ser limpa.
120
215
"As nuances entre os dois pensamentos são enfatizadas de acordo com as condições históricas e objetivas da
elite regional em conflito (La Paz e o Sul) em diferentes momentos históricos e discursos políticos (liberalismo,
populismo)".
"Assim, as descrições biologicistas do 'caráter' da raça quéchua os consideram mais propensos à civilização,
216
Além disso ela me deu uma informação determinante para compreender a identidade da
chola, “Aquí toda chola es Aymara, pero ni toda Aymara es chola!”. A chola, para Mamani,
217
Nesse sentido, o chola de origem aymara não pode ser narrada como símbolo nacional; para se tornar uma
metáfora para a nação deve ser completamente ocidentalizada através da educação e esse é o propósito de Díaz
Villamil, fazer de seu romance um programa pedagógico de homogeneização cultural.
218
Aqui a autora se refere à novela literária La niña de sus ojos (1948) de Díaz Villamil.
219
Ela se referia apenas às cholas paceñas.
122
Ximena Soruco (2012), no início e na conclusão de seu livro cria uma ilusão anacrônica
em sua narrativa resgatando os discursos da identidade cholo-chola. A autora narra sua entrada
em um minibús de La Paz levando o leitor a entender que a identidade que analisa entre os
séculos XIX e XX é igualmente performada na atualidade entre as pessoas ali presentes. A
cidade dos cholos em Soruco ruraliza os aymaras ao ponto de que cidade e os indígenas se
tornam elementos impossíveis de serem associados.
Para Soruco (2012), o cholo carrega uma fluidez por estar posicionado entre identidades,
índio e criollo, o que mantem conexões deste com ambos mundos que o compõe. A fluidez da
identidade do cholo também está vinculada às suas impossibilidades no espaço de transição,
ainda que haja uma possibilidade de deixar de ser índio, os sujeitos cholos não podem chegar a
ser criollos, mas ao mesmo tempo, possuem um acesso aos códigos de ambas identidades
“limites” configurando o que Soruco denomina “nós coletivo”, que é passageiro e móvel, mas
que emprega a própria ambiguidade de ser cholo em favor da conexão com os dois mundos
(SORUCO, 2012, p.26).
A autora, ainda, analisa as primeiras aparições da palavra cholo durante a Colônia, uma
delas está em arquivos de 1608, Audiência de Charcas, em que os irmãos Juan e Diego Márquez
são caracterizados como filhos de mestiço com índia, ambos falavam a língua castelhana “como
índios” e comiam e bebiam com estes, segundo o documento apresentado no trabalho de
Paredes Candia (1992). Para Soruco (2012), estes mestiços estavam isentos de obrigações como
123
o “tributo indígena”, mas ao mesmo tempo não recebiam a proteção da Coroa espanhola por
não serem categorizados como índios.
Aqui Soruco expõe sua perspectiva acerca de duas identidades, a identidade do cholo e
a identidade indígena (especificamente Aymara e Quéchua, que são as nações de organização
política ayllu). O cholo, para ela, é aquele sujeito que se afasta da comunidade e através da
migração aspira a uma ascensão social, o indígena seria então, o sujeito que permanece no
espaço rural, vinculado à comunidade ayllu. Um problema desta perspectiva é que a autora não
define o que seria um “respaldo” da comunidade, nem tampouco o que define esta ascensão
econômica, considerando que sujeitos como Dona Hilda Chambi, que migraram para a cidade
de El Alto, mantêm um vínculo com a comunidade ao ponto de assumir os cargos de autoridade
quando estes tocam à família, além de estarem em constante ascensão econômica por meio do
mercado local, seja ele formal ou informal.
Para Soruco, no começo dos anos 1900, após os ocorridos no “Proceso de Mohosza”, as
perspectivas contra os indígenas estavam na base da narrativa nacional. Como a economia
nacional não era mais dependente do Tributo Indígena, mas do auge do estanho, ocorre o
desenvolvimento de um bloco hegemônico que permite a construção de um projeto de cultura
nacional por parte da intelligentsia paceña. É deste processo que nasce a literatura indigenista
tendo como referência Alcides Arguedas com seu olhar pessimista sobre o progresso nacional
em Pueblo Enfermo. Com maior expressão nos anos 1920, a política criolla vinculada a esta
220
“Ou seja, os cholos estão intimamente embutidos nas relações de dominação colonial estabelecidas pelos
criollos em relação aos indígenas; além disso, eles se beneficiam delas. Mas seu crescimento econômico e
promoção social não lhes garante espaço nem reconhecimento no polo dominante, mas sofrem a discriminação e
a exclusão que os indígenas vivem sem o apoio de uma comunidade (ayllu). Nesse sentido, fazem parte do polo
hegemônico ou subalterno da sociedade boliviana? Eles estão mais ligados aos indígenas, como indicado por Albó
quando falam sobre eles como 'residentes urbanos aymaras'? Suas aspirações de mobilidade social e projeção de
uma 'identidade' que parece não se apoiar em nada mais seguro do que não ser índio (Harris, 1995) as tornam
"traidoras" dos indígenas e dos subalternos?”
124
literatura, defende uma pureza racial atrelada a uma lógica de progresso, percebendo a mescla
como antiprodutiva, este tipo de análise é o que Soruco denomina antimestizaje.
A preocupação de Soruco, quando desenvolve uma pequena parte de seu trabalho sobre
o cholo, é definir um distanciamento entre o ser cholo e o ser indígena, um distanciamento que
termina com a essencialização do sujeito indígena, já que a autora define este a partir de uma
negação da modernidade: “mantengo la observación de que pensar lo cholo como
imediatamente indígena, sin prestar atención a ninguna mediación, no deja ver las tensiones
entre la autoafirmación indígena, hoy más pronunciada que nunca, y la búsqueda de inserción
a la modernidad.” (SORUCO, 2012, p.36)222. As tensões existentes sobre a autoafirmação
indígena, dialogam com os movimentos sociais aymaras que foram apresentados no primeiro
capítulo, estes criticam a lógica da modernidade a partir da modernidade mesma, de seus modos
de implementação na sociedade boliviana, mas não negam a possibilidade dos aymaras de
negociarem com os instrumentos da modernidade historicamente. A entrada de aymaras no
mercado boliviano é uma constante, a relação entre as comunidades e as feiras de El Alto são
determinantes para a economia local e na independência desta cidade com relação aos mercados
monopólicos, um exemplo é a Feria 16 de Julio.
221
A leitura da chola como setor feminino no mundo cholo é apenas uma perspectiva, ainda que preponderante,
existem perspectivas como a de Yola Mamani, na qual a chola como identidade, é uma identificação vinculada à
heterogeneidade do mundo Aymara.
222
"Eu mantenho a observação de que pensar cholo como imediatamente indígena, sem prestar atenção a qualquer
mediação, não revela as tensões entre a autoafirmação indígena, agora mais pronunciada do que nunca, e a busca
por inserção na modernidade."
125
identidade, não como linear, mas vinculada a um processo de violências (SANJINÉS, 2012).
Por ser uma construção heterogênea e com diversas tonalidades, não é possível interpretá-la
senão periodicamente. Compreender apenas a identidade mestiça como heterogênea e periódica
e não direcionar o mesmo exercício de leitura para a identidade Aymara (ou indígena, como um
dos polos que constitui o discurso de mestiçagem), me parece o grande problema no trabalho
de Soruco, é uma tentativa de salvar os discursos de mestiçagem apagando as diversas
tonalidades da identidade indígena.
A perspectiva de Albó não parece persuadir Peredo, que se alia à lógica de cholificación
de Quijano (1980), como um trânsito forçado pela sobreposição de culturas, uma mestiçagem
que tem uma ligação específica com o andino, esta mestiçagem assume duas vias, uma para os
espanhóis que a utilizaram para subjugar populações, e outra para os kuracas (autoridades dos
ayllus), para sobreviver nos termos da Colônia.
223
“Segundo o filólogo Juan Benjamín Dávalos: ‘Esta palavra nasceu de chullo, que é o gorro de lã de variadas
cores e trabalhos que os peruanos das montanhas usam hoje. Os conquistadores, seja pelo sarcasmo ou pela falta
de algum apelido genérico para aplicar a seus vencidos, os chamavam pela vestimenta distintiva da cabeça e, como
naqueles dias o Ll nasceu, que em latim foi pronunciado como duplo L, pela confusão de sons, a palavra escrita
chullo, os clássicos liam como chulo; e como, por outro lado, havia a necessidade de distingui-los dos chulos
espanhóis, o nome do cholo peruano foi generalizado’. "
224
"É uma espécie de subcultura de 'colchão', no sentido de que permite que eles mantenham muitas de suas
características culturais dentro da estrutura urbana e isso torna a transição para o urbano menos dolorosa do que
em outras partes."
127
Em seu trabalho Quijano nega a possibilidade de uma leitura do mundo andino a partir
de uma mestiçagem de sangue, apostando por uma análise dos modos de vida para caracterizar
as identidades. Para Peredo (2012), todos os cholos são mestiços, ou melhor, constituem uma
subcultura na ampla gama mestiça, perdendo o vínculo com sua cultura “original” Aymara:
“Uno deja de ser cholo en tanto y cuanto acaba perdiendo los valores y lazos que lo atan a lo
indígena.” (PEREDO, 1992.p.30)226. No interior desta subcultura, para a autora, existe a
condição da chola de mercado que, a parte de ser um setor intermédio como o cholo, é uma
identidade intermediária em sua posição nos mercados, relacionando-se diretamente com os
mundos que a constituem.
225
A partir da revisão realizada, podemos afirmar que ser cholo ou chola no contexto da colonização, é um
processo de assimilação-transformação dos valores ocidentais e, ao mesmo tempo, ruptura-preservação do mundo
andino. O cholo emancipou-se de seu status de índio ao custo de sofrer o repúdio - inveja dos índios e ser valorizado
- desprezado pelos espanhóis. A recontagem histórica da evolução do cholage durante a colônia não pode ser
definida com um único adjetivo, mas sempre com a soma contraditória de dois polos opostos: o colonizado e o
colonizador.
226
"Uma pessoa deixa de ser um cholo na medida em que acaba perdendo os valores e laços que o ligam aos
indígenas".
227
A perspectiva de Barragán dialoga indiretamente com alguns trabalhos sobre raça no Brasil, dentre eles o de
Oracy Nogueira (2006 [1954). O autor constrói um quadro de referência para pensar o racismo no Brasil em
comparação com o racismo nos Estados Unidos, o primeiro como preconceito racial de marca e o segundo como
preconceito racial de origem. Um possível diálogo entre Barragán e alguns elementos do quadro de referência
construído por Oracy Nogueira, é que o preconceito racial de marca revela uma diferença no tratamento dado às
128
enunciada pelos “de cima”, os cholos podem ser caracterizados como “índios”, porém, visto
pelos “de baixo” essa categoria não se aplica.228 A autora observa a existência de uma
autoidentificação enunciada por cholitas, porém, por parte dos homens há um rechaço da
identidade cholo: “los grupos sociales identificados por los términos ‘indígena’ o ‘mestizo’ son
por consiguiente ante todo sociales, relativos y fluidos” (Barragán, 1990, p.71)229.
No entanto, ainda que a vestimenta foi um elemento importante para definir o setor
mestiço/cholo, para a autora esta não supõe uma “mimetização” do mundo criollo. Neste caso,
a vestimenta é determinante porque a identidade é definida por uma identificação visual. Esta
observação de Barragán apresenta muitas afinidades com algumas perspectivas que meu campo
me comunicou. Em muitos espaços de El Alto e de Omasuyos, percebi que existe um processo
de autoidentificação (“Yo soy Aymara!”; “La pollera es lo que somos!”) no sentido de algo
enunciado pelo próprio sujeito sobre si mesmo, mas também um processo de
heteroidentificação no sentido de enunciações de sujeitos distintos, seja violento (“india de
mierda”, “ese cholo”) ou em diálogos cotidianos (“Mis amigos son aymaras!”; “Son collas,
pues.”). Essas apreciações dos sujeitos aymaras e não aymaras evidenciam a estrutura que
define as identidades, tomar analiticamente apenas a autoidentificação deixa de lado os
processos de colonização e violência que a definem, bem como a identidade vista por sujeitos
alheios.
pessoas negras com relação à sua instrução, classe social, profissão, dentre outras características de privilégios
sociais. O que Nogueira (2006) apresenta, é que os sujeitos negros tem maior “passibilidade” ao mundo branco
quando acessam os espaços mais privilegiados da sociedade, o que tem íntima relação com a perspectiva de
Barragán de que a cholificación pode ser lida como um “devir branco” quando o mestiço tem acesso à
determinados espaços privilegiados na classificação social.
228
Alguns eventos ocorridos no ano 2018 exemplificam bem esta relação apresentada por Barragán. Um docente
do curso de Direito da Universidad Autónoma Gabriel René Moreno (UAGRM) foi gravado sendo racista contra
a população kolla (http://www.la-razon.com/sociedad/Discriminacion-racismo-docente-Santa_Cruz-Derecho-
Bolivia_0_2904909523.html ); e o caso de uma mulher filmada em um ônibus público ofendendo a uma senhora
de pollera com frases como “india... con sus polleras carajo!”
(https://erbol.com.bo/noticia/social/14032018/presentan_denuncia_contra_mujer_filmada_en_acto_racista ).
229
"Os grupos sociais identificados pelos termos 'indígena' ou 'mestiço' são consequentemente principalmente
sociais, relativos e fluidos"
230
"Especialização e 'mestiçagem' são, portanto, no período colonial, um casal indissolúvel".
129
A segunda imagem, por sua vez, é simbólica, com as inscrições “Españoles/ Soberbiosa
criolla, o mestiza/ o mulata deste reyno/ en los pueblos”, a figura representa duas mulheres, a
primeira aparece com trajes espanhóis puxando o cabelo da segunda, que de joelhos, derrama
muitas lágrimas, nas mãos da primeira mulher é possível visualizar uma espécie de faca, o que
não fica claro é se a faca será usada para cortar os cabelos ou a cabeça da indígena, cada leitura
tem uma interpretação distinta. Em um esforço hermenêutico me lembrei de que em alguns
diálogos tanto com Roger, quanto com Dona Hilda, ambos evidenciavam a importância do
cabelo para as mulheres aymaras, “es su honor”, diziam. Percebi a importância do cabelo para
as aymaras quando fomos dançar na comunidade de Ch’ojñapata, nesta ocasião, enquanto nos
aprontávamos na sala de uma casa de adobe, uma mulher aproximou-se em lágrimas, ela havia
passado por um tratamento médico e perdeu parte considerável do cabelo, com uma peruca
negra nas mãos pedia para uma de minhas cunhadas ajudá-la a acomodar na cabeça e trançá-la
em duas. A relação afetiva com os cabelos demonstrava a sua importância no momento da
dança, de apresentar-se para a comunidade. No caso de Waman Poma, a representação
imagética do corte do cabelo pode comunicar o que não está dito no corpo do texto, que a
mestiça retira a honra da mulher índia.
231
"As leis espanholas isentaram os mestiços de qualquer obrigação fiscal"
232
Alguns contos aymaras associam os espanhóis que chegaram ao território andino com o deus Wiracocha, uma
imagem de um homem com barbas. Segundo descrições presentes no sítio arqueológico de Tiwanaku, em peças
que contêm a imagem da divindade a associação dá-se pela barba que os espanhóis possuíam, característica não
presente na constituição física dos andinos. Segundo Roger Chambi, esta é uma versão romantizada da história,
para ele a associação dava-se porque quando os espanhóis chegaram nos andes, os Incas já tinham conhecimento
de sua chegada pelo mar nas costas, a associação aconteceu por ter sido Wiracocha uma divindade que apareceu
das águas do Titicaca. A perspectiva de Roger Chambi é interessante porque nos convida a pensar nas redes de
informação que os andinos tinham até as costas do território da Abya Yala, rompendo com as perspectivas dos
indígenas como ilhas.
130
ESPAÑOLES ESPAÑOLES
SOBERBIOSO
CRIOLLO SOBERBIOSA
o mestizo o mulato de CRIOLLA
este reino O mestiza o mulata de
en los pueblos este reino
criollos en los pueblos
FIGURA 5. (GUAMAN FIGURA 6. (GUAMAN
POMA DE AYALA, POMA DE AYALA,
1615.p540)
1615.p540)
131
Ya a principios del siglo XX, volviendo a La Paz, el censo nos muestra que la
ciudad tenía casi equitativamente la misma población indígena, mestiza y
blanca (38% de españoles, 29% de mestizos, y 30% de indígenas). Sin
embargo ya era difícil reconocer a los mestizos, sobre todo hombres. Los
responsables del censo de 1909 señalaban, por ejemplo, que los mestizos se
vestían a la manera occidental y se presentaban en las fiestas vestidos con
sombreros, bastones y guantes. Las mujeres, por el contrario, mantuvieron su
identidad visible hasta nuestros días, tema que sin duda constituye otra
problemática sumamente importante. (BARRAGÁN, 1990, p.80)233
Durante minha estadia na casa dos Chambi, tive a oportunidade de analisar os arquivos
antigos da família, arquivos que tinham relação com Don Ascencio Chambi e sua primeira
esposa, Martha, com quem teve dois filhos que vieram a falecer assim como a mãe. Dona Hilda
me autorizou tirar algumas fotos de atestados de óbito e de matrimônio, todos identificando a
raça das pessoas. Um dos documentos me chamou mais atenção, o atestado de óbito de
Margarita Huanca Verástegui, mãe de Don Ascencio, onde consta “mestiça” na determinação
racial. Analisando os demais documentos encontrei o atestado de matrimônio de Margarita com
233
“Já no início do século XX, retornando a La Paz, o censo nos mostra que a cidade tinha quase igualmente a
mesma população indígena, mestiça e branca (38% dos espanhóis, 29% dos mestiços e 30% de indígenas). No
entanto, já era difícil reconhecer mestiços, especialmente homens. Os responsáveis pelo censo de 1909 notaram,
por exemplo, que os mestiços se vestiam à maneira ocidental e se apresentavam em festas vestidos com chapéus,
bengalas e luvas. As mulheres, por outro lado, mantiveram sua identidade visível até hoje, um tema que, sem
dúvida, constitui outro problema extremamente importante.”
132
Antonio Chambi Guanca, pai de Don Ascencio, neste segundo documento a raça de ambos é
caracterizada como “indígenas”, diante da minha expressiva dúvida acerca da diferença entre
os dois documentos, Dona Hilda comentou: “Ella llevaba pollera, era india pues!”. Dona
Margarita se casa como indígena e morre como mestiça, sendo um período de quinze anos que
separa as duas determinações raciais. Não posso encontrar respostas exatas para a análise,
porque Dona Margarita faleceu durante o parto do único filho, don Ascencio Chambi, que não
possuía muitas informações sobre a mãe até a sua morte. No entanto, colocarei algumas
questões que me auxiliaram a pensar o processo de mestiçagem como uma disputa histórica em
muitas vertentes.
No Atestado de Óbito não está registrado o nome da pessoa que solicitou o documento,
deste modo não sei se foi algum familiar quem realizou a descrição racial da falecida. Ambos
documentos foram elaborados na comunidade de Achacachi, província de Omasuyus, La Paz,
porém, analisando as duas assinaturas, constatei que se trata de notários diferentes. Outro
elemento que pode ter implicado para a modificação racial é o sobrenome de Dona Margarita,
Verástegui de origem Vasco (Espanha) foi um sobrenome de famílias nobres. Posso presumir
que alguma família de fazendeiros emprestou o sobrenome para os indígenas que trabalharam
em sua fazenda, haja a vista que as marcações raciais na Bolívia estão vinculadas aos
sobrenomes234, ou que houve modificações do próprio nome por parte de membros da família
como saída para os tributos indígenas e trabalhos forçados. O tempo também pode ter sido um
elemento determinante, o primeiro documento foi emitido antes da Revolução de 1952,
enquanto o segundo, que a caracteriza como mestiça, foi emitido após esta Revolução, que
pregava um discurso de mestiçagem vinculado aos camponeses. Todas estas suposições me
comunicaram que ser “mestiço” ou “indígena” nos documentos “oficiais” é variável com
relação à conjuntura histórica e às relações que definem estas identidades.
234
Os sobrenomes Mamani, Quispe, Huanca, dentre outros, foram categorizados historicamente como indígenas.
Em 1975 o presidente Hugo Bánzer emitiu um decreto para que os indígenas pudessem modificar os nomes, uma
vez que só assim poderiam ingressar aos institutos superiores e às escolas militares, segundo o linguista Eulogio
Chávez foi a própria Confederación de Campestres quem pressionou o governo para a aprovação do decreto.
Segundo Luz Mendonza (2009) a ânsia pela modificação dos sobrenomes vem do período colonial, quando os
indígenas buscavam sobrenomes “mestiços” para se libertarem dos tributos indígenas e dos trabalhos forçados. A
polêmica sobre as modificações dos sobrenomes perpassou a figura de Evo Morales, algumas investigações
publicadas por Mendonza constataram que em Orinoca, região onde nasceu Evo Morales Ayma, o sobrenome
comum era Katari, investigações genealógicas do presidente concluíram uma modificação do sobrenome no
histórico da família de Katari para Morales. Em 2018 aconteceu uma reunião de Mamanis com o objetivo de
revalorizar o sobrenome, que em Aymara significa falcão, a reunião foi denominada Jacha Mamani, “os grandes
Mamanis” em Aymara, e contou com a presença do sociólogo Pablo Mamani, do arquiteto Freddy Mamani, do
pintor Mamani Mamani e de outros tantos Mamanis de distintas áreas.
133
FOTO 14. Foto fornecida por Dona Hilda, segundo ela Dona Margarita está ao centro
Acerca da genealogia do termo “cholo”, como vemos, existe um vínculo com a lígua
espanhola (Madri), mas também pode estar vinculada à língua Aymara, no Vocabulário de
Ludovido Bertonio analisado por Barragán, a palavra chhulu significa perro, entretanto existe
uma ligação entre esta palavra e Huayqui como parentesco, assim em Ludovico Bertonio
Huayqui haque seria o mestiço que não é espanhol, mas tampouco é índio, ainda que tenha um
vínculo direto com a cultura andina, a própria ambiguidade do termo é associado por Barragán
à identidade cholo que mais tarde será melhor definida no imaginário social do Alto Perú.
la computadora se reordenan de acuerdo a la lógica andina y la hacen más viable, más apta
para sobrevivir y afrontar los retos del porvenir.” (ARCHONDO em PEREDO, 1992, p.X)235.
Para Stefanoni, as formas de construir o espaço urbano em El Alto, que são aymaras,
constituem um tecido próprio em organizações como as Juntas Vecinales e em outras
expressões desta que o autor denomina cultura plebeya. O autor não nega que existe um
afastamento entre a cultura jovem e as representações culturais dos primeiros migrantes, os
jovens começam a acessar espaços que, em geral, seus pais não tiveram contato como a
Universidade (A Universidade Pública de El Alto é uma expressão importante neste processo
de mudanças), todavia, o autor não lê como um caminho à mestiçagem, mas como apropriações,
adaptações e reinvenções que se distanciam da cultura andina dos pais, mas que constróem sua
própria forma de ser Aymara em muitos âmbitos e a partir de muitos instrumentos. Um exemplo
é o hip-hop, que primeiro rompe com a estética andina por meio das roupas largas e o look
gringo, mas que ao mesmo tempo se volta à cultura andina, construindo suas líricas em Aymara
235
"Quanto ao mundo andino, pode-se dizer que se forjou a possibilidade de se beneficiar da modernidade sem
deixar de ser Aymara ou Quéchua. Em outras palavras, o caminhão, o mercado e o computador são reordenados
de acordo com a lógica andina, tornando-o mais viável, mais apto a sobreviver e enfrentar os desafios do futuro”
236
"A 'cidade Aymara' de El Alto é, possivelmente, o exemplo paradigmático desse mundo plebeu, com 47% dos
trabalhadores - a maioria em pequenas oficinas - e 41% dos trabalhadores autônomos (o comércio representa 30%
da atividade econômica), uma poderosa 'economia informal' emergiu às margens do estado (incluindo contrabando
e pirataria), e redes de compadrios e densos espaços públicos não-estatais estruturam um abigarrado campo político
antropológico, no qual somente trabalho de campo poderia determinar em que medida estas inércias comunitárias
resignificadas e reatualizadas constituem um caminho para a emancipação ou são, ao contrário, funcionais para o
'capitalismo andino', sustentadas pela precariedade do trabalho, pela ausência de direitos trabalhistas e pela
exploração da mão de trabalho familiar."
135
As leituras acerca da choledad como uma identidade vinculada diretamente aos costumes
andinos é criticada por Fausto Reinaga, que em “El índio y el cholaje boliviano” (1968)239
define sua preocupação: “Ahora vamos al cholo, conocido también con los nombres de: k’ara,
mussu, mesti, mestizo, criollo, Huiracocha, caballero, etc.” (REINAGA, 1968). O autor cita
Gustavo Adolfo Otero, quem faz uma investigação filológica sobre o termo cholo, buscando
237
“Todas essas transformações que os amantes das continuidades ancestrais não querem ver, pois esses espaços
comunitários são o receptáculo de certas projeções utópicas, sejam elas políticas (anticapitalistas) ou sócio
antropológicas: a busca tradicional por espaços não contaminados pela modernidade liberal/ocidental.”
238
A autora toma sociocosmologia emprestado de Viveiros de Castro (1986) em sua etnografia com os Arawete,
compreendendo o termo como uma relação entre a sociologia e a cosmologia indígenas que se apresentam como
inseparáveis.
239
Este texto foi publicado antes dos textos que inauguram a perspectiva indianista.
136
Diálogos ch’ixi
240
O debate foi publicado na Revista no mesmo ano e contou com a participação de alguns autores bolivianos que
discutem o tema da mestiçagem, dentre eles estava Silvia Rivera Cusicanqui, Nico Tassi, Jorge Llanque e Cecília
Salazar.
241
"Porque eu acho que todo o debate sobre o colonialismo está praticamente reduzido a pensar que a ligação
colonial forte e dura está no setor indígena"
138
una especie de esquizofrenia, entonces para salir de eso mi propuesta era que
asumamos la parte india con más vigor, y la pongamos a la altura de la parte
europea digamos, y podamos profundizar y radicalizar ambas identidades
para que del choque saliera una energía que pueda ser emancipadora. Esa es
la idea. O sea, es como una salida, el texto sobre “Mestizaje colonial andino”
es la propuesta crítica sobre el mestizaje, y la salida propositiva ya es
descolonizar el mestizaje por la vía de asumirse como identidad ch’ixi.
(Entrevista realizada em 08 de dezembro de 2018)242
O processo analítico presente nas obras de Silvia Rivera Cusicanqui, por meio do qual
a autora constrói sua perspectiva sobre a mestiçagem é fundamental para começar a distanciá-
la de teorias como a de Carlos de Mesa, uma vez que Silvia Rivera percebe o conflito como
elemento fundamental para a construção colonial do ser mestiço, mas também é a partir do
conflito, e não contrário a ele como percebe Mesa, que a mestiçagem proposta como
descolonizadora vai florecer, ou seja, para Silvia Rivera a mestiçagem descolonizadora é um
movimento com personagens históricos importantes, mas que tem que ser apropriado, enquanto
para Mesa a mestiçagem é uma condição de homogeneidade que potencializa a nação boliviana
com símbolos como a sereia e o charango.
242
“É claro, é um pouco descobrir se é possível descolonizar a mestiçagem, porque eu vi que a mestiçagem é uma
forma profundamente colonizada da identidade. E então eu desenvolvi a ideia de que o mestiço é um branco
manchado de índio, ou um índio manchado de branco e que esses duas manchas não se fundem, mas se justapõem
de uma maneira contraditória, então vivem uma espécie de esquizofrenia, então para sair disso minha proposta era
assumir a parte índia com mais vigor, e colocá-la no auge da parte europeia, e podemos aprofundar e radicalizar
as duas identidades para que do choque saia uma energia emancipadora. Essa é a ideia. Ou seja, é como uma saída,
o texto sobre "Mestiçagem colonial andina" é a proposta crítica sobre a mestiçagem, e a saída propositiva é
descolonizar a mestiçagem pela via de se assumir como identidade ch'ixi.”
139
que compõem e que estruturam estes espaços. Seria, deste modo, a construção de uma
modernidade “por conta própria” que estabele uma cidadania possível na convivência com as
diferenças.
Realizei uma entrevista com Nico Tassi em dezembro de 2018, dialogamos acerca do
trabalho de campo do antropólogo com os grupos comerciais, evidenciei em minhas
preocupações o tema da identidade, considerando que Tassi em seu primeiro trabalho Cuando
el baile mueve montañas: religión y economía cholo-mestizas en La Paz, Bolivia (2010) utilizou
a categoria cholo-mestizas para nomear os grupos da Uyustus e Gran Poder. O autor explicou
que a questão identitária sempre foi um problema no percursso dos trabalhos de campo que
realizou e que não utilizaria mais este termo porque entende que a categoria cholo carrega um
estereótipo pejorativo, segundo Tassi, há uma luta interna em seus esforços na busca de um tipo
de palavra que reflita a intencionalidade de seu trabalho vinculada aos desejos e aspirações dos
sujeitos com quem trabalha. Perguntei sobre o emprego da Modernidade ch’ixi em seu último
243
“É aí que reside sua modernidade: combinar o novo com suas tradições socioculturais, ou seja, viajar para a
China e comercializar produtos tecnológicos sem renunciar a suas atividades sociais e religiosas, que, aliás, estão
na base de sua estrutura de poder local. Essa modernidade não é sinônimo de hibridismo, mas responde, antes, à
ideia do ch'ixi de Silvia Rivera, isto é, à coexistência de elementos antagônicos que não se fundem, mas se
complementam.”
140
livro, para ele a noção ch’ixi aparenta ser um termo interessante, não necessariamente como
autoidentificação, mas como uma revolução nos debates identitários, porque demonstra a
possibilidade de ser múltiplas coisas em uma mesma instância, em suas palavras: “Es un tipo
de concepto que juega no con los aymaras, juega con el debate intelectual sobre identidad. O
sea se posiciona en un debate intelectual sobre identidad, y ahí si tiene sentido, o por lo menos
tiene una intención de incindir sobre un tipo de debate” (Entrevista 18 de dezembro de
2018)244.
A modernidade ch’ixi está presente no livro Ch’ixinakax utxiwa (2010) de Silvia Rivera
Cusicanqui, no qual a autora estrutura sua análise tomando como referência a luta de Tupak
Katari e Bartolina Sisa em 1781, uma vez que estes sujeitos históricos criticavam os tributos
indígenas que mantinham a colônia economicamente, questionando a elite criolla da época,
denominada arcaica pela autora, porque ela percebe o ócio como um elemento essencial na
constituição desta classe. No diálogo realizado com Silvia Rivera, ela me comunicou que o
contato dos grupos aymaras com o dinheiro e com o mercado não foi necessariamente um
processo de subalternização, uma vez que já estavam vinculados em um longo processo
econômico em seus próprios termos de um mercado a longa distância, como transportadores de
llamas ou vendedores de coca, “yo consideraba que las élites eran más arcaicas que los indios
y que los indios eran más modernos, que utilizaban el mercado de una manera muy creativa y
a la vez reproducían sus comunidades a través del mercado y el mercado no era una fuerza
destructiva sino que ellos se adaptaban a ella e utilizaban para producir sus propias formas de
organización y reproducción” (Entrevista 08 de dezembro de 2018)245. Assim sendo, a partir
da instituição da República a elite que estava em formação exige que os indígenas se limitem
ao território dos Ayllus possibilitando a sua conversão nestas comunidades aparentemente
“tradicionais”, no sentido pejorativo do termo como fixas.
244
"É um tipo de conceito que joga não com os aymaras, joga com o debate intelectual sobre identidade. Ou seja,
ele está posicionado em um debate intelectual sobre identidade, e aí faz sentido, ou pelo menos tem a intenção de
incitar em um tipo de debate "
245
"Considerei que as elites eram mais arcaicas que os índios e que os índios eram mais modernos, que usavam o
mercado de forma muito criativa e ao mesmo tempo reproduziam suas comunidades através do mercado e o
mercado não era uma força destrutiva, mas eles se adaptaram e usaram para produzir suas próprias formas de
organização e reprodução "
141
O autor confunde os sentidos dos termos ch’ixi e chhixi, considerando como polissêmico
associa o significado de chhixi como lenha que não serve, híbrido, terceiro incluído, com a
lógica ch’ixi de cores opostas que não se sintetizam, chegando a caracterizar essas categorias
como “amálgamas”. Já apresentei no segundo capítulo a diferença entre as duas lógicas,
diferença que aparece como tal desde os primeiros trabalhos em que Silvia Rivera as cita247,
246
"O conceito de chhixi aparece como um conceito epistemológico e político, e é polissêmico. Por um lado, é
usado para se referir à madeira que não funciona, Silvia Rivera compara com a ideia de 'híbrido' referindo-se à
infertilidade. Por outro lado, chhixi refere-se ao terceiro incluído no qual 'ao contrário do híbrido, as diferenças
não são baseadas em uma nova forma pura', e este é o sentido que a autora resgata. Ele é usado pelos aymaras
como um conceito visual, que remete para a coexistência de cores opostas, mas que não sintetizam e nem dão
origem a uma nova cor formada pela mistura, mas permanecem como manchas de cores diferentes sendo
simultaneamente as duas cores, e nenhuma das duas, explica a autora. Em um trabalho anterior, esse tipo de
amálgama apareceu entre o setor dos trabalhadores da carne que era ao mesmo tempo grêmio e ayllu, pagavam
imposto municipal e tributo indígena. Nos documentos analisados por Rivera, o Estado e os mestiços (mistis)
aparecem como opressores e os trabalhadores se identificam ao mesmo tempo como classe e como etnia, ainda
que em uma rearticulação descolonizadora onde tem supremacia o étnico, considerado mais permanente e
estrutural (1993: 75-78). "
247
Vou de encontro à perspectiva de Schavelzon quando explica: “el concepto chhixi (es escrito con distinta grafía
en cada republicación: chhixi, chixxi, cheje, ch’ixi)” (SCHAVELZON, 2012.p.61).
142
No entanto, existem alguns trabalhos que dialogam com a perspectiva do ch’ixi sem
necessariamente fazer referência a esta, dentre eles evidencio o artigo de Jorge Sanjinés “De la
nación mestiza a los recientes desplazamientos de la metáfora social” (2012), neste trabalho o
autor pensa o processo de mestiçagem que flui no tempo, metáfora heraclitiana de tempo,
compreendendo uma metáfora do anfíbio como explicação dos movimentos estruturados pelos
movimentos originários de (re) territorialização integradora, uma fertilização entre a
modernidade e a cultura ancestral. O anfíbio é apresentado como metáfora porque, como
analisado por Orlando Fals Borda (1979), toma o conhecimento de um espaço e transporta ele
para outros, reelaborando em função do destino: “el anfíbio entrevé la posibilidad de superar
la violencia a la que el poder cuando resuelve recurre conflitos. Si la metáfora del anfíbio
ilustra la posibilidad de elaborar normas compatibles con la diferencia, ella también muestra
que es posible construir diálogos entre las culturas” (SANJINÉS, 2012, p.50)248. Tanto o
diálogo entre o moderno e o tradicional proposto pela metáfora do anfíbio, quanto a
possibilidade de um diálogo que mantêm as diferenças, são relacionáveis com a proposta ch’ixi.
Crítica à crítica
248
"O anfíbio vislumbra a possibilidade de superar a violência a que o poder resolve quando recorre conflitos. Se
a metáfora do anfíbio ilustra a possibilidade de elaborar normas compatíveis com a diferença, também mostra que
é possível construir diálogos entre culturas "
143
249
"Assume a mestiçagem como uma complexificação do conflito gerado naquele encontro e não como sua
superação"
250
"Poderíamos dizer que o valor das identidades mestiças é um valor de posição, o que implica a presença
sincrônica de outras identidades, ou seja, que a definição de uma determinada identidade requer a presença de
outras, por exemplo, a especificidade do cholo só pode ser determinada a partir de suas relações com outras
identidades, portanto, a ausência de qualquer delas implica a indeterminação das outras. Desta forma o estudo das
144
Mas se a Hipótesis del mestizaje colonial andino contêm aspectos esencialistas, como
podemos analisar o ch’ixi, essa mestiçagem descolonizadora? Para Claros o deslocamento em
direção à esta proposta, tão essencialista quanto a primeira, está acompanhado por um “giro
subjetivo”. Em sua perspectiva: “Bajo la noción de lo ch’ixi lo mestizo adquiere una densidad
propia. Cuando Rivera se considera a sí misma como ch’ixi lo que está afirmando es que posee
un origen doble, aymara y europeo, que pervive en su ser.” (CLAROS, 2016, p.51)252. Existe,
para Claros, um exercício intrinseco na transformação de uma mestiçagem colonial em
mestiçagem descolonizadora, o primeiro define a identidade mestiça como negativa, uma vez
que faz sentido pelo que ela não é (negação do indígena e anseio em aproximar-se do branco),
por outro lado a identidade ch’ixi se estrutura com um exercício de positivação, essas
identidades limites já não são exteriores ao indivíduo em uma disputa de desprecios e anhelos,
mas convivem no seu interior. Esse jogo analisado por Claros é transformado de um conflito
de heteroidentificações negativas em sustentação de uma autoidentificação positiva.
relações mútuas entre as identidades se torna fundamental. O tipo de relações que se estabelecem entre essas
identidades é definida por um eixo de desejo no qual as direcionalidades das relações assumem as formas de anseio
e desprezo; o anseio dirigido aos escalões superiores que culminam no branco e o desprezo dirigido aos degraus
mais baixos que culminam no índio.”
251
"São os momentos de fechamento da estrutura que nos permitem pensar sobre as identidades em seu interior"
252
"Sob a noção do ch'ixi, o mestiço adquire uma densidade própria. Quando Rivera se considera ch'ixi, o que ela
está afirmando é que ela tem uma origem dupla, Aymara e europeia, que sobrevive em seu ser."
145
Luis Claros também estrutura uma preocupação com relação ao livro de Mesa La Sirena
y el Charango, para o autor, a universalização da lógica de mestiçagem como uma mescla que
apaga as possibilidades da existência de diferenças está evidente no livro de Mesa. Assim como
Toranzo, Mesa compreende a mestiçagem de forma ampla, a partir da qual não é possível pensar
culturas à margem do processo de mestiçagem cultural. Essa mistura cultural aparece nas
entrelinhas como um futuro desejável tanto por Toranzo, quanto por Mesa.
A distinção entre Toranzo e Mesa com Silvia Rivera, é a supressão do conflito na teoria
dos primeiros, fazendo com que a perspectiva de um colonialismo interno seja negada em favor
de uma leitura da mestiçagem como constitutiva da nação boliviana, uma unidade superadora
do conflito. Ainda que Mesa não negue (em algumas passagens) a relação conflitiva do feito
colonial, sua análise leva o leitor a acreditar que se trata de um conflito superado pela instituição
de uma unidade nacional, que é necessariamente cultural. Para Claros, este movimento conduz
“a una defensa del mestizaje y a la deslegitimación de identidades contrapuestas o pensadas
como externas a dicho mestizaje.” (CLAROS, 2016, p.120)253. Acerca do trabalho de Mesa,
Luis Claros considera que quando Mesa situa os problemas das sociedades do Tawantinsuyo,
sustenta que o objetivo é não as romantizar, contudo, quando analisa as violências instituídas
pelo processo de colonização, as descrições sempre estão acompanhadas de explicações que
neutralizam possíveis aversões ao feito colonial. Nestes termos, Mesa defende a mestiçagem
como única possibilidade identitária e não como uma entre tantas outras possíveis.
Para Claros existem duas formas distintas de ler a mestiçagem, a primeira vinculada a
discursos de nação e universalidade e a segunda a partir do colonialismo interno e do caráter
hierarquizado da sociedade boliviana, os objetivos constituem as defesas ou críticas com
relação ao tema, a ênfase determina a concepção. Quando nos esforçamos em analisar as
identidades construídas em território boliviano, não é possível ignorar a existência destas duas
vertentes, da mestiçagem nacional e da mestiçagem colonial.
"Em defesa da mestiçagem e da deslegitimação de identidades contrapostas ou pensadas como externas a essa
253
mestiçagem".
146
Minha interpelação, com relação a esta perspectiva de Luis Claros, é a de que o ch’ixi
está mais vinculado a um processo subjetivo como proposta, considerando que a autora Silvia
Rivera está inserida em um debate – seja pós-colonial, decolonial ou anticolonial – que exige a
construção de uma proposta às condições coloniais, a proposta de um sujeito político
descolonizador, de um movimento que seja epistemológico, que é possível utilizar em trabalhos
universitários e que pode dar conta – no sentido de supressão, mas também de uma manutenção
produtiva – das contradições que a colônia implementou violentamente nos sujeitos. Durante a
entrevista que realizei com Claros, expus minha leitura do ch’ixi, o autor aceitou como
possibilidade interpretativa, mas adicionou que este movimento de buscar um sujeito
emancipador de Silvia Rivera, tem relação com os movimentos kataristas que a autora teve
contato durante as décadas de 1970 e 1980.
Priorizo uma interpretação deste movimento como qhipnayra, uma vez que a relação
entre a hipótesis del mestizaje colonial andino com o ch’ixi pode ser compreendida como um
esforço qhipnayra, “pasado-como-futuro”, no qual, o passado aparece como um elemento na
constituição do presente e em coetânea relação com este, enquanto o futuro, ainda que não seja
enunciado, está instituído no presente. Assim, a mestiçagem colonial só pode ser descolonizada
se estiver em íntima relação com o presente, essa relação ambígua e produtiva pode gerar uma
alternativa para o futuro, alternativa construída no próprio momento presente, a descolonização
só é possível pela existência mesma da colonização. Esse qhipnayra só pode ser estruturado,
segundo Silvia Rivera, por meio de um pachakuti, catástrofe e renovação, esse pachakuti de
palabras é explicado pela autora durante o diálogo que tivemos:
Durante a entrevista que realizei com Luis Claros, o autor me explicou, que sua pesquisa
dialoga com uma conjuntura conflitiva na Bolívia, em especial acerca do tema identitário, após
o Censo de 2012 de Vivienda y Población, que apresenta uma imagem do país, uma espécie de
cartografia identitária variável. Claros chega à conclusão de que estes censos estão submetendo
as identidades às conjunturas políticas. Para explicar melhor essa perspectiva, relaciono dois
momentos políticos da Bolívia com os censos produzidos na mesma conjuntura, o de 2001 e o
de 2012.
254
"eu diria que em um Pachakuti que é uma crise profunda, todas as palavras são colocadas em questão, porque
é necessário repensar o significado das palavras e torná-las não uma coisa para entrar em um sonambulismo, um
automatismo discursivo, mas ver criticamente o que significa cada uma das palavras, a crise é uma crise de sentido;
É isso, eu acredito, o Pachakuti de palavras ".
148
Para o autor, o fato de que os grupos aymaras comecem a abrir mão dos símbolos que
representaram a epistemologia Aymara durante muito tempo, vem de um processo de
simbologia em crise, no qual, a apropriação de elementos por parte do Governo de Evo Morales
resignifica estes mesmos elementos para os sujeitos que há tempos os sustentaram, em especial,
quando o governo entra em crise. Essa é uma explicação muito próxima à perspectiva de Claros
quando concebe os censos como variáveis a partir da conjuntura política. As perguntas de um
Censo também podem construir outros sentidos, a partir de um processo de ruralização do
sujeito Aymara, perguntar nas ruas de El Alto se as pessoas são parte das 36 nações, constrói
um silêncio que comunica muito, a negativa não necessariamente representa uma
255
"Durante a reunião principal, Esnor Condori, depois de terminar seu discurso, pronunciou o costumeiro 'Jallalla
Achacachi marka!'. Diante disso, os vizinhos responderam com um atordoado jallalla. Um dos vizinhos,
arrebatado, manifestou-se e corrigiu Condori: 'Não temos que usar mais o jallalla, isso é dos masistas, temos que
dizer: "Viva a cidade de Achacachi!'. Condori se retificou e pronunciou o 'viva' em vez do típico 'jallalla'. Por sua
vez, entre a multidão dos estandartes a bandeira tricolor boliviana estava voando, deixando a wiphala, o principal
símbolo identitários das mobilizações aymaras, na ausência, e o 'Wila Saku' foi tomado como um elemento
simbólico de Achacachi, descartando os Ponchos Vermelhos ligados ao MAS.”
149
256
"mas quando Silvia cria o ch'ixi como uma teoria comum, como nação, então ela está anulando o Aymara e ela
está me desconhecendo"
150
Para Brah, temos que lidar com os discursos construídos sobre a diferença como uma
variedade de significados em distintos discursos, a diferença torna-se uma categoria analítica
no trabalho da autora, a partir da qual podemos perceber se está estruturada em discursos laterais
ou hierárquicos, essa me parece uma chave interessante para pensar a identidade Aymara,
ch’ixi, chola, dentre outras que já trabalhamos aqui. Para Avtar Brah, existem quatro
conceituações da diferença, a primeira é a diferença como experiência, a experiência é tomada
como um elemento importante considerando-a uma prática de atribuição de sentidos simbólicos
e narrativos, “como uma luta sobre condições materiais e significado” (BRAH, 2006, p.360).
Assim, é no âmbito da experiência que as posições e as subjetividades diferenciais são
afirmadas, reestruturadas, criticadas. Podemos arriscar uma ponte com os aymaras quando
percebemos as modificações que os próprios sujeitos agenciam no interior do “ser Aymara” a
partir da experiência, a lógica do que é ser Aymara é fluida e obedece às transformações dos
sujeitos por meio da experiência, da prática de construção da própria realidade, utilizamos
acima o exemplo levantado por Roger Chambi das modificações simbólicas por meio da
negação da whipala e do jallalla, mas podemos compreender esta modificação de sentidos
também através da apropriação da pollera pelas cholas, já trabalhada no capítulo anterior.
A segunda forma de diferença abordada por Avtar Brah, é a diferença como relação
social, ou seja, a constituição e organização da diferença por meio dos discursos culturais,
políticos e econômicos e, inclusive por práticas institucionais, o que sustenta diálogos com as
modificações dos Censos de Población y Vivienda na Bolívia e os sentidos que estes criaram.
151
Essa pode ser, também, a mobilização do conceito de diferença por um grupo para tratar das
genealogias históricas de sua experiência coletiva, como passados e destinos compartilhados.
Assim, esta diferença pode ser lida a partir dos interesses do grupo que a constitui como tal, se
são interesses horizontais ou servem à construção de escalas hierárquicas, deste modo, ela pode
ser a construção de uma genealogia histórica e o resgate de personagens históricos, como Tupac
Katari e Bartolina Sisa pelos aymaras e quéchuas, mas também pode ser a construção de censos
nacionais, obedecendo a interesses de grupos que ruralizam os indígenas.
A diferença como subjetividade é a terceira leitura feita por Brah, a partir desta diferença
a autora nos convida a pensar a subjetividade quando nos debruçarmos sobre temas de
racialização, compreendendo que os processos de formação da subjetividade dos sujeitos
analisados são sociais e individuais. Como exemplo, podemos analisar as relações com a
subjetividade de alguns aymaras, ser mulher (warmi), Aymara, que leva a pollera, que trabalha
no mercado ou nas feiras, são determinações que dialogam com a construção de uma
subjetividade.
Deste modo, tomando elementos de Avtar Brah, podemos pensar as críticas construídas
por Abraham Mancilla ao trabalho de Silvia Rivera, caracterizando o ch’ixi como uma
identidade pensada para apagar a identidade Aymara. Roger Chambi em um dos diálogos
relatou:
O que Roger Chambi nos informa, é que no momento que o ch’ixi começa a ser pensado
enquanto identidade do sujeito racializado, ele esvazia as possibilidades contestatárias dos
aymaras, anunciadas coletivamente em diversos momentos históricos, além de essencializar o
constante movimento da identidade Aymara em transformar-se a partir das práticas dos próprios
257
Roger se refere ao documentário “La nación ch’ixi: una mirada desde la Isla del Sol” produzido por Violeta
Montellano, integrante do Colectivo Ch’ixi. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TgNuMFr8I3I
258
"O ch'ixi como identidade descolonizadora é uma proposta inovadora e revolucionária para os sujeitos
identificados como brancos-mestiços na Bolívia. Entretanto, quando se pretende catalogar ou identificar ch'ixi a
um sujeito racializado como tal, essa categoria anula a identidade autóctone do sujeito. Lembro que, quando Silvia
Rivera nos visitou no set da La Curva del Diablo, ela mencionou que minha casa e eu éramos a expressão ch'ixi
do que ela estava falando, mas eu disse a ela que somos aymaras. No documentário La Nación Ch'ixi, mostra as
práticas da população Aymara da Isla del Sol como uma área turística, mas por causa de sua virtude de se abrir
para estrangeiros, não seria mais Aymara, mas ch'ixi. O ch'ixi parte de uma ideia essencialista do índio e o fecha
nessa ideia, deixando de lado a possibilidade de serem aymaras que respondem ao seu espaço e tempo, ou seja, os
aymaras contemporâneos. "
153
CONCLUSÃO
Posso não ter dado conta nesta dissertação da importância das relações afetivas que
desenvolvi em campo para a compreensão dos mundos aymaras que me foram apresentados,
mas acredito que tornar-me efetivamente parte da família com quem desenvolvi um trabalho
transformou minha visão de mundo com relação ao “fazer antropologia”. Não fui caracterizada
como “a antropóloga” em todos os momentos do meu campo, na maior parte dele eu fui a filha,
a irmã, a namorada, a yerna de Achacachi (nora de Achacachi). Nos desafios deste campo não
estava em tensão somente a língua, a gastronomia, o clima, mas fui levada a compreender e
agir no mundo Aymara como parte dele, fui cobrada, colocada à prova em diversos momentos,
mas ao mesmo tempo fui amada, senti esses mundos aymaras a partir das minhas entranhas
(chuyma), senti os efeitos destas relações no meu corpo, construí este lugar do outro como lugar
próprio. Não que eu tenha me tornado Aymara em algum momento, mas consegui viver o que
eles me ofereciam como parte de algo muito maior que as minhas questões de investigação. E
neste sentido, do afeto em campo, a minha epistemologia foi manchada por elementos da
epistemologia Aymara.
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164
ANEXOS.
165
Anexo 1. Certificado de Óbito de António Chambi Huanca, pai de Don Ascencio Chambi Verástegui,
falecido marido de Dona Hilda. (Documento cedido pela família)
Anexo 2. Certificado de Óbito de Fortunato Mamani Huanca, meio-irmão de Don Ascencio Chambi
Verástegui, falecido marido de Dona Hilda. (Documento cedido pela família)
166
Anexo 3. Certificado de Óbito de Margarita Huanca Verástegui, mãe de Don Ascencio Chambi
Verástegui, falecido marido de Dona Hilda Chambi. (Documento cedido pela família)
167
Anexo 4. Certificado de Óbito de Rolando Chambi Mamani, filho do primeiro casamento de Don
Ascencio Chambi Verástegui, falecido marido de Dona Hilda Chambi. (Documento cedido pela
família)
168
Anexo 5. Certificado de casamento de Antonio Chambi Guanca com Margarita Guanca Verástegui,
pais de Don Ascencio Chambi Verástegui. (Documento cedido pela família)
169
Chryslen: Creo que ya te envié mi investigación algunas veces por correo, tengo interés en el
tema del ch’ixi desde el grado porque miraba sus charlas y creía que era muy interesante y
dialogaba con muchas cosas de Brasil, que vivimos desde el Movimiento Negro y de
intelectuales negras como Lélia Gonzáles, y por eso empecé a trabajar ese tema. Y también por
algunos discursos de mestizaje, porque me parece que es un mestizaje distinto lo que haces,
entonces busqué algunos discursos de mestizajes en Bolivia y quería hacer una relación con ese
discurso que haces, entonces es más o menos esa mi propuesta y también por el contacto con
algunos movimientos indianista y kataristas comprendo algunos discursos que viene desde ahí.
En muchos espacios que leí y sus presentaciones también te presentan como katarista o como
alguien que fue militante del katarismo en algún momento del proceso histórico, quería saber
cuáles fueron los motivos que te llevaron al movimiento katarista y en qué momento se aleja y
los motivos de alejarse.
Silvia Rivera: Bueno, yo empecé a criticar a la izquierda en esa época porque era muy racista,
justamente a partir de esa crítica me fui aproximando a los kataristas, era la época de la dictadura
de Bánzer y yo estaba haciendo un trabajo de campo en una comunidad de Pacajes, y en esos
momentos Bánzer se declaró dictador abolió los partidos políticos y la COB todo, y entonces
muchos kataristas tuvieron que huir de las ciudad para escapar de la persecución de Bánzer y
se refugiaron en esas comunidades, y justamente la comunidad donde yo estaba era el lugar de
nacimiento, donde eran miembros del Ayllu varios dirigentes kataristas, no? Victor Apaza y
varios otros, entonces ahí yo entré en contacto, conocí sus propuestas y me encantó, y también
empecé a interactuar con la gente que, más o menos de forma clandestina, se reunían con Jenaro
Flores. Entonces fue muy natural y cando yo ya fui hacer mi maestría a Lima, al volver ya me
entré de lleno en contacto con ellos que ya estaba cayéndose Bánzer y hubo un gran Congreso
todavía semiclandestino en la plaza Israel y ahí estuve presente y fue intensificándose mi
relación con Victor Hugo Cárdenas, Simón Yampara, varias personas y con ellos estuvimos
trabajando la tesis política del segundo Congreso de la CSUTCB que se realizó en 1979, me
parece, no? O 80. Entonces ahí ya estuve muy activa, aparte de que yo ya había escrito el libro
“Oprimidos pero no vencidos”, a no, estaba empezando a escribir esas historias del katarismo
y, bueno, ya cuando vino el Golpe de García Mesa y Jenaro quedó herido yo salí al exilio y ahí
participé en México de una larga entrevista a, como se llamaba?, a un dirigente que también
estaba en el exilio, y a partir de los datos y todo eso fui escribiendo mi libro de “Oprimidos pero
170
no vencidos”. La primera copia, o sea, el manuscrito del libro se lo envié a Jenaro Flores a
Francia para que sea el primero a leerlo, y él me animó a publicarlo, no? De modo que cuando
terminó el exilio vine y publiqué el libro, que en realidad incluye la tesis política de la CSUTCB
en la que yo también había participado. Esa fue mi relación, entonces durante todo ese tiempo
mi relación duró hasta que en 1988 lo sacaron de la dirección de la CSUTCB a Jenaro Flores y
entró una serie de partidos de izquierda que prácticamente la ha fragmentado, la metieron en
peleas políticas a la CSUTCB, y yo le había advertido a Jenaro Flores, que estaba muy
encantado con unas gentes de la izquierda, que era medio peligroso que se meta con ellos, pero
no me hizo caso y, bueno, al final le hicieron un golpe y lo sacaron. Hasta ahí llegó mi relación
con ellos, después continué con el THOA y, digamos que una cosa más de historia, de trabajar
la memoria en 84-85 todo eso y seguí hasta los 90, hasta que también me desilusioné del THOA,
porque se había convertido en una ONG que recibía plata y que tenía ya una relación de trato
muy vertical, muy autoritaria con la gente que trabajaba ahí, entonces ya en 92 me alejé del
THOA también.
Silvia Rivera: Si, pero ya de una forma de muy bajo perfil, ya no hacen gran cosa. Eso, así fue
la cosa.
Chryslen: Y nunca has tenido ninguna relación con el indianismo en esa época? Porque el
katarismo y el indianismo son frentes un poco opuestas.
Silvia Rivera: Yo escribí un artículo que hablaba de que ambos eran una especie de
contrapunto, uno trabajaba en profundidad que era el indianismo, y otro en extensión, que era
el intento de representar a campesinos no-indígenas, no? Con un discurso más reformista, más
izquierdista, en cambio los MITKA eran muy radicales, no, no tuve prácticamente ninguna
relación con los indianistas.
Chryslen: Bueno, Silvia, estaba leyendo sus trabajos y uno que me llamó mucha atención fue
el Hipótesis del Mestizaje Colonial Andino. Luis Claros en su trabajo habla que esa hipótesis
es muy interesante porque desnuda una relación de anhelo y desprecio del propio sujeto.
Silvia Rivera: Si, esa es la idea de que el Colonialismo Interno no solamente es interno a la
Repúblico sino es internalizado en la subjetividad de las personas, no? Y es un poco el endo-
racismo, que los padres no quieren que sus hijos hablen aymara y toda esa cosa de represión de
171
la propia cultura para que ellos no sufran la discriminación y eso ya es una internalización del
colonialismo.
Chryslen: Y bueno, quisiera saber cómo llega desde ese hipótesis, que es una perspectiva de
mirar el mestizaje, a la actual propuesta de mestizaje ch’ixi, que también es una propuesta de
mestizaje.
Silvia Rivera: Claro, es un poco buscar si es posible descolonizar el mestizaje, porque yo había
visto que el mestizaje es una forma profundamente colonizada de la identidad. Y entonces
desarrollé la idea de que el mestizo es un blanco manchado de indio, o un indio manchado de
blanco y que esas dos manchas no se funden, sino que se yuxtaponen en forma contradictoria,
entonces vive una especie de esquizofrenia, entonces para salir de eso mi propuesta era que
asumamos la parte india con más vigor, y la pongamos a la altura de la parte europea digamos,
y podamos profundizar y radicalizar ambas identidades para que del choque saliera una energía
que pueda ser emancipadora. Esa es la idea. O sea, es como una salida, el texto sobre “Mestizaje
colonial andino” es la propuesta crítica sobre el mestizaje, y la salida propositiva ya es
descolonizar el mestizaje por la vía de asumirse como identidad ch’ixi.
Chryslen: Y es otra propuesta de mestizaje en relación a todas las otras miradas que tenemos…
Silvia Rivera: Claro, el ch’ixi sería un mestizaje descolonizador, una forma descolonizadora!
Silvia Rivera: Por eso tiene raíces históricas. O sea es la participación, como antes de la
Colonia había ya una división social del trabajo muy desarrollada, entonces cuando llega el
dinero y el mercado la sociedad ya tenía eses medios para participar del mercado haciendo uso
de sus ventajas, del conocimiento de las rutas, de la tenencia de ganado para el transporte de
productos, entonces las sociedades, por ejemplo, que hoy son más pobres, las del sur de Oruro,
172
del occidente de Oruro, de Carangas y todo esto, eran muy ricos, porque eran llameros y
transportaban desde la costa hasta Potosí, de ahí ya surge la idea de que este fenómeno era
mucho más moderno que el de la cultura señorial de los europeos que se basaba en el no-trabajo,
en el ocio, en el hecho de que todo producto era producido por humanos serviles, entonces yo
consideraba que las élites eran más arcaicas que los indios y que los indios eran más modernos,
que utilizaban el mercado de una manera muy creativa y a la vez reproducían sus comunidades
a través del mercado y el mercado no era una fuerza destructiva sino que ellos se adaptaban a
ella e utilizaban para producir sus propias formas de organización y reproducción, entonces
desde ese horizonte del siglo 16, 17, pasando por lo horizonte republicano donde igualmente la
oligarquía señorial era verdaderamente más arcaica que los indios que estaban en todo el tema
del comercio a larga distancia, las comunidades, los ayllus del norte de Potosí eran exportadores
de trigo, de harina en el siglo 19 y fueron las reformas liberales las que hicieron, digamos, que
ellos se encierren en sus ayllus y se conviertan en esas comunidades aparentemente
tradicionales, pero ellos habían conocido una modernidad muy vigorosa, no? Y así podríamos
hablar del mismo presente, como una forma de modernidad propia.
Chryslen: Me acuerdo que en su libro Ch’ixinakax Utxiwa cita la resurrección de Tupak Katari
con Bartolina Sisa que tiene el impulso más moderno que esa elite que estaba en vigor en la
época, no?
Silvia Rivera: Claro, claro, o sea Tupak Katari y Bartolina Sisa también eran comerciantes a
larga distancia de coca, etc., y también los Caciques Apoderados eran viajeros de larga distancia
y comerciantes de carne y todo eso y estaban muy metidos en el mercado.
Chryslen: Me acuerdo que una de las clases de Sociología del Imagen que tú nos ha indicado
un libro de Alison Spedding, Manuel y Fortunato, para saber un poco de eso de como pensaban
el propio Guaman Poma de Ayala que aparece en un determinado momento en el libro y
justamente en ese momento creo que hay mucho dialogo con su teoría, porque cuando Manuel
y Fortunato se encuentran con Felipe es un momento que él está en esa cosa de ir y volver del
ser indio, de querer la coca, tomar o no, entonces eso está en conflicto, no ve?
Silvia Rivera: Claro, o sea, Guaman Poma es precisamente la identidad ch’ixi, es un indio
colonizado pero donde luchan los dos contrarios permanentemente, en su texto está todo
entremezclado y yuxtapuesta la parte colonizada y la parte más libre, no?
173
Chryslen: Y en sus figuras me acuerdo también que en sus textos habla como la escrita y la
figura están en una relación conflictiva, no? Cuando asesinan a Atawalpa de una manera, pero
que no es necesariamente lo que cuenta la “historia”, pero lo que quiere decir eso, no ve?
Silvia Rivera: Claro, es el descabezamiento. Es que el utiliza mucho una serie de metáforas y
alegorías. En toda la obra yo trabajo esto de las alegorías que son las formas metafóricas de
expresar verdades históricas que, más que contar lo que pasó, interpretan el sentido, el
significado de lo que pasó.
Chryslen: Yo puse el ch’ixi en algunos diálogos con compañeros de la UPEA y les pregunté si
se sentían ch’ixi, explicando lo que era y todo eso, en cuanto identidad y muchos de ellos me
contestaron que era una identidad posible apenas para blancos-mestizos. Mi pregunta es si la
experiencia en asumirse ch’ixi es la misma en un plano criollo (blanco-mestizo como se dice,
porque eso puede ser criticable) o en un plano indio?
Silvia Rivera: Yo no sé, eso depende de ellos. Yo creo que todos los indios son ch’ixis desde
el momento en que están penetrados por la religión católica, por el castellano, y que no lo
reconocen y que no reconocen que tienen… se creen indios puros, pero en realidad no hay nada
puro, no? Entonces es una controversia que tengo yo con muchos indianistas que descalifican
esta noción de lo ch’ixi, pero yo creo que algunos si lo consideran como una posible
interpretación apropiada.
Chryslen: Pero, en cuanto identidad el ch’ixi de algún modo no borra la identidad aymara, o
si?
Silvia Rivera: No, no, no. Lo ch’ixi consiste en reconocer lo indio, pero además radicalizar-lo
como una episteme, y eso es todo el tema del diálogo con sujetos no humanos, el hecho de que
los muertos viven, el hecho de que se construyen y reconstruyen comunidades aún en espacios
urbanos, la vigencia del idioma y toda la cosmovisión que implica el idioma, todo eso configura
ese lado indio, pero depurado de todo su aspecto colonizado, por la religión e incluso el
patriarcado y el machismo dentro de las comunidades indígenas. Y por otro lado, el lado
europeo que también es necesario radicalizarlo y depurarlo de sus nexos con la libertad de
mercado y con el consumismo, y reconocer que desde europa nos ha llegado la idea de la
libertad personal, individual, de los derechos humanos como individuos, como personas, de los
derechos de las mujeres, no? Entonces esos dos lados, tanto indio cuando europeo hay que
depurarlos, para que choquen de una manera más fructífera.
174
Chryslen: Me acuerdo que una de sus ponencias hacia una relación entre el ch’ixi como
descolonización de la escrita, estaba hablando necesariamente sobre eso, y un Pachakuti de
palabras, me acuerdo que usó ese término. Quisiera que me pueda detallar un poco más sobre
eso.
Silvia Rivera: No me acuerdo haber dicho eso sinceramente, yo diría que en un Pachakuti que
es una crisis profunda, se ponen en cuestión todas las palabras, porque es necesario repensar el
significado de las palabras y hacer de ellas no una cosa para entrar en un sonambulismo, un
automatismo discursivo, sino críticamente ver que significa cada una de las palabras, las crisis
es una crisis de sentido. Es eso, yo creo, el Pachakuti de palabras.
Chryslen: En ese momento me acuerdo que hacía una crítica a los decoloniales y
postcoloniales, no ve?
Silvia Rivera: Si porque es una moda, no? Y además es esencialista, considera que los indios
son colonizados y que solo ellos son los sujetos de una descolonización, descalifican a los
mestizos y yo creo que es una posición muy esencialista y despolitizada. Que además captura
una serie de ideas producidas en el Sur y las transforman en insumos, materias primas para
devolvernos esas mismas ideas, enredadas y travestidas.
Chryslen: Me acuerdo también, Silvia que en Rio de Janeiro, cuando estabas ahí, tú has hecho
una crítica al Boaventura, una crítica muy interesante, hablando que él venía con su cuchara
sacaba lo que quería de América y en los momentos de crisis nos daba la espalda, no?
Silvia Rivera: Es que es eso, no? O sea él vía todo con optimismo porque no estaba en el
momento de la derrota, de la crisis, porque ya se iba a alguno otro lugar para escavar y para
sacar ideas que le afirmaba en esa su postura optimista, no? Yo pienso que es muy fácil,
digamos.
Silvia Rivera: Pero es una epistemología del Sur que todavía no se sabe cómo funciona, quien
son sus sujetos, es como muy light las ideas del Boaventura.
Chryslen: Ah! Quería preguntar eso porque yo tengo un vínculo muy fuerte con el anarquismo,
y en especial con el anarquismo social y quería saber cuál el vínculo entre el anarquismo, que
tú siempre te dices anarquista y mismo sus referenciales lo son, entonces cuál es ese vínculo
entre el anarquismo y la propuesta ch’ixi?
175
Silvia Rivera: Es natural, o sea el hecho de que tú reconozcas del lado europeo las luchas por
la libertad está reconociendo de que ahí el eje de esas luchas han sido los anarquistas en Europa.
Además el papel de las mujeres anarquistas, entonces yo considero que es parte del ch’ixi el
reconocer que de Europa nos vienen unas ideas que en su versión reformismo son más bien
democracia, en tanto que en la versión radical seria la acracia, el cuestionamiento a toda forma
de Estado y el reconocimiento de la base de la organización como una base micropolítica, de
trabajar desde abajo y no apuntar al Estado. Es completamente coherente con el ch’ixi la idea
de la libertad, libertaria, del anarquismo.
Silvia Rivera: Bueno, el anarquismo de la FOL era de gente chola de las ciudades, eran cholos,
eran cholas y cholos carpinteros y artesanos en su mayoría, entonces si tenía una raíz aymara,
pero a la vez eran modernizantes, no?
Silvia Rivera: Es eso, o sea el cholo que se afirma a si mismo tiende a esa forma ch’ixi de la
descolonización, no? Que reconoce todo el boom que hay de rituales, de reencuentro con la
Pachamama de parte de los sectores cholos urbanos, está encaminado hacia una identidad ch’ixi.
Chryslen: Pero hay determinaciones que hace en su nuevo libro que son muy interesantes y
que había pensado con mi familia de Villa Adela, que muchas veces me pasó, cuando tú dices
que existen esas determinaciones de lo que es también el indígena y entre ellas es eso de
considerar el todo como sujeto, me acuerdo que, para mí, cuando venimos desde afuera traemos
toda nuestra no-familiaridad y todo nos es nuevo, me acuerdo que mi suegra me decía, porque
yo no aguantaba comer tantas papas, me decía que “No puedes botar la papa, la papa va
llorar”, entonces esa relación que el todo es sujeto…
Silvia Rivera: Claro, que las cosas son sujetos, que las cosas hablan, que las cosas se relacionan
con el mundo humano, que hay señales, que las cosas te dan señales, eso es así.
Silvia Rivera: No, lo que pasa es que son muy racionalistas los indianistas y no son muy adictos
a practicar ningún tipo de rituales, son bien negados a los rituales e incluso sectores como el
Carlos Macusaya plantea de que no hay ninguna propuesta de defensa de la madre tierra, de
que eso es pachamamismo, no? Entonces son muy… modernizantes, son totalmente
modernizantes, en el fondo eurocéntricos.
Silvia Rivera: Si, yo creo que eso tiene un valor, que es alertarnos de que no es posible
quedarnos solo en el análisis de los conflictos étnicos, sino también internamente en cada grupo
ver la estratificación de la clases, entonces yo creo que es necesario reconocer que hay una
estratificación de clase y explotación de aymaras por otros aymaras en los talleres textiles en
São Paulo, en Buenos Aires, entonces es evidentemente muy necesario no romantizar al
indígena y a la comunidad porque hay una fuerte tendencia a una diferenciación interna y una
estratificación dentro del grupo, de la comunidad hay estratos, hay explotadores y hay
explotados, no?
Silvia Rivera: Bueno, q’amiri es una fórmula de expresar una forma de considerar la persona
que tiene medios, que es rica, que tiene posesiones, que puede hacer grandes fiestas, redistribuir,
es como una burguesía con un sello étnico, no? Eso es…
Silvia Rivera: Claro que sí, como burguesía comercial, pero también en los talleres textiles hay
una burguesía productiva.
177
ahí he golpeado una casa así me sé entrarme, allá me ha visto. A mi mamá le había encontrado,
pues, en Final los andes había esperado y llevado donde Tío Maxi, hasta ahora sigue vive en
ahí. Ahí donde Tío Maxi decía que se había alojado. Eusebio se llamaba el camionero, “tía,
qauqaru sarasta?” (tía a donde estas yendo ?)” “Hildajaj ch‘ak‘atachiyaja (la Hilda no parece),
su papá a mí nomas me riñe, donde voy a ir a averiguar”, “tia nayaj uñjta, ma utaru manti,
mira flores uca toq‘inanaja irpama tia” (tia yo le visto, a una casa ha entrado, por Miraflores,
yo te voy a llevar tía¡¡ ) me dicho yo te voy a llevar.”Irpitay, amsuma” (llévame pues por
favor). Había venido mi papá más pues, golpea la puerta,
“Así mi hija es, se ha perdido, como estará?” Le dijo mí papá a la señora para quien yo
trabajaba. “Si está trabajando bien va a estar trabajando, si no está bien también me la llevo
nomas también”, y ella sabe responderle: “A sí quieres te la puedes llevar, pero me tienes que
pagar, todo lo que le he enseñado, tu hija no sabía nada!” “No sabía lavar tazas, no sabía
tender cama, nada sabía tu hija! Así que ahora ya ha aprendido, tres meses ya aprendió, así
que vos tienes que pagarme!”, así le había dicho mi jefa a mi papa. Mi papá no sabía qué
decirle…“No tenemos para pagar, para ganarse ha venido pues a trabajar, por eso también
que mi hija ha venido pues, entones, para que, no voy a pagar, yo no tengo plata para pagarle”,
sabe decir mi papá. “me lo llevaré nomas a mi hija aunque no me pagues yo tampoco te puedo
pagar, mi hija te ha ayudado por lo menos! Yo puedo quejarme también!”, sabe decir mi papá
entrador también era mi papa, “Voy a quejarme en al Ministerio del Trabajo haber si no hay
pago. Vamos Hilda, vamos al campo nomás”, así sabe decirme, en el campo vendía comida
pues ya, ya había aprendido a cocinar asado en la olla.
Giovana Mayta: No te han pegado, porque te has q‘itado (escapado)? No te han pegado?
Roger A. C. Mayta: La abuela no te ha reñido?
D. Hilda: Q’itaqara me decían, al dormir ya al despertar, mil cosas me decían, aqa q‘uitaqara
walj k‘apichkar ukàt janiu kìtasineja (esa chica que escapa de la casa, siempre se quiere
escapar).
Chryslen Mayra: Cuanto tiempo ha quedado en La Paz? Tres meses?
D. Hilda: Tres meses con esa señora, después de ahí me fui a trabajar con el general Bánzer.
Chryslen Mayra: Y la señora que te llevó era también de Ch’ojñapata?
D. Hilda: No, esa chica, la cholita que me ha llevado a La Paz, se ha llevado mi cuerito, y mi
manta. No era de Ch’ojñapata.
D. Hilda: Después fui con mi Tía Ignácia, del Tío Alberto, no ve? Esa tía me llevó a trabajar
con el General Banzer, ella pues me dijo que necesitaban ayuda, la Tía Gregória gorda también
trabajaba como empleada igual. Esa tía sabe decirle a mi mama que “Su mamá de mi General
quiere, quiere emplear” de ahí agarré mis cosas y me fui a trabajar con el general. Yo me quedé
así en una habitación con guardias.
Roger A. C. Mayta: Y cómo te ha sentido cuando llegaste a esa casa tan lujosa?
D. Hilda: Bien, en un palacio me sentí, así, nunca había visto casas alfombradas. Y el General
Banzer tenía su sapo en la Rosendo Gutiérrez, su sapo gordo, su tortuga también, todos los días
hasta sábado, domingo se sentaba encima de su tortuga… En cima de su tortuga sentado y sus
182
pies estirados, así sabe estar leyendo los periódicos. Puro cosas saludables saben comer, jugo
de papaya, de frutas, pelado las frutas, “General, la señora se ha mandado.” Sé decirle, él sabe
responderme “Gracias, Elvirita. Gracias, Elvirita!”
Chryslen Mayra: Todas las que trabajaban ahí eran Aymaras?
D. Hilda: Sí, había un argentino que cocinaba platos extranjeros. En las noches cenaba, harta
gente sabe estar en su mesa, ahí es que era grande. Después hay que poner la mesa, sus
cubiertos, hay que poner vasos, copas, nosotros aquí como quiera comemos, allá no, hay que
poner las mesas con sus cubiertos, sus servilletas, con sus manteles, igualitos si ven sus
servilletas, con sus cubiertitos se ponen, jarras, jugos de frutas también en la mesa, almuerzan
como cincuenta personas, a veces cien así personas comen.
Chryslen Mayra: Y tenías tu cuartito, mami?
D. Hilda: Tenía mi cuartito, mi cuartito era así chiquitito con graditas que subían en vuelta,
vuelta, así se venía a mi cuartito. Tenía mi catrecito, mi colgadorcito.
Giovana Mayta: En el baño dormía, sabías decir?
D. Hilda: Eso era más antes, cuando me escapado, donde la señora mala. Ahí dormía donde es
la taza del baño, en el piso sé dormir. No sabía cómo era estar en mi cama.
Chryslen Mayra: Y tenía cuantos años? Nueve años?
D. Hilda: Sí, como Thaís.
Chryslen Mayra: Pero todas las otras que trabajaban, hablaban en Aymara?
D. Hilda: Sí, la Doña Romualda era de Copacabana, la que cocinaba comidas bolivianas, el
otro era Don Fermín, así se llamaba, era argentino que cocinaba platos extranjeros, cuando
llegaban ya invitaba para comer, cocinaba…
Chryslen Mayra: Y la Elvira?
D. Hilda: La Elvira era compañera conmigo, todas acompañábamos a la señora, ella era la
compañía de su señora.
Chryslen Mayra: Pero de donde era la Elvira?
D. Hilda: De Tarija. Doña Romualda era de Copacabana, pues, cocinera también, después
tenían dos garzones jóvenes. Esos garzones me hacen recordar al garzón que ayudó en la fiesta
del Marco y de la Giord.
Roger A. C. Mayta: Y después volviste a Ch’ojñapata a cocinar, no? Ahí ya vendiste comida?
D. Hilda: Sí, como ya había aprendido a cocinar, entonces vendía comida.
Roger A. C. Mayta: Y ahí el papá venía, no?
D. Hilda: Sí, el papá decía “Donde te has ido? Por qué te has ido así? No tienes que faltar a
la escuela, tienes que volver”. De ahí un domingo, yo estaba en un asiento y el Ascencio se
viene a sentar a mi lado y yo me siento también así en el lado, “Cómo estás?”, me sabe decir,
“Bien”, le sé responder. “Por qué no has entrado a la escuela, abajo tengo yo mi intermedio
ahí debes entrar” “No, mis papás me dijeron que no tengo que ir a la escuela porque no se
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come el papel, así me enseñó mi papá, me dijo que tengo que aprender a leer y firmar, nada
más, y si mi papá me dice así, quien va a querer llevarme hasta escuela?”. Muchas aprendían
el nombre en sí, y le decían “Si profe!” le sabían estar diciendo. Un día el Ascencio una de mis
manos me había agarrado y me ha asustado, “como es, como es?”... como una vizcacha me
asustado “No te asustes Hilda, porque te asustas?” yo se temblar, uff! Sé temblar harto:
“Hablaremos por las vacaciones”, me dice “Que cosa vamos hablar, profesor?” “Hartas
cosas!”. A mi papá rápido sé avisarle! No sé ocultarle nada. “Mami, así me agarró el profesor
Ascencio de mi mano, me ha asustado, después me dicho así hablaremos para las vacaciones”,
y mi mamá dijo “Que cosa debe querer hablar, que cosa a mi hija quieres hablar, pues?! Viejo
cochino! Eses viejos profesores, así nomas a las chicas engañan. Romualdo ven a ver!”, le dice
a mi papá, “Ese maestro había hablado a la Hilda, y su mano le había agarrado “Hablaremos
para las vacaciones” que cosa a mi hija querrá hablar? Ese viejo, carajo! Profesor es, debe
tener dinero y también debe tener mujeres, los profesores cuando están en la Normal ya tienen
sus mujeres, así nomás solteros soy vivido soy van hablando. No te vas a acercar hija! No te
vas a acercar, nos vas a avisar! Y luego domingo le voy a reñir, no le voy a recibir aquí.”
Giovanna Mayta: Toda la vida le ha reñido, no?
D. Hilda: No, mi papá siguió renegando. Hasta mi hermano Marcelo sabe sonarle con palo!
Roger A. C. Mayta: Tío Marcelo?
D. Hida: Sí, chiquito era, chiquito. Ahí venía: “Nunca más le hables a mi hermana”, luego le
sabe golpear. “me estás lastimando niño” sabe responderle el papá
Chryslen Mayra: Cuantos años tenía Don Ascencio?
D. Hilda: Hm… Cuanto años él había tenido?
Roger A. C. Mayta: Veintinueve?
D. Hilda: Hm… treinta por ahí..
Giovanna Mayta: Cuantos años era mayor?
D. Hilda: Catorce años mayor es, pues.
Roger A. C. Mayta: Si vos tenía quince, él debió tener treinta y uno?
D. Hilda: Sí, algo por ahí…
Roger A. C. Mayta: Veintinueve, mi edad tenía, mi edad, como yo!
Chryslen Mayra: Veintinueve!
D. Hilda: Eso tenía, ya era viudo y divorciado…
Roger A. C. Mayta: O sea, es como yo y la Dani, no ve? La Dani tiene quince años y yo igual
tengo veintinueve, así igualito, como la Danitza y yo.
D. Hilda: Así era. Así nomas mis papás avisaban le, cuenteaba le, así un domingo viene y me
habla, “Ese profesor habla con mi hija. Hilda, viene, viene!” me llamaba mi mamá, no me
dejaba que le hable, aun que iba hablar rápido me llamaba. Y yo con rabia le iba atender, y ya
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no le atendía como antes. Toda la vida le ha tratado mal, alma bendita, nunca le ha querido, no,
nunca le ha querido. Como él era malo también, peor.
Giovana Mayta: Y cómo te han hecho casar con él?
D. Hilda: Con mi hijo Marcos estoy casando, Marcos así era como el Ciro. Así me estoy
casando.
Roger A. C. Mayta: Entonces mami, en tu matrimonio quién estaba de tu familia, la abuela
estaba?
D. Hilda: Hermanos mormones.
Roger A. C. Mayta: Pero de tu familia… digo de tu familia, pues, quién estaba de tu familia?
La Abuela…?
D. Hilda: De mi familia estaba tío Severo, mi tío Condori, vivía todavía con mi tío Condori,
pues. Ha venido el papá pedirme la mano, pues, a La Paz.
Roger A. C. Mayta: Con quién vino el papá a La Paz, con quien ha venido?
D. Hilda: Con tío Evaristo ha venido, con tía Petrona. Después otro Juan, un conocido de tío
Evaristo, y junto con un notario.
Roger A. C. Mayta: trajo un notario de fe pública?
D. Hilda: Si, con un notario más. En la puerta de mi casa un domingo sabe ser, pues, domingo
a las siete, muy tranquilo.
Roger A. C. Mayta: En la casa en Ch’ojñapata?
D. Hilda: No, en La Paz, aquí en El Alto, en Los Andes. Tenía su tiendita mi papá, su tiendita
en la esquina está vendiendo, pues, adentro mi mamá está viendo sus galletas tostando. Y llegan
así “toc, toc, toc…”, saben decir “Cerveza!”, mi papá sabe decir. “Ay, caramba. Aquí esa
cervecita están trayendo?Que será, que cosa será, no?” “son unos Achacacheños creo”, mi
papá reconocía la voz de la gente de Achacachi, “Ah, su familia de Chana puede ser! Clarito
son su modo de hablar de los Achacacheños son”.
Roger A. C. Mayta: Ya, antes de eso todo ya estaba enamorada de papá, no?
D. Hilda: Sí, ya estaba.
Roger A. C. Mayta: Un poco antes… Ya se querían, no ve?
Giovanna Mayta: Todavía ya habían wawitas?
D. Hilda: No, no había.
Roger A. C. Mayta: Antes se han casado, para que convivan.
D. Hilda: Hemos convivido un año y en los cumples, ahí tenemos wawitas. Como voy a
entregarme más antes? Como el era mayor era formal.
Roger A. C. Mayta: Sí, sí, formal era.
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D. Hilda: Si él me quería para su mujer, claro por eso también me respetaba, si no me quería
para su mujer claro me hubiera hecho wawa. Y así, mi mamá sabe decirme que vaya a cerrar la
puerta, cuando de un de repente entra a la tienda el profesor saludando: “Don Romualdo!” sabía
entrar, “Como estás, profe?” sabe responder mi papá asustado “Como estás profesor, buenas
noches”, te presentaré pues a mi tío” “Ah, cómo estás? Seguro que no estás mal” y tío Evaristo
le saluda, entra también la tía Petrona “Buenas noches! Que tal, Romualdo?”.
Roger A. C. Mayta: Tío Evaristo con saquito, con su sombrerito.
D. Hilda: Eso, con su sombrerito con la tía Petrona así también, adentro cambiadito, con su
sombrerito. “Kunjamastasa tata (como esta señor?)”, habladora era la Tía Petrona, la tía María
venía con su esposo también.
Roger A. C. Mayta: En ese momento el papá no tenía que estar ahí, no ve? O estaba ahí?
D. Hilda: Estaba ahí… Un señor más, no han dicho que es un notario, nada. Mi tío Condori
también ha llegado ese rato, a visitar acá venía, pues. Ahí adentro donde están hablando y yo
estoy en otro lado, a parte de la gente adentro, había de entrar a la tienda. “A qué se debe pues
la visita?”, mi papá sabe decirles, “me han sorprendido”. Recién supe que era viudo, a mi no
me dijo que era viudo, nada. “Viudo es, su esposa ha muerto sus hijos también, solito se a
quedado”, saben decirle a mis papás, “no tiene papá, ni mamá, ni hermano, nadie, es solito.
Es huérfano”, así sabían decir.
Roger A. C. Mayta: Era huérfano, pues.
D. Hilda: Mi tío Condori ha llegado después ahí. Mi papá decía que yo era muy niña y que aún
no podía hacer familia con una persona mayor. Ahí el tío Evaristo le dijo a mi papá, “Pero
Romualdo, esa persona es mayor, pues ya es viudo, tiene experiencia, como a su hija le va a
cuidar también”, yo se estar escuchando nomás… El tío Condori sabe decir después: “Tío
Romualdo, profesor pero también es el señor, acaso nosotros somos ricachones? Con su
sueldito va estar manteniendo a la Hilda, por ahí es su suerte? Como su hija le cuidará nomas
también, mayor de edad también es, como a su hija le va a cuidar. Para que van estar ahí sigue
discutiendo? ya dile, entrégale!” dijo mi tío, “Que vas hacer? Acaso vas a carnear tu hija, toda
la vida no va estar sola, siempre algún día se van a casar! La primera palabra no hay que
negar, dicen. Pero por ahí puede ser su suerte” así sabe decir mi tío “La primera palabra nunca
hay que negar, eso te estaré diciendo, Romualdo” le ha dicho a mi papá. “Ya, pero que puedo
hacer?”, sabe decir mi papá, después me sabe llamar: “Hilda, así nomás con el profesor sabes
hablar dice, dicen que ya te van a llevar, te iras pues hija” Yo no sabía ni qué decir, “vamosnos
niña Hilda, conmigo vas a estar viviendo” sabe decirme tía Petrona. “Ya se decirles”, esa noche
a las cuatro de la madrugada saben llevarme. Con canciones, (irpastay, irpastay)
Chryslen Mayra: Como era la música?
Roger y Doña Hilda: irpastay, irpastay, janku paloma irpastay (me llevo, me llevo a una
paloma blanca me llevo).
D. Hilda: Con esa música me llevaron hasta su casa, sabían cantar hasta llegar a su casa y ahora
en su casa, 3 de mayo era en su casa. Cuando han llevado, toda la noche han tomado, toda la
noche. Yo no podía tomar, me han hecho tomar, me iba mareando y me he ido a dormir. Al día
siguiente me levanté y seguían tomando ellos.
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D. Hilda: Sí, bueno era! Antes me llevaba a su escuela, yo se ir cargado con mi gatito. Tenía
un gato así plomito, Ninfa se llamaba, cargado de gatos hasta Patapatani, ahí sé estar
caminando.
Chryslen Mayra: Y el papá hablaba Aymara también?
D. Hilda: Sí.