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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

Chryslen Mayra Barbosa Gonçalves

EPISTEMOLOGIAS MANCHADAS: MESTIÇAGEM E SUJEITOS POLÍTICOS DA


DESCOLONIZAÇÃO NA BOLÍVIA ANDINA

Campinas
2019
Chryslen Mayra Barbosa Gonçalves

EPISTEMOLOGIAS MANCHADAS: MESTIÇAGEM E SUJEITOS POLÍTICOS DA


DESCOLONIZAÇÃO NA BOLÍVIA ANDINA

Dissertação apresentada ao Instituto de Filososfia


e Ciências Humanas da Universidade Estadual de
Campinas como parte dos requisitos exigidos para
a obtenção do título de Mestra em Antropologia
Social.

Orientadora: Prof. Dra. Artionka Manuela Góes Capiberibe

Este exemplar corresponde à versão final da


dissertação defendida pela aluna Chryslen Mayra
Barbosa Gonçalves, orientada pela Prof. Dra
Artionka Manuela Góes Capiberibe e aprovada no
dia 26/03/2019

.
Campinas
2019
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, em sessão pública


realizada em 26 de março de 2019, considerou a candidata CHRYSLEN MAYRA BARBOSA
GONÇALVES aprovada.

Prof. Dra. Artionka Manuela Góes Capiberibe

Prof. Dr. Christiano Key Tambascia

Prof. Dr. Jean François Germain Tible

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de


vida acadêmcia da aluna.
Dedico todos os esforços deste trabalho aos meus
queridos pais, Silvano Renato Gonçalves e
Ednalva Trindade Barbosa Gonçalves.
Dedico também à Dona Hilda, minha grande
companheira.
Em memória de Sérgio Augusto Domingues.
AGRADECIMENTOS

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Convênio FAPESP/CAPES) pelo


suporte financeiro para a realização do Mestrado (Processo nº 2017/17046-4).

À banca examinadora e à minha querida orientadora Artionka Capiberibe.

Agradeço aos meus pais, Ednalva Trindade Barbosa e Silvano Renato Gonçalves, pela luta
diária para que eu possa ter as oportunidades que tenho hoje. À minhas irmãs Isabelly
Chrystiny, Isadora Emanuelly e Gabrielly Louise por serem a grande fortaleza da minha vida.

À minha querida família Barbosa e Gonçalves.

Agradeço aos amigos da UNESP de Marília e da UEMS de Paranaíba pelos anos de


interlocução na minha trajetória acadêmica e humana, aos amigos Vitor Carvalho, Wellington
de Castro, Djalma Querino de Carvalho, Alexandre de Castro. Aos companheiros e
companheiras do Grupo de Estudos Antropológicos (GEA). À memória eterna de Sérgio
Augusto Domingues, Krahó, que suportou os tormentos da Universidade até o último suspiro,
filosofando em diálogo com as epistemologias indígenas.

Agradezco a mi mamay Hilda, a mis hermanos y hermanas Chambis, a mis sobrinitos


y sobrinitas. Agradezco a mi compañero que construyó su thaki a mi lado, mi hechicero de los
Andes, Roger Adan Chambi Mayta, por todos los meses de cariño, de paciencia y por
presentarme su mundo. Agradezco a los aymaras, a las warmis y cholas, a los llokallas y imillas.

Agradezco a los achachilas y a las awichas, al Tata Illimani y a la Pachamama por aceptarme
en su mundo.

Agradezco a los Colectivos La Curva del Diablo, Nacionalismo Aymara, Jichha, Tambo
Colectivo Ch’ixi, por los diálogos y materiales para esa investigación.

Agradezco a los amigos Pedro Pachaguaya Yujra, Eliane Pinheiro, Yola Mamani Mamani,
Wilmer Machaca, Magali Vianca, Claudia Condori, Elizabeth Huanca, por la interlocución en
estos meses en tierras andinas.

Agradezco a Silvia Rivera Cusicanqui, Nico Tassi, Abraham Mancilla, Constantino Lima y
Luis Claros por las entrevistas y diálogos.

Agradeço aos amigos e amigas, Jordana Barbosa, Maysa Oliveira, Jaqueline Oliveira, Mayanna
Nunes, Lucas Maciel, Nathália, Marina Sousa, Ralyanara Freire, Julia da Silva, Maiane,
Zacarias Tsambe, Felipe Mattos Johnson – pelo carinho, pelos diálogos e pelos poemas nos
momentos mais obscuros -, Paloma, Evandro, Duvan Escobar e todos os que acompanharam a
minha trajetória. Agradeço à Lunara Galves pela paciência na leitura deste texto.

Agradeço ao Núcleo de Consciência Negra da UNICAMP por existir, por me fazer existir, pela
luta.

Agradeço aos trabalhadores da UNICAMP, em especial à Leticia Campos pelos sorrisos


matutinos no RU.

Agradeço ao meu povo que aprendeu a lutar apesar das intempéries!

ELE NÃO!
“En nuestro território conviven no sólo distintas razas
e lenguas, sino vários niveles históricos... Varias
épocas se enfrentan, se ignoran o se entredevoran
sobre una misma tierra o separadas apenas por unos
kilómetros […] Las épocas viejas nunca desaparecen
completamente y todas las heridas, aún las más
antiguas, manan sangre todavía” – Octavio Paz

“Janiw asjarayxstuti jiwaña,


Aymaratwa kala suninkiri jaq'e,
Achachilanacajan arunacapja ist'apjtua,
llampu jacañataqi,
llampu chuymanacampi alajpachampi.
La muerte no me da miedo hoy,
soy Aymara de piedra piedra de los Andes,
escucho la voz la voz de mis Achachilas,
para vivir en paz en paz con el universo”
KALAMARKA, Ponchos Rojos.
RESUMO

Esta dissertação propõe compreender alguns debates acerca dos sujeitos políticos e das
identidades construídas em território andino boliviano, especificamente em diálogo com a etnia
andina Aymara. O objetivo principal desta pesquisa é apresentar alguns discursos identitários
relacionados com vivências de grupos aymaras, neste caso com a família Chambi, com quem
estruturei parte importante das reflexões em torno ao universo em estudo. Procuro relacionar
algumas preocupações anticoloniais com a proposta de Silvia Rivera Cusicanqui, a mestiçagem
ch’ixi, compreendendo suas críticas às teorias da mestiçagem na Bolívia. Partindo pela
descrição dos aportes metodológicos que foram determinantes para a minha entrada ao campo,
apresentam-se algumas especificidades da etnia Aymara e da memória coletiva por meio dos
intelectuais e militantes indianistas e kataristas (movimentos políticos de quéchuas e aymaras).
Para além de uma discussão em torno da proposta teórica de Silvia Rivera Cusicanqui, dialoga-
se também com algumas reflexões que partem da minha participação no curso de Sociología de
la Imagen que a autora leciona no Tambo Colectivo Ch’ixi, localizado na cidade de La Paz. São
apresentadas algumas teorias contemporâneas da mestiçagem na Bolívia, mantendo um debate
entre estas perspectivas, das quais, algumas defendem um viés harmônico e outras sustentam o
conflito como determinante na análise da mestiçagem, e com as perspectivas dos
atores/intelectuais aymaras do campo. Estas narrativas situam-se através de um diálogo com as
preocupações do ch’ixi, que são apresentadas com referências a esta categoria em trabalhos
sobre economias e sobre a estrutura política do Estado Plurinacional da Bolívia, bem como as
suas críticas, vindas da própria academia e dos movimentos políticos aymaras.
Palavras-chave: Mestiçagem; Índios; Antropologia; Bolívia.
.
ABSTRACT
This dissertation proposes to understand some debates about the political subjects and the
identities built in Bolivian Andean territory, specifically in dialogue with the Andean ethnic
group Aymara. The main objective of this research is to present some identity discourses related
to the experience of Aymara groups, in this case with the Chambi family with whom I structured
an important part of the reflections around the universe under study. I try to relate some
anticolonial concerns with the proposal of Silvia Rivera Cusicanqui, the Ch'ixi miscegenation,
including her criticisms of the theories of miscegenation in Bolivia. Starting from the
description of the methodological contributions that were determinant for my entrance to the
field, some specificities of the Aymara ethnicity and of the collective memory are presented
through the intellectuals and militant Indianists and Kataristas (Quechua and Aymara political
movements). In addition to a discussion around the theoretical proposal of Silvia Rivera
Cusicanqui, I also had some reflections on my participation in the course of Sociology of the
Image that the author teaches in the Tambo Colectivo Ch'ixi located in the city of La Paz.
presented some contemporary theories of mestizaje in Bolivia, maintaining a debate between
these perspectives, some of which defend a harmonic bias and others support the conflict as a
determinant in the analysis of mestizaje, and the perspectives of the actors / intellectuals
aymaras of field. These narratives are based on a dialogue with the concerns of the ch'ixi that
are presented with references to this category in works on economies and on the political
structure of the Plurinational State of Bolivia, as well as their critics, coming from the own
academy and of the Aymara political movements.

Key Words: Miscegenation; Indians; Anthropology; Bolivia.


JUK’ACHA

Aka qillqatanx marka p’iqichirinakampit Bolivia suni uraqin utt’ayat uñt’ayasiñ


kankañanakampit yaqhip aruskipatanakax utjki ukxatw amuyt’ayañ munata, qhanpachax suni
uraqin jakasir aymar markamp chik amuykipt’asa. Aka yatxatäwinx yaqhip uñt’ayasiñ
arsutanakxatw juk’ampis qhanancht’atäni, ukaw jach’a amtaxa, yaqhip aymaranakan
jakäwipxata, Chambinakan utjäwipata, jupanakampix yatxatañatak ajllit jaqinakxatw
juk’ampis amuykipt’awiyapxtha. Mama Silvia Rivera Cusicanquin amuyt’ataparjamaw yaqhip
t’aqhisiyirinakar kutkatañ amuyunakx uñakipt’awaytha, “ch’ixi misti” amuyuparjama,
Bolivian mistinakxat amuyt’añax utjki uk k’umitap amuyt’asa. Yatxatañ qalltañajatakix sapkit
uka yatxatañ thakhinakaw khuspin amuyt’ayawiyitu, ukampiw aymar markampit taqinin
amtasiñ utjatapampitx yaqhip qhanancht’äwinakax uñt’ayata, “indianismo” ukhamarak
“katarismo” amuyt’irinakamp uka amuyurjam sarnaqirinakampi (qhichwanakan aymaranakan
p’iqichirinakapa). Janiw mama Silvia Rivera Cusicanquin amuyt’atapatak arsutäkiti, yamakis
nayax Jamuqanakan Markachäw Yatxatañxat jupa mama qillqirix yatichki ukar saras
amuykipt’awayktha ukxats arst’atarakiwa, Ch’ixi Taman Tampupan jupax yatichi, Chukiyawu
jach’a markana. Jichha pachax kuna amuyunakas mistiptañxatx Bolivian utji ukxatw yaqhip
amuyunakax uñt’ayata, aka amuyunakamp patan jakasipki uka amuyt’irinakan
amuyunakapamp kikipt’ayasa; yaqhip nayrïr amuyunak taypinx yäpar amuyunak q’iwt’añaw
arxatata, yaqhanakanst mistiptañat amuykipt’añatakix ch’axwataw uñakipañapini sasaw
sataraki. Ukham arsutanakax “ch’ixi” amuyump amuykipt’asaw apnaqata, qullqichäwxat
yatxatatanakampin Bolivia Kunayman Markan Markapan utt’ayäwipat yatxatatanakampin
ukxatx uñt’ayata, ukhamarakiw k’umitanakapasa, yatxatirinakan k’umitanakapamp
aymaranakar p’iqichirinakan k’umitanakapampi.

Wakisir arunaka: Mistiptäwi; Indios; Jaqi jakäwit yatxataña; Bolivia.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Diagrama Tawantinsuyo


Figura 2: Distinção do significado de palavras similares à ch’ixi
Figura 3: GUAMAN POMA DE AYALA, 1615.p.499
Figura 4: GUAMAN POMA DE AYALA, 1615.p796
Figura 5: GUAMAN POMA DE AYALA, 1615.p540
Figura 6: GUAMAN POMA DE AYALA, 1615.p540
LISTA DE FOTOS
Foto 1: Chola cochabambina e Chola paceña
Foto 2: Cholet, evento de formatura de um dos irmãos Chambi
Foto 3: Família Chambi minutos antes de apresentar-nos para a comunidade de Ch’ojñapata
Foto 4: Comunidade aymara de Ch’ojñapata
Foto 5: Silvia Rivera Cusicanqui no Museo de la Revolución de 1952
Foto 6: La Puerta del Sol, sítio arqueológico de Tiwanaku
Foto 7: Empanadas que produzimos para Todos los Santos
Foto 8: T’ant’awawas que serão oferecidas para Don Ascencio Chambi, do lado esquerdo pode-
se perceber os pedaços de papelões Kris
Foto 9: Mesa de Todos los Santos para Ascencio Chambi Verástegui
Foto 10: Mesas de Todos los Santos em Villa Adela
Foto 11: Ñatitas e fiéis no Cementério General de La Paz
Foto 12: Queima de mesa para a Pachamama, Dona Hilda Chambi ch’allando
Foto 13: . Dona Hilda Chambi segurando o filho de Hugo Bánzer Suárez, na parte traseira da
foto a dedicatória “Para Hilda” acompanha a data (1972) e algumas palavras em inglês.
Foto 14: . Foto fornecida por Dona Hilda, segundo ela Dona Margarita está ao centro
LISTA DE MAPAS
Mapa I: Província de Omasuyos e sua posição com relação à La Paz
Mapa II: 9 Departamentos da Bolívia delimitando o Oriente (Media Luna) e o Ocidente
(Terras altas).
LISTA DE TABELAS
Tabela I: Tabela de Comidas
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CSUTCB – CONFEDERACIÓN SINDICAL ÚNICA DE TRABAJADORES CAMPESINOS DE


BOLÍVIA
EGTK – EJÉRCITO GUERRILLERO TÚPAC KATARI
MAS – MOVIMIENTO AL SOCIALISMO
MNR – MOVIMIENTO NACIONALISTA REVOLUCIONARIO
PIB – PARTIDO INDIO DE BOLIVIA
THOA – TALLER DE HISTORIA ORAL ANDINA
SUMÁRIO

GLOSSÁRIO..........................................................................................................................19
INTRODUÇÃO......................................................................................................................22
CAPÍTULO I: “KOLLÍVIAS: Territorialidades, identidades, estratégias e perspectivas
político-intelectuais aymaras” ................................................................................................34
Bolívia andina como cenário....................................................................................................34
CHUQUIAWU MARKA e EL ALTO: Migrações, Identidades, Economias.............................43
Contextualização dos aymaras em território boliviano............................................................50
Indianismo e Katarismo............................................................................................................56
Expressões atuais......................................................................................................................63

CAPÍTULO II: “MESTIZAJE CH’IXI: uma proposta de Silvia Rivera Cusicanqui”.......67


Um pensamento abigarrado.....................................................................................................67
Tambo Colectivx Ch’ixi e o curso Sociología de la Imagen....................................................76

Um mundo Ch’ixi é possível?...................................................................................................82

CAPÍTULO III: As atuais teorias da mestiçagem na Bolívia................................................92

La Sirena y el Charango………………………………………………………………………………92

Todos los Santos, Ñatitas e a suposta simbiose religiosa…………………………………….96

La chola Aymara.....................................................................................................................106

A Choledad como discurso de mestiçagem............................................................................122

CAPÍTULO IV: ¿Descolonizando el Mestizaje? O Ch’ixi em debate.................................137


Diálogos ch’ixi........................................................................................................................137

Crítica à crítica........................................................................................................................142

CONCLUSÃO.......................................................................................................................154
REFERENCIAIS BIBLIOGRÁFICOS..............................................................................157

ANEXOS................................................................................................................................164

Anexo 1. Certificado de Óbito de António Chambi Huanca, pai de Don Ascencio Chambi
Verástegui, falecido marido de Dona Hilda. (Documento cedido pela família).....................164
Anexo 2. Certificado de Óbito de Fortunato Mamani Huanca, meio-irmão de Don Ascencio
Chambi Verástegui, falecido marido de Dona Hilda. (Documento cedido pela família).......165
Anexo 3. Certificado de Óbito de Margarita Huanca Verástegui, mãe de Don Ascencio Chambi
Verástegui, falecido marido de Dona Hilda Chambi. (Documento cedido pela família).......166
Anexo 4. Certificado de Óbito de Rolando Chambi Mamani, filho do primeiro casamento de
Don Ascencio Chambi Verástegui, falecido marido de Dona Hilda Chambi. (Documento cedido
pela família)............................................................................................................................167
Anexo 5. Certificado de casamento de Antonio Chambi Guanca com Margarita Guanca
Verástegui, pais de Don Ascencio Chambi Verástegui. (Documento cedido pela família)....168
Anexo 6. Diálogos com Silvia Rivera Cusicanqui (08/12/2018)............................................169

Anexo 7. Diálogos com Dona Hilda........................................................................................177


19

GLOSSÁRIO DE TERMOS AYMARAS1

A. divindade, derramando sobre o chão uma


pequena quantidade do conteúdo do copo
Abarcas: Sandália de couro utilizada, em
antes de tomar;
geral, por aymaras em espaços rurais;
Ch’ixi: Cinza; Animais indesejados;
Achachilas: Avô em Aymara; Divindade
sagrada e protetora, normalmente Chola: Mulher que veste a indumentária da
localizada em espaços físicos, como as pollera (saia longa com muitas camadas), o
montanhas; chapéu borsalino e a manta;
Arku: Rotatividade no financiamento de Cholet: Edifícios contemporâneso feito por
festas da comunidade; aymaras na cidade de El Alto; Normalmente
contém uma infinidade de cores e símbolos
Awayo: Tecido Aymara usado geralmente
de Tiwanaku;
por mulheres aymaras para carregar
crianças e produtos; Cholo: Categoria pejorativa para se referir
ao mestiço que tem maior proximidade com
Awichas: Avó em Aymara; O termo é
o setor indígena;
utilizado para referir-se a divindades
aymaras, assim como os achachilas; Chuño: Alimento Aymara produzido à base
de batata desidratada;
Ayllu: Organização política, social e
econômica das nações aymaras e quéchuas; Ch’ullo: Gorro de frio Aymara com duas
pontas sobre as orelhas;
Ayni: Prática Aymara de reciprocidade; O
ayni pode estar presente nos espaços rurais Ch’uspa: Bolsa Aymara, em geral para o
como reciprocidade na produção de transporte de folhas de coca;
alimentos, mas também nas festas urbanas
F.
como casamentos e aniversários, neste
último caso o ayni é determinado pelo Faena: Trabalho rural feito em conjunto no
presente, criando responsabilidade de território coletivo da comunidade;
reciprocidade em quem é presenteado;
H.
Aynuqa: Terras da comunidade para cultivo
de forma coletiva; Hanan: Parte de cima;
I.

C. Imilla: Menina, normalmente a palavra é


usada de forma pejorativa;
Chakana: Cruz andina proveniente de
Tiwanaku; J.

Ch’alla: Prática Aymara de respeito à Jallalla: Forma de representar vitórias,


Pachamama, a ch’alla consiste em oferecer pode ser traduzido como “Viva!”;
parte do que o sujeito está tomando para a

1
Evidencio que este Glossário foi construído considerando todas as limitações epistemológicas no exercício da
tradução.
20

Jilata: Irmão; para a cabeça, é sustentada pelos ombros e


cobre parte considerável do corpo;
K.
Q.
Katari: Serpente; Pode fazer referência a
um personagem histórico da luta Aymara, Q’amiris: Pessoa com melhor condição
Tupak Katari; econômica entre os aymaras, com
comodidades, pessoa que vive bem;
Kollas: Denominação dos sujeitos
pertencentes ao Kollasuyu; Q’aras: Palavra aymara que significa vazio
ou pelado, usado geralmente para referir-se
Kollasuyu: Uma das quatro partes do
ao colonizador;
Tawantinsuyu que está localizada no que
hoje conhecemos como Bolívia; Q’epis: Tecido que envolve produtos com a
finalidade de mantê-los aquecidos;
Kullaka: Irmã;
S.
L.
Soroche: Mal de altura; Normalmente
Llanqha: Pode ser traduzido como
sentido por pessoas que não estão
demônio, no entanto a epistemologia
acostumadas às terras altas, seus sintomas
aymara não é construída por polaridades
são náuseas e dores de cabeça
entre bem e mal;
acompanhadas de falta de ar;
Lip’ichi: Coro de ovelha utilizado para
T.
sentar no chão;
T’ant’awawa: Pão em formato de pessoas
Llokalla: Menino; Assim como imilla,
feito como oferenda na festividade de Todos
llokalla é utilizado de forma pejorativa,
los Santos;
como pessoa sem responsabilidade;
Tawantinsuyu: Conhecido como “Império
M.
Inca”, em quéchua significa “quatro partes
Mallku: Condor, também usado para se do mundo”;
referir às autoridades aymaras dos Ayllus;
Thaki: Caminho; Sendeiro;
P.
Tiwanaku: Civilização pré-colombiana que
Pachakuti: Revolta; Renovação e se localizava às margens do lago Titicaca;
Transformação; Pacha significa terra e Kuti
Tullmas: Fios de lã trançados nos cabelos
significa retorno;
das mulheres cholas;
Pachamama: Mãe terra, divindade muito
U.
presente nos rituais aymaras;
Urin: Parte de baixo;
Pijchar: Exercício de mastigar a folha da
coca, conformando uma bola de folhas na W.
bochecha;
Wak’a: Lugar sagrado andino, em geral
Pollera: Saia com diversas camadas localizado em montanhas.
utilizada por mulheres aymaras e quechuas;
Warmi: Mulher;
Poncho: Vestimenta tradicional kolla de
Whipala: Bandeira multi quadriculada da
tecido comprido com abertura no centro
nação Aymara;
21

Y.
Yatiri: Sábido Aymara, xamã;
22

INTRODUÇÃO

A investigação que apresento nesta dissertação tem como propósito compreender a


categoria ch’ixi proveniente da epistemologia Aymara2 boliviana, utilizada nos últimos
trabalhos da intelectual boliviana Silvia Rivera Cusicanqui. Esta categoria é pensada pela autora
como um processo de mestiçagem e inserida na pesquisa em diálogos com demais intelectuais
do tema, especialmente dos movimentos sociais e intelectuais aymaras como o indianismo,
katarismo, indianismo-katarismo e indianismo-tupakarista3. Escolhi os autores/militantes no
processo de trabalho de campo, período em que me envolvi em espaços de discussão de
identidade, história e descolonização aymaras. Tais autores (alguns já com um processo de
militância katarista junto a Silvia Rivera) criticam a categoria que proponho estudar a partir de
outras leituras da mestiçagem, das identidades, das estratégias econômicas e outras
características da população Aymara.

Deste modo, o ch’ixi é a proposta de uma mestiçagem descolonizadora que dialoga com
a epistemologia indígena (em especial a Aymara, que é a língua que dá nome à proposta),
segundo Silvia Rivera, é um exercício de evidenciar o lado indígena que carregamos, em crítica
à construção de uma mestiçagem colonial que pressupõe a superação dos elementos indígenas
do ser mestiço. Em Aymara ch’ixi significa a cor cinza que é manchada por muitos pontos, uma
cor que à distância pode parecer homogênea, mas que ao aproximar-nos podemos perceber que
em sua constituição existem milhares de pontos negros e brancos, nesta lógica, para a autora a
mestiçagem boliviana pode ser vista como fusão à distância, mas se olhamos mais de perto
podemos perceber os pontos (brancos e indígenas) que constituem conflituosamente esta
identidade4.

2
Como proposto pelo meu interlocutor Roger Adan Chambi, utilizo Aymara com maiúscula quando aparecer no
singular, bem como utilizo com a primeira letra minúscula quando aparecer no plural, isso por tratar-se de uma
nação, prática comum entre os integrantes dos movimentos intelectuais e políticos que analiso.
3
Tais movimentos serão analisados detidamente no primeiro capítulo, no entanto, de maneira sucinta, o indianismo
é o movimento tomado como mais radical que aparece nos anos 1960 e toma visibilidade com as obras de Fausto
Reinaga, seu sujeito político é o índio. Já o katarismo é um movimento mais ligado às estruturas estatais, critica
as propostas revolucionárias do indianismo. Existem dois katarismos determinantes nos anos 1980, o primeiro é o
de Genaro Flores e Victor Hugo Cárdenas, mais vinculado ao movimento camponês, e o segundo é o de Fernando
Untoja, perspectiva mais ligada ao liberalismo e que toma o Aymara urbano como foco. Indianismo-katarismo e
Indianismo-tupakatarista são duas subvertentes dos primeiros movimentos que serão desenvolvidas no primeiro
capítulo.
4
Nos primeiros trabalhos de Silvia Rivera onde aparece a categoria ch’ixi, esta não está definida enquanto
identidade, mas como movimento descolonizador. Mais adiante, nos últimos livros da autora, como apresentarei
nesta dissertação, a categoria se aloca em um discurso identitário entre um “ser” ch’ixi e um fazer ch’ixi, chegando
à proposta de um “mundo ch’ixi”.
23

Meu interesse pela categoria ch’ixi surgiu através de leituras das perspectivas pós-
coloniais e decoloniais, leituras dos processos históricos, das produções de conhecimentos, do
acesso aos espaços de enunciação, por meio da categoria “subalterno”5. Silvia Rivera, deste
modo, conceptualiza o ch’ixi com as mesmas preocupações de descolonização das perspectivas
pós-colonial e decolonial, com o objetivo de encontrar um “sujeito descolonizador”, o ch’ixi
assim é lido por Rivera em alguns trabalhos como sujeito, em outros como categoria e em
alguns momentos é categorizado como processo de mestiçagem, compreendendo que, segundo
a autora, não existe uma diferenciação na epistemologia Aymara para o que se pensa e o que se
faz (teoria e prática), sendo portanto uma justaposição de fatores.

Minha proposta, por um lado, consiste em apresentar sucintamente quem são os aymaras
com os quais travei contato em território boliviano, especialmente entre a província Murillo e
Omasuyus (ver Mapa I). Por outro lado, estruturo um diálogo com uma literatura mais
generalizada de antropólogos, historiadores, cientistas sociais e intelectuais que tratam sobre a
aymaridade, indigenistas e indianistas, categorias que também serão diferenciadas no primeiro
capítulo. Compreender a influência desta epistemologia na construção de teorias anticoloniais
é importante justamente porque grande parte dos referenciais dos movimentos de pensamento
críticos supracitados utilizam os processos históricos aymaras, como a revolta de Tupak Katari
em 1781, como exemplificações das potencialidades dos “subalternos”6. Tais utilizações nos
demonstram um rompimento com escalas locais, nacionais e globais, uma vez que processos
históricos e produções de conhecimento construídas em localidades podem ser
instrumentalizadas em propostas críticas do conhecimento científico, deixando em evidência a
concepção de Chakrabarty (2000) de “provincializar Europa”, e de Restrepo (2016) quando
enfatiza que todo conhecimento é localmente produzido, localizado, corporalizado, subjetivado
e construído a partir de processos históricos. Assim sendo, o conhecimento que se propõe como
universal é provincializado em benefício dos diversos conhecimentos subalternizados nos

5
Para os autores do pós-colonial, a ideia de subalterno tem relação com a construção de discursos sobre
determinados sujeitos com a finalidade de construir uma estrutura de dominação sobre eles, um exemplo são as
populações que foram colonizadas nos territórios hoje chamados América, África e Ásia. Segundo Spivak (2010),
os subalternos são “as camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos
mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social
dominante” (SPIVAK, 2010.p.12).
6
Ver MIGNOLO, Walter D. El pensamiento Decolonial: Desprendimiento y Apertura. Un manifiesto in
Grosfoguel; Castro-Gómes. “El Giro Decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del
capitalismo global”. Bogotá: Siglo Veintiuno del Hombre Editores, Instituto Pensar, 2007.
24

processos coloniais, um trabalho que segundo Hofbauer (2009) já vem sendo realizado pela
antropologia ainda que apresente um histórico de aliança com perspectivas colonizatórias7.

Minha pesquisa se volta para a produção de conhecimentos nos andes bolivianos e por
isso, percebe a etnografia como fundamental e indispensável. Tanto a convivência com a
família aymara Chambi e suas redes de relações no período de oito meses8 que estive em
território boliviano, quanto compor o curso de “Sociologia de la Imagem” ministrado por Silvia
Rivera Cusicanqui e o curso de “Etnografía/interlegalidad” ministrado pelo antropólogo
Aymara Pedro Pachaguaya Yujra, ambos no Tambo Colectivo Ch’ixi9, todas essas experiências
me fizeram compreender um pouco mais acerca dos mundos aymaras, da epistemologia
Aymara, das estratégias junto à Jurisdição Indígena do Estado Plurinacional da Bolívia e de
tantos outros aspectos desta população extremamente heterogênea, que pretendo explorar mais
detalhadamente no primeiro capítulo.

Por último, mas não menos importante, utilizo um exercício analítico provocado pela
banca de qualificação, o tempo-presente. A coetaneidade (FABIAN, 1983) me parece
indiscutível na construção de uma análise dialógica, para a epistemologia Aymara que tive
acesso, o tempo presente é caracterizado como akapacha, aqui-ahora, “el espacio tiempo en el
que la sociedad camina por su sienda” (RIVERA CUSICANQUI, 2015. p.211). Construir um
diálogo akapapacha é um movimento de perceber como o tempo pode ser reconstruído
enquanto categoria analítica, para o akapacha o tempo do agora só pode ser pensado em uma
relação de revivamento do passado, que é carregado nas costas do agora, e de uma constante
construção do futuro que não é enunciado, mas é agenciado. Assim, tomar os interlocutores,
militantes e os referenciais históricos e atuais como intelectuais igualmente posicionados na
análise, é um desafio a mais desta pesquisa.

7
HOFBAUER, Andreas. “Entre olhares antropológicos e Perspectivas dos Estudos Culturais e Pós-coloniais:
Consensos e Dissensos no trato das diferenças” – Niterói, n. 27, p. 99-130, 2. sem., 2009.
8
O trabalho de campo aconteceu em duas partes, a primeira de dezembro de 2017 até março de 2018, e a segunda
aconteceu de outubro de 2018 até a primeira semana de fevereiro de 2019.
9
Espaço auto-organizado criado por Silvia Rivera Cusicanqui.
25

MAPA I: Província de Omasuyos e sua posição com relação a La Paz. Disponível em:
https://www.educa.com.bo/geografia/provincia-omasuyos-mapa. Acesso em: 20/01/2019
26

***

Para compreender a relação entre a preocupação de alguns trabalhos sobre identidade


na Bolívia com a descolonização, é necessário caminhar pelas teorias críticas construídas nas
últimas décadas, essas são conhecidas como pós-colonial e decolonial. Farei aqui uma
apresentação sumarizada de alguns autores do pós-colonial e decolonial, a eleição que fiz de
tais autores se deu pela influência que tiveram no processo de estruturação de ambos grupos.

O pós-colonialismo é um conjunto de teorias que surgem em meados dos anos 1970,


tendo como seus principais autores asiáticos: Ranajit Guha, Homi Bhabha, Gayatri Spivak e
Edward Said, componentes do grupo chamado Subaltern Studies. Com o propósito de pensar
uma nova historiografia10, essa linha se volta principalmente à países do Oriente, a Índia para
Spivak, Bhabha e Guha, e a Palestina nos trabalhos de Edward Said.

O que os autores mais influentes dessa linha expõem é a exigência de um lugar para a
enunciação dos sujeitos que foram subalternizados e silenciados em processos de colonização.
Os autores do pós-colonialismo se atêm a alguns referenciais ocidentais como: Foucault,
Deleuze, Derrida, Gramsci e Marx. No entanto, buscam redimensionar criticamente as ideias
dessas matrizes teóricas, a fim de conceber novas narrativas sobre o Outro. A teoria pós-
colonial constrói análises que buscam abarcar especificidades relacionais de pontos
geográficos menos visibilizados pela “história Oficial”11.

Na interpretação de Igor Machado (2004), a teoria pós-colonial compreende o


subalterno enquanto produto de discursos de dominação, mas essa ideia do subalterno pode
ainda oferecer outras perspectivas históricas para além da hegemônica. De acordo com o
autor, o pensamento pós-colonial tem como ênfase a crítica da dicotomia sujeito-objeto
construída por teorias clássicas. Desta maneira, a construção de um sujeito pós-colonial depõe
a caracterização inerte do subalterno, passando a tomar posse das gramáticas de fala das quais
historicamente foi destituído.

10
A historiografia é aqui entendida por estes autores como uma nova escrita e memória da História
11
O conceito “história Oficial” é lido aqui atrelado ao que Stuart Hall (2010, p. 431): “La hegemonía es una forma
de poder basada en el liderazgo por un grupo en muchos campos de actividad al mismo tiempo, por lo que su
ascendencia demanda un consentimiento amplio y que parezca natural e inevitable.”. Deste modo, a história
Oficial enquanto hegemônica constrói um consenso ao redor da própria narrativa impedindo possíveis
questionamentos.
27

Segundo Thomas Bonnici (1998), o exercício de um pensamento pós-colonial vem ao


encontro de duas características: a ab-rogação e a apropriação. O autor entende por ab-rogação,
uma recusa à fixação das categorias culturais impostas pelo processo de colonização; enquanto
a apropriação é o exercício da ressemantização dessas categorias centrais que passam a
sustentar os símbolos da cultura periférica, como a apropriação da escrita.

Ina Kerner (2016), por sua vez, desenvolve uma análise do pós-colonial como teoria
crítica global, levando em consideração que a proposta dos autores pós-coloniais é a
transcendência do nacionalismo metodológico. Para isso, a autora apresenta quatro aspectos da
teoria como crítica global:

primero, se escapan del nacionalismo y eurocentrismo metodológicos;


segundo, son autorreflexivas y marcadas por experiencias periféricas y una
particular sensibilidad para las relaciones globales de poder que a menudo
conducen a críticas de esas mismas relaciones y sus efectos; tercero,
transcienden las fronteras de las disciplinas académicas y, por lo tanto, son
altamente transdisciplinarias; y, cuarto, pretenden la resistencia, la
transformación y el cambio, de manera que se vinculan con el debate y la
acción políticos dentro y afuera de la academia. (KERNER, 2016, p.166-
167).12

Na década de 1990, em diálogo com as teorias que estavam se estruturando na Ásia,


os autores Aníbal Quijano, sociólogo peruano da teoria da dependência; Immanuel
Warllerstein, estudioso do sistema-mundo; o sociólogo Ramon Grosfoguel e a teórica afro-
caribenha Sylvia Wynters se reuniram na Universidade de Nova Iorque (SUNY), para tratar
do processo histórico latino americano. Esses e outros teóricos, como Nelson Maldonado
Torres, constituíram o grupo Modernidad/Colonialidad. A proposta do grupo vem ao
encontro da noção de decolonialidad, a qual transcende a suposição de que o fim das
administrações coloniais signifique a constituição de uma descolonização a partir do
estabelecimento de Estados-nações nas periferias.
Segundo o grupo Modernidad/Colonialidad, a noção de decolonialidad trata-se do
reconhecimento da “transición del colonialismo moderno a la colonialidad global”

12
“primeiro, eles [os autores] escapam do nacionalismo metodológico e do eurocentrismo; segundo, eles são auto-
reflexivos e marcados por experiências periféricas e por uma sensibilidade particular às relações globais de poder
que frequentemente levam à críticas dessas mesmas relações e seus efeitos; terceiro, transcendem as fronteiras das
disciplinas acadêmicas e, portanto, são altamente transdisciplinares; e, quarto, eles buscam resistência,
transformação e mudança, de modo que estejam ligados ao debate político e à ação dentro e fora da academia.”.
A partir daqui todas as traduções que aparecem em notas são minhas.
28

(GROSFOGUEL, 2007, p.13)13. As novas instituições do capitalismo moderno, com a divisão


internacional do trabalho, perpetuam escalas de colonização, para esses autores também fazem
parte dessas instituições as organizações internacionais criadas no Pós Segunda Guerra
Mundial, como a ONU (Organização das Nações Unidas) e a ALCA (Área de Livre Comércio
das Américas) sendo elas representadas pelos Estados Unidos da América. Vinculado à
perspectiva desse grupo, Grosfoguel (2007) cunha a concepção de “sistema-mundo
europeu/euro norte-americano capitalista/patriarcal moderno/colonial”. Nelson Maldonado-
Torres (GROSFOGUEL, 2007, p.9), por sua vez, cunha o conceito “giro decolonial”, com o
qual qualifica a ideia da incorporação do conhecimento subalterno aos processos de produção
de conhecimentos.

Para Grosfoguel, a diferenciação das duas teorias, decolonial e pós-colonial, está nas
oposições binárias discurso/economia e sujeito/estrutura, respectivamente relacionadas ao
pós-colonial e ao decolonial. Essa polaridade seria uma herança do dualismo cartesiano
mente/corpo, que permeia as Ciências Humanas (Grosfoguel, 2007, p.15). Dessa oposição,
Grosfoguel exclui os autores Gayatri Spivak e Immanuel Wallerstein que, segundo ele,
conseguem lidar satisfatoriamente com a justaposição entre fatores culturais e econômicos.

Grosfoguel (2007) considera essa divisão dualista como vulgar, pois conteria, pelo lado
decolonial, um reducionismo econômico e, pelo pós-colonial, um reducionismo culturalista.
Segundo o autor, no decolonial a cultura está entrelaçada à economia-política, não sendo
puramente derivada desta. Para Grosfoguel (2007), por exemplo, a estrutura econômica não se
desvincula de uma base etno-racial de poder 14.

Mignolo (2007) considera que as teorias pós-coloniais têm em suas bases os autores
da teoria crítica (Foucault, Gramsci, Derrida) e as experiências das elites nas ex-colônias.
Neste sentido, para Mignolo (2007), a genealogia dos pós-coloniais é o pós-estruturalismo
francês, diferentemente do decolonial que tem genealogia no próprio período colonial, nos
autores cronistas e nos movimentos indígenas e criollos15. A partir, por exemplo, da

13
“transição do colonialismo moderno à colonialidade global” (GROSFOGUEL, 2007, p.13. tradução minha).
14
Grosfoguel concebia que a estrutura do capitalismo moderno se configurou em bases racistas, sua análise
vincula-se à de Wallerstein em “O capitalismo histórico” (1985), que considera a estruturação do racismo como
uma manutenção da força de trabalho precarizada e “uma ideologia auto-repressora, modelando e elimitando
expectativas” (WALLERSTEIN, 1985. p.67).
15
A categoria criollos nos países falantes do espanhol é direcionada aos descendentes de europeus que nasceram
em território das ex-colônias.
29

cosmologia andina, os decoloniais resgatam cronistas como Waman Poma de Ayala16, como
uma reconfiguração das bases culturais do pensamento, que deixa de ser unicamente greco-
romana e assume traços múltiplos, como os andinos. Assim sendo, a genealogia do
decolonial, segundo Mignolo, é pluriversal, ou seja, proveniente de muitas ontologias.
Enquanto a genealogia dos pós-coloniais está intimamente relacionada ao
neocolonialismo da Ásia e África do século XIX, os decoloniais têm sua genealogia no século
XVI na constituição das colônias ibéricas. Isso configura dois momentos históricos bastante
distintos: o Renascimento e o Iluminismo.

Considerando as características da colonialidade do poder – conceito cunhado por


Aníbal Quijano que conota relações de poder estruturadas em âmbitos além da instituição
política do colonialismo – Luciana Ballestrin (1990) intercala essa categoria com algumas
outras que a compõem, quais sejam: o controle da economia, da autoridade, da natureza e dos
recursos naturais, do gênero e da sexualidade, e o controle da subjetividade e do conhecimento.
Portanto, podemos perceber a colonialidade do poder como constitutiva de uma relação de
poder desigual em diversas vertentes.

A antropóloga Alison Spedding Pallet (2011)17, constrói uma análise acerca das teorias
anticoloniais em contextos bolivianos, suas influências, seus aportes e, inclusive, seus
equívocos. Spedding examina também, de que modo a antropologia desenvolve críticas à
prática antropológica, as quais dialogam com as preocupações descoloniais, uma extensão da
perspectiva discursiva à antropologia ocorre através da compilação Writing culture de Clifford
e Marcus (1985). Nas palavras da autora:
Subtitulado “La poética y la política de la etnografía”, esta colección juntó a
antropólogos con una crítica literaria y propuso que los textos etnográficos
no deberían ser leídos como descripciones transparentes, que permitían ver a
través de sus palabras para percibir directamente la realidad de los pueblos
y culturas que investigaban, sino como artefactos literarios que creaban el
efecto de realidad de la misma manera que una novela o una piza de teatro.
Lo que hace convincente el texto son los artificios de su redacción, que en el
fondo son formas retóricas aunque suelen disfrazarse con un estilo de
objetividad científica, que elimina la presencia de la o el investigador para
asumir una voz equivalente al narrador omnisciente de la novela
decimonónica clásica, que sabe perfectamente todos los pensamientos y

16
Waman Poma de Ayala, inca cronista, serviu de intérprete para alguns europeus na década de 1590, escreveu
a sua obra “Nueva Crónica y Buen Gobierno” como uma carta ao rei da Espanha no final do século XVI e começo
do século XVII.

17
Nos países espanofônicos o sobrenome que marca no momento das citações é o penúltimo, assim me apropriarei
deste padrão para citar os autores destes países e que escrevem nos mesmos.
30

motivaciones de sus personajes. (SPEDDING PALLET, 2011.p.30)18

A autora analisa também, algumas “etnografias experimentais” e suas tentativas de criar


espaços mais dialógicos, combatendo a posição do investigador como impessoal e objetiva.
Para Spedding, uma influência para a teoria pós-colonial foram as críticas às metanarrativas
estruturadas pelo movimento acadêmico pós-modernismo. Crítica à essa perspectiva “pós-
moderna” como distanciada de análises conjunturais, a antropóloga afirma que “Si hay uma
alternativa a la metanarrativa del capitalismo al parecer aún no se há ubicado” (SPEDDING
PALLET, 2011.p.34)19.

Os contextos atuais são determinantes para a elaboração de uma teoria da


descolonização para Spedding. A autora considera algumas práticas como mantenedoras da
condição colonial boliviana, um exemplo é a migração aos países industrializados para o
trabalho no setor de agrobusiness, construção civil e para o setor de serviços. Essa população
migrante que envia remessas aos familiares cria “redes de dependência económica fuera del
control de los Estados” (SPEDDING PALLET, 2011.p.92)20, multiplicando os efeitos das
crises financeiras e das recessões com origem nos países industrializados, “Vivir de las remesas,
lejos de ayudar a descolonizar, compromete más de cerca con el capitalismo de los
excolonizadores y con políticas que favorecen en primer lugar el crecimiento del norte
industrializado.” (SPEDDING PALLET, 2011, p.93)21.

Spedding caracteriza as falências das teorias anticoloniais como as supracitadas pela


permanência de uma repetitiva denúncia ao colonialismo, para ela, descolonizar não é só
colocar a colônia ao revés: “Para mí, ‘descolonizar’ representa la búsqueda de esquemas de
pensamiento que efectivamente desentronizan el proceso colonial y las categorías resultantes

18
“Com o subtítulo "A Poética e a Política da Etnografia", esta coletânea reuniu antropólogos com uma crítica
literária e propôs que os textos etnográficos não deveriam ser lidos como descrições transparentes, o que lhes
permitia ver através de suas palavras para perceber diretamente a realidade dos povos e culturas que investigaram,
mas como artefatos literários que criaram o efeito da realidade da mesma maneira que um romance ou uma peça
de teatro. O que torna o texto convincente são os artifícios de sua escrita, que são basicamente formas retóricas,
mas muitas vezes disfarçadas com um estilo de objetividade científica, que elimina a presença do pesquisador ou
assume uma voz equivalente ao narrador onisciente da novela clássica do século XIX, que conhece perfeitamente
todos os pensamentos e motivações de seus personagens.”
19
“Se existe uma alternativa à meta-narrativa do capitalismo, aparentemente ela ainda não foi localizada"
20
“redes de dependência econômica fora do controle dos Estados”
21
“Viver das remessas, longe de ajudar a descolonizar, compromete-os mais com o capitalismo dos ex-
colonizadores e com as políticas que favorecem em primeiro lugar o crescimento do norte industrializado”
31

de ello de su posición central.” (SPEDDING PALLET, 2011, p.104)22. A autora chega à


conclusão de que é necessário buscar ações de descolonização na atualidade, cita como exemplo
o trabalho de Rubén Chambi acerca da pirataria e do contrabando como descolonizadores e
anti-hegemônicos. Chambi (2011) sustenta que as cópias de livros originais vendidas em
barracas na feira de El Alto (La Paz, Bolívia) são formas de fazer com que a população tenha
acesso a produtos por um custo mais baixo, e que sem isso, seriam inacessíveis.

As questões abordadas pelas teorias pós-colonial e decolonial dão origem ao meu


interesse em realizar um trabalho na Bolívia andina. Assim, a preocupação deste trabalho se
direciona à relação entre descolonização e mestiçagem, estabelecida pela autora Silvia Rivera
Cusicanqui através da categoria ch’ixi e às análises críticas de autores dos movimentos políticos
e intelectuais aymaras. Também me debruço sobre algumas teorias da mestiçagem boliviana
que me auxiliam a pensar acerca da construção de narrativas identitárias e sua relação com a
busca por um sujeito político da descolonização. Posicionar esta discussão em um âmbito atual,
como propõe Spedding, é um dos desafios da etnografia estruturada em território andino durante
os oito meses que estive na Bolívia. Acredito que a discussão estruturada em torno às
identidades e sujeitos políticos, transcende a análise como crítica, em uma tentativa de buscar
estes esquemas de pensamento que deslocam a centralidade do colonialismo e as categorias
construídas por ele, como propõe Spedding.

***
Para a construção deste texto estive quatro meses no estado de La Paz, Bolívia, um
primeiro momento entre dezembro de 2017 e março de 2018 e outro período entre outubro de
2018 e fevereiro de 2019. Estive primeiramente em contato com os integrantes do Tambo
Colectivo Ch’ixi, em quermesses de apoio à Terra Indígena Isiboro-Secure (TIPNIS) e durante
o curso de Sociologia de la Imagen. Em um segundo momento, a partir de fevereiro, comecei
um envolvimento mais íntimo com a família Aymara Chambi, fui adotada por eles pela relação
que desenvolvo com um dos integrantes, Roger Chambi. Esta relação me possibilitou
experiências em festividades aymaras e ritos como: queimas de mesas para a Pachamama
(wajtas), velórios aymaras, bem como um envolvimento direto com a economia familiar na

22
“Para mim, ‘descolonizar’ representa a busca de esquemas de pensamento que efetivamente desentronizam o
processo colonial e as categorias resultantes dele, da sua posição central”
32

fabricação de churros nas madrugadas frias dos andes. Compreendo estes sujeitos como
possibilitadores desta pesquisa, uma vez que aprendi aspectos da epistemologia Aymara no
cotidiano, nos diálogos com a mãe, Dona Hilda Chambi, e percebendo a comunicação
estruturada entre os membros da família. Confesso, como investigadora, que os espaços abertos
nos movimentos políticos possibilitados pela minha relação com Roger Chambi, integrante do
Colectivo La Curva, foram extremamente importantes para compreender as críticas construídas
desde outro lado, que não somente o acadêmico, um exemplo disso foi a entrevista com
Constantino Lima, conhecido historicamente como Takir Mamani, um dos fundadores do
indianismo, contato que só tive acesso pela mediação de Roger Chambi.

É importante situar aqui que a minha relação com Roger Chambi é um vínculo afetivo
amoroso, o que auxiliou a minha entrada em alguns espaços não como antropóloga, mas como
parte de uma família. Compreendo que todos os sujeitos enunciadores que produzem
conhecimento em antropologia não o fazem a partir de supostas neutralidades, é sempre um
conhecimento corporalizado, subjetivado, generificado, que me parece a maior riqueza do fazer
antropológico. A contribuição de uma antropóloga negra, como eu, pode aparecer na construção
de sentidos que este corpo e esta subjetividade possibilitam em campo, estar vinculada
afetivamente com o meu interlocutor tornou-se um elemento determinante para produção desta
dissertação. Roger Chambi, além de ser um grande intelectual, político militante e advogado
especializado na Jurisdição Indígena, foi o maestro que me ajudou a ter sensibilidade e
transformar as minhas relações afetivas em possibilidades analíticas deste mundo tão
abigarrado, uma pequena contribuição entre tantas. Este processo de ser afetada (FRAVET-
SAADA, 2005) possibilitou com que eu pudesse sentir em carne própria os mundos que meus
interlocutores, minha família, produziram em relação com a minha presença.

O meu contato com bibliotecas localizadas em La Paz, também foi um elemento muito
importante para o desenvolvimento deste trabalho, visto que me possibilitou o acesso a livros
sobre temas de mestiçagem e descolonização que não estão disponíveis nas redes e tampouco
nas bibliotecas das universidades brasileiras. Um exemplo é a biblioteca geral da Universidad
Mayor de San Andrés (UMSA) e a da Facultad de Ciencias Sociales, no entanto, não foram
somente bibliotecas de instituições, mas também os acervos particulares de antropólogos como
Bernd Fisherman e de indianistas-kataristas como Iván Apaza Calle.

Outros elementos importantes para a consolidação do meu trabalho, foram as entrevistas


e diálogos com intelectuais bolivianos e aymaras, provocados ao longo da minha estadia em La
33

Paz, dentre elas, a entrevista com Luis Claros sobre seu livro “Traumas e ilusiones: el
‘mestizaje’ en el pensamiento boliviano contemporâneo” (2016), a entrevista com o indianista-
katarista Abraham Delgado Mansilla, com os integrantes do Colectivo La Curva e um diálogo
com o antropólogo colombiano Eduardo Restrepo. O diálogo com Silvia Rivera Cusicanqui foi
um momento muito importante para a minha compreensão de sua teoria, e a transcrição deste
está no subitem Anexos. Devido às limitações de uma dissertação em não dar conta da riqueza
de informações apresentadas, está disponível também, em anexo, um dos diálogos que tive a
oportunidade de gravar com a família Chambi, especificamente com Dona Hilda Chambi como
protagonista. Creio não ser capaz de suprir todos os valiosos ensinamentos de Dona Hilda nesta
dissertação, mas acredito que em algum dia, os interessados pelo tema possam limpar a poeira
da capa desta tese ao retirá-la das estantes da biblioteca, e que sejam para si importantes as
palavras dessa grande mulher, sua história lida por ela mesma
34

CAPÍTULO I. “KOLLÍVIAS: Territorialidades, identidades, estratégias e perspectivas


político-intelectuais aymaras”
“Ama sua, ama llulla, ama quella, ama llunk’u”
(Não seja ladrão, não seja mentiroso, não seja
preguiçoso, não seja servil)

Bolívia andina como cenário

Cheguei em território boliviano em dezembro de 2017, ingressei por terra em um ônibus


que saiu de São Paulo e chegou à fronteira da Bolívia, cidade de Puerto Suárez no Departamento
de Santa Cruz de la Sierra. Na mesma fronteira tive que entrar em uma fila por todo o dia a fim
de conseguir os documentos para a entrada legal no país, nesse primeiro contato com o território
vizinho foi onde percebi a relação desigual dos bolivianos que tentavam ingressar em território
brasileiro, senhoras de polleras23, jovens, velhos e crianças, pessoas com características
andinas, tanto pelas vestimentas e pelos awayos24 que levavam (usados como maletas para o
transporte das roupas e demais pertences para viagens), quanto pelo sotaque, em geral pela
utilização de diminutivos “mamita”, “señorita”, “papito”, “maestrito”, acompanhados pela
expressão hermética da maior parte dos andinos, que se assustavam com as reclamações que
bramiam os policiais brasileiros: “Atrás da linha amarela, boliviano. Parece que não entende.
Mais uma vez e não vou deixar você entrar no meu país!”. Ainda que estivesse ali tentando
regularizar meus trâmites, senti pela primeira vez em campo que sair de um país sub-imperial25
como o Brasil me colocava em uma relação de privilégio frente a todos aqueles que tentavam
ingressar no meu país de origem.

Sendo Santa Cruz de la Sierra o primeiro departamento que conheci no Estado


Plurinacional da Bolívia, fui percebendo através de perguntas dos próprios cruceños – como
são chamados os habitantes deste estado -, as distinções que se estruturavam entre os indígenas
das florestas e indígenas dos andes, terras baixas e terras altas. Nos mercados em que ia almoçar
ou tomar um café sempre me questionavam qual era meu destino e meu objetivo para me
deslocar do Brasil até este país, quando percebiam meu entusiasmo em subir os andes suas
tentativas de desanimar meus anseios eram ácidas: “Oiga, qué quieres hacer ahí?”26. Ainda

23
Saia rodada de camadas que usam algumas mulheres aymaras.
24
Tecido aymara usado para carregar crianças e produtos. O awayo é tecido por mulheres aymaras.
25
Segundo Ruy Mauro Marini (1997), esta categoría surge pós 1960-1970 explicando a formação de subcentros
econômicos e políticos de acumulação. Os países de posição subimperial, como o Brasil, passavam a se posicionar
entre o centro (Europa e EUA) e a periferia (os chamados países do terceiro mundo) de maneira intermediária.
26
“Escuta, o que você quer fazer aí?”
35

que a paisagem cruceña me remetesse a alguns cenários pantaneiros do Mato Grosso do Sul27,
o trânsito de sujeitos andinos rompia com as continuidades. Cholas28, homens com ponchos, os
awayos carregados de produtos ou com os bebês e suas bochechas vermelhas, seus olhos
rasgados, alguns adultos com abarcas29 levavam seus q’epis30 com fiambre31 que comiam
sentados em algum canto da rodoviária. Todas essas características me pareciam familiares pela
relação que estabeleci com a literatura andina antes de colocar meu corpo nesta pesquisa.

Através da investigação histórica que elaborei como Trabalho de Conclusão de Curso


na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Marília, acerca da
categoria Pachakuti da história andina (Quéchua e Aymara32), tive acesso a uma vasta literatura
sobre o processo histórico colonial, território do Alto Peru (posteriormente Bolívia) e Baixo
Peru (posteriormente Peru), além de compreender como se estruturam as divisões regionais
após o processo de Independência da Bolívia no ano 1825. Estas mesmas divisões foram
aprofundadas com o contexto das eleições de 2005, em que se candidatava à presidência do país
o atual presidente Evo Morales Ayma (antigo cocaleiro do Chapare Boliviano, Aymara,
sindicalista), por meio do Movimiento al Socialismo (MAS), nesta conjuntura e sob negativas
de movimentos políticos das terras baixas cruceñas são fortalecidas as diferenciações entre
cambas (como são chamados os cruceños) e kollas (denominação inca dos sujeitos das terras
altas, como explicarei mais adiante).

Evo Morales é eleito presidente da Bolívia nas eleições de 2005 com 54% dos votos,
ainda que com as rejeições dos movimentos autonomistas do Oriente boliviano compostos pelos
Estados de Tarija, Beni, Pando e Santa Cruz de la Sierra33, a chamada Media Luna (ver Mapa
II). Tais movimentos surgem no ímpeto das “Guerra del agua” y “Guerra del Gás” de 2000-
2003, que ocorriam nas terras altas, com uma das pautas para o referendum sobre o futuro das
reservas de gás na Bolívia34, as agendas políticas dos movimentos da Media Luna eram

27
O cenário me parecia familiar especialmente pela quantidade de latifúndios e monoculturas, como a própria cana
de açúcar, demonstrando de que modo a Reforma Agrária de 1953 afetou o território do país de maneira desigual.
28
Mulher Aymara ou Quechua de indumentária de pollera, manta e chapéu
29
Sapatos abertos de couro normalmente utilizados nas zonas rurais.
30
Tecido grosso que envolvem a comida para mantê-la quente.
31
Comida levada em q’epis, normalmente contém produtos andinos como batatas, ovos, chuños, milho e charque
de lhama.
32
Retornarei a esta categoria mais adiante.
33
A divisão geopolítica do Estado Plurinacional da Bolívia conta com Estados (Departamentos), Províncias
(regiões de um Estado que decidem assuntos locais, por exemplo Murillo e Omasuyos), Municípios (La Paz, Santa
Cruz de La Sierra, Cochabamba) e Cantones, Autonomias Indígenas Originario Campesinas (definem o território
ancestral).
34
Em 2000 na cidade de Cochabamba ocorreu a “Guerra da Água”, revolta popular contra a privatização do sistema
de gestão de águas. Em outubro de 2003, estoura uma revolta, especialmente na cidade de El Alto, contra a
36

contrárias ao que Willem Assies35


chama de “centralismo de La Paz e das
terras altas” (ASSIES, 2006, p.88).
Com seu centro localizado no
Departamento de Santa Cruz de la
Sierra, formavam-se os movimentos
Nación Camba e Unión Juvenil
Cruceñista. No ano de 2003, enquanto
os movimentos camponeses e
indígenas das terras altas se
mobilizavam para derrubar o governo
de Gonzálo Sánchez de Lozada (Goni),
representantes dos movimentos
Mapa II: 9 Departamentos da Bolívia delimitando o Oriente
(Media Luna) e o Ocidente (Terras altas) – (Mapa construído cruceños supracitados agrediam
por mim)
migrantes das terras altas. Nas
palavras de Assies “La nación quedó sorprendida frente a diversas imágenes donde los
adherentes de la Nación Camba y la Unión Juvenil agredían a una mujer indefensa que llevaba
puestos la pollera y el sombrero típico de los Andes”36 (ASSIES, 2006.p.88)37. Nesta
conjuntura, segundo Assies, os regionalismos começam a organizar-se em torno a padrões
étnicos (de maneira genérica camba e kolla).38

Bolívia é um país com maioria demográfica indígena, segundo o Censo de 2012


promovido pelo INE (Instituto Nacional de Estadística), a partir do critério de auto-declaração,
existem 1.837.105 habitantes que declaram pertencer à nação Quechua, 1.598.807 declarantes
da nação Aymara e 145.653 que declaram ser pertencentes à nação Chiquitana, essas são

exportação do gás natural produzido no Estado de Tarija, exportação que ocorreria pelo Chile segundo políticas
do então presidente Gonzálo Sánchez de Lozada. Ambas as revoltas foram construídas em sua maioria por aymaras
e quéchuas urbanos que reforçavam suas identidades políticas nos processos reivindicativos.
35
Assies compreende que os regionalismos que se fortalecem nesse período histórico (2000-2003), começam a
organizar-se ao redor de um padrão étnico (ASSIES, 2006, pp. 87-105)
36
"A nação se surpreendeu diante de diversas imagens onde os adeptos da Nação Camba e da União da Juventude
agrediram uma mulher indefesa que usava a saia e o chapéu típicos dos Andes"
37
“A nação ficou surpreendida frente à diversas imagens nas quais os adeptos da Nação Camba e da União Juvenil
agrediam uma mulher indefesa que levava postos a pollera e o chapéu típico dos Andes” (tradução minha).
38
Não desconsidero a existência de uma heterogeneidade de sujeitos nas terras baixas, inclusive as diversas
populações indígenas que habitam estes territórios (ayoreos, guaranis, mosetenes, yuracares, chiquitanos, dentre
outros).
37

colocadas como as nações39 com maior número de pertencentes autodeclarados. Tal censo de
2012 demonstra uma redução das pessoas que se autodeclaravam indígenas, de 62% a 41%
desde o censo de 2001. Uma das causas possíveis dessa redução se deve ao fato de que o atual
governo de Evo Morales, ao legitimar a existência de 36 povos indígenas na Bolívia,
territorializou o indígena em áreas especialmente rurais. Enquanto no período de 2001, com os
conflitos existentes em contextos urbanos como a cidade de El Alto, localizada em La Paz,
muitos Aymara-urbanos se autodeclaravam aymaras sem desassociar o ser indígena do contexto
urbano em que estavam inseridos. O Censo de 2012 é lido, deste modo, como uma mudança na
auto-afirmação de parte dos 58% do total de habitantes maiores de 15 anos que se declarava
não pertencer a nenhuma das 36 nações.

***

Subir os andes é uma mistura complexa de emoção e soroche40. Do cenário verde de


monocultura de cana de açúcar em Santa Cruz, passei pelos Vales do Chapare desenhados pelo
verde das árvores, cobertos pelas nuvens que cercam as montanhas cinzas. Da janela do ônibus
podia ver as cholas
cochabambinas com suas
polleras mais curtas e seus
chapéus mais largos. Os
mundos andinos iam se
desnudando aos meus olhos,
meu corpo sentia todos os
impactos de subir mais de
4.000 metros acima do nível
do mar. Quanto mais alto,
mais cinza é o cenário e
Foto 1: Chola cochabambina à esquerda, com chapéu largo e pollera curta. mais coloridas são as
À direita Doña Hilda Chambi, chola paceña, dançando com sua pollera
longa, sombrero borsalino e manta sobre os ombros. (Foto minha) pessoas. Awayos, ponchos,

39
A denominação “nação” às populações indígenas do território boliviano, está instituída na Constituição do
Estado Plurinacional da Bolívia como: “Es nación y pueblo indígena originario campesino toda la colectividad
humana que comparta identidad cultural, idioma, tradición histórica, instituciones, territorialidad y cosmovisión,
cuya existencia es anterior a la invasión colonial española.” (Artículo 30, parágrafo I). Desde 2009 a República
da Bolívia foi modificada para Estado Plurinacional da Bolívia, transformando as discussões acerca das populações
indígenas e instituindo o Pacto de Unidad que unificava a figura jurídica de representação como “indígena
originária campesina”.
40
Traduzido do Aymara como “mal de altura”, o soroche é um mal-estar provocado pela altitude dos andes.
38

q’epis, ch’uspas, cholets, ch’ullos, já não eram categorias isoladas de uma paisagem comum,
mas constituíam todo o cenário andino.

TABELA DE COMIDAS

Tabela I: Fotos fornecidas


pelo gastrônomo Jaime Joel
Chambi (Tabela construída
por mim)
39

Pouco antes de chegar a El Alto, em Patacamaya, o ônibus em que viajava estourou a


câmara de ar de um dos seus pneus, todos tivemos que descer e esperar cerca de duas horas até
que solucionassem o problema, o Illimani41 já apontava no horizonte. Quando descemos, meia
dúzia de cholas comerciantes cercaram o ônibus vendendo comidas típicas andinas, anticucho,
plato paceño, ají de panza (ver Tabela I), suas vozes soavam em tons mais baixos do que meus
ouvidos estavam acostumados, atendiam aos viajantes com os mesmos diminutivos que escutei
na fronteira com o Brasil. Através da utilização de categorias aymaras entremeadas com o
castelhano e da estética mesma destas senhoras, pude perceber distinções entre os sujeitos das
terras altas e os sujeitos das terras baixas. Elementos culturais compartilhados entre os aymaras
se mostravam necessariamente preponderantes, influíam na alimentação, nos modos de
vestimentas, nas linguagens e nas relações com as demais pessoas, especialmente sua
desconfiança.

El Alto é um palco diverso de expressões culturais andinas, ao ingressar na cidade mais


alta da Bolívia me deparei com feiras camponesas compostas por comerciantes de batatas,
quinua, abas, charque de llama e outros produtos locais, mas também com a Feira 16 de julho,
a maior feira boliviana, nela pode-se encontrar desde uma camisa de marca estrangeira, até
carros, peças de aviões, animais andinos e inclusive animais de climas totalmente distintos,
como tamanduás42. Nos muros das casas e espaços comerciais as pichações de “Evo Si” e
“Bolívia dijo NO” contrastam com as cores marcantes dos cholets, arquitetura aymara planejada
em espaços para realização de festas. Meu principal interlocutor Aymara e residente de El Alto,
Roger Adan Chambi Mayta, explicou-me que cholets foi uma tentativa dos comerciantes
aymaras de construir chalets ao estilo ocidental, no entanto, com os estereótipos territoriais de
El Alto como cidade racializada43 e composta majoritariamente por migrantes camponeses,

41
Segunda montanha mais alta da Bolívia localizada em La Paz e um dos achachilas (avôs) aymaras.
42
No livro organizado por Alexis Arguelo “No me jodas no te jodo: Crónicas escritas por y para El Alto” (2018),
há uma crônica de Óscar Martinez sobre a história real de um pinguim que foi encontrado na Feira 16 de julio, o
animal estava sendo vendido por um comerciante de animais como “ave exótica” e o preço variava segundo a
preferência do cliente, com ou sem casaco.
43
El Alto é considerada cidade racializada porque é constituída pela migração de aymaras, população que sofre
determinação racial pelo processo de colonização. O termo é utilizado por autores do indianismo como Carlos
Macusaya em seu livro “Desde el sujeto racializado. Consideraciones sobre el pensamento indianista de Fausto
Reinaga” (2014), segundo Macusaya em um diálogo que tivemos, ele retomou este termo de Reinaga,
“racializado” aqui significa o sujeito que passou por um processo de produção de sentidos determinando-o como
pertencente a uma determinada raça, neste caso, a raça índia, esse processo é apropriado pelos indianistas
positivando esta categoria em favor das próprias demandas, Macusaya transforma esta em uma categoria analítica
importante para os estudos das populações aymaras e quéchuas. Avtar Brah (2006) utiliza o termo “racialização”
compreendendo os processos historicamente específicos no qual grupos foram racializados por meio de
significantes distintos da “diferença”, assim para ela, “cada racismo tem sua história particular” (BRAH,
2006.p.444). A minha utilização da palavra “racializada” para definir a cidade de El Alto, tem relação com um
40

desde as zonas mais elitizadas de La Paz, construiu-se a ideia desdenhosa de cholets como o
chalet do cholo44, o que foi tomado pelos sujeitos alteños de maneira afirmativa, os cholets hoje
são as construções arquitetônicas andinas mais conhecidas e mais utilizadas para as diversas
festividades que permeiam os costumes aymaras. Uma característica estética dos cholets é a
utilização de símbolos tiawanacotas45, como a chakana - cruz andina encontrada nas ruínas de
Tiwanaku -, isso aliados a uma imensa quantidade de cores, pilares, lustres, luzes florescentes,
azulejos46 e imagens ligadas às propagandas e consumo.

Já na primeira semana entrei em contato com a família Aymara Chambi, os


interlocutores e possibilitadores mais diretos deste trabalho. Vivi com eles as festividades mais
importantes ocorridas no decorrer desses oito meses. Por eles, e especialmente pelo nosso
vínculo, fui convidada para espaços de festas familiares e das comunidades de que são
provenientes alguns de seus membros, Achacachi e Ch’ojñapata, ambas na província de
Omasuyus.

Foto II: Cholet, evento de formatura de um dos irmãos Chambi (Foto minha) 47

diálogo desenvolvido junto aos grupos indianistas e kataristas, e à minha compreensão de que o termo é a categoria
analítica que melhor define os processos aqui analisados.
44
Categoria de mestiçagem construída de forma ofensiva para significar os migrantes rurais racializados.
45
Tiwanaku é um sítio arqueológico de uma civilização andina localizado às margens do lago Titicaca.
46
Os atuais cholets chegam a representar desenhos dos Transformers e demais símbolos da “cultura ocidental”.
47
Não é banal a minha posição quando tirei esta foto, porque estava localizada no espaço determinado para a
família Chambi, como convidada. Do mesmo modo, as demais famílias tiveram seus espaços delimitados no andar
superior entre os pilares, como é possível ver na imagem.
41

A comida é uma característica importante para os aymaras com os quais estabeleci


relações durante a minha convivência, os habitantes das terras altas têm uma alimentação rica
em carboidratos, especialmente batatas (mais de 2.000 tipos distintos), quinua, abas, milhos e
oca (tubérculo andino). Em geral, durante as festas são servidos pratos com uma grande
quantidade de batatas, com formas de produção distintas, como é o caso do chuño, batata
desidratada pelo frio e utilizada milenarmente pelos andinos devido a particularidade de ser
extremamente durável.

Percebi desde as primeiras relações com a família Chambi que quanto mais comida te
oferecem melhor é a sua relação com quem oferece. Este foi um dos meus maiores desafios,
tanto a comida, quanto a bebida (em geral a cerveja se toma em um só gole), são meios de
demonstração de carinho, muitas vezes também podem representar um determinado status
social em casos, por exemplo, de comemorações como: casamentos, morenadas e formaturas.

Roger Chambi, em conversas que tivemos sobre a epistemologia Aymara, sempre


recordava as relações que tinha com o meio em que vivia. Quando pequeno sua mãe costumava
alertá-lo para tomar cuidado onde pisava porque poderia ser um espaço sagrado, compreendia
que era necessário cumprimentar os espaços, ele rememorava as palavras de Dona Hilda: “Para
que no te enfermes, para que nos vaya bien en el camino, vas a saludar siempre a la awicha.
‘Buenas tardes, abuelita’, vas a decirle!”48. Segundo Roger, em sua infância percebia cada
espaço como uma pessoa, tomando cuidado onde pisava, essas memórias demonstram a relação
de humanização que os aymaras criam com seu meio. Em um dos almoços que compartilhei
com a família, um filho não terminou de comer todas as batatas que estava no prato, consternada
Dona Hilda lhe disse: “La papa va llorar, no hay que botar la papa. Ya no va producir!”49,
essa concepção de que a batata pode chorar é um modo de ver os produtos orgânicos (orgânicos
na perspectiva ocidental) como seres que podem expressar sentimentos e, no caso das awichas,
é possível saudá-los. Uma ocasião em que compartilhei a cozinha com Dona Hilda, ela retirou
um pouco de água limpa de um dos baldes cheios com uma pequena bacia de alumínio, um
pouco de água caiu sobre os seus pés e ela se assustou, percebendo a situação sorri para ela,
Dona Hilda me olhou mais assustada e disse: “No hay que burlarse del água, ella puede

48
“Para que não adoeça, para que esteja bem no caminho, tem que saudar sempre a avó: ‘Boa tarde, avozinha’,
tem que dizer”
49
“A batata vai chorar, não tem que jogar fora a batata. Ela não vai produzir mais!”
42

castigar”50, fiquei sem reação, agarrei a bacia das mãos de Dona Hilda que tratava de secar os
pés e me desculpei, com ela e com a água.

Em muitas relações que estabeleci com a família Chambi, me invitaron51 muita comida
e muita bebida. A comida em geral continha uma imensidade de tipos de batatas, em especial o
ch’uño, que é o alimento mais importante da gastronomia Aymara. Quando me ofereciam
cerveja, havia o costume da ch’alla, que consiste em despejar uma pequena quantidade da
bebida no solo como oferenda à Pachamama52.

No dia 23 de dezembro de 2017 fui convidada para um casamento Aymara, registro em


meu caderno de campo algumas percepções53:

Chegamos no começo da noite e logo na entrada os noivos e os padrinhos nos


ofereciam cerveja, enquanto jogávamos “mistura” (um punhado de papeis
picados) em suas cabeças e éramos inundados pela “mistura” que carregava a
mãe da noiva. Esse foi o maior chollet que eu havia visto em todos esses
eventos que me convidaram, as cores eram ainda mais chamativas, haviam
diversos pilares e a banda que tocava cumbia54 estava no andar de cima.
Muitas pessoas dançavam no centro do espaço, enquanto outras apareciam
interrompendo-os com “invitacciones” de cerveja, as mesmas garrafas de
cerveja que recebiam dos noivos na entrada do evento. A cumbia é uma dança
muito agitada, nesse caso, não necessariamente havia uma técnica, uma base,
para dançar, eles saltavam e giravam. Ao meu redor haviam diversas cholitas,
com diversas cores nas suas polleras que se misturavam com as cores do
chollet, não era necessariamente uma combinação harmônica, cada Chola se
destacava em suas cores e em seus giros. Eu era surpreendida a cada minuto
com as cores de uma nova cholita que girava e me prendia a atenção, e com
as “invitacciones” de pessoas desconhecidas para que eu virasse um copo de
cerveja, não antes de ch’allar para a Pacha. Tentei muitas vezes, sem sucesso,
imitar os passos das mulheres que dançavam ao meu redor, elas pareciam
encarnar a música de uma maneira que não era possível reproduzir. Beber e
girar não era bem o que meu corpo estava acostumado a fazer, foi outro grande
desafio. Quando chegou a mãe dos Chambi, dona Hilda, com sua pollera tão
cheia de cores, se destacou na pista de dança, ela podia se comunicar com a
música como se já fossem amigas íntimas de uma vida, girando e movendo as
mãos, cantando e bebendo, percebi que ali era para ela um lugar familiar.
Como alguns convidados vinham de Achacachi – como o padrinho, irmão
mais velho dos Chambi -, podia-se ouvir pessoas falando em Aymara nas
mesas ao redor da nossa. Me senti cada vez menos integrada nesse mundo
bilíngue, especialmente porque falavam muito rápido, o que tornava

50
"Não tire sarro da água, ela pode te castigar”
51
Relativo a “convidar”, “oferecer”, palavra muito usada em situações de festividades.
52
Madre Tierra, divindade Aymara.
53
O começo da minha afetação com os Chambi, no sentido de me tornar parte da família, não está claro nas notas
de campo, tampouco nas minhas lembranças. Até hoje, a afetação acontece em alguns momentos e é questionada
em outros, as relações entre familiaridades e estranhamentos são linhas tênues, em momentos sou a yerna de
Achacachi e em outros sou la brasileira.
54
Música boliviana presente em todas as comemorações populares.
43

incompreensível inclusive o espanhol que eu tenho algum conhecimento.


(Caderno de campo, 26/12/2017).

Essa relação conflituosa com a língua, foi um grande obstáculo para o estabelecimento
de diálogos com os interlocutores/possibilitadores desta pesquisa, o que foi sendo amenizado
através da paciência e pedagogia de Dona Hilda Chambi nas muitas conversas que tivemos
quando cozinhávamos, enuqanto trabalhávamos na produção de churros - o que mantêm a
economia da família - e quando assistíamos às novelas colombianas e turcas55 nos fins de tarde.

Os andes, geralmente, é um cenário de muitas festas. Todas as semanas em alguma zona


da cidade de El Alto é possível escutar o som da banda de morenada, ver as cholas com suas
polleras em combinação de cores balançando suas matracas ao ritmo da música. A morenada é
uma das danças mais importantes da cultura andina, ocorre em aniversários de zonas, de
pueblos56, de escolas, em festas de associações sindicais ou de qualquer vínculo econômico
coletivo. Todo o cinza dos andes é transgredido pelas cores do seu povo.

CHUQUIAWU MARKA e EL ALTO: Migrações, Identidades, Economias

Em 1989, o diretor boliviano Jorge Sanjinés produzia um dos filmes mais


representativos da migração andina “La nación clandestina”, conta a história de Sebastián
Mamani, camponês da comunidade de Willkani que migra para um bairro periférico de La Paz,
torna-se militar e modifica seu nome para Sebastián Maisman, com o objetivo de deixar no
esquecimento seu sobrenome Aymara, depois de ser expulso de sua comunidade acusado de
não cumprir corretamente com as funções de Mallku, liderança comunal Aymara. A condição
de migrante durante o regime militar e as discriminações por sua condição étnica e sua cor,
fazem com que Sebastián retome memórias de sua infância e volte à comunidade, para dançar
o baile de la muerte, conhecido na Província de Omasuyus como Tata Danzante57, uma maneira
de reparar os danos provocados à sua comunidade como a traição em não respeitar as decisões

55
Pelo fato de não haver uma produção de telenovelas bolivianas, o consumo de novelas brasileiras, mexicanas,
colombianas e turcas é muito comum.
56
Pueblos aqui não tem necessariamente o mesmo significado que “povos” ou “populações”, uma vez que se trata
de uma territorialidade, não somente de identificação, mas de um espaço geográfico.
57
A dança retomada por Sanjinés acontecia na província de Omasuyus, com o objetivo de melhorar as colheitas,
um dos habitantes oferecia sua vida em benefício da comunidade. A roupa utilizada para o culto pode ser vista no
Museo de Etnografía y Folklore em La Paz, é certamente um dos elementos mais ostentosos da exposição de
máscaras.
44

coletivas. O longa-metragem é considerado uma das produções bolivianas mais importantes,


justamente por representar os migrantes que constituíram a cidade sede do governo, La Paz.

Rossana Barragán e Carmen Soliz (2008), analisam a formação da cidade de El Alto


como especificamente de migrantes das áreas rurais. El Alto é caracterizada como a cidade com
maior população indígena por critério de auto identificação, sendo o processo da “Guerra do
Gás” de 2003 grande responsável por esse panorama58, ainda que já em 2001, 74% da população
de El Alto se identificava como Aymara e 6% como Quéchua (ALBÓ, 2004). Segundo
Barragán, a língua não é o maior critério de auto identificação Aymara, apenas 54% da
população é caracterizada por idioma, enquanto 81% é caracterizada por auto identificação.

Com a formação da cidade de El Alto e Chuquiawu Marka – denominação Aymara para


a cidade de La Paz – pela migração, o idioma determinava os cargos em que cada categoria iria
trabalhar. Segundo Barragán e Solíz, os que falavam castelhano se dedicavam a trabalhos de
gerência, trabalhos formais, enquanto os bilingues se dedicavam ao comércio informal, oficinas
microempresariais e aos serviços domésticos (BARRAGÁN E SOLÍZ, 2008, p. 477).

Xavier Albó (1987) defende que esse sujeito Aymara que se constitui em espaços
urbanos pela migração, carrega os “ejes de permanencia”, ou seja, costumes que o vinculam
com os aymaras rurais, dentre eles, as festas, ritos tradicionais, feiras e mercados, e sobretudo
a medicina tradicional59. Pensando na heterogeneidade interna dos aymaras que o trabalho de
campo me possibilitou perceber, tampouco é possível pensar o Aymara urbano como um
apêndice do Aymara rural, existe uma ressemantização de muitas práticas no contexto urbano,
bem como a formação de novas relações econômicas, sociais e políticas, que caracterizam o
Aymara urbano. Segundo Antezana (1993), o que determina esse sujeito urbano são os

58
Mais informações em Mamani, Pablo Ramirez. “El rugir de la multitud: levantamiento de la ciudad Aymara de
El Alto y caída del gobierno de Sánchez de Lozada” (2004). Para o autor, os sucessos de outubro de 2003,
denominado Octubre Negro, mostraram o topo máximo da inconformidade da população racializada com o
sistema de governo neoliberal. O pedido era gás para todos os bolivianos e não para a exportação, além de uma
assembleia constituinte para reformular a estrutura do Estado, onde as maiorias, populações indígenas rurais e
urbanas não fossem mais sujeitos de exclusão. Octubre Negro foi, para o autor, um cenário onde a população
indígena mostrou para as elites dominantes da Bolívia que não era possível pensar o país sem a participação das
comunidades camponesas, originárias e dos indígenas que compunham a cidade. A efetividade mesma das
mobilizações deu-se pelas estratégias de bloqueios e marchas, nas quais, as Juntas Vecinales de El Alto
mobilizavam símbolos e recursos aymaras para articular e ativar um bloco hegemônico, dentre os símbolos
mobilizados estavam a whipala, a folha de coca e personagens históricos da memória coletiva como Tupac Katari
e Bartolina Sisa.
59
A categoria tradicional está em suspensão, não significando uma condição fixa, mas práticas comuns que
permanecem historicamente, ainda que por meio de transformações.
45

processos de apropriação, adaptação, readequação e reinvenção agenciados pelos sujeitos


migrantes.

Compreendendo o maior índice de crescimento demográfico atual de El Alto como


vegetativo, as migrações que ainda ocorrem do campo para a cidade são, em sua maioria, de
jovens. Barragán e Solíz analisam o processo de construção da identidade Aymara entre os
jovens alteños como um processo conflituoso, em que negam traços culturais das gerações mais
velhas como a Cumbia Chicha. No entanto, as festas das vilas e comunidades em que os
mesmos jovens vão dançar e os campeonatos de futebol que participam, são eventos que
determinam as pontes geracionais e culturais (BARRAGÁN e SOLÍZ, 2008, p.497-498). Esse
vínculo entre gerações é evidente entre os Chambi, uma vez que o filho mais velho de Doña
Hilda, um qamiri60, ao passo que nega sua identidade Aymara61, é o filho mais participativo
nos contextos de festas rurais e urbanas em que a família é “convidada” a dançar morenada62.
Um exemplo são as festas de Ch’ojñapata, pueblo (comunidade) rural natal de Doña Hilda,
com o qual ela mantém relações (inclusive de produção de alimentos), neste caso é importante
para os sujeitos que passaram pelo processo de migração, mostrar para os residentes rurais sua
estrutura familiar e suas redes de relações através da morenada. Assim, por ayni63 pela estadia
e compromisso pelos ensinamentos que me estavam fornecendo, dancei morenada pela primeira
vez junto à família.

As fotos anexadas representam a comemoração em Ch’ojñapata no ano de 2018. Na


primeira foto a família se posiciona em uma ordem de casais, da esquerda para a direita estão
desde tios maternos até irmãos, mais velhos e mais novos, a avó, mãe de Dona Hilda, aparece
em destaque pela diferença de cores, a matriarca ostenta uma manta marrom e um olhar de
seriedade comum às mulheres aymaras quando fotografadas, na foto distintas gerações da
família se apresentam para a comunidade. Os homens, em pé, seguram máscaras negras,
símbolos da chamada morenada, representação dos negros que vieram aos andes no processo
de colonização. Nas mãos das mulheres há matracas com formatos diversos, que vão de barris
até a imagem de Che Guevara, elementos da morenada que são movimentados, e fazem zumbir,
quando as mulheres giram suas polleras. Já a segunda foto representa as casas de adobe da

60
Denominativo em Aymara para referir-se às pessoas que vivem comodamente, tanto no âmbito material quanto
espiritual.
61
Esta negação não se trata, necessariamente, de uma negação discursiva, mas de um silêncio acerca da própria
identificação, o filho em questão evitava falar sobre o assunto.
62
Morenada é uma dança Aymara proveniente dos Yungas e da região andina de Taraco.
63
Tipo de intercâmbio como reciprocidade estrita, voltarei a falar sobre isso mais adiante.
46

comunidade, bem como suas criações de lhamas, paisagem capturada por mim enquanto
caminhava pelas montanhas.

FOTO 3. Família Chambi minutos antes de apresentar-nos para a comunidade de Ch’ojñapata (Foto minha)

FOTO 4. Comunidade Aymara de Ch’ojñapata


47

***

Segundo Barragán e Solíz, analisando a ocupação dos aymaras urbanos a partir de um


critério de gênero, a maior parte dos homens indígenas trabalham em indústrias (extrativistas,
construção e manufatureira) contando 57%, enquanto 45% das mulheres estão no setor de
serviços e comércio. “Además, 4 de cada 5 indígenas trabajan en el sector terciario de la
economía, lo que supone el 76%, siendo el comercio la rama más importante (26%).”
(BARRAGÁN e SOLÍZ, 2008, p.483)64.

As mulheres indígenas que trabalham no comércio de El Alto, em geral são mulheres


de polleras, mais conhecidas como cholas, uma categoria heterogênea que delimita diferenças
de classe, status e prestígios a partir de sua vestimenta, ou seja, existem polleras e mantas das
mais baratas às mais caras, aliás, outro traço de status é a utilização de dentes de ouro ou prata.
Existem, para Barragán e Solíz, dois tipos de cholas comerciantes, a chola mayorista, que
trabalha com produção em larga escala e fornece para as que vendem em bancas nas ruas, essas
últimas são consideradas cholas de mercado. Para Barragán e Solíz, as mayoristas, por manter
um contato direto com os espaços rurais, manejam menos o castelhano, enquanto que as cholas
de mercado – ou minoristas - por um forte contato com o público consumidor desenvolve
melhor o castelhano, neste sentido, Doña Hilda é caracterizada chola mayorista, tanto pela
forma de produção e circulação da sua mercadoria, quanto pelo vínculo com os espaços rurais.
Segundo Barragán e Solíz: “La chola representa, en síntesis, una permanente dicotomía y
confrontación que refleja su ubicación intermedia entre dos mundos en interrelación
constante.” (BARRAGÁN e SOLÍZ, 2008. p.501)65.

Alguns estudos sobre os aymaras refletem sobre duas categorias importantes,


solidariedade e individualismo. Autores como Xavier Albó, Félix Patzi, Fernando Untoja,
dentre outros, debruçaram-se sobre ambas categorias fornecendo aportes para a compreensão
das formas de expressão desta identidade política e heterogênea.

Félix Patzi (2009) analisa como as práticas econômicas aymaras podem auxiliar no
desenvolvimento de um sistema comunitário contrário às determinações individualistas do
capitalismo, em suas palavras: “el sistema indígena se erige como un modelo antagónico a la

64
"Além disso, 4 em cada 5 indígenas trabalham no setor terciário da economia, que é de 76%, sendo o comércio
o ramo mais importante (26%)".
65
“A chola representa, em síntese, uma permanente dicotomia e confrontação que reflete sua localização
intermediária entre dois mundos em constante inter-relação."
48

lógica capitalista”66 (Patzi, 2009.p.160). Pensando em duas características principais dos


aymaras, reciprocidade e redistribuição, Patzi retoma os trabalhos de Albó por meio dos quais
demonstra que os cargos de autoridade e até mesmo a proteção divina são turnos rotativos entre
humanos e achachilas67.

Ainda que Patzi defenda que o sistema indígena tem sua base comunal, o autor analisa
a heterogeneidade dos aymaras, incluindo os qamiris urbanos que, segundo ele,
refuncionalizaram as práticas recíprocas dos aymaras em benefício próprio:

Con todo esto se ha ido consolidando la explotación de aymara a aymara, que


evidentemente es una relación social ajena a la cultura indígena, pero es una
relación social contemporánea al interior de la sociedad indígena. Por estas
razones simples no podemos ver a los indígenas como una identidad unitaria
y única. (PATZI, 2009, p.162)68

Criticando uma análise romântica da migração Aymara para a cidade, enquanto


transferência de práticas rurais para espaços urbanos, Patzi também propõe compreender como
os aymaras urbanos refuncionalizaram a reciprocidade em organizações como as Juntas
Vecinales69. Nesta organização, apesar do método ser a eleição direta, mantem-se relações de
rotação e obrigação, uma articulação entre métodos liberais e comunitários, para Patzi, isso
evidencia a modernidade existente entre os indígenas.

Já Fernando Untoja, em trabalho mais recente (2017), defende que a categoria do


pensamento Aymara kipka, traduzida como próprio ou propriedade, é o que determina a
rivalidade entre os sujeitos. Esta categoria produz a diferenciação entre os sujeitos que vivem
em uma mesma comunidade. Para Untoja, kipka é pensar contra a comunidade, mas é
justamente a rivalidade construída pela ideia de próprio que estrutura a comunidade, superando
os possíveis conflitos na sociedade, como um motor de apropriação e produção.

66
"O sistema indígena se ergue como um modelo antagônico à lógica capitalista”
67
Espaços sagrados que em castelhano pode ser traduzido como “abuelos”. É importante sublinhar que para os
Aymaras os espaços também são sujeitos, como evidenciado anteriormente em um dos diálogos com Roger
Chambi, sendo assim as denominações em aymara de palavras que significam avôs, avós e pais para montanhas e
demais espaços é uma constante.
68
“Com tudo isso se consolidou a exploração de aymara à aymara, que obviamente é uma relação social alheia à
cultura indígena, mas é uma relação social contemporânea dentro da sociedade indígena. Por essas simples razões,
não podemos ver os povos indígenas como uma identidade única e unitária.”
69
Juntas Vecinales são organizações de vizinhos de uma determinada zona ou vila.
49

Albó demonstra esta contradição da epistemologia Aymara em seu livro “Desafíos de


la solidaridad aymara” (1983)70, uma análise detalhada de características recíprocas como a
faena, trabalho rural feito em conjunto em território coletivo da comunidade, a ayuqa, terras da
comunidade destinadas ao cultivo em forma rotativa (ALBÓ, 1983, p.29), o arku, rotatividade
no financiamento de festas em datas comemorativas para a comunidade e o ayni, tipo de
intercâmbio como reciprocidade estrita, ou seja, quando um indivíduo que trabalha na plantação
de uma família necessite algum apoio, a família para quem trabalhou devolverá a ajuda na
mesma medida. O ayni nas cidades é utilizado em momentos de festas como casamentos, evento
no qual, a pessoa que compra uma quantidade de cerveja ou um presente de alta qualidade, será
recompensada em alguma festividade própria.

Sobre todas as características solidárias dos aymaras (especialmente os que vivem em


áreas rurais), Albó evidencia traços individualistas associados a práticas de reciprocidade:

A veces el egoísmo y la desconfianza se manifiestan con mayor viveza


precisamente en las mismas ocasiones de comunitarismo señaladas hasta
aquí. No es quizás pura casualidad el que la misma raíz ayni, que designa la
forma más conocida de ayuda mútua, se usa también para formar un verbo
que significa “discutir”. (ALBÓ, 1983, p.39)71

Para Xavier Albó, deste modo, é a própria desconfiança que gera o comunitarismo, sendo uma
justaposição sincronizada de individualismos, o que pode estabelecer alguns diálogos com a
perspectiva de Untoja.

Outro livro que nos dá luz às questões acerca da economia Aymara é “KAWSACHUN
COCA: Economía campesina cocalera en los Yungas y el Chapare” (2005) de Alison Spedding
Pallet. A autora estrutura um rechaço às metanarrativas neoclássicas da economia política que
analisam a produção e rentabilidade da terra, apresentando como é tecida a racionalidade
econômica dos aymaras camponeses produtores de coca dos Yungas e Chapare boliviano.
Spedding mostra como a produção nestes espaços tem o ayni como base, afastando-se das
perspectivas de “força de trabalho” como parte de uma medição concreta da categoria valor. O
objetivo principal do trabalho desses produtores é a manutenção da família, segundo a autora

70
Os manuscritos deste livro desapareceram durante o golpe ditatorial de García Meza (1980-1981) e só foram
publicados três anos depois.
71
Às vezes o egoísmo e a desconfiança se manifestam mais vividamente precisamente nas mesmas ocasiões de
comunitarismo observadas até agora. Talvez não seja pura chance que a mesma raiz ayni, que designa a forma
mais conhecida de ajuda mútua, também seja usada para formar um verbo que significa "discutir".
50

um dos exemplos históricos utilizados, é que ainda em processos de depressão do preço da coca
(como nos anos 80), não deixaram de produzi-la e não modificaram para plantações mais
rentáveis, uma vez que o Estado não intervinha no desenvolvimento de políticas como a compra
de excedentes, em épocas de depressão a coca lhes parecia uma opção mais rentável a largo
prazo. Neste sentido, para Spedding a relação dos aymaras com a produção da folha de coca
não pode ser analisada de maneira romântica, mas compreendendo a entrada mesma destes
sujeitos no Mercado.

Contextualização dos aymaras em território boliviano

No prólogo de Franklin Pease, ao livro “Nueva Crónica y Buen Gobierno” escrito pelo
cronista Waman Poma de Ayala (1980 [1615]), há uma explicação didática sobre a repartição
do Tawantinsuyu - conhecido como Império Inca, que em Quéchua e Aymara significa Cuatro
cuartos del Mundo – no Diagrama em anexo pode-se perceber as quatro partes Chinchasuyu ao
norte, Collasuyu ao Sul, Antisuyu à leste e Constisuyu à oeste. Collasuyu representa o território
andino ao que depois denominou-se Bolívia, por esse motivo sua população é conhecida como
Kollas72. As partes do Tawantinsuyu estavam divididas entre hanan e urin, acima e abaixo, não
só o território geral, mas também os próprios suyus eram divididos entre partes hanan e urin,
segundo Isabel Yaya (2013), as partes de cima possuíam funções mais prestigiosas do que as
debaixo. A determinação territorial também tinha relação com processos distintos de
administração política do Tawantinsuyu, as partes de cima fazem relação aos incas que
expandiram o território por meio de conquistas, como o conhecido Inca Yupanqui, Pachacuti.
Por outro lado, a parte urin tem relação com os primeiros incas, com menores políticas
expansionistas: Manco Capac, Sinchi Roca e Lluqui Yupanqui.

72
A utilização de algumas letras faz parte da castellhnização de palavras em Aymara, como a letra “c” em
Kollasuyu.
51

Figura 1: (PEASE, 1980, p.XXXI)

Em um dos diálogos que estabeleci com Roger Chambi, discutíamos se a nomenclatura


“Bolívia” representava a população Aymara, segundo ele, esse seria um termo muito geral para
referir-se à população Quéchua e Aymara, seria necessário construir um termo mais justo para
o mundo kolla, assim surgiu Kollívias no plural, considerando a heterogeneidade dos aymaras
e quéchuas. Mas para compreender as especificidades dos aymaras em território boliviano é
necessário apresentar alguns momentos históricos que posteriormente serão instrumentalizados
pelos movimentos políticos e intelectuais aymaras, inclusive na própria teoria de Silvia Rivera
Cusicanqui com as propostas de Memória larga y memória corta.
52

Retomando uma suposta história boliviana em perspectiva Aymara, podemos evidenciar


três momentos históricos importantes, o Cerco de Tupak Katari e Bartolina Sisa em 1781,
Zárate Willka e seu levantamento em 1899 e Laureano Machaca com sua proposta de um
Governo Índio em 1956. Esses eventos retomados pela memória coletiva estão atravessados por
demais processos históricos importantes para a constituição do mundo andino e da Bolívia
como República, posteriormente Estado Plurinacional, como a Guerra del Chaco (1932-1935)73
e a Revolução de 195274.

Uma das revoltas mais importantes vigente no imaginário dos movimentos políticos
aymaras é a Revolta de Tupak Katari e Bartolina Sisa em 1781, especialmente os dois cercos à
cidade de La Paz. Ambos ficaram conhecidos por lutar contra o Império Espanhol em Alto Perú
(posteriormente Bolívia), criticando os tributos indígenas e as formas de trabalho aplicadas aos
indígenas, a mit’a e encomienda. Julián Apaza, nascido na localidade de Ayoayo, adotou o nome
de representantes de duas grandes rebeliões que ocorriam na colônia no mesmo período, Tupac
Amaru II em Cusco75 e Tomás Katari em Chayanta76. Acompanhado por sua esposa Aymara
Bartolina Sisa e por seu exército, estruturaram um primeiro cerco à cidade de La Paz em 13 de
março de 1781, com duração de 109 dias, os objetivos do cerco eram impedir o abastecimento
à cidade de La Paz pressionando um dos territórios mais importantes de Alto Perú em favor de
suas demandas, para isso duas tropas se posicionaram em dois lugares estratégicos: a Ceja de
El Alto e Pampajasi. Com a entrada do exército de Ignacio Flores77, o exército de Tupak Katari
recuou e se dirigiu à tomada da comunidade de Sorata.

Com a realização desta tomada voltam a cercar La Paz, restituindo os acampamentos de


Ceja e Pampajasi. Neste segundo cerco o exército de Tupak Katari constrói uma represa sobre
o rio choqueyapu, para inundar a cidade, que naquele momento era composta por cerca de
20.000 mestiços e espanhóis, no entanto, o rio cede antes do planejado e a esposa de Tupak
Katari torna-se prisioneira. Tupak Katari é capturado depois de sofrer traição de um dos
integrantes de seu exército, sendo desmembrado em Peñas (El Alto) no dia 15 de novembro de

73
Conflito entre Bolívia e Paraguai pelo território do Chaco.
74
Desenvolvida mais adiante.
75
Tupac Amaru II ou José Gabriel Condorcanqui foi um líder quéchua que construiu uma rebelião em 1781 contra
a exploração indígena pela colônia do Peru.
76
Tomás Katari foi um quéchua que liderou uma rebelião contra os tributos indígenas em 1781 na província de
Chayanta, Potosí.
77
Liderança das tropas que representavam a Audiência de Charkas.
53

1781, suas últimas palavras são rememoradas nos movimentos aymaras atuais como promessa
de redenção: “A mi solo me matará, pero mañana volveré y seré millones” 78.

Segundo Sinclair Thomson (2010), Tupak Katari era diferenciado de Tupac Amaru nos
estudos históricos por parecer mais radical, era também analfabeto e não falava castelhano,
tampouco se envolvia nos círculos das elites mestiças e espanholas como Condorcanqui (Tupac
Amaru). Nas palavras do autor:

Quizás como una forma de evitar la incómoda conclusión de que 1781 fue
escenario de una guerra de razas, diversos autores la han considerado en
última instancia como una cuestión de ‘el campo contra la ciudad’. No debe
sorprendernos que estos trabajos no exploren profundamente las perspectivas
indígenas, ni nos brinden una mejor comprensión de la figura de Tupaj
Katari. El líder aymara es evocado en ellos en forma más bien retórica o
descolorida, mayormente como un caudillo audaz y astuto. En conjunto, esta
literatura nos ofrece una imagen poderosa de la irresuelta confrontación y el
trauma social vigentes, aunque no explota sus raíces ni busca explicarlas.
(THOMSON, 2010, p.252)79

Thomson enfoca sua análise no caminho incômodo, como propõe, de conceber um


cenário de guerra de raças, essa mesma guerra vai tomar proporção em outros personagens
históricos aymaras.

Zárate Willka, em 1899, se torna uma grande representação histórica com proposta de
liberação dos aymaras, estrutura um levante militar Aymara no Altiplano e nos valles. Ao
perceber a potência do poderio militar de Willka, o federalista José Manuel Pando lhe propõe
a devolução das terras pertencentes aos aymaras se este se integrasse ao exército Federalista
contra o governo conservador80. No livro “KOLLASUYO: História indígena de la República de
Bolívia”, Manuel Sarkisyanz desnuda os objetivos dessa proposta de aliança:

Correspondiendo a la expansión de la guerra civil, la guerra indígena se


expandió también, y con ella la desmoralización de las tropas del Gobierno,
y así también el temor de la población citadina a los rebeldes. Pando recibió
el 16 de marzo de 1899 un concejo confidencial: “Hay que utilizar a las

78
“Só me matará, mas amanhã eu voltarei e serei milhões”
79
“Talvez, como forma de evitar a desconfortável conclusão de que o ano de 1781 foi palco de uma guerra de
raças, vários autores o consideraram como uma questão de "campo contra a cidade". Não deveria nos surpreender
que essas obras não explorem profundamente as perspectivas indígenas, nem nos dêem uma melhor compreensão
da figura de Tupaj Katari. O líder aymara é evocado neles de uma maneira bastante retórica ou descolorida,
principalmente como um líder ousado e astuto. Em geral, essa literatura nos oferece uma imagem poderosa do
atual confronto não resolvido e do trauma social, embora não explore suas raízes ou procure explicá-las.”
80
Em 1898, o exército federalista de Pando enfrentava o governo conservador da República, representado pelo
presidente Severo Fernández Alonso que governava a Bolívia por 20 anos, os conservadores mantinham a capital
na cidade de Sucre, enquanto os federalistas queriam transferir à La Paz.
54

bandas de indios para todo; luego le mostraré el camino para liberarse de


ellos” (SARKISYANZ, 2013, p.102)81

Outra característica evidenciada pelo autor, é que parte substancial dos indígenas que
compunham o exército eram privados de armamentos82, tendo que lançar-se de maneira suicida
em “avalanchas humanas” contra o exército inimigo (SARKINSYANZ, 2013, p.102), o
número de perdas provenientes do exército indígena foi imensurável.

O exército liberal de Pando, segundo Sarkinsyanz, maltratou índios e integrantes


aymaras do exército de Willka em Mohoza, tentando retirar as armas que esses haviam
apreendido do exército inimigo, matando o gado dos indígenas sem lhes ressarcir, entre outras
crueldades, transformando assim, a guerra civil em uma guerra racial. As tropas aymaras aliadas
a Willka se rebelaram e em seu nome atacaram as tropas liberais, obrigando-os a vestir calças
indígenas como demonstração de igualdade e, na noite de 1 a 2 de março de 1899, foram
arrastados por aymaras 120 soldados para fora da Igreja de Mohoza e assassinados
(SARKISYANZ, 2013, p.103). Esse acontecimento é conhecido como “La masacre de
Mohoza”, Roger Chambi relata em uma conversa pessoal, que algumas narrativas históricas
contam o assassinato dos soldados aliado a um suposto canibalismo, que os aymaras comeram
partes dos corpos dos soldados brancos após assassiná-los.

Com a vitória das tropas de Pando e sua ascensão como presidente, tem início o
desenvolvimento de rebeliões de aymaras contra latifundiários, exigindo a devolução de suas
terras. Cria-se uma ambivalência em relação às promessas de Pando aos indígenas, em um dos
processos penais mais conhecidos da história boliviana, os aymaras responsáveis pelos
assassinatos no Processo de Mohoza são condenados, enquanto os não-indígenas responsáveis
por mortes aymaras e por saques das comunidades não são citados. Zárate Willka é absolvido
neste tribunal e vai ao encontro de Pando para cobrar as promessas da aliança. Nas palavras de
Sarkisyanz:

Tal vez Zárate, el Willka, después de haber caído preso nuevamente, fuera
abaleado por encargo de los gobernantes “en la fuga”, en un momento no
claro. Lo que sí se sabe a ciencia cierta, es que una parte de su tierra, en el

81
“Correspondendo à expansão da guerra civil, a guerra indígena também se expandiu, e com ela a desmoralização
das tropas do governo, e assim também o medo da população da cidade aos rebeldes. Pando recebeu em 16 de
março de 1899 um conselho confidencial: 'Devemos usar as bandas de índios para tudo; depois eu vou te mostrar
o caminho para se livrar deles '”
82
“Las armas de los aymaras consistían casi únicamente de hondas, mazas y lanzas, reforzadas acústicamente
por los pututus.” (SARKISYANS, 2013.p.102)
55

ayllu La Rivera, llegó precisamente a manos del comandante general Pando


vía venta. (SARKISYANZ, 2013, p.113)83

A imagem de Zárate Willka seria retomada pela memória dos aymaras em movimentos
posteriores tanto quanto a imagem traidora de Pando.

Em 1956, uma figura importante para a história Aymara aparece no cenário político,
Laureano Machaca. Proveniente de La Paz, Machaca se autoproclama presidente da república
Aymara. Segundo Sarkisyanz, Laureano Machaca foi secretário da Federação de Camponeses
na província Camacho, muitos dos indígenas desta província se concentraram em torno a essa
figura, que viria a gerar propostas de um retorno ao Tawantinsuyu. Após a Revolução Nacional
de 1952, muitos índigenas foram armados, esse armamento foi usado em favor do projeto de
república Aymara proclamado por Laureano Machaca, removendo dos seus postos as
autoridades locais. Suas tropas começaram então a ocupar outras comunidades com
expectativas de um retorno à estrutura incaica. Em 21 de outubro de 1956, Laureano Machaca
foi ferido de morte pela traição de aymaras leais ao governo, pertencentes ao povoado de
Escoma. Os últimos momentos de Laureano Machaca são rememorados em Sarkisyanz de
maneira poética:

Se cuenta que en sus últimos momentos suplicó a las deidades Pachamama y


Wiracocha que redujeran el estatus de los blancos al de los indios.
Supuestamente, aymaras hostiles ofrendaron al “presidente” Laureano
Machaca como sacrificio humano para alcanzar la liberación: su sangre se
habría esparcido hacia los cuatro puntos cardinales para fertilizar a la
Pachamama, mientras que su carne habría sido consumida. (SARKISYANZ,
2013, p.349)84

A categoria analítica “guerra de raças”, é o que tece relação entre os três momentos
históricos, Tupak Katari, Zárate Willka e Laureano Machaca estruturaram projetos de reação à
subalternização histórica sofrida pelos aymaras. Finalmente, a ânsia de modificação de status

83
“Talvez Zárate, o Willka, depois de ter caído prisioneiro novamente, foi baleado em nome dos governantes "em
fuga", em um momento pouco claro. O que se sabe ao certo é que uma parte de sua terra, no ayllu La Rivera,
chegou precisamente às mãos do Comandante General Pando via venda.”
84
“Dizem que em seus últimos momentos ele implorou às divindades Pachamama e Wiracocha que reduzissem o
status dos brancos ao dos índios. Supostamente, os aymaras hostis ofereceram o "presidente" Laureano Machaca
como um sacrifício humano para alcançar a libertação: seu sangue se estenderia aos quatro pontos cardeais para
fertilizar a Pachamama, enquanto sua carne teria sido consumida.”
56

entre brancos e índios demonstra um conflito racial atravessado por um orgullo herido Aymara,
como observa Roger Chambi.

Indianismo e katarismo

Os movimentos políticos e intelectuais aymaras têm uma relação muito importante com
alguns teóricos que acedem a espaços privilegiados e começam a questionar as estruturas
sociais. Um dos mais conhecidos é Fausto Reinaga, caracterizado por alguns militantes como
o fundador do movimento indianista. No entanto, existem rompimentos com a perspectiva de
Reinaga, e a construção de uma proposta katarista vai em direção à um sujeito distinto, como
propõe Ivan Apaza Calle85. De ambos movimentos surgiria a proposta de um “Nacionalismo
Aymara”, pensado de maneira teleológica por alguns integrantes desta linha, mas também
criticado por autores/militantes do indianismo. A importância de desenvolver acerca de tais
movimentos se dá pela influência que estes têm sobre muitos intelectuais da descolonização,
como Silvia Rivera Cusicanqui, que é elemento central na análise deste trabalho.

Fausto Reinaga Chavarría (1906-1994), deve ser lido a partir dos seus diferentes
momentos na teoria social, segundo Chambi y Gonçalves (2018), é necessário enfatizar seus
diversos avatares na sociedade boliviana, suas distintas fases. Reinaga é natural da comunidade
Aymara-quéchua de Huahuamikala, Potosí. Aproxima-se de leituras marxistas a partir de sua
formação em Direito na Universidad Mayor y Pontífice San Francisco Xavier de Chuquisaca.
Com o desenvolvimento de trabalhos junto à perspectiva marxista boliviana nos anos 1950,
Reinaga sofre uma frustração86 com as saídas políticas comunistas e dá início à suas análises
que vão impulsionar o movimento indianista. É na sede do governo em La Paz, que Reinaga
planteia suas ideias acerca da categoria “índio” como sujeito da liberação, além de considerar
a Bolívia uma nação fictícia, construída sobre “duas Bolívias”, uma Bolívia indígena e uma
Bolívia blanco-mestiza87 (CHAMBI; GONÇALVES, 2018.p.183).

Seus dois trabalhos mais importantes que enfatizam o projeto indianista são: “La
Revolución Índia” (1970) e “La Tesis Índia” (1971). Segundo Ayar Quispe (2011), a categoria

85
Militante do Colectivo La Curva del Diablo.
86
Dentre as frustrações de Reinaga está o afastamento que o movimento marxista cria em relação aos indígenas,
buscando seu “sujeito revolucionário” através da categoria “proletários”, categoria complexa em contexto
boliviano (REINAGA, 1971).
87
Essa elite é nomeada pelos indianistas como q’aras, palavra em Aymara que significa desnudo, pessoa que não
possui nada, ladrão. Foi a denominação dada aos espanhóis no processo de invasão colonial ao Tawantinsuyu.
57

índio é retomada por Reinaga a partir da relação intelectual que este estabelece com a peruana
Domitilia Quispe e sua máxima: “Si con el nombre de índio nos oprimieron con el nombre de
índio nos vamos a liberar”88 (QUISPE, 2011, p.18). A categoria “índio” é englobante, no
discurso reinaguista, aos oprimidos do sistema colonial. Outros autores, como Constantino
Lima e Luciano Tapia são, também, representantes da fundação do movimento indianista, junto
a Reinaga. No entanto, segundo Escarzaga (2016), a teoria de Reinaga está menos afundada na
amnésia social boliviana justamente pela materialização de suas ideias em forma de livros e
pela difusão de suas obras. O índio é, assim, um sujeito racializado que através do indianismo
busca sua liberação da opressão colonial. Por seu processo junto ao movimento marxista
boliviano, especialmente o MNR (Movimiento Nacionalista Revolucionário)89, Reinaga chega
à conclusão, de que nem a esquerda boliviana dá conta de suplantar as condições coloniais a
partir das quais os índios foram subalternizados.

Segundo Alvizuri (2009), o projeto proposto em “La Revolución Índia” de Reinaga


como “renovação nacional” e “renascimento índio”, está pautado na trilogia moral Aymara-
quéchua: “Ama sua, ama llulla, ama quella”90 (Não seja ladrão, não seja mentiroso, não seja
preguiçoso). Deste modo, Reinaga constrói uma autoafirmação índia através de seu sobrenome,
sua genealogia toma como referencial Tupak Katari (Julián Apaza), segundo Reinaga,
“Chavarría” é proveniente de modificações processuais de Katari. Fausto Reinaga reforça sua
genealogia índia no sentido de buscar um espaço de enunciação que seja convergente com a
teoria indianista que inaugura, o que demonstra um processo de construção de uma indianidade
como identidade política que o aproxime dos sujeitos de suas obras. Para fundamentar a
necessidade de ser índio, Reinaga enfatiza: “para saber lo que es el indio, hay que ser indio,
porque el que es sólo 'culturalmente' indio, sólo puede revelar lo indio. Pero quien es indio
de carne, corazón, cosmos y raza, no sólo 'revela' lo indio, ¡sino que rebela al
indio!"91(REINAGA, 1970, p. 455).

88
"Se com o nome de Índio nos oprimem com o nome de Índio vamos nos libertar”
89
No contexto da Revolução de 1952, o MNR modifica a categoria índio por camponês, essa foi uma tentativa,
segundo Reinaga, de modificar uma condição de racialização para uma condição de classe, invisibilizando os
processos coloniais sobre os índios. Em um diálogo com Roger Chambi, ele explica que os aymaras politizados
utilizam a categoria raça porque a categoria etnia foi acionada pelos discursos multiculturais dos anos 1990 como
categoria política (e não necessariamente analítica, como utiliza a antropologia), etnia no seu uso político denotava
grupos reduzidos e em extinção. A ideia de nação Aymara ganha força nos conflitos a partir dos anos 2000,
abarcando, segundo Roger Chambi, classe e raça, bem como as mudanças possíveis nos processos de migração.
90
Segundo Silvia Rivera Cusicanqui (1995), os aymaras fizeram uma modificação nesta trilogia moral
acrescentando Ama llunk’u, do aymara “não seja servo”.
91
"Para saber o que é o índio, você tem que ser índio, porque aquele que é apenas 'culturalmente' índio só pode
revelar o índio. Mas quem é índio de carne, coração, cosmos e raça, não apenas 'revela' o índio, mas também rebela
o índio! "
58

A crítica de Reinaga se volta ao mundo Ocidental, ele é rememorado entre os indianistas


através da frase “Hay que sacar del cérebro del índio a Cristo e a Marx!”92. Ainda que a
radicalidade apresentada pelos escritos de Reinaga possa parecer um fechamento dialógico, o
autor demonstrava um desejo pela crítica:

Yo también como Gorgias, cuando llegue el último instante, levantaré la


última copa de mi vida, copa burbujeante de vino inka; "líquido de sol
y luz cuajada", por aquél indio amauta que después de mi muerte, dé el
primer paso hacia adelante, por aquél indio que después de mi muerte,
me supere en conciencia, pensamiento, pasión, acción, para edificar
sobre los escombros de esta comunidad boliviana, una refulgente
sociedad del Tercer Mundo! (REINAGA, 1970, p.455)93

O indianismo é distinto do indigenismo no trabalho de Ayar Quispe (2011)94, para o


autor, a utilização da palavra indígena para denominar os sujeitos aymaras, quéchuas, guaranis
e outras populações índias da Bolívia, deu-se por meio de ONGs e de membros do Instituto
Indigenista Interamericano (III) desde 1940. A opção pelo uso de “indígena” pretendia uma
integração dos índios à “nação boliviana”, proposta que para a perspectiva indianista é
visivelmente colonial. Já o indianismo, para Quispe, visa a descolonização e tem como sujeito
o próprio “índio”, por ser construído um projeto de reestabelecimento do Qullasuyu (Kollasuyo)
através dos anseios deles.

O indianismo é relacionado à figura de Fausto Reinaga na maior parte dos trabalhos


acadêmicos que tratam do tema, mas como o objetivo desta dissertação é colocar em relação o
maior número de vozes, me aproximei de uma figura instigante, Constantino Lima. Chegando
aos seus 85 anos, tive a oportunidade de entrevistar Constantino Lima, ou como ficou conhecido
historicamente: Takir Mamani. Uma figura imponente, sentado em um sofá me encarava com
os olhos firmes enquanto relatava as nove vezes em que havia sido torturado, em governos
ditatoriais e “democráticos”. Foi responsável pela visibilidade do nome “Abya Ayala”,
pertencente ao povo Kuna para denominar o território americano, sustentando que seria um
termo menos colonial que significa “tierra en plena madurez”. Retomando a categoria índio,

92
"Precisamos tirar Cristo e Marx do cérebro do índio!"
93
“Eu também, como Górgias, quando o último momento chegar, vou levantar a última taça da minha vida, uma
taça borbulhante de vinho Inka; 'líquido de sol e luz coalhada', por aquele índio amauta que depois de minha morte,
dê o primeiro passo adiante, daquele índio que depois de minha morte, supere-me em consciência, pensamento,
paixão, ação, para construir sobre o entulho desta comunidade boliviana, uma refulgente sociedade do Terceiro
Mundo”
94
Ayar Quispe, filho de Felipe Quispe Huanca, foi assassinado no ano de 2015, seu pai, militante do Ejército
Guerrillero Tupak Katari, denuncia o Estado Boliviano como responsável pelo assassinato de Ayar.
59

Constantino me explica que esta tem uma função especificamente contestatária, em suas (fortes)
palavras: “Índio significa mierda, ya... entonces vamos a ser índios, vamos a agarrar la mierda
y al blanco lo vamos a hechar!”95. A ideia de contestatária, é assim, uma apropriação da
categoria à qual foram encerrados os sujeitos aymaras e quéchuas, em benefício dos interesses
destes mesmos sujeitos, o “hechar mierda” tem uma conotação de ressemantizar os símbolos
coloniais e tomá-los como elementos de luta anticolonial.

Constantino Lima foi o primeiro deputado Aymara da Bolívia, eleito em 29 de junho de


1980, com mais de 17.000 votos. Ele conta, que em um Conselho de Genebra, criticou a ação
da Igreja Católica na Bolívia e a posição do papa João Paulo II. Fundou o Partido Autóctone
Nacional (PAN) em crítica ao Partido Indio de Bolívia (PIB) criado por Fausto Reinaga,
segundo Constantino Lima, determinar como um “Partido da Bolívia” é buscar a aprovação de
um Estado que não representa o povo índio.
A relação entre Fausto Reinaga e Constantina Lima começa, segundo Constantino Lima,
quando Reinaga ainda tinha relações com a perspectiva marxista, para ele, Reinaga ofereceu
um espaço em sua residência todos os domingos durante um ano para debater com ele sobre
indianismo, o que foi aceito por diversos motivos, dentre eles, o que evidenciava Constantino
era que teria três refeições em um dia, compreendendo que se encontrava em uma conjuntura
difícil. É justamente nestes diálogos que Reinaga assume para Constantino sua condição de
mestiço: “Yo lo veía como índio, incluso por su nariz aguileño como el mío!”96, conta. Nas
palavras de Constantino Lima, foi através de seus diálogos que Reinaga termina por se assumir
como índio, ainda que ele nunca tenha se divorciado totalmente da Bolívia em sua teoria das
“dos Bolívias” e na proposta da Revolução Índia.
Constantino Lima relatou que após ser torturado em Lima, Peru, conseguiu fugir e
caminhou de Lima até La ciudad de piedra, pueblo onde nasceu, na província de Pacajes, La
Paz. O que chamou a minha atenção na forma em que rememorava muitos dos momentos de
sua militância, foi a musicalidade, todos os seus cadernos, livros, cartas e documentos foram
tomados pelos militares, a música foi um artifício para retomar a memória dos acontecimentos.
Constantino Lima mesclava sua narrativa com as músicas que compôs, em Aymara e
castelhano, parecia manter uma força inquebrantável em cada marca que levava no corpo e em
cada crivo da memória, foram três dos onze filhos e seu próprio pai assassinados como castigo

95
"Índio significa merda ... então vamos ser índios, vamos pegar a merda e vamos jogar no alvo!".
96
"Eu o vi como um índio, até por causa de seu nariz aquilino como o meu!"
60

por lutar como índio, relata. Descrevo um fragmento de uma das músicas sobre seu caminho
entre Lima e Pacajes:
Pachamama, ya estoy de vuelta; Pachamama, por tu camino; Ciudad de
Piedra, vengo a pedirte refugio, a tus cuidados, a tu protección; Vengo, ya
estoy, de tus senos voy lactar; Caminando voy por todo el mundo; ya estoy
viejo antes de tiempo de tanto pensar; Porque soy indio rebelde que no acepto
derecha e izquierda; levantemos estos puños y los q’aras temblaran,
temblaran; Perseguido soy por todo el mundo; torturado soy por estos q’aras
y felipillos97, porque soy indio rebelde, que voy a lucha hasta aplastar;
castigando al verdugo obligando a escapar. (Entrevista, 11 de setembro98 de
2018)99

Constantino explica que esta música é também um agradecimento aos peruanos e


bolivianos que o ajudaram durante o caminho. Pode-se perceber na sua estrutura a afirmação
da categoria contestatária “índio”, bem como a negação de ideologias de direita e esquerda,
uma vez que ambas desconsideraram a identidade índia em benefício de outras categorias não-
contestatárias como: operários, camponeses e cholos. A “guerra de raças” sustentada pelo
indianismo com referência aos eventos históricos já analisados, pode ser relacionada à
fragmentos como “los q’aras temblaran”. O sustento de uma identidade política como índio, e
sua antítese q’ara, delimita a luta anticolonial para a perspectiva indianista.
Abraham Delgado Mancilla (2017), critica a categoria de índio como sujeito de
liberação, segundo ele, a positivação construída por Reinaga não tem possibilidade de
aplicação, uma vez que não sustenta ideias de raça e nação, assim o concreto seria uma aposta
em quéchuas e aymaras, porque estas duas identidades pressupõem duas nações, línguas
específicas, modos de organização política e social, elementos que não estão vinculados à
identidade índia. Para Delgado, a análise de Reinaga das duas Bolívias se volta a uma questão
colonialista justamente por apresentar o sujeito como “índio”, assumindo uma “derrota” e a
submissão deste como castigo por “haber sido vencidos” (DELGADO MANCILLA,
2017.p.62), aceitar a derrota seria conceber como auto-identificação uma categoria colonial.

97
Felipillo foi um nativo que guiou Francisco Pizarro até o Tawantinsuyo, Constantino Lima faz referência aos
indígenas que se aliam aos interesses dos mestiços contra os interesses dos seus pares.
98
Esta entrevista foi realizada no período em que viajei à Bolívia para um evento da CLACSO, por casualidade
tive esta grande oportunidade.
99
“Pachamama, estou de volta; Pachamama, pelo seu caminho; Cidade de Pedra, venho pedir refúgio, ao seu
cuidado, à sua proteção; Eu venho, eu já estou, de seus seios vou amamentar; Andando eu atravesso o mundo todo;
Eu já sou velho antes do tempo de tanto pensar; Porque sou um índio rebelde que não aceita a direita e a esquerda;
levantemos esses punhos e os q'aras tremerão; Eu sou perseguido em todo o mundo; torturado sou por estes q'aras
e felipillos, porque sou um índio rebelde, que vou lutar até esmagar; punindo o carrasco forçando a sua fuga.”
61

O indianismo é reconhecido como movimento anticolonial Aymara-quechua, mas não


é o único. O movimento katarista se desenvolve com preocupações próximas ao indianismo, no
entanto, estrutura uma modificação no sujeito e no método. Para Alvizuri (2009), o katarismo
se desenvolve na política de “luta de classes” e na luta por direitos, condenando a perspectiva
“guerra de raças”, enquanto para o indianismo o grande problema está na segregação racial.
Com referenciais como Genaro Flores, Fernando Untoja e Victor Hugo Cárdenas, o
katarismo100 não descarta o Estado como uma instituição de disputa, sendo o próprio Victor
Hugo Cárdenas vice-presidente da Bolívia entre 1993 e 1997. Iván Apaza Calle em um diálogo
pessoal expôs que o katarismo parte de um sujeito que se afirma, o sujeito kolla, negando a
negação colonial que construiu o termo índio. Untoja (2016)101, sustenta que o sujeito kolla
pode construir hegemonia através de uma ascensão econômica que já é visível nas práticas dos
Q’amiris, deste modo, a preocupação do autor é a liberação através da instituição de uma
aristocracia kolla.
Para analisar o katarismo é necessário compreender a Revolução Nacional de 1952,
promovida pela Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) que, segundo Zavaleta
Mercado (1992), tinha pautas críticas ao Estado Oligárquico instituído antes dos anos 1950. Em
um primeiro momento, a classe dirigente da Revolução de 1952 era o proletariado mineiro
representado pela Central Obrera Boliviana (COB), criada em 16 de abril de 1952. Com o
desenvolvimento da Revolução os camponeses começam a tornar-se mais visíveis no panorama
político como “classe revolucionária” (nos termos marxistas aos quais vinculava-se o MNR).
As transformações mais importantes, segundo Ticona Alejo (2000) foram: a nacionalização das
minas, o “voto universal” e a implementação da Reforma Agrária de 1953, como pressão dos
atores indígenas e camponeses. No entanto, as contradições aparentes no projeto de 1952
estavam na própria Reforma Agrária, que parcelou as terras em uma lógica de classe camponesa
ocidental, descaracterizando a lógica comunal dos Ayllus, organização comunitária Quéchua e
Aymara.
Segundo Ticona Alejo:

El Katarismo e indianismo vienen a ser fruto no previsto de la revolución del


1952 desde 2 perspectivas: es producto de sus conquistas parciales
(educación, participación política de los indígenas y campesinos) y producto

100
Katarismo é um termo proveniente da palavra Katari que em Aymara significa “serpente”, alguns movimentos
kataristas fazem referência direta à Tupak Katari.
101
UNTOJA Fernando, “Katarismo y Poder kolla, propuesta ideológica y política”, 2016, en: grupo-
minka.blogspot.com
62

también del carácter inconcluso de estas conquistas. Las primeras abrieron


horizontes y despertaron nuevas expectativas. Su carácter de inconclusas,
generó una frustración que hizo resurgir la ‘memoria larga’ de un
plurisecular enfrentamiento con el Estado.102 (TICONA ALEJO, 2000,
p.46)103

As ideias de memória longa e memória curta citadas pelo autor, tem relação
respectivamente com os processos de lutas anticoloniais, como o cerco de Tupak Katari, e dos
sucessos da Revolução de 1952. O katarismo de Genaro Flores tem início após os processos de
1952, e, segundo Ticona, é influenciado diretamente por este período.
Em 1964, a Bolívia sofreu um golpe militar. René Barrientos criou o pacto militar-
campesino para domesticar os indígenas e camponeses (Ticona Alejo, 2000), entre os acordos
do pacto estava, a manutenção do reparto de terras promovido pela Reforma Agrária e que os
sindicatos apoiassem os chefes militares. Compreendendo a esterilização dos movimentos
sindicais por parte do pacto, atores políticos como Genaro Flores impulsionam a formação de
um sindicato independente, a Confederación Sindical Única de los Trabajadores Campesinos
de Bolívia (CSUTCB), que em 1979 sepultou o pacto militar-campesino.
O katarismo de Genaro Flores e Victor Hugo Cárdenas, surgiu nesta conjuntura,
tomando proporção no campesinato vinculado à memória longa de Tupac Katari como sujeito
histórico. Por meio de Genaro Flores o movimento katarista introduz o indígena nos
movimentos sindicais, não somente como raça como pensavam os indianistas, nem somente
como classe como pensavam os MNRistas, mas uma junção entre classe, raça e sindicalismo
(Ticona Alejo, 2000). Víctor Hugo Cárdenas (eleito vice-presidente em 1993-1997), dizia que
existem três correntes que deveriam se articular para o katarismo: a sindical, a cultural e a
política, estruturando uma proposta mais global, superando o reducionismo classista (MNR) e
o reducionismo étnico (indianismo).
A segunda expressão do katarismo é a de Fernando Untoja, filósofo e economista
Aymara que percebe o katarismo como uma retomada da ideia de katari, ou serpente, que tem
um significado para os aymaras de terremoto ou “tembor desde abajo”. O katarismo de Untoja
condena a perspectiva de “guerra de raças”, se afasta também do campesinato e da ideia de

102
"O katarismo e o indianismo passam a ser fruto imprevisto da revolução de 1952 a partir de duas perspectivas:
é o produto de suas conquistas parciais (educação, participação política dos indígenas e camponeses) e também
produto do caráter inconclusivo dessas conquistas. O primeiro abriu horizontes e despertou novas expectativas.
Seu caráter inacabado gerou uma frustração que fez reaparecer a 'memória longa' de um confronto centenário com
o Estado"
103
Na minha perspectiva o grande problema do trabalho de Esteban Ticona Alejo é não diferenciar o indianismo
e o katarismo, nem em pautas, tampouco em genealogias.
63

classe que estruturava o katarismo de Genaro Flores e Víctor Hugo Cárdenas. Para Untoja,
através de uma aristocracia Aymara deve haver o desenvolvimento de cientistas e intelectuais
aymaras para a criação de uma hegemonia kolla. Nas palavras de Untoja: “Queremos la
burguesía aymara capaz de pelearse con la oligarquía boliviana o con algunos burgueses que
existen, industriales” (Entrevista, 31 de agosto de 2018)104.

Expressões atuais

O indianismo teve sua maior expressão social durante o processo de 2000-2005,


através de Felipe Quispe Huanca (conhecido como el Mallku105), as mobilizações da “Guerra
do Gás” foram conduzidas pela CSTCUB (Confederación Sindical Única de Trabajadores
Campesinos de Bolívia), organização de Felipe Quispe. Em 1991, El Mallku esteve articulado
ao EGTK (Ejército Guerrillero Tupak Katari), luta armada proveniente de reflexões a partir da
leitura de “La Revolución Índia” de Fausto Reinaga. O exercício de Felipe Quispe, foi o de
restaurar a figura de Tupak Katari vinculando-a ao movimento indianista, no sentido da relação
entre o katarismo e esta figura histórica, no livro Tupak Katari vive y vuelve… carajo” (1988),
o autor é enfático: “Este genial y acertado anuncio de ‘Volver’ está cumpliéndose, pues Tupak
Katari estaba en retirada pero ahora retorna encarnado y empuñando el fusil de las nuevas
generaciones emergentes.” (QUISPE HUANCA, 1988, p.14)106.
Influenciados por esses movimentos históricos e teóricos anticoloniais, surgiram na
atualidade alguns coletivos e organizações políticas e midiáticas que visam propagar e avançar
as perspectivas tanto kataristas, quanto indianistas. Dentre eles, evidencio o movimento
MINKA (Movimiento Indianista Katarista), o coletivo La Curva, com seu espaço nas redes
sociais La Curva del Diablo107, e uma expressão atual que se autoproclama Nacionalismo
Aymara.

A palavra Minka provém da língua Quéchua e significa uma forma de trabalho


comunitário, pode ser lida também como minga. O Movimento Indianista-Katarista (MINKA)

104 "Queremos que a burguesia aymara seja capaz de lutar com a oligarquia boliviana ou com algum burguês
industrial existente"
105
Mallku em Aymara significa “condor”. Na organização política aymara é o maior cargo de liderança.
106
"Este anúncio brilhante e bem-sucedido de 'Voltar' está sendo cumprido, desde que Tupak Katari estava em
retirada, mas agora retorna encarnado e empunhando o fusil das novas gerações emergentes".
107
Página do facebook: https://www.facebook.com/LaCurvaDelDiablo/ ; Canal do Youtube:
https://www.youtube.com/channel/UCqx2UaSkfwQKMz0Zmkmg_2A ; Blog:
http://colectivocurva.blogspot.com/ Acesso em: 02/02/2019
64

surge em maio de 2009, dentre seus militantes mais importantes é possível evidenciar Carlos
Macusaya, Wilmer Machaca e Pablo Velásquez, gerações recentes, filhos de migrantes aymaras
que se consolidam em La Paz e El Alto (DELGADO MANCILLA, 2017). Isso determina
especialmente, uma rede de militantes aymaras urbanos que legitimam em sua teoria e prática
o aymara como identidade também em espaços urbanos. Através do Periódico PUKARA de
Pedro Portugal Mollinedo108, um dos espaços mais conhecidos de difusão de conhecimentos
produzidos por aymaras, os integrantes do grupo MINKA divulgam suas perspectivas políticas,
sociais e teóricas de um indianismo-katarista próprio. Tecendo ideias indianistas a partir de
Fausto Reinaga e Pedro Portugal, e kataristas por trabalhos de Fernando Untoja, o grupo produz
uma alternativa articuladora às duas vertentes. Segundo Abraham Delgado Macilla (2017), o
indianismo-katarista é uma corrente de pensamento e ação política e filosófica, gestada a partir
do início do presente século (DELGADO MANCILLA, 2017, p.92).

Em 2016, se estruturou um coletivo em El Alto nomeado por seus integrantes como La


Curva, La Curva del Diablo é o nome dado aos programas audiovisuais de debate no Youtube
e rádios locais, nome de uma das wak’as mais importantes localizada na rodovia que vincula
El Alto a La Paz. Seus militantes mais conhecidos são Roger Adan Chambi Mayta, Rubén Darío
Chambi Mayta, Wari Mayta, Nelson Cussi, Iván Apaza Calle e - no momento de sua formação
- Pedro Pachaguaya Yujra. Nelson Cussi é uma das vozes em Aymara do coletivo, no programa
de youtube Los Intrusos, o militante questiona pessoas nas ruas de El Alto sobre processos
decorrentes na Bolívia. Sobre a formação do grupo, Cussi me relatou:

A medida que he salido del colegio, me entro a la Universidad Indígena que


no me gustaba mucho porque dependía del gobierno, pero si había muchas
cosas que se podría rescatar, así que adquiero más identidad y ya me
consideraba como… bueno, yo soy de aquí así que tengo que hacer algo más.
Pero no tenía mi espacio, quería un espacio y me he encontrado con los
muchachos de La Curva y más o menos que coincidíamos en las cosas que
queríamos, así que porque no hacemos nuestro propio espacio? Nadie nos va
a dar un espacio, entonces ahí es donde nace. (Entrevista, 18 de novembro de
2018)109

108
Antropólogo e katarista Aymara.
109
"Quando saí da escola, entrei na Universidade Indígena que eu não gostava muito porque dependia do governo,
mas havia muitas coisas que poderiam ser resgatadas, então adquiri mais identidade e já me considerava como ...
bem, eu sou daqui, então eu tenho que fazer algo mais. Mas eu não tinha o meu espaço, eu queria um espaço e
conheci os garotos da La Curva e mais ou menos nós concordamos com as coisas que queríamos, então por que
não criamos nosso próprio espaço? Ninguém vai nos dar um espaço, então aí é onde nasce. "
65

Um elemento importante apresentado por Cussi, foi sua inserção ao indianismo-katarista


através da leitura do livro “La Revolución Índia”, de Fausto Reinaga. Este pode ser considerado
um ponto em comum entre os integrantes do Colectivo Curva, uma vez que tanto Roger
Chambi, quanto Iván Apaza me relataram a mesma experiência.

O movimento Nacionalismo Aymara tem sua maior expressão entre alguns militantes
como Abraham Delgado Mancilla e Magali Copa Vianca. Em seu livro sobre pensamento
político Aymara (2017), Delgado Mancilla desenvolve teoricamente algumas categorias
importantes à esta perspectiva. O autor evidencia o evento “Katari vuelve... Primera marcha
por la reconstrucción espitirual de Tupaj Katari y por la dignidade de los pueblos originários”
em Peñas 2006, lugar onde o personagem histórico foi assassinado, um momento importante
para a formação do Nacionalismo Aymara. Neste evento, a memória de Tupak Katari articulou
diversas concepções políticas aymaras e o indianismo-katarismo teve sua gênese.

La primera base fundamental del Indianismo-Katarismo, es la rearticulación


y contextualización de la historia, discurso y teorización de los Indianistas,
Indianistas Tupakataristas y Kataristas110. Es decir, rearticula la
interpretación de los actores indios y kollas (porque dichas interpretaciones
son desgajadas). No lee de manera directa como los I-TKs, a Julián Apaza
como un Tácito Tupak Katari. Al contrario, se adentra a dos seres compuestos
en Uno, y a su desdoblamiento. Abarca la civilización Kolla/india planteada
por el katarismo, sin dejar al ser humano, al indio, como sujeto histórico.
(DELGADO MANCILLA, 2017, p.121-122)111

A proposta de Nacionalismo Aymara surgiu da articulação posterior a tal evento que


conjugou as mais diversas vertentes do Indianismo e Katarismo, em favor da memória de Tupak
Katari representada em suas últimas palavras: “Volveré y seré millones”.

Das aspirações Indianistas-Kataristas nasce a proposta do Nacionalismo Aymara. Para


Delgado Mancilla, nação é categorizada como uma perspectiva anticolonial, um terceiro
elemento concreto, aymaras, quéchuas, guaranis, mapuches, astecas e demais nações. Para ele
“lo anticolonial no es lo indio, ni es el indio. Sino es el autóctono, el cobrizo, la raza, la

110
Na concepção de Delgado Mancilla, o katarismo proveniente de Fernando Untoja rememora o katari como
símbolo importante dos andes, traduzido como serpente. Por outro lado, na concepção de Felipe Quispe Huanca é
necessário retomar a memória de um sujeito histórico, Tupak Katari, gestando o Indianismo-Tupakatarista.
111
“A primeira base fundamental do indianismo-katarismo é a rearticulação e contextualização da história, do
discurso e da teorização dos indianistas, dos indianistas tupakataristas e dos kataristas. Isto é, rearticula a
interpretação de atores índios e kollas (porque essas interpretações são quebradas). Ele não lê diretamente como
os I-TKs, a Julián Apaza como um tácito Tupak Katari. Pelo contrário, entra em dois seres compostos em Um, e
seu desdobramento. Abrange a civilização Kolla /índia levantada pelo katarismo, sem deixar o ser humano, o índio,
como sujeito histórico.”
66

nación.” (DELGADO MANCILLA, 2017.p.151). Sua linha teórica para pensar a nação vem
dos trabalhos de David Copp, que lê a categoria como grupo que existe por muitas gerações em
um espaço, que tenham as características de história, tradicionalidade, culturalmente
homogêneos e que sejam considerados diferentes em relação às demais nações, carregando um
desejo coletivo de constituir um Estado.

A possibilidade de um Nacionalismo Aymara ou Estado Aymara, toma frente em


algumas vertentes do movimento político Aymara, deslocando anseios de uma Revolução Índia
e de tomar o Estado Boliviano em uma disputa pelo poder, respectivamente saídas políticas do
Indianismo e Katarismo ortodoxos. Neste capítulo, apresentei a construção de identidades e
sujeitos políticos por intelectuais e militantes aymaras e quéchuas, a relação deste movimento
com as teorias apresentadas mais adiante está na tentativa de construir categorias anticoloniais
e leituras da realidade boliviana a partir de diversas vozes.
67

CAPÍTULO II. “MESTIZAJE CH’IXI: uma proposta de Silvia Rivera Cusicanqui”

Busco mostrar neste capítulo a teoria de Silvia Rivera Cusicanqui, socióloga boliviana,
anarquista, que é contemporânea dos debates indianistas-kataristas, bem como pós-coloniais e
decolonias, e propõe a construção de um projeto de descolonização ansiado por parte crítica das
ciências humanas das últimas décadas. Cusicanqui é uma das fundadoras do Taller de Historia
Oral Andina (THOA) nos anos 80, que tem como projeto o resgate de relatos históricos da
Bolívia para a revalorização das identidades indígenas. A autora é aposentada pela Universidad
Mayor de San Andrés, La Paz, onde lecionava o curso de Sociologia da Imagem. Foi Docente
Visitante nas Universidades da Columbia (NY); Austin (TX); Jujuy na Universidad Andina
Simón Bolívar; La Rábida (Huelva), e na Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales de
Quito. Recebeu em 1990 a Bolsa Guggenheim. Participou de movimentos kataristas e cocaleros
na Bolívia, deixando claro em sua perspectiva a apologia à despenalização da folha de coca.
Em 2010 lançou o livro "Principio Potosí. ¿Cómo podemos cantar el canto del Señor en tierra
ajena?", juntamente com uma exposição de fotografias no Museo Reina Sofía, Espanha,
resgatando o conceito de “colonialismo interno” de Casanova em sua teoria.

Segundo Sarkisyanz (2013), Silvia Rivera Cusicanqui é ao mesmo tempo katarista, com
influência direta de Genaro Flores, e indianista, por construir um afastamento das organizações
marxistas pela concepção que difundiam sobre os indígenas. Tanto no período ditatorial de
Bánzer, quanto no de García Meza, Silvia Rivera foi presa e torturada, tendo seus manuscritos
pessoais confiscados e queimados. Nas palavras do autor, Silvia Rivera “se ve a sí misma como
un intermédio entre la consciência de clases de la organización agraria de Genaro Flores y la
de los indianistas” (SARKISYANZ, 2013, p.422)112.

Um pensamento abigarrado

“Qhip nayr uñtasis sarnaqapxanãni. Mirando el


pasado para caminar por el presente y por el futuro”
THOA (Taller de la Historia Oral Andina)

Silvia Rivera Cusicanqui se inclui em um rol de teóricos que propõe a construção de um


pensamento latino-americano descolonizado, através do sujeito/pensamento/prática ch’ixi

112
"Ela se vê como um intermédio entre a consciência de classes da organização agrária de Genaro Flores e a dos
indianistas"
68

(pronuncia-se txerri). No diálogo que realizei com Silvia Rivera Cusicanqui no Colectivo
Ch’ixi, tive a oportunidade de conhecer um pouco mais da trajetória da autora. Ela caminhava
de um lado a outro na sala, enquanto relatava que começou a criticar a esquerda boliviana entre
os anos 1970, o que a aproximou do movimento katarista, especialmente porque o golpe militar
de Hugo Bánzer Suárez em 1971 levou parte considerável das lideranças kataristas para um
refúgio nas comunidades de origem, momento em que Silvia Rivera desenvolvia um trabalho
de campo na comunidade de Pacajes. Ela se associa à luta de Genaro Flores113 e participa do
primeiro Congresso realizado pela CSUTCB, auxiliando na construção da tese política desta
organização. A relação da autora com o movimento katarista dura, segunda ela, até 1988,
quando Genaro Flores é retirado da direção por grupos da esquerda boliviana: “y yo le había
advertido a Genaro Flores, que estaba muy encantado con unas gentes de la izquierda, que era
medio peligroso que se meta con ellos, pero no me hizo caso y, bueno, al final le hicieron un
golpe y lo sacaron.” (Entrevista, 8 de dezembro de 2018)114. Enquanto relatava, Silvia Rivera
caminhava próxima à sua ñatita115, que compunha uma mesa rodeada por flores, o familiar
chapéu de aba longa de Silvia sombreava parte de seu rosto, sendo quase impossível perceber
suas expressões quando acessava suas memórias.

Partindo de um diálogo com as teorias anticoloniais gestadas nas últimas décadas e se


pautando genealogicamente em processos de insurgências indígenas desde 1532 (data da
invasão espanhola aos Andes), a autora estrutura em seus trabalhos uma análise crítica da
construção do conhecimento, embasada na ideia de Economia Política do Conhecimento,
considerando que o conhecimento tem sido gestado a partir de interesses coloniais, o que torna
as palavras estéreis ao deslocá-las da prática histórica. Esse processo sustenta silenciamentos
em relação a sujeitos históricos, alocando-os em espaços marginalizados nas próprias narrativas
e determinando que histórias locais (dos centros enunciadores) se apresentem enquanto
histórias globais para todos os espaços sócio-políticos. Servindo a esse projeto de construção
do conhecimento as palavras interpretaram - e interpretam - o que existia a contrapelo de sua
própria pulsão, gestando eufemismos. O processo desencadeado foi, para a autora, o
desenvolvimento de uma forma de normalização violenta dos corpos indígenas para sua

113
Silvia Rivera relata que durante seu exílio no México enviou os manuscritos da sua obra “Oprimidos pero no
vencidos” para Genaro Flores, que se encontrava em um exílio na França, quem incentivou a autora à publicá-lo.
114
"E eu tinha avisado Genaro Flores, que estava muito encantado com algumas pessoas da esquerda, que era meio
perigoso para ele se envolver com eles, mas ele não me ouviu e, bem, no final eles fizeram um golpe e retiraram
ele”
115
Trata-se de um crâneo cultuado pelos aymaras, normalmente cada ñatita recebe um nome e é festejada no dia
8 de novembro, dia de las ñatitas.
69

conversão em produtores e consumidores eficientes e para que deixem de ser polivalentes,


plurais. Esse projeto é o que Silvia Rivera percebe como um projeto colonial presente na
Academia, que apaga as diversas epistemes presentes no processo de construção da história e
cria apoteoses à aspectos da epistemologia Ocidental116.
Considerando que muitas categorias do pensamento Aymara têm relação com mitos e
sua característica de se estabelecer em uma temporalidade cósmica, a proposta de
descolonização a partir de uma construção de mestiçagem ch’ixi vai ao encontro de um
exercício epistemológico não linear. A justaposição entre tradição oral e consciência histórica
se conjuga na constituição dos mitos andinos, uma vez que as representações cosmológicas e
ontológicas estão aí expressas. Esta formulação aproxima-se ao que propõe Sahlins (2001) em
relação à construção do pensamento mítico, o qual contempla concepções de categorização
empírica e objetiva, justificada por meio de distinções. Para o autor, a objetividade é um valor
social variável, sendo constituída a partir de “uma seleção interessada de atributos perceptíveis
relevantes dentre todos aqueles possíveis.” (SAHLINS, 2001, p.179). Estruturando uma crítica
à epistemologia Ocidental, Sahlins ainda aborda a pretensão desta em se colocar como a-
priorística ao conceber as categorias ocidentais como “categorias em si” e não como categorias
“para si”. Na observação do processo histórico havaiano, o autor aponta que as formas de
classificação dos “Outros”, daqueles “Outros” do Ocidente, são outras nomenclaturas do
mundo, abordá-las está para além de mostrar o seu alcance, evidencia os limites das
classificações Ocidentais.
Para Silvia Rivera, os mitos aymaras estão ancorados nesses ciclos de pensamento, do
passado Nayrapacha unido ao presente pelos olhos da memória, enquanto o futuro é fruto desta
fusão. Segundo Rivera, muitas palavras não designam, mas encobrem a realidade a partir de
eufemismos. Deste modo, a oralidade e a representação iconográfica vinculadas à linguagem
escrita são essenciais para a constituição de um pensamento descolonizado, pois caracteriza
mais de uma expressão do pensamento. Dito isto, Cusicanqui cunha o pensamento ch’ixi a partir
da reconstituição de relatos de indígenas e cholas aymaras no Taller de Historia Oral Andina
(THOA), que rememoraram as insurreições dos últimos séculos na Bolívia.

116
Dialogando com a exposição de Ailton Krenak no evento “Epistemologias do Sul” que aconteceu na UNILA
(2017), utilizo a interpretação que ele nos ofereceu do poema “Erro de Português” de Oswald de Andrade: “Quando
o Português chegou/ Debaixo de uma bruta chuva/ Vestiu o índio/ Que pena! Fosse uma manhã de sol/ O índio
tinha despido o português”. Para Krenak a roupa no poema é uma metáfora do ocultamento do índio, em suas
palavras é um processo de “nos esconder de nós mesmos em uma criação de simulacros”, por este motivo o índio
é significado a partir de uma perspectiva colonial.
70

A proposta de uma epistemologia ch’ixi de Silvia Rivera vai de encontro às discussões


de mestiçagem ligadas à leitura da hibridação. Ch’ixi em Aymara é uma palavra que configura
uma justaposição, algo que é e não é ao mesmo tempo, o que Silvia Rivera percebe como
manchas justapostas que nunca se mesclam. Tomada da idéia de abigarrado do boliviano
Zavaleta Mercado117, a concepção de um sujeito ch’ixi comunga características da
epistemologia ocidental e de outras tantas epistemologias, como a Aymara, sem
necessariamente anexar o sujeito em um processo de devir. O ch’ixi são opostos que convivem
sem se mesclar, em uma condição de portadores de contradições que não buscam uma síntese,
portanto, uma dialética sem síntese. O exercício de um pensamento ch’ixi comporta um
processo de iconoclastia da língua culta, capacitando um diálogo entre epistemologias. Citando
Oswald de Andrade, a autora propõe que o movimento ch’ixi se relaciona com um processo
antropofágico do conhecimento, no sentido de que ele se apropria de elementos importantes da
cultura ocidental, bem como de elementos da cultura índia descaracterizados pelas narrativas
hegemônicas da história. O ch’ixi seria esse antagonismo complementário, presente e
compreensível a partir da epistemologia Aymara que, segundo a autora, apresenta uma ampla
capacidade de manejo das contradições, nesse processo de dialética sem síntese, a partir de
categorias de leitura da história como o Pachakuti, que representa a destruição e renovação
articuladas.
Assim, para Rivera, o exercício do pensamento ch’ixi é a construção de um “pachakuti
de palabras”, ou seja, o ch’ixi retira as palavras do registro ficcional, orientando um projeto de
“modernidade indígena” que poderá aflorar do presente, em uma espiral cujo movimento é um
continuo retroalimentar-se do passado sobre o futuro (RIVERA CUSICANQUI,2010, p.54-55.
trad. minha). Para Rivera, um primeiro Pachakuti elaborado pela catástrofe do genocídio
indígena, da desapropriação de terras e da estigmatização das culturas, trouxe consigo uma
possibilidade de “redenção”, o Pachakuti que se busca ao descolonizar os discursos e as
práticas. Na perspectiva da autora, o índio é uma construção do colonizador a fim de caracterizar
este outro desconhecido, ao passo que com a descolonização do saber não se favorecerá um

117
Baseada nos escritos do boliviano Zavaleta Mercado, Silvia Rivera Cusicanqui percebe o processo de
modernização da Bolívia vinculado a duas condições, a construção de cidadanias de segunda classe para os índios
e ao arcaísmo das elites. No livro “Lo Nacional-Popular en Bolivia”, Zavaleta Mercado desenvolve de que maneira
as elites bolivianas estiveram envolvidas em uma “paradoja señorial”, com a manutenção da dominação
oligárquica no processo da Revolução Nacional de 1952, neste contexto o autor cunha o termo “formación
abigarrada” criticando o conceito de uma “formação econômico-social” para Bolívia, uma vez que este último
conceito compreende a articulação dos modos de produção desconsiderando a verticalidade hierárquica de uns
sobre outros. A “Formación abigarrada” é uma hipótese que contempla uma qualificação mútua entre diferentes
estruturas econômico-sociais que na própria concorrência não mantêm uma forma “pura” ou “previa”, são diversos
momentos constitutivos concorrentes (RIVERA CUSICANQUI, 2010).
71

“devir índio”, mas um “devir gente”. Este projeto de descolonização não propõe a romantização
das categorias indígenas em detrimento das categorias europeias, mas um diálogo possível que
não visa a destituição de algumas epistemologias em favor de outras.

O ch’ixi enquanto proposta de mestiçagem, deve ser diferenciado do processo de


mestiçagem colonial. A “mestizaje colonial andino” é uma hipótese de trabalho de Cusicanqui
(2010), na qual a autora parte da perspectiva de que as identidades índia, mestiça e q’ara são
forjadas pelo feito colonial, construídas na essência da antinomia entre as culturas
marginalizadas e a cultura ocidental que, desde 1532 até nossos dias, continuam moldando as
estruturas de “habitus” vigentes (RIVERA CUSICANQUI, 2010.p.66). A partir daí a figura do
mestizo torna-se um complexo necessário a ser compreendido para a formação dessa proposta
de descolonização. Cusicanqui critica a leitura do mestizo como um amálgama, dialogando com
os escritos de Frantz Fanon como uma formulação colonial de mescla entre as duas sociedades,
uma fusão de raças, um híbrido que celebra o ocidental e nega seu traço indígena,
desaparecendo o conflito do qual é gestado, confirmando uma leitura histórica harmoniosa de
construção da modernidade.

Em 1995, Silvia Rivera publica na coletânea “Violencias encubiertas en Bolivia”


(ALBÓ; BARRIOS, 1995), o texto “La Raiz: Colonizadores y colonizados”, no qual apresenta
a primeira versão da sua Hispótesis del mestizaje colonial andino. Neste texto a autora
desenvolve uma análise acerca da relação entre mestiçagem e colonialismo, seja no período
colonial (enquanto instituição política), liberal ou populista da história política boliviana, a
articulação destes três horizontes políticos é o que Silvia Rivera denomina “contradições
diacrônicas”. Estas contradições, que são coloniais, possibilitaram o processo de formação de
uma “nova consciência Aymara” entre os anos 1970 e 1980, neste caso, a autora se refere
especificamente aos movimentos indianistas e kataristas. A presença dos aymaras urbanos
aparece também como um componente importante para a formação destas organizações, em
especial quando os jovens começam a compor os espaços de educação superior.

Para Silvia Rivera (1995), foi justamente a tentativa de compreender a mestiçagem a


partir de uma perspectiva antropológica, que fez com que os trabalhos se distanciassem de uma
leitura melting pot, de um processo de mestiçagem harmônico que apaga os processos
conflituosos de constituição da mestiçagem boliviana, decaindo em uma lógica identitária de
homogeneidade.
72

Por el contrario, y analizando datos de investigaciones antropológicas


recientes, he planteado la idea de que el mestizaje conduce a un reforzamiento
de la estructura de castas, mediante un complejo juego de mecanismos de
segregación, exclusión y autoexclusión que subordinan a los sectores cholos
urbanos a los mecanismos clientelares propuestos por el sistema político
tradicional y los condenan a la degradación, el anonimato colectivo y la
pérdida de un perfil diferenciado, aunque paradójicamente, todas estas
renuncias se imponen en nombre de una identidad ciudadana que resulta en
los hechos, formal, ilusoria y precaria. (RIVERA CUSICANQUI, 1995,
p.29)118

Para a autora, as condições de colonização sobre os mestiços tornam-se mais violentas


ao tratar-se dos cholos, que, segundo ela, são os sujeitos do processo de mestiçagem que estão
mais próximos à identidade indígena. As contradições diacrônicas seriam, deste modo, uma
inserção das contradições do passado no presente, mantendo aspectos coloniais nas práticas
nacionais atuais, ainda que não estejam determinados nos discursos institucionais. Partindo
desta crítica ao mestiço como melting pot, a autora relaciona a leitura do mestiço como
amálgama, compreendendo que o mesmo discurso que harmoniza a existência do mestiço,
destitui este de muitos espaços, em especial se tratando de uma mestiçagem chola, é uma
ambiguidade construída sobre negação e celebração que converte o próprio mestiço em um ser
imaginário em favor de uma identidade nacional.

O horizonte colonial é, conforme Silvia Rivera, um momento de violência e segregação


voltado ao sujeito da mestiçagem, uma vez que a mestiçagem de sangue surge por estupros de
mulheres indígenas e os mestiços culturais - aqueles que cruzaram espaços econômicos
estabelecendo vínculos com ambos mundos que o compõe - muitas vezes sofreram a exclusão
de não se encaixarem em uma das duas identidades, indígena ou criollo. No entanto, esta
violência era determinada racialmente, os índios pagavam impostos completos e foram
obrigados a trabalhar na mit’a, sendo os mantenedores da economia local, enquanto que os
cholos não precisavam se submeter ao trabalho, ainda que pagavam uma taxa menor dos
tributos, já os mestiços estavam livres de ambas obrigações com a Colônia, deste modo a
determinação das obrigações foram declaradamente raciais.

118
“Ao contrário, e analisando dados de pesquisas antropológicas recentes, propus a ideia de que a mestiçagem
leva a um reforço da estrutura de castas, através de um complexo jogo de mecanismos de segregação, exclusão e
auto-exclusão que subordinam os setores cholos urbanos aos mecanismos clientelistas propostos pelo sistema
político tradicional e os condenam à degradação, ao anonimato coletivo e à perda de um perfil diferenciado, ainda
que, paradoxalmente, todas essas renúncias sejam impostas em nome de uma identidade cidadã que resulte nos
fatos, formal, ilusória e precária.”
73

Silvia Rivera Cusicanqui situa que as identidades (Aymara e Quechua) foram forjadas
pelo processo colonial, porque carregam a marca do estereótipo racial, da intolerância cultural
e de um esforço em “colonizar as almas” (RIVERA CUSICANQUI, 1995, p.35). Assim, as
contradições coloniais são renovadas em processos liberais e populistas na Bolívia, no sentido
de criar elementos para forjar novas (ou velhas) identidades. A constituição da identidade
Aymara como conhecemos nos dias atuais, para a autora, se dá no século XVIII, considerando
que o Aymara, assim como o Pukina, figurava como línguas entre os ayllus durante o
Tawantinsuyo, sendo a experiência colonial unificadora desta identidade como tal. Desta
maneira, foi durante as revoltas de 1780-1781 (Tupac Amaru e Tupak Katari), que a identidade
é evidenciada como categoria política.

A constituição, no período dos ciclos rebeldes do século XVIII, de uma identidade sobre
a língua Aymara evidencia a epistemologia presente e retoma elementos importantes como o
Nayrapacha (“el pasado-como-futuro”), uma característica comum às populações étnicas
segundo Silvia Rivera, mas também comum a um setor subalterno do próprio ocidente, como
Walter Benjamin quando confronta a catástrofe do nazismo com a frase: “Ni los muertos
estarán a salvo del enemigo si este triunfa (1969).” (RIVERA CUSICANQUI, 1995.p.44). O
Nayrapacha é, para ela, um exercício epistemológico comum a muitos espaços geopolíticos, o
que me parece um movimento de diálogo entre a epistemologia Aymara e outras
epistemologias, deslocalizando o Aymara e alocando-o em sua possibilidade analítica.

A autora faz uma relação frequente em seu texto entre cholo e índio, utilizando muitas
vezes índio-chola como definição identitária, chegando a situar um debate feito por Ignacio
Mendoza (representante do sector criollo) em um evento sociológico nos anos 1970. Segundo
ela, o autor apresentou a cholificación como um conceito central de análise social, perspectiva
que foi criticada por indianistas e kataristas presentes no evento, que inspirados pela obra El
índio y el cholaje boliviano de Reinaga, fizeram uma defesa da categoria índio frente às
categorias de mestiçagem como o cholo (RIVERA CUSICANQUI, 1995, p.55). A análise de
Silvia Rivera deste debate foi que os próprios referenciais utilizados por Reinaga eram aymaras
cholificados que passaram por espaços aculturantes como a escola, o quartel e a universidade.
Esta perspectiva é criticável no contexto do trabalho da autora que em muitos textos associou a
apropriação destes espaços institucionais por aymaras urbanos (e não cholificados), como
formadora da posição política indianista e katarista.
74

As identidades índio e cholo são analisadas por Silvia Rivera como identidades não
apenas “para sí” nem “em si”, mas “para otros”, uma vez que ela nasce de um confronto de
imagens e auto imagens, seja de estereótipos ou contra estereótipos, em suas palavras: “Es
decir, que la identidad de uno no se mira en el otro como en un espejo, sino que tiene que
romper o atravesar este espejo para reencontrar un sentido afirmativo a lo que en principio no
es sino un insulto o prejuicio racista y etnocéntrico.” (RIVERA CUSICANQUI, 1995, p.57)119.
Desta forma, a autora defende que existe uma definição da identidade dos sujeitos, não somente
a partir de uma auto identificação, mas a partir de uma hétero identificação que é externa ao
sujeito, mas que o mesmo pode ressemantizá-la no sentido de afirmar sua própria identidade,
seria o caso da identidade índia apropriada e rearticulada pelo movimento indianista, no entanto,
aqui a autora defende que o mesmo exercício pode ser direcionado ao ser cholo.

Este conflito entre a questão identitária e as lutas kataristas e indianistas foram cruciais
na formação política de Silvia Rivera, ela associa sua afinidade com a perspectiva katarista e o
reconhecimento de sua identidade mestiça como um paradoxo que aparece muitas vezes como
construtivo. A partir do momento em que ela começa a perceber o conflito entre sua identidade
e sua perspectiva política, a autora associa a opressão feminina com a opressão índia, uma vez
que envolvem sofrimentos similares, dentre eles o silêncio cultural, uma identidade imposta e
a luta por igualdade vinculada à defesa pela diferença.

Pensando no ch’ixi como uma alternativa à essas formas de mestiçagem coloniais, a


autora compreende as mujeres tejedoras aymaras como exemplos de um sujeito ch’ixi, uma
vez que essas realizam os tejidos interculturales. Em sua leitura, o ato de tecer é a incorporação
do outro em uma trama, uma costura de linhas diversas sem mesclá-las. O ch’ixi seria, desse
modo, um exercício de tecer os conhecimentos, necessariamente uma proposta construída por
Silvia Rivera frente à lógica colonial de estruturação dos discursos de mestiçagem na Bolívia.

Para além de uma hipótese, o ch’ixi é plasmado em uma figura histórica boliviana na
obra “La identidad ch’ixi de un mestizo: En torno a la voz del campesino, manifiesto anarquista
de 1929” (2011), o militante Aymara anarquista da Guerra do Chaco (1932-1935), Luis
Cusicanqui, autor do manifesto “La voz del campesino. Nuestro reto a los grandes mistis del

119
“Isso quer dizer que a identidade de uma pessoa não é vista na outra como num espelho, mas que precisa romper
esse espelho para redescobrir um sentido afirmativo para aquilo que, em princípio, não passa de um insulto ou
preconceito racista e etnocêntrico.”
75

Estado” (1929). Este personagem redige críticas à elite q’ara120, em um exercício em que se
mescla o castelhano com o Aymara e o Quéchua, construindo o que Silvia Rivera denomina
“castimilliano”, uma língua franca intercultural que permitiu adaptar e recriar metáforas
libertarias e indígenas da política a partir de um denso tecido testemunhal (RIVERA
CUSICANQUI, 2011, p.194).
Um exemplo são as duas formas de pensar o “nós” em Aymara. A primeira é o nanaka
compreendido como excludente, a segunda é o jiwasa que inclui o interlocutor. Enquanto
nanaka tem uma abordagem para a alteridade, uma afirmação das características de uma
determinada cultura, o jiwasa tem um vínculo com a interculturalidade, e isso se evidencia no
manifesto de Luis Cusicanqui no excerto: “Alerta hermanos indios de la raza americana que
la sangre vertida sea el anuncio de la revolución” (RIVERA CUSICANQUI,2011.p.203)121.
Esta expressão de uma raça americana é a expressão do jiwasa, dos despossuídos pela
colonização e pelo colonialismo interno, estruturando sua crítica aos q’aras.
Além disso, o ch’ixi é uma categoria operacionalizada em um espaço construído na
cidade de La Paz, o “Tambo: colectivo ch’ixi”, onde atuam diversos sujeitos, incluindo a própria
Silvia Rivera Cusicanqui. O espaço foi construído coletivamente por aymaras, mestiços e
colaboradores para que as discussões tenham um suporte arquitetônico autônomo. Além de
discussões teóricas, desenvolvem trabalhos de cultivo da terra para a alimentação do coletivo,
promovendo uma manutenção autogestionada122.

Figura 2: Distinção do significado de palavras similares à


ch’ixi - Fonte: Página Aymar Yatiqaña de Elias Reynaldo Rivera

120
Elite mestiça branca que desconsidera as condições dos aymaras.
121
"Alerta aos irmãos índios da raça americana, que o sangue derramado seja o anúncio da revolução"
122
Mais informações dispostas no blog do coletivo: http://colectivachixi.blogspot.com.br/
76

Tambo Colectivx Ch’ixi e o curso Sociología de la Imagen

Meu primeiro contato com o Tambo Colectivo Ch’ixi, foi em uma Quermesse realizada
no dia dezessete de dezembro de 2017, esta foi organizada para arrecadar fundos para a luta do
TIPNIS123, vendendo artesanatos feitos por esses grupos das terras baixas, além de comidas
(Anticucho, Chicarrón e Quesumacha) e bebidas. Pedi para auxiliar nos trabalhos de
construção da Quermesse, às 9 da manhã cheguei no endereço combinado. Ivan, que faz parte
do Colectivo há muitos anos, recebeu-me e me delimitou algumas funções. O espaço do
Coletivo é uma casa de dois andares, há um canteiro de algumas plantas que eu não soube
identificar, umas trepadeiras em arames que cercam um pedaço do quintal. No andar de baixo
fica a cozinha e uma parte aberta com algumas mesas, em cima estão as salas onde ocorrem os
cursos. Na parte externa há dois banheiros, um banheiro seco (fossa séptica) e um banheiro
comum. As paredes da casa, feitas de adobe, eram adornadas com garrafas plásticas que juntas
formavam figuras de flores no interior do adobe. Fiquei impressionada com a quantidade de
árvores e plantas que rodeiam o quintal, há um certo aspecto rural na constituição física do
Tambo124, o que remete à relação com a organização e a episteme que seus participantes
mantêm, uma sociologia com as mãos na terra.

Nas imediações do Colectivo conheci Sara, uma integrante que me contou do processo
de formação do espaço, de se tratar de um local ocupado, diz também que há sete anos compõe
o Tambo. De acordo com Sara, essa casa foi construída na zona de Tembladerani – bairro da
cidade de La Paz - e cedida pela dona para que alguém pudesse cuidar, segundo ela, a dona do
local tinha receios de viver na região porque havia muitos tremores (temblores), o que dá nome
à zona. Sara me relata que Silvia Rivera paga as contas necessárias para a manutenção do
espaço, incluindo o salário do Maestro125, senhor Aymara que trabalha nos serviços mais
pesados e cotidianos para a conservação do Tambo. Sara conheceu Silvia quando era aluna do
curso de Sociologia na Universidad Mayor de San Andrés, comenta que foi a partir de Silvia
que chegou ao Coletivo e começou seu envolvimento com os projetos, no entanto, enfatizou

123
Trata-se do Território Indígena e Parque Nacional Isiboro-Sécure, desde 2010 o governo de Evo Morales
anunciou a construção de uma rodovia que atravessa esta terra indígena, provocando diversas manifestações com
temas de auto-determinação já previstos na atual Constituição Plurinacional.
124
A palavra Tambo representa o espaço em que os aymaras reservam seus alimentos, é também uma figura
incaica. Para Soruco (2012), os tambos eram espaços de depósito, mas também abrigavam viajantes.
125
No dia 8 de dezembro em que realizo uma entrevista no Colectivo com Silvia Rivera, Roger Chambi é
convidado por Silvia Rivera para trabalhar com o Maestro na construção civil. Depois da entrevista, Roger Chambi
comentou que o Maestro é da comunidade de Sorata, próxima a Achacachi, “Él es mi paisano!”, relatou-me.
77

que há diversos interesses e perspectivas entre os sujeitos que compõe o Coletivo, ainda que
tenham objetivos em comum.

Durante a Quermesse, Silvia Rivera preparava Quesuhumacha em um canto do terreno,


acompanhada por uma fogueira, enquanto pijchava (mastigava) folhas de coca que retirava de
um pequeno saco plástico. Hermética, manteve-se sentada por um longo tempo junto às panelas,
usava seu chapéu de aba longa e suas tranças acompanhadas por tulmas, fios grossos de lã que
são trançados ao cabelo. Nessa ocasião dialoguei muito com alguns integrantes do Colectivo,
mas quase nada com Silvia Rivera.

***

As primeiras aulas que assisti no Curso de Sociologia da Imagem aconteceram no mês


de janeiro de 2018, Silvia Rivera se apresentou sentada em um Lip’ichi (couro de ovelha) e
recebeu os alunos, que em sua maioria eram estrangeiros brancos. Juntos formávamos uma
turma de trinta e duas pessoas, cerca de quatro pessoas eram negras, pardas, cholos126
(peruanos) e indígenas. As aulas ocorriam nas segundas, quartas e sextas-feiras e nelas discutia-
se textos de Susan Sontag, Roland Barthes, Marisol de la Cadena, Walter Benjamin e da própria
Silvia Rivera Cusicanqui. Narrarei aqui algumas aulas as relacionarei com os referenciais
discutidos.

Durante a primeira aula dialogamos acerca da importância da fotografia, especialmente


em torno do trabalho de Susan Sontag “Sobre la fotografia” (1977), esta autora desenvolve
uma análise do que seria um “novo código visual”, propondo uma gramática e uma ética da
visão ao fotografar (SONTAG, 1977, p.15). Colocamos em diálogo o trabalho de Susan Sontag
com o de Silvia Rivera Cusicanqui “La sociologia de la imagen como práxis descolonizadora”
(2015), neste texto Silvia Rivera propõe uma descolonização dos olhares em uma relação
conflitiva com a linguagem, em suas palavras: “La descolonización de la mirada consistiría en
liberar la visualización de las ataduras del lenguaje, y en reactualizar la memoria de la
experiencia como un todo indisoluble, en el que funden los sentidos corporales y mentales”
(RIVERA CUSICANQUI, 2015, p.28)127. Esta perspectiva ressoa em um relato de Roger
Chambi, enquanto conversávamos sobre a importância da imagem entre os aymaras e como

126
Aqui utilizo a categoria “cholo”, como alusão a pessoas do Peru que participavam do curso, uma vez que esta
categoria em território peruano tem outras determinações comparada ao território boliviano, e que havia uma
autoidentificação dos próprios alunos.
127
"A descolonização do olhar consistiria em libertar a visualização dos laços da linguagem e em reatualizar a
memória da experiência como um todo indissolúvel, no qual os sentidos corporais e mentais se fundem"
78

têm sido retratados pelos trabalhos acadêmicos. Durante o diálogo ele acessava algumas
memórias:

Recuerdo que en 2016 he empezado a escribir crónicas para contar algunas


experiencias que tuve desde pequeño, bueno muchas de esas crónicas no se
han publicado siguen inconclusas, y recuerdo que estaba escribiendo una vez
sobre la creación de sentidos comunes a partir de las imágenes en el caso de
“La nación Clandestina”128, estaba tratando de analizar el mensaje visual
más allá del contenido sociológico y todos los problemas políticos que estaba
mostrando la película. Lo que me interesaba era como se estaba proyectando
en imágenes la idea del ser aymara. Entonces, mientras escribía eso recuerdo
que se me vino a la cabeza un pasaje antiguo, cuando era niño, un recuerdo
cuando tenía imagino mis ocho o nueve años, que estaba yendo con mi mamá
por la tienda y estaba con su carretilla, estábamos yendo a comprar gas y
recuerdo que vino un señor, un tipo alto con lentes, con su cámara, y le dijo
a mi madre que si él podría sacar una foto. Yo siempre andaba con mi mamá
agarrado de su manta, mi mamá siempre decía que agarre su manta para que
no me pierda, entonces yo miraba eso y mi madre dijo que sí. Entonces el
señor se acomodó para sacar la foto y mi mamá empezó a arreglar sus trenzas
porque estaba un poco despeinada, ch’ascosa decimos en aymara, entonces
mi mamá quería arreglarse así para salir bien, obviamente, en la foto y el
señor le ha dicho que no, que no se arreglara que estaba bien así tal como
estaba, y bueno le sacó una foto y listo, los dos fuimos. Yo recordé ese pasaje
cuando estaba escribiendo sobre, esa crónica sobre la idea de lo aymara y
justo se me vino a la cabeza lo que Walter Benjamin decía sobre que la
realidad es distinta ante los ojos de la cámara, y creo que este ejemplo de mi
niñez con mi madre muestra claramente esas palabras que dijo Benjamin, no?
Porque el señor le dijo “No, no te arregles, así estas bien”, y me puse a pensar
“bien para quien estaba?”, porque mi madre al saber que era una foto quería
salir bien, quería salir desde su modo de ser presentable, agradable, pero
para la otra persona, que estaba sacando la foto, quería seguramente no sé
porque, pues era una imagen pintoresca o casual de una persona en El Alto
de esos tiempos y, bueno, sacó a su modo, cosa que mi madre no quería salir
de esa forma129.

128
Produção cinematográfica do diretor boliviano Jorge Sanjinés.
129
“Lembro-me de que em 2016 eu comecei a escrever crônicas para contar algumas experiências que tive desde
a infância, boa parte dessas crônicas não foram publicadas e permanecem inacabadas, e eu me lembro que estava
escrevendo uma vez sobre a criação de senso comum a partir das imagens no caso de "A Nação Clandestina", eu
estava tentando analisar como a mensagem visual além do conteúdo sociológico e de todos os problemas políticos
que o filme mostrava. O que me interessou foi como a ideia de ser Aymara estava sendo projetada em imagens.
Então, ao escrever isso me veio à mente uma passagem antiga, quando era criança, uma memória quando eu tinha,
imagino, uns oito ou nove anos, eu ia com minha mãe na loja e ela estava com a sua carriola, íamos comprar gás
e lembro-me que um homem veio, um cara alto com óculos, com sua câmera, e ele perguntou à minha mãe se
poderia tirar uma foto. Eu sempre andava com a minha mãe segurando a sua manta, minha mãe sempre me dizia
para pegar sua manta para que eu não me perdesse, então eu olhei para isso e minha mãe disse que sim. Então o
senhor se acomodou para tirar a foto e minha mãe começou a arrumar suas tranças porque estavam um pouco
despenteadas, ch'ascosa dizemos em Aymara, então minha mãe queria se arrumar pra sair bem, obviamente, na
79

Ao escutar o relato de Roger, pensei em muitas imagens de Dona Hilda, me vi na sala


dela, próxima ao quarto, espaço onde as fotos enchem o branco das paredes de cores, fotos de
Dona Hilda dançando, fotos dos filhos quando saíram do quartel militar e quadros com fotos
de lugares da Bolívia. Em todas as fotos Dona Hilda parecia dominar a câmera, com suas tranças
uniformes, sua pollera colorida, o melhor chapéu borsalino. Neste momento, pude perceber a
importância da fotografia para os aymaras, o valor da imagem que os representa. Senti a
angústia de Dona Hilda no relato de Roger, na necessidade dela de arrumar as tranças, e
compreendi como a câmera pode construir sentidos coloniais, mas também, sentidos de
legitimação. Pensei sobre como o modo que se captura a imagem de outro envolve elementos
epistemológicos muito complexos. Dialogando com Roger Chambi, ele chamou a minha
atenção para a relação entre o sujeito que detêm a câmera e o que é fotografado: “creo que ese
sujeto, cuando sacaba fotos de si mismo, usaba sus propios criterios para elegir la mejor
foto”130, disse Roger. Pensamos juntos, que existe uma relação epistemológica na produção de
uma imagem, representar o Aymara a partir de imagens pitorescas, é um modo de manter os
discursos sobre o Aymara e demonstra a falta de diálogo entre quem produz a imagem e quem
é reproduzido por ela, assim os critérios sempre são daqueles que detêm o privilégio da imagem,
quem a possui, os critérios daqueles que são fotografados são negligenciados. Roger chamava
a minha atenção, ainda, para a proposta que eu encontraria também em Silvia Rivera
Cusicanqui, a da descolonização da imagem.

Acerca da descolonização dos olhares, exercício que se tornou presente em todas as


aulas de Sociología de la Imagen, Silvia Rivera propunha a “construcción de una hermenêutica,
un gesto de descolonizar. Pensar el paisaje del suelo que pisas, un entorno a lo cuál tiene

foto, e o senhor lhe disse que não, que não se arrumasse, que estava bem assim como estava, e ele tirou uma foto
e foi isso, nós dois fomos embora. Lembrei-me desta passagem quando eu estava escrevendo esta crônica sobre a
ideia do Aymara, e me veio à mente justo o que Walter Benjamin disse sobre a realidade ser diferente nos olhos
da câmera, eu acho que este exemplo da minha infância com minha mãe mostra claramente essas palavras que
Benjamin disse, não? Porque o senhor disse: ‘Não, não se arrume, assim está bem’, e eu comecei a pensar ‘Estava
bem pra quem?’ Porque minha mãe, ao saber que era uma foto, queria sair bem, queria sair de sua maneira de ser
apresentável, agradável, mas para a outra pessoa, que estava tirando a foto, provavelmente, não sei porquê, porque
era uma imagem pitoresca e casual de uma pessoa em El Alto daqueles tempos e, bem, ele tirou do seu modo, mas
minha mãe não queria sair assim.”
130
“Acredito que este sujeito, quando tirava fotos de si mesmo, usava seus próprios critérios para escolher a melhor
foto”
80

relación”131, um processo de des-hierarquizar os olhares e a construção de uma Mirada Salvaje,


que para Silvia Rivera representa um olhar vinculado aos demais sentidos do corpo.

Silvia Rivera apresentou o ch’ixi a partir das preocupações com a construção da imagem.
O ch’ixi é mostrado por ela, como um mestiço com muita afinidade com o índio, neste momento
perguntei a ela como poderia definir as duas “identidades limites” que constituem o ch’ixi, índio
e europeu, ela me respondeu que não se trata de identidades, mas identificações acionadas em
momentos históricos específicos. O ch’ixi, explica ela, é um choque de contrários, energizante.
Esclareceu ainda, que esta palavra em Aymara representa animais, “que son de arriba, pero
también de abajo”132, como sapos, serpentes, lagartos, que para Silvia Rivera representam o
caos do mundo de baixo, manqapacha.

A apresentação do ch’ixi vinculado à imagem destes animais, me trouxe à memória


alguns eventos do meu campo. Quando conheci Roger Chambi, apresentei meu interesse em
compreender o que seria a categoria ch’ixi, não somente através do Colectivo e da perspectiva
de Silvia Rivera, mas a partir de um mundo Aymara afastado destas discussões acadêmicas.
Roger me relatou que, para os aymaras, ch’ixi representa animais detestáveis: “Que no tiene un
color definido, no es algo que se quiere”133, exemplificando o sapo como um destes animais.
No entanto, justamente este animal tornou-se muito presente em contextos simbólicos durante
minha estadia em campo. Em um evento, Roger Chambi me presenteou com um pequeno sapo
lapidado em pedra, segundo ele, este elemento atrairia fortuna, tanto no sentido de riqueza,
quanto no sentido de sorte. Em outra ocasião, caminhávamos entre os postos de yatiris, próximo
ao Sagrado Coração de Jesus (praça em que foi enterrado o coração de Tupak Katari e
posteriormente construída uma estátua de Cristo), quando avistei um sapo de cimento com cerca
de um metro de altura e o acariciei, “Es el sapito de la fertilidad!”134, disse Roger rindo,
percebendo minha expressão preocupada enquanto tirava rapidamente a mão da estátua. Figuras
de sapos estavam em eventos como as Alasitas ou sendo vendidas por aymaras Tiahuanacotas
na saída do Sítio Arqueológico de Tiawanaku, “Comprate señorita, son los animales
fundadores de la civilización”135, me dizia uma vendedora chola tentando me convencer a

131
"construção de uma hermenêutica, um gesto de descolonizar. Pensar a paisagem do solo em que pisa, um
ambiente ao qual tem relação"
132
“que são de cima, mas também de baixo”
133
“Que não tem uma cor definida, não é algo querido”
134
“É o sapinho da fertilidade”
135
“Compra senhorita, são os animais fundadores da civilização”
81

comprar uma pedra em que estavam lapidados um sapo, uma serpente e um lagarto, exatamente
os animais ch’ixis, assim lidos por Silvia Rivera Cusicanqui.

Associando o abigarrado de Zavaleta Mercado, como condição de heterogeneidade


temporal que necessita ser superada, com a explicação da categoria ch’ixi, Silvia Rivera
Cusicanqui explica que o ato de fotografar também é uma construção ch’ixi, quando existe um
reconhecer-se como intruso e um exercício de superação desta contradição ao dar-se conta de
que o olhar é recíproco. A fotografia, para Silvia Rivera, cria memórias, mas também
esquecimentos, quando define o que deve ser lembrado, por este motivo se torna um artifício
da temporalidade, formando narrativas e representações dos objetos desejados.

Existem algumas leituras da mestiçagem que Silvia Rivera afasta da mestiçagem ch’ixi,
naquela mesma aula ela definiu as perspectivas de Bolívar Echeverría, que pressupõe o
desaparecimento do índio, e de Martín Barbero, que pensa a mestiçagem como fusão em uma
análise histórica, como um pa-chuyma (em Aymara significa “dois corações”, pa é um prefixo
vinculado ao número dois que em Aymara é paya), uma divisão de dois mandatos na qual um
é cumprido à medida em que trai o outro. Essa divisão, para a autora, é a paralisação do sujeito
mestiço que não suporta uma visão do positivo contido na própria oposição.

Durante o curso, fomos visitar alguns museus localizados em La Paz. Nos encontramos
no Museo de la Revolución de 1952, Silvia Rivera nos explicou as iconografias nas paredes,
pintadas pelos muralistas Miguel Alandia Pantoja e Wálter Sólon Romero. Analisando as obras
de Miguel Alandia Pantoja, em uma parte do mural que parecia retratar as vitórias da Revolução
de 1952, havia uma imagem de um homem com traços aymaras saindo da Puerta del Sol, objeto
arqueológico encontrado em Tiwanaku, com os punhos fechados e diante deste, como símbolo
da Revolução, uma mulher branca com um bebê branco nos braços elevados, ao seu lado, duas
pessoas oferecem comida e “glórias” à imagem da criança.

Silvia Rivera havia solicitado uma apresentação final do curso em formato de imagem,
montagem ou ato estético. O mural de Pantoja não saia da minha cabeça e decidi associá-lo à
uma imagem muito discutida acerca da mestiçagem no contexto brasileiro, “A redenção de
Cam”, obra de Modesto Brocos, artista espanhol que retratou sua visão acerca da mestiçagem
no Brasil no princípio do século XX. A obra de Brocos, representa uma criança nos braços de
uma mãe negra, do lado esquerdo sua avó preta com as mãos ao alto parece agradecer o
embranquecimento do neto e, à direita, um homem branco sentado demonstra satisfação ao ver
o filho. A ideia de redenção no processo de mestiçagem, mais especificamente biológico nos
82

dois casos, parece estar presente neste momento histórico boliviano, em especial com a negação
nas pautas da Revolução em reconhecer os índios e suas especificidades de organização
territorial e política. Não é meu objetivo aqui, aprofundar a análise entre o processo de
mestiçagem brasileiro e boliviano, no entanto, a partir das obras iconográficas, podemos
perceber como existe uma relação entre os discursos de identidade nacional. É este o tipo de
mestiçagem que Silvia Rivera propõe combater.

FOTO 5. Silvia Rivera Cusicanqui no


Museo de la Revolución de 1952 – Foto
minha136

FOTO 6. La Puerta del Sol, sítio


arqueológico de Tiwanaku – Foto
minha

Um Mundo Ch’ixi é possível?

O último livro de Silvia


Rivera Cusicanqui, lançado em
2018, “Un mundo ch’ixi es
posible”, é o primeiro que trata
mais detalhadamente da
proposta de mestiçagem feita pela autora. Em seus trabalhos anteriores Ch’ixinakax utxiwa:

136
Foto tirada durante a visita feita ao Museu da Revolução de 1952. Neste momento, Silvia Rivera expliava a
pintura de Pantoja nas paredes superiores.
83

Una reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores (2010), La identidad ch’ixi de un


mestizo: En torno a La Voz del Campesino, Manifiesto anarquista de 1929 (2011) e La
universalidad de lo ch’ixi: miradas de Waman Poma (2016), a autora utilizava a categoria
associando-a a sujeitos como Waman Poma de Ayala e Luis Cusicanqui, no entanto, não
apresentava sua gênese e tampouco uma definição densa do que seria essa mestiçagem.

O que chama a atenção é que, dentre outros personagens, o livro é dedicado a Ayar
Quispe, filho de Felipe Quispe Huanca, indianista e um dos fundadores e militantes do EGTK.
Em uma entrevista realizada no dia oito de dezembro de 2018, em pé e de costas para a mesa
que eu permanecia sentada, Silvia respondeu segura à minha pergunta acerca do movimento
indianista: “no, no tuve prácticamente ninguna relación con los indianistas”137. Informação
que torna esta dedicatória mais interessante, uma vez que está direcionada à um dos indianistas
mais ortodoxos, em especial no tema de identidade. Em um fragmento do livro “Indianismo-
katarismo” de Ayar Quispe (2014), o autor deixa claro sua posição acerca do que concebe como
sujeito do indianismo e das identidades que em sua perspectiva estão em conflito:

Quiero advertir al lector que el presente trabajo no es la voz de un ‘indio


sumiso’ que está plenamente conforme o contento con la situación colonial,
sino es la voz de un ‘indianista’ que fue fundador y militante del Ejército
Guerrillero Tupak Katari (EGTK). Tampoco es la voz de uno que ostenta el
título académico de ‘licenciado’ o ‘doctor’; es la voz de un ‘indio agricultor’
que vive en la comunidad ‘Ajaría Chico’. Por lo tanto, la voz que emito es la
misma voz del indio oprimido y discriminado. En razón de esto, lo que escribo
solamente será comprendido por los que sufren y sienten la opresión. No
hablo para los q’aras, porque jamás van a estar de acuerdo con estas ideas
indianistas, que quieren la liberación del indio. Más bien ellos querrán
acallarlo y para este propósito unos comenzarán a ladrar como perros bravos
y otros gruñirán como cerdos inmundos; todo se hará, puesto que la
peligrosidad del indianismo es, desde luego, ya proverbial para el q’ara
opresor. (QUISPE, 2014, p.11)138

137
“Não tive praticamente nenhuma relação com os indianistas”.
138
“Quero alertar o leitor que este trabalho não é a voz de um 'índio submisso', que está totalmente satisfeito ou
feliz com a situação colonial, mas é a voz de um 'indianista', que foi um dos fundadores e membro do Exército
Guerrilheiro Tupak Katari (EGTK ). Nem é a voz de alguém que detém o título acadêmico de licenciado ou doutor;
é a voz de um 'índio agricultor' que vive na comunidade 'Ajaría Chico'. Portanto, a voz que estou emitindo é a
mesma voz do índio oprimido e discriminado. Por isso, o que escrevo só será compreendido por aqueles que sofrem
e sentem a opressão. Eu não falo para os q'aras, porque eles nunca concordarão com essas ideias indianistas, que
querem a libertação do índio. Em vez disso, eles vão querer silenciá-lo e, para esse fim, alguns começarão a latir
como cães bravos e outros vão rosnar como porcos sujos; tudo será feito, já que o perigo do indianismo é,
evidentemente, já proverbial para o q'ara opressor.”
84

No desenrolar de seu livro, Ayar Quispe defende uma identidade índia que discrepa com
a possibilidade de uma mestiçagem descolonizadora. O autor define neste fragmento, que seu
texto só pode ser compreendido por quem sofre a opressão colonial, a leitura do nós como
jiwasa, atribuída por Silvia Rivera a Luis Cusicanqui, está presente nas palavras de Quispe,
sendo portanto plausível, estabelecer possíveis diálogos a partir desta dedicatória que Silvia
Rivera faz à Ayar Quispe. A própria imagem de Ayar Quispe no contexto nacional sustentando
a categoria índio enquanto sujeito político pode dar algumas pistas deste diálogo, se o ch’ixi é
a identidade que evidencia seu “lado índio”, os trabalhos indianistas de positivação do sujeito
índio podem fornecer bases importantes para esta mestiçagem descolonizadora de Silvia
Rivera.

Silvia Rivera Cusicanqui (2018), por outro lado, começa a sua defesa de uma
mestiçagem descolonizadora mostrando as diferenças existentes entre o ch’ixi e a proposta
abigarrado de Zavaleta Mercado, a autora afirma que a “camisa de força” em Mercado, deu-se
quando este associou o estado-nação com revolução/renovação. Contrariamente ao proposto
como abigarrado, a epistemologia ch’ixi é apresentada como um esforço de superação dos
binarismos hegemônicos, esmiuçando a heterogeneidade que constitui as sociedades (RIVERA
CUSICANQUI, 2018, p.17).

Outra categoria que representa a epistemologia ch’ixi é a temporalidade, segundo Silvia


Rivera, a temporalidade Aymara de um pensar qhipnayra, ou seja, “caminando con el pasado
ante sus ojos y el futuro en sus espaldas”139 (RIVERA CUSICANQUI, 2018, p.22)140, é um
exercício de consciência do presente (aka pacha) como taypi, que em Aymara significa ponte
ou encontro, que não se funde tornando-se um terceiro elemento, mas está em relação com as
contradições e oposições. As oposições estruturadas por um pensar qhipnayra, são tecidas em
processos descolonizadores, possibilitando a articulação de passados e presentes índios,
femininos e comunitários “en un tejido ch’ixi, un mestizaje explosivo y reverberante,

139
“Caminhando com o passado diante dos seus olhos e o futuro nas suas costas”
140
A autora apresenta em seus primeiros textos (1995), o nayrapacha como um exercício muito próximo do que
ela vai apresentar mais tarde como qhipnayra, isto se dá porque os dois conceitos carregam sentidos
complementares, o nayrapacha é metafórico e interpretativo, mas é apresentado especialmente como uma
ferramenta para “caminhar pelo aqui-agora do cotidiano” (RIVERA, 2015, p.207). Segundo Rivera, a partir do
nayrapacha é possível resgatar símbolos de outras culturas em termos próprios, um exemplo é a apropriação feita
pelos aymaras das palavras Deus e Jesus, retirando o maiúsculo das primeiras letras e modificando os sentidos que
estas palavras têm para a cultura ocidental. Já o qhipnayra (qhipha como costas e nayra como olhar), é um
exercício de caminhar pelo presente, carregando o futuro nas costas: qhip nayr untasis sarnaqapxañani. Ambos
conceitos têm relação com a temporalidade Aymara, o nayrapacha movimenta os sentidos no cotidiano e o
qhipnayra demonstra que a construção de sentidos se dá no “caminhar pelo akapacha”, tempo presente, que se
constrói na constante relação com os outros tempos.
85

energizado, por la fricción, que nos impulse a sacudir y subvertir los mandatos coloniales de
la parodia, la sumisión y el silencio” (RIVERA CUSICANQUI, 2018, p.86-87)141.

A perspectiva de um pä chuyma, aparece vinculada à ideia double mind de Gregory


Batenson (1987), uma forma de lidar com as contradições apresentadas pelos processos de
modernização econômica e a reativação do jugo colonial, a partir deste pä chuyma, o índio é
lido como moderno142, sujeito de um mundo ch’ixi que se nutre das aporias da história,
possibilitando viver as contradições. Mas existe também um pä chuyma histórico, que
determina a herança de uma mestiçagem colonial andina, para explicar essa outra leitura double
mind a autora se debruça sobre a categoria bovarysmo, utilizada por Franz Tamayo em seu livro
“La creación de la pedagogia nacional” (1910). Para Tamayo, os bovarystas eram intelectuais
que importavam teorias francesas para aplicar como modos de ensino-aprendizagem na Bolívia,
práticas em total desacordo com as relações sociais que se desenvolviam em território boliviano.
Tamayo constrói uma crítica ao pensamento hegemônico de sua época, Silvia Rivera transfere
esta crítica à intelligentsia boliviana atual não dialógica e que mantem sua hegemonia através
da palavra escrita.

Já a crítica estruturada por Silvia Rivera aos decoloniais, estabelece que estes últimos
não sabem lidar com as contradições presentes no intelectual colonizado, durante a entrevista,
Silvia Rivera comenta que os mesmos são uma “moda essencialista”: “consideran que los
índios son colonizados y que solo ellos son sujetos de uma descolonización, descalifican a los
mestizos y yo creo que es una posición muy esencialista y despolitizada” (Entrevista, 08 de
dezembro 2018)143. Em todos os discursos e escritos da autora, notei uma recusa a qualquer
essencialização.

O que cria a possibilidade de um mundo ch’ixi, para Silvia Rivera, como horizonte de
transformação emancipatória, é um “viver em meio de mandatos opostos” um equilíbrio entre
diferenças irredutíveis, seja entre homens e mulheres, seja entre índixs e mestizxs (RIVERA
CUSICANQUI, 2018, p.56). Como epistemologia, o ch’ixi é um modo de construir
conhecimento descolonizador. Em Aymara existem duas formas de traduzir a palavra “pensar”,

141
"Em um tecido ch'ixi, uma mestiçagem explosiva e reverberante, energizada, pela fricção, que nos impele a
abalar e subverter os mandatos coloniais da paródia, submissão e silêncio"
142
Silvia Rivera define a diferença entre modernização e modernidade índia, a primeira ordena um apagamento da
índia/índios interior, enquanto a segunda se refere ao tecido cotidiano e as lutas históricas das comunidades que
sobreviveram ao assalto do capital e do estado (RIVERA, 2018, p.38-39).
143
"consideram que os índios estão colonizados e que só eles são sujeitos de uma descolonização, desqualificam
os mestiços e creio que é uma posição muito essencialista e despolitizada"
86

a primeira é Lup’iña, como um iluminar, pensamento individual, e a segunda é Amuyt’a, um


pensamento coletivo, que segundo Silvia Rivera, é um pensar com o chuyma
(coração/entranhas). A epistemologia ch’ixi, assim, está vinculada a um exercício amuyt’awi
(dar-se conta), estruturação de uma forma de pensar, de construir conhecimento, vinculada às
aporias.

Exemplo de uma leitura a partir da epistemologia ch’ixi, é a compreensão da palavra


“desarollo” (desenvolvimento) de maneira qhipnayra, um jogo de duplo sentido. Primeiro
como um rollo (rolo), que constrói hegemonias de sentido, do que é uma determinada coisa
sem necessariamente questioná-la: “pues nadie que hable en contra del desarrollo consegue
trabajo en las instituciones del mundo ‘en vías de desarrollo” (RIVERA CUSICANQUI, 2018,
p.75)144. Segundo, pode ser lido em seu sentido historiográfico, Silvia Rivera relata que um
rollo na colônia era um espaço de tortura dos revoltosos, submetendo-os ao escárnio público,
em desenhos de Waman Poma de Ayala é possível perceber este rollo como instrumento
punitivo. Ambos sentidos, apontam para uma forma de disciplinamento de corpos não-dóceis,
como tentativa de aniquilação do múltiplo.

CORREGIMIENTO
CORREGIDOR AFRENTA
AL alcalde ordinário por dos
huevos que no le da mitayo
Províncias
como
FIGURA 3. (GUAMAN
POMA DE AYALA, 1615,
p.499)

144
"Ninguém que fala contra o desenvolvimento vai conseguir trabalho nas instituições do mundo 'em vias de
desenvolvimento'."
87

ALCALDES
COMO LE CASTIGA EL
CORREGIDOR
al pobre del alcalde ordinario de su
majestad
dale
trae dos huevos que falta
ay por amor de dios
como
FIGURA 4. (GUAMAN POMA DE
AYALA, 1615, p.796)

Nas duas imagens feitas por Guaman Poma de Ayala no começo do século XV, é
possível perceber uma relação de violência do corregidor, figura de um funcionário real
responsável pela parte jurídica da colônia, para com autoridades indígenas por falta de dois
ovos no pagamento de tributos à coroa. Explicando o abuso dos corregidores, Waman Poma de
Ayala relata:

que los dichos corregedores y padres y encomenderos quieren muy mal a los
indios ladinos que saben leer y escribir, y más si saben hacer peticiones por
que no le pidan en la residencia de todo los agravios y males y daños; y, si
puedes, le destierra del dicho pueblo en este reino. ((GUAMAN POMA DE
AYALA, 1615, p.495)145

Waman Poma de Ayala utiliza o artifício da palavra escrita vinculada à iconografia para
relatar ao rei da Espanha, Felipe III, as arbitrariedades sofridas pelos indígenas por parte dos
responsáveis pela justiça. Corregir pode ser traduzido ao português como sinônimo de corrigir,

145
“que os referidos corregedores e padres e encomenderos não gostam dos índios ladinos que sabem ler e escrever,
e mais se souberem fazer petições para que não peçam na residência de todas as queixas e males e prejuízos; e, se
puder, expulsá-los da comunidade mencionada neste reino”
88

neste caso, punir e submeter aqueles que não estejam de acordo com a hierarquia colonial.
Waman Poma de Ayala é caracterizado por Silvia Rivera Cusicanqui como ch’ixi. Durante a
entrevista com a autora, ela me relatou: “Guaman Poma es precisamente la identidad ch’ixi es
un indio colonizado, pero donde luchan los dos contrarios permanentemente, en su texto está
todo entremezclado y yuxtapuesta la parte colonizada y la parte libre.” (Entrevista, 08 de
dezembro de 2018)146. Em uma das aulas do curso de Sociologia da Imagem, Silvia Rivera citou
um trabalho escrito pela antropóloga Alison Spedding junto ao Taller de Historia Oral Andina
(THOA), o livro de literatura “Manuel y Fortunato”, foi feito a partir de histórias orais de
aymaras das comunidades que o THOA teve acesso. Na narrativa do livro é possível visualizar
uma imagem de Waman Poma de Ayala que dialoga com a constante disputa pä chuyma de
Silvia Rivera. A descrição estética de “Felipe”147 aparece na narrativa quando este jovem se
depara com os dois protagonistas do livro em um bar.

Al igual que ellos llevaba unku148 corto, camisa con valona, calzones
acampanados, abarcas y sombrero, pero a diferencia de los Quiruas, todo,
aunque muy limpio, estaba hecho de remiendos. Los calzones eran el
cementerio de diez vestidos de telas diferentes y el unku mostraba docenas de
zurcidos de hilos y habilidades variosísimas. Sólo el sombrero era algo nuevo,
aunque evidentemente barato. Le faltaban dos dientes de adelante y cabello
cortado al oído era más blanco que gris. (SPEDDING, 1997, p.228-229)149

Enquanto tomavam chicha, bebida a base da fermentação de milho, o personagem


Felipe conta aos companheiros que vai até onde a Santa Igreja o envie. Manuel diz que está
lutando pelo cacicazgo contra um sobrinho mestiço, por isso viajam até Lima para participar
de uma Audiência. Felipe, neste fragmento representado como “el desconocido” – “o
estranho”-, diz: “’Estos mestizos son la plaga y el castigo del reino’, dijo, ‘Gente bellaca,
pleitistas, mala casta…¡salud!” (SPEDDING PALLET, 1997, p.229)150. Relata também, seu
vínculo com o incário através de uma genealogia familiar, contando os problemas que passou

146
"Guaman Poma é precisamente a identidade ch'ixi é um índio colonizado, mas onde os dois opostos lutam
permanentemente, em seu texto está tudo misturado e justaposto a parte colonizada e a parte livre."
147
Modo pelo qual é referenciado Felipe Waman Poma de Ayala no livro.
148
Manta andina usada por aymaras e quéchuas.
149
“Como eles, usavam um unku curto, uma camisa com uma carteira, calças boca de sino, abarcas e chapéu, mas,
ao contrário dos Quiruas, tudo, embora muito limpo, era feito de remendos. As calças eram o cemitério de dez
vestidos com tecidos diferentes e o unku mostrava dezenas de fios de cerzidos e muitas habilidades diferentes.
Apenas o chapéu era algo novo, embora obviamente barato. Nele faltavam dois dentes da frente e o cabelo cortado
ao ouvido era mais branco que cinza.”
150
"Esses mestiços são a praga e o castigo do reino", ele disse, "pessoas loucas, pleitistas, casta ruim ... saúde!"
89

pela falta de dinheiro para pagar a justiça, sendo retirado o cacicazgo de seu pai, “La plata no
más manda”.

Así me han hecho a mi, vieras, yo que soy señor legítimo de mi tierra, nieto
de Topa Inca Yupanqui, porque mi madre Doña Juana Curi Ocllo fue hija del
Inca, Coya y señora, reina deste reino, y mi padre Don Martín Guamán
Mallqui de Ayala, segunda persona del mismo Inca. El príncipe Don Melchor
Carlos Paullo Topa Wiracocha Inca, el quien fue a Castilla, fue mi tío y los
demás señores Incas mis tíos, primos son. Y mira como hey terminao, tan
pobre y roto, solo con mis ochenta años encima, todo por haber salido de mi
tierra para servir a Dios y Su Majestad, dejando casa y hacienda…
(SPEDDING PALLET, 1997.p.229-230)151

No desenrolar da história, Felipe lhes repreende pelo consumo da folha de coca, “Y qué
hacen ustedes con esa hoja del diablo?”152 (SPEDDING PALLET, 1997.p.231). Diante da
reposta de que se tratava da coca doce dos Yungas, Felipe demonstra interesse e pijcha
acompanhado por lejía153, enquanto relata seus pesares. Em um determinado momento, Felipe
é surpreendido pela figura de um padre conhecido que grita seu nome.

El desconocido alzó su sombrero, que había caído al suelo, lo limpió


apresuradamente del polvo y los restos de coca y se acercó al padre, quien
salió nuevamente. Fortunato se levantó y salió a la calle a desaguar. Vio a
los dos alejándose, el cura sermoneando airadamente y el desconocido,
sombrero en mano, agachando la cabeza. “Sí, sí, padre, me han hecho
tomar…”

“Y cuántas veces me has jurado que has dejado de beber? ¡No te puedo
dejar ni media hora que vayas a la chichería! Si te encuentro borracho
una vez más te voy a botar sin misericordia”
“Sí padre… discúlpame nomás padre…” (SPEDDING PALLET, 1997,
p.232-233)154

151
“Assim eles fizeram comigo, você viu, eu sou o legítimo senhor da minha terra, neto de Topa Inca Yupanqui,
porque minha mãe Doña Juana Curi Ocllo era a filha do Inca, Coya e senhora, rainha deste reino, e meu pai Don
Martín Guamán Mallqui de Ayala, segunda pessoa do mesmo Inca. O Príncipe Don Melchor Carlos Paullo Topa
Wiracocha Inca, aquele que foi para Castela, era meu tio e os outros senhores incas meus tios, são primos. E olha
como eles terminaram, tão pobres e quebrados, somente com meus oitenta anos no topo, tudo por ter deixado
minha terra para servir a Deus e Sua Majestade, deixando a casa e a propriedade ...”
152
“E o que vocês fazem com essa folha de coca do diabo?”
153
Acompanhamento para o pijchar coca à base de menta, estevia e outros produtos.
154
"O estranho levantou o chapéu, que caíra no chão, limpou-o apressadamente da poeira e dos restos de coca e
aproximou-se do padre, que saiu novamente. Fortunato se levantou e foi até a rua para desaguar. Viu os dois se
afastando, o padre falando furiosamente e o estranho de chapéu na mão, inclinando a cabeça. 'Sim, sim, padre, eles
me fizeram beber ...'
'E quantas vezes você me jurou que parou de beber? Não posso te deixar nem meia hora para ir ao chichería! Se
eu te encontrar bêbado mais uma vez eu vou te mandar embora sem piedade'
90

As contradições presentes na figura descrita de Guaman Poma de Ayala, representam a


double mind que este sujeito carrega no contexto da colonização; o repúdio às práticas aymaras,
demonstra a luta permanente de contrários sustentada pelo personagem histórico, motivos pelo
qual Silvia Rivera o denomina ch’ixi. Para ela, a utilização que o cronista faz de metáforas e
alegorias é um exercício descolonizador e ch’ixi, em especial porque a partir destes mecanismos
é possível expressar verdades históricas, não somente com o intuito de contar o que ocorreu,
mas de interpretar os feitos históricos.

Silvia Rivera explica que antes de poder denominar essa epistemologia, que em muitos
momentos torna-se identidade quando utiliza o verbo “ser”, ela definia suas reflexões como
“esa mezcla rara que somos” (RIVERA CUSICANQUI, 2018, p.79). No texto “La identidad
ch’ixi de un mestizo”, analisa o manifesto anarquista de Luis Cusicanqui, no qual ocorre um
choque de contrários. Esta perspectiva reflete no significado da palavra ch’ixi como a cor cinza,
que à distância se vê apenas como cinza, mas quando aproximado é possível perceber os pontos
que o compõe, brancos e negros, um cinza mosqueado. Representa os animais que podem
“atravessar fronteiras”, ou seja, que encarnam polos opostos de maneira reverberante (RIVERA
CUSICANQUI, 2018, p.79). A autora aprendeu a palavra ch’ixi de Victor Zapana, um escultor.
“Ch’ixinakax utxiwa”, disse ele à Silvia Rivera, explicando o poder destes animais que são
duas coisas ao mesmo tempo.

No entanto, existem palavras muito semelhantes na língua Aymara, separadas apenas


por pronunciação ou fonética. Um exemplo é o chhixi aspirado e o ch’ixi explosivo, como
demonstra a Figura II, o primeiro representa o inconsistente, insubstancial, enquanto o segundo
representa um cinza mosqueado. Silvia Rivera associa a palavra chhixi com o pä chuyma (dois
corações) do mestiço que tenta superar seu “índio interior”, o mestiço do discurso nacional.

No entanto, quando Silvia Rivera Cusicanqui situa um “índio interior” como passível
de resgate pelo ch’ixi, não fica determinado exatamente o que ela compreende como índio. Em
um fragmento do livro a autora desenvolve acerca da epistemologia indígena, explicando o que
a diferencia, em suas palavras: “una epistemologia en la que los seres animados o inanimados
son sujetos, tan sujetos cuanto los humanos, aunque sujetos de muy otra naturaleza” (RIVERA
CUSICANQUI, 2018, p.90)155. A evidência feita à essa epistemologia, parece uma forma de

'Sim padre ... desculpe-me apenas padre ...'."


155
"Uma epistemologia em que seres animados ou inanimados são sujeitos, tão sujeitos como seres humanos,
embora sujeitos de natureza muito diferente"
91

resgatar elementos para a construção de uma epistemologia ch’ixi, um exercício que distingue
esses “mundos alternos”, como propõe a autora, do antropocentrismo do atlântico norte.

Em muitos momentos do meu campo essa epistemologia indígena apresentada por Silvia
Rivera tornou-se perceptível. Como já mencionado aqui, Dona Hilda Chambi sempre se
incomodava quando alguém da família jogava batatas no lixo: “La papa va llorar!”, dizia. Em
uma tarde conversávamos diante da televisão enquanto preparávamos a massa para a produção
de churros, quando Dona Hilda reclamou de dores nas pernas, ela explicou que sentia tantas
dores porque a família não queimava mais mesas para as doze awichas na comunidade de
Ch’ojñapata. Quando perguntei quem eram essas awichas (avós), ela me respondeu contando
a história de 12 irmãs que viviam na região em que hoje se encontram as comunidades de
Ch’ojñapata e Patapatani, um llanqha (espírito maligno) havia se apaixonado pelas irmãs e
elas se tornaram awichas, vivendo desde então debaixo de uma montanha. Dona Hilda me
relatou que há muitos anos, sua avó foi avisada por um yatiri local, que as awichas estavam
irritadas pelo esquecimento que sofriam por parte dos habitantes da comunidade, desde então,
sua família sempre queimava mesas às awichas consultando o yatiri sobre o que elas queriam
receber. Há alguns anos esse yatiri faleceu e nenhum outro vivia na região, o que fez com que
as awichas retornassem ao esquecimento: “Por eso tengo dolores fuertes hoy, porque mi mamá
ha olvidado las awichas. Ellas nos están castigando!”156.

Uma das perguntas que me chamava mais a atenção enquanto percorria as páginas dos
livros de Silvia Rivera e durante suas aulas no Colectivo, era justamente acerca da identidade
Aymara, à qual a autora sempre faz referência na construção da sua teoria. No diálogo que
tivemos em dezembro de 2018, perguntei se o ch’ixi apagava a identidade Aymara157 quando
se apresentava enquanto identidade, a autora me respondeu que o ch’ixi era o reconhecimento
do indígena e não seu apagamento, era a depuração das duas identidades em conflito, que
formam um choque mais frutífero que o choque colonial.

Para entender um pouco mais acerca da crítica que Silvia Rivera faz às teorias da
mestiçagem, apresentarei uma análise sobre as teorias da mestiçagem, exercício presente no
próximo capítulo.

156
“Por isso hoje tenho dores fortes, porque minha mãe esqueceu as awichas. Elas estão nos castigando.”
157
Quando falo de “identidade Aymara” me refiro sempre à identidade enquanto identidade política, como situado
no primeiro capítulo, e não como uma entidade homogênea e fixa.
92

CAPÍTULO III: As atuais teorias da mestiçagem na Bolívia

Neste capítulo estão presentes alguns trabalhos sobre o tema da mestiçagem na Bolívia
desenvolvidos nos últimos anos, estas investigações dialogam com referenciais ditos
“clássicos” da mestiçagem boliviana, como Alcides Arguedas com seu livro Pueblo Enfermo,
e Franz Tamayo em sua obra mais conhecida La creación de la Pedagogia Nacional. Analisarei
também o trabalho de Carlos de Mesa em La Sirena y el Charango, dialogando com relatos
importantes do meu trabalho de campo junto à família Chambi. Além disso, há aqui dois sub-
capítulos discutindo temas muito importantes que atravessam a mestiçagem boliviana no
território andino, a chola e a construção da choledad como discurso de mestiçagem.

La Sirena y el Charango158
Uma das análises mais atuais acerca do processo de mestiçagem na Bolívia, e que é
contemporânea aos trabalhos de Silvia Rivera Cusicanqui, é o livro “La Sirena y el Charango”,
do historiador Carlos D. Mesa Gisbert. Apresento aqui um pouco da perspectiva de Carlos D.
Mesa acerca do que é a mestiçagem na Bolívia, situando suas críticas a algumas leituras da
“identidade boliviana” a partir da história, religiosidade e demais práticas culturais,
especialmente da Bolívia andina.

O autor começa posicionando a mestiçagem em uma leitura histórica, sempre


preocupado com duas categorias: nação e estado. Para ele, a mestiçagem na Bolívia foi muito
menos intensa que em outros países da América Latina, isso se dá pela migração inexpressiva
por conta da localização geográfica dos povos, o que estabelece o cenário principal de análise
do autor, a Bolívia andina. Essa assertiva não está somente nesta análise, mas no próprio título
do livro de Mesa, a sereia e o charango, no qual ele faz referência aos símbolos localizados na
catedral de Potosí e que representam a mescla entre duas culturas, o europeu e o índio andino.
Sobre essa mescla o autor diz: “En los hechos se ha producido una mutua ‘contaminación’,
una coexistencia subterránea pero tolerada de cosmovisiones” (MESA GISBERT, 2013,
p.31)159.

158
Cheguei à esta referência graças a Abraham Delgado Mancilla, em uma de nossas conversas sobre a mestiçagem
ch’ixi de Silvia Rivera Cusicanqui.
159
"Na verdade, houve uma 'contaminação' mútua, uma coexistência subterrânea, mas tolerada de cosmovisões"
93

Em defesa de uma leitura de mestiçagem própria, Carlos D. Mesa estrutura críticas às


teorias “clássicas” da mestiçagem na Bolívia, me refiro aos trabalhos de Alcides Arguedas e
Franz Tamayo em princípios do século XX. A obra mais criticada de Alcides Arguedas é Pueblo
Enfermo (1909), nela o autor lê a mestiçagem como um abraço entre a raça branca e a raça dos
índios, em suas palavras o mestiço traz como herança:

[...] de líbero su belicosidad, su ensimismamiento, su orgullo y vanidad, su


acentuado individualismo, su rimbombancia oratoria, su invencible
nepotismo, su fulanismo furioso y del indio, su sumisión a los poderosos y
fuertes, su falta de iniciativa, su pasividad ante los males, su inclinación
indominable a la mentira, el engaño y la hipocresía, su vanidad exasperada
por motivos de pura apariencia y sin base de ningún gran ideal, su
gregarismo, por último y, como remate de todo, su tremenda deslealdad160
(ARGUEDAS, 1909, p.56)161

Já Franz Tamayo, segundo Carlos D. Mesa, sofre uma grande influência do idealismo
alemão em sua leitura da identidade mestiça. Para Tamayo a força vital da mestiçagem vem do
índio, por suportar todas as dificuldades da paisagem andina. No livro La creación de la
Pedagogía Nacional (1910), Tamayo determina as influências de cada identidade na formação
do sujeito mestiço, sendo a herança do branco a inteligência e a facilidade compreensiva,
enquanto do índio é herdada a vitalidade, como explicação de sua sobrevivência ao dificultoso
cenário andino. Tamayo ainda pensa o índio em suas limitações de compreensão, para ele o
índio é capaz apenas de compreender a “coisa mesma”, quando se trata do inteligível. No
entanto, em sua análise do processo de mestiçagem que posteriormente se desenvolveria na

160
“[...] do líbero a sua belicosidade, a sua auto-absorção, o seu orgulho e vaidade, o seu individualismo acentuado,
o sua bombástica oratória, o seu nepotismo invencível, o seu fulanismo furioso e, do índio, a sua submissão aos
poderosos e fortes, a sua falta de iniciativa sua passividade diante dos males, sua inclinação indominável a mentir,
engano e hipocrisia, sua vaidade exasperada por motivos de pura aparência e sem nenhuma base ideal, seu gregário,
enfim e, no final de tudo, sua tremenda deslealdade”
161
Existem trabalhos sobre os discursos de mestiçagem no Brasil que podem dialogar com as perspectivas da
mestiçagem de Alcides Arguedas na Bolívia, a autora Giralda Seyferth (2002), apresenta as políticas de
branqueamento do Estado brasileiro até o Estado Novo, anos 1930, em especial no Sul do país, aliadas às leis de
imigração. A partir dos debates sobre a imigração, a autora situa a questão racial como um elemento que gravita
na preocupação do Estado e dos intelectuais com a entrada de determinadas nacionalidades. Para autores que
pensavam a mestiçagem como presente à constituição do Brasil, é o caso de Nina Rodrigues, o mestiço carregava
um desequilíbrio mental. Para Rodrigues, o predomínio de mulatos na população brasileira aparece como um
problema nacional, os mestiços de negros e índios são caracterizados por este autor (e por autores que ele
influenciará) como biologicamente inferiores. Entre os anos 1920-1940 Oliveira Vianna considerou que a
variedade racial e miscigenada do país deveria ser encarada como um problema nacional, a influência das raças
negras e índias determinaria a “configuração atual de um povo cromatizado e de baixa estatura (os tipos cruzados
ainda muito próximos das raças inferiores que ajudaram a formá-los).” (SEYFERTH, 2002, p.133). Para esta
perspectiva sustentada por Oliveira Viana a arianização da sociedade brasileira por meio da entrada de imigrantes
brancos (arianos) seria uma saída à “degradação racial”.
94

Bolívia, a personalidade do branco seria a que pereceria sobre a personalidade do índio contidas
no sujeito mestiço. Para Carlos D. Mesa, as análises de Arguedas e Tamayo não estão distantes
no sentido de que ambos sustentam uma leitura de falta de inteligência criativa do índio (MESA
GIBERT, 2013, p.36-37).

O objetivo de Mesa em voltar às análises do princípio do século XX é que, para o autor,


essas são as bases do atual subconsciente boliviano acerca da mestiçagem, bases especialmente
racistas. Assim, segundo Mesa, a identidade boliviana pode ser lida como uma superposição
enriquecedora. Para ele, existe uma problemática a ser solucionada no aprofundamento de
trincheiras identitárias que tentam tirar a legitimidade dos mestiços que: “a lo largo de la
historia formaron parte del corpus nacional boliviano.” (MESA GISBERT, 2013, p.43)162.

Sobre o que Mesa entende por mestiçagem, existe uma contradição intrínseca em seu
texto, a mestiçagem ora aparece como uma carga biológica, ora com uma descrição puramente
cultural y étnica. Em alguns fragmentos, Mesa associa a mestiçagem a um processo de mescla
de sangue: “Porque está inevitablemente mesclada en nuestras venas y en nuestra cultura”
(MESA GISBERT, 2013, p.50)163. Utiliza, para enfatizar esta perspectiva na América Latina,
o trabalho de Carlos Fuentes Todos los gatos son pardos (1970), em que uma índia Malintzin
dá a luz ao seu filho e do “conquistador” Hernán Cortés no México, entre os pedidos da mãe
está: “sal, hijo de las dos sangres enemigas”164. Carlos D. Mesa, examinando o fragmento de
Carlos Fuentes chega à conclusão de que: “Ese es el terrible principio de esta América Latina
nuestra. Ese el sello de los hijos de una violación, y a la vez de una extraña seducción de
sangre, humo y violencia” (MESA GISBERT, 2013, p.48)165. Em passagens do livro, o autor
demonstra uma leitura mais poética dos processos de mestiçagem, aqui a utilização da palavra
seducción, para ler a violação sofrida pelas indígenas, parece harmonizar o processo de
violência colonial. Em outra passagem, o autor nega a existência das violações de mulheres
durante o processo colonial, sustenta que a mestiçagem é de caráter cultural mais do que étnico,
uma vez que grande parte da população não tem uma gota de sangue espanhol (MESA
GISBERT, 2013, p.193). Esta afirmação é a contradição do que o autor diz anteriormente acerca
do sangue nas veias do mestiço.

162
"Ao longo da história faziam parte do corpus nacional boliviano."
163
"Porque é inevitavelmente mesclada em nossas veias e nossa cultura"
164
“Sai, filho dos dois sangues inimigos”
165
"Esse é o princípio terrível desta nossa América Latina. O selo dos filhos de uma violação, e ao mesmo tempo
de uma estranha sedução de sangue, fumaça e violência "
95

A leitura harmônica da mestiçagem boliviana atinge outros patamares quando Carlos D.


Mesa analisa o que ele chama de simbiosis religiosa (MESA GISBERT, 2013. p.74)166. Para
ele, o Santo Tiago (Santiago), que chega da Espanha como “mata índios”, mescla-se ao ponto
de se fundir à divindade andina Illapa do relâmpago e do trovão, pontuando que o primeiro não
é mais dos católicos assim como o segundo não pertence mais aos aymaras ou incas. Outra
associação religiosa, e que dá o título ao livro, é a da sereia. Para Mesa, o mito pré-incaico de
Tunupa, divindade castigada por ter relações com duas mulheres-peixe do Titicaca (Qesintu e
Umantu), é fundido com a representação das sereias que sustentavam os europeus, em suas
palavras: “La sirena como tantos otros personajes y elementos que en su origen fueron o
europeos o indígenas, son ya referentes mestizos.” (MESA GISBERT, 2013, p.77)167.

O autor ainda faz uma análise acerca do Barroco, como expressão da identidade mestiça
e como resultado criativo da mescla de duas culturas. O artista plástico Raul Lara, para Mesa,
é a grande expressão artística deste Barroco, mas a preocupação de Mesa está mais vinculada
com a representação iconográfica e artística do que com uma hermenêutica destas
representações, um exemplo é a obra de Lara “Van Gogh en el altiplano”, uma imagem de Van
Gogh com sua “bola de coca” em uma bochecha, vestido de mineiro. No fundo da obra é
possível ver um nevado e diante de Van Gogh um sujeito de costas com seu ch’ullo parece estar
dialogando com a figura principal. Contudo, o grande mérito de Raul Lara parece ser o de trazer
o pintor holandês para a realidade dos mineiros de Oruro, sua terra natal.

Outro aspecto que para Mesa determina o processo de mestiçagem é a escrita, ou como
ele situa, a burocracia imperial espanhola. Para o autor, a massiva utilização por parte dos
indígenas da “América Andina” de selos em papéis e assinaturas para confirmar sua
autenticidade, é um símbolo do legado da palavra escrita espanhola, esse legado é evidenciado
para o autor como um elemento da mestiçagem. Para colocar em dúvida esse legado como
construção de uma identidade mestiça, relato um evento que aconteceu durante o meu trabalho
de campo no mês de outubro de 2018. Roger Chambi e eu fomos convidados para auxiliar na
organização do Primer Encuentro de Autoridades de Justicia de Abya Yala, na comunidade
Aymara de Parcopata, no decorrer do evento fui tomada como representante internacional em

166
Desenvolverei mais adiante um pouco da religiosidade andina que tive acesso, colocando os sujeitos
interlocutores e possibilitadores desta pesquisa em diálogo com as premissas de Mesa.

167
"A sereia, como tantos outros personagens e elementos que eram originalmente europeus ou indígenas, já são
referências mestiças "
96

favor da justiça originária e me fizeram falar algumas palavras que fomentassem a existência
do evento. O que enfatizo deste evento foi o último dia em que todas as autoridades de dezenas
de Ayllus me pediram para assinar o caderno que levavam, observei o caderno de uma das
mulheres autoridades que dialogou comigo no caminho que percorremos até Parcopata, nele
havia uma descrição detalhada de tudo o que foi apresentado durante as reuniões, a senhora
Aymara relatou que necessitava explicar tudo para a sua comunidade, porque estava ali como
representante, disse enquanto eu assinava seu caderno, que o cargo de autoridade não deveria
apagar os deveres que uma pessoa tem com a comunidade, é uma responsabilidade a mais que
se assume. Esse evento parece demonstrar que a apropriação da escrita entre os aymaras não
está desvinculada de sua relação com a comunidade, tampouco de sua própria ontologia, a
escrita se configura como um instrumento para consolidar e legitimar a responsabilidade que a
autoridade tem com o Ayllu.

Mesa associa a migração às cidades, que acontece já no período republicano, com um


processo intensivo de mestiçagem, determinando que a ruralidade é o único sinônimo territorial
de etnicidade.

Todos los Santos, Ñatitas e a suposta simbiose religiosa

Entre os dias 1 e 2 de novembro se realizam as mesas em memória dos mortos de cada


família, a data é conhecida como “Todos los Santos”, compreendi em todo o processo de
preparação desta celebração que a memória materializada nas mesas representa muito da
concepção Aymara sobre a morte, ainda que, como supõe Mesa Gisbert (2013), ela esteja muito
“relacionada” com um tipo de catolicismo, a complexificação desta relação me pareceu mais
clara entre esta data e a festividade das Ñatitas, que ocorre no dia 8 de novembro.

Uma semana antes do dia de Todos los Santos, Dona Hilda Chambi reúne alguns
componentes da família para a preparação de pães em um forno público. O lugar, localizado na
Avenida Costanera em El Alto, estava repleto de pessoas desde a madrugada do domingo
anterior ao dia de Todos los Santos. Aguayos coloridos e repletos de ingredientes, enfeitavam a
longa fila composta por crianças, adultos, jovens visivelmente irritados por terem acordado
cedo e cholas sentadas sobre suas polleras, aguardando o momento para sovar a massa que será
necessária na produção dos diversos tipos de pães que serão ofertados nas mesas aos seus
mortos. Dona Hilda me explicou, enquanto esperávamos na fila, que este ano fariam apenas três
97

arrobas de farinha, uma vez que não estávamos mais nos três anos após a morte de seu marido:
“Cuando una persona muere hay que hacer por três años una mesa grande, de un quintal de
harina, esa es la tradición!”168. Levamos todo um dia na preparação dos pães, separamos a
massa e deixamos que crescessem em grandes recipientes preparados pelos responsáveis do
forno público. O lugar era extremamente quente e com menos ar que o normal dos andes, uma
mesa central estava disposta para o corte das massas e para a preparação das T’ant’awawas169
pelos trabalhadores do forno, enquanto as famílias retiravam os pedaços de massa já
descansados e levavam para uma mesa externa, onde enchiam as empanadas de queijo
misturado com ají amarillo, o papel dos filhos, em geral, era cruzar as beiras das empanadas
delicadamente para que o queijo não vazasse dos pães, lembrando que a qualidade da estética
das empanadas, estava simbolicamente relacionada com o carinho que se sente pelo visitante170.

Mulheres mais solitárias e mulheres com muitas pessoas da família auxiliando na


preparação, a relação de prestígio estava aí estabelecida, Dona Hilda se vangloriava para outras
senhoras em Aymara: “Brasilanax purta” (Ela veio do Brasil). Impressionadas com a
possibilidade de uma estrangeira estar ali produzindo pães, em um forno público, as senhoras
sorriam com seus dentes de ouro demonstrando carinho pela minha presença, enquanto eu,
tentava sem muito êxito, encher as empanadas com queijo o mais depressa possível. Roger,
acostumado com a produção de pães, porque a família há anos possuía um forno na comunidade
de Achacachi, trançava as beiras das empanadas com rapidez e elegância.

Produzimos empanadas e sarnitas, pães redondos, enquanto Dona Hilda auxiliava o


corte das t’ant’awawas feitos pelos trabalhadores do forno. Escadas, coroas, cavalos e cholitas
como T’ant’awawas, cada um representando um suporte para o visitante que chegaria cansado
de sua viagem. Em grandes pedaços de latas posicionávamos cada oferenda para ser levada ao
forno, que era aquecido por mangueiras de fogo. Depois de vários minutos aquecendo eram
inseridas diversas latas no interior do forno, esperando não mais que dez minutos para que os
pães estivessem totalmente assados. Um trabalhador retirava com uma pá extremamente
comprida as latas do forno enquanto outro trabalhador, neste caso um menino de uns quatorze

168
"Quando uma pessoa morre, você tem que fazer uma grande mesa por três anos, de um quintal de farinha, essa
é a tradição!"
169
Em Aymara t’ant’a é traduzido como pão e wawa como criança, na tradição de Todos los Santos, esse é o pão
que será doado às crianças que virão rezar para os mortos, as t’ant’awawas são feitas em diversos formatos, como
cholitas, cavalos, homens aymaras com seus ch’ullos, todas elas representando os mortos. Nas t’ant’awawas são
inseridas carinhas de gesso de cholitas, de homens aymaras com seus ch’ullos e imagens de cavalos, dependendo
a figura que se deseja representar.
170
Aquele para quem fazem a mesa.
98

anos, despejavam os pães assados sobre os aguayos estirados pelas senhoras. Cada família era
responsável por levar algo que identificasse suas latas, no nosso caso, eram as latas com pedaços
de papelão da marca de produtos Kris.

FOTO 7. Empanadas que


produzimos para Todos los
Santos – Foto minha.

FOTO 8. T’ant’awawas
que serão oferecidas para
Don Ascencio Chambi,
do lado esquerdo pode-se
perceber os pedaços de
papelões Kris – Foto
minha.

Dona Hilda me deixou responsável por levar os pães no aguayo até a parte externa do
forno, neste espaço, muitas mulheres com suas wawas (crianças) estavam sentadas perto de
99

panos estirados no chão, esperando a chegada dos pães quentes para espalhá-los e esperar que
esfriassem. Os panos de Dona Hilda estavam em um canto que ela havia preparado, ela se
posicionou em uma das pontas esperando que eu trouxera as oferendas quentinhas. Quando
todas as prendas estavam mais frias sobre os tecidos, Dona Hilda juntou as quatro pontas
fazendo um embornal e cada um de nós carregou os pães cuidadosamente até a casa. O aroma
da massa, uma mescla de farinha de trigo com farinha de milho, perfumava o ambiente.

No decorrer da semana, parte dos pães foi consumida pela família, outra parte foi
presenteada aos seres queridos que vieram visitá-los, mas as oferendas principais foram
guardadas carinhosamente para a ilustre visita, que chegaria no dia primeiro de novembro.

Para compreender o significado de cada elemento da mesa, Roger me apresentou uma


microprodução cinematográfica independente, totalmente em Aymara, o título “Ajayu” pode
ser traduzido vulgarmente como “Alma”. A trama envolve a morte de um homem e sua filha
em um naufrágio do seu barco de totora171 no lago Titicaca, são feitas as ritualizações Aymara
para a morte e, quando a alma necessita traçar o caminho até a comunidade dos mortos,
atravessa muitos desafios, tendo que caminhar por montanhas e por terras áridas, a lógica é que
sempre que alguém morre, com ele devem ser enterrados pedaços de cana para que possa servir
de bastão no caminho, folhas de coca e álcool para a fadiga. As mesas aymaras para o dia de
Todos los Santos tem muita relação com a ideia de caminho ou ponte, Thaki, que as almas
cruzam para voltar às casas de seus familiares, cansados necessitam de água, comida, escadas
para subir em espaços altos e cavalos para cavalgar quando estiverem esgotados de caminhar,
todos esses elementos são representados nas mesas em forma de pães, produzidos pela própria
família.

A festividade de Todos los Santos tem início ao meio dia do 1 de novembro, é nesta hora
que chegam as almas. A mesa de Don Ascencio Chambi, o falecido esposo de Dona Hilda,
começou a ser preparada às 11:00, enfeitávamos tudo enquanto a filha mais velha preparava a
comida preferida do pai. Construímos a mesa com todos os elementos e no ápice, foi colocada
a foto do visitante. Roger me advertia: “Hay que acompañar el papá, no tenemos que dejarlo
solito!”172. Almoçamos juntos à mesa e passamos toda a tarde em família, conversávamos sobre
como foi Don Ascencio, vimos fotos antigas, assistimos filmes, era um momento em que a
família compartilhava tudo com o visitante, com sua presença.

171
Planta aquática utilizada por aymaras e quéchuas para a construção de barcos.
172
"Temos que acompanhar o pai, não o deixar sozinho!"
100

FOTO 9. Mesa de Todos los Santos para Ascencio Chambi Verástegui - Foto minha173

Exatamente às doze horas do dia seguinte era necessário “despachar” a alma, nesta
ocasião viriam familiares e pessoas estranhas à família para rezar ao morto, e em troca, receber
um pouco da comida que decorava a mesa. Saímos às ruas de Villa Adela, um sem número de
mesas eram dispostas na rua, desde a praça para muito além de onde a vista alcançava.
Caminhamos entre as mesas de muitas famílias, ali senhores, senhoras e crianças perguntavam
aos donos das mesas: “Se lo rezaré?”, com a afirmativa, os mesmos entoavam uma canção em
Aymara como oração para as almas:

Gloria angelay, cieluy angelay


Khitis awkima, sarakiristam
Khitis taykama, sarakiristam
San José tata, sawsinasathway
Virgen María, sawsinasathway
Kawkis jalanta, sarakiristam
Luxllulla mundutxa, taypi mundutxa
Sawsinasathway
Kimsa calvario, q’iwt’aniwayta
Kimsa calvario, q’iwt’aniwayta

173
Foto tirada antes da chegada do visitante, o prato preferido de Don Ascencio, bisté – carne cozida, batata em
tunta e caldo –, era preparado pela irmã mais velha.
101

Sawsinasathway, taywaway angelay174

Finalizada a entoada, os que recebiam junto aos que ofertavam diziam em uníssono:
“Que se reciba la oración”. Roger me explicava que a oração era um diálogo com a alma que
voltaria ao mundo dos mortos pelo caminho que percorreu ao morrer. Percebi que muitas das
pessoas que víamos em situação de rua, caminhavam de mesa em mesa para entoar a oração,
ao comentar isso com Roger ele me explicou: “La gente que reza, generalmente, es gente de
bajos recursos. Entre ninõs y personas mayores van a rezar a las mesas para obtener pan,
frutas, galletas y dulces. Esa fecha mucha gente vá encontrar alimento a cambio de oraciones.
El hacer la mesa en vía pública y ofrecer los alimentos a la población es un modo de
compartir!”175. Nosso objetivo era chegar até o Cemitério de La Paz, no entanto, levamos todo
o dia percorrendo as mesas de Villa Adela.

FOTO 10. Mesas de Todos los Santos


em Villa Adela - Foto minha

174
“Anjo de glória, anjo do céu
Quem é seu pai?, se te perguntarem
Quem é sua mãe?, se te perguntarem
São José Pai, tem que dizer
Virgem Maria, tem que dizer
De onde vem com tanta pressa?, se te perguntarem
De um mundo chuvoso, do centro do mundo,
deve dizer
Eu passei por três calvários
Eu passei por três calvários
Deve dizer, pequeno anjinho” (tradução minha)
175
"As pessoas que rezam, geralmente, são pessoas de baixa renda. Entre crianças e idosos vão rezar nas mesas
para buscar pão, frutas, biscoitos e doces. Nesta data, muitas pessoas encontrarão comida em troca de orações.
Fazer a mesa nas vias públicas e oferecer comida para a população é uma forma de compartilhar!”
102

Toda a semana entre os dias 2 e 8, as ruas permaneciam com cheiro de flores e as


padeiras não produziam pães, porque nas casas se conservavam alguns pães de Todos los
Santos. Nas manhãs, os filhos mais novos tomavam o café sob reclamações: “Pucha, otra vez
pan de Todos los Santos? Ya están duros!”176 ao que Dona Hilda respondia: “Tiene que comer
todo el pan, no se puede botar. El pan es sagrado!”177. O único modo possível de tragar os pães
feitos há duas semanas era molhá-los no café e comê-los antes que se desfizessem no líquido.
Em uma dessas manhãs perguntei curiosa a Dona Hilda se os jailones178 faziam pães e
construíam suas mesas. Ela, que desde os nove anos havia sido empregada doméstica na Zona
Sul de La Paz, conhecida como região onde vivem as elites, me respondeu que não. Entre os
anos 1970 e 1972, Dona Hilda trabalhou na casa do ex-presidente da Bolívia, General Hugo
Bánzer Suárez: “Mormones eran ellos”179, foi a resposta à minha pergunta pretenciosa.

***

No dia 8 de novembro fomos ao Cementério General de La Paz, Roger queria me


apresentar uma festividade que acontecia durante toda a manhã e parte da tarde, a festa das
Ñatitas. Em Aymara, a palavra Ñatita quer dizer “pessoa que tem o nariz pra cima, pontiagudo”,
as Ñatitas são caveiras (crânios) humanas adoradas por famílias e por yatiris, para os últimos
quanto mais Ñatitas possui, mais poderoso é considerado. Enquanto caminhávamos entre os
blocos de tumbas, Roger me explicava que muitas vezes as pessoas retiram as caveiras dos
cemitérios abertos, como o de El Alto, outra alternativa são as pessoas que adoram caveiras de
familiares, inclusive de crianças falecidas da família. As Ñatitas estavam enfeitadas com coroas
de flores e dispostas em altares, algumas pessoas fumavam e pijchavan coca com suas Ñatitas.
Os que possuíam maior número, estavam rodeados por fiéis que lhe ofereciam flores e orações,
e em muitas ocasiões se escutava a mesma entoada de Todos los Santos, só que nesta ocasião,
a reciprocidade se apresentava em um plano maiormente simbólico. Roger me explicou, que as
pessoas vinculadas a determinados yatiris, em especial os qamiris que pediam para que seus
negócios prosperassem, em algum ano (visto que havia uma rotatividade de passantes entre os
fiéis) nesta data, teriam que financiar a festa para as Ñatitas, regada a cerveja e, especialmente,

176
“Nossa, outra vez pão de Todos los Santos? Já estão duros!”
177
“Tem que comer todo o pão, não pode jogar fora. O pão é sagrado!”
178
Forma despectiva de categorizar as pessoas brancas de classe alta.
179
“Eles eram Mórmons”
103

em um cholet, onde serão oferecidas às divindades as mesmas regalias que desfrutavam estes
qamiris em suas festas pessoais.

FOTO 11 e 12. Ñatitas e fiéis no


Cementério General de La Paz -
Fotos minhas

Entre algumas pessoas com


suas Ñatitas dispostas no chão do
Cemitério, nos encontramos com
Silvia Rivera Cusicanqui, sua família
levava a Ñatita para receber orações:
“Esa Ñatita es precolombina!”180,
me disse um familiar. Aproveitando o
ensejo, resolvemos voltar ao setor da
entrada para comprar algo e oferecer
em oração à Ñatita de Silvia Rivera. Enquanto caminhávamos, eu situava algumas opções para
Roger do que poderíamos comprar: “Podríamos comprar una corona de flores así”181, disse à
ele, apontando para as coroas de flores que algumas senhoras levavam nos braços, Roger me
olhou abismado e respondeu: “No, Chrys, ahora antojaste la Ñatita, no se puede antojar, ellas
son muy poderosas! Ahora hay que comprar coronas”182. Me senti um pouco incomodada com
o fato de não poder perguntar nada para meu interlocutor porque isso antojaria183 as Ñatitas,
perguntar era um modo de saber o que seria conveniente. “Se puede oferecer coca?”184,
perguntei involuntariamente depois de alguns minutos. “Otra vez!”, exclamou Roger, dessa

180
“Esta Ñatita é pré-colombiana”
181
“Poderíamos comprar uma coroa de flores assim”
182
“Não, Chrys, agora você deu vontade para a Ñatita, não pode fazer isso, elas são muito poderosas.”
183
Antojo pode ser traduzido como anseio, mas como apresentarei mais adiante é uma categoria que carrega
sentidos próprios.
184
“É possível oferecer coca?”
104

vez um pouco alterado. Confesso que foi extremamente complicado, diante da minha
curiosidade do que seria mais pertinente oferecer, compreender que as Ñatitas poderiam
antojarse com as minhas perguntas, isso me trouxe à memória uma ocasião em que comentei
com Roger se poderíamos fazer uma mesa para agradecer a Pacha e ele enfático disparou:
“Ahora hay que hacer, no se puede antojar la Pacha”185. Em outra ocasião, compramos velas
para as pedras que Roger possui da wak’a (espaço sagrado) La Curva del Diablo e deixamos
em algum lugar que não lembrávamos, neste momento, Roger foi até a venda da esquina,
comprou duas velas e as acendeu diante das pedras, “No se puede antojar la wak’a!”186, me
disse.

Na circunstância do cemitério, senti que havia uma barreira entre a minha perspectiva e
a de Roger, eu precisava perguntar para não parecer inconveniente, mas não compreendia que
tudo ao meu redor era sujeito, as perguntas em si já eram inconvenientes. Senti uma impotência
por me dar conta da minha limitação em insistir com perguntas, Roger olhava as flores e
escolhia as que mais gostava: “Casera, vendeme coquita, con una lejía de menta más!”187 dizia
para a senhora sentada em um canto com seu barril de coca. Voltamos a entrar na sessão em
que se encontravam as Ñatitas, carregando duas coroas, duas velas e um saquinho de coca.
Rezamos para a Ñatita de Silvia Rivera e fomos caminhar pelo cemitério.

Dias depois dialoguei com Roger sobre a categoria antojar, ele relatou que existem
muitas entidades que podem antojarse, o antojo da Pachamama tem relação com as
necessidades desta entidade, informação dada por meio de um yatiri. Roger me relatou uma das
conversas que teve com Don Felipe Quispe, El Mallku, em que Don Felipe explicava que para
a Pacha, era necessário ir a um yatiri para perguntar qual o tipo de mesa que esta divindade
necessitava, não era qualquer mesa que satisfaria seu antojo, os yatiris, por meio da leitura da
coca, diriam se é uma mesa branca, com ou sem feto de llama (phuyu), dentre outros elementos
possíveis. No caso do antojo de divindades, como as Ñatitas e as Wak’as, Roger explicava que
existia uma determinação mais subjetiva de quem crê, se uma pessoa diz ou pensa que pode
fazer algo para essas divindades e não o faz, será considerado tacaño e será castigado, em suas
palavras: “Si nosostros tenemos dinero y podemos comprar algo para la Ñatita, no devemos
privarnos de hacerlo, mientras más mejor. Por eso cuando tu me dijiste: ‘Compraremos tal
cosa’ y teníamos la posibilidad de hacerlo, si yo me negaba estaría haciendo mal a la Ñatita y

185
“Agora teremos que fazer, não podemos deixar a Pacha com vontade”
186
“Não pode deixar a w’aka com vontade”
187
“Caseira, vende-me coquinha, com lejía de menta”
105

ella nos castigaría”188. O que informava meu companheiro, neste momento, era a relação de
comunicação que havia entre os sujeitos presentes, um alargamento da categoria de pessoa para
além do que minha epistemologia poderia alcançar.

FOTO 12. Queima de mesa para a Pachamama, Dona Hilda Chambi ch’allando - Foto minha

***

A defesa de Mesa Gisbert (2013) de uma Simbiose Religiosa, deixa de considerar alguns
aspectos fundamentais para o entendimento das religiosidades, dentre eles, a ontologia dos
sujeitos que cultuam algumas divindades. Como situado acima, o fato de apropriar alguns
símbolos ou datas religiosas da cultura “ocidental”, não determina a lógica pela qual os aymaras
vão desenvolver sua própria religiosidade. As ñatitas são benzidas em igrejas por padres
católicos, o que não quer dizer que se cultua esse símbolo em todos os espaços católicos, o que
diferencia o catolicismo ortodoxo do catolicismo Aymara. Dona Hilda Chambi me dizia que
não fazem mesas na Zona Sur, ou seja, nos espaços mais brancos e elitizados, isso pode ser
explicado porque a mesa para Todos los Santos é um elemento bem específico da epistemologia

188
"Se temos dinheiro e podemos comprar algo para a Ñatita, não precisamos nos privar de fazê-lo, quanto mais,
melhor. É por isso que quando você me disse: 'Podemos comprar isso' e nós temos a possibilidade de fazer, se eu
recusasse, estaria fazendo mal para a Ñatita e ela nos puniria”
106

Aymara, de uma lógica de morte. Em outro momento, enquanto olhava o crucifixo que Dona
Hilda tem em sua cozinha, perguntei se ela era católica, ela, olhando firmemente para o
crucifixo feito de palha me respondeu: “Yo creo en jesus, así como sé que existe la
Pachamama!”189. Dona Hilda me apresentou um elemento que eu já conhecia por meio de
alguns referenciais históricos, o politeísmo e a possibilidade de apropriação religiosa entre os
aymaras. Ela me relatou que em sua comunidade, há muitos anos, os representantes da Igreja
Católica construíram uma Igreja no local onde os comunários costumavam rezar para a w’aka,
desde então, rezavam para as divindades das montanhas e para jesus.

La chola Aymara

Todas as teorias que eu escutava ou lia sobre a identidade Aymara, colocava em debate
com Dona Hilda Chambi. Uma das ocasiões foi quando escutei, em um programa de Maria
Galindo (representante do grupo Mujeres Creando), uma entrevistada dizer que não usava a
pollera e não se vestia como chola porque isso a limitava, não poderia fazer ondas no cabelo e
colocar uma calça jeans, essa era a limitação apresentada pela entrevistada. Quando expus isso
à Dona Hilda, ela me respondeu: “Nosotras tenemos muchos tipos de polleras, cuando salimos
a una fiesta, cuando vamos a cosechar, nuestra pollera no es limitada, es parte de quien
somos!”190. Quando questionada acerca da escolha por usar a pollera ela me respondeu,
enquanto enrolava nos dedos a massa dos churros que seriam produzidos na madrugada:
“porque es lo que somos”. Em nenhum momento me pareceu uma limitante a escolha estética
identitária para Dona Hilda, todas as vezes que se referia à pollera ela sorria, falava da
diversidade que tinha, das cores, e todas as vezes que se aprontava para dançar a morenada,
expressava uma elegância inigualável que me absorvia.

Dona Hilda pode ser caracterizada como a imagem da Chola Paceña, porque utiliza os
adereços que compõem essa identidade: a pollera ou saia longa com pregas e camadas, por
cima de uma dezena de manqhanchas (saias de renda); a manta de tecido grosso segurada por
um alfinete; suas tranças compridas com tullmas (fitas de tecido grosso ou lã de carneiro) nas
pontas; e o chapéu borsalino. Alguns elementos são inseridos no seu vestuário dependendo do
espaço em que se encontra e das condições, um exemplo está em quando ela se arruma para

189
“Eu acredito em Jesus, assim como sei que a Pachamama existe!”
190
"Temos muitos tipos de polleras, quando saímos para uma festa, quando vamos colher, nossa pollera não é
limitada, faz parte de quem somos!"
107

entregar churros entre os vendedores locais, o aguayo carregado sobre as costas é um elemento
importante. Outro exemplo, está em quando se arruma para alguma festa importante, as jóias
sobre o chapéu, brincos e um alfinete (chamado tupu em Aymara) especial para segurar a manta
são elementos determinantes.

A convivência com Dona Hilda Chambi me apresentou algumas características das


mulheres que utilizam a pollera: o tom de voz mais fino; o uso de diminutivos, mais comum
que a maior parte dos Paceños; a mistura entre o Aymara e o espanhol em seus discursos191; o
sorriso muitas vezes com dentes prateados ou dourados (símbolo de prestígio); as gargalhadas
altas e expressivas; o pranto (uma tradução mais aproximada de llanto) com um tom agudo um
pouco abafado, este último elemento foi a manifestação de dor mais profunda que já tive acesso.
Muitos destes elementos identitários estão vinculados à uma epistemologia ligada à identidade
Aymara mais ampla, uma identidade política construída a partir de alguns elementos dentre
tantos outros dos heterogêneos mundos aymaras. Esta é uma das possíveis identificações das
mulheres cholas, pontuo que minha análise está direcionada à chola Aymara e que tem como
referência Dona Hilda Chambi, que pensa e enuncia acerca da própria identidade, bem como
do meu trabalho de campo e das análises das teorias acadêmicas da mestiçagem boliviana.

Em uma das madrugadas que despertamos para preparar os churros, dia 2 de fevereiro,
aniversário de dois dos filhos de Dona Hilda, ela começou a contar-nos um pouco de sua vida
até o momento do nascimento do seu primeiro filho. Aproveitando sua disposição em falar
sobre memórias, perguntei sobre duas fotos que ela guardava, e que me foram mostradas pelos
filhos no dia da mesa de Todos los Santos, de quando trabalhava na casa do ex-presidente da
Bolívia. Ela me explicou que fugiu de Ch’ojñapata para a cidade de La Paz com nove anos de
idade para trabalhar de empregada doméstica nos bairros da elite paceña, isto porque queria ter
acesso às roupas mais novas que não poderia comprar com a renda da família. Dona Hilda
caminhou cerca de vinte e cinco quilômetros para chegar até o pueblo de Achacachi, onde
tomou um ônibus com destino a La Paz. Na época, Dona Hilda era falante de Aymara e não

191
É importante dizer que o espanhol falado pelas cholas com quem tive contato é bem vinculado à estrutura
linguística do Aymara, um exemplo é a aplicação de gêneros em frases como: “Mi mano está rojo”, a palavra
mano que em espanhol está vinculado ao gênero feminino é determinada com o adjetivo rojo, vermelho em
espanhol, ao invés da utilização de roja. Isso se dá porque a mesma frase na língua Aymara não apresenta
determinação de gênero. Peredo (1992), denomina esta língua como “casti-imillano”, um castelhano das imillas
(meninas em Aymara), maiormente relacionado às cholas e que tem alguns traços como “dice-diciendo” (“siw-
siwa”), como uma afirmação do que se constata, um exemplo utilizado por Peredo é: “ ‘... mi hija no va a ser así’,
dice que decía (VIOLETA).” (PEREDO, 1992, p.116). Outro artifício do casti-imillano é o espelho, ou seja, dizem
algo e voltam a repetir em outra ordem, um exemplo é: “... los dos es igual para mí, para mí igual es. (Violeta).”
(PEREDO, 1992, p.117).
108

tinha nenhum conhecimento do castelhano, foi com o trabalho de empregada doméstica que ela
aprendeu esta segunda língua, conta. O motivo pelo qual ela deixou o trabalho e voltou ao
campo, tem relação com uma das fotos em que está Dona Hilda com uma criança em seus
braços, ela foi contratada para “acompanhar” o ensino desta criança nos Estados Unidos, mas,
segundo ela, não conseguiu deixar a Bolívia.

D. Hilda: Es su hijito del General, tenía que irme a Estados Unidos. Yo tenía
que irme a cuidar a ese niño en Estados Unidos y yo me he escapado del
avión, me he asustado por los gringos en el avión.

Chryslen Mayra: Sí?

D. Hilda: Sí, me escondí detrás de los autos, de los taxis que se estaban
viniendo del general, sé venirme corriendo. Me estaban llevando.192

FOTO 13. Dona Hilda Chambi segurando o filho de Hugo Bánzer Suárez, na parte traseira da foto, a dedicatória:
“Para Hilda”, acompanha a data (1972) e algumas palavras em inglês.

Depois de Q’itar (escapar em Aymara) do avião, e por uma doença da mãe, ela voltou
para Ch’ojñapata e conheceu Don Ascencio Chambi Verástegui, com quem se casou aos
quatorze anos de idade. Entre as confidências de Dona Hilda nesta manhã nublada e fria, o
cheiro de óleo quente mesclado com o cheiro do doce que recheia os churros, sorrisos

192
“D. Hilda: Este é o filho do General, eu tinha que ir para os Estados Unidos. Eu tinha que ir para cuidar dessa
criança nos Estados Unidos e fugi do avião, fiquei assustada com os gringos no avião.
Chryslen Mayra: Sim?
D. Hilda: Sim, eu me escondi atrás dos carros, dos táxis que vinham do general, vim correndo. Eles estavam me
levando.”
109

entredentes, gargalhadas altas e prantos, acompanhavam as memórias que Dona Hilda


enunciava, ora caminhando pela cozinha levando os paus de churros até as panelas, ora sentada
em um minúsculo banco em um canto da mesa. Ela me contou como Bánzer se referia a todas
as empregadas com um único nome, Elvira, nome de uma das acompanhantes – que trabalhava
acompanhando a senhora em todas as atividades diárias - da mãe deste. Dona Hilda me relatou
que aos domingos, o patrão se sentava sobre uma grande tartaruga viva para ler o jornal da
manhã, ela era chamada para levar sucos de frutas e gostava de admirar os animais não
convencionais, que o patrão possuía. “Tenía sapos!”, me disse com a testa franzida, expressão
de asco, e um sorriso largo na boca.

Os filhos a escutavam com atenção, questionando algumas passagens da vida da mãe,


como havia chegado ali, como voltou ao campo, perguntavam sobre alguns parentes que não
conheceram e, sobretudo, sobre como havia conhecido o pai, Don Ascencio Chambi Verástegui.
O pai, na época em que havia conhecido Dona Hilda, quinze anos mais nova, era professor de
escola rural, sempre ia à barraca de comida que ela trabalhava com a mãe, perguntando se ela
não tinha interesse em frequentar a escola local.

A relação entre os símbolos que compõem a identidade da chola e os discursos de


mestiçagem, expõe uma leitura da chola como sujeito da mescla. Em uma das passagens do
livro de Carlos D. Mesa (2013) o autor afirma que:

Si los hombres de los Andes no aceptan que la Whipala y el pututu, símbolos


casi sagrados de su “otredad” son, igual que la pollera y el charango, hijos
del mestizaje cultural, no habían asumido algo central: que el pasado no se
hipoteca, ni se embarga, se asume o no se asume. (MESA GISBERT, 2013,
p.204)193

Neste fragmento o autor associa dois elementos da cultura Aymara, a Whipala e o


Pututu194, com elementos que, para ele, estão vinculados à cultura colonial, a pollera e o
charango. A relação estabelecida pelo autor demonstra a estruturação de uma mestiçagem
cultural, na qual tanto “brancos” como aymaras - ou andinos, termo mais utilizado por Mesa -
utilizam de igual maneira os quatro elementos, conformando estes como símbolos da cultura
sincrética nacional.

193
"Se os homens dos Andes não aceitam que a Whipala e o pututu, símbolos quase sagrados de sua 'alteridade'
são, como a pollera e o charango, filhos de mestiçagem cultural, eles não assumiram algo central: que o passado
não se hipoteca, não se embarga, se assume ou não se assume.”
194
Whipala é a bandeira da nação Aymara, já o pututu é um instrumento de som construído com chifres de animais
utilizado em momentos de conflito social.
110

Acredito que esta perspectiva analítica de Mesa, a parte de ser política, considerando
sua relação com o Movimiento Nacionalista Revolucionario, é pouco justa com as práticas dos
sujeitos que utilizam os elementos citados. Com exceção de intelectuais e pessoas vinculadas
aos movimentos políticos e artísticos, a Whipala e o Pututu, continuam sendo elementos
importantes para a cultura Aymara, o primeiro como símbolo da nação e o segundo como um
instrumento de organização política195. No entanto, de todos os símbolos evidenciados por
Mesa, a pollera é o que utilizarei para desmistificar a mestiçagem construída pelo autor.

Considerar que os elementos apropriados pelos sujeitos transformam sua relação com a
própria cultura pode parecer uma perspectiva ultrapassada pelos estudos antropológicos, mas
continua construindo sentidos em diversos espaços, por isso necessitamos nos debruçar sobre
essas teorias. Acredito que Sahlins contribui com elementos importantes para o debate,
especialmente seu trabalho “O pessimismo sentimental e a experiência etnográfica: Por que a
cultura não é um ‘objeto’ em via de extinção (Parte I)” (1997), neste texto o autor defende que
a entrada de alguns sujeitos no mercado não deve ser lida como aculturação, mas deve ser
problematizada a partir de pressupostos epistemológicos, compreender as sociedades em um
contínuo desaparecimento é, também, compreendê-las em uma contínua reestruturação, que
pode ter relação com processos de colonização, mas que não deve se limitar a isso quando
consideramos suas modificações. Para Sahlins, a “tarefa da antropologia agora é a
indigenização da modernidade” (SAHLINS, 1997, p.53), ou seja, perceber o movimento de
dentro das epistemologias indígenas ao apropriar a modernidade a partir dos próprios termos,
construindo outras agências no interior da modernidade, que se quer universal e homogênea.
Isto não tem que ser lido como um elogio romântico aos processos de contatos violentos entre
as culturas indígenas e modernas, mas uma reflexão da complexidade destas relações quando
analisamos sociedades que apropriaram a cultura ocidental para sua própria existência. Sahlins
sugere que a inserção dos grupos tradicionais à economia global pode ser um enriquecimento
mútuo, em especial, quando as culturas tradicionais ocupam estes espaços nos próprios termos.
Um exemplo dado por Sahlins, é a utilização da moeda pelos Mendi da Nova Guiné, que
infundem seus próprios significados nos objetos estrangeiros, assim consideram a
masculinidade e feminilidade vinculadas ao dinheiro nos espaços de troca, deste modo, ainda
que os bens sejam europeus, as necessidades atribuídas a eles não.

195
Esta análise não considera os usos de tais símbolos feitos pelo Estado.
111

Sahlins pensa a tradição como maneiras distintas de transformação: “a transformação é


necessariamente adaptada ao esquema cultural existente” (SAHLINS, 1997, p.62). A tradição
perde sua característica etnocêntrica e assume o movimento como elemento determinante196.
Um exemplo que venho trabalhando junto com Roger Chambi em um Grupo e Estudos da
CLACSO (GT. Derechos, Clases y Reconfiguración del Capital), é o das Economías Qamiris197
como um movimento muito próximo ao que nos apresenta Sahlins, ou seja, são economias
urbanas apropriadas por sujeitos aymaras que atuam no mercado internacional, em especial, em
vínculos diretos com o mercado chinês, mas que o fazem a partir dos próprios termos, alguns
exemplos dados por Tassi (2013) e que percebemos durante nosso campo nas festas de um
cholet, são as mesas queimadas para a Pachamama, a relação direta com os xamãs yatiris e que
as redes de prestígios desta “classe” inserida no mundo Aymara não se estruturam pela
acumulação, mas sim pelo financiamento de festas comunitárias, seja nas comunidades de
origem ou em festas como o Gran Poder198.199

A chola é uma figura muito importante nesta relação de apropriação de elementos


espanhóis a partir dos próprios termos, em especial tratando-se da pollera. A pollera faz parte
do traje utilizado pelas cholas, em muitos momentos do meu campo quando questionava o que
definia a identidade chola, recebia a resposta: “Señora que lleva pollera”. No entanto, é
necessário tomar em conta que a utilização desta vestimenta vem de um processo histórico de
transformações, transformações presentes na indumentária e nos sentidos construídos sobre ela.

Lissete Sahonero em “El Traje de la Chola Paceña” (1987), constrói uma análise acerca
desta vestimenta considerando uma suposta imitação feita pelas aymaras de trajes ocidentais e,
sua perpetuação no tempo, perdendo sua “categoria original” de estrutura e transformando-se
em um estilo permanente, valorizado pelas “classes populares”. A autora compreende a chola

196
A dissertação de Duvan Ricardo Murillo Escobar junto aos Misak em território Colombiano, me parece
interessante para o tema da tradição em movimento. Escobar constrói um metálogo com o misak Javier, onde
temas sobre a categoria “originário” são tocados. Javier comenta que: “el Misak de ahora debe seguir tejiendo en
ser multilingüe y multicultural enfocado en la intracultural, fortaleciendo y revitalizando en cada momento
nuestras memorias y prácticas culturales, y lo transcultural donde se contemple lo común de todas las culturas
en términos universales sin desmeritar la realidad actual; debe ser intercultural mirando teniendo en cuenta los
procesos económicos, políticos y sociales de las demás culturas del mundo.” (ESCOBAR, 2017, p.124). Duvan
evidencia a facilidade dos Misak na inclusão de elementos exteriores nos procesos de aprendizagem, essa
perspectiva está muito próxima ao que apresenta Sahlins, especialmente a uma lógica que pensa a tradição como
movimento.
197
Apresentação durante o Primer Encuentro del GT: Derecho, Clases y Reconfiguración del Capital,
disponibilizada pelo Colectivo Jichha, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=I4fiQPgLwz8
198
Festa anual que acontece em honra à Jesus del Gran Poder, uma figura do catolicismo local.
199
A relação entre economia e etnicidade será desenvolvida por mim durante a pesquisa de doutorado nesta mesma
instituição.
112

como um sujeito mestiço que carrega um traje de origem espanhol, mas que, ao mesmo tempo,
contêm um plano de fundo “autóctone” (SAHONERO, 1987, p.9).

Sahonero toma a indumentária indígena em um processo histórico, considerando os


primeiros documentos escritos sobre os trajes indígenas, em 1586, na Província de Pacajes, La
Paz, um exemplo é a carta enviada ao Rei da Espanha pelo Corregidor y Justicia Mayor de la
ciudad de La Paz, Diego Cabeza de Vaca, em suas palavras: “Visten unas camisetas, hasta la
rodilla, ni talle ni faicion y traen por capa una manta cuadrada de ocho palmos, las cuales
tejen sus mujeres, de lana de ganados quellos tienen acá, en algunos le echan colores que
hacen alguna diferencia y gala” (SAHONERO, 1987, p.17)200. Segundo a autora, tais trajes
são sustentados pelos indígenas até o século XVII, quando a Colônia proíbe o uso de alguns
gêneros de tecidos para as “classes populares”201, no entanto, é depois das Revoltas de Tupac
Amaru e Tupak Katari que as autoridades locais (coloniais, considerando que os aymaras tem
sua própria organização política) definem que os indígenas não devem mais utilizar suas roupas
“autóctones”, para evitar as memórias incaicas.

A autora retoma a genealogia espanhola da palavra chola como chulo, que segundo a
Real Academía Española significa “individuo do povo baixo de Madrid, que se distingue por
certa afetação e beleza no traje, e no modo de produzir-se” (SAHONERO, 1987, p.23 trad.
minha). O feminino de chulo é chula, que dentre suas características utiliza uma saia longa com
uma blusa enfeitada e, sobre os ombros, carrega uma manta. A autora estrutura sua observação
em um ir e voltar no tempo, associando as primeiras utilizações do termo aos usos direcionados
atualmente para essa identidade, em suas palavras: “La palabra ‘chola’ (femenino) se sigue
utilizando en el sentido de ‘mujer de pueblo’, mientras que el masculino ‘cholo’, se usa en
Bolivia en forma despectiva, de acuerdo a su calidad moral, como hombre ruin, vil.”
(SAHONERO, 1987, p.23)202.

Esta divisão entre as duas palavras, chola e cholo, é sustentada no livro “El índio y el
cholaje boliviano” de Fausto Reinaga, no qual o autor retoma a perspectiva de Gustavo Adolfo
Otero de que a proliferação da palavra cholo no Alto Perú (como era definido o território

200
"Eles usam camisetas, até o joelho, sem tamanho nem feição e trazem por capa uma manta quadrada de oito
palmos, que suas mulheres tecem, lã de gado que eles têm aqui, em alguns eles jogam cores que fazem alguma
diferença e gala"
201
A autora não delimita o que compreende como “classes populares”, tampouco há em seu texto uma distinção
entre indígenas e mestiços.
202
"A palavra 'chola' (feminino) ainda é usada no sentido de 'mulher do povo', enquanto o masculino 'cholo' é
usado na Bolívia de maneira depreciativa, de acordo com sua qualidade moral, como um homem mau, vil .”
113

boliviano no contexto colonial) é feita de maneira depreciativa, a palavra cholo seria, para ele,
proveniente da Guatemala que, nos primeiros dias da colônia assim denominavam os cachorros
peludos, feios e sujos. “Luego se usó en la misma forma infamante que el chulo de los bajos
fondos madrileños” (REINAGA, 1964, p.9)203. O que os autores comunicam aqui, é a
impossibilidade de ler a chola vinculada ao cholo enquanto uma única identidade, este será um
elemento fundamental para compreender os discursos de cholaje mais adiante.

Recorrendo às modificações estéticas das cholas, Sahonero sustenta que antes da


apropriação do chapéu borsalino, as cholas paceñas utilizavam chapéus com a aba longa, muito
parecido aos chapéus de palha utilizados hoje pelas cholas cochabambinas. Acerca da
apropriação dos chapéus borsalinos, ou bombín italiano, a autora relata:

Según Peter Mc Farren “... una de las cosas que más llama la atención de
los visitantes de La Paz, es que las indias aymaras lucen el infaltable
sombrero hongo o bombín. Las mujeres aymaras, que dominan el comercio
minorista en la capital, usan bombines negros, marrones o grises, mientras
venden frutas y verduras, o minicomputadoras. En otros países, este modelo
de sombrero lo usan los hombres, pero los varones bolivianos prefirieron otro
estilo. Cuenta una historia que el embarque de bombines llegó a Bolívia por
equivocación, y un avispado comerciante convenció a las aymaras que usarlo
les garantizaba fertilidad”. (SAHONERO, 1987, p.43-44 – grifo meu)204

Uma informação muito importante deste fragmento retomado por Sahonero, é de que os
“visitantes de La Paz” percebiam as mulheres que apropriaram o chapéu borsalino como “índias
aymaras”, as mesmas que dominam o comércio minorista na cidade – a chola de mercado -, ou
seja, de postos comerciais menores. A perspectiva de outra autora que analisa a identidade
chola, Ximena Soruco, contraria esta afirmação, para Soruco em “La ciudad de los cholos.
Mestizaje y colonialidad en Bolivia, siglos XIX y XX” (2012), a definição da identidade chola
está tanto no âmbito do mercado, quanto no âmbito da urbanidade, como um sujeito mestiço.

Soruco pensa o mestiço/cholo como um setor que começa a se fazer notar durante o
século XIX, isto se dá pela modificação nos discursos criollos de nação, uma vez que já não é
possível, após 1825, manter o discurso de que este setor não deve se envolver na mão-de-obra

203
"Então foi usado da mesma forma infame como o chulo do submundo de Madrid"
204
Segundo Peter Mc Farren "... uma das coisas que mais chama a atenção dos visitantes de La Paz, é que as índias
aymaras usam o inevitável chapéu-coco ou bombín. As mulheres aymaras, que dominam o comércio minorista na
capital, usam bombíns negros, marrons ou cinzas, enquanto vendem frutas e vegetais, ou minicomputadores. Em
outros países, esse modelo de chapéu é usado por homens, mas os bolivianos preferiam outro estilo. Conta a
história de que o embarque de bombíns chegou à Bolívia por engano, e um comerciante esperto convenceu as
aymaras de que usá-lo garantia a fertilidade.”
114

por ser “coisa de índio”, com uma clara divisão de postos entre estes e os setores mestiços e
indígenas, o que obriga a que os criollos modifiquem seu discurso sobre si mesmos.

[...] los sectores criollos tuvieron que transformar su discurso sobre sí


mismos, los otros y la nación que imaginaban de acuerdo a las pugnas entre
las élites regionales por adquirir hegemonía nacional, pero también en
respuesta a la dinámica social de quienes dominaban; es decir, a las alianzas,
resistencias e interpelaciones de inclusión política de los mestizos e indígenas
a quienes debían imponer la idea de una nueva nación. (SORUCO, 2012,
p.45)205

Acerca da transformação do discurso hegemônico, os autores Jean e John Comaroff


(2010), constroem uma análise da hegemonia como ordem de signos e práticas que são
naturalizadas, universalizadas e tomadas como verdadeiras, neste sentido, a hegemonia constrói
um fechamento dialógico para evitar ser contestada. No fragmento acima, Soruco afirma que
os setores criollos necessitaram modificar seu discurso para manter o poder na estrutura política
boliviana. Como nenhuma hegemonia é totalizada, ela precisa ser produzida e desfeita,
estruturada e reestruturada para se adequar às transformações da sociedade (COMAROFFs,
2010).

Desde 1874, com o auge da prata e do estanho na economia boliviana, o Estado deixa
de depender do tributo indígena (o que não significa que deixa de depender da mão de obra
indígena, pois os trabalhadores das minas são quéchuas e aymaras), a partir desta estrutura o
Estado começa a expropriar as terras comunitárias, uma vez que anterior a este período, estava
em vigência um pacto implementado pela colônia de que o pagamento de tributos por parte dos
indígenas possibilitaria a proteção da propriedade comunitária por parte do Estado (Platt, 1982).
A aliança entre Zárate Wilka e o partido liberal de Pando, apresentada no primeiro capítulo,
surge deste mal-estar. Neste sentido, para Soruco, a primeira fonte de legitimação deste bloco
dominante de La Paz é tentar impedir a “guerra de razas” que poderia irromper.

Na perspectiva da autora com a construção do discurso de nação voltado para uma lógica
dicotômica criollo-indio, o espaço intermediário entre Estado e comunidade começa a ser
ocupado pelos mestiços possibilitando uma ascensão econômica deste setor. Ainda que a autora
não defina o que diferencia estas três identidades, além da questão econômica e territorial, uma

205
"[...] os setores criollos tiveram que transformar seu discurso sobre si mesmos, os outros e a nação que
imaginavam de acordo com as disputas entre as elites regionais para adquirir a hegemonia nacional, mas também
em resposta à dinâmica social daqueles que dominavam; isto é, às alianças de resistências e interpelações de
inclusão política dos mestiços e indígenas a quem eles tinham que impor a ideia de uma nova nação ".
115

lógica que atravessa o trabalho de Soruco é a de que a determinação da identidade indígena está
vinculada ao território rural.

Ligada à tese de Barragán (1997), Soruco analisa a “população mestiça feminina” que
apropria a roupa espanhola durante a Colônia com fins de ascensão social, a opção deste setor
pela manutenção da vestimenta no século XIX, quando se torna anacrônica à moda criolla,
constitui o estigma racial da chola. Para Barragán (1997) a manutenção da vestimenta
anacrônica institui sobre essas mulheres uma diferenciação entre o sujeito indígena e o sujeito
criollo, sendo possível a interação com ambos mundos.

Ler a pollera e demais elementos da vestimenta chola como “anacrônicos”,


considerando que fazem parte de uma apropriação contextual da roupa espanhola, me parece
um exercício de desconsiderar os significados construídos por essas próprias mulheres acerca
de sua identidade. Vestir-se de chola é pensado como carregar um anacronismo histórico e
estigmatizado racialmente, destituindo a possibilidade de uma coetaneidade (FABIAN, 1983)
dessas mulheres com relação ao tempo presente (akapacha). A chola carrega a modernidade
em cada camada da sua pollera. Pensar este traje com relação à apropriação do setor criollo é
tomar como referência as não-cholas a fim de explicá-las.

Um sucinto trabalho de Josermo Murillo Vacareza, intitulado “La Pollera” (1982), faz
uma análise da indumentária tanto socialmente quanto historicamente situada, compreendendo
a construção desta identidade vinculada à pollera especialmente durante a Guerra do Chaco.
No entanto, como em todos os trabalhos que tratam o tema das cholas e suas vestimentas, a
mestiçagem é uma análise indispensável, Vacareza direciona sua crítica para a lógica de
identidade nacional, que considera a pureza étnica do nativo na base da sociedade e o prestigio
cultural de um grupo superior incontaminado no ápice, o mestiço para o autor está em um setor
referenciado como impróprio no interior destes discursos. Acerca da genealogia dos termos, o
autor se refere a cholo em uma raíz árabe, na qual a palavra chul significa “joven ágil y
vigoroso”, mas a apropriação espanhola do termo, aplicou este a pessoas que trabalhavam em
oficinas e na área de artesanatos na Espanha (VACAREZA, 1982, p.15). Para Vacareza, a
apropriação boliviana do termo cholo, relaciona tanto o significado árabe, quanto a
ressignificação espanhola, o cholo era pensado como ágil e vigoroso, mas também como o
sujeito que desenvolve trabalhos em setores artesanais da economia, diferente dos mitayos
indígenas que trabalhavam no setor servil. Essa entrada no setor mercantil boliviano é uma das
características que vai perdurar na determinação da identidade do cholo.
116

precisamente la división del trabajo que se pronuncio tan sincrónicamente


como la mestización, destinó a los aborígenes para que se sustentaren con la
producción de la tierra y atribuyó a los mestizos la producción artesanal,
desde que los españoles y sus hijos los criollos tenían el privilegio de no
trabajar. (VACAREZA, 1982, p. 17)206

Este fragmento de Vacareza mostra que a mestiçagem é lida a partir de categorias


socioculturais, como a divisão do trabalho, e não a partir de classificações biológicas, além de
definir o setor criollo como os filhos de espanhóis, ou seja, o setor criollo é lido a partir de uma
relação biológica com os espanhóis, enquanto o setor mestiço, muitas vezes vinculado
biologicamente aos indígenas (por ser racializado), é definido a partir de classificações
culturais.

O autor não explica a diferença entre a identidade do cholo e da chola, sendo a pollera
associada à segunda. A pollera seria uma forma demonstrativa de melhor posição com relação
às comunidades indígenas, uma vez que definia a diferença da chola entre as mulheres aymaras
e as mulheres brancas, ocupando um espaço intermediário. Para ele, as mulheres criollas
seguiram os padrões de moda europeu, enquanto as cholas não, estas últimas são lidas por
Vacareza como anacrônicas. O anacronismo é determinado pelo autor a partir da categoria
“moda”, ou seja, a moda como fenômeno da vida social institui uma imitação por imposição ao
costume, variações socialmente aprovadas que se propagam a todas as classes sociais
(VACAREZA, 1982, p.43-44). Para Vacareza a distinção entre as roupas apropriadas pelas
classes altas e o uso da pollera, se dá porque as primeiras modificam suas vestimentas com o
tempo e com as transformações da moda, enquanto o uso da pollera permanece de maneira
anacrônica.

Parece-me uma análise pouco apurada da pollera considerá-la fixa em um tempo. Tanto
os diálogos com Dona Hilda, quanto o próprio campo nas comunidades e na cidade de El Alto,
me mostraram as transformações da pollera no tempo, a chola antigua do começo do século
XX representada em muitas festas de Morenada, utilizava uma pollera mais curta com uma
bota de salto, as polleras utilizadas em festas como o Gran Poder são mais volumosas e com
tecidos específicos, distintos das polleras utilizadas no cotidiano. A Comadre Remédios

206
"precisamente a divisão do trabalho que se pronunciou tão sincronicamente quanto a mestiçagem, destinou aos
aborígenes a serem sustentados pela produção da terra e atribuiu aos mestiços a produção artesanal, desde que os
espanhóis e seus filhos os criollos tinham o privilégio de não trabalhar. "
117

Loza207, foi uma chola vinculada ao Partido CONDEPA (Conciencia de Patria) de Carlos
Palenque, a luta pela qual ficou conhecida tem relação com a posição desta enquanto chola nos
espaços políticos e a utilização de maquiagens e elementos estéticos antes impossíveis de
associação com a chola. Remédios Loza e muitas outras mulheres, como Yola Mamani
(militante do grupo Mujeres Creando), representam modificações possíveis na vestimenta,
demonstrando que se esta é lida a partir da perspectiva criolla, sempre será considerada
anacrônica, mas se começarmos a analisá-la a partir da perspectiva da chola, o anacronismo
perece.

Ximena Soruco (2012) explora os estereótipos construídos sobre as cholas entre os


séculos XIX e XX, tomando como referência os trabalhos literários produzidos neste período.
Entre os anos 1900 e 1930, segundo a autora, a chola é associada à prostituição e seus filhos
são lidos como bastardos, uma prostituição que não estava somente aliada à promiscuidade
moral, mas: “hace referencia al intercambio comercial de favores sexuales a cambio de dinero
de sus amantes criollos” (SORUCO, 2012, p.94)208. Esta narrativa da inteligência criolla, para
Soruco, foi uma maneira de deslegitimar a entrada da chola no mercado e de estereotipar a
acumulação de dinheiro por parte deste “setor intermediário”.

En este eje discursivo económico es que se propone que el discurso racial


moderno sobre lo cholo no se asienta sólo en los niveles ideológicos de la
etnicidad, el género y la normatividad moral criolla, sino también en la
definición de una “economía étnica” (Harris, 1995) que interrumpa la
gestación de una “burguesía chola”. En este sentido, el análisis del
“antimestizaje” a partir de textos literarios es complementado con un
acercamiento a la constitución de códigos culturales de una élite chola
que se desarrolla con autonomía de la esfera letrada, interrumpiendo
constantemente el tiempo homogéneo de la modernidad boliviana.
(SORUCO, 2012.p.94)209

207
Nascida em 1949, a comadre Remédios Loza faleceu durante a minha estadia em La Paz em dezembro de 2018.
Remédios foi a primeira mulher de pollera a conduzir um programa na rádio boliviana, nos anos 1980 foi a primeira
mulher de pollera a se tornar representante política no parlamento boliviano, seu partido era o Conciencia de
Pátria (CONDEPA), partido de Carlos Palenque, el compadre, ambos tornaram-se figuras conhecidas e amadas
pela população boliviana porque ajudavam pessoas necessitadas nos programas de rádio e televisão em que
trabalhavam. Em 2018, semanas antes do falecimento de Remédios Loza, participei junto aos movimentos
aymaras, do festival Aymara Fest, festival de música Aymara, na ocasião Remédios Loza, que já padecia de câncer
e não pôde comparecer ao evento, enviou um áudio para os coletivos aymaras evidenciando a importância da
língua e da identidade Aymara.
208
"refere-se ao intercâmbio comercial de favores sexuais em troca de dinheiro de seus amantes criollos"
209
“Nesse eixo discursivo econômico, propõe-se que o discurso racial moderno sobre o cholo não se baseie apenas
nos níveis ideológicos da etnicidade, de gênero e a normatividade moral criolla, mas também na definição de uma
"economia étnica" (Harris, 1995) que interrompe a gestação de uma "burguesia chola". Nesse sentido, a análise da
118

Uma das obras analizadas por Soruco escrita nesta temporalidade é El cholo Portales
de Enrique Finot (1926), segundo a autora esta é a obra que melhor representa o discurso de
antimestizaje210. Nesta obra, Finot conta a história de César Pérez Benavente, que acolhe em
sua casa dois sujeitos inseridos nesta identidade cholo/chola, Domitila Gonzáles e o filho
Evangelino Portales. Segundo Soruco o “senhor” Benavente desenvolve uma “missão étnica”:
“apoyar la educación de Evangelino para convertirlo en un ‘hombre decente’.” (SORUCO,
2012, p. 107)211. Evangelino, caracterizado como cholo, se forma em Direito, mas a “fuerza
atávica de la raza híbrida convierte al sumiso protegido en un traidor” (SORUCO, 2012,
p.107)212. A ideia de antimestizaje proposta por Finot nesta obra sustenta o estereótipo sobre os
sujeitos caracterizados como cholos, que mesmo levados a condições mais privilegiadas
existem males inerentes deste sangue mesclado. A imagem da chola, Domitila Gonzáles, como
sujeito que se sacrifica pela ascensão do filho, deixando de lado a pollera e se submetendo a
condições de “prostituição” por joias e elementos que representam uma ascensão econômica,
também constrói sentidos sobre a imagem da chola.

A construção da chola como sujeito sexualizado atravessa textos como o de Chirveches


“La casa Solariega”(1916), também avaliado por Soruco, como uma transgressão dos valores
criollos de decência feminina e não prostituição como “trabalhadora sexual”. Na narrativa de
Chirveches aparece como socialmente aceitado o fato das cholas iniciarem a vida sexual dos
criollos, mas Soruco evidencia que a ocorrência de romances interraciais não é abordada como
possibilidade por esta literatura: “Finalmente, este es un cuerpo-mercancía (in) deseado porque
en él se inscribe la marca racial, la chola se convierte no solo en prostituta, sino en una mestiza
grotesca que genera repugnância” (SORUCO, 2012, p.113)213. Este discurso de antimestizaje
gera uma narrativa higienista sobre o corpo da chola, nas palavras de Soruco:

"antimestiçagem" a partir dos textos literários é complementada por uma aproximação à constituição de códigos
culturais de uma elite chola que se desenvolve com autonomia da esfera letrada, interrompendo constantemente o
tempo homogêneo da modernidade boliviana.”

210
Existe uma corrente na antropologia, representada pelos trabalhos de Márcio Goldman e José Antonio Kelly
Luciani, que trabalha outra ideia de antimestiçagem – neste caso como contramestiçagem -, no entanto, por estar
mais focada ao universo boliviano optei por construir este diálogo em outro espaço.
211
"Apoiar a educação de Evangelino para transformá-lo em um" homem decente. "
212
"força atávica da raça híbrida transforma o submisso protegido em traidor"
213
"Finalmente, este é um corpo-mercadoria (in) desejado porque nele se inscreve a marca racial, a chola torna-se
não apenas uma prostituta, mas uma mestiça grotesca que gera repugnância"
119

Los criollos se obsesionan con el cuerpo de la chola porque éste más que
ningún otro interrumpe su proyecto de pureza racial. La chola no es blanca
ni es indígena, y ella – a diferencia del cholo – ha decidido encarnar esta
diferencia en su propio cuerpo. La vestimenta de estas mujeres constituye un
código visual diferenciado (indisciplinado) en la sociedad estamental
boliviana. Las polleras, la manta que cuelga de su espalda y el sombrero
borsalino corresponden a una moda europea anacrónica, y los elementos
indígenas que completan el conjunto (tupo o prendedor que sostiene la
mantilla), las trenzas anudadas por bolas de lana, el aguayo (tejido andino
que se cuelga en la espalda) convierten a esta presencia en un indeseable
subversor de la pureza (post) colonial que se debe limpiar. (SORUCO, 2012,
p.116-117)214.

Já Soruco, estabelece uma diferenciação entre a chola e o cholo, em que a primeira


“encarna a diferença no corpo”. Além disso, a chola é aquela que carrega anacronicamente
elementos espanhóis, mas não abre mão dos elementos indígenas na constituição do seu traje
típico, essa característica das cholas, para Soruco, as posiciona como um estrato mais alto que
o mundo indígena ao invés de um estrato mais baixo no mundo criollo.

O discurso de antimestizaje que sustenta os estereótipos sexualizados sobre a chola,


sofre uma decadência a partir dos conflitos da Guerra do Chaco, momento de crise do bloco
dominante que se estruturava desde a Revolução Federal em 1899. Enquanto a expressão do
antimestizaje é manifestada a partir do trabalho de Alcides Arguedas Pueblo Enfermo, que
concebia a mestiçagem como doença nacional, a partir da construção da ideia de mestiçagem
vinculada à identidade nacional pós-Guerra do Chaco, a influência literária começa a vir dos
trabalhos de Franz Tamayo, mais especificamente o livro La creación de la Pedagogía
Nacional.

Em Tamayo, a chola deixa de ser representada como sujeito sexualizado e passa a ser
construída como madre de la nación. Ainda que Tamayo coincida com Arguedas de que não
existe uma possibilidade de redenção para o sujeito cholo, seu projeto está vinculado a uma
transformação do indígena, por meio da pedagogia, em um mestiço, representação do
desenvolvimento da nação (SORUCO, 2012, p.142). Ainda que Arguedas e Tamayo sejam

214
Os criollos são obcecados com o corpo do chola porque mais do que qualquer outro interrompe seu projeto de
pureza racial. A chola não é branca nem indígena, e ela - ao contrário do cholo - decidiu incorporar essa diferença
em seu próprio corpo. O vestuário dessas mulheres constitui um código visual diferenciado (indisciplinado) na
sociedade estatal boliviana. As polleras, a manta que pendura em suas costas e o chapéu borsalino correspondem
a uma moda européia anacrônica, e os elementos indígenas que completam o conjunto (tupo ou alfinete que segura
a mantilha), as tranças atadas por bolas de lã, o aguayo ( O tecido andino que está pendurado nas costas) torna essa
presença um subversor indesejável da pureza (pós) colonial que deve ser limpa.
120

contemporâneos, os trabalhos de Franz Tamayo são resgatados durante o pós-Guerra do Chaco,


“los matices entre ambos pensamentos se enfatizan según las condiciones históricas y objetivos
de la elite regional en pugna (La Paz y el Sur) en diferentes momentos históricos y discursos
políticos (liberalismo, populismo).” (SORUCO, 2012, p. 143)215. Ambos discursos negam a
influência do cholo na construção da nação, mas sofrem uma modificação em relação à
perspectiva sobre a chola.

A migração do campo para o incipiente espaço urbano define um processo de


mestiçagem, para Soruco, necessariamente quando sujeitos indígenas abandonam seus vínculos
com as comunidades, essa perspectiva informa ao leitor, de maneira indireta, já que ela não
enuncia, que a autora pensa a identidade indígena unicamente vinculada ao espaço rural.

No começo do século XX, tanto o discurso Arguediano de antimestizaje, quanto o


discurso de mestizaje, na perspectiva de Ximena Soruco, estruturavam suas perspectivas de
maneiras distintas entre os aymaras e os quéchuas. Pela memória histórica de guerra de razas
vinculada aos grupos aymaras, as lógicas construídas para o desenvolvimento desta identidade
estavam vinculadas à eliminação ou assimilação: “Así, las descripciones biologicistas del
‘carácter’ de la raza quéchua los consideran más proclives a la civilización, en comparación
con los aymaras.” (SORUCO, 2012, p.173)216. Arguedas em Pueblo Enfermo (1909),
compreendia os aymaras como belicosos em relação aos quéchuas, caracterizados como
obedientes. Um dos exemplos atrelado à memória histórica sobre os aymaras e utilizado por
autores como Belisario Días Romero, é o Massacre de Mohoza, que gera o estereótipo
antropófago sobre os grupos aymaras. Mas a leitura sobre o Aymara e o Quéchua enquanto
identidades distintas afetou também as caracterizações sobre as cholas:

En este sentido, la chola de origen aymara no puede ser narrada como un


símbolo nacional; para convertirse en metáfora de la nación debe ser
completamente occidentalizada a través de la educación y ese es el propósito

215
"As nuances entre os dois pensamentos são enfatizadas de acordo com as condições históricas e objetivas da
elite regional em conflito (La Paz e o Sul) em diferentes momentos históricos e discursos políticos (liberalismo,
populismo)".

"Assim, as descrições biologicistas do 'caráter' da raça quéchua os consideram mais propensos à civilização,
216

comparados aos aymaras."


121

de Díaz Villamil, hacer de su novela un programa pedagógico de


homogeneización cultural.217 (SORUCO, 2012, p.174-175)218

O que me parece interessante neste fragmento de Soruco é a diferenciação entre os


estereótipos construídos sobre as duas origens cholas, Aymara e Quéchua. A dúvida que fica
em suspensão no trabalho de Soruco é: Mas afinal, quais são as continuidades e
descontinuidades entre o ser chola e a sua origem indígena?

Em um diálogo com a integrante do coletivo Mujeres Creando, a chola Yola Mamani


Mamani, também criadora do programa Warminyatiyawinakapa (em tradução do Aymara,
“mulheres que sabem”) na Rádio Deseo, discutimos sobre a identidade chola, tema que
atravessa a maior parte dos trabalhos de Yola Mamani e a sua trajetória de vida. Caminhando
próximo às feiras de Alasitas, dialogamos sobre os processos históricos e a construção da
identidade chola, Yola é expressão das transformações do “ser chola”, em programas do
Colectivo La Curva, Yola aparecia com sua pollera, decotes e mechas coloridas nos cabelos,
características estranhas à ideia de tradicionalidade vinculada à chola e que gerou muitos
debates nas redes sociais. Yola Mamani me confessou, com seu sorriso largo característico, que
se identifica como chola Aymara, “Chola Aymara?”, perguntei a fim de que ela me explicasse
melhor sobre sua identidade, ela me relatou que era proveniente da comunidade de Warisata,
província de Omasuyos (MAPA I), e que havia migrado para a cidade com cerca de 12 anos
para trabalhar como trabalhadora doméstica na cidade de La Paz. Yola Mamani é responsável
por uma associação de trabalhadores domésticas em La Paz, composta por mulheres cholas que
lutam pelos direitos trabalhistas das trabajadoras del hogar (empregadas domésticas), ela
contou que com exceção das cholas transformers, aquelas que performatizam o ser chola em
alguns eventos específicos, as cholas que usam a vestimenta na cotidianidade são aymaras219,
pela memória, pela língua e pela raça. Ela me contou, nesta tarde chuvosa em La Paz, que não
conhecia uma chola que não fosse Aymara.

Além disso ela me deu uma informação determinante para compreender a identidade da
chola, “Aquí toda chola es Aymara, pero ni toda Aymara es chola!”. A chola, para Mamani,

217
Nesse sentido, o chola de origem aymara não pode ser narrada como símbolo nacional; para se tornar uma
metáfora para a nação deve ser completamente ocidentalizada através da educação e esse é o propósito de Díaz
Villamil, fazer de seu romance um programa pedagógico de homogeneização cultural.
218
Aqui a autora se refere à novela literária La niña de sus ojos (1948) de Díaz Villamil.
219
Ela se referia apenas às cholas paceñas.
122

torna-se uma identidade possível no interior da heterogeneidade do ser Aymara, perspectiva


que dialoga com as informações que me foram oferecidas por Dona Hilda.

Ximena Soruco (2012), no início e na conclusão de seu livro cria uma ilusão anacrônica
em sua narrativa resgatando os discursos da identidade cholo-chola. A autora narra sua entrada
em um minibús de La Paz levando o leitor a entender que a identidade que analisa entre os
séculos XIX e XX é igualmente performada na atualidade entre as pessoas ali presentes. A
cidade dos cholos em Soruco ruraliza os aymaras ao ponto de que cidade e os indígenas se
tornam elementos impossíveis de serem associados.

A Choledad como discurso de mestiçagem

O tema da choledad ou cholificación atravessa as leituras da mestiçagem em território


boliviano, há uma diversidade de perspectivas na análise da identidade cholo/chola (inclusive
perspectivas que dissociam estas duas formas de identificação). Autores como Fausto Reinaga
sustentam uma análise do cholo como identidade vinculada aos setores criollos, outros resgatam
as leituras de Quijano (1980) que compreende a cholificación como uma transição entre duas
culturas, andina e criolla, mas que mantêm um vínculo claro com a tradição andina. Apresento
aqui um pouco das perspectivas sobre o cholo para dialogar com as teorias da mestiçagem já
apresentadas.

Para Soruco (2012), o cholo carrega uma fluidez por estar posicionado entre identidades,
índio e criollo, o que mantem conexões deste com ambos mundos que o compõe. A fluidez da
identidade do cholo também está vinculada às suas impossibilidades no espaço de transição,
ainda que haja uma possibilidade de deixar de ser índio, os sujeitos cholos não podem chegar a
ser criollos, mas ao mesmo tempo, possuem um acesso aos códigos de ambas identidades
“limites” configurando o que Soruco denomina “nós coletivo”, que é passageiro e móvel, mas
que emprega a própria ambiguidade de ser cholo em favor da conexão com os dois mundos
(SORUCO, 2012, p.26).

A autora, ainda, analisa as primeiras aparições da palavra cholo durante a Colônia, uma
delas está em arquivos de 1608, Audiência de Charcas, em que os irmãos Juan e Diego Márquez
são caracterizados como filhos de mestiço com índia, ambos falavam a língua castelhana “como
índios” e comiam e bebiam com estes, segundo o documento apresentado no trabalho de
Paredes Candia (1992). Para Soruco (2012), estes mestiços estavam isentos de obrigações como
123

o “tributo indígena”, mas ao mesmo tempo não recebiam a proteção da Coroa espanhola por
não serem categorizados como índios.

Es decir, los cholos están estrechamente incrustados en las relaciones de


dominación colonial establecidas por los criolloshacia los indígenas; es más,
se benefician de ellas. Pero su crecimiento económico y ascenso social no les
garantiza espacio ni reconocimiento en el polo dominante, sino que sufren la
discriminación y exclusión que viven los indígenas, sin el respaldo de una
comunidad (ayllu). En este sentido, ¿son parte del polo hegemónico o
subalterno de la sociedad boliviana? ¿Están más vinculados a lo indígena tal
como indica Albó al hablar de ellos como ‘residentes aymaras urbanos’? ¿Sus
aspiraciones de movilidad social y proyección de una “identidad” que parece
no asentarse en nada más seguro que no ser indio (Harris, 1995) los convierte
en “traidores” de lo indígena y lo subalterno? (SORUCO, 2012, p.31)220

Aqui Soruco expõe sua perspectiva acerca de duas identidades, a identidade do cholo e
a identidade indígena (especificamente Aymara e Quéchua, que são as nações de organização
política ayllu). O cholo, para ela, é aquele sujeito que se afasta da comunidade e através da
migração aspira a uma ascensão social, o indígena seria então, o sujeito que permanece no
espaço rural, vinculado à comunidade ayllu. Um problema desta perspectiva é que a autora não
define o que seria um “respaldo” da comunidade, nem tampouco o que define esta ascensão
econômica, considerando que sujeitos como Dona Hilda Chambi, que migraram para a cidade
de El Alto, mantêm um vínculo com a comunidade ao ponto de assumir os cargos de autoridade
quando estes tocam à família, além de estarem em constante ascensão econômica por meio do
mercado local, seja ele formal ou informal.

Para Soruco, no começo dos anos 1900, após os ocorridos no “Proceso de Mohosza”, as
perspectivas contra os indígenas estavam na base da narrativa nacional. Como a economia
nacional não era mais dependente do Tributo Indígena, mas do auge do estanho, ocorre o
desenvolvimento de um bloco hegemônico que permite a construção de um projeto de cultura
nacional por parte da intelligentsia paceña. É deste processo que nasce a literatura indigenista
tendo como referência Alcides Arguedas com seu olhar pessimista sobre o progresso nacional
em Pueblo Enfermo. Com maior expressão nos anos 1920, a política criolla vinculada a esta

220
“Ou seja, os cholos estão intimamente embutidos nas relações de dominação colonial estabelecidas pelos
criollos em relação aos indígenas; além disso, eles se beneficiam delas. Mas seu crescimento econômico e
promoção social não lhes garante espaço nem reconhecimento no polo dominante, mas sofrem a discriminação e
a exclusão que os indígenas vivem sem o apoio de uma comunidade (ayllu). Nesse sentido, fazem parte do polo
hegemônico ou subalterno da sociedade boliviana? Eles estão mais ligados aos indígenas, como indicado por Albó
quando falam sobre eles como 'residentes urbanos aymaras'? Suas aspirações de mobilidade social e projeção de
uma 'identidade' que parece não se apoiar em nada mais seguro do que não ser índio (Harris, 1995) as tornam
"traidoras" dos indígenas e dos subalternos?”
124

literatura, defende uma pureza racial atrelada a uma lógica de progresso, percebendo a mescla
como antiprodutiva, este tipo de análise é o que Soruco denomina antimestizaje.

Na perspectiva de Toranzo e Arrieta (1989), após a Revolução Nacional de 1952, houve


a ascensão de uma “burguesia chola”, como grupo comercial dinâmico da década de 1970. Esta
“burguesia”, como definem os autores, se forma com o processo de migração do campo para a
cidade, que 1952 desencadeia, este seria, para Soruco, um debate importante acerca do
descobrimento do cholo. Outra perspectiva da ascensão deste setor é a de Albó (1976), que
define este (cholo) como “residentes aymaras urbanos”, uma vez que não rompem com
elementos da cultura Aymara, dentre eles, a língua. Mas a maior parte dos trabalhos acerca da
choledad, incluindo o de Soruco (2012), se debruçam sobre a vertente dita feminina desta
identidade e suas influências nas redes econômicas na Bolívia221, a chola, como analisei no
último subcapítulo.

A preocupação de Soruco, quando desenvolve uma pequena parte de seu trabalho sobre
o cholo, é definir um distanciamento entre o ser cholo e o ser indígena, um distanciamento que
termina com a essencialização do sujeito indígena, já que a autora define este a partir de uma
negação da modernidade: “mantengo la observación de que pensar lo cholo como
imediatamente indígena, sin prestar atención a ninguna mediación, no deja ver las tensiones
entre la autoafirmación indígena, hoy más pronunciada que nunca, y la búsqueda de inserción
a la modernidad.” (SORUCO, 2012, p.36)222. As tensões existentes sobre a autoafirmação
indígena, dialogam com os movimentos sociais aymaras que foram apresentados no primeiro
capítulo, estes criticam a lógica da modernidade a partir da modernidade mesma, de seus modos
de implementação na sociedade boliviana, mas não negam a possibilidade dos aymaras de
negociarem com os instrumentos da modernidade historicamente. A entrada de aymaras no
mercado boliviano é uma constante, a relação entre as comunidades e as feiras de El Alto são
determinantes para a economia local e na independência desta cidade com relação aos mercados
monopólicos, um exemplo é a Feria 16 de Julio.

A perspectiva de Javier Sanjinés no Prólogo ao livro de Soruco (2012), associa o sujeito


cholo a um processo de mestiçagem múltipla, percebendo a construção histórica desta

221
A leitura da chola como setor feminino no mundo cholo é apenas uma perspectiva, ainda que preponderante,
existem perspectivas como a de Yola Mamani, na qual a chola como identidade, é uma identificação vinculada à
heterogeneidade do mundo Aymara.
222
"Eu mantenho a observação de que pensar cholo como imediatamente indígena, sem prestar atenção a qualquer
mediação, não revela as tensões entre a autoafirmação indígena, agora mais pronunciada do que nunca, e a busca
por inserção na modernidade."
125

identidade, não como linear, mas vinculada a um processo de violências (SANJINÉS, 2012).
Por ser uma construção heterogênea e com diversas tonalidades, não é possível interpretá-la
senão periodicamente. Compreender apenas a identidade mestiça como heterogênea e periódica
e não direcionar o mesmo exercício de leitura para a identidade Aymara (ou indígena, como um
dos polos que constitui o discurso de mestiçagem), me parece o grande problema no trabalho
de Soruco, é uma tentativa de salvar os discursos de mestiçagem apagando as diversas
tonalidades da identidade indígena.

Em “Recoveras de los Andes. Una proximación a la identidad de la chola del mercado”


(1992), Elizabeth Peredo estrutura uma descrição da identidade do cholo de algum modo
aproximada à perspectiva de Soruco, porque o interesse da autora é compreender o setor das
cholas de Mercado na cidade de La Paz, associando cholo e chola no interior da mesma
identidade.

Para Peredo, existe uma autoidentificação da chola em relação à própria identidade, o


que diferencia o reconhecimento desta com a do cholo, categoria construída pejorativamente.
A autora estrutura uma análise filológica da palavra cholo, passando pelas denominações
contextuais, mas também recorrendo as variações da palavra em um mesmo contexto. A palavra
tem suas primeiras aparições no Vocabulario de la lengua Aymara de Ludovico Bertonio
(1612), neste texto a palavra Chhulu anocara aparece traduzida como perro (cachorro),
enquanto a palavra Chhulu tem como significado mestizo. Para a autora (1992), em muitos
momentos da história colonial a palavra cholo aparece vinculada à palavra mestizo, no entanto,
no decorrer da história colonial o cholo começa a ser associado ao sujeito mestiço mais
vinculado ao indígena, uma mestiçagem que não se assemelha aos brancos pela preservação de
características “originárias” (PEREDO, 1992, p.5). O cholo é lido por Jorge Juan e Antonio de
Ulloa, cronistas de 1746 citados por Peredo, como índio muchacho, ou seja, índios que foram
roubados e vendidos para trabalharem como criados para os criollos. Em outra referência,
Peredo relata a associação feita por Varallanos da palavra chullo do Aymara e sua adaptação
como cholo pela língua espanhola.

Según el filólogo Juan Benjamín Dávalos: “Esta palabra ha nacido de chullo,


que es el gorro de hilo de lana de variados colores y labores que hoy mismo
usan los peruanos de las serranías. Los conquistadores, sea por sarcasmo o
por falta de algún apodo genérico que aplicar a sus vencidos, los llamaron
por el distintivo de la prenda de la cabeza y, como en aquellos tiempos recién
nacía la Ll, la que en latín se pronunciaba como doble L, por confusión de
sonidos, la palabra escrita chullo, los clásicos leían como chulo; y como, por
126

otra parte, hubo necesidad de distinguirlos de los chulos españoles, se


generalizó la denominación de cholo peruano” (Varallanos, 1960:25).
(PEREDO, 1992, p.6)223.

Nesta perspectiva, a palavra nasce necessariamente vinculada aos aymaras. Após a


Revolução de 1952, a palavra cholo, assim como o denominativo campesino, negou as
nacionalidades e identidades aymaras e quéchuas para sustentar uma determinação de classe, o
cholo começa a ser lido como o sujeito migrante que alcança alguma ascensão econômica no
mercado boliviano, seja como artesão, seja como comerciante nas feiras e demais espaços. Para
Albó (1982), o cholaje antes da Reforma Agrária de 1953, era um setor intermediário que
assumia sua relação com a sociedade boliviana de forma individual, como método de safar-se
do pagamento dos Tributos Indígenas. Após a Reforma Agrária, com o inchamento da cidade
de La Paz (Chuquiawu), para Albó há o desenvolvimento de uma variante Aymara urbana, e
não necessariamente um setor cholo, isto porque esta variante auxilia na adaptação de “novos
migrantes”: “es una suerte de subcultura ‘colchón’ en el sentido de que les permite mantener
muchos de sus rasgos culturales em el marco de lo urbano y ello hace que la transición hacia
lo urbano sea menos dolorosa que en otras partes.” (PEREDO, 1992, p.22)224. Albó deixa
claro que os residentes aymaras da cidade de Chuquiawu não se definem como índios e
tampouco como cholo, uma vez que ambas determinações identitárias carregam um peso
pejorativo histórico, índio porque o reifica no espaço rural e cholo porque está determinado
como subjugado ao criollo.

A perspectiva de Albó não parece persuadir Peredo, que se alia à lógica de cholificación
de Quijano (1980), como um trânsito forçado pela sobreposição de culturas, uma mestiçagem
que tem uma ligação específica com o andino, esta mestiçagem assume duas vias, uma para os
espanhóis que a utilizaram para subjugar populações, e outra para os kuracas (autoridades dos
ayllus), para sobreviver nos termos da Colônia.

A partir de la revisión realizada, podríamos afirmar que el ser cholo o chola


en el contexto de la colonización, es un proceso de asimilación-

223
“Segundo o filólogo Juan Benjamín Dávalos: ‘Esta palavra nasceu de chullo, que é o gorro de lã de variadas
cores e trabalhos que os peruanos das montanhas usam hoje. Os conquistadores, seja pelo sarcasmo ou pela falta
de algum apelido genérico para aplicar a seus vencidos, os chamavam pela vestimenta distintiva da cabeça e, como
naqueles dias o Ll nasceu, que em latim foi pronunciado como duplo L, pela confusão de sons, a palavra escrita
chullo, os clássicos liam como chulo; e como, por outro lado, havia a necessidade de distingui-los dos chulos
espanhóis, o nome do cholo peruano foi generalizado’. "
224
"É uma espécie de subcultura de 'colchão', no sentido de que permite que eles mantenham muitas de suas
características culturais dentro da estrutura urbana e isso torna a transição para o urbano menos dolorosa do que
em outras partes."
127

transformación de los valores occidentales y, al mismo tiempo, de ruptura-


preservación del mundo andino. El cholo se emancipó de su condición de
indio a costa de sufrir el repudio-envidia de los indios y de ser valorado-
menospreciado por los españoles. El recuento histórico del devenir del
cholaje durante la colonia no se puede definir con un solo adjetivo, sino
siempre con la suma contradictoria de dos polos opuestos: el colonizado y el
colonizador. (PEREDO, 1992, p.25)225

Em seu trabalho Quijano nega a possibilidade de uma leitura do mundo andino a partir
de uma mestiçagem de sangue, apostando por uma análise dos modos de vida para caracterizar
as identidades. Para Peredo (2012), todos os cholos são mestiços, ou melhor, constituem uma
subcultura na ampla gama mestiça, perdendo o vínculo com sua cultura “original” Aymara:
“Uno deja de ser cholo en tanto y cuanto acaba perdiendo los valores y lazos que lo atan a lo
indígena.” (PEREDO, 1992.p.30)226. No interior desta subcultura, para a autora, existe a
condição da chola de mercado que, a parte de ser um setor intermédio como o cholo, é uma
identidade intermediária em sua posição nos mercados, relacionando-se diretamente com os
mundos que a constituem.

Em “Aproximaciones al mundo ‘chhulu’ y ‘huayqui’” (1990), Rossana Barragán se


preocupa com o tema da mestiçagem, porque constata em trabalhos anteriores, que a partir do
século XX os indígenas passaram por uma perda dos valores comunitários e dos seus meios de
produção própria assumindo um papel mais expressivo nas atividades artesanais e na venda da
força de trabalho, em detrimento das atividades agrícolas. Para a autora, o sujeito cholo é aquele
que possui uma especificidade, cuja origem é rural e indígena, com uma identidade diferenciada
do mundo criollo (bilinguismo Aymara-espanhol, vestimenta, tradições e outros elementos)
(BARRAGÁN, 1990, p.69). No entanto, a lógica racial do ser mestiço/cholo está associada à
classificação social, ou seja, quanto mais elevado socialmente, se apresenta como mais
branco227. Mas esta determinação pode ser pensada de maneira relativa a quem enuncia, se é

225
A partir da revisão realizada, podemos afirmar que ser cholo ou chola no contexto da colonização, é um
processo de assimilação-transformação dos valores ocidentais e, ao mesmo tempo, ruptura-preservação do mundo
andino. O cholo emancipou-se de seu status de índio ao custo de sofrer o repúdio - inveja dos índios e ser valorizado
- desprezado pelos espanhóis. A recontagem histórica da evolução do cholage durante a colônia não pode ser
definida com um único adjetivo, mas sempre com a soma contraditória de dois polos opostos: o colonizado e o
colonizador.
226
"Uma pessoa deixa de ser um cholo na medida em que acaba perdendo os valores e laços que o ligam aos
indígenas".
227
A perspectiva de Barragán dialoga indiretamente com alguns trabalhos sobre raça no Brasil, dentre eles o de
Oracy Nogueira (2006 [1954). O autor constrói um quadro de referência para pensar o racismo no Brasil em
comparação com o racismo nos Estados Unidos, o primeiro como preconceito racial de marca e o segundo como
preconceito racial de origem. Um possível diálogo entre Barragán e alguns elementos do quadro de referência
construído por Oracy Nogueira, é que o preconceito racial de marca revela uma diferença no tratamento dado às
128

enunciada pelos “de cima”, os cholos podem ser caracterizados como “índios”, porém, visto
pelos “de baixo” essa categoria não se aplica.228 A autora observa a existência de uma
autoidentificação enunciada por cholitas, porém, por parte dos homens há um rechaço da
identidade cholo: “los grupos sociales identificados por los términos ‘indígena’ o ‘mestizo’ son
por consiguiente ante todo sociales, relativos y fluidos” (Barragán, 1990, p.71)229.

No entanto, ainda que a vestimenta foi um elemento importante para definir o setor
mestiço/cholo, para a autora esta não supõe uma “mimetização” do mundo criollo. Neste caso,
a vestimenta é determinante porque a identidade é definida por uma identificação visual. Esta
observação de Barragán apresenta muitas afinidades com algumas perspectivas que meu campo
me comunicou. Em muitos espaços de El Alto e de Omasuyos, percebi que existe um processo
de autoidentificação (“Yo soy Aymara!”; “La pollera es lo que somos!”) no sentido de algo
enunciado pelo próprio sujeito sobre si mesmo, mas também um processo de
heteroidentificação no sentido de enunciações de sujeitos distintos, seja violento (“india de
mierda”, “ese cholo”) ou em diálogos cotidianos (“Mis amigos son aymaras!”; “Son collas,
pues.”). Essas apreciações dos sujeitos aymaras e não aymaras evidenciam a estrutura que
define as identidades, tomar analiticamente apenas a autoidentificação deixa de lado os
processos de colonização e violência que a definem, bem como a identidade vista por sujeitos
alheios.

Para Barragán, a identidade definida pelo processo de mestiçagem cholo estava


determinada pela relação de trabalho (artesãos, trabalhadores do serviço doméstico etc.),
identidades distintas aos grupos rurais, especificamente pelo afastamento da produção agrícola:
“Especialización y ‘mestizaje’ constituyen por lo tanto, en el período colonial, una pareja
indisoluble.” (Barragán, 1990, p.77)230.

pessoas negras com relação à sua instrução, classe social, profissão, dentre outras características de privilégios
sociais. O que Nogueira (2006) apresenta, é que os sujeitos negros tem maior “passibilidade” ao mundo branco
quando acessam os espaços mais privilegiados da sociedade, o que tem íntima relação com a perspectiva de
Barragán de que a cholificación pode ser lida como um “devir branco” quando o mestiço tem acesso à
determinados espaços privilegiados na classificação social.
228
Alguns eventos ocorridos no ano 2018 exemplificam bem esta relação apresentada por Barragán. Um docente
do curso de Direito da Universidad Autónoma Gabriel René Moreno (UAGRM) foi gravado sendo racista contra
a população kolla (http://www.la-razon.com/sociedad/Discriminacion-racismo-docente-Santa_Cruz-Derecho-
Bolivia_0_2904909523.html ); e o caso de uma mulher filmada em um ônibus público ofendendo a uma senhora
de pollera com frases como “india... con sus polleras carajo!”
(https://erbol.com.bo/noticia/social/14032018/presentan_denuncia_contra_mujer_filmada_en_acto_racista ).
229
"Os grupos sociais identificados pelos termos 'indígena' ou 'mestiço' são consequentemente principalmente
sociais, relativos e fluidos"
230
"Especialização e 'mestiçagem' são, portanto, no período colonial, um casal indissolúvel".
129

Na leitura de Barragán “las leyes españolas exoneraban a los mestizos de toda


obligación fiscal tributaria” (BARRAGÁN, 1990, p.75)231, ocorre que a representação do
mestiço aparece de diversos modos nos textos históricos, um exemplo é a representação feita
por Waman Poma de Ayala. No capítulo “Españoles”, existem duas imagens emblemáticas, na
primeira as inscrições “Españoles/Soberbioso Criollo/o mestizo/ o mulato deste reyno/ en los
pueblos” acompanha a imagem de um homem com traje espanhol e barba, que é um distintivo
importante232, com uma faca nas mãos apontada para outro homem deitado no chão, este
segundo com traços indígenas, o primeiro aparece pisando sobre a cabeça do segundo. A
definição do sujeito mestiço acompanha os termos “mentirosos, jugadores, miserables,
tramposos” (POMA DE AYALA, 1980, p.534).

A segunda imagem, por sua vez, é simbólica, com as inscrições “Españoles/ Soberbiosa
criolla, o mestiza/ o mulata deste reyno/ en los pueblos”, a figura representa duas mulheres, a
primeira aparece com trajes espanhóis puxando o cabelo da segunda, que de joelhos, derrama
muitas lágrimas, nas mãos da primeira mulher é possível visualizar uma espécie de faca, o que
não fica claro é se a faca será usada para cortar os cabelos ou a cabeça da indígena, cada leitura
tem uma interpretação distinta. Em um esforço hermenêutico me lembrei de que em alguns
diálogos tanto com Roger, quanto com Dona Hilda, ambos evidenciavam a importância do
cabelo para as mulheres aymaras, “es su honor”, diziam. Percebi a importância do cabelo para
as aymaras quando fomos dançar na comunidade de Ch’ojñapata, nesta ocasião, enquanto nos
aprontávamos na sala de uma casa de adobe, uma mulher aproximou-se em lágrimas, ela havia
passado por um tratamento médico e perdeu parte considerável do cabelo, com uma peruca
negra nas mãos pedia para uma de minhas cunhadas ajudá-la a acomodar na cabeça e trançá-la
em duas. A relação afetiva com os cabelos demonstrava a sua importância no momento da
dança, de apresentar-se para a comunidade. No caso de Waman Poma, a representação
imagética do corte do cabelo pode comunicar o que não está dito no corpo do texto, que a
mestiça retira a honra da mulher índia.

231
"As leis espanholas isentaram os mestiços de qualquer obrigação fiscal"
232
Alguns contos aymaras associam os espanhóis que chegaram ao território andino com o deus Wiracocha, uma
imagem de um homem com barbas. Segundo descrições presentes no sítio arqueológico de Tiwanaku, em peças
que contêm a imagem da divindade a associação dá-se pela barba que os espanhóis possuíam, característica não
presente na constituição física dos andinos. Segundo Roger Chambi, esta é uma versão romantizada da história,
para ele a associação dava-se porque quando os espanhóis chegaram nos andes, os Incas já tinham conhecimento
de sua chegada pelo mar nas costas, a associação aconteceu por ter sido Wiracocha uma divindade que apareceu
das águas do Titicaca. A perspectiva de Roger Chambi é interessante porque nos convida a pensar nas redes de
informação que os andinos tinham até as costas do território da Abya Yala, rompendo com as perspectivas dos
indígenas como ilhas.
130

Outra leitura possível é a estruturada por Silvia Rivera Cusicanqui ao analisar o


descabezamiento de Atawalpa como alegoria da desestruturação do Tawantinsuyo (disponível
no diálogo em Anexos). Deste modo, ambas imagens podem representar a alegoria do
descabezamiento, uma vez que em ambas as facas são apontadas na direção do pescoço dos
indígenas. Para Silvia Rivera, o descabezamiento é a própria desestruturação, porque a cabeça
é o complemento do chuyma (entranhas), retirá-la do corpo significa estruturar uma
desorganização, um desequilíbrio no corpo político daquela sociedade (RIVERA
CUSICANQUI, 2010, p.15). Neste caso, o mestiço seria o sujeito deste desequilíbrio, um
mestiço que é representado com trajes espanhóis, além de características físicas marcantes
distintas aos indígenas, como por exemplo o bigode e a barba.

ESPAÑOLES ESPAÑOLES
SOBERBIOSO
CRIOLLO SOBERBIOSA
o mestizo o mulato de CRIOLLA
este reino O mestiza o mulata de
en los pueblos este reino
criollos en los pueblos
FIGURA 5. (GUAMAN FIGURA 6. (GUAMAN
POMA DE AYALA, POMA DE AYALA,
1615.p540)
1615.p540)
131

Barragán utiliza dados populacionais acerca da identificação mestiço/cholo, todavia é


necessário comparar narrativas de um processo histórico sobre a mesma temática. Contudo, ela
aponta que a denominação como mestiços por parte dos representantes do Estado foi uma
estratégia política contra as terras comunitárias, segundo Barragán,

Ya a principios del siglo XX, volviendo a La Paz, el censo nos muestra que la
ciudad tenía casi equitativamente la misma población indígena, mestiza y
blanca (38% de españoles, 29% de mestizos, y 30% de indígenas). Sin
embargo ya era difícil reconocer a los mestizos, sobre todo hombres. Los
responsables del censo de 1909 señalaban, por ejemplo, que los mestizos se
vestían a la manera occidental y se presentaban en las fiestas vestidos con
sombreros, bastones y guantes. Las mujeres, por el contrario, mantuvieron su
identidad visible hasta nuestros días, tema que sin duda constituye otra
problemática sumamente importante. (BARRAGÁN, 1990, p.80)233

A análise dos processos de identificação a partir de documentos institucionais do Estado


pode conter uma problemática importante abordada pelos Comaroffs em “Etnografia e
imaginação histórica” (2010), segundo estes autores, é possível fazer uma etnografia de
arquivos, mas é necessário não confiar totalmente nos documentos da época e procurar nos
jornais e na literatura os "traços textuais", isto é, diálogos e controvérsias às informações dos
arquivos: “tivemos de buscar o que Greenblatt (1990:14) denomina, os ‘traços textuais’
do período, traços encontrados em jornais e publicações oficiais, bem como em romances,
panfletos, canções populares e até mesmo desenhos e jogos infantis” (COMAROFFs, 2010,
p.41). Acredito que a história oral é um elemento determinante para a leitura dos processos
históricos.

Durante minha estadia na casa dos Chambi, tive a oportunidade de analisar os arquivos
antigos da família, arquivos que tinham relação com Don Ascencio Chambi e sua primeira
esposa, Martha, com quem teve dois filhos que vieram a falecer assim como a mãe. Dona Hilda
me autorizou tirar algumas fotos de atestados de óbito e de matrimônio, todos identificando a
raça das pessoas. Um dos documentos me chamou mais atenção, o atestado de óbito de
Margarita Huanca Verástegui, mãe de Don Ascencio, onde consta “mestiça” na determinação
racial. Analisando os demais documentos encontrei o atestado de matrimônio de Margarita com

233
“Já no início do século XX, retornando a La Paz, o censo nos mostra que a cidade tinha quase igualmente a
mesma população indígena, mestiça e branca (38% dos espanhóis, 29% dos mestiços e 30% de indígenas). No
entanto, já era difícil reconhecer mestiços, especialmente homens. Os responsáveis pelo censo de 1909 notaram,
por exemplo, que os mestiços se vestiam à maneira ocidental e se apresentavam em festas vestidos com chapéus,
bengalas e luvas. As mulheres, por outro lado, mantiveram sua identidade visível até hoje, um tema que, sem
dúvida, constitui outro problema extremamente importante.”
132

Antonio Chambi Guanca, pai de Don Ascencio, neste segundo documento a raça de ambos é
caracterizada como “indígenas”, diante da minha expressiva dúvida acerca da diferença entre
os dois documentos, Dona Hilda comentou: “Ella llevaba pollera, era india pues!”. Dona
Margarita se casa como indígena e morre como mestiça, sendo um período de quinze anos que
separa as duas determinações raciais. Não posso encontrar respostas exatas para a análise,
porque Dona Margarita faleceu durante o parto do único filho, don Ascencio Chambi, que não
possuía muitas informações sobre a mãe até a sua morte. No entanto, colocarei algumas
questões que me auxiliaram a pensar o processo de mestiçagem como uma disputa histórica em
muitas vertentes.

No Atestado de Óbito não está registrado o nome da pessoa que solicitou o documento,
deste modo não sei se foi algum familiar quem realizou a descrição racial da falecida. Ambos
documentos foram elaborados na comunidade de Achacachi, província de Omasuyus, La Paz,
porém, analisando as duas assinaturas, constatei que se trata de notários diferentes. Outro
elemento que pode ter implicado para a modificação racial é o sobrenome de Dona Margarita,
Verástegui de origem Vasco (Espanha) foi um sobrenome de famílias nobres. Posso presumir
que alguma família de fazendeiros emprestou o sobrenome para os indígenas que trabalharam
em sua fazenda, haja a vista que as marcações raciais na Bolívia estão vinculadas aos
sobrenomes234, ou que houve modificações do próprio nome por parte de membros da família
como saída para os tributos indígenas e trabalhos forçados. O tempo também pode ter sido um
elemento determinante, o primeiro documento foi emitido antes da Revolução de 1952,
enquanto o segundo, que a caracteriza como mestiça, foi emitido após esta Revolução, que
pregava um discurso de mestiçagem vinculado aos camponeses. Todas estas suposições me
comunicaram que ser “mestiço” ou “indígena” nos documentos “oficiais” é variável com
relação à conjuntura histórica e às relações que definem estas identidades.

234
Os sobrenomes Mamani, Quispe, Huanca, dentre outros, foram categorizados historicamente como indígenas.
Em 1975 o presidente Hugo Bánzer emitiu um decreto para que os indígenas pudessem modificar os nomes, uma
vez que só assim poderiam ingressar aos institutos superiores e às escolas militares, segundo o linguista Eulogio
Chávez foi a própria Confederación de Campestres quem pressionou o governo para a aprovação do decreto.
Segundo Luz Mendonza (2009) a ânsia pela modificação dos sobrenomes vem do período colonial, quando os
indígenas buscavam sobrenomes “mestiços” para se libertarem dos tributos indígenas e dos trabalhos forçados. A
polêmica sobre as modificações dos sobrenomes perpassou a figura de Evo Morales, algumas investigações
publicadas por Mendonza constataram que em Orinoca, região onde nasceu Evo Morales Ayma, o sobrenome
comum era Katari, investigações genealógicas do presidente concluíram uma modificação do sobrenome no
histórico da família de Katari para Morales. Em 2018 aconteceu uma reunião de Mamanis com o objetivo de
revalorizar o sobrenome, que em Aymara significa falcão, a reunião foi denominada Jacha Mamani, “os grandes
Mamanis” em Aymara, e contou com a presença do sociólogo Pablo Mamani, do arquiteto Freddy Mamani, do
pintor Mamani Mamani e de outros tantos Mamanis de distintas áreas.
133

FOTO 14. Foto fornecida por Dona Hilda, segundo ela Dona Margarita está ao centro

Acerca da genealogia do termo “cholo”, como vemos, existe um vínculo com a lígua
espanhola (Madri), mas também pode estar vinculada à língua Aymara, no Vocabulário de
Ludovido Bertonio analisado por Barragán, a palavra chhulu significa perro, entretanto existe
uma ligação entre esta palavra e Huayqui como parentesco, assim em Ludovico Bertonio
Huayqui haque seria o mestiço que não é espanhol, mas tampouco é índio, ainda que tenha um
vínculo direto com a cultura andina, a própria ambiguidade do termo é associado por Barragán
à identidade cholo que mais tarde será melhor definida no imaginário social do Alto Perú.

No prólogo à primeira edição de Peredo (1992), Rafael Archondo se posiciona em favor


da leitura de que o indígena pode entrar na modernidade a partir de seus próprios termos: “En
cuanto al mundo andino, podría decirse que se há forjado la posibilidad de acogerse a la
modernidade sin dejar de ser aymara o quéchua. En otras palavras, el camión, el mercado y
134

la computadora se reordenan de acuerdo a la lógica andina y la hacen más viable, más apta
para sobrevivir y afrontar los retos del porvenir.” (ARCHONDO em PEREDO, 1992, p.X)235.

Em “Qué hacer con los índios… Y otros traumas irresueltos de la colonialidad” de


Pablo Stefanoni (2010),

La “ciudad aymara” de El Alto es, posiblemente, el ejemplo paradigmático


de este mundo plebeyo, con un 47 por ciento de obreros – la mayoría en
pequeños talleres – y un 41 por ciento de trabajadores por cuenta propia (el
comercio representa 30 por ciento de la actividad económica), Una poderosa
“economía informal” emergió al margen del Estado (incluyendo contrabando
y piratería), y las redes de compadrazgos y densos espacios públicos no
estatales estructuran un abigarrado campo político antropológico, en el que
solamente trabajos de campo podrían determinar hasta qué punto estas
inercias comunitarias resignificadas y reactualizadas constituyen una vía
hacia la emancipación o son, por el contrario, funcionales al “capitalismo
andino”, sustentado en la precarización del trabajo, la ausencia de derechos
laborales y la explotación de la mano de obra familiar. (STEFANONI, 2010,
p.31)236

Para Stefanoni, as formas de construir o espaço urbano em El Alto, que são aymaras,
constituem um tecido próprio em organizações como as Juntas Vecinales e em outras
expressões desta que o autor denomina cultura plebeya. O autor não nega que existe um
afastamento entre a cultura jovem e as representações culturais dos primeiros migrantes, os
jovens começam a acessar espaços que, em geral, seus pais não tiveram contato como a
Universidade (A Universidade Pública de El Alto é uma expressão importante neste processo
de mudanças), todavia, o autor não lê como um caminho à mestiçagem, mas como apropriações,
adaptações e reinvenções que se distanciam da cultura andina dos pais, mas que constróem sua
própria forma de ser Aymara em muitos âmbitos e a partir de muitos instrumentos. Um exemplo
é o hip-hop, que primeiro rompe com a estética andina por meio das roupas largas e o look
gringo, mas que ao mesmo tempo se volta à cultura andina, construindo suas líricas em Aymara

235
"Quanto ao mundo andino, pode-se dizer que se forjou a possibilidade de se beneficiar da modernidade sem
deixar de ser Aymara ou Quéchua. Em outras palavras, o caminhão, o mercado e o computador são reordenados
de acordo com a lógica andina, tornando-o mais viável, mais apto a sobreviver e enfrentar os desafios do futuro”
236
"A 'cidade Aymara' de El Alto é, possivelmente, o exemplo paradigmático desse mundo plebeu, com 47% dos
trabalhadores - a maioria em pequenas oficinas - e 41% dos trabalhadores autônomos (o comércio representa 30%
da atividade econômica), uma poderosa 'economia informal' emergiu às margens do estado (incluindo contrabando
e pirataria), e redes de compadrios e densos espaços públicos não-estatais estruturam um abigarrado campo político
antropológico, no qual somente trabalho de campo poderia determinar em que medida estas inércias comunitárias
resignificadas e reatualizadas constituem um caminho para a emancipação ou são, ao contrário, funcionais para o
'capitalismo andino', sustentadas pela precariedade do trabalho, pela ausência de direitos trabalhistas e pela
exploração da mão de trabalho familiar."
135

e reivindicando os heróis anticoloniais (STEFANONI, 2010, p.32), exemplos dessa expressão


Aymara são Eber Miranda e Ukamau y ké.

Stefanoni critica os intelectuais que mantêm os indígenas aliados a uma ruralidade


romântica, especialmente os antropólogos da religião, que analisam a entrada do
neopentecostalismo nos andes como mestiçagem, neomestizaje na leitura do autor,
desconsiderando a possibilidade de transformações no antro da própria cultura Aymara,

Todas ellas transformaciones que los amantes de las continuidades


ancestrales no quieren ver, ya que eses espacios comunitários son el
receptáculo de ciertas proyecciones utópicas, sean estas políticas
(anticapitalistas) o sócio-antropológicas: la tradicional búsqueda de espacios
no contaminados por la modernidad liberal/occidental (STEFANONI,
2010.p.36)237.

A tradição percebida como transformação é tema de um artigo de Artionka Capiberibe


(2017). Analisando as crises, fenômenos de possessões, e o cristianismo em comunidades
indígenas do baixo rio Oiapoque, fronteira entre Brasil e Guiana Francesa, a autora convida o
leitor a desvencilhar-se das polaridades entre mudança e continuidade. Para Capiberibe, quando
a “tradição” se apresenta como transformação nas contínuas relações que essas populações
estabelecem com o cristianismo, as polaridades se extinguem, uma vez que na própria mudança
há continuidade e na continuidade existem mudanças. A transformação aqui é lida por meio da
“criação de significados produzidos na relação entre o cristianismo e a sociocosmologia nativa”
(CAPIBERIBE, 2017, p.313)238. A sociocosmologia Aymara quando em contato com as
religiões cristãs produzem significados próprios, como Todos los Santos e Las ñatitas,
apresentadas no capítulo anterior.

As leituras acerca da choledad como uma identidade vinculada diretamente aos costumes
andinos é criticada por Fausto Reinaga, que em “El índio y el cholaje boliviano” (1968)239
define sua preocupação: “Ahora vamos al cholo, conocido también con los nombres de: k’ara,
mussu, mesti, mestizo, criollo, Huiracocha, caballero, etc.” (REINAGA, 1968). O autor cita
Gustavo Adolfo Otero, quem faz uma investigação filológica sobre o termo cholo, buscando

237
“Todas essas transformações que os amantes das continuidades ancestrais não querem ver, pois esses espaços
comunitários são o receptáculo de certas projeções utópicas, sejam elas políticas (anticapitalistas) ou sócio
antropológicas: a busca tradicional por espaços não contaminados pela modernidade liberal/ocidental.”
238
A autora toma sociocosmologia emprestado de Viveiros de Castro (1986) em sua etnografia com os Arawete,
compreendendo o termo como uma relação entre a sociologia e a cosmologia indígenas que se apresentam como
inseparáveis.
239
Este texto foi publicado antes dos textos que inauguram a perspectiva indianista.
136

suas influências no processo de colonização no território da Guatemala, onde cholo significava


“perros lanudos, feos y sucios”. Reinaga utiliza uma declaração de Fernando Diez de Medina
(escritor boliviano criollo), na qual ele se autodeclara cholo: “Yo pertenezco a la muchedumbre
indómita y bravia de los cholos del Choqueyapu. (El Diario de La Paz -Bolivia, 21 de
noviembre de 1953).” (REINAGA, 1968). Para Reinaga a autoidentificação de autores como
Medina e o uso de demais autores do denominativo cholo, representa um esforço indigenista de
acholamiento do índio: “que si el índio se diluya en el cholaje”, ou seja, um discurso
assimilacionista já presente no imaginário social sobre o sujeito índio.
137

CAPÍTULO IV: ¿Descolonizando el Mestizaje? O Ch’ixi em debate

Neste capítulo coloco em diálogo as críticas e utilizações da perspectiva ch’ixi em


diversos trabalhos como Hacer plata sin plata de Nico Tassi, Traumas e ilusiones de Luis
Claros e El nacimiento del Estado Plurinacional de Bolívia de Salvador Shavelson. Relaciono,
também, as críticas apresentadas nas entrevistas pessoais feitas a intelectuais e militantes dos
movimentos políticos aymaras acerca da categoria em si e da identidade Aymara e seus usos
políticos.

Diálogos ch’ixi

Em um debate estruturado pelos organizadores da Revista T’inkazos 2012240, a autora


Silvia Rivera Cusicanqui chamou a atenção para a necessidade em associar a mestiçagem com
a questão colonial, só assim seria possível pensar suas contradições intrínsecas e a possibilidade
de uma descolonização da mestiçagem: “porque yo pienso que todo el debate sobre el
colonialismo prácticamente se reduce a pensar que el eslabón colonial fuerte y duro está en el
sector indígena” (RIVERA, CUSICANQUI 2012, p.18)241. Para a autora, os processos de
descolonização desta identidade mestiça estão vinculados à uma relação com as origens
aymaras, seja pelas festividades, pela alimentação dos ciclos rituais, construindo um nexo
saudável com este “lugar de origem”, e sem relação com os processos de ostentação.

Essa Hipótesis del mestizaje colonial andino, já desenvolvida no segundo capítulo,


apresenta a relação existente entre a colonização e a construção de discursos de mestiçagem.
Perguntei para Silvia Rivera durante o diálogo que tivemos, qual era a relação entre esta
perspectiva desenvolvida entre os anos 1980 e a proposta ch’ixi. Para ela é a passagem da crítica
para um exercício propositivo, da mestiçagem colonial para uma mestiçagem descolonizadora.
Nas palavras da autora:

Claro, es un poco buscar si es posible descolonizar el mestizaje, porque yo


había visto que el mestizaje es una forma profundamente colonizada de la
identidad. Y entonces desarrollé la idea de que el mestizo es un blanco
manchado de indio, o un indio manchado de blanco y que esas dos manchas
no se funden, sino que se yuxtaponen en forma contradictoria, entonces vive

240
O debate foi publicado na Revista no mesmo ano e contou com a participação de alguns autores bolivianos que
discutem o tema da mestiçagem, dentre eles estava Silvia Rivera Cusicanqui, Nico Tassi, Jorge Llanque e Cecília
Salazar.
241
"Porque eu acho que todo o debate sobre o colonialismo está praticamente reduzido a pensar que a ligação
colonial forte e dura está no setor indígena"
138

una especie de esquizofrenia, entonces para salir de eso mi propuesta era que
asumamos la parte india con más vigor, y la pongamos a la altura de la parte
europea digamos, y podamos profundizar y radicalizar ambas identidades
para que del choque saliera una energía que pueda ser emancipadora. Esa es
la idea. O sea, es como una salida, el texto sobre “Mestizaje colonial andino”
es la propuesta crítica sobre el mestizaje, y la salida propositiva ya es
descolonizar el mestizaje por la vía de asumirse como identidad ch’ixi.
(Entrevista realizada em 08 de dezembro de 2018)242

O processo analítico presente nas obras de Silvia Rivera Cusicanqui, por meio do qual
a autora constrói sua perspectiva sobre a mestiçagem é fundamental para começar a distanciá-
la de teorias como a de Carlos de Mesa, uma vez que Silvia Rivera percebe o conflito como
elemento fundamental para a construção colonial do ser mestiço, mas também é a partir do
conflito, e não contrário a ele como percebe Mesa, que a mestiçagem proposta como
descolonizadora vai florecer, ou seja, para Silvia Rivera a mestiçagem descolonizadora é um
movimento com personagens históricos importantes, mas que tem que ser apropriado, enquanto
para Mesa a mestiçagem é uma condição de homogeneidade que potencializa a nação boliviana
com símbolos como a sereia e o charango.

Alguns referenciais utilizam o ch’ixi de Silvia Rivera associando a seus trabalhos em


território boliviano, apresentarei aqui alguns deles para demonstrar os possíveis usos e diálogos
com essa perspectiva. O livro Hacer plata sin plata (2013) de Nico Tassi acerca da economia
de um setor de comerciantes de la zona do Gran Poder e da Uyustus em La Paz, apresenta
algumas referencias à teoria de Silvia Rivera, não necessariamente no tema identitário – tema
muito criticado com relação ao trabalho de Tassi -, mas referenciando uma perspectiva
vinculada ao ch’ixi, a modernidade ch’ixi. Para Tassi estes grupos de comerciantes, que muitas
vezes são provenientes de uma economia denominada pejorativamente como informal,
transformam e ressignificam a sua condição de subalternos em uma possibilidade de integração,
uma vez que são sujeitos da migração campo-cidade que acontece nos anos 1980. A perspectiva
da “modernidade ch’ixi” dialoga com a proposta de Tassi, porque concebe a modernidade
também como uma construção desde espaços subalternos e com os próprios termos dos grupos

242
“É claro, é um pouco descobrir se é possível descolonizar a mestiçagem, porque eu vi que a mestiçagem é uma
forma profundamente colonizada da identidade. E então eu desenvolvi a ideia de que o mestiço é um branco
manchado de índio, ou um índio manchado de branco e que esses duas manchas não se fundem, mas se justapõem
de uma maneira contraditória, então vivem uma espécie de esquizofrenia, então para sair disso minha proposta era
assumir a parte índia com mais vigor, e colocá-la no auge da parte europeia, e podemos aprofundar e radicalizar
as duas identidades para que do choque saia uma energia emancipadora. Essa é a ideia. Ou seja, é como uma saída,
o texto sobre "Mestiçagem colonial andina" é a proposta crítica sobre a mestiçagem, e a saída propositiva é
descolonizar a mestiçagem pela via de se assumir como identidade ch'ixi.”
139

que compõem e que estruturam estes espaços. Seria, deste modo, a construção de uma
modernidade “por conta própria” que estabele uma cidadania possível na convivência com as
diferenças.

Es ahí donde radica su modernidad: en combinar lo nuevo con sus tradiciones


socioculturales, esto es, en viajar a China y comerciar productos tecnológicos
sin renunciar a sus actividades sociales y religiosas, que, dicho sea de paso,
están en la base de su estructura de poder local. Esta modernidad no es
sinónimo de hibridismo, sino que responde, más bien, a la idea de ch’ixi de
Silvia Rivera, es decir, a la coexistencia de elementos antagónicos que no se
funden, sino que se complementan. (TASSI, 2013, p.218)243

O trabalho de Tassi apresenta esta economia vinculada a uma epistemologia, da qual o


autor não faz referência diretamente em seu texto, mas dá pistas quando descreve que os
comerciantes queimam mesas para a Pachamama pedindo que seus negócios prosperem, ou
quando vão aos yatiris para descobrir se seus funcionários estão roubando mercadorias e até
mesmo quando são pasantes em festas nas suas comunidades de origem, práticas vinculadas à
identidade Aymara. Ainda que o livro não expresse a relação destes setores comerciantes com
a identidade Aymara, em uma entrevista para Ximena Soruco (2012) Nico Tassi compreende
os grupos das zonas Gran Poder e Uyustus como “sectores aymaras urbanos” (SORUCO,
2012, p.11).

Realizei uma entrevista com Nico Tassi em dezembro de 2018, dialogamos acerca do
trabalho de campo do antropólogo com os grupos comerciais, evidenciei em minhas
preocupações o tema da identidade, considerando que Tassi em seu primeiro trabalho Cuando
el baile mueve montañas: religión y economía cholo-mestizas en La Paz, Bolivia (2010) utilizou
a categoria cholo-mestizas para nomear os grupos da Uyustus e Gran Poder. O autor explicou
que a questão identitária sempre foi um problema no percursso dos trabalhos de campo que
realizou e que não utilizaria mais este termo porque entende que a categoria cholo carrega um
estereótipo pejorativo, segundo Tassi, há uma luta interna em seus esforços na busca de um tipo
de palavra que reflita a intencionalidade de seu trabalho vinculada aos desejos e aspirações dos
sujeitos com quem trabalha. Perguntei sobre o emprego da Modernidade ch’ixi em seu último

243
“É aí que reside sua modernidade: combinar o novo com suas tradições socioculturais, ou seja, viajar para a
China e comercializar produtos tecnológicos sem renunciar a suas atividades sociais e religiosas, que, aliás, estão
na base de sua estrutura de poder local. Essa modernidade não é sinônimo de hibridismo, mas responde, antes, à
ideia do ch'ixi de Silvia Rivera, isto é, à coexistência de elementos antagônicos que não se fundem, mas se
complementam.”
140

livro, para ele a noção ch’ixi aparenta ser um termo interessante, não necessariamente como
autoidentificação, mas como uma revolução nos debates identitários, porque demonstra a
possibilidade de ser múltiplas coisas em uma mesma instância, em suas palavras: “Es un tipo
de concepto que juega no con los aymaras, juega con el debate intelectual sobre identidad. O
sea se posiciona en un debate intelectual sobre identidad, y ahí si tiene sentido, o por lo menos
tiene una intención de incindir sobre un tipo de debate” (Entrevista 18 de dezembro de
2018)244.

A modernidade ch’ixi está presente no livro Ch’ixinakax utxiwa (2010) de Silvia Rivera
Cusicanqui, no qual a autora estrutura sua análise tomando como referência a luta de Tupak
Katari e Bartolina Sisa em 1781, uma vez que estes sujeitos históricos criticavam os tributos
indígenas que mantinham a colônia economicamente, questionando a elite criolla da época,
denominada arcaica pela autora, porque ela percebe o ócio como um elemento essencial na
constituição desta classe. No diálogo realizado com Silvia Rivera, ela me comunicou que o
contato dos grupos aymaras com o dinheiro e com o mercado não foi necessariamente um
processo de subalternização, uma vez que já estavam vinculados em um longo processo
econômico em seus próprios termos de um mercado a longa distância, como transportadores de
llamas ou vendedores de coca, “yo consideraba que las élites eran más arcaicas que los indios
y que los indios eran más modernos, que utilizaban el mercado de una manera muy creativa y
a la vez reproducían sus comunidades a través del mercado y el mercado no era una fuerza
destructiva sino que ellos se adaptaban a ella e utilizaban para producir sus propias formas de
organización y reproducción” (Entrevista 08 de dezembro de 2018)245. Assim sendo, a partir
da instituição da República a elite que estava em formação exige que os indígenas se limitem
ao território dos Ayllus possibilitando a sua conversão nestas comunidades aparentemente
“tradicionais”, no sentido pejorativo do termo como fixas.

Na tese de Salvador Schavelzon “El nacimiento del Estado Plurinacional de Bolivia:


Etnografia de uma Asamblea Constituyente” (2012), o autor explora os discursos do
Movimiento al Socialismo (MAS) no processo de discussão da constituinte que prevê a

244
"É um tipo de conceito que joga não com os aymaras, joga com o debate intelectual sobre identidade. Ou seja,
ele está posicionado em um debate intelectual sobre identidade, e aí faz sentido, ou pelo menos tem a intenção de
incitar em um tipo de debate "
245
"Considerei que as elites eram mais arcaicas que os índios e que os índios eram mais modernos, que usavam o
mercado de forma muito criativa e ao mesmo tempo reproduziam suas comunidades através do mercado e o
mercado não era uma força destrutiva, mas eles se adaptaram e usaram para produzir suas próprias formas de
organização e reprodução "
141

plurinacionalidade do Estado boliviano, assim, o partido apropria a ideia de pueblo boliviano


como fuga da lógica de mestiçagem presente nos discursos MNRistas. Schavelzon, em um
intuito de fornecer outras leituras da mestiçagem, utiliza o conceito do ch’ixi, escrito como
chhixi em seu trabalho, termo que como já apresentamos possui outro significado, a confusão
do termo pelo autor não está somente na escrita, mas também na sua interpretação do que seria
ch’ixi e chhixi:

El concepto de chhixi aparece como concepto epistemológico y político, y es


polisémico. Por un lado es utilizado para referirse a la leña que no sirve, que
Silvia Rivera compara con la idea de “híbrido” que remite a infertilidad. Por
otro lado, chhixi refiere al tercero incluido en que “a diferencia de lo híbrido,
las diferencias no se funden en una nueva forma pura”, y este es el sentido
que la autora rescata. Es utilizado por los aymaras como un concepto visual,
que refiere a la coexistencia de colores opuestos pero que no se sintetizan ni
dan lugar a un nuevo color formado por la mezcla, sino que permanecen como
manchas de colores diferentes siendo al mismo tiempo los dos colores, y
ninguno de los dos, explica la autora. En un trabajo anterior, este tipo de
amalgama aparecía entre el sector de los trabajadores de la carne que era al
mismo tiempo gremio y ayllu, pagaban impuesto municipal y tributo
indigenal. En los documentos analizados por Rivera, el Estado y los mestizos
(mistis) aparecen como opresores y los obreros se identifican al mismo tiempo
como clase y como etnia aunque en una rearticulación descolonizadora donde
tiene supremacía lo étnico, considerado más permanente y estructural
(1993:75-78). (SCHAVELZON, 2012.p.62)246

O autor confunde os sentidos dos termos ch’ixi e chhixi, considerando como polissêmico
associa o significado de chhixi como lenha que não serve, híbrido, terceiro incluído, com a
lógica ch’ixi de cores opostas que não se sintetizam, chegando a caracterizar essas categorias
como “amálgamas”. Já apresentei no segundo capítulo a diferença entre as duas lógicas,
diferença que aparece como tal desde os primeiros trabalhos em que Silvia Rivera as cita247,

246
"O conceito de chhixi aparece como um conceito epistemológico e político, e é polissêmico. Por um lado, é
usado para se referir à madeira que não funciona, Silvia Rivera compara com a ideia de 'híbrido' referindo-se à
infertilidade. Por outro lado, chhixi refere-se ao terceiro incluído no qual 'ao contrário do híbrido, as diferenças
não são baseadas em uma nova forma pura', e este é o sentido que a autora resgata. Ele é usado pelos aymaras
como um conceito visual, que remete para a coexistência de cores opostas, mas que não sintetizam e nem dão
origem a uma nova cor formada pela mistura, mas permanecem como manchas de cores diferentes sendo
simultaneamente as duas cores, e nenhuma das duas, explica a autora. Em um trabalho anterior, esse tipo de
amálgama apareceu entre o setor dos trabalhadores da carne que era ao mesmo tempo grêmio e ayllu, pagavam
imposto municipal e tributo indígena. Nos documentos analisados por Rivera, o Estado e os mestiços (mistis)
aparecem como opressores e os trabalhadores se identificam ao mesmo tempo como classe e como etnia, ainda
que em uma rearticulação descolonizadora onde tem supremacia o étnico, considerado mais permanente e
estrutural (1993: 75-78). "
247
Vou de encontro à perspectiva de Schavelzon quando explica: “el concepto chhixi (es escrito con distinta grafía
en cada republicación: chhixi, chixxi, cheje, ch’ixi)” (SCHAVELZON, 2012.p.61).
142

para a autora, chhixi significa o inconsistente, um sujeito insubstancial da mestiçagem, um


mestiço que não assume seu lado indígena, enquanto ch’ixi representa um cinza mosqueado, a
epistemologia manchada, que de longe parece uma cor unificada, mas ao aproximarnos
percebemos os distintos pontos que a compõem. As ambiguidades presentes na epistemologia
Aymara podem ser invisíveis aos olhos de quem vê a partir de outra epistemologia, mas são
determinantes quando interpretadas em seus próprios sentidos.

No entanto, existem alguns trabalhos que dialogam com a perspectiva do ch’ixi sem
necessariamente fazer referência a esta, dentre eles evidencio o artigo de Jorge Sanjinés “De la
nación mestiza a los recientes desplazamientos de la metáfora social” (2012), neste trabalho o
autor pensa o processo de mestiçagem que flui no tempo, metáfora heraclitiana de tempo,
compreendendo uma metáfora do anfíbio como explicação dos movimentos estruturados pelos
movimentos originários de (re) territorialização integradora, uma fertilização entre a
modernidade e a cultura ancestral. O anfíbio é apresentado como metáfora porque, como
analisado por Orlando Fals Borda (1979), toma o conhecimento de um espaço e transporta ele
para outros, reelaborando em função do destino: “el anfíbio entrevé la posibilidad de superar
la violencia a la que el poder cuando resuelve recurre conflitos. Si la metáfora del anfíbio
ilustra la posibilidad de elaborar normas compatibles con la diferencia, ella también muestra
que es posible construir diálogos entre las culturas” (SANJINÉS, 2012, p.50)248. Tanto o
diálogo entre o moderno e o tradicional proposto pela metáfora do anfíbio, quanto a
possibilidade de um diálogo que mantêm as diferenças, são relacionáveis com a proposta ch’ixi.

Crítica à crítica

É perceptível como a proposta ch’ixi choca tanto com as perspectivas indianistas e


kataristas, quanto com a perspectiva de uma mestiçagem como amálgama. No entanto, existem
críticas à proposta crítica ch’ixi, que não necessariamente vem destes dois movimentos
supracitados, mas que percebem a estruturação do ch’ixi como um antiessencialismo
intrinsecamente essencialista.

248
"O anfíbio vislumbra a possibilidade de superar a violência a que o poder resolve quando recorre conflitos. Se
a metáfora do anfíbio ilustra a possibilidade de elaborar normas compatíveis com a diferença, também mostra que
é possível construir diálogos entre culturas "
143

A dissertação de Luis Claros “Traumas e ilusiones: El ‘mestizaje’ en el pensamiento


boliviano contemporáneo” (2016) é uma grande contribuição ao debate. Claros explica que o
objetivo do seu trabalho é compreender os mecanismos argumentativos e narrativos, por meio
dos quais são produzidas lógicas sobre identidades sociais e étnicas. O autor investiga a
perspectiva de Silvia Rivera da mestiçagem colonial, levando em conta duas determinações
deste sujeito mestiço: o desprecio e o anhelo. O desprecio é estruturado de maneira escalonada,
do branco ao índio, condensando as hierarquias que ordenam as diferenças em função dos
elementos culturais (CLAROS, 2016, p.29). O anhelo, deste modo, é um exercício frustrado de
tentar ser o que não é possível alcançar.

Examinando a proposta de “colonialismo interno” presente no mestiço colonial, o autor


deixa claro o deslocamento de Rivera com relação aos primeiros autores do “colonialismo
interno” (especificamente Casanova), segundo ele, a inovação na perspectiva de Rivera foi
considerar que as contradições do ciclo colonial não serão superadas com o passar do tempo,
mas cumprem um papel importante na contemporaneidade. Destrinchando esta lógica, para
Claros, Silvia Rivera “asume el mestizaje como una complejización del conflicto generado en
dicho encuentro y no como su superación” (CLAROS, 2016, p.36)249. Assim, a mestiçagem
não implica um desaparecimento dos antagonismos, mas sua evidenciação:

podríamos decir que el valor de las identidades mestizas es un valor de


posición, lo cual implica la presencia sincrónica de las demás
identidades, es decir, que la definición de determinada identidad
necesita de la presencia de las otras, por ejemplo, la especificidad de
lo cholo solo puede ser determinada a partir de sus relaciones con las
otras identidades, por tanto, la ausencia de alguna de ellas implica la
indeterminación de las otras. De esta forma el estudio de las relaciones
mutuas entre las identidades se torna fundamental. El tipo de
relaciones que se establecen entre estas identidades está definido por
un eje de deseo en el cual las direccionalidades de las relaciones
asumen las formas del anhelo y el desprecio; el anhelo dirigido a los
escalones superiores que culminan en lo blanco, y el desprecio dirigido
a los escalones inferiores que culminan en lo indio. (CLAROS, 2016,
p.39)250

249
"Assume a mestiçagem como uma complexificação do conflito gerado naquele encontro e não como sua
superação"
250
"Poderíamos dizer que o valor das identidades mestiças é um valor de posição, o que implica a presença
sincrônica de outras identidades, ou seja, que a definição de uma determinada identidade requer a presença de
outras, por exemplo, a especificidade do cholo só pode ser determinada a partir de suas relações com outras
identidades, portanto, a ausência de qualquer delas implica a indeterminação das outras. Desta forma o estudo das
144

Neste fragmento, o autor evidencia a força relacional das identidades na construção e


manutenção dos sentidos de outras identidades. É justamente neste ponto que Luis Claros
apresenta sua crítica, as “identidades limites”, o branco e o índio, que para ele funcionam como
um resíduo essencialista na produção da mestiçagem, tanto na perspectiva do amálgama, quanto
na de Silvia Rivera que, ainda que sustenta um antiessencialismo declarado, necessita destes
mesmos resíduos para que sua concepção tenha sentido. O essencialismo é qualificado por
Claros como uma armadilha em que muitos autores que propõem a descolonização estão
enredados. Durante uma entrevista que realizei com Luis Claros, o autor explicou, a partir de
Derrida, que toda identidade é uma construção de sentidos, é relacional, e se está sempre em
relação, ela só pode ser definida em uma cadeia de diferenciações, ela só pode “ser” em relação
a algo diferente, ocorre que este marco se estabelece em um constante movimento, definir a
identidade seria essencializar o movimento existente, colocar um limite arbitrário, para Claros
só assim é possível pensar a mestiçagem: “Son los momentos de cierre de la estructura que
permiten pensar las identidades en su interior” (Entrevista 08/01/2018)251.

Mas se a Hipótesis del mestizaje colonial andino contêm aspectos esencialistas, como
podemos analisar o ch’ixi, essa mestiçagem descolonizadora? Para Claros o deslocamento em
direção à esta proposta, tão essencialista quanto a primeira, está acompanhado por um “giro
subjetivo”. Em sua perspectiva: “Bajo la noción de lo ch’ixi lo mestizo adquiere una densidad
propia. Cuando Rivera se considera a sí misma como ch’ixi lo que está afirmando es que posee
un origen doble, aymara y europeo, que pervive en su ser.” (CLAROS, 2016, p.51)252. Existe,
para Claros, um exercício intrinseco na transformação de uma mestiçagem colonial em
mestiçagem descolonizadora, o primeiro define a identidade mestiça como negativa, uma vez
que faz sentido pelo que ela não é (negação do indígena e anseio em aproximar-se do branco),
por outro lado a identidade ch’ixi se estrutura com um exercício de positivação, essas
identidades limites já não são exteriores ao indivíduo em uma disputa de desprecios e anhelos,
mas convivem no seu interior. Esse jogo analisado por Claros é transformado de um conflito
de heteroidentificações negativas em sustentação de uma autoidentificação positiva.

relações mútuas entre as identidades se torna fundamental. O tipo de relações que se estabelecem entre essas
identidades é definida por um eixo de desejo no qual as direcionalidades das relações assumem as formas de anseio
e desprezo; o anseio dirigido aos escalões superiores que culminam no branco e o desprezo dirigido aos degraus
mais baixos que culminam no índio.”
251
"São os momentos de fechamento da estrutura que nos permitem pensar sobre as identidades em seu interior"
252
"Sob a noção do ch'ixi, o mestiço adquire uma densidade própria. Quando Rivera se considera ch'ixi, o que ela
está afirmando é que ela tem uma origem dupla, Aymara e europeia, que sobrevive em seu ser."
145

Luis Claros também estrutura uma preocupação com relação ao livro de Mesa La Sirena
y el Charango, para o autor, a universalização da lógica de mestiçagem como uma mescla que
apaga as possibilidades da existência de diferenças está evidente no livro de Mesa. Assim como
Toranzo, Mesa compreende a mestiçagem de forma ampla, a partir da qual não é possível pensar
culturas à margem do processo de mestiçagem cultural. Essa mistura cultural aparece nas
entrelinhas como um futuro desejável tanto por Toranzo, quanto por Mesa.

A distinção entre Toranzo e Mesa com Silvia Rivera, é a supressão do conflito na teoria
dos primeiros, fazendo com que a perspectiva de um colonialismo interno seja negada em favor
de uma leitura da mestiçagem como constitutiva da nação boliviana, uma unidade superadora
do conflito. Ainda que Mesa não negue (em algumas passagens) a relação conflitiva do feito
colonial, sua análise leva o leitor a acreditar que se trata de um conflito superado pela instituição
de uma unidade nacional, que é necessariamente cultural. Para Claros, este movimento conduz
“a una defensa del mestizaje y a la deslegitimación de identidades contrapuestas o pensadas
como externas a dicho mestizaje.” (CLAROS, 2016, p.120)253. Acerca do trabalho de Mesa,
Luis Claros considera que quando Mesa situa os problemas das sociedades do Tawantinsuyo,
sustenta que o objetivo é não as romantizar, contudo, quando analisa as violências instituídas
pelo processo de colonização, as descrições sempre estão acompanhadas de explicações que
neutralizam possíveis aversões ao feito colonial. Nestes termos, Mesa defende a mestiçagem
como única possibilidade identitária e não como uma entre tantas outras possíveis.

Para Claros existem duas formas distintas de ler a mestiçagem, a primeira vinculada a
discursos de nação e universalidade e a segunda a partir do colonialismo interno e do caráter
hierarquizado da sociedade boliviana, os objetivos constituem as defesas ou críticas com
relação ao tema, a ênfase determina a concepção. Quando nos esforçamos em analisar as
identidades construídas em território boliviano, não é possível ignorar a existência destas duas
vertentes, da mestiçagem nacional e da mestiçagem colonial.

Percebo estas duas lógicas de mestiçagem como determinantes do interesse de cada


autor em analisar o tema, Mesa especialmente, porque é proveniente do MNR e sua perspectiva
não está afastada das perspectivas históricas do partido. No entanto, o movimento de Silvia
Rivera me parece um pouco ambíguo, ainda que seja complementar. A autora passa de uma
leitura da mestiçagem como anhelo e desprecio, baseada em violências coloniais, para a

"Em defesa da mestiçagem e da deslegitimação de identidades contrapostas ou pensadas como externas a essa
253

mestiçagem".
146

construção de uma possibilidade de mestiçagem descolonizadora ch’ixi, de uma mestiçagem


como negação para uma mestiçagem positiva, ainda que ambas sejam conflituosas. Para Claros,
o deslocamento da ênfase da autora, de colonial para descolonizadora, não quer dizer que uma
hipótese elimina a outra, mas que a concepção se modifica determinando diferentes
significações, em especial, porque os diálogos com referenciais se modificam, conformando a
passagem de uma leitura sócio-histórica para uma proposta descolonizadora.

Minha interpelação, com relação a esta perspectiva de Luis Claros, é a de que o ch’ixi
está mais vinculado a um processo subjetivo como proposta, considerando que a autora Silvia
Rivera está inserida em um debate – seja pós-colonial, decolonial ou anticolonial – que exige a
construção de uma proposta às condições coloniais, a proposta de um sujeito político
descolonizador, de um movimento que seja epistemológico, que é possível utilizar em trabalhos
universitários e que pode dar conta – no sentido de supressão, mas também de uma manutenção
produtiva – das contradições que a colônia implementou violentamente nos sujeitos. Durante a
entrevista que realizei com Claros, expus minha leitura do ch’ixi, o autor aceitou como
possibilidade interpretativa, mas adicionou que este movimento de buscar um sujeito
emancipador de Silvia Rivera, tem relação com os movimentos kataristas que a autora teve
contato durante as décadas de 1970 e 1980.

Priorizo uma interpretação deste movimento como qhipnayra, uma vez que a relação
entre a hipótesis del mestizaje colonial andino com o ch’ixi pode ser compreendida como um
esforço qhipnayra, “pasado-como-futuro”, no qual, o passado aparece como um elemento na
constituição do presente e em coetânea relação com este, enquanto o futuro, ainda que não seja
enunciado, está instituído no presente. Assim, a mestiçagem colonial só pode ser descolonizada
se estiver em íntima relação com o presente, essa relação ambígua e produtiva pode gerar uma
alternativa para o futuro, alternativa construída no próprio momento presente, a descolonização
só é possível pela existência mesma da colonização. Esse qhipnayra só pode ser estruturado,
segundo Silvia Rivera, por meio de um pachakuti, catástrofe e renovação, esse pachakuti de
palabras é explicado pela autora durante o diálogo que tivemos:

yo diría que en un Pachakuti que es una crisis profunda, se ponen en cuestión


todas las palabras, porque es necesario repensar el significado de las
palabras y hacer de ellas no una cosa para entrar en un sonambulismo, un
automatismo discursivo, sino críticamente ver que significa cada una de las
147

palabras, la crisis es una crisis de sentido. Es eso, yo creo, el Pachakuti de


palabras. (Entrevista 08 de dezembro de 2018)254

Tomar as palavras e seus significados de maneira crítica possibilita repensar a


mestiçagem sem deixar de considerá-la um elemento dos discursos coloniais. O pachakuti de
palabras pode ser compreendido como um instrumento da descolonização na produção de
conhecimentos, sejam eles históricos, econômicos ou antropológicos, interposto com a crise
das palavras e dos sentidos.

Durante a entrevista que realizei com Luis Claros, o autor me explicou, que sua pesquisa
dialoga com uma conjuntura conflitiva na Bolívia, em especial acerca do tema identitário, após
o Censo de 2012 de Vivienda y Población, que apresenta uma imagem do país, uma espécie de
cartografia identitária variável. Claros chega à conclusão de que estes censos estão submetendo
as identidades às conjunturas políticas. Para explicar melhor essa perspectiva, relaciono dois
momentos políticos da Bolívia com os censos produzidos na mesma conjuntura, o de 2001 e o
de 2012.

Como já analisado no primeiro capítulo desta dissertação, o Censo Nacional de


Población y Vivienda de 2001 apresentava 62% da população como indígenas autodeclarados,
enquanto no mesmo censo em 2012, este número caiu para 41%, a polêmica que a queda do
número de autodeclarados indígenas gerou impulsionou muitas interpretações. Evidencio aqui
a interpretação de Roger Chambi, que me parece interessante, interpretação que foi fruto de
algumas das conversas que tivemos. Para Roger Chambi, a queda do número de autodeclarantes
deu-se pela conjuntura política de ambos os momentos em que estes censos são produzidos,
durante o primeiro censo a Bolívia passava pelo processo entre-guerras (Guerra da Água e
Guerra do Gás) de 2000-2003, nos quais, representações indígenas, aymaras e quéchuas,
tomavam visibilidade nacional como Felipe Quispe e Evo Morales Ayma, neste primeiro
momento a afirmação como indígenas tornou-se um instrumento importante para a luta contra
os processos de privatizações, bem como a imagem do que era ser Aymara e Quéchua estava
vinculada à luta e a espaços não somente rurais, como as cidades de El Alto e Cochabamba. Por
outro lado, com a implementação da Constituição do Estado Plurinacional da Bolívia em 2009,

254
"eu diria que em um Pachakuti que é uma crise profunda, todas as palavras são colocadas em questão, porque
é necessário repensar o significado das palavras e torná-las não uma coisa para entrar em um sonambulismo, um
automatismo discursivo, mas ver criticamente o que significa cada uma das palavras, a crise é uma crise de sentido;
É isso, eu acredito, o Pachakuti de palavras ".
148

ocorre um processo de territorialização dos indígenas, o mapa das 36 nações, uma


territorialização especificamente rural, mapa que desconsiderava as realidades urbanas dos
grupos indígenas bolivianos, isso, para Roger Chambi, atrelado a um processo de queda da
representatividade do MAS – que se declarava vinculado aos interesses dos grupos indígenas –
possibilitou uma queda no censo de 2012 no quesito da autodeclaração indígena, o que não
especificamente significa que estes grupos não tenham relação com os aymaras ou quéchuas,
mas que a pergunta feita pelo Censo, se estes grupos faziam parte das 36 nações. recebia muitas
negativas. Em seu texto, publicado no Periódico Pukara em abril de 2017, Roger Chambi relata
uma manifestação que aconteceu no ano de 2017 próximo à Rádio San Gabriel em Villa Adela,
El Alto, dos habitantes (vecinos) de Achacachi, o autor chega à seguinte consideração:

Durante el mitin principal, Esnor Condori, después de terminar su discurso,


pronunció el acostumbrado ¡Jallalla Achacachi marka!,al cual los vecinos
respondieron con un anonadado jallalla. Uno de los vecinos, arrebatado, se
manifestó y corrigió a Condori: “No hay que usar más el jallalla, eso es de
los masistas, hay que decir: ¡Viva la ciudad de Achacachi!”. Condori se
rectificó y pronuncio el“viva” en vez del típico “jallalla”. A su vez, entre la
multitud de las pancartas flameaba la bandera tricolor boliviana, dejando en
ausencia a la wiphala, símbolo identitario principal de las movilizaciones
aymaras. Así mismo, se tomó al “Wila Saku” como elemento simbólico de
Achacachi, descartando a los Ponchos Rojos ligados al MAS. (CHAMBI,
2017)255

Para o autor, o fato de que os grupos aymaras comecem a abrir mão dos símbolos que
representaram a epistemologia Aymara durante muito tempo, vem de um processo de
simbologia em crise, no qual, a apropriação de elementos por parte do Governo de Evo Morales
resignifica estes mesmos elementos para os sujeitos que há tempos os sustentaram, em especial,
quando o governo entra em crise. Essa é uma explicação muito próxima à perspectiva de Claros
quando concebe os censos como variáveis a partir da conjuntura política. As perguntas de um
Censo também podem construir outros sentidos, a partir de um processo de ruralização do
sujeito Aymara, perguntar nas ruas de El Alto se as pessoas são parte das 36 nações, constrói
um silêncio que comunica muito, a negativa não necessariamente representa uma

255
"Durante a reunião principal, Esnor Condori, depois de terminar seu discurso, pronunciou o costumeiro 'Jallalla
Achacachi marka!'. Diante disso, os vizinhos responderam com um atordoado jallalla. Um dos vizinhos,
arrebatado, manifestou-se e corrigiu Condori: 'Não temos que usar mais o jallalla, isso é dos masistas, temos que
dizer: "Viva a cidade de Achacachi!'. Condori se retificou e pronunciou o 'viva' em vez do típico 'jallalla'. Por sua
vez, entre a multidão dos estandartes a bandeira tricolor boliviana estava voando, deixando a wiphala, o principal
símbolo identitários das mobilizações aymaras, na ausência, e o 'Wila Saku' foi tomado como um elemento
simbólico de Achacachi, descartando os Ponchos Vermelhos ligados ao MAS.”
149

autodeclaração mestiça, mas pode representar uma crítica às perguntas (tendenciosas) do


Censo.

Como já analisado, existem autores, como Sahlins (1997), que compreendem a


possibilidade dos sujeitos em resignificar a própria cultura, ainda que seja com elementos da
cultura dominante, construindo uma apropriação destes elementos em seus próprios termos. O
fato de que os aymaras abrem mão, neste evento específico relatado por Roger Chambi, de
símbolos construídos como aymaras não significa que eles deixam de ser parte desta identidade,
fluída e heterogênea, a qual se autoidentificam, mas nos comunica as possibilidades de um
processo contracultural agenciado pelos próprios aymaras, processo que tem relação com a
apropriação de elementos por parte do Estado, mas que não se limita a isso.

Como última crítica, apresento a perspectiva de Abraham Mancilla sobre a teoria do


ch’ixi, uma perspectiva que me parece determinante se propomos pensar a partir de sujeitos
aymaras que constroem a aymaridade de dentro. O giro possível pela análise de Mancilla se dá
em direção a uma defesa da identidade Aymara como sujeito descolonizador, posição que
chamou a atenção acerca dos referenciais que produzem as teorias da mestiçagem, se
retomamos quem são os sujeitos enunciadores, encontraremos de brancos das classes médias e
altas até estrangeiros, mas nenhum sujeito racializado. Assim como Roger Chambi, Abraham
Mancilla cumpre um papel importante na crítica aos discursos de mestiçagem, para ele não
podemos considerar a possibilidade de uma nação ch’ixi, termo utilizado por Silvia Rivera em
suas aulas, se não está definida uma língua ch’ixi, ou uma cultura ch’ixi, a apropriação do
mundo Aymara por estes intelectuais para criar uma nova identidade que os beneficiem, pode
ser um processo que descaracteriza o Aymara, em suas palavras, “pero cuando Silvia crea el
ch’ixi como teoría común, como una nación, entonces me está anulando al Aymara y me esta
desconociendo” (Entrevista 10 de setembro de 2018)256. Já vimos no último capítulo que a
estrutura de um casti-imillano como língua, vem de um processo de migração campo-cidade,
pelo qual passaram muitos aymaras, incluindo Dona Hilda, tomar esta como uma língua ch’ixi,
para Mancilla, é só mais um processo colonial de apagamento das identidades aymaras e suas
potencialidades.

É possível pensar algumas leituras anticoloniais da identidade para dialogar com as


perspectivas identitárias analisadas, dentre elas, a de Avtar Brah me parece interessante e pode

256
"mas quando Silvia cria o ch'ixi como uma teoria comum, como nação, então ela está anulando o Aymara e ela
está me desconhecendo"
150

ser associada à relacionalidade do “ser Aymara”. Avtar Brah problematiza as construções de


identidades essencializadas na produção de sujeitos colonizados por diversos discursos, dentre
eles, ela evidencia o discurso racial. Tomando as perspectivas do Feminismo Negro na Grã-
Bretanha, a autora sustenta que existe uma multiplicidade de racializações, considerando as
conjunturas, os espaços específicos e suas relações com os diversos grupos, a utilização do
termo “negro”, no caso especifico deste movimento, está vinculada com campos contestatários
em processos discursivos num terreno pós-colonial. Assim, para Brah, ainda que o termo
“negro” construa sentidos, este não deve ser entendido como uma construção de mulheres
brancas e negras como categorias fixas. O Aymara pode ser lido em relação com a identidade
negra nos termos de Brah, não somente pelo processo de racialização, que ainda que seja
contextual e espacial, carrega preceitos próximos na determinação do seu “outro”, mas também
porque é uma identidade que vem sendo acionada em diversos eventos como um campo
contestatário.

Para Brah, temos que lidar com os discursos construídos sobre a diferença como uma
variedade de significados em distintos discursos, a diferença torna-se uma categoria analítica
no trabalho da autora, a partir da qual podemos perceber se está estruturada em discursos laterais
ou hierárquicos, essa me parece uma chave interessante para pensar a identidade Aymara,
ch’ixi, chola, dentre outras que já trabalhamos aqui. Para Avtar Brah, existem quatro
conceituações da diferença, a primeira é a diferença como experiência, a experiência é tomada
como um elemento importante considerando-a uma prática de atribuição de sentidos simbólicos
e narrativos, “como uma luta sobre condições materiais e significado” (BRAH, 2006, p.360).
Assim, é no âmbito da experiência que as posições e as subjetividades diferenciais são
afirmadas, reestruturadas, criticadas. Podemos arriscar uma ponte com os aymaras quando
percebemos as modificações que os próprios sujeitos agenciam no interior do “ser Aymara” a
partir da experiência, a lógica do que é ser Aymara é fluida e obedece às transformações dos
sujeitos por meio da experiência, da prática de construção da própria realidade, utilizamos
acima o exemplo levantado por Roger Chambi das modificações simbólicas por meio da
negação da whipala e do jallalla, mas podemos compreender esta modificação de sentidos
também através da apropriação da pollera pelas cholas, já trabalhada no capítulo anterior.

A segunda forma de diferença abordada por Avtar Brah, é a diferença como relação
social, ou seja, a constituição e organização da diferença por meio dos discursos culturais,
políticos e econômicos e, inclusive por práticas institucionais, o que sustenta diálogos com as
modificações dos Censos de Población y Vivienda na Bolívia e os sentidos que estes criaram.
151

Essa pode ser, também, a mobilização do conceito de diferença por um grupo para tratar das
genealogias históricas de sua experiência coletiva, como passados e destinos compartilhados.
Assim, esta diferença pode ser lida a partir dos interesses do grupo que a constitui como tal, se
são interesses horizontais ou servem à construção de escalas hierárquicas, deste modo, ela pode
ser a construção de uma genealogia histórica e o resgate de personagens históricos, como Tupac
Katari e Bartolina Sisa pelos aymaras e quéchuas, mas também pode ser a construção de censos
nacionais, obedecendo a interesses de grupos que ruralizam os indígenas.

A diferença como subjetividade é a terceira leitura feita por Brah, a partir desta diferença
a autora nos convida a pensar a subjetividade quando nos debruçarmos sobre temas de
racialização, compreendendo que os processos de formação da subjetividade dos sujeitos
analisados são sociais e individuais. Como exemplo, podemos analisar as relações com a
subjetividade de alguns aymaras, ser mulher (warmi), Aymara, que leva a pollera, que trabalha
no mercado ou nas feiras, são determinações que dialogam com a construção de uma
subjetividade.

A quarta e última análise da diferença pela autora, é a diferença como identidade,


diferença que se relaciona com todas as demais porque é constituída por questões de
experiência, subjetividade e relações sociais, é através da subjetividade que este sujeito em
processo é experimentado como identidade. Por todas estas relações a identidade nunca pode
ser percebida como fixa, mas uma “multiplicidade relacional em constante mudança” (BRAH,
2006, p.371). Para Brah o interessante da diferença como identidade, é que ainda que em
constante mudança existem elementos comuns, padrões específicos, um núcleo que é enunciado
como “eu”, móvel e instável, mas que se constitui como núcleo. As identidades coletivas, para
Brah, podem ser lidas na chave desta diferença, uma vez que as diversas experiências que a
compõe se relacionam em torno a eixos de diferenciação, como exemplo a raça, sendo
investidas de significados. Por meio deste movimento, as identidades subjetivas desaparecem,
mas aspectos destas são evidenciados na identidade coletiva. Então, como é possível analisar
as identidades se elas estão vinculadas a processos de constantes transformações? Por meio das
memórias históricas que formam a base da identificação num dado contexto, a identidade
coletiva é lida aqui como um processo político. Neste sentido, podemos perceber a identificação
Aymara em momentos como Octubre Negro como um movimento de identificação política.
Construir a identidade ch’ixi e inserir o Aymara como elemento limite desta identidade pode
ser lido como um movimento de essencialização. Construir uma identidade índia, como
demanda do indianismo, me parece uma outra maneira de essencializar e de construir sentidos,
152

mas neste movimento aciono a perspectiva de Spivak (1985), “essencialismo estratégico”,


considerando que o risco de assumir um essencialismo é compreensível se for assumido pelos
sujeitos dominados, ou melhor, este mesmo risco necessita ser analisado criticamente
considerando o sujeito que enuncia, essa torna-se uma chave analítica importante, o sujeito
enunciador, que podemos associar ao tempo, ao espaço e às relações sociais.

Deste modo, tomando elementos de Avtar Brah, podemos pensar as críticas construídas
por Abraham Mancilla ao trabalho de Silvia Rivera, caracterizando o ch’ixi como uma
identidade pensada para apagar a identidade Aymara. Roger Chambi em um dos diálogos
relatou:

Lo ch'ixi como identidad descolonizadora es una propuesta innovadora y


revolucionaria para los sujetos identificados como blanco-mestizos en
Bolivia. Sin embargo, cuando se pretende catalogar o identificar ch'ixi a un
sujeto racializado como tal, esta categoría anula la identidad autóctona del
sujeto. Recuerdo que cuando Silvia Rivera nos visitó al plató de La Curva del
Diablo, ella mencionó que mi casa y yo eramos la expresión ch'ixi de lo que
ella hablaba, pero yo le decia que somos aymaras. En el documental La
Nación Ch'ixi257, se muestra las prácticas de la poblacion Aymara de la Isla
del Sol como espacio turístico, pero que por su virtud de abrirse a los
extranjeros ya no seria Aymara, sino ch'ixi. Lo ch'ixi parte de una idea
esencialista de lo indio y encasilla a este en esa idea, dejando al margen la
posibilidad de ser aymaras que responden a su espacio y tiempo, es decir
aymaras contemporáneos.258

O que Roger Chambi nos informa, é que no momento que o ch’ixi começa a ser pensado
enquanto identidade do sujeito racializado, ele esvazia as possibilidades contestatárias dos
aymaras, anunciadas coletivamente em diversos momentos históricos, além de essencializar o
constante movimento da identidade Aymara em transformar-se a partir das práticas dos próprios

257
Roger se refere ao documentário “La nación ch’ixi: una mirada desde la Isla del Sol” produzido por Violeta
Montellano, integrante do Colectivo Ch’ixi. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TgNuMFr8I3I
258
"O ch'ixi como identidade descolonizadora é uma proposta inovadora e revolucionária para os sujeitos
identificados como brancos-mestiços na Bolívia. Entretanto, quando se pretende catalogar ou identificar ch'ixi a
um sujeito racializado como tal, essa categoria anula a identidade autóctone do sujeito. Lembro que, quando Silvia
Rivera nos visitou no set da La Curva del Diablo, ela mencionou que minha casa e eu éramos a expressão ch'ixi
do que ela estava falando, mas eu disse a ela que somos aymaras. No documentário La Nación Ch'ixi, mostra as
práticas da população Aymara da Isla del Sol como uma área turística, mas por causa de sua virtude de se abrir
para estrangeiros, não seria mais Aymara, mas ch'ixi. O ch'ixi parte de uma ideia essencialista do índio e o fecha
nessa ideia, deixando de lado a possibilidade de serem aymaras que respondem ao seu espaço e tempo, ou seja, os
aymaras contemporâneos. "
153

sujeitos, ruralizando-os e compreendendo que a inserção destes em espaços como a


universidade modifica suas redes de identificação.

O objetivo desta dissertação não foi a construção da defesa de algumas teorías


identitárias em detrimento de outras, mas apresentar o debate que gravita em torno ao tema da
mestiçagem e sujeitos políticos na Bolívia andina. Ainda assim, existem elementos que não são
tomados em conta quando tratamos do tema da mestiçagem, o trabalho de campo realizado
entre grupos aymaras urbanos me auxiliou na compreensão da importância em referenciá-los
como intelectuais de sua própria identidade, essas vozes me pareceram escassas quando nos
debruçamos sobre as teorias identitárias.
154

CONCLUSÃO

A aposta pela descolonização das metodologias científicas aparece nos trabalhos de


Silvia Rivera Cusicanqui como preocupação em construir um diálogo com as epistemologias
que ela faz referência. Por meio da utilização de palavras em Aymara, como o próprio ch’ixi,
tornando-as categorias analíticas para compreender a construção de conhecimentos, Silvia
Rivera implode as escalas universais e locais, demonstrando que uma categoria da
epistemologia Aymara pode comunicar muito para a constituição da antropologia como
conhecimento. Neste sentido, o ch’ixi é um exercício de glocalização, relação conflituosa entre
o local e o global, uma perspectiva localizada entre os aymaras que aporta criticamente para a
dimensão global do conhecimento das Ciências Humanas.

Como sujeito político da descolonização do conhecimento, o ch’ixi desnuda seu lado


mais frutífero, dialogando com as teorias da mestiçagem que contruíram discursos equivalentes
a diversos espaços colonizados. O ch’ixi é pensado como um movimento epistemológico para
compreender as relações coloniais que ainda imperam nas relações sociais, institucionais e
transnacionais na atualidade. Uma metodologia do diálogo no akapacha (tempo presente) com
epistemologias não-ocidentais, com temporalidades não lineares, com as lógicas subversivas
que nascem no interior do próprio sistema capitalista. Assim sendo, o ch’ixi tomado como um
exercício epistemológico, pode auxiliar na reestruturação das Ciências Humanas frente às atuais
críticas, isto porque deslocaliza a epistemologia Aymara e a direciona como possibilidade
analítica.

Pensar a mestiçagem na Bolívia é, necessariamente, dialogar com teorias que constroem


sentidos sobre as identidades que compõem o sujeito mestiço, uma composição conflituosa ou
harmônica. Assim sendo, o mestiço ch’ixi é um sujeito político da descolonização na medida
em que o índio é o sujeito político do indianismo e o kolla do katarismo, a distinção entre tais
sujeitos políticos são os enunciadores destas identificações. O ch’ixi como exercício de tecer
conhecimentos, pode dialogar com os movimentos indianistas e kataristas, mas quando esta
categoria deixa de ser uma prática para tornar-se uma auto-identificação, quando é subjetivado,
vai ao encontro destes outros movimentos. No limite, o ch’ixi nega as potencialidades dos
aymaras quando a preocupação de Silvia Rivera Cusicanqui está direcionada à constituição de
um sujeito ch’ixi e de uma nação ch’ixi enquanto identidades.
155

Assim, a grande discordância entre a proposta ch’ixi de Silvia Rivera Cusicanqui e as


perspectivas indianistas e kataristas, está no âmbito da identificação. Como apontado por
Abraham Mancilla, o ch’ixi apaga o sujeito Aymara quando concebe que a constituição da
epistemologia como manchada não pode ser associada a uma identidade Aymara. Uma pergunta
feita por Roger Chambi enquanto dialogávamos sobre o ch’ixi como uma aposta
descolonizadora foi: “Si el ch’ixi es un ejercício de evidenciación del índio interior, que pasa
con los que tenemos el índio exterior?” (“Se o ch’ixi é um exercício de evidenciação do índio
interior, o que acontece quando temos o índio exterior?”). Para Roger Chambi, o ch’ixi
enquanto identidade pode ser uma aposta interessante para os sujeitos mestiços, proposta crítica
às perspectivas da mestiçagem construídas historicamente. No entanto, existe um movimento
que necessita ser apresentado quando tratamos do discurso identitário no âmbito boliviano, que
não estamos dialogando somente com as teorias da mestiçagem, mas também com as teorias da
identidade indígena, seja ela categorizada como índia, Aymara ou kolla. Se não pensarmos o
indígena como uma identidade fixa no tempo e em um determinado espaço, podemos abrir
nossas perspectivas para as potencialidades dos sujeitos Aymara, que pode construir um
exercício ch’ixi de pensamento, mas que não necessariamente se identifica com o ch’ixi
enquanto identidade.

Posso não ter dado conta nesta dissertação da importância das relações afetivas que
desenvolvi em campo para a compreensão dos mundos aymaras que me foram apresentados,
mas acredito que tornar-me efetivamente parte da família com quem desenvolvi um trabalho
transformou minha visão de mundo com relação ao “fazer antropologia”. Não fui caracterizada
como “a antropóloga” em todos os momentos do meu campo, na maior parte dele eu fui a filha,
a irmã, a namorada, a yerna de Achacachi (nora de Achacachi). Nos desafios deste campo não
estava em tensão somente a língua, a gastronomia, o clima, mas fui levada a compreender e
agir no mundo Aymara como parte dele, fui cobrada, colocada à prova em diversos momentos,
mas ao mesmo tempo fui amada, senti esses mundos aymaras a partir das minhas entranhas
(chuyma), senti os efeitos destas relações no meu corpo, construí este lugar do outro como lugar
próprio. Não que eu tenha me tornado Aymara em algum momento, mas consegui viver o que
eles me ofereciam como parte de algo muito maior que as minhas questões de investigação. E
neste sentido, do afeto em campo, a minha epistemologia foi manchada por elementos da
epistemologia Aymara.

As tradições, se lidas em seu movimento tradicional (CAPIBERIBE, 2017) e não


buscando sua fixação, podem enriquecer o exercício antropológico. Quando compreendemos
156

as epistemologias como manchadas, abandonamos a ansiedade salvacionista, que por muito


tempo caracterizou o conhecimento antropológico, em benefício de uma antropologia afetada e
dialógica.
157

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ANEXOS.
165

Anexo 1. Certificado de Óbito de António Chambi Huanca, pai de Don Ascencio Chambi Verástegui,
falecido marido de Dona Hilda. (Documento cedido pela família)

Anexo 2. Certificado de Óbito de Fortunato Mamani Huanca, meio-irmão de Don Ascencio Chambi
Verástegui, falecido marido de Dona Hilda. (Documento cedido pela família)
166

Anexo 3. Certificado de Óbito de Margarita Huanca Verástegui, mãe de Don Ascencio Chambi
Verástegui, falecido marido de Dona Hilda Chambi. (Documento cedido pela família)
167

Anexo 4. Certificado de Óbito de Rolando Chambi Mamani, filho do primeiro casamento de Don
Ascencio Chambi Verástegui, falecido marido de Dona Hilda Chambi. (Documento cedido pela
família)
168

Anexo 5. Certificado de casamento de Antonio Chambi Guanca com Margarita Guanca Verástegui,
pais de Don Ascencio Chambi Verástegui. (Documento cedido pela família)
169

ANEXO 6. Diálogos com Silvia Rivera Cusicanqui (08/12/2018)

Chryslen: Creo que ya te envié mi investigación algunas veces por correo, tengo interés en el
tema del ch’ixi desde el grado porque miraba sus charlas y creía que era muy interesante y
dialogaba con muchas cosas de Brasil, que vivimos desde el Movimiento Negro y de
intelectuales negras como Lélia Gonzáles, y por eso empecé a trabajar ese tema. Y también por
algunos discursos de mestizaje, porque me parece que es un mestizaje distinto lo que haces,
entonces busqué algunos discursos de mestizajes en Bolivia y quería hacer una relación con ese
discurso que haces, entonces es más o menos esa mi propuesta y también por el contacto con
algunos movimientos indianista y kataristas comprendo algunos discursos que viene desde ahí.
En muchos espacios que leí y sus presentaciones también te presentan como katarista o como
alguien que fue militante del katarismo en algún momento del proceso histórico, quería saber
cuáles fueron los motivos que te llevaron al movimiento katarista y en qué momento se aleja y
los motivos de alejarse.

Silvia Rivera: Bueno, yo empecé a criticar a la izquierda en esa época porque era muy racista,
justamente a partir de esa crítica me fui aproximando a los kataristas, era la época de la dictadura
de Bánzer y yo estaba haciendo un trabajo de campo en una comunidad de Pacajes, y en esos
momentos Bánzer se declaró dictador abolió los partidos políticos y la COB todo, y entonces
muchos kataristas tuvieron que huir de las ciudad para escapar de la persecución de Bánzer y
se refugiaron en esas comunidades, y justamente la comunidad donde yo estaba era el lugar de
nacimiento, donde eran miembros del Ayllu varios dirigentes kataristas, no? Victor Apaza y
varios otros, entonces ahí yo entré en contacto, conocí sus propuestas y me encantó, y también
empecé a interactuar con la gente que, más o menos de forma clandestina, se reunían con Jenaro
Flores. Entonces fue muy natural y cando yo ya fui hacer mi maestría a Lima, al volver ya me
entré de lleno en contacto con ellos que ya estaba cayéndose Bánzer y hubo un gran Congreso
todavía semiclandestino en la plaza Israel y ahí estuve presente y fue intensificándose mi
relación con Victor Hugo Cárdenas, Simón Yampara, varias personas y con ellos estuvimos
trabajando la tesis política del segundo Congreso de la CSUTCB que se realizó en 1979, me
parece, no? O 80. Entonces ahí ya estuve muy activa, aparte de que yo ya había escrito el libro
“Oprimidos pero no vencidos”, a no, estaba empezando a escribir esas historias del katarismo
y, bueno, ya cuando vino el Golpe de García Mesa y Jenaro quedó herido yo salí al exilio y ahí
participé en México de una larga entrevista a, como se llamaba?, a un dirigente que también
estaba en el exilio, y a partir de los datos y todo eso fui escribiendo mi libro de “Oprimidos pero
170

no vencidos”. La primera copia, o sea, el manuscrito del libro se lo envié a Jenaro Flores a
Francia para que sea el primero a leerlo, y él me animó a publicarlo, no? De modo que cuando
terminó el exilio vine y publiqué el libro, que en realidad incluye la tesis política de la CSUTCB
en la que yo también había participado. Esa fue mi relación, entonces durante todo ese tiempo
mi relación duró hasta que en 1988 lo sacaron de la dirección de la CSUTCB a Jenaro Flores y
entró una serie de partidos de izquierda que prácticamente la ha fragmentado, la metieron en
peleas políticas a la CSUTCB, y yo le había advertido a Jenaro Flores, que estaba muy
encantado con unas gentes de la izquierda, que era medio peligroso que se meta con ellos, pero
no me hizo caso y, bueno, al final le hicieron un golpe y lo sacaron. Hasta ahí llegó mi relación
con ellos, después continué con el THOA y, digamos que una cosa más de historia, de trabajar
la memoria en 84-85 todo eso y seguí hasta los 90, hasta que también me desilusioné del THOA,
porque se había convertido en una ONG que recibía plata y que tenía ya una relación de trato
muy vertical, muy autoritaria con la gente que trabajaba ahí, entonces ya en 92 me alejé del
THOA también.

Chryslen: El THOA mantiene sus trabajos aquí?

Silvia Rivera: Si, pero ya de una forma de muy bajo perfil, ya no hacen gran cosa. Eso, así fue
la cosa.

Chryslen: Y nunca has tenido ninguna relación con el indianismo en esa época? Porque el
katarismo y el indianismo son frentes un poco opuestas.

Silvia Rivera: Yo escribí un artículo que hablaba de que ambos eran una especie de
contrapunto, uno trabajaba en profundidad que era el indianismo, y otro en extensión, que era
el intento de representar a campesinos no-indígenas, no? Con un discurso más reformista, más
izquierdista, en cambio los MITKA eran muy radicales, no, no tuve prácticamente ninguna
relación con los indianistas.

Chryslen: Bueno, Silvia, estaba leyendo sus trabajos y uno que me llamó mucha atención fue
el Hipótesis del Mestizaje Colonial Andino. Luis Claros en su trabajo habla que esa hipótesis
es muy interesante porque desnuda una relación de anhelo y desprecio del propio sujeto.

Silvia Rivera: Si, esa es la idea de que el Colonialismo Interno no solamente es interno a la
Repúblico sino es internalizado en la subjetividad de las personas, no? Y es un poco el endo-
racismo, que los padres no quieren que sus hijos hablen aymara y toda esa cosa de represión de
171

la propia cultura para que ellos no sufran la discriminación y eso ya es una internalización del
colonialismo.

Chryslen: Y bueno, quisiera saber cómo llega desde ese hipótesis, que es una perspectiva de
mirar el mestizaje, a la actual propuesta de mestizaje ch’ixi, que también es una propuesta de
mestizaje.

Silvia Rivera: Claro, es un poco buscar si es posible descolonizar el mestizaje, porque yo había
visto que el mestizaje es una forma profundamente colonizada de la identidad. Y entonces
desarrollé la idea de que el mestizo es un blanco manchado de indio, o un indio manchado de
blanco y que esas dos manchas no se funden, sino que se yuxtaponen en forma contradictoria,
entonces vive una especie de esquizofrenia, entonces para salir de eso mi propuesta era que
asumamos la parte india con más vigor, y la pongamos a la altura de la parte europea digamos,
y podamos profundizar y radicalizar ambas identidades para que del choque saliera una energía
que pueda ser emancipadora. Esa es la idea. O sea, es como una salida, el texto sobre “Mestizaje
colonial andino” es la propuesta crítica sobre el mestizaje, y la salida propositiva ya es
descolonizar el mestizaje por la vía de asumirse como identidad ch’ixi.

Chryslen: Y es otra propuesta de mestizaje en relación a todas las otras miradas que tenemos…

Silvia Rivera: Claro, el ch’ixi sería un mestizaje descolonizador, una forma descolonizadora!

Chryslen: Estuve leyendo un texto La Sirena y el Charango de Carlos de Mesa y es totalmente


distinto de tu perspectiva, o sea La Sirena y el Charango muestra ese mestizaje armónico
justamente que tu críticas, no ve? Que niega la posibilidad del indio tomar la modernidad en
sus propios términos y, según Carlos de Mesa, cuando el indio tiene acceso a cualquier símbolo
de la modernidad europea se vuelve ese otro que es el mestizo, y es justamente lo que tu niegas,
entonces creo que una de las cosas que leí más interesantes, que me llama más la atención no
solo en relación al indígena de las tierras altas, pero a los indígenas de las tierras bajas, a los
negros brasileros, es una modernidad indígena, esa modernidad ch’ixi y me gustaría que hablara
un poco más sobre eso.

Silvia Rivera: Por eso tiene raíces históricas. O sea es la participación, como antes de la
Colonia había ya una división social del trabajo muy desarrollada, entonces cuando llega el
dinero y el mercado la sociedad ya tenía eses medios para participar del mercado haciendo uso
de sus ventajas, del conocimiento de las rutas, de la tenencia de ganado para el transporte de
productos, entonces las sociedades, por ejemplo, que hoy son más pobres, las del sur de Oruro,
172

del occidente de Oruro, de Carangas y todo esto, eran muy ricos, porque eran llameros y
transportaban desde la costa hasta Potosí, de ahí ya surge la idea de que este fenómeno era
mucho más moderno que el de la cultura señorial de los europeos que se basaba en el no-trabajo,
en el ocio, en el hecho de que todo producto era producido por humanos serviles, entonces yo
consideraba que las élites eran más arcaicas que los indios y que los indios eran más modernos,
que utilizaban el mercado de una manera muy creativa y a la vez reproducían sus comunidades
a través del mercado y el mercado no era una fuerza destructiva sino que ellos se adaptaban a
ella e utilizaban para producir sus propias formas de organización y reproducción, entonces
desde ese horizonte del siglo 16, 17, pasando por lo horizonte republicano donde igualmente la
oligarquía señorial era verdaderamente más arcaica que los indios que estaban en todo el tema
del comercio a larga distancia, las comunidades, los ayllus del norte de Potosí eran exportadores
de trigo, de harina en el siglo 19 y fueron las reformas liberales las que hicieron, digamos, que
ellos se encierren en sus ayllus y se conviertan en esas comunidades aparentemente
tradicionales, pero ellos habían conocido una modernidad muy vigorosa, no? Y así podríamos
hablar del mismo presente, como una forma de modernidad propia.

Chryslen: Me acuerdo que en su libro Ch’ixinakax Utxiwa cita la resurrección de Tupak Katari
con Bartolina Sisa que tiene el impulso más moderno que esa elite que estaba en vigor en la
época, no?

Silvia Rivera: Claro, claro, o sea Tupak Katari y Bartolina Sisa también eran comerciantes a
larga distancia de coca, etc., y también los Caciques Apoderados eran viajeros de larga distancia
y comerciantes de carne y todo eso y estaban muy metidos en el mercado.

Chryslen: Me acuerdo que una de las clases de Sociología del Imagen que tú nos ha indicado
un libro de Alison Spedding, Manuel y Fortunato, para saber un poco de eso de como pensaban
el propio Guaman Poma de Ayala que aparece en un determinado momento en el libro y
justamente en ese momento creo que hay mucho dialogo con su teoría, porque cuando Manuel
y Fortunato se encuentran con Felipe es un momento que él está en esa cosa de ir y volver del
ser indio, de querer la coca, tomar o no, entonces eso está en conflicto, no ve?

Silvia Rivera: Claro, o sea, Guaman Poma es precisamente la identidad ch’ixi, es un indio
colonizado pero donde luchan los dos contrarios permanentemente, en su texto está todo
entremezclado y yuxtapuesta la parte colonizada y la parte más libre, no?
173

Chryslen: Y en sus figuras me acuerdo también que en sus textos habla como la escrita y la
figura están en una relación conflictiva, no? Cuando asesinan a Atawalpa de una manera, pero
que no es necesariamente lo que cuenta la “historia”, pero lo que quiere decir eso, no ve?

Silvia Rivera: Claro, es el descabezamiento. Es que el utiliza mucho una serie de metáforas y
alegorías. En toda la obra yo trabajo esto de las alegorías que son las formas metafóricas de
expresar verdades históricas que, más que contar lo que pasó, interpretan el sentido, el
significado de lo que pasó.

Chryslen: Yo puse el ch’ixi en algunos diálogos con compañeros de la UPEA y les pregunté si
se sentían ch’ixi, explicando lo que era y todo eso, en cuanto identidad y muchos de ellos me
contestaron que era una identidad posible apenas para blancos-mestizos. Mi pregunta es si la
experiencia en asumirse ch’ixi es la misma en un plano criollo (blanco-mestizo como se dice,
porque eso puede ser criticable) o en un plano indio?

Silvia Rivera: Yo no sé, eso depende de ellos. Yo creo que todos los indios son ch’ixis desde
el momento en que están penetrados por la religión católica, por el castellano, y que no lo
reconocen y que no reconocen que tienen… se creen indios puros, pero en realidad no hay nada
puro, no? Entonces es una controversia que tengo yo con muchos indianistas que descalifican
esta noción de lo ch’ixi, pero yo creo que algunos si lo consideran como una posible
interpretación apropiada.

Chryslen: Pero, en cuanto identidad el ch’ixi de algún modo no borra la identidad aymara, o
si?

Silvia Rivera: No, no, no. Lo ch’ixi consiste en reconocer lo indio, pero además radicalizar-lo
como una episteme, y eso es todo el tema del diálogo con sujetos no humanos, el hecho de que
los muertos viven, el hecho de que se construyen y reconstruyen comunidades aún en espacios
urbanos, la vigencia del idioma y toda la cosmovisión que implica el idioma, todo eso configura
ese lado indio, pero depurado de todo su aspecto colonizado, por la religión e incluso el
patriarcado y el machismo dentro de las comunidades indígenas. Y por otro lado, el lado
europeo que también es necesario radicalizarlo y depurarlo de sus nexos con la libertad de
mercado y con el consumismo, y reconocer que desde europa nos ha llegado la idea de la
libertad personal, individual, de los derechos humanos como individuos, como personas, de los
derechos de las mujeres, no? Entonces esos dos lados, tanto indio cuando europeo hay que
depurarlos, para que choquen de una manera más fructífera.
174

Chryslen: Me acuerdo que una de sus ponencias hacia una relación entre el ch’ixi como
descolonización de la escrita, estaba hablando necesariamente sobre eso, y un Pachakuti de
palabras, me acuerdo que usó ese término. Quisiera que me pueda detallar un poco más sobre
eso.

Silvia Rivera: No me acuerdo haber dicho eso sinceramente, yo diría que en un Pachakuti que
es una crisis profunda, se ponen en cuestión todas las palabras, porque es necesario repensar el
significado de las palabras y hacer de ellas no una cosa para entrar en un sonambulismo, un
automatismo discursivo, sino críticamente ver que significa cada una de las palabras, las crisis
es una crisis de sentido. Es eso, yo creo, el Pachakuti de palabras.

Chryslen: En ese momento me acuerdo que hacía una crítica a los decoloniales y
postcoloniales, no ve?

Silvia Rivera: Si porque es una moda, no? Y además es esencialista, considera que los indios
son colonizados y que solo ellos son los sujetos de una descolonización, descalifican a los
mestizos y yo creo que es una posición muy esencialista y despolitizada. Que además captura
una serie de ideas producidas en el Sur y las transforman en insumos, materias primas para
devolvernos esas mismas ideas, enredadas y travestidas.

Chryslen: Me acuerdo también, Silvia que en Rio de Janeiro, cuando estabas ahí, tú has hecho
una crítica al Boaventura, una crítica muy interesante, hablando que él venía con su cuchara
sacaba lo que quería de América y en los momentos de crisis nos daba la espalda, no?

Silvia Rivera: Es que es eso, no? O sea él vía todo con optimismo porque no estaba en el
momento de la derrota, de la crisis, porque ya se iba a alguno otro lugar para escavar y para
sacar ideas que le afirmaba en esa su postura optimista, no? Yo pienso que es muy fácil,
digamos.

Chryslen: Y es una epistemología, no?

Silvia Rivera: Pero es una epistemología del Sur que todavía no se sabe cómo funciona, quien
son sus sujetos, es como muy light las ideas del Boaventura.

Chryslen: Ah! Quería preguntar eso porque yo tengo un vínculo muy fuerte con el anarquismo,
y en especial con el anarquismo social y quería saber cuál el vínculo entre el anarquismo, que
tú siempre te dices anarquista y mismo sus referenciales lo son, entonces cuál es ese vínculo
entre el anarquismo y la propuesta ch’ixi?
175

Silvia Rivera: Es natural, o sea el hecho de que tú reconozcas del lado europeo las luchas por
la libertad está reconociendo de que ahí el eje de esas luchas han sido los anarquistas en Europa.
Además el papel de las mujeres anarquistas, entonces yo considero que es parte del ch’ixi el
reconocer que de Europa nos vienen unas ideas que en su versión reformismo son más bien
democracia, en tanto que en la versión radical seria la acracia, el cuestionamiento a toda forma
de Estado y el reconocimiento de la base de la organización como una base micropolítica, de
trabajar desde abajo y no apuntar al Estado. Es completamente coherente con el ch’ixi la idea
de la libertad, libertaria, del anarquismo.

Chryslen: Y los aymaras tienen un proceso también histórico con el anarquismo?

Silvia Rivera: Bueno, el anarquismo de la FOL era de gente chola de las ciudades, eran cholos,
eran cholas y cholos carpinteros y artesanos en su mayoría, entonces si tenía una raíz aymara,
pero a la vez eran modernizantes, no?

Chryslen: Y como piensas el cholaje?

Silvia Rivera: Es eso, o sea el cholo que se afirma a si mismo tiende a esa forma ch’ixi de la
descolonización, no? Que reconoce todo el boom que hay de rituales, de reencuentro con la
Pachamama de parte de los sectores cholos urbanos, está encaminado hacia una identidad ch’ixi.

Chryslen: Pero hay determinaciones que hace en su nuevo libro que son muy interesantes y
que había pensado con mi familia de Villa Adela, que muchas veces me pasó, cuando tú dices
que existen esas determinaciones de lo que es también el indígena y entre ellas es eso de
considerar el todo como sujeto, me acuerdo que, para mí, cuando venimos desde afuera traemos
toda nuestra no-familiaridad y todo nos es nuevo, me acuerdo que mi suegra me decía, porque
yo no aguantaba comer tantas papas, me decía que “No puedes botar la papa, la papa va
llorar”, entonces esa relación que el todo es sujeto…

Silvia Rivera: Claro, que las cosas son sujetos, que las cosas hablan, que las cosas se relacionan
con el mundo humano, que hay señales, que las cosas te dan señales, eso es así.

Chryslen: Si, el Roger me había dicho… Pasamos el carnaval, el martes de challa, y él me


había dicho como: “El martes de challa se hace con la casa lo que se hace con la gente en las
fiestas”. Entonces la casa tiene también esa relación de ser persona. Eso me parecía muy
interesante porque todas las veces que estuve en los movimientos indianistas y kataristas venía
siempre una duda, hablan del aymara, pero no sé qué definen como aymara.
176

Silvia Rivera: No, lo que pasa es que son muy racionalistas los indianistas y no son muy adictos
a practicar ningún tipo de rituales, son bien negados a los rituales e incluso sectores como el
Carlos Macusaya plantea de que no hay ninguna propuesta de defensa de la madre tierra, de
que eso es pachamamismo, no? Entonces son muy… modernizantes, son totalmente
modernizantes, en el fondo eurocéntricos.

Chryslen: Una yapita, Silvia. Roger y yo estamos trabajando en un grupo de la CLACSO el


tema de los q’amiris, no? Entonces estamos intentando entrar en esa discusión un poco más
económica, tenemos algunos proyectos en conjunto y es muy difícil categorizar el q’amiri hoy,
o hay muchas categorizaciones y no se sabe para dónde ir, la Cecilia Salazar habla de una
Burguesía Kolla, el Fernando Untoja habla de un desarrollo que va llevar hacia una Aristocracia
Aymara…

Silvia Rivera: Si, yo creo que eso tiene un valor, que es alertarnos de que no es posible
quedarnos solo en el análisis de los conflictos étnicos, sino también internamente en cada grupo
ver la estratificación de la clases, entonces yo creo que es necesario reconocer que hay una
estratificación de clase y explotación de aymaras por otros aymaras en los talleres textiles en
São Paulo, en Buenos Aires, entonces es evidentemente muy necesario no romantizar al
indígena y a la comunidad porque hay una fuerte tendencia a una diferenciación interna y una
estratificación dentro del grupo, de la comunidad hay estratos, hay explotadores y hay
explotados, no?

Chryslen: Claro, como categorizarías? Como q’amiris?

Silvia Rivera: Bueno, q’amiri es una fórmula de expresar una forma de considerar la persona
que tiene medios, que es rica, que tiene posesiones, que puede hacer grandes fiestas, redistribuir,
es como una burguesía con un sello étnico, no? Eso es…

Chryslen: Pero podemos hablar como burguesía?

Silvia Rivera: Claro que sí, como burguesía comercial, pero también en los talleres textiles hay
una burguesía productiva.
177

ANEXO 7. Diálogos com Dona Hilda


Este diálogo aconteceu na manhã do dia dois de fevereiro de 2019, na ocasião produzíamos
churros como em todas as madrugadas da semana, Dona Hilda cantava uma canção em aymara
comemorando o aniversário de dois dos filhos. Dona Hilda começou a rememorar alguns
momentos de sua vida, nos relatou sobre um ladrão que entrou na casa da família quando ela
trabalhava vendendo comidas em Ch’ojñapata.
Chryslen Mayra: Y cómo ha entrado el ladrón? Qué pasó?
D. Hilda: Un año un ladrón nos ha entrado, pues, para vender chicharrón justo hemos preparado
carne cortado, chuño, recorrido un montón de cosas y todo se ha llevado el ladrón, todo! Carne
de cordero, carne cortado mismo para tostar nomas era. Todo eso ha llevado! Era su cumpleaños
de la Giovana, así tenía que pasar…
D. Hilda: No te has soñado esta noche con el papá? - Direcionada à filha Giovana.
Giovanna Mayta: No, no he soñado nada.
D. Hilda: Si te sueñas con el papá les vas a decir que te cuide.
Chryslen Mayra: Yo soñé que estaba embarazada. Escucha mami, que es cuando uno sueña
que está embarazada?
D. Hilda: Plata!
Chryslen Mayra: Soñé que estaba embarazada, con barriga, así estaba, caminando!
D. Hilda: Plata es, cuando algún día vas a terminar tu carrera, un día vas a ganar plata… Y
cuando tu sueñas con bebé es plata, soñar con papa también es plata.
Roger A. C. Mayta: Papa también igual es plata, no ve mami?
D. Hilda: Papa también es… Pan no, mala suerte es pan.
Giovanna Mayta: Yo siempre sueño con churros.
Todos riem.
Alguns minutos passam, Dona Hilda caminha entre a mesa e a panela cheia de óleo
levando os palitos de churros nos quais enrolávamos as massas.
Chryslen Mayra: Mami, hasta cuantos años te quedaste en la escuela antes de venir a La Paz?
D. Hilda: Hmmm, ha ver… creo que cuatro, cuatro años en la escuela.
Chryslen Mayra: Cuantos años tenía cuando ha venido a La Paz?
D. Hilda: Ocho, nueve años.
Chryslen Mayra: Nueve años? Y… de una se fue a la casa del General Banzer?
D. Hilda: Hecho he ido… diez… once años yo he venido a Banzer!
178

Chryslen Mayra: Y cuantos años se quedó ahí?


D. Hilda: Hmmmm, un año no más, debe ser también, tal vez dos años…
Chryslen Mayra: Sí? Mami, porque tienes una foto de una boda de la familia de Banzer?
D. Hilda: Ah, ese mes se ha casado!
Chryslen Mayra: Cuando tú trabajabas ahí?
D. Hilda: Sí!
Chryslen Mayra: Y te han regalado una foto de la boda?
D. Hilda: Me han regalado… aunque tenía más fotos, pero no aparece.
Chryslen Mayra: Sí? Tiene dos fotos, Roger ha encontrado, que es una de él en la boda y una
tuya bien wawita, con una wawa más. Es el hijo?
D. Hilda: Es su hijito del General, tenía que irme a Estados Unidos. Yo tenía que irme a cuidar
a ese niño en Estados Unidos y yo me he escapado del avión, me he asustado por los gringos
en el avión.
Chryslen Mayra: Sí?
D. Hilda: Sí, me escondí detrás de los autos, de los taxis que se estaban viniendo del general,
sé venirme corriendo. Me estaban llevando.
Chryslen Mayra: Pero tu familia sabía que te ibas a ir?…
D. Hilda: No, qué iban a saber!
Chryslen Mayra: Y te han regalado las fotos de ellos?
D. Hilda: Sí, de recuerdo me regaló, tenía que volver.
D. Hilda: Al cine nos sabe llevar.
Chryslen Mayra: Quién, el General?
D. Hilda: Con guardia nos sabía mandar, o sea, ahí vivía el General Banzer en Avenida Rosendo
Gutiérrez.
Roger A. C. Mayta: En Sopocachi?
D. Hilda: Ahí vivía, yo vivía con su mamá en la Diez de Romero en Miraflores, ahí vivía…
Entre familias nomás sabían gobernar, yo ha trabajado con su mamá. El hijo era el ministro del
interior, el General Banzer era su yerno, el presidente del COMIBOL también era yerno. Entre
familia nomás gobernaban.
Roger A.C. Mayta: Sí, sí.
Chryslen Mayra: Todos que estaban en el poder?
D. Hilda: Sí. Triste, no?
Chryslen Mayra: Conocía a todos, mami?
179

D. Hilda: Había también pilotos, pero ha muerto.


Roger A. C. Mayta: Banzer como era? Era bueno?
D. Hilda: Bueno, era bien bueno. “Como está, Elvirita?”, Elvirita me llamaba.
Chryslen Mayra: Por qué? No sabía su nombre?
D. Hilda: Dos eran las compañeras que ahí trabajaban, una era como la Georgina… No, como
la Giovannita era! Ella sí se llamaba Elvira, pero todos me decían Elvira. A ella le ha adoptado.
Roger A.C. Mayta: Adoptaban en eses tiempos, no?
D. Hilda: Sí, adoptaba sí…
Chryslen Mayra: Y cómo eran las bodas, mami, de ellos?
D. Hilda: Las bodas, matrimonios, no eran así como de nosotros.
Roger A. C. Mayta: Llevaban cerveza?
D. Hilda: Nada! Los regalos faltando se dan, digamos…. en lo próximo sábado se van a casar.
Hoy día ya llegan sus regalos, llegan a la casa flores, pura flores, el regalo más, flores más, el
regalo más…
Chryslen Mayra: Sí?
D. Hilda: Todas las gradas, hay donde flores poniendo tarjetitas de sus regalos, tarjetitas y sus
regalos… Faltando una semana ya llegan sus regalos.
Chryslen Mayra: Y como es la fiesta? Toman mucho o no?
D. Hilda: No, bailan, van a la iglesia, llegan, después bailan, y después en la noche van a ir a
festejar, no sé dónde en la noche se van. Viajan a Estados Unidos, a Paris, no sé donde, después
de un mes van a llegar los novios.
Roger A. C. Mayta: Y tú, mami, que tenías que hacer? Tenías que estar bien cambiadita con
su uniforme, no?
D. Hilda: Yo con él uniforme tenía que estar…
Roger A.C. Mayta: Tú uniforme con pollerita era?
D. Hilda: Un centrito y arriba un abriguito, era azul… bonito era, con su botoncito, botoncito,
así folladito era.
Roger A. C. Mayta: Y tú ya hablaba castellano hasta este momento, o no? Como era la cosa,
pues?
D. Hilda: Hablaba, hablaba… Me tuve que poner un poquito a aprender, no sabía bien.
Chryslen Mayra: Y cuando salió de ahí, mami? Por qué ha salido de ahí?
Roger A.C. Mayta: Cuando ha escapado del avión.
Chryslen Mayra: Cuando te has escapado?
180

D. Hilda: Cuando me ha escapado, después ya volví con mis papás, y mi mamá se ha


enfermado.
Chryslen Mayra: Y ha vuelto a Ch’ojñapata?
D. Hilda: A Ch’ojñapata volví.
Roger A.C. Mayta: Pero, cuenta… Nos has contado, creo que te ha venido la abuela a buscarte?
D. Hilda: Sí, ella ha hecho eso, eso fue cuando me he escapado más antes, cuando eso me pasó,
ella creía que en otro lugar trabajaba y ni siquiera me han pagado tres meses. Entonces vení a
pie de Ch’ojñapata hasta Achacachi.
Roger A.C. Mayta: Tan lejos!
D. Hilda: Mi mamá también mala era pues, de ahí me he q`itasido, Una cholita habia venido
de Warisata había sido, ella ha venido a bailar a Ch’ojñapata kullawa , después al día siguiente
de San Juan, a la cholita sé encontrarle en el río, ella estaba lavando sus centros blanquitos,
sus blusas, sus chompas blanquitas “bien bonitos sus ropitas, yo no tengo así” “Te vas a
trabajar, no quieres trabajar? Así te vas a comprar ropas cuando vas a trabajar”, así me
hablaba. “Ya, pero tienes que pagar.” “Ya, te voy a pagar una ovejita ” “ya, una ovejita sé
darle…” yo cargada de una ovejita, un lip’ichito, un chhusi, y una ovejita cargado. Con la
cholita hemos venido y me ha llevado hasta Achacachi, después de Achacachi en un camión
cargado de cebollas, sabemos venir a La Paz, ha me llevado hasta una parada de ahí, me ha
llevado hasta la Plaza de Uyuni, Plaza Uyuni trabajaba. Mi mamá no sabía dónde estaba, estaba
buscando pues, esa vez ya trabajaba siempre el Ascencio en Patapatani mi difunto marido y…se
había llorado mi mama “Mi hija no parece” El siempre venía a comer, comida vendíamos.
Roger A.C. Mayta: Ah, papá ya llegaba a comer no ve?
Giovanna Mayta: Ya habías conocido al papá?
D. Hilda: Sí, a comer venían, y le había preguntado “como es doña Francisca, la Hilda?” “Ah,
mi hija no sé bien, no sé bien, no se qué hacer! Se había q’iitasido, donde estará mi hija?!” se
ponía a llorar mi mamá, y el Ascencio sabe decirle: “Una jovencita, solita, como le vas a dejar?
Tienes que buscarla hasta encontrar siempre, como le vas a dejarle? Tienes que buscarla,
cualquier cosa le puede pasar, tienes que cuidarla, tienes obligación de buscar, aunque sea del
periódico, por todo eso puedes buscar”.
Mi mamá hasta ha venido a La Paz. En La Paz había un vecino que me conocía, de Ch’ojñapata
también juntos estábamos en la escuela, y así joven también sabia trabajar en una volqueta, un
camión en la ciudad seguramente sabia trabajar.
Roger A.C. Mayta: Ah, un camión?
D. Hilda: Sí, un camión, en la ciudad seguro a trabajar y con la volqueta caminando seguro, y
yo estaba hiendo a comprar pan, en las mañanas siempre me mandaban comprar pan, estoy
andando a comprar, abajo yo estoy vendiendo con mi bolsita. Y me había visto, el conductor
de la volqueta, el volquetero “Esta es la Hilda, creo? su mamá está llorando también, donde
va irse?” me había estado persiguiendo, me había vigilado con su camión, con su volqueta
“Dónde irá? Dónde va entrarse, agarrada con sus panes? Le voy encontrar ese espacio y así
avisar.”, yo así estaba hiendo agarrada con mis pancitos, corriendo, la calle así corriendo sé ir,
181

ahí he golpeado una casa así me sé entrarme, allá me ha visto. A mi mamá le había encontrado,
pues, en Final los andes había esperado y llevado donde Tío Maxi, hasta ahora sigue vive en
ahí. Ahí donde Tío Maxi decía que se había alojado. Eusebio se llamaba el camionero, “tía,
qauqaru sarasta?” (tía a donde estas yendo ?)” “Hildajaj ch‘ak‘atachiyaja (la Hilda no parece),
su papá a mí nomas me riñe, donde voy a ir a averiguar”, “tia nayaj uñjta, ma utaru manti,
mira flores uca toq‘inanaja irpama tia” (tia yo le visto, a una casa ha entrado, por Miraflores,
yo te voy a llevar tía¡¡ ) me dicho yo te voy a llevar.”Irpitay, amsuma” (llévame pues por
favor). Había venido mi papá más pues, golpea la puerta,
“Así mi hija es, se ha perdido, como estará?” Le dijo mí papá a la señora para quien yo
trabajaba. “Si está trabajando bien va a estar trabajando, si no está bien también me la llevo
nomas también”, y ella sabe responderle: “A sí quieres te la puedes llevar, pero me tienes que
pagar, todo lo que le he enseñado, tu hija no sabía nada!” “No sabía lavar tazas, no sabía
tender cama, nada sabía tu hija! Así que ahora ya ha aprendido, tres meses ya aprendió, así
que vos tienes que pagarme!”, así le había dicho mi jefa a mi papa. Mi papá no sabía qué
decirle…“No tenemos para pagar, para ganarse ha venido pues a trabajar, por eso también
que mi hija ha venido pues, entones, para que, no voy a pagar, yo no tengo plata para pagarle”,
sabe decir mi papá. “me lo llevaré nomas a mi hija aunque no me pagues yo tampoco te puedo
pagar, mi hija te ha ayudado por lo menos! Yo puedo quejarme también!”, sabe decir mi papá
entrador también era mi papa, “Voy a quejarme en al Ministerio del Trabajo haber si no hay
pago. Vamos Hilda, vamos al campo nomás”, así sabe decirme, en el campo vendía comida
pues ya, ya había aprendido a cocinar asado en la olla.
Giovana Mayta: No te han pegado, porque te has q‘itado (escapado)? No te han pegado?
Roger A. C. Mayta: La abuela no te ha reñido?
D. Hilda: Q’itaqara me decían, al dormir ya al despertar, mil cosas me decían, aqa q‘uitaqara
walj k‘apichkar ukàt janiu kìtasineja (esa chica que escapa de la casa, siempre se quiere
escapar).
Chryslen Mayra: Cuanto tiempo ha quedado en La Paz? Tres meses?
D. Hilda: Tres meses con esa señora, después de ahí me fui a trabajar con el general Bánzer.
Chryslen Mayra: Y la señora que te llevó era también de Ch’ojñapata?
D. Hilda: No, esa chica, la cholita que me ha llevado a La Paz, se ha llevado mi cuerito, y mi
manta. No era de Ch’ojñapata.
D. Hilda: Después fui con mi Tía Ignácia, del Tío Alberto, no ve? Esa tía me llevó a trabajar
con el General Banzer, ella pues me dijo que necesitaban ayuda, la Tía Gregória gorda también
trabajaba como empleada igual. Esa tía sabe decirle a mi mama que “Su mamá de mi General
quiere, quiere emplear” de ahí agarré mis cosas y me fui a trabajar con el general. Yo me quedé
así en una habitación con guardias.
Roger A. C. Mayta: Y cómo te ha sentido cuando llegaste a esa casa tan lujosa?
D. Hilda: Bien, en un palacio me sentí, así, nunca había visto casas alfombradas. Y el General
Banzer tenía su sapo en la Rosendo Gutiérrez, su sapo gordo, su tortuga también, todos los días
hasta sábado, domingo se sentaba encima de su tortuga… En cima de su tortuga sentado y sus
182

pies estirados, así sabe estar leyendo los periódicos. Puro cosas saludables saben comer, jugo
de papaya, de frutas, pelado las frutas, “General, la señora se ha mandado.” Sé decirle, él sabe
responderme “Gracias, Elvirita. Gracias, Elvirita!”
Chryslen Mayra: Todas las que trabajaban ahí eran Aymaras?
D. Hilda: Sí, había un argentino que cocinaba platos extranjeros. En las noches cenaba, harta
gente sabe estar en su mesa, ahí es que era grande. Después hay que poner la mesa, sus
cubiertos, hay que poner vasos, copas, nosotros aquí como quiera comemos, allá no, hay que
poner las mesas con sus cubiertos, sus servilletas, con sus manteles, igualitos si ven sus
servilletas, con sus cubiertitos se ponen, jarras, jugos de frutas también en la mesa, almuerzan
como cincuenta personas, a veces cien así personas comen.
Chryslen Mayra: Y tenías tu cuartito, mami?
D. Hilda: Tenía mi cuartito, mi cuartito era así chiquitito con graditas que subían en vuelta,
vuelta, así se venía a mi cuartito. Tenía mi catrecito, mi colgadorcito.
Giovana Mayta: En el baño dormía, sabías decir?
D. Hilda: Eso era más antes, cuando me escapado, donde la señora mala. Ahí dormía donde es
la taza del baño, en el piso sé dormir. No sabía cómo era estar en mi cama.
Chryslen Mayra: Y tenía cuantos años? Nueve años?
D. Hilda: Sí, como Thaís.
Chryslen Mayra: Pero todas las otras que trabajaban, hablaban en Aymara?
D. Hilda: Sí, la Doña Romualda era de Copacabana, la que cocinaba comidas bolivianas, el
otro era Don Fermín, así se llamaba, era argentino que cocinaba platos extranjeros, cuando
llegaban ya invitaba para comer, cocinaba…
Chryslen Mayra: Y la Elvira?
D. Hilda: La Elvira era compañera conmigo, todas acompañábamos a la señora, ella era la
compañía de su señora.
Chryslen Mayra: Pero de donde era la Elvira?
D. Hilda: De Tarija. Doña Romualda era de Copacabana, pues, cocinera también, después
tenían dos garzones jóvenes. Esos garzones me hacen recordar al garzón que ayudó en la fiesta
del Marco y de la Giord.
Roger A. C. Mayta: Y después volviste a Ch’ojñapata a cocinar, no? Ahí ya vendiste comida?
D. Hilda: Sí, como ya había aprendido a cocinar, entonces vendía comida.
Roger A. C. Mayta: Y ahí el papá venía, no?
D. Hilda: Sí, el papá decía “Donde te has ido? Por qué te has ido así? No tienes que faltar a
la escuela, tienes que volver”. De ahí un domingo, yo estaba en un asiento y el Ascencio se
viene a sentar a mi lado y yo me siento también así en el lado, “Cómo estás?”, me sabe decir,
“Bien”, le sé responder. “Por qué no has entrado a la escuela, abajo tengo yo mi intermedio
ahí debes entrar” “No, mis papás me dijeron que no tengo que ir a la escuela porque no se
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come el papel, así me enseñó mi papá, me dijo que tengo que aprender a leer y firmar, nada
más, y si mi papá me dice así, quien va a querer llevarme hasta escuela?”. Muchas aprendían
el nombre en sí, y le decían “Si profe!” le sabían estar diciendo. Un día el Ascencio una de mis
manos me había agarrado y me ha asustado, “como es, como es?”... como una vizcacha me
asustado “No te asustes Hilda, porque te asustas?” yo se temblar, uff! Sé temblar harto:
“Hablaremos por las vacaciones”, me dice “Que cosa vamos hablar, profesor?” “Hartas
cosas!”. A mi papá rápido sé avisarle! No sé ocultarle nada. “Mami, así me agarró el profesor
Ascencio de mi mano, me ha asustado, después me dicho así hablaremos para las vacaciones”,
y mi mamá dijo “Que cosa debe querer hablar, que cosa a mi hija quieres hablar, pues?! Viejo
cochino! Eses viejos profesores, así nomas a las chicas engañan. Romualdo ven a ver!”, le dice
a mi papá, “Ese maestro había hablado a la Hilda, y su mano le había agarrado “Hablaremos
para las vacaciones” que cosa a mi hija querrá hablar? Ese viejo, carajo! Profesor es, debe
tener dinero y también debe tener mujeres, los profesores cuando están en la Normal ya tienen
sus mujeres, así nomás solteros soy vivido soy van hablando. No te vas a acercar hija! No te
vas a acercar, nos vas a avisar! Y luego domingo le voy a reñir, no le voy a recibir aquí.”
Giovanna Mayta: Toda la vida le ha reñido, no?
D. Hilda: No, mi papá siguió renegando. Hasta mi hermano Marcelo sabe sonarle con palo!
Roger A. C. Mayta: Tío Marcelo?
D. Hida: Sí, chiquito era, chiquito. Ahí venía: “Nunca más le hables a mi hermana”, luego le
sabe golpear. “me estás lastimando niño” sabe responderle el papá
Chryslen Mayra: Cuantos años tenía Don Ascencio?
D. Hilda: Hm… Cuanto años él había tenido?
Roger A. C. Mayta: Veintinueve?
D. Hilda: Hm… treinta por ahí..
Giovanna Mayta: Cuantos años era mayor?
D. Hilda: Catorce años mayor es, pues.
Roger A. C. Mayta: Si vos tenía quince, él debió tener treinta y uno?
D. Hilda: Sí, algo por ahí…
Roger A. C. Mayta: Veintinueve, mi edad tenía, mi edad, como yo!
Chryslen Mayra: Veintinueve!
D. Hilda: Eso tenía, ya era viudo y divorciado…
Roger A. C. Mayta: O sea, es como yo y la Dani, no ve? La Dani tiene quince años y yo igual
tengo veintinueve, así igualito, como la Danitza y yo.
D. Hilda: Así era. Así nomas mis papás avisaban le, cuenteaba le, así un domingo viene y me
habla, “Ese profesor habla con mi hija. Hilda, viene, viene!” me llamaba mi mamá, no me
dejaba que le hable, aun que iba hablar rápido me llamaba. Y yo con rabia le iba atender, y ya
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no le atendía como antes. Toda la vida le ha tratado mal, alma bendita, nunca le ha querido, no,
nunca le ha querido. Como él era malo también, peor.
Giovana Mayta: Y cómo te han hecho casar con él?
D. Hilda: Con mi hijo Marcos estoy casando, Marcos así era como el Ciro. Así me estoy
casando.
Roger A. C. Mayta: Entonces mami, en tu matrimonio quién estaba de tu familia, la abuela
estaba?
D. Hilda: Hermanos mormones.
Roger A. C. Mayta: Pero de tu familia… digo de tu familia, pues, quién estaba de tu familia?
La Abuela…?
D. Hilda: De mi familia estaba tío Severo, mi tío Condori, vivía todavía con mi tío Condori,
pues. Ha venido el papá pedirme la mano, pues, a La Paz.
Roger A. C. Mayta: Con quién vino el papá a La Paz, con quien ha venido?
D. Hilda: Con tío Evaristo ha venido, con tía Petrona. Después otro Juan, un conocido de tío
Evaristo, y junto con un notario.
Roger A. C. Mayta: trajo un notario de fe pública?
D. Hilda: Si, con un notario más. En la puerta de mi casa un domingo sabe ser, pues, domingo
a las siete, muy tranquilo.
Roger A. C. Mayta: En la casa en Ch’ojñapata?
D. Hilda: No, en La Paz, aquí en El Alto, en Los Andes. Tenía su tiendita mi papá, su tiendita
en la esquina está vendiendo, pues, adentro mi mamá está viendo sus galletas tostando. Y llegan
así “toc, toc, toc…”, saben decir “Cerveza!”, mi papá sabe decir. “Ay, caramba. Aquí esa
cervecita están trayendo?Que será, que cosa será, no?” “son unos Achacacheños creo”, mi
papá reconocía la voz de la gente de Achacachi, “Ah, su familia de Chana puede ser! Clarito
son su modo de hablar de los Achacacheños son”.
Roger A. C. Mayta: Ya, antes de eso todo ya estaba enamorada de papá, no?
D. Hilda: Sí, ya estaba.
Roger A. C. Mayta: Un poco antes… Ya se querían, no ve?
Giovanna Mayta: Todavía ya habían wawitas?
D. Hilda: No, no había.
Roger A. C. Mayta: Antes se han casado, para que convivan.
D. Hilda: Hemos convivido un año y en los cumples, ahí tenemos wawitas. Como voy a
entregarme más antes? Como el era mayor era formal.
Roger A. C. Mayta: Sí, sí, formal era.
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D. Hilda: Si él me quería para su mujer, claro por eso también me respetaba, si no me quería
para su mujer claro me hubiera hecho wawa. Y así, mi mamá sabe decirme que vaya a cerrar la
puerta, cuando de un de repente entra a la tienda el profesor saludando: “Don Romualdo!” sabía
entrar, “Como estás, profe?” sabe responder mi papá asustado “Como estás profesor, buenas
noches”, te presentaré pues a mi tío” “Ah, cómo estás? Seguro que no estás mal” y tío Evaristo
le saluda, entra también la tía Petrona “Buenas noches! Que tal, Romualdo?”.
Roger A. C. Mayta: Tío Evaristo con saquito, con su sombrerito.
D. Hilda: Eso, con su sombrerito con la tía Petrona así también, adentro cambiadito, con su
sombrerito. “Kunjamastasa tata (como esta señor?)”, habladora era la Tía Petrona, la tía María
venía con su esposo también.
Roger A. C. Mayta: En ese momento el papá no tenía que estar ahí, no ve? O estaba ahí?
D. Hilda: Estaba ahí… Un señor más, no han dicho que es un notario, nada. Mi tío Condori
también ha llegado ese rato, a visitar acá venía, pues. Ahí adentro donde están hablando y yo
estoy en otro lado, a parte de la gente adentro, había de entrar a la tienda. “A qué se debe pues
la visita?”, mi papá sabe decirles, “me han sorprendido”. Recién supe que era viudo, a mi no
me dijo que era viudo, nada. “Viudo es, su esposa ha muerto sus hijos también, solito se a
quedado”, saben decirle a mis papás, “no tiene papá, ni mamá, ni hermano, nadie, es solito.
Es huérfano”, así sabían decir.
Roger A. C. Mayta: Era huérfano, pues.
D. Hilda: Mi tío Condori ha llegado después ahí. Mi papá decía que yo era muy niña y que aún
no podía hacer familia con una persona mayor. Ahí el tío Evaristo le dijo a mi papá, “Pero
Romualdo, esa persona es mayor, pues ya es viudo, tiene experiencia, como a su hija le va a
cuidar también”, yo se estar escuchando nomás… El tío Condori sabe decir después: “Tío
Romualdo, profesor pero también es el señor, acaso nosotros somos ricachones? Con su
sueldito va estar manteniendo a la Hilda, por ahí es su suerte? Como su hija le cuidará nomas
también, mayor de edad también es, como a su hija le va a cuidar. Para que van estar ahí sigue
discutiendo? ya dile, entrégale!” dijo mi tío, “Que vas hacer? Acaso vas a carnear tu hija, toda
la vida no va estar sola, siempre algún día se van a casar! La primera palabra no hay que
negar, dicen. Pero por ahí puede ser su suerte” así sabe decir mi tío “La primera palabra nunca
hay que negar, eso te estaré diciendo, Romualdo” le ha dicho a mi papá. “Ya, pero que puedo
hacer?”, sabe decir mi papá, después me sabe llamar: “Hilda, así nomás con el profesor sabes
hablar dice, dicen que ya te van a llevar, te iras pues hija” Yo no sabía ni qué decir, “vamosnos
niña Hilda, conmigo vas a estar viviendo” sabe decirme tía Petrona. “Ya se decirles”, esa noche
a las cuatro de la madrugada saben llevarme. Con canciones, (irpastay, irpastay)
Chryslen Mayra: Como era la música?
Roger y Doña Hilda: irpastay, irpastay, janku paloma irpastay (me llevo, me llevo a una
paloma blanca me llevo).
D. Hilda: Con esa música me llevaron hasta su casa, sabían cantar hasta llegar a su casa y ahora
en su casa, 3 de mayo era en su casa. Cuando han llevado, toda la noche han tomado, toda la
noche. Yo no podía tomar, me han hecho tomar, me iba mareando y me he ido a dormir. Al día
siguiente me levanté y seguían tomando ellos.
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Roger A. C. Mayta: Y el papá seguía tomando?


D. Hilda: Seguía tomando! Y después me dijo la tía Petrona: “Ahora que está todo bien, aquí
tengo chuño mojado, aquí hay arroz, aquí hay papa, aquí hay carne de cordero, desde allá
hasta acá todo desde el riñon hasta la cola, la espalda, los riñones de la rabadilla, el cuello
más…” entero, entero sí. “Ahora sí, mujercita, todo nudo, nudo, nudo vas a cocinar. Sí, vas a
cocinar nudo, nudo una jak’unta (prato típico Aymara) vas a cocinarme! Con carne de
cordero”.
Roger A. C. Mayta: Una prueba para cocinar!
D. Hilda: Para hacer una prueba! Y yo cociné arroz k’aja, hice hervir el chuño, la papa, cordero
también, así nudito pero con hueso, así nudito, cortaba nudo, nudo, nudo así, rico he cocinado,
y la tía Petrona sabe decir: “Vos sí que eres mujercita, me sabe hacer bailar, vos si vas a vivir
bien como mujer, han visto como ha cortado los nudos?”
Roger A. C. Mayta: Y esas tías eran buenas contigo?
D. Hilda: Sí, muy buenas. La tía Vicenza sabe decir “Ay, si tu suegra hubiera vivido te hubiera
querido harto, le gustaba mucho las mujeres trabajadoras, tan limpiecito te gusta andar, en
que mala hora murió tu suegra”
Giovana Mayta: A mí también me ha dicho.
Giovanna Mayta: Bien rico cocinabas, no ve?
D. Hilda: Ahora ya tengo flojera, ya no puedo más. Mi comida ni siquiera no me sale bien.
(sorri)
Roger A. C. Mayta: No, siempre has cocinado rico
Chryslen Mayra: Sí, mami!
Roger A. C. Mayta: Su cumpleaños de la Giovana es, tienes que recordarte de cocinar, che!
D. Hilda: Sajta hoy haremos? Sajta te gusta, no ve?
Chryslen Mayra: Que es sajta?
D. Hilda: Con Ají y picante!
Chryslen Mayra: Aaa, sí, sí!
Roger A. C. Mayta: La Chrys le ha gustado, yo le hice.
Giovana Mayta: Así que voy a pelar las papitas.
D. Hilda: Con tuntita nos haremos.
Roger A. C. Mayta: Sí, así más rico es.
Giovana Mayta: Y después, que más, nos estabas contando?
D. Hilda: Ah, sí! Despues de ahí nos fuimos a Achacachi.
Roger A. C. Mayta: Pero el papá tenía sus lados buenos y malos, no?
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D. Hilda: Sí, bueno era! Antes me llevaba a su escuela, yo se ir cargado con mi gatito. Tenía
un gato así plomito, Ninfa se llamaba, cargado de gatos hasta Patapatani, ahí sé estar
caminando.
Chryslen Mayra: Y el papá hablaba Aymara también?
D. Hilda: Sí.

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