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UNIVERSIDADE DO OESTE DE SANTA CATARINA

ÁREA DAS CIÊNCIAS DAS HUMANIDADES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

JOCIANI FATIMA ALVES PINHEIRO HAMMES

EDUCAÇÃO POPULAR: COLONIALIDADE E DECOLONIALIDADE


TENSÕES EMERGENTES

Joaçaba/SC
2018
JOCIANI FATIMA ALVES PINHEIRO HAMMES

EDUCAÇÃO POPULAR: COLONIALIDADE E DECOLONIALIDADE


TENSÕES EMERGENTES

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Educação (PPGEd) – Mestrado da
Área das Ciências das Humanidades – ACH, na
Universidade do Oeste de Santa Catarina, Unoesc,
como requisito parcial à obtenção do grau de
Mestre em Educação.

Professora Orientadora: Dra. Luiza Helena Dalpiaz

Joaçaba SC
2018
H224e Hammes, Jociani Fatima Alves Pinheiro.
Educação popular : colonialidade e decolonialidade
tensões emergentes / Jociani Fatima Alves Pinheiro
Hammes. – 2018.
181 f. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Educação)—Universidade


do Oeste de Santa Catarina, 2018.
Bibliografia: f. 164-178.

1. Educação popular. I. Título.

CDD 370

Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Márcia Dorini Dal Zotto CRB 14/742
Às minhas avós Alcina (sangue indígena) e Belinha (sangue
negro) pelas presenças femininas especialmente marcantes de
minha vida. E, pela representação das mulheres sofridas e
lutadoras de Abya Yala.
Aos povos desse território e aos que deram suas vidas em favor
da justiça e da libertação contra a colonialidade, o patriarcado e
o capital.
AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha orientadora, professora Dra. Luiza Helena Dalpiaz, pelas horas de
dedicação nas orientações, pelos momentos de prosa e partilhas de vida; pelas descobertas,
por me permitir ser sua orientanda e pelos ensinares preciosos.
Aos demais professores do programa de Mestrado, em especial, aos que foram meus
educadores e educadoras. Suas aulas e provocações foram fundamentais para minha formação
acadêmica e curiosidade em torno da pesquisa: Elton, Marilda, Maria de Lourdes, Paulino e
Roque.
Aos colegas de turma, com destaque para Elina, Raquel, Vanessa, Cristiane e Chaiane.
Mulheres de sonhos de libertação. Gratidão especial à minha amiga/irmã Chaiane.
Aos membros da banca, pelas contribuições que permitiram qualificar a minha
proposta de investigação.
Às minhas companheiras e companheiros de luta, vida e utopias do Coletivo Feminista
Classista e do Coletivo PJR e PJMP. Que partilharam dos momentos de escrita desta
dissertação, interagindo nos debates e “encontros” com os conceitos necessários nas nossas
construções militantes. Gratidão pela defesa da vida dos povos, pelo feminismo classista, pela
defesa dos direitos fundamentais dos seres humanos e pelo amor revolucionário dedicado às
gentes da Pátria Grande. Amor grandioso pela direção política destes coletivos: Claudinha,
Claudia, Maura, Wesley, Tayson, Pedro e Paulinho. Gratidão, também, à coordenação
ampliada da PJR e PJMP e às minhas interlocutoras da pesquisa, tão jovens e grandiosamente
comprometidas.
Aos padres Reneu e Lothario, pela presença militante na minha caminhada, pela luta
árdua e doída em favor dos povos sofridos, eles que são a resistência da Teologia da
Libertação na Diocese de Chapecó. E ao companheiro Laécio Vieira, ex-secretário nacional da
PJR, que compartilha da utopia de uma outra sociedade.
Aos meus avós Ricardo e Florisbela e José e Alcina, as primeiras lembranças de amor
familiar que tenho e guardo com cuidado.
À minha família, meu primeiro núcleo rebelde e revolucionário, pelos exemplos de
resistência e superação. Meu pai João e minha mãe Marina que, por vezes, seguraram em
minhas mãos para que eu seguisse, sem perder as raízes de gentes sofridas. Meus irmãos
Carlos e Pedro, meus companheiros de vida e de sonhos, pelos seres humanos incríveis que se
tornaram, também às suas respectivas companheiras, Gabrieli e Claudia. A meu sobrinho João
Vitor, ele é o amor e a esperança que nos une e nos impulsiona à vida, João me trouxe os
melhores sentimentos. Gratidão também à sua mamãe Rosa e irmãzinha Valentina
À família que encontrei e que formamos. Maycon, meu companheiro/marido, pelo
encorajamento, por divergir de ideias e construir tantas outras. Por estar comigo nos
momentos de angústia e de alegrias intensas, por ser o contraponto da realidade e por
acreditar junto de mim que outro mundo é possível. A meus sogros Dolores e Roque, à minha
cunhada Priscila, ao Felipe (seu esposo), e seu filhinho Ravi, nosso amado Sol.
Gratidão ao tão esperando Martim, nosso filhinho. Martim chegou há pouco tempo
para ser nosso amor. A espera por ele nos fez experenciar as dúvidas e certezas absolutas.
Martim (filho da rua), a imagem dos povos mestiços desse território. É o amor sem fim, a
certeza de que nossas utopias são possíveis. Gratidão filhinho, tu és a unidade dessas gentes
que te amam e de outras que aprenderão a te amar.
Por fim, agradeço ao Deus histórico dos povos! Dos sem-terra, dos camponeses, do
povo organizado, dos indígenas, dos negros e das mulheres. O Deus que nos provoca e chama
à luta e à libertação do seu povo!
Desperto um belo dia no mundo e me atribuo um único direito:
exigir do outro um comportamento humano. Um único dever: o
de nunca, através de minhas opções, renegar minha liberdade
(Frantz Fanon)
RESUMO

A presente dissertação tem como objetivo analisar questões que emergem da relação entre
educação popular e (de) colonialidade. A formação do continente latino-americano se
particularizou por um modo de produção capitalista dependente, que produziu conflitos de
classes e injustiças sociais, baseados no racismo, estabelecendo, assim, um padrão global de
poder. Esse padrão fundamenta a colonialidade do poder associada à colonialidade do saber e
do ser, constituindo o sistema mundo moderno/colonial hegemônico. A desconstrução desse
padrão supõe rupturas contra-hegemônicas, epistêmicas, teóricas e políticas, que levam à
constituição histórica de um giro decolonial, tendo em vista um pensamento novo/homem
novo. Na dissertação são apresentados elementos sócio-históricos, que evidenciam a
construção da colonialidade e o tensionamento produzido por lutas contra-hegemônicas na
América Latina e no Brasil. A pesquisa mostra que o termo educação popular apresenta
contradições e ambiguidades, pois a mesma expressão toma diferentes significados conforme
o contexto sócio-histórico do qual emerge. Nesse contexto, a educação popular libertadora se
fundamenta e se particulariza pela luta de classes e pelas resistências contra-hegemônicas,
face ao padrão eurocêntrico da colonialidade. Nesse início de século XXI, no campo da
educação popular libertadora está em curso uma refundamentação baseada em revisão crítica
de práticas e de concepções até então vigentes, tendo em vista a emergência de novos sujeitos
políticos (gênero, classe e etnia), assim como de epistemologias do sul. O trabalho de campo
ocorreu junto a um Coletivo Feminista Classista, do extremo-oeste de Santa Catarina, tendo
em vista evidenciar questões singulares sobre a colonialidade, que emergem de práticas
educativas populares de mulheres militantes. Em termos metodológicos, o trabalho observou
princípios e procedimentos da entrevista compreensiva, tanto para o levantamento quanto para
a sistematização e análise de dados. Foram realizadas cinco entrevistas com militantes de
idades e funções diversificadas, as quais foram gravadas e integralmente transcritas. Os
resultados do trabalho de campo mostram que a colonialidade e respectivas formas contra-
hegemônicas se evidenciam em três planos distintos e articulados entre si: poder, saber e ser.
A colonialidade do poder refere-se ao padrão hegemônico de dominação e de exploração,
fruto do modo de produção capitalista, que se generaliza para o conjunto de relações sociais.
A colonialidade do saber consiste na imposição da perspectiva eurocêntrica do conhecimento,
no estabelecimento de divisões e hierarquias simbólicas entre diferentes saberes e a exclusão
de outros saberes e epistemologias. A colonialidade do ser está relacionada tanto com a
violência originária da colonização quanto com o padrão de exploração e dominação que é
(re)produzido na linguagem e no jeito de viver nos planos individuais e coletivos. Os
resultados da pesquisa realizada levam a formular quatro hipóteses, que sinalizam rumos para
pesquisas subsequentes: a luta política é indissociável da prática educativa; a educação
popular libertadora se constitui em um caminho para a construção de forças contra-
hegemônicas, na luta contra a dominação e a exploração; as lutas contra-hegemônicas contêm
em perspectiva o projeto histórico da decolonialidade, no entanto, a reprodução de formas
arcaicas da colonialidade constitui o povo latino-americano; a desconstrução de práticas de
dominação e exploração supõe instaurar condições para posturas autorreflexivas e a formação
de militantes e de lideranças.

Palavras-chave: Educação popular. Colonialidade. Decolonialidade. Hegemonia. Contra-


hegemonia. Entrevista compreensiva.
ABSTRACT

This dissertation has the objective of analyzing issues that emerge from the relationship
between popular education and decoloniality. The formation of the Latin American continent
has become particularized for having a mode of dependent capitalist production, which
produced class conflicts and social injustices, based on racism, establishing, therefore, a
global pattern of power. This pattern substantiates the coloniality of power associated to the
coloniality of knowledge and of being, constituting the hegemonic modern/colonial world
system. The deconstruction of this pattern presumes counter-hegemonic, epistemic,
theoretical, and political ruptures, which lead to the historical constitution of a decolonial
turn, considering a new thought/new human being. In the dissertation, social and historical
elements are presented, which evince the construction of the coloniality and the tensioning
produced by counter-hegemonic fights in Latin America and in Brazil. The research shows
that the term popular education presents contradictions and ambiguities, provided that the
same expression has different meanings according to the social and historical context from
which it emerges. In this context, the liberating popular education is based on and
particularized by the class struggle and by the counter-hegemonic resistances in face of the
Eurocentric pattern of the coloniality. In this beginning of the 21th century, in the field of the
liberating popular education, a new substantiation, based on critical review of practices and
conception, applicable up to now, is in progress. It aims at the emergence of new politic
subjects (gender, class, and ethnicity), as well as of epistemologies of the South. The
fieldwork took place in a class-conscious feminist school of the Far West of Santa Catarina,
seeking to evince singular issues about the coloniality, which emerge from the popular
educational practices of activist women. Methodologically, the work observed principles and
procedures of the comprehensive interview, both for the survey and for the systematization
and data analysis. Five interviews with activists of diverse functions and ages were
performed, recorded and fully transcribed. The results of the fieldwork show that the
coloniality and respective counter-hegemonic forms are evinced in three plans wich are
distinct and articulated with each other: power, knowledge, and being. The coloniality of
power refers to the hegemonic pattern of domination and exploration, fruit of the capitalist
mode of production, which generalizes itself for the set of social relations. The coloniality of
knowledge consists of the imposition of the eurocentric perspective of knowledge, in the
establishment of symbolic divisions and hierarchies among different knowledge and the
exclusion of other knowledge and epistemologies. The coloniality of being is related both to
the violence originated from the colonization and to the pattern of exploration and
domination, which is re(produced) in the language and way of living in the individual and
collective plans. The results of the research performed lead to formulating four hypotheses
that indicate paths for subsequent researches: the political strength is inseparable of the
educative practice; the liberating popular education is constituted as a path for the
development of counter-hegemonic forces, in the fight against domination and exploration;
the counter-hegemonic fights have in perspective the historical project of the decoloniality,
however, the reproduction of archaic ways of the coloniality constitutes the Latin American
people; the deconstruction of domination practices and exploration assumes to establish
conditions for self-reflexive postures and the formation of militants and leaderships.

Keywords: Popular education. Coloniality. Decoloniality. Hegemony. Counter-hegemony.


Comprehensive interview.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO......................................................................................................11
2 DA INVASÃO COLONIALISTA À COLONIALIDADE: ALGUNS
INDÍCIOS ...............................................................................................................15
2.1 COLONIALIDADE E DECOLONIALIDADE: DISTINÇÕES
CONCEITUAIS .......................................................................................................15
2.2 COLONIALIDADE E LUTAS CONTRA-HEGEMÔNICAS................................ 30
2.2.1 Invasão das terras e dominação de povos indígenas ...........................................30
2.2.2 Colonização europeia e escravidão negra ............................................................ 37
2.2.3 Industrialização e imperialismo ...........................................................................46
2.2.4 Neoliberalismo e globalização ...............................................................................61
3 EDUCAÇÃO POPULAR E CONTRA-HEGEMONIA .....................................75
3.1 EDUCAÇÃO POPULAR: DOIS PRECURSORES LATINO-AMERICANOS ....78
3.1.1 Simón Rodríguez (1771-1854) ...............................................................................78
3.1.2 José Martí (1853-1895) .......................................................................................... 84
3.2 EDUCAÇÃO POPULAR: DIFERENTES PERSPECTIVAS .................................89
3.3 EDUCAÇÃO POPULAR LIBERTADORA ........................................................... 95
3.4 EDUCAÇÃO POPULAR: REFUNDAMENTAÇÃO.............................................105
4 COLONIALIDADE E PRÁTICAS EDUCATIVAS POPULARES:
TENSÕES EMERGENTES .................................................................................. 119
4.1 ESCUTA SINGULAR DE MULHERES MILITANTES .......................................119
4.2 COLONIALIDADE DO PODER: LUTAS ESTRUTURAIS,
ORGANIZACIONAIS E IDENTITÁRIAS ........................................................... 124
4.3 COLONIALIDADE DO SABER: SABERES POPULARES E TROCAS DE
SABERES ...............................................................................................................138
4.4 COLONIALIDADE DO SER: MUDANÇAS INDIVIDUAIS E COLETIVAS ....149
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 160
REFERÊNCIAS .....................................................................................................164
APÊNDICE A – Roteiro de entrevista .....................................................................179
APÊNDICE B – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.............................. 180
11

1 INTRODUÇÃO

Trago herança nenhuma


A não ser da minha cor
Fruto de amores forçados
Violência, o medo e a dor
Avós tirados da terra
Escravos para trabalhar
Ergueram grande riqueza
Usados e a vida a findar
Único povo mestiço
Mãe Morena e Latina
Pátria Branca, Ameríndia
América Preta e Andina
Legado de tantas vidas
Trago no peito e na cor
E o sangue da mestiçagem
Nas veias de um cantador

Fragmentos da música: Mestiço (Pedro Pinheiro)

O tema da educação popular emerge de meu percurso de militância política e


educativa, em mais de vinte anos de atuação numa das pastorais sociais da Igreja Católica,
vinculada à Teologia da Libertação, a Pastoral da Juventude Rural. Essa atuação refere-se
tanto ao trabalho de base quanto a funções de dirigente nas instâncias políticas local, nacional
e internacional.
Nesse contexto, andei entre os povos latino-americanos, percebi que somos muitos e
que vivemos na mesma periferia, sob a opressão dos mesmos poderosos. Dialoguei com
minha realidade e entendi que ela é coletiva, e, portanto, a transformação e a superação das
relações sociais injustas devem ocorrer da mesma forma: coletivamente. Nesse percurso,
sempre tive influência de um contexto familiar militante e minhas interrogações referentes ao
feminismo classista.
Cursei a graduação em pedagogia, durante a qual fiz parte do movimento estudantil e
conheci Paulo Freire. De escritos estudados desse autor marcaram minha formação sua
“pedagogia da indignação” e a “educação popular libertadora”. A partir de então, passei a me
reconhecer como educadora popular.
A presente dissertação vincula-se ao Programa de Pós-Graduação em Educação
(PPGEd), Mestrado em Educação, Linha de Pesquisa “Educação, Políticas Públicas e
Cidadania”, Grupo de Pesquisa “Educação, Políticas Públicas e Cidadania” (GEPPeC).
O ingresso no mestrado em educação me levou a realizar uma pesquisa exploratória
sobre o tema da educação popular em dissertações e teses do campo da educação. Eu não
12

entendia como estabelecer o problema de pesquisa. Então, inicialmente, trabalhei com três
descritores: educação popular – feminismo – mulheres, os quais me levaram ao tema da
prostituição e do campesinato.
Simultaneamente fui bolsista1, em uma pesquisa exploratória, a qual se tratava de
analisar características da abordagem da educação não escolar na produção científica, do
campo da educação. A metodologia utilizada foi um levantamento bibliográfico de artigos
publicados em periódicos listados na base Qualis 2014, da Capes, na área da Educação, no
período compreendido entre 2010 e 2015. A seleção dos artigos considerou um critério amplo
de inclusão: a abordagem da educação não escolar em diferentes formas e perspectivas,
observando uma distinção da educação escolar. A coleta de dados foi centrada nos resumos
dos artigos. Enquanto realizava essa pesquisa fui selecionando os artigos referentes à
educação popular que eu entendia serem pertinentes para minha dissertação. Apesar do
volume de informações trabalhadas nos dois levantamentos bibliográficos realizados, persistia
minha dificuldade em estabelecer uma delimitação do problema de pesquisa.
Nesse contexto, em situação de orientação formulamos uma pergunta: Será que a
educação popular começou com Paulo Freire e a ele se restringe? Essa interrogação me
instigou a buscar elementos bibliográficos que indicassem pistas sobre a gênese da educação
popular na América Latina.
Nesse caminho, encontrei a obra do venezuelano Simón Rodríguez (1771-1854) e
descobri que ele foi o primeiro educador popular latino-americano, assim como preceptor de
Simón Bolívar (1783-1830), uma das referências históricas das lutas contra-hegemônicas de
libertação do continente. Rodríguez defendia a educação de meninas de todas as classes e
raças, bem como meninos pobres, indígenas, negros, mestiços e órfãos. Nessa busca, descobri
também o cubano José Martí (1853-1895), que trabalhou com base na justiça social para as
massas populares e no pensamento da unidade dos povos latino-americanos – “Nuestra
América”.
Em tal rumo, cheguei ao grupo Modernidade e Colonialidade, formado por intelectuais
latino-americanos contrários à cultura eurocêntrica, logo, anticolonial, anticapitalista,
antirracista, antipatriarcal, anti-imperialista. O coletivo realizou um movimento
epistemológico fundamental para a renovação crítica e utópica das ciências sociais na
América Latina no século XXI. Em pesquisas desse coletivo, Frantz Fanon (1925-1961), que
nasceu na Martinica, é considerado um dos precursores do pensamento decolonial.

1
Fundo de Apoio à Pesquisa (FAPE), programa da Universidade do Oeste de Santa Catarina, 2015/2-2016/2.
13

Fortemente envolvido na luta pela independência da Argélia, foi um influente pensador do


século XX sobre os temas da descolonização e da psicopatologia da colonização. No âmbito
do Coletivo, destaca-se ainda Aníbal Quijano (1928-2018), sociólogo e pensador humanista
peruano, conhecido por ter desenvolvido o conceito de “colonialidade do poder”.
Para Quijano (2002), a colonialidade do poder refere-se a um padrão global de poder
que surgiu com a colonização da América. Esse padrão consiste na articulação entre:

1) a ideia de “raça” como fundamento do padrão universal de classificação


social básica e de dominação social; 2) o capitalismo como padrão universal de
exploração social; 3) o Estado como forma central universal de controle da
autoridade coletiva e o moderno Estado-nação como sua variante hegemônica;
4) o eurocentrismo como forma hegemônica de controle da
subjetividade/intersubjetividade, em particular, no modo de produzir
conhecimento. (QUIJANO, 2002, p. 4).

Conforme Fanon (1968, p. 26), “a descolonização, que se propõe a mudar a ordem do


mundo, é, como se vê, um programa de desordem absoluta.” Para o autor, a decolonização
não “se dará de forma mágica” ou “em um entendimento amigável”, a decolonização é um
processo histórico, refere-se “à subversão necessária aos dominados para levantarem-se na
história.” Segundo o autor, “as massas famintas e depauperadas têm a intuição de que sua
liberdade só ocorrerá pela força, porque é assim que as tratam o ocupante.”
Essa pesquisa bibliográfica me levou a delimitar o problema de pesquisa da presente
dissertação: Que questões emergem da relação entre educação popular e (de)colonialidade?
Essa pergunta desdobra-se nas seguintes questões de pesquisa:

a) Que elementos sócio-históricos são significativos da tensão entre colonialidade e lutas


contra-hegemônicas, na América Latina e Brasil?
b) Que aspectos conceituais caracterizam a noção de educação popular?
c) Que questões sobre a colonialidade emergem de práticas educativas singulares de
mulheres militantes de um coletivo feminista?

O objetivo geral da pesquisa é analisar questões que emergem da relação entre


educação popular e (de)colonialidade. Esse objetivo desdobra-se nos seguintes objetivos
específicos:

a) apresentar elementos sócio-históricos significativos da tensão entre colonialidade e


lutas contra-hegemônicas na América Latina e Brasil;
14

b) mostrar aspectos conceituais que caracterizam a noção de educação popular;


c) evidenciar questões sobre a colonialidade que emergem de práticas educativas
singulares de mulheres militantes de um coletivo feminista.

Em termos metodológicos, a presente dissertação é fruto de uma pesquisa exploratória


e qualitativa (MINAYO, 1996), que articula dois procedimentos de investigação: pesquisa
bibliográfica (SEVERINO, 2007) e trabalho de campo.
Este foi realizado junto a um Coletivo Feminista Classista do extremo-oeste de Santa
Catarina. A abordagem do coletivo foi feita por meio de entrevistas compreensivas
(KAUFMANN, 2013), realizadas com cinco militantes de idades e funções diversificadas
(roteiro das entrevistas apêndice A). As entrevistas foram gravadas após acordo entre a
pesquisadora e as entrevistadas, expresso pela assinatura do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (apêndice B). O conteúdo das entrevistas foi transcrito integralmente. A
sistematização e a análise de dados observaram pressupostos da entrevista compreensiva.
A presente dissertação está organizada em quatro seções. Na primeira, apresento uma
síntese dos aspectos que compõem a proposta de pesquisa que constitui a presente dissertação.
Na segunda, estabeleço, inicialmente, distinções conceituais dos termos colonialidade e
decolonialidade. Na sequência, abordo elementos sócio-históricos, que evidenciam a
construção da colonialidade e o tensionamento produzido por lutas contra-hegemônicas na
América Latina e no Brasil. Na terceira, caracterizo conceitualmente a noção de educação
popular latino-americana, considerando contradições e ambiguidades historicamente
construídas. A quarta seção é dedicada ao trabalho de campo e respectivos procedimentos
metodológicos, assim como a sistematização e a análise de dados referentes às questões
emergentes sobre a relação entre colonialidade e práticas educativas populares. Nas
considerações finais, teço reflexões nas quais procuro entrelaçar evidências da pesquisa que
me permitem formular hipóteses sobre a educação popular libertadora no tensionamento entre
colonialidade e lutas contra-hegemônicas. Também projeto perspectivas da continuidade da
minha trajetória como pesquisadora no campo da educação.
15

2 DA INVASÃO COLONIALISTA À COLONIALIDADE: ALGUNS INDÍCIOS

Nesta seção, meu objetivo é apresentar elementos sócio-históricos significativos da


tensão entre colonialidade e lutas contra-hegemônicas na América Latina e Brasil. Trata-se de
apresentar indícios que evidenciam um percurso que inicia com a invasão colonialista, a qual
produz a colonialidade estruturante do continente até hoje. O termo indício está sendo aqui
utilizado no sentido atribuído por Ginzburg (2007, p. 177).

[...] o mesmo paradigma indiciário usado para elaborar formas de controle social
sempre mais sutis e minuciosas pode se converter num instrumento para dissolver as
névoas da ideologia que, cada vez mais, obscurecem uma estrutura social como a do
capitalismo maduro. Se as pretensões de conhecimento sistemático mostram-se cada
vez mais como veleidades, nem por isso a ideia de totalidade deve ser abandonada.
Pelo contrário: a existência de uma profunda conexão que explica os fenômenos
superficiais é reforçada no próprio momento em que se afirma que um conhecimento
direto de tal conexão não é possível. Se a realidade é opaca, existem zonas
privilegiadas — sinais, indícios — que permitem decifrá-la.

Ao mesmo tempo, trata-se de evidenciar vestígios que indicam a constituição de forças


contra-hegemônicas que, historicamente, vêm contribuindo em processos que produzem
possibilidades de decolonização (re)estruturante dos povos do continente.
Inicialmente, problematizo conceitualmente os termos colonialidade e
decolonialidade. Na sequência, considerando elementos econômicos, políticos, sociais e
culturais, procuro caracterizar, resumidamente, momentos que, a meu ver, marcam esse
tensionamento na construção do continente e, em particular, da sociedade brasileira: invasão
das terras e dominação de povos indígenas, colonização europeia e escravidão negra,
industrialização e imperialismo, neoliberalismo e globalização.

2.1 COLONIALIDADE E DECOLONIALIDADE: DISTINÇÕES CONCEITUAIS

Quando Cristóvão Colombo se lançou à travessia dos grandes espaços vazios a oeste
da Ecúmene, havia aceitado o desafio das lendas. Tempestades terríveis balançariam
suas naus, como se fossem cascas de nozes, e as arremessariam nas bocas dos
monstros; a grande serpente dos mares tenebrosos, faminta de carne humana, estaria
à espreita. Só faltavam mil anos para que os fogos purificadores do Juízo Final
arrasassem o mundo, como acreditavam os homens do século XV; o mundo era o
mar Mediterrâneo com suas costas ambíguas: Europa, África, Ásia. Os navegantes
portugueses asseguravam que os ventos do oeste traziam cadáveres estranhos e às
vezes arrastavam troncos curiosamente talhados, mas ninguém suspeitava que o
mundo seria, logo, assombrosamente acrescido por uma vasta terra nova.
(GALEANO, 2009, p. 27).
16

Para além do mundo conhecido dos navegadores do século XV, para além das lendas,
havia uma terra nova, povoada por gentes e culturas que foram “derrotadas também pelo
assombro” do que seria a invasão imposta aos povos do novo mundo (GALEANO, 2009, p.
21).
Segundo Cajigas-Rotundo (2007), o processo histórico de colonização da América
Latina se caracterizou pela “longa duração” e tomou forma de “descoberta da América”. A
“descoberta” foi parte integrante de um sistema caracterizado pela “heterogeneidade
estrutural”, que levou a uma distribuição assimétrica do poder e se concretizou no saque e na
“sobreexploração” das colônias.
No território latino-americano, em termos conjunturais, a formação do continente se
particularizou por um modo de produção dependente. Florestan Fernandes chamou de
“capitalismo dependente” (FERNANDES, 1981, p. 90), que gerou antagonismos de classes e
injustiças sociais amparados e reforçados pelo Estado, como parte da própria estrutura do
capitalismo. Fernandes (2000, p. 107) observa que “a grande maioria dos países de origem
colonial sofreu um desenvolvimento capitalista deformado e perverso.”
A história dos povos da América Latina é analisada por um conjunto diversificado de
intelectuais e de pensadores críticos em relação à formação do continente. A “colonialidade do
poder” é um conceito elaborado originalmente pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano, que
produziu uma crítica radical ao capitalismo. Para Quijano (2002), a colonialidade do poder
refere-se a um padrão global de poder que surgiu com a colonização da América. Esse padrão
consiste na articulação entre:

1) a ideia de “raça” como fundamento do padrão universal de classificação social


básica e de dominação social; 2) o capitalismo como padrão universal de exploração
social; 3) o Estado como forma central universal de controle da autoridade coletiva e
o moderno Estado-nação como sua variante hegemônica; 4) o eurocentrismo como
forma hegemônica de controle da subjetividade/intersubjetividade, em particular, no
modo de produzir conhecimento. (QUIJANO, 2002, p. 4).

Para Quijano (2005), tal padrão global baseia-se numa classificação hierárquica,
sustentada pela ideia de “raça”. Essa ideia é configurada pelas relações e práticas sociais do
poder estabelecido, em que as gentes da América Latina, chamadas não europeus, são
consideradas diferentes. Essa diferença se manifesta biologicamente e, especialmente,
pertence a um nível inferior de humanos, em relação ao restante das pessoas do mundo.
Quijano (1993) argumenta que tais ideias constroem as imagens, valores, atitudes e práticas
sociais inerentes às relações que moldam profundamente e de forma duradoura um complexo
cultural. Segundo o autor, esse complexo cultural conhecemos como racismo.
17

Con la formación de América se establece una categoría mental nueva, la idea de


raza. Desde el inicio de la conquista, los vencedores inician una discusión
históricamente fundamental para las posteriores relaciones entre las gentes de este
mundo, y en especial entre europeos y no-europeos, sobre si los aborígenes de
América tiene alma o no; en definitiva si tienen o no naturaleza humana. La pronta
conclusión decretada desde el Papado fue que son humanos. Pero desde entonces,
en las relaciones intersubjetivas y en las prácticas sociales del poder, quedó
formada, de un parte, la idea de que los no-europeos tienen una estructura
biológica no solamente diferente de la de los europeos; sino, sobre todo,
perteneciente a un tipo o a un nivel inferior. De otra parte, la idea de que las
diferentes culturas están asociadas a tales desigualdades biológicas y que no son,
por lo tanto, producto de la historia de las relaciones entre las gentes y de éstas con
el resto del universo. Estas ideas han configurado profunda y duraderamente todo
un complejo cultural, una matriz de ideas, de imágenes, de valores, de actitudes, de
prácticas sociales, que no cesa de estar implicado en las relaciones entre las gentes,
inclusive cuando las relaciones políticas coloniales ya han sido canceladas. Ese
complejo es lo que conocemos como racismo. (QUIJANO, 1993, p. 167).

Nas palavras de Quijano (2005, p. 229): “na América, a ideia de raça foi uma maneira
de outorgar legitimamente as relações de dominação impostas pela conquista.” O debate em
torno da “ideia de raça” se relaciona com uma visão de superioridade eurocêntrica, o que foi
base de sustentação da colonização política, econômica e cultural dos povos da América
Latina. Segundo ele, durante o período que se consolidava a dominação colonial europeia,
também se construiu um complexo cultural conhecido como racionalidade-modernidade
europeia, estabelecido como paradigma universal de conhecimento e relação.

En la América Latina, la represión cultural y la colonización del imaginario fueron


acompañadas de un masivo y gigantesco exterminio de los indígenas,
principalmente por su uso como mano de obra desechable, además de la violencia
de la conquista y de las enfermedades […]. La represión cultural junto con el
genocidio masivo llevaron a que las previas altas culturas de América fueran
convertidas en subculturas campesinas iletradas, condensadas a la oralidad. Esto
es, despojadas de patrones propios de expresión formalizada y objetivada,
intelectual y plástica o visual. En adelante, los sobrevivientes no tendrían otros
modos de expresión intelectual o plástica formalizada y objetivada, sino a través de
los patrones culturales de los dominantes, aun subvirtiéndolos en ciertos casos,
para transmitir otras necesidades de expresión. América Latina es, sin duda, el caso
extremo de la colonización cultural de Europa. (QUIJANO, 1992, p. 439).

Quijano (2005) formula o conceito de colonialidade do poder a partir das condições


sócio-históricas e políticas da formação do continente latino-americano. Para esse autor, os
centros hegemônicos controlam as relações sociais sob a égide de um complexo cultural.
Quijano destaca que o racismo é parte de um conjunto de elementos articulados e que se
sustentam na inferioridade dos colonizados diante dos colonizadores. Essa ideia constitui a
hegemonia cultural em torno do eurocentrismo, contribuindo em todo o processo de formação
antagônico do continente.
18

En el curso de la expansión mundial de la dominación colonial por parte de la


misma raza dominante – los blancos (o a partir del siglo XVIII en adelante, los
europeos) – fue impuesto el mismo criterio de clasificación social a toda la
población mundial a escala global. En consecuencia, nuevas identidades históricas
y sociales fueron producidas: amarillos y aceitunados (u oliváceos) fueron sumados
a blancos, indios, negros y mestizos. Dicha distribución racista de nuevas
identidades sociales fue combinada, tal como había sido tan exitosamente lograda
en América, con una distribución racista del trabajo y de las formas de explotación
del capitalismo colonial. Esto se expresó, sobre todo, en una cuasi exclusiva
asociación de la blanquitud social con el salario y por supuesto con los puestos de
mando de la administración colonial. (QUIJANO, 2000, p. 208).

Assim, a imposição de tal classificação racial/étnica da população é, segundo Quijano


(2007, p. 93-94), a “pedra angular” do padrão global de poder, e opera da seguinte forma:

[…] en cada uno de los planos, ámbitos y dimensiones, materiales y subjetivas de la


existencia cotidiana y a escala social. Se origina y mundializa a partir de América.
Con la constitución de América (Latina), en el mismo momento y en el mismo
movimiento histórico, el emergente poder capitalista se hace mundial, sus centros
hegemónicos se localizan en las zonas situadas sobre el Atlántico – que después se
identificarán como Europa –, y como ejes centrales de su nuevo patrón de
dominación se establecen también la colonialidad y la modernidad. En otras
palabras: con América (Latina) el capitalismo se hace mundial, eurocentrado y la
colonialidad y la modernidad se instalan, hasta hoy, como los ejes constitutivos de
ese específico patrón de poder.

Para Mignolo (2005, p. 36), a “colonialidade do poder é o eixo que organizou e


continua organizando a diferença colonial, a periferia como natureza.” Para esse autor
(MIGNOLO, 2017, p. 18), “a ‘colonialidade’ é o lado mais escuro da modernidade ocidental,
uma matriz de poder que surgiu entre o Renascimento e o Iluminismo durante a colonização
das Américas, e que está culminando com o neoliberalismo capitalista dos tempos atuais.” E
prossegue argumentando que a colonialidade “surgiu com a história das invasões europeias de
Abya Yala, Tawantinsuyu e Anahuac, com a formação das Américas e do Caribe e o tráfico
maciço de africanos escravizados.” (MIGNOLO, 2017, p. 2).O autor menciona também “as
rebeliões indígenas e a produção cultural ameríndia, do século XVI em diante e a Revolução
Haitiana, no início do século XIX” como “momentos constitutivos do imaginário do mundo
moderno/colonial.” (MIGNOLO, 2005, p. 35).
Maldonado-Torres (2007) contribuiu na análise da colonialidade do poder, abordando
diferentes características do colonialismo e da colonialidade. Ao mesmo tempo, evidencia
como se correlacionam e de que forma a colonialidade sobrevive ao colonialismo,
solidificando-se na modernidade cotidiana.

O colonialismo denota uma relação política e econômica, na qual a soberania de um


povo está no poder de outro povo ou nação, o que constitui a referida nação em um
império. Diferente desta ideia, a colonialidade se refere a um padrão de poder que
19

emergiu como resultado do colonialismo moderno, mas em vez de estar limitado a


uma relação formal de poder entre dois povos ou nações, se relaciona à forma como
o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam
entre si através do mercado capitalista mundial e a ideia de raça. Assim, apesar do
colonialismo preceder a colonialidade, a colonialidade sobrevive ao colonialismo.
Ela se mantém viva em textos didáticos, nos critérios para o bom trabalho
acadêmico, na cultura, no sentido comum, na auto-imagem dos povos, nas
aspirações dos sujeitos e em muito outros aspectos de nossa experiência moderna.
Nesse sentido, respiramos a colonialidade na modernidade cotidiana.
(MALDONADO-TORRES, 2007, p. 131).

Os teóricos exploram, também, outra face da colonialidade: a “colonialidade do


saber”. De acordo com Castro-Gomez (2005, p. 80), “a colonialidade do poder e a
colonialidade do saber se localizam numa mesma matriz genética.” Para Quijano (2005), a
Europa usou de todos os recursos necessários para garantir o controle das relações sob sua
hegemonia. O autor menciona uma ordem cultural global que garante o padrão global de
poder e evidencia a cultura e a produção do conhecimento.

A incorporação de tão diversas e heterogêneas histórias culturais a um único mundo


dominado pela Europa significou para esse mundo uma configuração cultural,
intelectual, em suma intersubjetiva, equivalente à articulação de todas as formas de
controle do trabalho em torno do capital, para estabelecer o capitalismo mundial.
Com efeito, todas as experiências, histórias, recursos e produtos culturais
terminaram também articulados numa só ordem cultural global em torno da
hegemonia europeia ou ocidental. Em outras palavras, como parte do novo padrão
de poder mundial, a Europa também concentrou sob sua hegemonia o controle de
todas as formas de controle da subjetividade, da cultura, e em especial do
conhecimento, da produção do conhecimento. (QUIJANO, 2005, p. 227-228).

Conforme Porto-Gonçalves (2005, p. 6), para além do legado de desigualdades e


injustiças sociais causadas pelo colonialismo e o imperialismo na América Latina, há também
“um legado epistemológico do eurocentrismo que nos impede de compreender o mundo a
partir do próprio mundo em que vivemos e das epistemes que lhes são próprias.”
A colonialidade do saber caracteriza-se pela colonialidade de saberes e de
epistemologias dominantes, que tendem ao reducionismo a partir do eurocentrismo. Segundo
Porto-Gonçalves (2005), são múltiplas as epistemes que comportam todo o patrimônio da
humanidade acerca da vida, das águas, da terra, do fogo, do ar, dos homens.

A Colonialidade do Saber nos revela, ainda, que para além do legado de


desigualdade e injustiça sociais profundos do colonialismo e do imperialismo, já
assinalados pela teoria da dependência e outras, há um legado epistemológico do
eurocentrismo que nos impede de compreender o mundo a partir do próprio mundo
em que vivemos e das epistemes que lhes são próprias. (PORTO-GONÇALVES,
2005, p. 3).

Segundo Mignolo (2005), os saberes dos povos da periferia do sistema-mundo


20

moderno/colonial são tratados como saberes subalternos: conhecimentos indígenas,


camponeses, populares e tradicionais. Catherine Walsch considera que a colonialidade do
saber “[…] no sólo estableció el eurocentrismo como perspectiva única de conocimiento, sino
que al mismo tiempo descartó por completo la producción intelectual indígena y afro como
‘conocimiento’ y, consecuentemente, su capacidad intelectual.” (WALSH, 2007, p. 104).
Nesse mesmo sentido, Santos e Meneses (2010) referem-se à dominação epistemológica:

O colonialismo, para além de todas as dominações por que é conhecido, foi também
uma dominação epistemológica, uma relação extremamente desigual de saber-poder
que conduziu à supressão de muitas formas de saber próprias dos povos e nações
colonizados, relegando muitos outros saberes para um espaço de subalternidade.
(SANTOS; MENESES, 2010, p. 7).

As “epistemologias do Sul” negam a dominação epistemológica e compõem a


perspectiva da decolonização do saber e do conhecimento. Para Santos e Meneses (2010), a
“missão colonizadora” suprimiu os conhecimentos locais, o projeto colonizador “procurou
homogeneizar o mundo, obliterando as diferenças culturais.” Para os autores, a epistemologia
dominante assenta-se numa dupla diferença: a “cultural do mundo moderno cristão ocidental e
a diferença política do colonialismo e capitalismo.” (SANTOS; MENESES, 2010, p. 10).
Conforme Santos e Meneses (2010. p. 7), epistemologias do Sul:

Trata-se do conjunto de intervenções epistemológicas que denunciam a supressão de


saberes levada a cabo, ao longo dos últimos séculos, pela norma epistemológica
dominante, valorizam saberes que resistiram com êxito e as reflexões que estes têm
produzido e investigam as condições de um diálogo horizontal entre conhecimentos.

Na estruturação do poder global, Balestrin (2013) evidencia a tripla dimensão em que


a colonialidade se reproduz, para além da colonialidade do poder e do saber, a autora
evidencia a colonialidade do ser. Nesse seguimento, Maldonado-Torres (2007) sugere que é
necessário pensar a modernidade/colonialidade a partir das múltiplas experiências de sujeitos
que sofrem de maneiras diferentes a colonialidade do poder, do saber (conhecimento) e do ser.
O autor menciona a colonialidade do poder como um modelo especificamente moderno que
interliga e associa o poder e o conhecimento na formação e conceituação do ser. Segundo ele,
“a relação entre poder e conhecimento conduziu ao conceito de ser.” (MALDONADO-
TORRES, 2007, p. 32).

Este ser-colonizado emerge quando poder e pensamento se tornam mecanismos de


exclusão [...]. É verdade que o ser-colonizado não resulta do trabalho de um
determinado autor ou filósofo, mas é antes o produto da modernidade/colonialidade
na sua íntima relação com a colonialidade do poder, com a colonialidade do saber e
com a própria colonialidade do ser. (MALDONADO-TORRES, 2013, p. 32).
21

Maldonado-Torres (2007), na análise entre as três dimensões da colonialidade, observa


como elas se articulam e se complementam. Segundo ele, se a colonialidade do poder refere-
se à inter-relação entre as formas modernas de exploração e dominação, e a colonialidade do
saber tem a ver com o papel da epistemologia e das tarefas da produção de conhecimento na
reprodução de regimes do pensamento colonial, então, neste seguimento, a colonialidade do
ser se refere à experiência vivida de colonização e seu impacto na linguagem.
Segundo Balestrin (2013), a colonialidade do ser foi pensada por Mignolo e,
posteriormente, desenvolvida por Maldonado-Torres. Sobre o tema, Mignolo pondera que a
ciência é indissociavel da linguagem.

La ciencia (conocimiento y sabiduría) no puede separarse del lenguaje; los


lenguajes no son sólo fenómenos “culturales” en los que la gente encuentra su
identidad; estos son también el lugar donde el conocimiento está inscrito. Y si los
lenguajes no son cosas que los seres humanos tienen, sino algo que estos son, la
colonialidad del poder y del saber engendra, pues, la colonialidad del ser.
(MIGNOLO, 2003a, p. 669).

O conceito de colonialidade nos termos supra-apresentados me leva a estabelecer uma


associação com o conceito de hegemonia de Gramsci. Esse autor usou o termo “filosofia da
praxis” para construir seus escritos a partir da “teoria da praxis” de Marx, que se configura na
dialética do sujeito-objeto. A perspectiva de Gramsci se constitui para além do viés
econômico, procurando entender as relações sociais também como hegemonia cultural.
Assim, considerou o “consentimento social e voluntário” (GRAMSCI, 2002b) das classes
subalternas aos interesses do poder, o qual perpassa todas as esferas sociais no
desenvolvimento das forças produtivas capitalistas.

O fato da hegemonia pressupõe indubitavelmente que sejam levados em conta os


interesses e as tendências dos grupos sobre os quais a hegemonia será exercida, que
se forme um certo equilíbrio de compromisso, isto é, que o grupo dirigente faça
sacrifícios de ordem econômico-corporativa; mas também é indubitável que tais
sacrifícios e tal compromisso não podem envolver o essencial, dado que, se a
hegemonia é ético-política, não pode deixar de ser também econômica, não pode
deixar de ter seu fundamento na função decisiva que o grupo dirigente exerce no
núcleo decisivo da atividade econômica. (GRAMSCI, 2004a, p. 1591).

O autor analisa a questão cultural como partícipe da manutenção da hegemonia


burguesa. Segundo ele, o processo ideológico atravessa um movimento cultural que conserva
a unidade de determinado bloco de poder. Na sociabilidade capitalista, as forças das elites que
estão nas esferas de poder controlam os aparelhos hegemônicos, desenvolvendo relações
sociais de subordinação (GRAMSCI, 2002b).
Portelli (1977) observa que a hegemonia é exercitada somente entre as classes aliadas,
22

para conter as classes opositoras, a classe dirigente utiliza-se da força. Nesse sentido, a
relação entre a classe dominante e as classes dominadas ocorre mediante aparelhos
hegemônicos, os quais são compreendidos como estruturas de repressão e violência (aparatos
de força militar, polícia, ordenamento jurídico, burocracia administrativa) e como instituições
que disseminam as ideologias (escolas, igrejas, partidos políticos, sindicatos, família, mídias).

O critério metodológico sobre o qual deve se basear o próprio exame é esse: a


supremacia de um grupo social se manifesta de dois modos, como “domínio” e
como “direção intelectual e moral”. Um grupo social domina os grupos adversários,
que visa a “liquidar” ou a submeter inclusive com força armada, e dirige grupos
afins e aliados. Um grupo social pode e, aliás, deve ser dirigente já antes de
conquistar o poder governamental (esta é uma das condições principais para a
própria conquista do poder); depois, quando exerce o poder e mesmo se o mantém
fortemente nas mãos, torna-se dominante, mas deve continuar a ser também
“dirigente”. (GRAMSCI, 2002a, p. 62-63).

O poder hegemônico atravessado e consolidado pela superestrutura mantém a divisão


de classes no campo material e imaterial, reforçando os blocos de dominação e poder. O
Estado consegue manter a ordem usando a repressão, quando necessário, mas são os aparelhos
hegemônicos que têm maior eficácia, segundo Gramsci, que levam a classe trabalhadora a se
manter calada e obediente ao poder estabelecido. Nessa lógica, Gramsci argumenta que “a
força verdadeira do sistema não reside na violência da classe dominante ou no poder
coercitivo do seu aparelho de Estado, mas na aceitação por parte dos dominados de uma
concepção de mundo que pertence aos seus dominadores.” (FIORI, 1979, p. 238).
Segundo Carnoy (1988), o conceito gramsciano de hegemonia explica-se por dois
processos: o primeiro é que a classe dominante exerce o controle sobre outras frações aliadas
da classe dominante, por intermédio da liderança moral e intelectual. Os dirigentes articulam
interesses comuns dentro de um princípio hegemônico; o segundo ocorre na relação entre as
classes dominantes e subalternas. A classe burguesa usa sua liderança política, moral e
intelectual para impelir seus interesses como universais, fazendo com que as classes
subalternas não somente aceitem o domínio como natural, mas reproduzam discursos e se
identifiquem com a cultura e os valores burgueses.
Nos Cadernos do Cárcere, Gramsci (2000a, p. 78) destaca que a hegemonia é
dinâmica, movimenta-se conforme existe a necessidade. Segundo o autor, as instituições que
constituem o aparelho hegemônico somente têm sentido diante da luta de classe, pois a classe
dominante usa tais aparelhos para se manter no poder. A “organização material voltada para
manter, defender e desenvolver a frente teórica ou ideológica” tem como tarefa política
“organizar e difundir determinados tipos de cultura.” (GRAMSCI, 2000a, p. 32, grifo do
23

autor).
Gramsci detalhou características do funcionamento do sistema capitalista, escreveu de
forma contundente sobre a superestrutura formada pela sociedade política e sociedade civil,
que compreende todo o conjunto das relações materiais, relação ideológico-cultural, vida
espiritual e intelectual. Tanto para Marx quanto para Gramsci, a análise da sociedade civil
leva à compreensão do desenvolvimento capitalista. Para Marx, sociedade civil é a estrutura
(relação de produção), ao passo que Gramsci “elevou o conceito de superestrutura, quando
considerou as relações ideológicas e culturais mais importantes do que as relações de
produção.” (NASCIMENTO; SBARDELOTTO, 2007, p. 278).
A visão burguesa de mundo se reproduz, entre outros instrumentos hegemônicos, por
meio da educação. Para Gramsci (1978), a dimensão política da educação é uma ferramenta
intelectual imprescindível para a construção da hegemonia cultural e ideológica. Nos termos
desse autor, em consequência, a educação é fundamental também como instrumento contra-
hegemônico. Segundo Gramsci, é no campo da cultura que a hegemonia se compõe como um
longo processo histórico. Portanto, defende a construção da cultura popular, com outros
valores, outras relações sociais, outras normas. Esse processo superaria a sociedade classista e
possibilitaria um avanço da consciência, reconstruindo uma nova visão do ser humano e de
mundo. Essa tarefa estaria centrada nos processos e nas políticas educativas tanto nos partidos
de massa quanto na escola.
A construção da cultura do proletariado implica unidade das classes subalternas por
meio da educação. Esta propicia condições para o avanço da consciência de classe e,
coletivamente, da organização para a transformação social por meio da revolução socialista.
Nesse sentido, Gramsci se manifesta:

É através da crítica à civilização capitalista que se forma ou se está formando a


consciência unitária do proletariado: e crítica quer dizer cultura, e não evolução
espontânea e natural. Crítica quer dizer precisamente aquela consciência do eu que
Novalis definia como meta da cultura. Um eu que se opõe aos outros, que se
diferencia, e que tendo criado para si mesmo uma finalidade, julga os fatos e os
eventos não só em si e para si, mas também como valores de propulsão ou de
repulsão. Conhecer a si mesmo significa ser si mesmo, ser o senhor de si mesmo,
diferenciar-se, elevar-se acima do caos, ser um elemento de ordem, mas da própria
ordem e da própria disciplina diante de um ideal. E isso não poderá ser obtido se
também não se conhecem os outros, a história deles, a sucessão dos esforços que
fizeram para ser o que são, para criar a civilização que criaram e que nós queremos
substituir pela nossa. (GRAMSCI, 2004a, p. 60).

A progressão do projeto de sociabilidade capitalista (colonialidade/hegemonia)


consolida as desigualdades sociais e econômicas garantidas pelo Estado e, portanto, reafirma
24

a estrutura de classes sociais na América Latina. Essa conjuntura histórica das relações de
violência e repressão provoca a organização popular a reagir, formando movimentos de
resistência camponesa, operária, mestiça, negra e indígena, contrariando a ordem burguesa e
destacando lideranças que marcam a história na construção da contra-hegemonia.
Para Dore Soares (2006), o processo conflitante de convencimento e consenso entre as
classes concerne ao que Gramsci chamou de “luta pela hegemonia”. Essa luta pode criar
capacidades de organização das classes subalternas na construção de uma contra-hegemonia
que, potencialmente, poderá se tornar hegemônica. A classe trabalhadora perdendo referências
hegemônicas se encontra em um contexto de “crise de Estado”, que representa “a crise da
capacidade burguesa para dominar indiretamente através do aparelho ideológico do Estado.”
Porém, como o Estado não representa isoladamente a hegemonia burguesa, controlar o Estado
seria insuficiente para garantir a construção do que Gramsci denominou “guerra de posição”
(CARNOY, 1988, p. 107).
Na América Latina há um conjunto de homens e mulheres, intelectuais orgânicos,
cujos trabalhos contribuem para a análise e a compreensão da desconstrução da cultura
colonialista subserviente aos centros de poder, por meio de um movimento crítico e radical
em torno do pós-colonialismo: rede denominada Grupo Modernidade/Colonialidade (M/C)2.
Segundo Gramsci:

Por intelectuais, deve-se entender [...] todo o estrato social que exerce funções
organizativas em sentido lato, seja no campo da produção, seja no da cultura e no
político-administrativo (Idem, C 1, p. 37). No caderno 11, argumenta: “uma massa
humana não se “distingue” e não se torna independente “para si” sem organizar-se
(em sentido lato); e não existe organização sem intelectuais, isto é, sem
organizadores e dirigentes, ou seja, sem que o aspecto teórico da ligação teoria-
prática se distinga concretamente em um estrato de pessoas “especializadas” na
elaboração conceitual e filosófica. Mas esse processo de criação dos intelectuais é
longo, difícil, cheio de contradições, de avanços e de recuos [...]. (C 11, p. 1386/v. 1,
p. 104).

Para Ballestrin (2013, p. 89), houve uma radicalização ao argumento pós-colonial no


continente, por intermédio do conceito “giro decolonial”3, que agregou teorias críticas ao

2
O Grupo M/C é um esforço de intelectuais latino-americanos que, ao longo do tempo, construíram encontros,
debates e escritas de enfrentamentos anticolonial, anticapitalista, antirracista, antipatriarcal, contrários à cultura
eurocêntrica entranhada na vida dos povos da América Latina. Ballestrin (2013, p. 89) contextualiza “o coletivo
realizou um movimento epistemológico fundamental para a renovação crítica e utópica das ciências sociais na
América Latina no século XXI.” Assumindo uma miríade ampla de influências teóricas, o M/C atualiza a
tradição crítica de pensamento latino-americano, oferece releituras históricas e problematiza velhas e novas
questões para o continente.
3
O uso do termo “decolonial” ao invés de “descolonial” é uma indicação de Walter Mignolo para diferenciar os
propósitos do Grupo Modernidade/Colonialidade e da luta por descolonização do pós-Guerra Fria, bem como
dos estudos pós-coloniais asiáticos (ROSEVICS, 2017, p. 191).
25

pensamento latino-americano, oferecendo releituras históricas que problematizam questões


fundantes na formação do continente. A autora argumenta, ainda, que o Grupo M/C “defende
a ‘opção decolonial’ – epistêmica, teórica e política – para compreender e atuar no mundo,
marcado pela permanência da colonialidade global nos diferentes níveis da vida pessoal e
coletiva.”
Ballestrin (2013, p. 105) salienta que o termo “giro decolonial” foi “cunhado
originalmente por Nelson Maldonado-Torres, em 2005, e que, basicamente, significa o
movimento de resistência teórico e prático, político e epistemológico, à lógica da
modernidade/colonialidade.” Trata-se de uma proposta de transformação.

El giro des-colonial se trata pues de una revolución en la forma en que variados


sujetos colonizados percibían su realidad y sus posibilidades tras la caída de
Europa en la Segunda Guerra Mundial. Ya las bases del giro des-colonial estaban
planteadas de antemano en el trabajo de intelectuales racializados, en tradiciones
orales, en historias, canciones, etc., pero, gracias a eventos históricos particulares,
se globaliza a mitad del siglo XX. De ahí en adelante puede decirse que se planteó
un giro, ya no sólo al nivel de la actitud de sujetos o de comunidades específicas,
sino al nivel del pensamiento mundial. (MALDONADO-TORRES, 2008, p. 70).

Para Maldonado-Torres (2007), o giro-decolonial supõe a defesa radical de um novo


humanismo, com novas relações sociais, de gênero e culturais, assim como denúncia do
sistema moderno/colonial:

[…] el amor y la justicia des-coloniales buscan restaurar el mundo paradójico del


dar y recibir, a través de una política de la receptividad generosa, inspirada por los
imperativos de la descolonización y la des-gener-acción; son formas de deshacer el
imaginario y el mundo social y geo-político, construido a partir de la naturalización
de la no-ética de la guerra. (MALDONADO-TORRES, 2008, p. 156).

Para Mignolo (2005), a origem do pensamento decolonial se encontra no pensamento


afro-caribenho e indígena nos séculos XVI e XVII. Segundo o autor, o conceito de
colonialidade “é o lado escuro da modernidade”; que sob a visão hispânica este debate não
parte do ponto de vista conflitivo da “diferença colonial” (MIGNOLO, 2005, p. 36).
Segundo Catherine Walsch (2014), o pensamento decolonial é tecido desde a origem
do processo colonizador e tem suas raízes articuladas com os movimentos de resistência,
muito antes do século XX. Para ela, trata-se de uma herança de muitos pensares e fazeres. Em
suas palavras:
Mientras que el colectivo modernidad/colonialidad comenzó a usar el término
decolonialidad en 2004, su herencia es mucho más amplia que este grupo. Las
feministas chicanas queer como Chela Sandoval y Emma Perez se referían a la
decolonialidad y lo decolonial en las décadas de 1980 y 1990. En las décadas de
1950 y 1960, Fanon pensó en la descolonización en términos similares a los que
pensamos la decolonialidad hoy. Y, por supuesto, los pueblos indígenas han, por
26

más de 500 años, hecho evidente la importancia de la lucha decolonial. En este


sentido, el colectivo no inventó el concepto o término. En su lugar, ha contribuido
con su visibilidad (particularmente en el mundo académico-intelectual) y su
utilización como una analítica. (WALSCH, 2014, p. 29).

De acordo com Ballestrin (2013), “as origens do grupo M/C podem ser remontadas à
década de 1990, nos Estados Unidos.” Conforme a autora, “um grupo de intelectuais latino-
americanos e americanistas que lá viviam fundou o Grupo Latino-Americano dos Estudos
Subalternos. Inspirado principalmente no Grupo Sul-Asiático dos Estudos Subalternos.”
(BALLESTRIN, 2013, p. 94). A autora esclarece que o termo “subalterno” tem origem na
teoria de Gramsci, “entendido como classe ou grupo desagregado e episódico que tem uma
tendência histórica a uma unificação sempre provisória pela obliteração das classes
dominantes.” (BALLESTRIN, 2013, p. 93).

O trabalho do Grupo de Estudos Subalternos, uma organização interdisciplinar de


intelectuais sul-asiáticos dirigida por Ranajit Guha, inspirou-nos a fundar um projeto
semelhante dedicado ao estudo do subalterno na América Latina. O atual
desmantelamento dos regimes autoritários na América Latina, o final do comunismo
e o consequente deslocamento dos projetos revolucionários, os processos de
democratização, as novas dinâmicas criadas pelo efeito dos meios de comunicação
de massa e a nova ordem econômica transnacional: todos esses são processos que
convidam a buscar novas formas de pensar e de atuar politicamente. Por sua vez, a
mudança na redefinição das esferas política e cultural na América Latina durante os
anos recentes levou a vários intelectuais da região a revisar epistemologias
previamente estabelecidas nas ciências sociais e humanidades. A tendência geral
para uma democratização outorga prioridade a uma reconceitualização do pluralismo
e das condições de subalternidade no interior das sociedades plurais. (GRUPO
LATINOAMERICANO DE ESTUDIOS SUBALTERNOS, 1998, p. 70).

Ballestrin (2013, p. 96) expõe divergências teóricas no grupo latino-americano, que


levou à desagregação no ano de 1998. Nesse mesmo período, ocorreram os “primeiros
encontros entre os membros que posteriormente formariam o Grupo
Modernidade/Colonialidade.”
A ruptura com o Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos ocorreu no campo
teórico, diante das análises dos intelectuais. Grosfoguel (2007) contextualiza seu
descontentamento: “sendo eu um latino a viver nos Estados Unidos, fiquei descontente com as
consequências epistêmicas do conhecimento produzido por esse grupo latino-americanista. Os
seus membros subestimaram, na sua obra, as perspectivas étnico-raciais oriundas da região,
dando preferência, sobretudo, a pensadores ocidentais.” O diálogo e construções subsequentes
com o Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos “tornou evidente a necessidade de
transcender epistemologicamente – ou seja, de descolonizar – a epistemologia e o cânone
ocidentais.” (GROSFOGUEL, 2007, p. 116).
27

Escobar (2003, p. 53) argumenta que o Grupo M/C construiu sua teorização tendo
como referências: teologia da libertação, debates na filosofia e ciência social latino-
americana, teoria da dependência, teorias críticas europeias e norte-americanas da
modernidade, debates na América Latina sobre modernidade e pós-modernidade, grupo
latino-americano de estudos subalternos, teoria feminista chicana, teoria pós-colonial e
filosofia africana. Complementa o autor que “sua principal força orientadora, no entanto, é
uma reflexão continuada sobre a realidade cultural e política latino-americana, incluindo o
conhecimento subalternizado dos grupos explorados e oprimidos.” (ESCOBAR, 2003, p. 53).
O pensamento decolonial tem como um dos precursores Frantz Fanon.4 De acordo
com Ballestrin (2013), “Fanon soma-se a um conjunto de autores precursores do argumento
pós-colonial, cujas primeiras elaborações podem ser observadas pelo menos desde o século
XIX na América Latina.” Os trabalhos de Fanon expõem elementos priomordiais que, ao
longo do tempo, tornaram-se alicerce do pensamento epistêmico decolonial. Suas denúncias
ao colonialismo europeu presentes na África e Ásia, coloca-o em posição antagônica à
estrutura de poder, preconizando a luta pela decolonização do ser e do saber.
Fanon destaca-se por suas obras, mas singularmente, por sua luta anticolonial.
Segundo Gordon (2008, p. 11-12), Fanon é conhecido como revolucionário, lutou junto às
forças de resistência no norte da África e na Europa durante a Segunda Guerra Mundial e foi
membro da Frente de Libertação Nacional da Argélia. Como membro desta frente entrou na
lista de cidadãos procurados pela polícia em todo o território francês.
Em suas obras, discorre sobre as complexas relações entre os colonizados e
colonizadores. Fanon considera que o processo de colonização usou da violência e de todas as
forças hegemônicas de dominação possíveis para comprometer a cultura, ciência, educação e
o idioma dos povos colonizados. Para ele, o colonialismo se entranhou de tal maneira no
pensamento das pessoas, que o colonizado sonha em ser colono: “o colonizado é um
perseguido que sonha permanentemente tornar-se um perseguidor.” (FANON, 1968, p. 70).
Jean-Paul Sartre descreve a violência exercida pelos colonizadores:

4
Frantz Fanon nasceu em Fort-de-France/Martinica no dia 20 de julho de 1925. Foi um psiquiatra, filósofo,
cientista social, revolucionário e ensaísta marxista de ascendência francesa e africana. Fortemente envolvido na
luta pela independência da Argélia, foi um influente pensador do século XX sobre os temas da descolonização e
da psicopatologia da colonização. Suas obras foram inspiradas em mais de quatro décadas de movimentos de
libertação anticoloniais. Analisou as consequências psicológicas da colonização, tanto para o colonizador quanto
para o colonizado, e o processo de descolonização, considerando seus aspectos sociológicos, filosóficos e
psiquiátricos. Faleceu em 1961, nos Estados Unidos, enquanto tratava-se de leucemia. Fanon foi o principal
pensador dos males do colonialismo (Síntese por mim elaborada a partir de dados capturados em diferentes sites
da internet).
28

Nossa tropa de choque recebeu a missão de transformar essa certeza abstrata em


realidade: a ordem é rebaixar os habitantes do território anexado ao nível do macaco
superior para justificar que o colono os trate como bestas de carga. A violência
colonial não tem somente o objetivo de garantir o respeito desses homens
subjugados; procura desumanizá-los. Nada deve ser poupado para liquidar as suas
tradições, para substituir a língua deles pela nossa, para destruir a sua cultura sem
lhes dar a nossa; é preciso embrutecê-los pela fadiga. (SARTRE, 1968, p. 9).

Para Fanon (1968, p. 31), a violência cometida pelo mundo colonial destruiu formas
sociais indígenas, bem como sua economia e todas as relações de vida, impondo ao
colonizado o modo de vida do colono. Segundo o autor, a sociedade do colonizado é
considerada pelo colonizador como “uma sociedade sem valores”, e o indígena como o “mal
absoluto”.

Não basta ao colono afirmar que os valores desertaram, ou melhor já mais


habitaram, o mundo colonizado. O indígena é declarado impermeável à ética,
ausência de valores, como também negação dos valores. É, ousemos confessá-lo, o
inimigo dos valores. Neste sentido, é o mal absoluto. Elemento corrosivo, que
destrói tudo o que dele se aproxima, elemento deformador, que desfigura tudo o que
se refere à estética ou à moral, depositário de forças maléficas, instrumento
inconsciente e ir recuperável de forças cegas. (FANON, 1968, p. 31).

Fanon (2008, p. 88) destaca o racismo como elemento central da ordem de dominação
europeia sobre “outros” povos e assevera que “a civilização europeia e seus representantes
mais qualificados são responsáveis pelo racismo colonial.” Segundo o autor, o racismo é
elemento fundante da colonialidade, o que o leva a desenvolver a categoria da inferiorização,
que, para ele, está correlacionada à superiorização europeia, e profere: “precisamos ter a
coragem de dizer: é o racista que cria o inferiorizado.” (FANON, 2008, p. 90).
Na obra Pele Negra, Mascaras Brancas, Frantz Fanon (2008, p. 59) aborda a questão
patriarcal e a subjugação da mulher negra ao homem branco, “[...] Mayotte ama um branco do
qual aceita tudo. Ele é o seu senhor. Dele ela não reclama nada, não exige nada, senão um
pouco de brancura na vida.” Para Fanon, o patriarcado e o racismo implícito em suas obras
são consequência do colonialismo, reforçado pela inferioridade. De acordo com Ballestrin
(2017, p. 1038), Fanon foi “fundamental para vincular definitivamente racismo e
colonialismo, introduzindo questões de gênero e raça.” Mesmo que em suas obras o sujeito
colonizado tenha sido o homem negro, Fanon deixou um importante legado para o feminismo
decolonial5 e subalternos, nascidos no século XX.

5
Segundo Ballestrin, o feminismo decolonial “reedita o feminismo terceiro-mundista, autodenominando-se
também como feminismo do sul e feminismo fronteiriço (uma alusão ao conceito de pensamento de fronteira
ou fronteiriço de Walter Mignolo). Essa atualização, contudo, restringe-se às universidades dos Estados Unidos
e países da América Latina em relação aos seus principais lugares de enunciação, procurando resgatar
diferentes feminismos da região (chicano, negro, latino-americano). O feminismo decolonial – em certos
29

Como um dos precursores do pensamento decolonial, Fanon considera que a


decolonização é tarefa de muitos, em especial, dos movimentos coletivos e organizados que se
articulam em um conjunto amplo na dimensão social, como a economia, a linguagem, a
cultura e a educação, e essas articulações devem convergir com um “programa de desordem
absoluta”, fazendo a luta contrária à lógica colonial.

A descolonização, que se propõe a mudar a ordem do mundo, é, como se vê, um


programa de desordem absoluta. Mas ela não pode ser o resultado de uma operação
mágica, de um abalo natural ou de um entendimento amigável. A descolonização,
como sabemos, é um processo histórico: isto é, ela só pode ser compreendida, só
tem a sua inteligibilidade, só se torna translúcida para si mesma na exata medida em
que se discerne o movimento historicizante que lhe dá forma e conteúdo. (FANON,
1968, p. 26).

Por uma “desordem absoluta” Fanon (1968, p. 275) apregoa: “Pela Europa, por nós
mesmos e pela humanidade, camaradas, temos de mudar de procedimento, desenvolver um
pensamento novo, tentar colocar de pé um homem novo.” Frants Fanon propõe a criação de
“um novo homem”, novo ser humano, com pensamentos novos. Refere-se à subversão
necessária aos dominados para levantarem-se na história, culpabiliza o próprio processo
colonial, que impele as massas a usarem a força para se libertarem. Segundo o autor, as
massas famintas e depauperadas têm a intuição de que sua liberdade só ocorrerá pela força,
porque é assim que as tratam o “ocupante” (FANON, 1968, p. 56).
Para Fanon (1968 p. 25-26) a descolonização trata-se da “substituição de uma
‘espécie’ de homens por outra ‘espécie’ de homens.” Para ele, haverá uma substituição
absoluta, inclusive, de uma nova nação, de um novo Estado, com outras relações
diplomáticas, seria nova a orientação política e econômica. Contudo, essa “extraordinária
importância de tal transformação” necessita ser querida, reclamada e exigida pelos
colonizados, para tanto, é fundamental certo grau de consciência. Esse processo mudaria
concomitantemente a vida, a consciência e o ser, de outras mulheres e homens: “os colonos”.

A descolonização jamais passa despercebida porque atinge o ser, modifica


fundamentalmente o ser, transforma espectadores sobrecarregados de
inessencialidade em atores privilegiados, colhidos de modo quase grandioso pela
roda-viva da história. Introduz no ser um ritmo próprio, transmitido por homens
novos, uma nova linguagem, uma nova humanidade. A descolonização é na verdade,
criação de homens novos. (FANON, 1968, p. 26).

Em síntese, nessa seção procurei problematizar e relacionar os termos colonialidade e

sentidos – possui uma trajetória parecida e abertamente inspirada no grupo Modernidade/Colonialidade. E,


como Walter Mignolo, María Lugones é uma argentina que construiu sua carreira acadêmica e ativismo
feminista nos Estados Unidos.” (2013, p. 1044).
30

decolonialidade. A colonização da América Latina se particularizou por um modo de produção


dependente, o qual produziu um padrão global fundamentado na colonialidade do poder. Esse
padrão global se constitui por três dimensões da colonialidade, tornadas historicamente
hegemônicas: poder, saber e ser. O giro decolonial teorizado pela rede M/C de intelectuais
orgânicos coloca em perspectiva a possibilidade de produção da decolonialidade por meio de
forças contra-hegemônicas. Conforme Fanon, considerado o precursor do pensamento
decolonial, tal perspectiva supõe “mudar a ordem do mundo” pelo “pensamento novo/homem
novo” em um processo histórico fundamentado em um “programa de desordem absoluta”.
Na próxima seção caracterizo quatro momentos que, a meu ver, evidenciam o
tensionamento do binômio colonialidade e decolonialidade na América Latina, em particular,
no Brasil.

2.2 COLONIALIDADE E LUTAS CONTRA-HEGEMÔNICAS

Na presente seção apresento, de forma resumida, quatro momentos sócio-históricos que


indicam a configuração da construção hegemônica e, ao mesmo tempo, de elementos contra-
hegemônicos latino-americanos e particularmente brasileiros.

2.2.1 Invasão das terras e dominação de povos indígenas

Segundo Galeano (2009), em meados do século XV a Europa se caracterizava pela


crise em seu modo de produção. A sociedade feudal encontrava-se “moribunda na Europa”.
No contexto mercantilista da época, tornava-se necessária a busca de riquezas em outras
terras. A situação de crise levou ao surgimento de outro modo de produção, o capitalismo.
Esse momento histórico convergiu com a “descoberta” das terras da América, de riquezas
naturais a serem exploradas e com habitantes que se utilizavam de tais riquezas para sua
subsistência.
Os Estados europeus investiram nas grandes navegações que proporcionaram a
conquista territorial e a expansão comercial. Com o objetivo de ampliar seus territórios e
descobrir novos caminhos marítimos para a realização do comércio, os navegadores, sob o
comando de Cristóvão Colombo, lançaram-se ao mar, com a pretensão de alcançar as Índias
(grande abastecedora de especiarias e um novo ponto comercial de consumo). Em 1492
aportaram no “Novo Mundo”, mais tarde chamado de América. Todo o território “descoberto”
passa a ser explorado pelos europeus como colônia.
31

A expansão portuguesa e espanhola ocorreu pela necessidade de buscar matéria-prima


e novos mercados, como parte de uma gama de relações sociais, econômicas e políticas do
emergente capitalismo mundial. O processo civilizatório decorrente foi o motor que deu início
a dois Estados nacionais: Portugal e Espanha. Conforme Galeano (2009, p. 47), “as colônias
americanas tinham sido descobertas, conquistadas e colonizadas dentro do processo de
expansão do capital comercial. A Europa estendia seus braços para alcançar o mundo inteiro.”
Para Celso Furtado (2007, p. 11):

A ocupação econômica das terras americanas constitui um episódio da expansão


comercial da Europa. Não se trata de deslocamentos de população provocados por
pressão demográfica – como fora o caso da Grécia – ou de grandes movimentos de
povos determinados pela ruptura de um sistema cujo equilíbrio se mantivesse pela
força – caso das migrações germânicas em direção ao ocidente e sul da Europa. O
comércio interno europeu, em intenso crescimento a partir do século XI, havia
alcançado um elevado grau de desenvolvimento no século XV, quando as invasões
turcas começaram a criar dificuldades crescentes às linhas orientais de
abastecimento de produtos de alta qualidade, inclusive manufaturas. O
restabelecimento dessas linhas, contornando o obstáculo otomano, constitui sem
dúvida alguma a maior realização dos europeus na segunda metade desse século.

As terras do “novo mundo” foram invadidas a partir da necessidade de acumulação


advinda do capital europeu. Os homens vindos de “além-mar” ignoraram a vida e a história
que havia nestas terras. Nas palavras de Ribeiro (2006), a intenção era carregar para a Europa
toda a “riqueza saqueável”, em um processo que extinguiria “milhares de povos, com suas
línguas e culturas próprias e singulares.”
Darcy Ribeiro (2006, p. 40) descreve a chegada dos invasores, tendo o aval da Igreja
num processo de subjugação dos gentis:

Para os que chegavam, o mundo em que entravam era a arena dos seus ganhos, em
ouros e glórias, ainda que estas fossem principalmente espirituais, ou parecessem
ser, como ocorria com os missionários. Para alcançá-las, tudo lhes era concedido,
uma vez que sua ação e além-mar, por mais abjeta e brutal que chegasse a ser, estava
previamente sacramentada pelas bulas e falas do papa e do rei. Eles eram, ou se
viam, como novos cruzados destinados a assaltar e saquear túmulos e templos de
hereges indianos. Mas aqui, o que viam, assombrados, era o que parecia ser uma
humanidade edênica, anterior à que havia sido expulsa do Paraíso. Abre-se com esse
encontro um tempo novo, em que nenhuma inocência abrandaria sequer a sanha com
que os invasores se lançavam sobre os gentis, prontos a subjugá-los pela honra de
Deus e pela prosperidade cristã.

Mariátegui (2007) menciona a motivação da Espanha em relação à expansão territorial


e econômica na América:

La búsqueda del oro y de la plata obligó a los españoles, – contra su tendencia a


instalarse en la costa –, a mantener y ensanchar en la sierra sus puestos avanzados.
La minería – actividad fundamental del régimen económico implantado por España
32

en el territorio sobre el cual prosperó antes una sociedad genuina y típicamente


agraria –, exigió que se estableciesen en la sierra las bases de la Colonia.
(MARIÁTEGUI, 2007, p. 15).

A economia colonial se estruturou por meio da exploração das riquezas do “novo


mundo” e em razão do mercado europeu. As nações latino-americanas passaram a integrar o
sistema econômico emergente como partícipes da acumulação primitiva no bojo do avanço
mundial de consolidação do modo de produção capitalista. De acordo com Marx (1984, p.
261):

[...] A acumulação do capital, porém, pressupõe a mais-valia, a mais-valia a


produção capitalista, e esta, por sua vez, a existência de massas relativamente
grandes de capital e de força de trabalho nas mãos de produtores de mercadorias.
Todo esse movimento parece, portanto, girar num círculo vicioso, do qual só
podemos sair supondo uma acumulação “primitiva”, precedente à acumulação
capitalista, uma acumulação que não é resultado do modo de produção capitalista,
mas sim seu ponto de partida.

A invasão colonialista europeia segue com avanço sistemático, iniciando a mineração


e agindo simultaneamente ao extermínio dos povos originários, dando assim seguimento à
política dos Estados europeus, materializando a acumulação primitiva e a violência que a
caracteriza, tendo como um de seus eixos o sistema colonial:

[...] As descobertas de ouro e de prata na América, o extermínio, escravização das


populações indígenas, forçadas a trabalhar no interior das minas, o início da
conquista e pilhagem das Índias Orientais e a transformação da África num vasto
campo de caçada lucrativa são os acontecimentos que marcam os albores da era da
produção capitalista. Estes processos idílicos são fatores fundamentais da
acumulação. (MARX, 2002, p. 684).

Nota-se que o território ameríndio serviu de eixo para o capital internacional a partir
das relações de produção da economia colonial, ou seja, do antigo sistema colonial, que se
articulava com as seguintes características: a) as colônias tinham a tarefa de fortalecer as
riquezas da metrópole, por meio de metais preciosos e agricultura, ou seja, com a matéria-
prima e o trabalho escravo; b) com o chamado pacto-colonial (definido como um conjunto de
regras, leis e normas) mantinham a metrópole no controle da produção, detendo esta, o
monopólio do comércio (NOVAIS, 1977).
Consequentemente, as relações entre colônias e metrópoles garantiam a hegemonia do
capital comercial. A produção abastecia o capitalismo em construção na Europa, ao passo que
garantia a subserviência das colônias por meio do modo de produção colonial e da mão de
obra escrava. Esse processo fortaleceu o capital internacional, bem como uma elite colonial
formada por latifundiários e mineradores.
33

Segundo Novais (1977, p. 69), o sistema colonial foi essencial para o capitalismo
mundial. O autor o considera como a “principal alavanca na gestação do capitalismo
moderno”, para ele é peça de um sistema, como “instrumento da acumulação primitiva”, que
“completa-se, entrementes, a conotação do sentido profundo da colonização: comercial e
capitalista, isto é, elemento constitutivo no processo de formação do capitalismo moderno.”
(NOVAIS, 1977, p. 70).
Como parte da constituição do sistema colonial, a América é o primeiro espaço/tempo
de um novo padrão de poder, que articula a ideia de raça, controle de trabalho e de seus
recursos em torno do capital e do mercado mundial. Essa dinâmica forçou no território uma
construção mental de inferioridade que expressa a experiência básica da dominação colonial.
A isso, Quijano chamou de colonialidade do poder (QUIJANO, 2005, p. 228).
Os colonizadores/invasores usaram como estratégia de expansão a escravidão indígena
e negra em prol do enriquecimento do continente europeu. Os povos usados como escravos
foram chamados por Galeano (2009) de “proletariado externo da economia europeia.” O autor
sintetiza esse processo da seguinte forma:

A prata e o ouro da América penetravam como um ácido corrosivo, no dizer de


Engels, por todos os poros da sociedade feudal moribunda na Europa; a serviço do
nascente mercantilismo capitalista os empresários mineiros converteram os índios e
escravos negros em numerosíssimo “proletariado externo” da economia europeia. A
escravidão greco-romana ressuscitava de fato, num mundo distinto; ao infortúnio
dos índios dos impérios aniquilados na América hispânica é preciso somar o terrível
destino dos negros arrebatados às aldeias africanas para trabalhar no Brasil e nas
Antilhas. A economia colonial latino-americana dispôs da maior concentração de
força de trabalho até então conhecida, para possibilitar a maior concentração de
riqueza que jamais possuiu qualquer civilização na história mundial. (GALEANO,
2009, p. 58).

Marx esclarece a função do trabalho escravo para o fortalecimento do capitalismo


mundial:

Em todas as estruturas sociais em que a escravatura serve de meio de


enriquecimento (não a patriarcal, mas como a do outono das eras helênicas e
romana), o dinheiro, sendo então o meio de apropriar-se de trabalho alheio, com a
compra de escravos, terras, etc., pode, justamente por ter essa possibilidade de
emprego, ser investido como capital, para render juros. (MARX, 2002, p. 788).

A “Ilha Brasil” (termo usado por Jaime Cortesão, 1958) era ocupada por uma
infinidade de povos indígenas, divididos em vários grupos tribais, e, por isso, com
características distintas. No contexto se desenvolveu uma mistura de signos, símbolos,
figuras, valores, mística, ideais e processos estruturais de dominação e apropriação, que vão
desvendando o movimento da realidade social, cultural, econômica e de identidade.
34

Darcy Ribeiro (2006) descreve as nações indígenas como gentes com uma magnífica
relação com a natureza, a terra, no ideário indígena, era um bem comum, e, portanto, não
poderia ser propriedade de ninguém. Na cultura indígena, segundo Ribeiro (2006), todos têm
análoga capacidade, mesmo que as tarefas diárias sejam notoriamente distintas por gênero. O
conhecimento e as informações de maneira alguma podem ser apropriados por alguém para
serem usados como dominação sob outras pessoas.
Para o autor,possivelmente, os indígenas consideravam os europeus pessoas generosas,
pois entre eles não havia nenhuma relação de espoliação. Esclarece seu ponto de vista:

Os índios perceberam a chegada do europeu como um acontecimento espantoso, só


assimilável em sua visão mítica do mundo. Seriam gente de seu deus sol, o criador –
Maíra –, que vinha milagrosamente sobre as ondas do mar grosso. Não havia como
interpretar seus desígnios, tanto podiam ser ferozes como pacíficos, espoliadores ou
doadores. (RIBEIRO, 2006, p. 38).

Essa visão mística que tinham os indígenas em relação aos invasores favoreceu a
proximidade entre povos nativos e europeus. O rompimento e destruição das “bases da vida
social indígena”, espoliação, cativeiro, mortes, genocídios, estupros, não fazia parte da vida
indígena, portanto, não podia ser previsto por eles. “O grupelho recém-chegado de além-mar
era superagressivo e capaz de atuar destrutivamente de múltiplas formas.” (RIBEIRO, 2006,
p. 26).
A educação serviu como instrumento substancial para a construção de uma nova
cultura, instrumento hegemônico eficiente para a construção da colonialidade. A colonização
fixou no continente americano não somente uma organização política e econômica, mas criou
condições de hegemonizar o saber do dominador/colonizador, forjando toda cultura
eurocentrada por intermédio da educação.
Nas proposições de Quijano (2005, p. 115):

A elaboração intelectual do processo de modernidade produziu uma perspectiva de


conhecimento e um modo de produzir conhecimento que demonstram o caráter do
padrão mundial de poder: colonial/moderno capitalista e eurocentrado. Essa
perspectiva e modo concreto de produzir conhecimento se reconhecem como
eurocentrismo.

Assim como em outros países latino-americanos, também no Brasil as relações de


exploração, que perpassavam as questões da terra, os bens naturais e seus habitantes, eram
objetos de desenvolvimento do trabalho de escolarização, nesse momento, pelos Jesuítas.
Estes, por sua vez, priorizaram a língua portuguesa em sua matriz pedagógica, mas não
negaram a língua indígena, a qual usavam para evangelizar e, dessa forma, contribuir ao
35

projeto de expansão de novas relações sociais e novo modo de produção, conforme


projetavam os portugueses.

O processo de colonização abarca, de forma articulada, mas não homogênea ou


harmônica, antes dialeticamente, esses três momentos representados pela
colonização propriamente dita, ou seja, a posse e exploração da terra subjugando os
seus habitantes (os íncolas); a educação enquanto aculturação, isto é a inculcação
nos colonizados; das práticas, técnicas, símbolos e valores próprios dos
colonizadores; e a catequese entendida como a difusão e a conversão dos
colonizadores. (SAVIANI, 2013, p. 29).

A catequese articulada à educação foi imprescindível para as primeiras experiências


educacionais na colônia brasileira, onde os valores, tradições e costumes foram impostos por
meio de um dinamismo externo, pelo meio cultural do colonizador. Era também um momento
tenso de disputas, de escravidão e de exploração da força de trabalho dos gentis. Assim,
Saviani (2013, p. 31) afirma que “há uma estreita simbiose entre educação e catequese na
colonização do Brasil. Em verdade a emergência da educação como um fenômeno de
aculturação tinha na catequese a sua idéia-força.”
Nos termos de Paiva (2015), aos poucos as ordens religiosas foram avançando,
multiplicando as escolas de “ler e escrever”, bem como o ensino profissional e a instalação de
seminários. Aos indígenas adultos ficava restrita a catequese e as atividades agrícolas. Os
“pacificados e convertidos” eram aldeados próximos aos povoados portugueses, sendo a eles
destinada a tarefa de proteger os povoados dos ataques das tribos hostis.
Segundo a autora, o sistema de educação no período colonial ficou sob
responsabilidade, especialmente, da Companhia de Jesus, mas também houve a influência e
trabalho dos franciscanos, os quais, da mesma forma, preocupavam-se com a “conversão dos
indígenas”, dedicando-se ao ensino dos trabalhos manuais. Quando a colonização estava
consolidada, “a língua portuguesa e a religião cristã dominavam amplamente as camadas
hegemônicas da sociedade, além de terem penetrado entre indígenas e escravos.” (PAIVA,
2015, p. 67). Assim, a educação e a catequese cumpriram a tarefa de instrumento hegemônico
de aculturação, ou seja, constituíram-se “como uma força realmente integrada a todo o
processo” no sistema colonial (PAIVA, 1982, p. 97).
No entanto, conflitos sempre existiram na “Ilha Brasil”. Tribos indígenas guerreavam
umas com as outras. Conforme Ribeiro (2006), tais conflitos aconteciam sem maiores
consequências, já que não chegavam a impor situações hegemônicas. Em consequência, a
imposição hegemônica dos países invasores levava a resistências contra-hegemônicas.

O conflito interétnico se processa no curso de um movimento secular de sucessão


36

ecológica entre a população original do território e o invasor que a fustiga a fim de


implantar um novo tipo de economia e de sociedade. Trata-se, por conseguinte, de
uma guerra de extermínio. Nela, nenhuma paz é possível, senão com um armistício
provisório, porque os índios não podem ceder no que se espera deles, que seria
deixar de ser eles mesmos para ingressar individualmente na nova sociedade, onde
viveriam outra forma de existência que não é a sua. (RIBEIRO, 2006, p. 153).

Da terra retiraram os metais e nela plantaram a morte indígena. Segundo Galeano


(2009), os povos indígenas da América Latina sofreram com a maldição de sua própria
riqueza. Ele os descreve como “condenados ao êxodo eterno”, desterrados em suas próprias
terras. Foram expulsos de suas terras férteis e ricas em recursos minerais, para que os
invasores pudessem vender e lucrar, dando início aos problemas agrários que temos hoje.6
Das nações indígenas que viviam aqui antes da chegada dos invasores europeus e de todo o
processo de extermínio e escravidão, Porto-Gonçalves (2009, p. 26) menciona que:

Havia no continente uma população estimada entre 57 e 90 milhões de habitantes


que se distinguiam como maia, kuna, chibcha, mixteca, zapoteca, ashuar, huaraoni,
guarani, tupinikin, kaiapó, aymara, ashaninka, kaxinawa, tikuna, terena, quéchua,
karajás, krenak, araucanos/mapuche, yanomami, xavante, entre tantas
nacionalidades e tantos povos dele originários.

A invasão não foi um “encontro de culturas”; os invasores chegaram com sede de ouro
e prata e foram recebidos com espanto. Para Galeano (2009, p. 34-35), “o inca Atahualpa caiu
de costas quando viu chegar os primeiros soldados espanhóis, montados em briosos cavalos
ornados de guizos e penachos que corriam desencadeando tropéis e polvadeira.” Os invasores
agregaram cúmplices das classes dominantes intermediárias, entre eles, chefias indígenas
mais altas. Mas a reação dos povos não foi de cordialidade, como faz alusão o autor: “o
cacique Tecum à frente dos herdeiros dos maias, decapitou o cavalo de Pedro de Alvarado,
convencido de que fazia parte do conquistador: Alvarado se ergueu e o matou.”
Das relações forçadas pelo poder hegemônico que se abateu sobre a América Latina,
nasce a resistência que construirá grupos sociais organizados. Partindo do conceito
Gramsciano de hegemonia, que o define como o consenso e aceitação entre as classes, e no
caso do período de colonização, entre colonizados e colonizadores, percebemos que de tais
relações surgiram “levantes” – homens e mulheres que tensionaram e confrontaram a
hegemonia eurocêntrica, constituindo-se em forças contra-hegemônicas organizadas.
As batalhas foram intensas, guerreiros indígenas se muniam de bordunas, escudos,

6
Para Galeano (2009, p. 84), “Da plantação colonial subordinada às necessidades estrangeiras e financiada, em
muitos casos, do exterior, provém em linha reta o latifúndio de nossos dias. Este é um dos gargalos da garrafa
que estrangulam o desenvolvimento econômico da América Latina e um dos fatores primordiais da
marginalização e da pobreza das massas latino-americanas.”
37

arco e flecha, contra os invasores e seus canhões de bronze, arcabuzes, mosquetes e pistolas.
Galeano (2009) fala de rios de sangue em terras ameríndias. O continente latino-americano
presenciou a morte de povos inteiros, ao passo que viu nascer a resistência.
Entre os líderes, Galeano (2009, p. 65) evidencia: Tupac Amaru “cacique mestiço,
descendente direto dos imperadores Incas”, comandou a insurreição do povo indígena no
Peru, ocorrida no século XVI. Entre as lutas contra-hegemônicas dos povos indígenas no
Brasil, Golin (2011) considera imprescindível referir-se à Guerra Guaranítica do Rio Grande
do Sul (1753-1756).7 Darcy Ribeiro (2006) destaca, ainda: a revolta dos tamoios (guerra entre
portugueses e índios que não aceitaram o jugo luso), a guerra entre colonos e jesuítas que
defendiam os índios.
Quijano (2005) contribui ao sistematizar o fim da escravidão indígena:

[…] a Coroa de Castela logo decidiu pelo fim da escravidão dos índios, para impedir
seu total extermínio. Assim, foram confinados na estrutura da servidão. Aos que
viviam em suas comunidades, foi-lhes permitida a prática de sua antiga
reciprocidade – isto é, o intercâmbio de força de trabalho e de trabalho sem mercado
– como uma forma de reproduzir sua força de trabalho como servos. Em alguns
casos, a nobreza indígena, uma reduzida minoria, foi eximida da servidão e recebeu
um tratamento especial, devido a seus papéis como intermediária com a raça
dominante, e lhe foi também permitido participar de alguns dos ofícios nos quais
eram empregados os espanhóis que não pertenciam à nobreza. Por outro lado, os
negros foram reduzidos à escravidão. Os espanhóis e os portugueses, como raça
dominante, podiam receber salários, ser 118 comerciantes independentes, artesãos
independentes ou agricultores independentes, em suma, produtores independentes de
mercadorias. Não obstante, apenas os nobres podiam ocupar os médios e altos
postos da administração colonial, civil ou militar. (QUIJANO, 2005, p. 118-119).

A escravidão indígena foi necessária desde o princípio, e mesmo quando a mão de


obra foi substituída pela negra, ainda assim o trabalho indígena foi demasiado importante para
a economia europeia, agora como servos.

2.2.2 Colonização europeia e escravidão negra

De acordo com Darcy Ribeiro (2006), somente no século XVII é que a escravidão
negra veio sobrepujar a escravidão indígena, porém a mão de obra indígena sempre foi
considerada indispensável, já que o índio era tido como trabalhador ideal para transportar

7
Segundo Golin (2011), foi “o evento bélico deflagrado pelo levante dos índios rebeldes contra os demarcadores
e exércitos da Espanha e Portugal.” O autor relata que índios e caciques insurgiram-se contra a mudança de
governo de suas terras, motivados pela rejeição de seis cabildos situados a oriente do rio Uruguai. Os indígenas
sob comando de Sepé Tiarajú contestaram cláusulas do Tratado de Madri, a causa principal foi a previsão de
permuta dos Sete Povos (espanhol) pela Colônia do Sacramento (português). Sepé Tiarajú foi morto na batalha
de Caiboaté, junto de aproximadamente 1500 Guaranis, segundo Golin (1998, p. 576), “num massacre de
proporções gigantescas com requintes de crueldade.”
38

cargas. O autor segue argumentando que “seu papel também foi preponderante nas guerras
aos outros índios e aos negros quilombolas.” (RIBEIRO, 2006, p. 88).
Para Quijano (2005, p. 247), a servidão imposta aos povos indígenas, bem como à
escravidão na América “foi deliberadamente estabelecida e organizada como mercadoria para
produzir mercadorias para o mercado mundial e, desse modo, para servir aos propósitos e
necessidades do capitalismo.”
Conforme Galeano (2009), na América Latina, desde as colonizações portuguesa e
espanhola, foi usada a escravidão como alicerce para a economia colonial, contribuindo na
concentração de riqueza dos colonizadores. O autor se reporta a essa concentração como a
maior da história mundial, edificada pelas mãos escravas: “o terrível destino dos negros
arrebatados às aldeias africanas para trabalhar no Brasil e nas Antilhas.”
Os negros foram incorporados ao sistema colonial em um processo político e
hegemônico de poder, no sistema vigente. Darcy Ribeiro (2006) analisa que é difícil
mencionar e quantificar o total de negros que foram trazidos ao Brasil. Relata o autor que a
Coroa, ao passo que permitia a compra de até 120 “peças” a cada senhor de engenho, não
limitava o direito de comprar negros trazidos aos mercados de escravos. Nesse sentido:

[...] os concessionários reais do tráfico negreiro tiveram um dos negócios mais


sólidos da colônia, que duraria três séculos, permitindo-lhes transladar milhões de
africanos ao Brasil e, deste modo, absolver a maior parcela do rendimento das
empresas açucareiras, auríferas, de algodão, de tabaco, de cacau e de café, que era o
custo da mão-de-obra escrava. (RIBEIRO, 2006, p. 146).

Ao longo do período colonial, era papel do Estado latino-americano arrogar-se do


excedente produzido e enviar à metrópole dominante. As relações de trabalho ocorriam na
subserviência do trabalho escravo e semiescravo. Conforme Cueva (1988, p. 25): “o
excedente econômico produzido nessas áreas não chegava a transformar-se realmente em
capital no interior delas, onde era extorquido ao produtor direto por vias escravistas e servis,
mas fluía ao exterior para converter-se, ali sim, em capital.”
O capitalismo na América Latina se desenvolveu de forma lenta. A exploração e as
relações sociais de subordinação e trabalho escravo em detrimento do crescimento econômico
dos países centrais foram responsáveis por esse progresso tardio.

No que se refere às relações internacionais da América Latina, se, como observamos,


esta desempenha um papel relevante na formação da economia capitalista mundial
(principalmente em sua produção de metais preciosos nos séculos XV e XVII, mas
sobretudo no XVIII, graças à coincidência entre a descoberta do ouro brasileiro e o
auge manufatureiro inglês), só no curso do século XIX e especificamente depois de
1840 sua articulação com essa economia mundial se realiza plenamente. (MARINI,
39

2000, p. 110).

Desenvolve-se, assim, no interior da América Latina, um capitalismo dependente,


enquanto promove a acumulação primitiva em prol dos países invasores. O trabalho escravo
nas colônias foi uma opção lucrativa e necessária, especialmente, após o genocídio indígena,
portanto, um longo tempo de escravidão implantou-se em terras ameríndias.
O capitalismo mundial usou o território latino-americano como lugar de exploração,
ao mesmo tempo que contribuiu para a construção de uma cultura eurocentrada sob relações
coloniais. Aníbal Quijano (2005) refere-se a um padrão global de poder e dominação, que está
articulado com uma estrutura heterogênea de poder e que define as relações sociais de
domínio de um povo sobre o outro, estando associado a já mencionada colonialidade do
poder.
As várias formas de dominação e subordinação justificam o controle do trabalho e das
relações materiais de produção, que determinam qual o lugar dos mestiços e indígenas,
definindo uma classificação social, segundo Quijano (2007). É a história de dominação,
expropriação do território e dos conflitos, que surgem a partir dos antagonismos existentes nas
relações injustas e desiguais do capitalismo mundial.
A hegemonia capitalista define relações sociais entre a periferia e o centro, e, a partir
delas, uma divisão social e internacional do trabalho. Nesse contexto, em que Marx coloca a
questão da divisão do trabalho, menciona igualmente o processo de invasão e colonização
alicerçadas no trabalho escravo como sendo “a alvorada da era da produção capitalista.”
(MARX, 1985). Para o autor, há uma confluência entre divisão de trabalho e colonialismo. Na
análise de Quijano e Wallerstein (1992), a divisão do trabalho corresponde para além da
produção uma hierarquização étnica, que justificam múltiplas formas de controle do trabalho.

La etnicidad fue la consecuencia cultural inevitable de la colonialidad. Delineó las


fronteras sociales correspondientes a la división del trabajo. Y justificó las múltiples
formas de control del trabajo inventadas como parte de la americanidad: esclavitud
para los “negros” africanos; diversas formas de trabajo forzado (repartimiento,
mita, peonaje) para los indígenas americanos; enganches, para la clase trabajadora
europea. Desde luego éstas fueron las formas iniciales de distribución étnica para
participar en la jerarquía laboral. A medida que avanzamos hacía el período pos-
independencia, las formas de control del trabajo y los nombres de las categorías
étnicas fueron puestas al día. Pero siempre se mantuvo una jerarquía étnica.
(QUIJANO; WALLERSTEIN, 1992, p. 585).

A análise da categoria trabalho está intrínseca no padrão global de que fala Quijano
(2007). O controle do trabalho e as relações materiais de produção determinam qual o lugar
dos mestiços e indígenas, definindo uma classificação social. O autor prossegue:
40

En el capitalismo mundial la cuestión del trabajo, de la raza y del género, son las
tres instancias centrales respecto de las cuales se ordenan esas relaciones
conflictivas de explotación / dominación. Ergo, los procesos de clasificación social
consistirán, de todos modos, en procesos donde esas tres instancias se asocian o se
disocian respecto del complejo explotación / dominación / conflicto. De las tres
instancias es el trabajo, esto es, la explotación / dominación, la que se ubica como
el ámbito central y permanente. (QUIJANO, 2000, p. 371).

Frantz Fanon (1968), da mesma forma, evidencia a relação dinâmica entre racismo
colonial e capitalismo, contribuindo para análises das categorias raça e trabalho, bem como
para o debate sobre a subjugação da mulher negra e mestiça ao homem branco, fazendo um
paralelo entre racismo e patriarcado, colocando-os como pares num processo de categorias de
análises. Reafirma que as análises marxistas são imprescindíveis diante da realidade colonial e
sintetiza: “nas colônias a infraestrutura econômica é igualmente uma superestrutura. A causa é
consequência: o indivíduo é rico porque é branco, é branco porque é rico.” (FANON, 1968, p.
29).
Marini (2000) sugere que toda gama de relações de trabalho contribui para determinar
a dependência e subordinação do território, porém, para ele isto fica evidente a partir do
período que corresponde à independência dos países da região e a revolução industrial na
Europa. Sobre o assunto, ele escreve:

[...] divisão internacional do trabalho, que determinará o curso do desenvolvimento


ulterior da região. Em outros termos, é a partir de então que se configura a
dependência, entendida como uma relação de subordinação entre as nações
formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção das nações
subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da
dependência. O fruto da dependência só pode assim significar mais dependência e
sua liquidação supõe necessariamente a supressão das relações de produção que ela
supõe. Neste sentido, a conhecida fórmula de André Gunder Frank sobre o
“desenvolvimento do subdesenvolvimento” é impecável, como impecáveis são as
conclusões políticas a que ela conduz. (MARINI, 2000, p. 109).

Com o tráfico dos povos da África, outros conflitos emergem. Ribeiro (2006, p. 202)
considera que “as lutas mais longas e mais cruentas que se travaram no Brasil” foram as
resistências indígenas, seguidas da luta dos negros contra a escravidão, que persistiram
durante os séculos do escravismo. Essas tiveram início quando começou o tráfico, encerrando
com a abolição.
Os escravos eram tratados como mercadoria, numa relação de posse e propriedade,
sem poder usufruir de qualquer direito, como dignidade humana por exemplo. Da escravidão
negra surgiram lutas contra-hegemônicas e antirraciais. A “mercadoria” rebelou-se diante da
crueldade dos senhores, levando os negros a um longo processo de lutas.
41

Segundo Gorender (2000, p. 56), “a prática da escravidão encontrou no racismo uma


justificativa ideológica”, os escravocratas “tinham por certo que os negros eram escravizados
por serem menos inteligentes, menos controlados nos seus instintos, mais próximos da
animalidade. etc.”
A resistência dos escravos negros passou a ser parte das relações escravistas, Segundo
Clóvis Moura (1981, p. 14).

As relações escravistas também produziam movimentos de reação que se


vinculavam à dinâmica de uma sociedade de capilaridade social quase inexistente,
como costumam ser as sociedades de castas. Os diversos escalões, os variados
degraus de reação contra o status do escravo defluíam em uma constelação de
desajustes na economia escravista. Do ponto de vista do próprio escravo essas
reações iam desde os suicídios, fugas individuais ou coletivas, até à formação de
quilombos, às guerrilhas, às insurreições citadinas e a sua participação em
movimentos organizados por outras classes e camadas sociais. O escravo, desta
forma, solapava nas suas bases as relações escravistas, criando uma galáxia de
desajustes desconhecida pelos dirigentes políticos da época.

Florestan Fernandes também expõe formas de resistência usadas pelos escravos, ao


mesmo tempo, os castigos impostos aos rebeldes.

O desmazelo, o descuido e o afrouxamento no trabalho; a tentativa de suicídio, de


aborto ou de fuga; a rebelião e o ataque ao senhor ou aos seus prepostos. A
documentação demonstra que tais eclosões de desajustamentos e conflitos sociais,
inerentes ao próprio regime servil brasileiro, ocorreram abundantemente em São
Paulo. Em conseqüência, o recurso aos castigos corporais, às torturas, ao tronco, aos
capitães do mato e à repressão policial, não foi aqui menos intenso que em outras
regiões do país. (BASTIDE; FERNANDES, 1955, p. 89).

Segundo Moura (1981), os quilombos não foram um fenômeno espontâneo.


Espalharam-se quilombos em todo o território brasileiro durante o período em que a
escravidão existiu, de diferentes tamanhos e com organicidade própria, porém, de forma
coletiva.

Esses quilombos tinham vários tamanhos e se estruturavam de acordo com o seu


número de habitantes. Os pequenos quilombos possuíam uma estrutura muito
simples: eram grupos armados. As lideranças, por isto, surgiam no próprio ato da
fuga e da sua organização. Os grandes, porém, já eram muito mais complexos. O de
Palmares chegou a ter cerca de vinte mil habitantes e o de Campo Grande, em Minas
Gerais, cerca de dez mil ou mais. Igual número tinha o Ambrósio, também naquele
Estado. (MOURA, 1981, p. 16-18).

A formação dos quilombos resultou numa das principais resistências organizadas dos
escravos negros. Segundo Priore e Venâncio (2016, p. 59), “Palmares foi o maior quilombo
colonial, nascido no bojo das guerras do açúcar”, porém, antes dele, movimentos de
resistência já haviam se organizado ainda na África:
42

Entre 1568 e 1573, por exemplo, a conhecida como Longa Marcha dos Jaga, que
reuniu milhares de guerreiros, homens e mulheres, para lutar contra o invasor
português, teve como pontos de apoio acampamentos fortificados denominados
kilombos. Deles emanava uma forte organização política, religiosa e militar, capaz
de agir em vastas regiões. Ao longo de suas expedições, invadiram e devastaram o
Congo; seu objetivo era a destruição dos reinos aliados dos europeus. Na Guiné,
atuaram com o mesmo propósito, os bijagós. Na América do Norte, Central e do Sul,
os revoltosos intitulavam-se palenques, mambises, cumbes, saramakas, cimarrones,
mocambolas ou quilombolas.

O quilombo dos Palmares apresentava uma estrutura social e organizativa que garantia
desde a organização militar, a produção e autossustentação. Com tarefas específicas a cada
membro, garantia a segurança, a organicidade, a estabilidade e a cultura própria do quilombo.
Palmares tinha, como principais lideranças, Ganga Zumba, Zumbi dos Palmares e Dandara.
Segundo Vargas (2007, p. 184), o quilombo dos Palmares, sobreviveu por quase um
século, combatendo sempre, e reconstituindo-se depois de cada confronto. “Ao final,
concentrava cerca de 30 mil negros em diversas comunidades e dominava uma enorme área
encravada na região mais rica da colônia, entre Pernambuco e a Bahia. Sua destruição exigiu
armar um exército de 7 mil soldados, chefiado pelos mais experimentados homens de guerra
de toda a colônia, principalmente paulistas.”

Em 1685, o bandeirante paulista Domingos Jorge Velho pedia autorização para


conquistar os indígenas da capitania de Pernambuco. Em vez de usá-lo contra os
bugres, as autoridades decidiram lançá-lo contra Palmares. Afinal, dizia-se dos
paulistas, na época, ser “gente bárbara e indômita que vive do que rouba”. Seriam
bárbaros contra bárbaros; ladrões contra ladrões. Um acordo sobre o destino dos
cativos e das terras palmarinas foi selado entre o governador João da Cunha Souto
Maior e o bandeirante. O alvo era a destruição do quilombo que resistia havia cem
anos. Como prêmio, Velho podia reivindicar os prisioneiros de guerra, fazendo jus à
tradição da guerra justa (possuía-se o que se conquistasse em batalhas militares). Em
fevereiro de 1694, depois de 42 dias sitiado, a cerca real do Macaco caiu. Milhares
de quilombolas morreram, outros tantos foram capturados e vendidos para fora da
capitania. Zumbi, que conseguira escapar, foi capturado no dia 20 de novembro de
1695; executado, teve a cabeça exposta em praça pública. Era uma advertência:
escravos deviam obedecer, e não desafiar o sistema escravista. (PRIORE;
VENANCIO, 2016).

Ribeiro (2006) questiona a característica de cordialidade atribuída ao povo brasileiro,


esta que, segundo ele, faria de nós um povo por excelência gentil e pacífico. Será assim?
Questiona o autor. E prossegue, “a feia verdade é que conflitos de toda a ordem dilaceraram a
história brasileira, étnicos, sociais, econômicos, religiosos, raciais etc. O mais assinalável é
que nunca são conflitos puros. Cada um se pinta com as cores dos outros.” (RIBEIRO, 2006,
p. 152).
O autor destaca ainda lutas, como: Cabanos (guerras entre lusitanos e caboclos);
43

Palmares (guerra entre negros fugidos e senhores de escravos); Canudos (guerra entre pobres
e fazendeiros). Nesse contexto, o autor analisa três “ordens de tensão”: inter-raciais, classista
e interétnico:

Assim, a luta dos Cabanos, contendo, embora, tensões inter-raciais (brancos versus
caboclos), ou classistas (senhores versus serviçais), era, em essência um conflito
interétnico, porque ali uma etnia disputava a hegemonia, querendo dar sua imagem
étnica à sociedade. O mesmo ocorre em Palmares, tida frequentemente como uma
luta classista (escravos versus senhores) que se fez, no entanto, no enfrentamento
racial, que por vezes se exibe como seu componente principal. Também os
quilombolas queriam criar uma nova forma de vida social, oposta àquela de que eles
fugiam. Não chegaram a amadurecer como uma alternativa viável ao poder e à
regência da sociedade, mas suas lutas chegaram a ameaçá-las. […] Um terceiro
exemplo é Canudos, que também mostra essas três ordens de tensão. A classista
prevalece porque os sertanejos, sublevados pelo Conselho, combatiam, de fato, a
ordem fazendeira, que, condenando o povo a viver num mundo todo dividido em
fazendas, os compelia a servir a um fazendeiro ou a outro, sem jamais ter seu pé-de-
chão. Em consequência, não tinham qualquer possibilidade de orientar seu próprio
trabalho para o atendimento de suas necessidades. Mas lá estavam pulsando os
conflitos raciais e outros, inclusive o religioso. (RIBEIRO, 2006, p. 152).

Segundo Quijano (2005, p. 266), a abolição dos escravos nos países da América
Latina, “não foi para assalariá-los, mas para substituí-los por trabalhadores imigrantes de
outros países, europeus e asiáticos.” O Brasil foi o último país da América Latina a abolir a
escravidão negra, foram 350 anos desde a chegada do primeiro navio negreiro. Pelos registros
oficiais, a Lei Aurea foi assinada no dia 13 de maio de 1888, pelas mãos da princesa Isabel. É
necessário destacar, que esse processo foi lento, cruel, de muita resistência e lutas, não veio
para compor uma sociedade igualitária, justa e liberta, foi parte de uma construção política e
econômica, que, ao final, não alterou as péssimas condições de vida dos negros, os quais não
tiveram qualquer tipo de reparação, indenização ou política social, foram jogados às margens,
nas periferias das grandes cidades e campo, sem alternativa mínima de sobrevivência. Esse
período foi de construção das bases da sociedade capitalista, racista e patriarcal, seguindo no
bojo da colonialidade e firmando a sociabilidade desigual.

[…] no Brasil da segunda metade do século passado [19], quando se iniciava o auge
do café, o fato de que o tráfico de escravos tenha sido suprimido em 1850 fez a mão
de obra escrava tão pouco atrativa para os proprietários de terras do Sul que estes
preferiram apelar para o regime assalariado, mediante a imigração europeia, além de
favorecer uma política no sentido de suprimir a escravidão. Recordemos que uma
parte importante da população escrava encontrava-se na decadente zona açucareira
do Nordeste e que o desenvolvimento do capitalismo agrário no Sul impunha sua
liberação, a fim de constituir um mercado livre de trabalho. A criação desse
mercado, com a lei da abolição da escravatura em 1888, que culminava uma série de
medidas graduais nessa direção (como a condição de homem livre assegurada aos
filhos de escravos etc.), constitui um fenômeno dos mais interessantes; por um lado,
definia-se como uma medida extremamente radical, que liquidava com as bases da
sociedade imperial (a monarquia sobreviverá pouco mais de um ano à lei de 1888) e
44

chegava inclusive a negar qualquer tipo de indenização aos antigos proprietários de


escravos; por outra parte, buscava compensar o impacto de seu efeito, por meio de
medidas destinadas a atar o trabalhador a terra (a inclusão de um artigo no código
civil que vinculava à pessoa as dívidas contraídas; o sistema de “barracão”,
verdadeiro monopólio do comércio de bens de consumo exercido pelo latifundiário
no interior da fazenda etc.) e da outorga de créditos generosos aos proprietários
afetados. (MARINI, 2000, p. 27-28).

Do período colonialista até a consolidação do modo de produção capitalista, os


Estados da América Latina alicerçaram-se num poder oligárquico, tanto na produção
econômica quanto nas relações políticas, estabelecendo, assim, relações desiguais e
contraditórias entre periferia e potências da época. Segundo Galeano (2009, p. 151), tais
alicerces constituíram uma burguesia com raízes liberais e dependentes do capital
internacional: “as burguesias dessas terras nasceram como simples instrumento do capitalismo
internacional, prósperas peças da engrenagem mundial que sangrava as colônias e
semicolônias.”
Florestan Fernandes (1975) evidencia que a dominação externa se faz a partir de
alianças entre as burguesias nacionais − “estruturas de poder nacionais eficientes” − e os
centros hegemônicos do capitalismo − “organização internacional de poder.” Diferenciam-se
as situações em cada país, porém, uma vez que:

Nenhum país possui uma economia homogênea e potencialidades organizadas de


desenvolvimento auto-sustentado efetivo. A dominação externa, em todas as suas
formas, produz uma especialização geral das nações como fontes de excedente
econômico e de acumulação de capital para as nações capitalistas avançadas.
(FERNANDES, 1975, p. 20).

No século XVIII e início do XIX surgiram líderes durante o período das lutas pela
independência na América Latina, entre os quais se destacam três revolucionários. Simón
Bolívar (1783-1830). Esse foi conhecido como “o libertador”, comandou a luta pelo fim da
colônia venezuelana, defendendo e organizando o povo mestiço da “Pátria Grande”, termo
usado para unificar o território dentro do bojo de lutas contra-hegemônicas. José Artigas
(1764-1850), uruguaio, “encarnou” a revolução agrária; Galeano refere-se a ele como
“caudilho”, pois encabeçou massas populares de territórios que hoje correspondem ao
Uruguai e às províncias argentinas de Santa Fé. José de San Martín (1778-1850), argentino,
considerado libertador do Chile e do Peru, liderou lutas contra as tropas espanholas, da qual
saiu vitorioso em 1816 (GALEANO, 2009, p. 151).
A Pátria Grande de Bolívar refere-se a um contexto de libertação para além-fronteiras,
o processo histórico e a dinâmica do desenvolvimento da América Latina é pertencente a toda
45

a gama de relações sociais e de forças produtivas que são inerentes ao processo de


desenvolvimento do capitalismo mundial, e que impele a organização dos povos pela
libertação do julgo colonialista e no contexto anterior à independência, comandados pelos
chamados “libertadores da América”.
Entre os precursores das lutas libertadoras, destaca-se Simón Rodríguez (“El loco”),
do qual Simón Bolívar foi ilustre discípulo. Ambos colocaram suas vidas em favor da
libertação, o primeiro por meio da educação popular de meninos e meninas, o segundo pela
organização dos povos indígenas e mestiços. Simón Bolívar recebeu profunda influência das
ideias subversivas de seu mestre. Em vários momentos da vida, juntos compartilharam sonhos
de libertação dos povos da América Latina.
Num reencontro histórico, no monte Sacro em Roma, Simón Rodríguez ouviu de
Bolívar um juramento pela libertação do território e todo povo Ameríndio. No relato de
Rodríguez:

Húmedos los ojos, palpitante el pecho, enrojecido el rosto, con una animación case
febril me dijo: “Juro delante de usted, juro por el Dios de mis padres; juro por ellos;
juro por mi honor; y juro por la patria, que no daré descanso a mi brazo, ni reposo
a mi alma, hasta que haya roto las cadenas que nos oprimen por voluntad del poder
español”. (RODRÍGUEZ, 2004, p. 232).

Os estados nacionais na América Latina formam-se no antagonismo entre o avanço do


capital internacional e as lutas contra-hegemônicas pela libertação. Os líderes históricos dos
processos revolucionários da América Latina não falavam de nações específicas, mas de uma
unidade mestiça, que ocorreria por várias práticas populares, especialmente, da educação
política, defendida por Simón Bolívar.
Segundo González Casanova (2006), os processos de independência na América
Latina não alteraram a estrutura social, e, portanto, não houve descolonização. Para o autor, as
relações sociais de dominação e exploração prosseguiram, firmadas na heterogeneidade
cultural, nas relações econômicas e nas diferenças epistêmicas.

Neste sentido, o processo de independência dos Estados na América Latina sem a


descolonização da sociedade não pôde ser, não foi, um processo em direção ao
desenvolvimento dos Estados-nação modernos, mas uma rearticulação da
colonialidade do poder sobre novas bases institucionais. Desde então, durante quase
200 anos, estivemos ocupados na tentativa de avançar no caminho da nacionalização
de nossas sociedades e nossos Estados. Mas ainda em nenhum país latino-americano
é possível encontrar uma sociedade plenamente nacionalizada nem tampouco um
genuíno Estado-nação. A homogeneização nacional da população, segundo o modelo
eurocêntrico de nação, só teria podido ser alcançada através de um processo radical
e global de democratização da sociedade e do Estado. Antes de mais nada, essa
democratização teria implicado, e ainda deve implicar, o processo da descolonização
das relações sociais, políticas e culturais entre as raças, ou mais propriamente entre
46

grupos e elementos de existência social europeus e não europeus. Não obstante, a


estrutura de poder foi e ainda segue estando organizada sobre e ao redor do eixo
colonial. A construção da nação e sobretudo do Estado-nação foram conceitualizadas
e trabalhadas contra a maioria da população, neste caso representada pelos índios,
negros e mestiços. A colonialidade do poder ainda exerce seu domínio, na maior
parte da América Latina, contra a democracia, a cidadania, a nação e o Estado-nação
moderno. (QUIJANO, 2005, p. 267).

Este é precisamente o contexto de uma perspectiva decolonial. Ao identificar que o


fim do colonialismo não significou a ruptura das relações desiguais de poder, mas
reorganizou-as na colonialidade global de poder, somos impelidos a dar vida a um movimento
contínuo de pesquisa, debates e lutas em torno da decolonialidade. Esta como perspectiva
ampla de emancipação e libertação da colonialidade do poder, do saber e do ser.

2.2.3 Industrialização e imperialismo

No final do século XIX, a América Latina inicia o processo de industrialização,


enquanto o capitalismo mundial avança e os países centrais vivem o capitalismo
concorrencial. Enquanto os países centrais entravam num processo de mudanças e avanços no
capitalismo, a América Latina seguia com uma economia tardia, atrelada àqueles pela
exploração (NETTO, 2011).
O estado liberal se caracterizou pelo desenvolvimento tecnológico, econômico e
político, assim como reforçou a “questão social” como condição para exploração e
empobrecimento de grande massa da população. Para Netto (2011, p. 42), esse foi um
“fenômeno novo, sem precedentes na história anterior conhecida.”

Se não era inédita a desigualdade entre as várias camadas sociais, se vinha de muito
longe a polarização entre ricos e pobres, se era antiguíssima a diferente apropriação
e fruição dos bens sociais, era radicalmente nova a dinâmica da pobreza que então se
generalizava. Pela primeira vez na história registrada, a pobreza crescia na razão
direta em que aumentava a capacidade social de produzir riquezas. Tanto mais a
sociedade se revelava capaz de progressivamente produzir mais bens e serviços,
tanto mais aumentava o contingente de seus membros que, além de não ter acesso
efetivo a tais bens e serviços, viam-se despossuídos das condições materiais de vida
de que dispunham anteriormente. […] A análise marxiana fundada no caráter
explorador do regime do capital permite, muito especialmente, situar com
radicalidade histórica a “questão social”, isto é, distingui-la das expressões sociais
derivadas da escassez nas sociedades que precederam a ordem burguesa. A
exploração não é um traço distintivo do regime do capital (sabe-se, de fato, que
formas sociais assentadas na exploração precederam largamente a ordem burguesa);
o que é distintivo desse regime é que a exploração se efetiva num marco de
contradições e antagonismos que a tornam, pela primeira vez na história registrada,
suprimível sem a supressão das condições nas quais se cria exponencialmente a
riqueza social. Ou seja: a supressão da exploração do trabalho pelo capital,
constituída a ordem burguesa e altamente desenvolvidas as forças produtivas, não
47

implicam – bem ao contrário! – redução da produção de riquezas. (NETTO, 2011, p.


42-43, 46).

Reportando ao contexto brasileiro, Paiva (2015, p. 121) evidencia que a “efervescência


intelectual e de agitações sociais da década de 1920 refletia as transformações da sociedade
brasileira nos anos que sucederam a Primeira Guerra e a consequente luta pela recomposição
do poder político, ainda em mãos do grupo agrário-comercial, dentro dos princípios
democráticos-liberais e republicanos.”
Em 1922, a partir do desenvolvimento de experiências soviéticas, o movimento
operário funda o Partido Comunista (PCB), com a participação de um grupo de
anarcossindicalistas. O partido constrói um bloco operário que, por conseguinte, incorpora o
campesinato, surgindo desse processo o Bloco Operário e Camponês (BOC) (SAVIANI,
2013).
Vale ressaltar que a crescente urbanização e industrialização no início do século XX,
resultado do impulso da acumulação capitalista gerada pela cafeicultura, alarga o aspecto das
chamadas “classes médias”, que encontram expressão no movimento tenentista. Com apoio
popular, as bases sociais do domínio da oligarquia cafeeira começam a ruir. Saviani (2013),
menciona a ruptura entre as demais oligarquias e a unidade do núcleo, formado por uma
parcela ponderável das forças armadas e forças sociais com respaldo das classes médias
urbanas, e o movimento dos trabalhadores na organização do BOC, que se tornou vitorioso na
revolução de 1930.
A crise de 1929 enfraqueceu as atividades exportadoras e fez com que os Estados
latino-americanos se fechassem internamente, focalizados em investimento nacional e no
crescimento do capitalismo periférico. Assim, o processo de industrialização continuava na
América Latina, mas essa nova estratégia foi insuficiente para que o capitalismo periférico
avançasse ao mesmo patamar dos países centrais.
A região latino-americana, com grande dependência econômica em relação à região
norte-americana, vê-se obrigada a fabricar seus produtos que antes comprava com o capital da
venda de matérias-primas e parte da produção agrícola então exportada. Segundo Cano
(2009), a base produtiva econômica do continente era, fundamentalmente, exportadora, com
incipiente grau de industrialização, setor esse de maior destaque na Argentina, Brasil e
México, sendo que a Argentina já apresentava um alto grau de urbanização. O autor esclarece
que “os demais países eram predominantemente rurais, e em todos predominava o poder
político da oligarquia rural.” (p. 604)
Esse processo muda as estruturas econômicas do Continente. Cano (2009, p. 603)
48

argumenta que a crise de 1929:

[…] reforçou um movimento de transição das estruturas econômicas, políticas e


sociais que já dera alguns passos iniciais na década de 1920, desaguando, já no
início da década de 1930, numa “ruptura com o passado”, alterando o padrão de
acumulação e instaurando um efetivo processo de industrialização e urbanização.

Segundo Ianni (1975), na década de 1930 a América Latina é marcada por processos
de transformações nas relações econômicas, é a decadência da economia agrário-mercantil. A
política governamental precisa responder a outras demandas, assim nasce o populismo, que
trouxe avanços para os trabalhadores, enquanto o capitalismo avança lentamente.
Industrializavam-se as nações que antes tinham sua economia somente a partir do latifúndio.
A América Latina vive mudanças na política, tendo como destaque a eleição de
governos que seriam chamados de populistas, dentre os quais se destacaram: o argentino Juan
Domingo Perón (1946-1955 e 1973-1974); o chileno Carlos Ibáñez del Campo (1927-1931 e
1952-1958); o brasileiro Getúlio Vargas (1930-1945 e 1951-1954); o mexicano Lazaro
Cárdenas (1934-1940); o peruano Fernando Bealunde Terry (1963-1968 e 1980-1985); e o
equatoriano José María Velasco Ibarra (1934-1935, 1944-1947, 1952-1956, 1960-1961 e
1968-1972) (GOULART, 2017, p. 68).
O conceito de populismo está relacionado a governos com características
personalistas, segundo Botelho (2013), tendo correlação com o período de transição na
economia agrário-exportadora, sob dominação oligárquica, para uma industrialização
incipiente apoiada no mercado interno e na urbanização crescente. Segundo o autor, no curso
dessa transição aparecem os movimentos populistas, que se caracterizariam por uma relação
direta entre o líder e as massas. Expressa ele ainda que:

Com a crise da economia agrário-exportadora e, por consequência, o colapso da


dominação oligárquica, nenhuma classe estaria em condições de se impor sobre as
outras. Ao mesmo tempo, haveria a necessidade de uma nova combinação de forças
para organizar e exercer o poder e para reformular as relações de dependência
externa. A coalizão de grupos formada em torno do líder populista seria reflexo
dessa nova situação. (BOTELHO, 2013, p. 5).

Nas palavras de Ianni (1989, p. 9):

Sob vários aspectos, o populismo latino-americano parece corresponder a uma etapa


específica na evolução das contradições entre a sociedade nacional e a economia
dependente. A natureza do governo populista (que é onde se exprime mais
concretamente o caráter do populismo) está na busca de uma nova combinação entre
as tendências do sistema social e as determinações da dependência econômica.
Nesse contexto, as massas assalariadas aparecem como um elemento político
dinâmico e criador. [...] o colapso das oligarquias liberais ou autoritárias constituídas
49

no século XIX, juntamente com as crises do imperialismo europeu e norte-


americano, aderem novas possibilidades à organização do aparelho estatal, isto é, do
Estado com a sociedade nacional. Aqui as massas aparecem como um elemento
político importante e às vezes decisivo.

Sobre o processo de industrialização, Ianni (1975) afirma que o Brasil competia com
países de tecnologia avançada e, portanto, teve de abrir as portas para o investimento de
capital internacional. Os norte-americanos dominaram os investimentos, chegando a ter 70%
do capital internacional investido no país. O antagonismo presente na indústria nacional com
o capital externo esteve presente durante o governo de Vargas. Exemplo disso foi a criação da
Petrobras, que, inclusive, tinha monopólio estatal para sua exploração, ou seja, somente o
Estado poderia explorar o petróleo nacional, sem nenhuma influência do capital americano.
Em termos contra-hegemônicos no período, emergem conflitos tanto urbanos quanto
rurais. Em nível de América Latina, Galeano (2009) destaca a revolução mexicana (1910),
que foi liderada por Emiliano Zapata, que “pôs em prática, em sua comarca revolucionária do
sul do México, uma profunda reforma agrária.” Segundo o autor, depois de alguns anos do
governo do ditador de Porfirio Díaz, que nas últimas décadas do século XIX provocou tempos
de espoliação feroz às comunidades agrárias, “um caudilho do campo encabeçou desde então
a insurreição no sul: Emiliano Zapata [...] o mais puro dos líderes da revolução, o mais leal à
causa dos pobres.” O México levantou-se em armas (GALEANO, 2009, p. 156).
Também no início do século XX ocorre um dos maiores conflitos camponeses do
Brasil, a Guerra do Contestado. Os camponeses caboclos que habitavam a região se
revoltaram contra o governo que, no período, promovia a concentração de terra em favor de
grandes fazendeiros. Ao mesmo tempo, o governo federal aliou-se à Companhia Brazil
Railway, encarregada da construção da estrada de ferro São Paulo-Rio Grande do Sul.8 O
poder hegemônico estava alicerçado pelas relações entre o governo nacional, governos
estaduais e poderes locais.
A associação de fazendeiros com o governo para a exploração camponesa consiste em
uma prática política local que Machado (2004) chama de coronelismo.

O coronelismo é caracterizado pelos historiadores e demais cientistas sociais como


um fenômeno político essencialmente ligado ao período da Primeira República

8
A construção da estrada de ferro expulsou os posseiros (caboclos) que ocupavam as terras devolutas. No
processo de negociação, tais terras foram concedidas pelo governo para pagamento da estrada de ferro. Segundo
Domingues (2005, p. 41-42), “a expulsão dos posseiros somou-se à violência da Companhia Brazil Railway
contra os trabalhadores por ela contratados”, a empresa trouxe para a região do contestado cerca de 4 a 8 mil
homens do Rio de Janeiro e Pernambuco para trabalharem na construção da estrada de ferro, havia a promessa de
que após a construção seriam levados de volta aos seus estados de origem; porém, esses trabalhadores foram
abandonados, uma vez que a lei estava na mão dos opressores, não tinham a quem recorrer.
50

(1989-1930). Mas podemos considerar que esta prática política – que expressou o
poder local dos grandes fazendeiros – vigorou em muitas regiões do país, tanto antes
da República como muito após a chamada Revolução de 1930. Derivada do termo
“coronel”, a mais alta patente concedida pela Guarda Nacional, o coronelismo, ou
poder local dos grandes proprietários rurais e comerciantes, encontrou no primeiro
sistema político republicano amplas condições de autonomia, adequadas ao
exercício de mando local e regional, até mesmo como base para as situações (e
oposições) políticas estaduais. (MACHADO, 2004, p. 90-91).

Segundo Machado (2004), neste período outra empresa entra no cenário, a Lumber,
que trazia imigrantes de várias nacionalidades. Tratava-se de um processo de branqueamento
da população que subjugou os sertanejos, agravando a situação de miséria e marginalidade
dos povos.
A Guerra do Contestado, assim como a de Canudos, foi uma revolta messiânica, ao
mesmo tempo uma luta camponesa de caráter classista, de ordem econômica e política.
Destacam-se como principais líderes dos redutos do Contestado o Monge José Maria,
Adeodato Manoel Ramos, Chica Pelega e Maria Rosa. Todos foram assassinados em
confrontos com o exército republicano.
A imigração europeia propiciou o surgimento de outras formas de pensar a partir dos
trabalhadores. Para Saviani (2013), o desenvolvimento do movimento operário aconteceu sob
a égide das ideias socialistas, ainda na década de 1890; nas duas primeiras décadas do século
XX, foram as ideias anarquistas (libertárias); e, na década de 1920, as ideias comunistas.
Tanto as ideias socialistas quanto as anarquistas já circulavam na metade do século XIX,
ainda no regime monárquico e escravocrata.9 Tais ideias eram provenientes do movimento
operário europeu. Após a queda da Comuna de Paris, muitos “communards” tiveram de
emigrar para escapar da perseguição na Europa e vieram para a América Latina.
As correntes anarquistas e anarcossindicalistas espalharam pelo Brasil os ideais
libertários e contra-hegemônicos. Saviani (2007) menciona o fluxo imigratório em relação à
procedência de quadros militantes, que usam jornais, revistas, sindicatos livres e ligas
operárias para a construção de forças contra-hegemônicas, estas que contribuirão em outros
momentos da história da América Latina e do Brasil.
Paiva (2015, p. 121) menciona a união entre civis e militares e as revoltas
subsequentes. Coloca que a “questão social” assume proporções assustadoras, sendo tratada
como “questão de polícia” e se constituindo em uma das grandes preocupações dos grupos

9
Segundo Saviani (2013, p. 181), neste momento surgiram jornais, como O socialista da Província do Rio de
Janeiro. Há também registros de publicações, como Anarquista Fluminense, de 1835, e Grito Anarquial, de
1849. De acordo com o autor, “surgiram, também, no ocaso do Império e início da República, colônias
anarquistas, entre as quais a mais famosa foi a Colônia Cecília”, por iniciativa de imigrantes italianos.
51

dominantes. A unidade campo e cidade forçam processos contra-hegemônicos à política


vigente e participa ativamente do processo que provoca a Revolução de 1930.
Nesse período, também acontecem várias revoltas do movimento tenentista, sob o
comando de Carlos Prestes, que se uniu ao BOC, respaldado na conjuntura política. Os
interesses do tenentismo coincidiam com as aspirações da classe média urbana, que defendia
o voto secreto, as reformas sociais e econômicas, mas não havia interesse em outro modo de
produção, assim como defendia o BOC e o PCB.
Da correlação de forças da Revolução de 1930 não houve nenhum grupo com
legitimidade para o controle governamental. Segundo Saviani (2013), do processo teria
emergido do movimento vitorioso um “Estado de compromisso”, que, nesse período, foi
sustentado pelo exército. Este, por sua vez, passou a operar como unificador das várias
frações da classe dominante (SAVIANI, 2013, p. 191).
Ainda, segundo Saviani (2013), nesse período o processo de urbanização e
industrialização avançou celeremente com base no modelo de “substituição de importação”.
De acordo com o autor, “o desenvolvimento do capitalismo implicou o deslocamento do eixo
da vida societária do campo para a cidade e da agricultura para a indústria, ocorrendo,
inclusive, um progressivo processo de urbanização do campo e industrialização da
agricultura.” (SAVIANI, 2013, p. 191).
O autor supracitado conclui que “se o que resultou politicamente da Revolução de
1930 foi um ‘Estado de compromisso’, caberia considerar que esse Estado se pôs como
agente, no plano governamental, da hegemonia da burguesia industrial.” (SAVIANI, 2013, p.
193).
Segundo Paiva (2015), todo o período marcado pelo poder pessoal de Vargas, apoiado
no Exército, “assiste ao progressivo esmagamento dos movimentos políticos radicais e à perda
da identidade dos grupos atuantes da Revolução de 30 através da promoção de alianças
políticas e da negociação de cargos, comandada pelo executivo altamente centralizado.”
(PAIVA, 2015, p. 123).
O Brasil, a partir dos anos de 1940, com o aumento da população urbana, a perda da
hegemonia dos latifundiários cafeicultores e a ascendência da burguesia industrial brasileira
(com uma nova estruturação econômica no país, configurando outra realidade de acúmulo do
capital e bens de produção), passa a competir timidamente com países com tecnologias mais
avançadas. Porém, é nesse período que o capital internacional avança e o governo getuliano
dá espaço para a internacionalização da economia nacional (IANNI, 1975, p. 78).
52

Em tal período se implementa a política populista das massas, que emerge com
características de participação. A classe trabalhadora passa a ter a possibilidade de contribuir
em algumas decisões políticas, porém, permanece sob o comando das classes burguesas.
Octavio Ianni (1975, p. 59) afirma que “em suma, a política de massas funcionou como uma
técnica de organização, controle e utilização da força política das classes assalariadas,
particularmente o proletariado.”
Com os dez anos da ditadura de Vargas, na sequência do contexto histórico brasileiro
supradescrito, a realidade do campo era de concentração da propriedade da terra, o que
resultou em mobilizações no campo em vários locais do país. O Partido Comunista destacava-
se no cenário político de organização das massas, tanto urbanas quanto rurais.
No clima de organização popular de camponeses, ainda na década de 1940, surgem as
ligas camponesas no Brasil. Segundo Oliveira (1994, p. 26-27), elas nasceram no contexto de
um estado de tensões e injustiças a que estavam submetidos os trabalhadores do campo, diante
das profundas desigualdades nas condições gerais do desenvolvimento capitalista no país. Foi
a partir delas que a luta camponesa ganhou dimensão nacional, espalhando-se rapidamente
pelo Nordeste. Tiveram apoio do Partido Comunista do Brasil e severa oposição da Igreja
Católica.
Segundo Stédile (2006), as Ligas Camponesas “foram poderoso movimento de
massas, com enorme capacidade de mobilização, para defender a urgência da realização da
reforma agrária com a palavra de ordem: reforma agrária na lei ou na marra.” Houve lutas
camponesas no campo com ocupações de terras, as quais convergiam com greves e
manifestações nas grandes cidades, ambas pelas reformas de base. Os conflitos no campo,
nesse período, com influência do Partido Comunista, deixaram marcas na história.10
Ainda na década de 1950, o povo organizado de Cuba reage ao avanço do
imperialismo sobre seu território. No dia 1º de janeiro de 1959 entra nas ruas de Havana o
Movimento 26 de Julho, vindo da Sierra Maestra. Revolucionários, sob o comando de Fidel
Castro e Che Guevara, destituem o governo de Fulgencio Batista. A Revolução Cubana

10
Na década de 1950, o governo do Paraná cedeu terras de cerca de mil e quinhentas famílias camponesas que
viviam na região do sudoeste do Estado a grandes proprietários. A reação dos camponeses organizados foi
imediata, emergindo a guerrilha de Porecatu, tendo como um dos líderes José Billar. Segundo Priori (2012), “o
embrião da resistência armada dos camponeses de Porecatu tem origem na fundação de Ligas Camponesas na
região.” Vale destacar que não foi o PCB quem determinou a luta armada de Porecatú. Segundo Priori (2012),
“quando o Partido chegou à região, a intenção pela luta armada já era uma realidade manifesta.” Na visão do
autor, o PCB acoplou-se ao movimento dos posseiros de Porecatu, à sua auto-organização. A guerrilha de
Porecatú segue até 1951, quando centenas de camponeses armados sobreviventes dos conflitos foram
desarmados pela força policial. Nesse período assumiu um novo governo, que tinha supostas intenções de
resolver o problema agrário da região.
53

reacende a esperança da esquerda mundial, consolidando um pensamento revolucionário


internacional.
A revolução cubana se caracterizou como uma das principais lutas contra-
hegemônicas, anti-imperialistas e anticolonialistas do mundo. Para Florestan Fernandes
(2012, p. 116), “a substância democrática e popular da revolução cubana não nascia somente
de um ideário nacionalista e patriótico. Ela provinha da estrutura da situação revolucionária e
do caráter da guerra civil, que envolviam na destruição do Estado neocolonial a neutralização
da dominação externa.” Para esse autor:

[...] os companheiros “humildes”, os milhões de deserdados e esquecidos


convertiam-se na razão de ser de uma guerrilha que não poderia fechar-se sobre um
estreito circuito político-militar. Por isso, ela aparece, independentemente dos
movimentos políticos a que se vinculasse, como o equivalente do partido de massas
revolucionário e tem de preencher funções políticas análogas. […] Não há um
“repouso do guerreiro”. […] O “espírito guerrilheiro” teria de inspirar um partido
revolucionário criado depois da conquista do poder e, o que era mais complexo,
deveria delimitar até onde chegaria a revolução cubana através do novo Estado, da
nova sociedade e do novo homem. (FERNANDES, 2012, p. 116-124).

Na era de Juscelino Kubitschek (JK) inicia-se um distanciamento das políticas


econômicas de Vargas, mas não se abandona a democracia populista, ou seja, os direitos
trabalhistas seguem como parte da política, o que, de certo modo, começa a dividir o poder
político do poder econômico (IANNI, 1975).
No Brasil, no início da década de 1960, as organizações populares dão sinais de
acirramento das lutas. A classe trabalhadora organizava-se em grupos para discussões
políticas; sindicatos urbanos e rurais se organizavam; a educação libertadora de Paulo Freire e
de outros educadores consolida-se; a própria Igreja latino-americana, por meio de ação social
da igreja, contribui na construção da consciência das classes subalternas (IANNI, 1975).
De acordo com Saviani (2013, p. 316-317), “a ideia-força do desenvolvimento
nacional aliada à política populista, incitava a mobilização das massas.” Segundo o autor,
havia um clima favorável que possibilitou a criação dos Centros Populares de Cultura (CPCs),
ligados à União Nacional dos Estudantes (UNE), os Movimentos de Cultura Popular (MCPs),
liderados por Paulo Freire, e o Movimento Popular de Base (MEB), criado pela Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) –, este coordenado por leigos que deram ao
“movimento um caráter de conscientização e politização do povo.” Surge, nesse período, a
54

Educação Popular Libertadora, defendida por Paulo Freire, com raízes intelectuais da própria
região Ameríndia.11
As iniciativas populares tinham o respaldo de debates e estudos em torno da realidade
brasileira efetuados no âmbito do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) 12 e do
Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE).13 Estes, por sua vez, seguiam reflexões
feitas por pensadores cristãos e marxistas do pós-guerra europeu.
Todo esse processo convergiu com o Concílio Vaticano II e a Conferência de Medellín,
que propunham a doutrina social da Igreja. Nessa, leigos e leigas tornavam-se agentes de
trabalho de base nas comunidades, assim como protagonistas de um novo “jeito de ser Igreja.”
A igreja dos empobrecidos, cuja teologia se caracterizava pela libertação como centro de toda
a ação.
A Teologia da Libertação nasceu com o Concílio Vaticano II, onde surge a concepção
de Igreja dos pobres.14 Promovida pelo Papa João XXIII, entre os anos 1962 e 1965,
fundamentou diversos processos de luta e de resistência, assim como a criação de movimentos
sociais que se consolidaram durante a ditadura militar e no início da abertura democrática.

A articulação latino-americana da Teologia da Libertação ocorrera apoiada pelo


Celam (Conselho Episcopal Latino-Americano) criada por Dom Helder Câmara,
(que) realizou diferentes encontros latino-americanos das CEBs, e de educação
popular, possibilitando, assim, o contato e a articulação solidária entre organizações
e movimentos sociais. (BATISTA, 2014, p. 68).

Saviani (2013) sintetiza as expressões e organizações populares do período da seguinte


forma:

Apesar de suas diferenças e particularidades, esses movimentos tinham em comum o


objetivo da transformação das estruturas sociais e valorizando a cultura do povo
como sendo a autêntica cultura nacional, intensificavam-se com a visão ideológica
nacionalista, advogando a libertação do país dos laços de dependência com o
exterior. (SAVIANI, 2013, p. 318).

11
A educação popular libertadora será objeto da próxima seção da presente dissertação.
12
O ISEB foi criado no governo provisório do Presidente Café Filho. Segundo Oliveira (2016, p. 4), “o ISEB foi
institucionalizado por meio da DL 37.608, de 1955, como órgão vinculado ao então Ministério da Educação e
Cultura, sendo definido como um “curso de altos estudos sociais e políticos, de nível pós-universitário.” (LEX,
1955, p. 232).
13
O Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais CBPE foi vinculado ao Instituto Nacional de Estudos
Pedagógicos (INEP), órgão do MEC, dirigido na época por Anísio Teixeira (OLIVEIRA, 2016, p. 16).
14
A opção preferencial e solidária pelos pobres implicou, em primeiro lugar, para a Igreja uma conversão de
lugar social. Procura olhar a sociedade e seus conflitos a partir da ótica e da causa das grandes maiorias. Aí
aparece como prioritária a dimensão de mudança estrutural para propiciar a realização da justiça necessária para
a paz social. A partir dos pobres descobre a dimensão libertadora do Evangelho, que fala de um Reino que
começa já nesta terra sempre que se faça mais justiça e se construa mais fraternidade na sociedade (BOFF, 1986,
p. 152, grifo do autor).
55

Em 1º de abril de 1964, João Goulart (Jango) é obrigado a deixar a Presidência da


República, por meio de um Golpe civil-militar que tinha o apoio de empresários, meios de
comunicação e do governo norte-americano:

Jango percebeu que não eram grupos civis e militares minoritários que tentavam
golpear as instituições, como ocorrera em episódios anteriores. Era um movimento
conjunto das Forças Armadas com apoio de empresários, de amplos setores das
classes médias e dos meios de comunicação. O movimento ainda contava com os
governadores da Guanabara, de Minas Gerais, de São Paulo e do Rio Grande de Sul,
com suas polícias civis e militares. No Congresso Nacional, grande parte dos
parlamentares deu aval ao golpe. O Supremo Tribunal Federal calou-se diante da
crise política. Além disso, o movimento golpista tinha o apoio do governo
norteamericano. (FERREIRA; GOMES, 2007, p. 24).

Interesses econômicos internos e externos, atrelados ao capital estrangeiro,


ameaçavam todo o continente Americano com golpes civis/militares. Nas décadas de 1950 e
1960 a América Latina é mais uma vez golpeada, agora pelos regimes ditatoriais, na sua
maioria militares. Tais regimes potencializaram outro padrão de acumulação: o
desenvolvimento do capital ocorre pela expansão de transnacionais, expropriação de riquezas
naturais e intensificação da exploração da força de trabalho.
Para Rui Mauro Marini (1980, p. 17), “va unido a la acentuación del papel directivo
del Estado y al incremento considerable de los gastos militares, que se constituyen en escala
creciente en demanda de una oferta industrial que no puede basarse en la expansión del
consumo popular.” As ditaduras militares contribuíram para a modernização dos países
centrais e para a entrada do capital estrangeiro na América Latina. Os Estados desse território
funcionaram como eixo da acumulação capitalista e reforçaram a submissão dos países latino-
americanos, mantidos em “ordem” por meio da tortura, censura e violência (MARINI, 2000,
105).
Dos golpes militares da região, particularmente, o Brasil conta com uma elite militar,
que favoreceu decisivamente para o avanço do capital.

Em 1964, a situação é diferente: a elite militar que encabeça o golpe não só intervém
na luta de classes, mas também apresenta todo um esquema econômico-político, o
qual consagra definitivamente a fusão de interesses entre ela e o grande capital. Esse
esquema é o subimperialismo, a forma que assume o capitalismo dependente ao
chegar à etapa dos monopólios e do capital financeiro. (MARINI, 1974, p. 191-192).

Segundo Ianni (1975, p. 151), a política econômica a partir de 1964 configura-se no


que o autor denomina como “ideologia do desenvolvimento pela ideologia da modernização”,
promovendo a falência da economia nacionalista e associando-se ao capital internacional.
56

O governo militar de predominância autoritária liquidou a democracia populista. Esse


governo se caracterizou por diferentes formas de controle de forças contra-hegemônicas,
como, por exemplo, a perseguição a organizações políticas revolucionárias. Essa perseguição
não estava limitada aos partidos de esquerda, mas a organizações que, de alguma forma,
colocavam em risco planos e concepções do “novo governo” (IANNI, 1975).
Nesse contexto, para Ianni (1975), no âmbito político e cultural, tratava-se de instaurar
uma “identidade nacional” hegemônica associada ao status quo. Ou seja, ao mercado
capitalista de produção. Um exemplo foi a situação de empresas brasileiras que engrenaram
na nova concepção de competitividade, tanto no mercado interno quanto no externo. Muitos
que se opuseram a essa dinâmica entraram em falência, enquanto outros aderiram às empresas
internacionais e à ideologia vigente.
Segundo esse mesmo autor, o poder ditatorial modificava leis trabalhistas, retirando
direitos de trabalhadores e instaurando temor em grevistas. Dessa forma, propiciavam-se
condições que dificultavam possibilidades de revolta do proletariado e ascensão das massas.
Muitos sindicatos deixaram de atuar em defesa de direitos historicamente conquistados pelos
trabalhadores organizados, para se manterem no novo cenário econômico e político. O
sindicalismo era considerado um campo “perigoso”, por contribuir na articulação das massas
em favor de uma sociedade organizada em oposição à ideologia vigente (IANNI, 1975).
As Ligas Camponesas, nascidas antes de 1964, também sofreram investidas
coercitivas do regime. Segundo Oliveira (1994 p. 30), a perseguição levou ao
“desaparecimento de lideranças do movimento”, assim como “sua desarticulação foi
inevitável.”
Lutas contra a ditadura aconteciam no campo e nas grandes cidades por meio da
organização de diferentes setores da sociedade: por exemplo, operários, camponeses, jovens
de classe média de movimentos estudantis, grupos feministas, etc. Tais processos, assim como
a luta armada, constituíram-se em forças contra-hegemônicas do período ditatorial. No campo
destaca-se a luta armada da guerrilha do Araguaia.15

15
Dentro de um processo de expansão do latifúndio o governo ditador passou a expulsar posseiros da região do
Araguaia. Capangas a serviço dos latifundiários perseguiam de forma violenta as pessoas que tentavam resistir à
expropriação. A realidade da região, somada à conjuntura nacional, leva o PCdoB a organizar pessoas para o
movimento denominado Guerrilha do Araguaia. “A Guerrilha do Araguaia foi o maior acontecimento militar da
resistência armada ao golpe de 1964. Começou antes mesmo do AI-5, quando dezenas de homens, mulheres e
dirigentes partidários, vindos dos grandes centros do sul, sudeste e nordeste, principalmente, criaram uma força
de combate que se estabeleceu na região genericamente chamada de Araguaia, por causa do grande rio que
domina aquela geografia. Com adesão de camponeses locais, desenvolveram-se trabalho político e, depois, ação
militar, enfrentando numerosas forças do Exército, enviadas para lá a fim de exterminar a resistência. Implantado
no norte do país, esse movimento revolucionário foi pouco conhecido no seu tempo, obscurecido pela censura e
pelo isolamento. Só agora, mais de 40 anos depois, ganha a dimensão política que lhe corresponde.” (AMORIM,
57

As organizações de esquerda construíram espaços de formação política e treinamento


militar também nas cidades. Entre essas, destacam-se: a Ação Libertadora Nacional (ALN),
liderada por Carlos Marighela16; o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), cuja
direção máxima estava a cargo do jornalista e intelectual Mário Alves; o Movimento
Revolucionário 08 de outubro (MR-8); a Política Operária (Polop); e a Vanguarda Popular
Revolucionária (VPR), comandada pelo ex-capitão do Exército, Carlos Lamarca. Várias
outras organizações de menor de porte também marcaram referido cenário, como: Partido
Comunista Revolucionário (PCR); Movimento de Libertação Popular (Molipo); Movimento
Revolucionário Tiradentes (MRT); Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT);
Comando de Libertação Nacional (Colina), etc. (GORENDER, 1987; REIS FILHO, 1990).
No final dos anos 1970, apesar das torturas e do autoritarismo, o governo militar não
conseguiu impedir a emergência de movimentos populares de resistência, o ressurgimento de
organizações de esquerda e a volta dos exilados. Nesse cenário, matrizes pastorais, sindicais e
camponesas dão origem ao movimento social do período.

Matrizes vão dar origem ao movimento social na década de 70, a Igreja Católica, os
remanescentes das organizações de esquerda e o novo sindicalismo. [...] a prática
social da militância das pastorais e comunidades e a “Educação Popular” por ela
desenvolvida era o paradigma do período, influenciando e acolhendo os militantes
dispersos que só aí encontravam possibilidades de contato e trabalho político com
setores populares. (PEREIRA, 2006, p. 31).

Na década de 1980, no Brasil ocorreu um processo de consolidação de movimentos


sociais e organizações populares que produziram diferentes forças contra-hegemônicas de
resistência e enfrentamento. Nesse cenário, movimentos sociais urbanos e rurais não se
enquadravam nos partidos políticos da época e se constituíram em novos sujeitos sociais e
políticos. A tendência passava a ser, então, a delimitação de pautas táticas e estratégicas,
como: educação popular e do campo; reforma agrária; permanência dos jovens no campo;
feminismo popular; agroecologia; manifestações culturais; comunicação popular de
resistência, entre outras.

2014).
16
Segundo Sales (2008, p. 200), Marighella foi o principal líder teórico da Ação Libertadora Nacional (ALN). O
revolucionário comunista almejava um prosseguimento da luta de resistência contra a ditadura. Porém, conforme
Gorender (1987, p. 106), em uma viagem a Cuba, entre junho e dezembro de 1967, “durante a permanência na
ilha seu pensamento sofreu acentuada flexão, para a qual já estava propenso e que, sem dúvida, não se verificaria
tão depressa sem o influxo das teses cubanas.” Nas palavras de Marighella (1984, p. 51), “[…] a luta guerrilheira
é a única maneira de reunir os revolucionários brasileiros e de levar nosso povo à conquista do poder. Recursos
humanos e condições para a guerrilha não faltam no Brasil. A consciência revolucionária, que brota na luta, se
incumbirá do resto. A guerrilha é o que pode haver de mais anticonvencional e de mais antiburocrático, o que
mais se distancia do sistema tradicional de um partido da cidade.”
58

A igreja da teologia da libertação teve papel fundante para diferentes organizações


contra-hegemônicas. Por um lado, a igreja era a base da própria organização (pastorais
sociais), como nas Comunidades Eclesiais de Bases (CEBs)17; na pastoral indígena;
(posteriormente denominada Comissão Indigenista Missionária – Cimi); na Comissão
Pastoral da Terra (CPT). Também organizações juvenis que reaparecem no cenário das lutas
populares por meio das pastorais da juventude constituídas pelo eixo da luta de classes:
Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP) e Pastoral da Juventude Rural (PJR).18
Por outro lado, a igreja também contribuiu para a emergência de organizações em
diferentes contextos sociais: Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST);
Movimentos dos Atingidos por Barragens (MAB); Movimento de Mulheres Camponesas19
(MMC); Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA); e Central Única dos Trabalhadores
(CUT).

Os movimentos populares que se destacaram e se tornaram conhecidos


internacionalmente foram os que estavam sob o manto protetor da Igreja católica em
sua ala progressista, da Teologia da Libertação, conforme já assinalado e de amplo
conhecimento público. A religião é de modo geral um valor muito importante na
vida do homem pobre latino-americano [...] A Igreja católica sempre teve uma
presença marcante na América Latina, dentro da correlação das forças sociopolíticas
existentes. (GOHN, 1997, p. 229-230).

Esse foi um período com características de agitação da sociedade, entre as inúmeras


organizações e movimentos sociais que se articulavam nas bases e nas ruas (manifestações),
destaco as reivindicações dos metalúrgicos no ABC Paulista, que resultou na criação do
Partido dos Trabalhadores (PT) e da Central Única dos Trabalhadores (CUT). As massas
organizavam-se em torno dos debates e construção da nova democracia.

Uma das características distintivas do Partido dos Trabalhadores do Brasil é sua


origem diretamente em movimentos sociais. Surgido na passagem da ditadura
militar (1964-1985) para a democracia, o PT surgiu simultaneamente e no mesmo
movimento histórico de resistência à ditadura que a primeira central sindical da
história do país – a Central Única dos Trabalhadores – e o Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra (MST), além de outras expressões das mobilizações
sociais, como o movimento de mulheres, de povos indígenas, os movimentos
ecológicos e a extensão da sindicalização no campo e no setor público.

17
“De forma privilegiada, as CEBs redescobrem, na leitura bíblica, o aspecto libertador da História da Salvação.
Vêem na própria caminhada prefigurada no Êxodo do povo de Israel e atualizada na vivência do Mistério Pascal
de Jesus Cristo. Assumem sua luta pela justiça como realização do profetismo na sociedade de hoje.” (CNBB,
1984, n. 12, p. 10).
18
Pastoral da Juventude do Meio Popular e Pastoral da Juventude Rural nascem com bases na ação católica. São
frutos das organizações juvenis do período de 1960 a Juventude Agrária Católica (JAC) e a Juventude Operária
Católica (JUC).
19
Movimento de Mulheres Camponesas aborda o debate do feminismo popular e camponês.
59

O movimento estudantil, que sofreu com a repressão dos governos ditatoriais, volta às
ruas para defender a consolidação da democracia no país, envolvendo-se na Campanha das
“Diretas Já”, com manifestações e intervenções importantes nos principais comícios populares
desse período.
O processo de redemocratização do Brasil teve características de superação, porém,
não de total transformação, já que as elites estavam presentes em todas as instâncias
estruturais. O novo ainda estava atrelado ao velho. Nas análises de Florestan, as camadas
dominantes somente aceitam as inovações que não modificam a estrutura de dominação,
porque “temem não encontrar de novo um lugar ao sol na estrutura de poder de uma
sociedade brasileira renovada.” (FERNANDES, 1976, p. 207). Nesse sentido, posiciona-se
em relação à abertura democrática:

A “abertura” é fechada demais para que, através dela, possa atravessar uma pulga. A
ordem ilegal, implantada e defendida com base na força bruta, não possui qualquer
flexibilidade. Está dimensionada para reproduzir e aperfeiçoar a ditadura, com seu
espaço político típico das formas restritas de democracia, nas quais somente os
senhores são livres. (FERNANDES, 2007, p. 208-210).

Ao longo das décadas de 1970 e 1980, ganhou força a proposta de uma nova
Constituição para o Brasil. Embora esse momento tenha sido marcado pela participação de
muitos atores sociais, ainda assim, para Florestan Fernandes, a classe dominante estava no
topo dos debates, ofuscando as massas que se organizavam e forçavam a participação. Para o
autor, a “Nova República” não alavancaria um novo Congresso, pois esta ainda estaria
controlada pelos “donos do poder”, sendo assim, as mudanças necessárias não aconteceriam
dentro deste bojo estruturante da atual realidade social do Brasil.

De onde poderia vir a esperança de um novo Congresso? Certamente não da “Nova


República” ou do seu vetor militar e civil polidos pelo convívio com os “valores
castrenses”. A sociedade já se alterou profundamente. É por aí que se poderia ter
uma renovação, seja do Congresso, seja das demais instituições do governo e do
Estado. No entanto, há uma demora cultural, um hiato histórico e político entre a
transformação da sociedade e suas repercussões sobre a organização, funcionamento
e rendimento das instituições-chave. E estas, movidas por enquanto pelos que se
acham encarapitados na garupa do poder estatal (em todos os níveis da organização
e da competição pelo poder), modificam-se muito devagar, resistindo a todas as
mudanças e reformas, mesmo aquelas que seriam do seu interesse de classe. Uma
Assembleia Nacional Constituinte exclusiva teria a virtude de acelerar os ritmos da
transformação, encolhendo as distâncias existentes entre o Estado e a nação.
Todavia, esse caminho foi cortado tortuosamente pelos donos do poder, movidos
pela ideia de que “segurando as pontas” podem “controlar o processo histórico”.
(FERNANDES, 2014, p. 22).
60

O período foi de agitação, com intensos debates em torno da “Nova República” e de


uma constituição que representasse a redemocratização. As classes sociais se dividiam nas
articulações, havia setores da sociedade civil interessados e, comprometendo-se com o
processo, a pauta em comum dava-se pela ruptura do regime militar. O processo da
constituinte acirrou as concepções de mundo e os diferentes atores sociais, grupos e
movimentos sociais passaram a compreender a constituinte como forma de definir os rumos
que a nação assumiria.

Motivados pela mobilização da sociedade civil e pelo surgimento de novos


movimentos sociais, a esquerda vislumbrava na Constituinte a possibilidade de uma
espécie de refundação do país, ao passo que a direita desejava, se não a permanência
total das coisas, ao menos o mínimo de mudanças possíveis, que implicassem na
conservação do status quo sob uma roupagem mais moderna. Finda esta etapa, a
Constituição de 1988 passará a ser o principal instrumento de disputa das forças
políticas na conjuntura política que se seguirá após a redemocratização.
(PERLATTO, 2009, p. 8).

Para Florestan Fernandes (1987, p. 68), a Constituição “não contém, apenas, ‘a


vontade do povo’, tal como se expressa através da ótica de seus representantes. Ela desnuda o
poder e o reveste como o manto de fantasias e cruezas das ideologias daqueles que
‘representam’ a vontade do povo, origem da soberania do Parlamento e sua primeira e
principal vítima.”
Ao final de 1986 foi eleita a Assembleia Nacional Constituinte, com a eleição dos
deputados constituintes. Na sequência, foram criadas comissões e subcomissões temáticas que
teriam a tarefa de ouvir o povo e retomarem aos relatórios preliminares. Depois de quase dois
anos de trabalhos o projeto constitucional teve a primeira votação, entre muitos debates e
oposições. Conforme destaca Maria Kinzo, o texto resultante da Assembleia Constituinte
reflete em muitos aspectos “o mosaico de interesses de uma sociedade heterogênea e
desigualmente organizada.” (KINZO, 1990, p. 116).
Segundo Perlatto (2009, p. 11), a Carta de 1988 teve a função de tornar mais
igualitária as disputas entre capital e trabalho. Para ele, a Carta “avançou no sentido de
garantir diversos direitos aos trabalhadores”, entre eles: o seguro desemprego; a redução da
jornada de trabalho para 44 horas; a proibição da redução do trabalho em turnos ininterruptos
superiores a seis horas; a elevação da compensação por horas extras trabalhadas; a criação do
adicional de 1/3 do salário para as férias anuais; a instituição da licença-maternidade; a
garantia de proteção aos dirigentes sindicais; a ampliação do direito de greve, entre outros.
Por outro viés, Florestan Fernandes, deputado constituinte eleito, analisa a carta
constitucional:
61

A Carta Constitucional fixou-se em um patamar de capitalismo selvagem, atribuindo


prioridade quase exclusiva ao que é essencial para o grande capital nacional e,
principalmente, para as multinacionais e a rede internacional de poder financeiro e
político, que esmagam as potencialidades de desenvolvimento relativamente
independente e equilibrado do país. Quanto ao que é vital para os trabalhadores, em
sua expansão como e enquanto classe social e em seu potencial organizado de luta
política, tudo foi mantido na soma zero. A Carta confere, como seria normal,
aumento da capacidade de autoafirmação e de luta de classe à burguesia, em todos
os seus setores. Contudo, só abre requisitos indispensáveis à existência da classe e
de sindicatos e partidos de classe aos trabalhadores. Sequer avançou no sentido mais
geral do reconhecimento da legitimidade da desobediência civil e de formas legais
de insurgência proletária. (FERNANDES, 2014, p. 101).

Ao longo do processo constituinte de 1985-1988 houve embates políticos e de


interesses ideológicos. Mas é importante destacar, que a Nova República foi um passo
importante em direção à participação popular, e que essa conquista foi inegavelmente dos
movimentos que forçaram a ruptura do regime militar. A Constituição de 1988 representa,
portanto, o novo recomeço de lutas, o símbolo da resistência e do avanço necessário para a
época, não foi a revolução desejada pelos quadros e movimentos de vanguarda da esquerda,
os quais foram também responsáveis pela elaboração da Carta que representou uma
experiência de participação e cidadania, que segue em debates, e, portanto, instrumento de
análises da esquerda, que segue na contramão da sociabilidade capitalista.
O fim das ditaduras militares é consequência de forças populares, mas, acima de tudo,
de uma crise do capital, criada por suas próprias contradições. As democracias “conquistadas”
no continente foram uma estratégia burguesa, os Estados seguiram controlados pelo grande
capital internacional centralizado pelos Estados Unidos e se constituíram como força da
burguesia monopólica, tendo as forças armadas como aparato repressivo.
Para Marini (1991), as democracias liberais na América Latina se constituem,
contraditoriamente, entre o que propõe a ideologia liberal – que tem como pano de fundo o
progresso material e a liberdade dos indivíduos, e os níveis de desigualdades econômicas –
esta implicada na superexploração do trabalho e a pobreza estrutural. A reconstrução
democrática era parte do projeto liberal e imperialista, com decisiva importância do
parlamento, instância onde a elite política tinha poder de deliberação, limitando o executivo
na intervenção da economia.

2.2.4 Neoliberalismo e globalização

O ano de 1989 torna-se um marco no capitalismo na América Latina:


62

Em novembro de 1989, reuniram-se na capital dos Estados Unidos funcionários do


governo norte-americano e dos organismos financeiros internacionais ali sediados –
FMI, Banco Mundial e BID – especializados em assuntos latino-americanos. O
objetivo do encontro, convocado pelo Institute for International Economics, sob o
título “Latin American Adjustment: How Much Has Happened?”, era proceder a
uma avaliação das reformas econômicas empreendidas nos países da região. Para
relatar a experiência de seus países também estiveram presentes diversos
economistas latino-americanos. Às conclusões dessa reunião é que se daria,
subseqüentemente, a denominação informal de “Consenso de Washington”.
(BATISTA, 1994, p. 5).

Segundo esse autor, o Consenso de Washington contemplou dez áreas: “1. disciplina
fiscal; 2. priorização dos gastos públicos; 3. reforma tributária; 4. liberalização financeira; 5.
regime cambial; 6. liberalização comercial; 7. investimento direto estrangeiro; 8. privatização;
9. desregulação; e 10. propriedade intelectual.” (BATISTA, 1994, p. 18). Dois objetivos
básicos foram considerados para o conjunto dessas áreas:

[...] por um lado, a drástica redução do Estado e a corrosão do conceito de Nação;


por outro, o máximo de abertura à importação de bens e serviços e à entrada de
capitais de risco. Tudo em nome de um grande princípio: o da soberania absoluta do
mercado autorregulável nas relações econômicas tanto internas quanto externas.
(BATISTA, 1994, p. 18).

Segundo James Petras (1999), a conjuntura neoliberal converge com a “doutrina da


interdependência.” No Brasil, o neoliberalismo está associado a cinco metas essenciais
apontadas pelo autor: “a estabilização (de preços e das contas nacionais), privatização (dos
meios de produção e das empresas estatais), liberação (do comércio e dos fluxos de capital),
desregulamentação (da atividade privada) e austeridade fiscal (restrições aos gastos
públicos).” Essas políticas foram implementadas em toda a América Latina, apresentando
formas próprias, conforme a realidade de cada país (PETRAS, 1999, p. 18).
O mercado regulador das relações econômicas determina as relações sociais.

A mágica do imperialismo contemporâneo reside em conjurar seu próprio


desaparecimento fazendo com que o mercado apareça como a personificação da
racionalidade humana e da felicidade. Os discursos dominantes da globalização
oferecem a ilusão de um mundo homogêneo que avança constantemente em direção
ao progresso. Mas a globalização está intensificando as divisões da humanidade e
acelerando a destruição da natureza. (CORONIL, 2005, p. 128).

No neoliberalismo, a ideia de “economia de livre mercado” é uma das defesas


constantes. Para Petras (1999), a competição entre os indivíduos não ocorre de forma pacífica
e igual. Segundo ele, faz-se necessário considerar a existência de uma sociedade classista.
O capitalismo concorrencial (neoliberalismo) estabelece o Estado mínimo e, portanto,
expande-se, reafirmando os países sul-americanos como dependentes de todo um conjunto de
63

estratégias do capital internacional. O imperialismo é inerente a esse bojo das relações de


poder e faz parte do processo histórico na formação do capitalismo mundial. Segundo Sader
(2000, p. 27), “se o colonialismo havia sido o fenômeno essencial para compreender a história
da humanidade nos séculos anteriores, o século XX será o século do imperialismo.”
A formação dos Estados Latino-Americanos dependentes e de caráter colonialista foi
acompanhada por movimentos e organizações populares que tiveram papel importante e
crescente na luta anticolonialista, anti-imperialista e anticapitalista. Esse povo também resistiu
organizando-se e aprendendo na correlação de forças a enfrentar o Estado burguês, assim
manifesta-se Rui Mauro Marini:

A experiência dos povos latino-americanos lhes ensinou que a concentração de


poderes na mão do Estado, quando este não é seu, apenas o reforça enquanto
máquina de opressão da burguesia. Debilitá-lo hoje, minimizar-lhe a força
econômica e política interessa, pois, ao movimento popular, sempre que isto
implique transferência de atribuições e riquezas não à burguesia, mas ao povo.
(MARINI, 1991).

Cabe ressaltar, que a América Latina tem toda sua estrutura política baseada no
capitalismo mundial, e, nesse período, o mundo viu a queda do muro de Berlim, em 1989, e o
fim da URSS. Era o triunfo do capitalismo em sua forma neoliberal e imperialista que assim
avança sob as nações periféricas.

O século XX termina com a hegemonia mundial do capitalismo. A crise dos países


socialistas, e o fim de muitos deles, colocaram a utopia socialista em crise. Muitos
gritaram e escreveram que o sonho tinha acabado, que a história tinha acabado. O
capital passava a reinar soberano em uma economia mundializada. (ARELLANO;
OLIVEIRA, 2002, p. 51).

A conjuntura neoliberal e imperialista corrobora as relações de submissão e


dependência na América Latina, reiterando a colonialidade, característica do processo de
construção política do continente. Lander (2005) menciona que é um tempo de “naturalização
das relações sociais”, que estão conforme as características da sociedade chamada moderna.
Para o autor, esse processo apresenta-se como expressão da sociedade liberal, que hegemoniza
as relações dentro da ordem social desejável e única possível. O autor segue argumentando
que “essa é a concepção segundo a qual nos encontramos numa linha de chegada, sociedade
sem ideologias, modelo civilizatório único, globalizado, universal, que torna desnecessária a
política, na medida em que já não há alternativas possíveis a este modo de vida.” (LANDER,
2005, p. 22).

O neoliberalismo é um excepcional extrato purificado e, portanto, despojado de


tensões e contradições, de tendências e opções civilizatórias que tem uma longa
64

história na sociedade ocidental. Isso lhe dá capacidade de constituir-se no senso


comum da sociedade moderna. A eficiência hegemônica atual desta síntese sustenta-
se nas tectônicas transformações nas relações de poder ocorridas no mundo nas
últimas décadas. O desaparecimento ou derrota das principais oposições políticas
que historicamente se confrontavam com a sociedade liberal (o socialismo real e as
organizações e lutas populares anticapitalistas em todas as partes do mundo), bem
como a riqueza e o poderio militar sem rivais das sociedades industriais do Norte,
contribuem para a imagem da sociedade liberal de mercado como a única opção
possível, como o fim da História. No entanto, a naturalização da sociedade liberal
como a forma mais avançada e normal de existência humana não é uma construção
recente que possa ser atribuída ao pensamento neoliberal, nem a atual conjuntura
política; pelo contrário, trata-se de uma ideia com uma longa história no pensamento
social ocidental dos últimos séculos. (LANDER, 2005, p. 22).

Mesmo diante da conjuntura de desesperança, forças contra-hegemônicas seguem


resistindo e se organizando. Entre elas, destacam-se a “construcción de redes de la sociedad
civil campesina”, fruto da Conferência Continental da Reforma Agrária e dos movimentos
camponeses, que aconteceu em Manágua, em 1981. A conferência que reuniu organizações
camponesas revolucionárias e organismos camponeses independentes iniciou um processo de
intercâmbio de experiências, que resultou num embrião de um movimento camponês latino-
americano (TORRES; ROSSET, 2012, p. 28).
Por conseguinte, várias reuniões e encontros foram realizados em diversos países da
América Latina, para a organização da “Campanha Continental de 500 anos de Resistência
Indígena, Negra e Popular20”, no início dos anos 1990 (TORRES; ROSSET, 2012, p. 29-30).
Dos esforços para aglutinar organizações camponesas latino-americanas nasce, em
1991 e 1992, a Coordinadora Latinoamericana de Organizaciones del Campo (CLOC), com a
função de coordenar as lutas pela terra contra o modelo neoliberal. A CLOC confirmou uma
aliança transnacional integrada por 47 organizações (campesinas, indígenas, agricultores e
mulheres camponesas) de 19 países, estruturada em cinco regiões (Norte, Centro, Caribe,
Andes e Cono Sur) (DOULA, 2000, p. 366). Da CLOC emerge a Via Campesina 21,
articulação internacional que agrega movimentos campesinos e indígenas, inseridos no debate
de várias categorias de análise, especialmente, a luta de classe, portanto, assume-se uma
articulação marxista.
No ano de 1994 irrompe, no estado de Chiapas, o Exército Zapatista de Libertação

20
“La Campaña continental 500 años reunió a organizaciones de pueblos indígenas, campesinos, obreros,
estudiantes, jóvenes, maestros, sindicatos, académicos, mujeres y sectores populares urbanos que cuestionaron
las versiones ‘oficiales’ de la historia de América Latina porque prácticamente omiten la resistencia a la
conquista. La Campaña construyó así una identidad cultural y étnicamente diversa de América Latina,
presentando una contínua resistencia de los pueblos a la conquista.” (TORRES; ROSSET, 2012, p. 29-30).
21
“Com suas ações, a Via Campesina mantém na pauta política internacional a questão camponesa com uma
postura autêntica, lutando contra a posição de governos e corporações, que cooptam organizações camponesas,
com a subordinação consentida ao modelo de desenvolvimento do agronegócio.” (FERNANDES, 2012, p. 767).
65

Nacional (EZLN), formado por povos indígenas e camponeses que se mobilizam contra o
lançamento do Tratado de Livre-Comércio da América do Norte (NAFTA).

O objetivo era formar um mercado comum com diferenças substantivas em relação à


União Européia, pois não haveria liberdade para as pessoas, somente para a
circulação dos capitais e das mercadorias. Os Estados Unidos reforçaram o
policiamento da fronteira com o México e muros foram construídos para impedir a
livre circulação das pessoas. (ARELLANO; OLIVEIRA, 2002, p. 51).

A ascensão dos movimentos indígenas e camponeses supracitados torna-se uma


alavanca para outras lutas contra-hegemônicas na América Latina. A partir da organização
conclamam a resistência dos povos. Nesse período, acontecem também mobilizações contra a
Organização Mundial do Comércio (OMC), e, por conseguinte, a organização do Fórum
Social Mundial22 (FSM) de Porto Alegre, em 2001, com o lema “um outro mundo é possível”,
que teve repercussão mundial.
Segundo Boito Júnior (2007), o neoliberalismo nesse período fortaleceu a burguesia
interna industrial e o agronegócio, bem como a manutenção da lucratividade ligada ao capital
financeiro, política aprovada pelo FMI. O autor menciona que a política de comércio
internacional que despertou com a ascensão da burguesia interna industrial e do agronegócio
foi movida por fatores, como:

A pressão da grande burguesia industrial na década de 1990, pressão convergente


dos sindicatos e a vitória do ex-presidente Lula, fatores econômicos nacionais e
internacionais como a ameaça de estrangulamento externo, evidenciado na crise
cambial de 1999, crescimento do comércio internacional de matérias-primas e de
recursos naturais, melhora na cotação desses produtos, declínio no ano 2000, do
fluxo de dólares dirigidos aos países dependentes pelos fundos de aplicação dos
países dominantes e a desvalorização cambial provocada involuntariamente pelo
temor do capital internacional diante da vitória de Lula em 2002. (BOITO JÚNIOR,
2007).

No campo das lutas, o século XXI reflete a resistência e organização constante dos
povos, especialmente, no combate ao neoliberalismo. A América Latina presencia a ascensão
de governos populares, que representavam a possibilidade de superação do neoliberalismo.
Porém, como avalia Borón (1999), o neoliberalismo representou uma vitória cultural,

22
O FSM é uma articulação de movimentos sociais de vários lugares do mundo. Segundo Gohn (2011, p. 338), o
FSM é parte de um conjunto transnacional de movimentos que “unem à crítica sobre as causas da miséria,
exclusão e conflitos sociais, a busca e a criação de um consenso que viabilize ações conjuntas.” De acordo com o
Coletivo FSM Brasil (2016, p. 19), “o Fórum Social Mundial é fundamental por sua metodologia aberta,
participativa, colaborativa e horizontal, sem perder a perspectiva do sentido político que reúne as redes, as
organizações e os movimentos que dele participam. Não é um evento, é um processo de múltiplos acúmulos
dispersos em redes temáticas, lutas locais, agendas nacionais e internacionais que, num determinado momento,
culminam em eventos de expressão internacional, contra o modelo hegemônico representado pelo Fórum
Econômico Mundial de Davos.”
66

construindo uma hegemonia em torno de seus princípios políticos e ideológicos, e o


capitalismo passa a ser visto natural, mesmo com todas as contradições e seu antagonismo de
classe.

A operação ideológico-cultural fecha hermeticamente o círculo aberto pela ofensiva


econômica e política do grande capital: não apenas se diz que a escravidão do
trabalho assalariado não é assim, mas que é a ordem natural das coisas, como, além
disso, é rejeitado como ilusórias fantasias todo discurso que se atreva a dizer que a
sociedade pode se organizar de outra maneira. (BORON, 1999, p. 12).

Essa conjuntura vinculou-se à ascensão de governos progressistas como alternativa no


cenário político, destacando alguns dos líderes desse período: Hugo Chávez, na Venezuela;
Evo Morales, na Bolívia; Rafael Correa, no Equador; Néstor Kirchner, na Argentina;
Bachelet, no Chile; Mujica, no Uruguai; e Lula, no Brasil. Esse conjunto de lideranças foi
eleito por vias democráticas, o que demonstra o questionamento dos ditames neoliberais
hegemônicos na região até o final do século XX. Em relação a essas transformações, Moreira,
Quinteros e Reis da Silva (2008) analisam:

Com a crise do neoliberalismo no final dos anos 1990, na esteira das crises
econômicas, das dificuldades em avançar nas rodadas de negociação na OMC, na
crescente visibilidade do protecionismo dos países centrais, ocorreu a emergência de
um novo modelo. Amparado em forças nacionalistas, partidos e movimentos
populares e de esquerda, denunciou-se as crises internacionais, unilateralismo norte-
americano nas guerras do Afeganistão e do Iraque e o protecionismo dos países
ricos. A saída foi aprofundar o processo de integração entre os países latino-
americanos, retomar o desenvolvimento com distribuição de renda e inclusão social
(MOREIRA; QUINTEROS; REIS DA SILVA, 2008, p. 378).

A história da formação da sociedade nacional latino-americana marcada por anos de


submissão aos países imperialistas e na consolidação da colonialidade, experiencia a fase de
governos populares. Os estados latino-americanos buscam alternativas por meio das urnas
para as mudanças no sistema.

Depois do fim da Guerra Fria, durante a década de 1990, quase todos os governos
sul-americanos aderiram ao projeto da “globalização liberal” e a suas políticas
econômicas, responsáveis pelas crises cambiais da Argentina, em 1999, e do Brasil,
em 1997, 1999 e 2001. O insucesso econômico das políticas neoliberais contribuiu
decisivamente para a “virada à esquerda” dos governos sul-americanos, durante a
primeira década do século XXI. Em poucos anos, quase todos os países da região
elegeram governos de orientação nacionalista, desenvolvimentista ou socialista, que
mudaram o rumo político-ideológico do continente. Todos se opuseram às ideias e
políticas neoliberais da década de 1990 e todos apoiaram ativamente o projeto de
integração da América do Sul, opondo-se ao intervencionismo norte-americano no
continente. Esse giro político à esquerda coincidiu com o ciclo de expansão da
economia mundial, que favoreceu o crescimento generalizado das economias
regionais até a crise financeira de 2008. (FIORI, 2013, p. 35-36).
67

No Brasil, as lutas contra-hegemônicas no período do governo militar foram alavancas


para a classe trabalhadora se reconhecer como sujeitos políticos, organizando-se em
sindicatos, movimentos sociais e partidos políticos, surge daí o Partido dos Trabalhadores
(PT). Com bases no sindicalismo operário, o partido avançou para grandes debates junto de
outros setores progressistas e articulações populares. É a partir desse conjunto de agentes que
os governos, com a agenda e pautas mais alinhadas às causas sociais, têm ascensão no país.
No pleito eleitoral de 1989, Luiz Inácio Lula da Silva (Lula) disputou contra Fernando
Collor. Mesmo não vencendo as eleições, é nesse pleito que a ala progressista da política
brasileira dá início a várias tentativas e fracassos, até a vitória de Lula, em 2002. A ascensão
de Lula ao Executivo Federal é um marco na história do país. De acordo com Garcia (2012, p.
55), a eleição de Lula, que veio em seguida da eleição de Hugo Chávez, na Venezuela, deu
“corpo a um processo de revisão drástica dos modelos econômicos até então hegemônicos na
América Latina, inspirados no denominado Consenso de Washington.” Para o autor, “as
políticas inspiradas no Consenso haviam provocado também aguda crise econômica, social e
política em muitos países.” (GARCIA, 2012, p. 56).

O governo Lula representa uma nova expressão do campo popular, que teve nos
governos de Getúlio e de Jango, seus antecedentes mais próximos. Governos de
coalizão de classes, pluriclassistas, que assumem projetos de unidade nacional, com
forte peso das políticas sociais. De Getúlio a Lula transcorreram décadas
fundamentais, com elementos progressivos e regressivos, contraditórios, que
chegam até o começo do século XXI vivendo uma circunstância nova, que pode se
fechar, como marcante parênteses ou como ponte para a ruptura definitiva do
modelo herdado e a continuidade em um novo patamar da construção de um país
mais justo, democrático, soberano. (SADER, 2012, p. 10).

Na avaliação de Mauro Iasi (2006 p. 359), o processo vivido pelo Partido dos
Trabalhadores, desde o processo eleitoral até as políticas governamentais, foi controverso.
Segundo o autor, “a experiência do PT é um excelente exemplo do movimento de constituição
de uma classe contra a ordem do capital que acaba por se amoldar aos limites da ordem que
queria superar.” No mesmo seguimento, Singer (2012, p. 97) se posiciona:

Em 2002, a “Carta ao Povo Brasileiro” renegava a tática de um confronto com o


grande capital nacional e, para dar garantias aos empresários, o texto assegurava que
o futuro governo iria preservar as medidas de estabilidade econômica e sustentava
que não iria “romper contratos nem revogar regras estabelecidas”. (SINGER, 2012,
p. 97).

Após oito anos do governo Lula, elege-se a primeira mulher presidente do país, Dilma
Rousseff, que assumiu em 2011 pelo Partido dos Trabalhadores. Emir Sader (2013, p. 138)
descreve os governos Lula e Dilma como pós-neoliberais e caracteriza elementos centrais de
68

ruptura com o modelo neoliberal dos governos anteriores (Fernando Collor de Melo, Itamar
Franco e Fernando Henrique Cardoso). De acordo com o autor, os governos de Lula e de
Dilma representaram uma “reação antineoliberal” e menciona traços em comum, que são
possíveis agrupá-los numa mesma análise:

a) priorizam as políticas sociais e não o ajuste fiscal;


b) priorizam os processos de integração regional e os intercâmbios Sul-Sul e não
os tratados de livre-comércio com os Estados Unidos;
c) priorizam o papel do Estado como indutor do crescimento econômico e da
distribuição de renda, em vez do Estado mínimo e da centralidade do mercado.
(SADER, 2012).

Os governos populares de Lula e Dilma não romperam com o capital, mesmo


avançando na promoção de políticas sociais importantes na superação da miséria que a
história deixou de herança aos povos do Brasil. Outros pontos ainda foram avaliados por
Sader (2013 p. 142), como a necessidade da quebra do monopólio do dinheiro – o capital
especulativo – e do monopólio da terra. Segundo o autor, o Brasil “precisa produzir a
democratização do acesso à palavra”, quebrando o monopólio dos meios de comunicação.
Esse processo de democratização social precisa chegar ao plano cultural, multiplicando
espaços de informação, discussão, intercâmbio e criação cultural. E conclui sua análise em
relação à construção da democracia: “país democrático é aquele onde há meios de
comunicação pluralistas, que expressem a imensa e rica diversidade cultural e de opiniões de
seu povo, não mais privilégio de alguns, dos mais poderosos.” (SADER, 2013, p. 142).
A reorientação política da América Latina tem expressão nas mudanças de governos,
mas, especialmente, no esforço popular de reorganização da vida material a partir dos
movimentos socais. Estes dinamizaram uma instância latino-americanista das lutas urbanas e
camponesas: a Alternativa Bolívariana dos Povos das Américas (Alba), que trouxe o caráter
de enfrentamento ao projeto norte-americano para a América Latina. Como descrevem
Moreira, Quinteros e Reis da Silva (2008):

Um dos pontos de virada, que marcaram a política interamericana, foi a resistência


crescente ao projeto dos Estados Unidos de formação da Área de Livre Comércio
das Américas (Alca). As negociações da Alca haviam iniciado em 1994 e sofreram
resistência de muitos países, inclusive do Brasil, que procurou evitar que o Mercosul
fosse diluído no projeto-norte-americano. Também há o surgimento da Alternativa
Bolívariana das Américas (Alba), articulado por Venezuela e Cuba, e que já conta
com a participação de diversos países.

Para além das mudanças, é necessário destacar que as contradições geradas pelo
capital persistiram. A classe trabalhadora e os povos organizados seguiram criando forças
69

contra-hegemônicas de enfrentamento ao capital e à colonialidade, e, nesse momento


histórico, criaram singularidades na estratégia das forças contra-hegemônicas.
Segundo Gohn (2011, p. 337), houve uma radicalização do processo democrático,
seguido do ressurgimento de lutas sociais tradicionais no território latino americano, como os
movimentos étnicos, a exemplo dos povos indígenas na Bolívia e no Equador, estes
associados a movimentos nacionalistas, como o dos Bolívarianos, na Venezuela. Algumas
destas lutas se fundamentam em utopias, como o bien vivir, dos povos andinos da Bolívia e do
Equador, que, segundo a autora, vem “transformando-se em propostas de gestão do Estado –
um Estado considerado plurinacional porque é composto por povos de diferentes etnias, que
ultrapassam os territórios e fronteiras do Estado-nação propriamente dito.”
A autora relata ainda a retomada de movimentos populares urbanos de bairros
(barrial), especialmente, no México e na Argentina. Esse conjunto de organizações e
movimentos tem “eclodido” como “agentes de novos conflitos e renovação das lutas sociais
coletivas.” Gohn (2011) menciona a eleição de lideranças para cargos supremos na nação, a
exemplo da Bolívia. De acordo com a autora, esses movimentos emergem com força
organizatória, demonstrando outras referências: piqueteiros na Argentina; cocaleiros na
Bolívia e no Peru; zapatistas no México, entre outros, que se articulam em “redes compostas
de movimentos sociais globais ou transnacionais, como o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST) no Brasil e a Via Campesina, além da Coordinadora
Latinoamericana de Organizaciones del Campo (CLOC).” (GOHN, 2011, p. 337).
Conforme Gohn (2011, p. 344), “há um novo cenário neste milênio: novos tipos de
movimentos, novas demandas, novas identidades, novos repertórios. Proliferam movimentos
multi e pluriclassistas.” Para a autora, surgiram movimentos que ultrapassam fronteiras, e
outros que, no Brasil, emergiram por demandas seculares como a terra, para produzir (MST –
Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra) ou para viver seu modo de vida (indígenas).
Os movimentos indígenas lutam historicamente pelo direito ao território, constituído
dentro da busca pela “Terra sem Mal”, dos povos Tupi-Guarani, em uma perspectiva da
própria identidade. Porto-Gonçalves (2009) menciona que os povos originários têm
construído uma autodesignação como forma de contraponto à expressão América, a qual,
segundo ele, consagrou-se a partir de finais do século XVIII e início do século XIX, por meio
das elites crioulas. Abya Yala faz parte da língua do povo Kuna e significa “Terra madura”,
“Terra Viva” ou “Terra em florescimento” e é sinônimo de América. Para o autor:

Abya Yala configura-se, portanto, como parte de um processo de construção


político-identitário em que as práticas discursivas cumprem um papel relevante de
70

descolonização do pensamento e que tem caracterizado o novo ciclo do movimento


indígena, cada vez mais movimento dos povos originários. A compreensão da
riqueza dos povos que aqui vivem há milhares de anos e do papel que tiveram e têm
na constituição do sistema-mundo tem alimentado a construção desse processo
político-identitário. (PORTO-GONÇALVES, 2009, p. 28).

A descrição das lutas históricas e das novas abordagens de lutas adversas aos poderes
hegemônicos trará consequências longínquas para a sociedade, assim como foram em todos os
períodos. As reações dos povos e das classes subalternas fazem parte do contexto de opressão,
é o antagonismo da correlação de forças. Enquanto houver ser humano subjugado, haverá
resistência e a emergência das lutas organizadas.
Na contextualização de Gohn (2011), quanto aos novos tipos de movimentos, a autora
destaca:
[…] movimentos identitários, reivindicatórios de direitos culturais que lutam pelas
diferenças: étnicas, culturais, religiosas, de nacionalidades etc. Movimentos
comunitários de base, amalgamados por ideias e ideologias, foram enfraquecidos
pelas novas formas de se fazer política, especialmente pelas novas estratégias dos
governos, em todos os níveis da administração. Novos movimentos comunitaristas
surgiram – alguns recriando formas tradicionais de relações de autoajuda; outros
organizados de cima para baixo, em função de programas e projetos sociais
estimulados por políticas sociais. (GOHN, 2011, p. 344).

Dos movimentos identitários mencionados por Gohn, destaco os movimentos das


chamadas minorias: LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e
Transgêneros); grupos feministas; movimento negro; etc. Toda essa gama de movimentos
articula-se em variadas lutas e enfrentamentos ao capital, patriarcalismo, machismo,
xenofobia, homofobia, racismo, etc. Nesse sentido, a conjuntura demonstra que outras formas
de correlações de forças se destacam, especialmente, das lutas populares.
Vale destacar que a ênfase exacerbada na “diversidade”, no subjetivismo, e,
consequentemente, a negação das classes sociais favorecem o capital, o qual absorve as pautas
dos movimentos, criando espaços que ele possa usufruir, fazendo parte de sua hegemonia.
Assim afirma Clara Araújo (2000, p. 70): “Um projeto emancipatório da humanidade
necessita pensar prioridades na ação política, sem perder de vista como as diversas clivagens
que perpassam as relações sociais podem ser simultaneamente trabalhadas, em suas
dimensões próprias e inter-relacionadas.”
Nesse seguimento, Gohn (2011) menciona que os movimentos sociais, nesse novo
milênio, envolvem as lutas e demandas que se construíram diante da realidade neoliberal, no
que diz respeito também à questão urbana, pela inclusão social e por condições de
habitabilidade na cidade. Exemplos dados pela autora:
71

Movimentos pela moradia, expresso em duas frentes de luta: articulação de redes


sociopolíticas compostas por intelectuais de centro-esquerda e movimentos
populares que militam ao redor do tema urbano (o hábitat, a cidade propriamente
dita). Eles participaram do processo de construção e obtenção do Estatuto da
Cidade; redes de movimentos sociais populares dos Sem-Teto (moradores de ruas e
participantes de ocupações de prédios abandonados), apoiados por pastorais da
Igreja Católica e outras. (GOHN, 2011, p. 345).

Do movimento por moradia, mencionado por Gohn, destaco o Movimento dos


Trabalhadores Sem Teto (MTST). Segundo Goulart (2012), “o embrião de sua construção
ocorre no interior do MST, particularmente, durante a Marcha Popular Nacional de 1997, que
passou por várias cidades, e cujo intuito era relacionar os problemas sociais vividos no campo
e na cidade.” Isso fez parte da estratégia de consolidação da unidade campo e cidade. O
MTST tem como parte de suas ações a ocupação de terras urbanas, a exemplo das ocupações
de terra do MST.
Mesmo tendo raízes no Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, o Movimento
dos Trabalhadores Sem Teto apresenta sua própria organicidade, passando a ter autonomia na
articulação, organização, comando, e assumindo-se um movimento classista. “O MTST tem
como seu maior objetivo a luta contra o capital e o Estado que representa os interesses
capitalistas.” (MOVIMENTO DOS TRABALHADORES SEM-TETO, 2005).
O movimento acredita na unidade e na aliança com outros movimentos sociais
camponeses e urbanos, e essa unidade consolida-se na construção do poder popular. Em suas
palavras, “criar poder popular, é mais do que um grito de ordem, é nosso grande objetivo
somos a maioria, mas o poder não está com a gente e sim com os capitalistas. Construir o
poder popular, que é o nosso poder, é a forma de transformar isso.” (MOVIMENTO DOS
TRABALHADORES SEM-TETO, 2005).
Desse modo, percebemos os movimentos sociais latino-americanos como a própria
expressão da contra-hegemonia, a possibilidade da construção de outra sociabilidade
decolonizada. Por isso, é fundamental que tais lutas estejam no bojo da luta de classe, para
que não crie um distanciamento e fragmentação do conjunto de lutas estruturais.
Esse processo demonstra que o proletariado latino-americano configura-se para além
do proletariado “tradicional”. Ocuparam outros setores nas relações capitalistas de produção,
e são parte da luta contra-hegemônica histórica e necessária para garantir o mínimo de
dignidade nas relações sociais do capitalismo.
Gohn (2015, p. 41) menciona ainda que um novo sujeito político ganha destaque na
virada da primeira década do novo século: “os indignados”. A autora destaca as mobilizações
de 2013 no Brasil, que envolveram “movimentos de protestos contra políticas sociais vigentes
72

nas áreas dos transportes, educação, saúde etc.; contra também a prioridade dada aos gastos
com a Copa do Mundo, entre outros motivos.” Dessa categoria, ponderada por Gohn, “os
indignados”, entram em cena “novíssimos atores”, “especialmente jovens participantes de
coletivos organizados online, assim como ativistas de causas transnacionais que até então não
tinham quase visibilidade, como o Black Blocs.”

Os novíssimos sujeitos que entram em cena nas ruas e avenidas, no caso brasileiro,
representam uma nova onda de movimentos sociais, diferente dos novos
movimentos identitários organizados desde a década de 1980. [...] A questão da
autonomia ressurge com vigor em práticas coletivas, a exemplo dos Black Blocs
(Depuis-Déri, 2014) mais ela é também uma bandeira histórica do movimento dos
povos indígenas – o mais amplo e intenso em termos de América Latina. As redes
sociais ganham vigor nas pesquisas que Castells desenvolve desde o final dos anos
de 1990 (Castells 1999 e 2013). Ocorre, pois uma repolitização dos movimentos
sociais pós 2008 sob novos paradigmas inspiradores das ações coletivas, muitos
deles construídos a partir de ideias e utopias já bem antigas, como o socialismo
libertário, o anarquismo, os autonomistas e outros, porém totalmente renovados sob
a égide da sociedade contemporânea com seus problemas, desafios e recursos
comunicacionais e tecnológicos. (GOHN, 2015, p. 41)

De acordo com Gohn (2015), nesse momento as teorias libertárias tiveram grande
vigor, colocando, como exemplo, as manifestações de estudantes no Chile, em 2011, e as
manifestações de rua, em junho de 2013. Para a autora, “elas têm recriado as utopias, movem
os estudantes e incendeiam as paixões dos jovens, nas respectivas gerações. Contestam o
status quo, propõem um novo modelo de sociedade, destacam os indivíduos e suas ações.”
Na atualidade, as lutas populares seguem compondo a rede dos movimentos sociais,
desde as lutas tradicionais aos novos agentes sociais que integram o campo da esquerda
mundial, e que se articulam de forma a ultrapassar fronteiras e em cada realidade enfrentam o
poder violento do Estado.

Os ativistas dos movimentos sociais deste novo século foram e continuam a ser
alvos de ações violentas por parte da repressão policial. Conectam-se às redes de
apoio internacional, e a solidariedade entre eles é um valor e um princípio. São
laboratórios de experimentações de novas formas de operar a política. Dirigem suas
reivindicações a personagens específicos da cena público-política de cada país.
(GOHN, 2014, p. 432).

A autora destaca, ainda, que uma parte significativa dos militantes no Brasil tem
chegado aos cursos de pós-graduação, ocupando “posições como professores e pesquisadores
nas universidades, especialmente as novas, criadas nessa década na área de ciências
humanas.” Esse processo tem levado à produção de teses e dissertações, o que torna os
militantes em pesquisadores, sendo que muitos dos trabalhos acadêmicos “são parte das
histórias que eles próprios vivenciaram.” (GOHN, 2011, p. 338).
73

Os antagonismos de classes atravessaram o tempo. A América Latina serviu como


alicerce do capitalismo mundial, como mencionado por Quijano e Wallerstein (1992) e Cohen
(1976). Os conflitos no território foram eminentes, criando a crise política. A correlação de
forças mudou os atores sociais das classes subalternas, bem como os tipos de lutas, porém, as
lutas populares não alteraram significativamente tais correlações de forças, que se mantiveram
intactas entre dominadores e dominados.
Os povos e a classe trabalhadora organizada reagiram historicamente contra a
opressão, exploração e expropriação. Conforme Miliband (1978), o proletariado se torna
revolucionário se tiver consciência de classe, ou seja, ele se torna classe quando adquire a
consciência de classe.
A composição do capitalismo latino-americano firma-se em relações desiguais. Não
houve desenvolvimento das colônias, ao contrário, o cenário de profundas desigualdades
provocadas pelas relações econômicas, políticas, culturais e sociais dependentes e de
exploração intensificaram a exploração do trabalho, fortaleceram uma burguesia interna,
enquanto empobreceram a grande massa de gente, de trabalhadores. O violento processo de
colonização e de exploração reflete em todas as esferas das relações no momento histórico
atual, antes como colônia da Europa, agora como periferia do mundo a serviço de outros
países imperialistas. Galeano (2009, p. 47) diz que fomos “vítimas da concentração
internacional” ― esta talvez seja uma das particularidades reais da economia capitalista
mundial em relação à América Latina, e é o motivo de nossas condições de produção serem
inferiores e subalternas aos países centrais.
Sobre sermos a periferia dos centros de poder, sobre nossa subalternidade, e qual é
nossa tarefa na correlação de forças do capital, Galeano se posiciona:

É a América Latina, a região das veias abertas. Desde o descobrimento até nossos
dias, tudo se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-americano, e
como tal tem-se acumulado e se acumula até hoje nos distantes centros de poder.
Tudo: a terra, seus frutos e suas profundezas, ricas em minerais, os homens e sua
capacidade de trabalho e de consumo, os recursos naturais e os recursos humanos. O
modo de produção e a estrutura de classes de cada lugar têm sido sucessivamente
determinados, de fora, por sua incorporação à engrenagem universal do capitalismo.
A cada um dá-se uma função, sempre em benefício do desenvolvimento da
metrópole estrangeira do momento, e a cadeia das dependências sucessivas torna-se
infinita, tendo muito mais de dois elos, e por certo também incluindo, dentro da
América Latina, a opressão dos países pequenos por seus vizinhos maiores e, dentro
das fronteiras de cada país, a exploração que as grandes cidades e os portos exercem
sobre suas fontes internas de víveres e mão-de-obra. Há quatro séculos, já existiam
dezesseis das vinte cidades latino-americanas mais populosas da atualidade.
(GALEANO, 2009, p. 18).
74

O continente latino-americano desenvolveu-se a partir do trabalho escravo e da


superexploração da mão de obra, em detrimento ao avanço da produção e do enriquecimento
dos centros hegemônicos, enquanto a sociabilidade capitalista teceu as relações sociais entre
centro de poder e periferia, bem como das relações internas dos povos da América Latina.
Mas, é da organização e da resistência dos povos da América Latina que nasce a possibilidade
da construção de outra socialidade. Do “entrechoque” e das “tragédias”, levantaram-se
intelectuais, líderes e povo organizado. Para Gramsci (1978), a divisão da sociedade em
dominantes e dominados é um processo histórico, portanto, não natural. Nesse sentido, é que
reagem os dominados, criando, a partir da consciência e da interpretação da realidade, a
possibilidade de unificar ações para a transformação dessa mesma realidade.
Em síntese nessa seção meu objetivo foi apresentar elementos sócio-históricos
significativos da tensão entre colonialidade e lutas contra-hegemônicas na América Latina e
no Brasil. A formação do continente se particularizou por um modo de produção capitalista
dependente, que produziu conflitos de classes e injustiças sociais, baseados no racismo. A
ideia de raça se relaciona a uma visão de superioridade eurocêntrica, que foi a base de
sustentação da colonização política, econômica e cultural dos povos latino americanos.
A classificação racial/étnica da população fundou o padrão global de poder. Esse
padrão fundamenta a colonialidade do poder que, associada à coloniadade do saber e do ser,
constituem o sistema mundo moderno/colonial hegemônico. A desconstrução desse padrão
supõe rupturas contra-hegemônicas, epistêmicas, teóricas e políticas, que levam à constituição
histórica de um giro decolonial, tendo em vista um pensamento novo/homem novo.
Nessa seção apresentei quatro momentos da formação do território que evidenciam
contextos com características próprias, tanto na constituição do padrão global de poder quanto
nas formas contra-hegemônicas historicamente distintas: invasão das terras e dominação de
povos indígenas, colonização europeia e escravidão negra, industrialização e imperialismo e
neoliberalismo e globalização.
Para além de uma sucessão de momentos lineares, tais elementos sócio-históricos
constituem indícios de particularidades de diferentes contextos contraditórios dos quais
emergem a educação popular no continente.
Na próxima seção problematizo a noção de educação popular tendo em vista
evidenciar que se trata de uma noção historicamente construída e que se encontra em pleno
processo de refundamentação.
75

3 EDUCAÇÃO POPULAR E CONTRA-HEGEMONIA

Nesta seção, meu objetivo é mostrar aspectos conceituais que caracterizam a noção de
educação popular. Brandão (2006, p. 7) sugere “recuar longe”. Ou seja, para problematizar
conceitualmente a educação popular é pertinente retomar a própria origem da educação, que
leva a refletir sobre a experiência de comunidades primitivas.
Ao longo do tempo, por meio de tarefas da vida física, o ser humano vem construindo
o aprender e o ensinar. Para Brandão (2006, p. 10) “aprender significa tornar-se, sobre o
organismo, uma pessoa, ou seja, realizar em cada experiência humana individual a passagem
da natureza à cultura.”

Como ensinar-e-aprender torna-se inevitável para que os grupos humanos


sobrevivam agora e através do tempo, é necessário que se criem situações onde o
trabalho e a convivência sejam também momentos de circulação do saber. Entre
mundos e homens muito remotos, onde sequer emergira ainda a nossa espécie — o
homo sapiens sapiens — este é o primeiro sentido em que é possível falar de
educação e de educação popular. (BRANDÃO, 2006, p. 10).

O referido autor, ao descrever a vida dos povos que viviam em comunidades tribais e
suas relações sociais, culturais e educativas, refere-se ao que ele denominou “saber da
comunidade”.

Um saber da comunidade torna-se o saber das frações (classes, grupos, povos,


tribos) subalternas da sociedade desigual. Em um primeiro longínquo sentido, as
formas — imersas ou não em outras práticas sociais —, através das quais o saber das
classes populares ou das comunidades sem classes é transferido entre grupos ou
pessoas, são a sua educação popular. (BRANDÃO, 2006, p. 16).

Eram os jeitos próprios de convivência e de interação com a natureza e com o coletivo


que o saber estava intrínseco com a vida, “anterior à escola, mas plena de educação.”
(BRANDÃO, 2006, p. 10).

Enquanto o trabalho produtivo não se dividiu socialmente e um poder comunitário


não se separou da vida social, também o saber necessário não teria existido separado
da própria vida. Fora alguns poucos especialistas de artes e ofícios, como os da
religião primitiva, em algumas tribos, com pequenas diferenças todos sabiam tudo e
entre si se ensinavam-e-aprendiam, seja na rotina do trabalho, seja durante raros
ritos onde, solenes e sagrados, os homens falavam aos deuses para, na verdade,
ensinarem a si próprios que eram eles, e por quê. Esta foi uma primeira educação
popular. (BRANDÃO, 2006, p. 11).

Também Saviani (2007) indica como ocorria a educação nas comunidades primitivas:

Nas comunidades primitivas a educação [...] os homens apropriavam-se


76

coletivamente dos meios de produção da existência e nesse processo educavam-se e


educavam as novas gerações. Prevalecia, aí, o modo de produção comunal, também
chamado de “comunismo primitivo”. Não havia a divisão em classes. Tudo era feito
em comum. Na unidade aglutinadora da tribo dava-se a apropriação coletiva da
terra, constituindo a propriedade tribal na qual os homens produziam sua existência
em comum e se educavam nesse mesmo processo. Nessas condições, a educação
identificava-se com a vida. A expressão “educação é vida”, e não preparação para a
vida, reivindicada muitos séculos mais tarde, já na nossa época, era, nessas origens
remotas, verdadeira prática. (SAVIANI, 2007, p. 154-155).

A experiência das sociedades primitivas mostra que é por meio da produção da própria
existência material que circulam saberes e aprenderes, os quais constituem, na origem, a
educação popular do ser humano. O termo educação popular (EP) apresenta contradições e
ambiguidades. Conforme Jara (2006, p. 235), a educação popular é um fenômeno
sociocultural e uma concepção de educação, “como fenômeno sociocultural, a Educação
Popular faz referência a uma multiplicidade de práticas com características diversas e
complexas.” Jara (2006, p. 235) menciona que, por vezes, essas práticas são desconsideradas
e desvalorizadas, em outras são utilizadas pelo próprio sistema que a educação popular propõe
confrontar.
A expressão educação popular, em alguns momentos, é confundida com educação não
formal. Segundo Gadotti (2016, p. 7), a educação não formal com frequência é considerada
como menos relevante do que a educação formal. Essa visão da educação não formal valoriza
o “sistêmico, o formal e o escolar.” A educação popular se materializa tanto em espaços
formais quanto em espaços não formais. Nem toda educação não formal é educação popular,
“fazer educação não-formal não significa, automaticamente, fazer Educação Popular.”
Na América Latina, a educação popular se constitui uma forma de movimento
multifacetado social e político, cultural e pedagógico, epistemológico e investigativo. Em
termos históricos, há certo consenso em atribuir a Simón Rodríguez e a José Martí o lugar de
precursores da educação popular no continente.
Simón Rodríguez (1771-1854) foi pedagogo, filósofo e político venezuelano, que
defendia ideias revolucionárias, como educar meninas de todas as classes e raças, além de
meninos pobres, indígenas, negros, mestiços e órfãos. Rodríguez foi considerado o primeiro
educador popular. Segundo Guzmán (2014, p. 4), “a Simón Rodríguez lo podemos considerar,
como uno de los más grandes pensadores sobre la educación venezolana, hasta el extremo de
que sus ideas se nos revelan como de una fresca actualidad; ellas inspiran la creación de un
sistema educativo de tipo popular.” A história o invisibilizou, mas seu pensamento retornou
ao cenário da educação, seja na Venezuela, seja em outros países da América Latina.
José Julián Martí Pérez (1853-1895), mais conhecido como José Martí, foi um
77

revolucionário cubano, político, filósofo e poeta, que contribuiu para a independência de


Cuba. Propôs a unidade latino-americana, elaborando seus conceitos a partir de “Nossa
América”. Streck (2008, p. 8) evidencia: “a educação popular, em Martí igual à educação do
povo, passou a ser vista como uma alternativa para esta educação do povo.”

Na curta história da educação popular há consenso de que é na segunda metade do


século XX que a mesma se constitui como uma proposta pedagógica com um corpo
de princípios e metodologias. No entanto, já em Martí é possível identificar aspectos
que mais tarde passarão a formar as bases político-pedagógicas da educação popular.
(STRECK, 2008, p. 8).

A Educação Popular latino-americana é fruto da resistência popular, em meio a


conflitos econômicos, sociais e políticos. Nesse sentido, as propostas de Simón Rodríguez e
José Martí estão politicamente ligadas por uma região colonizada, invadida e expropriada.
Suas propostas são parte de uma pedagogia crítica e radical latino-americana e uma educação
comprometida com a libertação.
Entre diferentes perspectivas, na presente dissertação minha escolha é focar meu
trabalho de investigação na educação popular libertadora. Trata-se de uma educação que
contém uma dimensão subversiva, como parte da construção de outra cultura; tendo em vista
reagir pedagogicamente contra variadas formas de opressão. Essa forma educativa se constitui
como parte da história de gentes – mulheres e homens, que lutaram e seguem lutando nas
bases/chão desse território, dedicando-se a pensar e fazer da educação um instrumento de
bases da revolução popular para a construção do que Gramsci chamou de contracultura e de
contra-hegemonia.

É assim que a Educação Popular se transforma num poder popular. Por meio de uma
cultura popular, por meio de uma nova forma de viver em Sociedade, de pensar e
agir (democraticamente), enfim, de bem viver, consigo mesmo, com os outros e com
a natureza. [...] A Educação Popular visa a construção de um poder popular que não
nasce pronto e acabado. Para ser “popular”, ele deve construir-se dialogicamente
com o povo. O que é de todos deve ter a participação de todos. (GADOTTI, 2016, p.
7).

Para Danilo Streck (2010), a origem da educação popular se apresenta ligada aos
movimentos sociais populares, numa expressão emancipatória de ser uma “pedagogia do
oprimido (e não para ele)”, tendo como tarefa a reivindicação de espaço na estrutura existente,
mas, especialmente, na estratégia de rupturas e busca de novas possibilidades de organização
da vida material. Para Streck e outros autores, as lutas latino-americanas foram e são
processos educativos de formação da consciência emancipatória, bem como os movimentos
sociais populares com ações revolucionárias, que têm a educação popular como força
78

constitutiva das práticas educativas.


Para finalizar esta seção, abordarei a refundamentação/ressignificação da educação
popular, debatida e problematizada por um conjunto de intelectuais, a partir da segunda
metade dos anos 1980. A refundamentação se configura pela retomada da educação popular
libertadora associada à busca de novos paradigmas emancipatórios, novos sujeitos e novos
territórios, articulados diretamente com o pensamento decolonial.

3.1 EDUCAÇÃO POPULAR: DOIS PRECURSORES LATINO-AMERICANOS

No território de Abya Yala23, diversos lutadores, intelectuais e educadores


contribuíram para a construção de um pensamento pedagógico da “América desde América”,
reconhecendo “nuestro americanismo” e deixando um legado de luta pela liberdade. Nesse
contexto, destaco, como precursores, o venezuelano Simón Rodríguez e o cubano José Martí.
Para ambos, um povo que sabe quem é, educando-se a partir disso, torna-se livre. Suas obras
têm fundamentado práticas e estudos de uma concepção de educação popular libertadora, que
se constitui na minha opção política e conceitual, que caracterizarei na sequência desta seção.
A seguir, apresento elementos do percurso e da proposta educativa desses dois precursores
latino-americanos.

3.1.1 Simón Rodríguez (1771-1854)

De acordo com Tavares (2013, p. 184), ao findar do século 18, no continente de


dominação espanhola, “uma voz solitária propõe outra forma de educar as crianças.” Já não
era possível que a educação ficasse restrita aos jovens “brancos bem nascidos”, o estado
tinha a tarefa de investir numa educação popular comprometida com a formação de
meninos, meninas, negros e indígenas. Tal proposta revolucionária levaria esse educador
“para fora da escola”, o que daria início “a incrível trajetória” do jovem Simón Narciso Jesús
Rodríguez, professor em uma pequena escola da cidade de Caracas, Venezuela, e que
marcaria a história da educação popular na América Latina.

Simón Rodríguez é pouco conhecido no Brasil, mesmo entre os estudiosos da

23
Abya Yala, na língua do povo Kuna, significa Terra madura, Terra Viva ou Terra em florescimento e é
sinônimo de América. O povo Kuna é originário da Serra Nevada, no norte da Colômbia, tendo habitado a
região do Golfo de Urabá e das montanhas de Darien e vive atualmente na costa caribenha do Panamá, na
Comarca de Kuna Yala (San Blas). [...] Abya Yala vem sendo usado como uma autodesignação dos povos
originários do continente em oposição à América (PORTO-GONÇALVES, 2009, p. 26).
79

História da Educação. [...] Nasceu em 21 de outubro de 1771, em Caracas, foi


abandonado na roda de expostos (era um menino branco) e, posteriormente, adotado
pela viúva Rosália Rodríguez. [...] Recebeu instrução elementar em Caracas; na
escola do convento de São Francisco teve o padre franciscano Frei Manuel de Jesús
Nazareno Zidália, homem culto e bem formado em filosofia, como mestre. Recebeu
o título de Professor Primário aos vinte anos, iniciando sua prática cotidiana.
Conhecia as “novas” ideias filosóficas e não aceitava a situação política da Capitania
da Venezuela. (COELHO PRADO, 2002, p. 199).

Simón Rodríguez nasceu e cresceu numa Caracas de espanhóis e criollos que eram
servidos por escravos. Segundo Tavares (2013, p. 184), para a sociedade de Caracas “o
trabalho era basicamente uma desonra e aos filhos da classe dominante se permitia
unicamente a carreira militar além dos postos de mando da vida cotidiana.” A autora
menciona ainda que “havia somente três estabelecimentos de educação na cidade: o convento
dos Franciscanos, uma escola pública e a Universidade.” Rodríguez tinha grande facilidade
com as letras, amava ler e era observador, foi alfabetizado em casa, pelo tio, um sacerdote,
que mantinha uma rica biblioteca. Nesse período de aprendizagem de Simón Rodríguez,
chegavam na cidade “os franceses da ilustração (Montesquieu, Voltaire, Rousseau).” Teve
acesso também “aos escritos que chegavam dos Estados Unidos e acompanhou o processo de
independência daquele país, bem como o da Revolução Francesa. Forjava-se nele o espírito da
rebelião.”
Para Gonzalez (2006, p. 8), Simón Rodríguez tinha “dotes muito altos de
intelectualidade”, somado a um caráter altivo e com ideias e costumes singulares, o que o
levou a sofrer consequências no contexto social da época. A vida do jovem mestre
desenvolveu-se entrelaçada às utopias latino-americanas, e sua proposta de sociedade e de
educação vinculava-se ao pensamento de Rousseau. De acordo com Márquez (2005, p. 41),
“Rodríguez se apoyó con vehemencia en las ideas de Rousseau y con similar estilo plantea la
protección que se les debe a las mujeres y los niños.”
O educador Simón considerava as crianças sujeitos históricos e, portanto, parte da
construção das sociedades latino-americanas livres. “De los viejos, nada nuevo pode
esperarse. De los hombres puede esperarse algo. De jóvenes puede esperarse mucho. De los
niños puede esperarse TODO.” (RODRÍGUEZ, 2007, p. 118).
Com apenas 20 anos, Simón Rodríguez passa a lecionar na escola pública de Primeiras
Letras, na cidade de Caracas, trabalhando com meninos, entre eles, seu mais famoso pupilo,
aquele que viria a ser seu companheiro de utopia na edificação da Pátria Grande, “o libertador
Simón Bolívar.”

Rodríguez inicia sua carreira de mestre de primeiras letras para meninos, lecionando
80

para Simón Bolívar – seu mais famoso educando – em 1792, tornando-se seu
preceptor em 1795, quando Bolívar, com 12 anos de idade, vive temporariamente na
casa do mestre. A relação entre Rodríguez e Bolívar é de suma importância para o
entendimento do período pós-independência, quando Bolívar confiará a Rodríguez o
planejamento da instrução pública republicana. (MAZILÃO FILHO, 2017, p. 3).

De acordo com Tavares (2013), em 1794 Simón Rodríguez publica o texto Reflexões
sobre os defeitos que viciam a Escola de Primeiras Letras de Caracas e os meios para uma
reforma por um novo estabelecimento. Nesse texto critica a escola venezuelana e sugere uma
reforma profunda. O jovem Simón almejava uma escola com professores formados e
profissionalizados, recebendo salários dignos e realizando jornadas de seis horas. Nessa
escola seriam atendidas todas as crianças em idade escolar, inclusive, crianças pobres, filhos
de agricultores e artesãos (até então as crianças pobres eram educadas por qualquer pessoa,
inclusive, em barbearias).

Simón Rodríguez propone un proyecto educativo que nos haga americanos y no


europeos y una pedagogía que “sea para la vida” y nos permita ser constructores
de ese proyecto. Se anticipa muchos años a la discusión entre enseñanza y
aprendizaje, mostrándonos un camino muy diferente al del instruccionismo. Por ello
afirma: “el título de maestro no debe darse sino al que sabe enseñar, esto es, el que
enseña a aprender, no al que manda aprender o indica lo que se debe aprender”.
(MEJÍA, 2015, p. 40).

Rodríguez propunha o aumento do número de escolas. Previa uma escola gratuita e


voltada para o trabalho, onde crianças ricas aprenderiam na prática e crianças pobres teriam
acesso ao acúmulo cultural e histórico. A escola deveria ser “mescla e harmoniosa”,
constituindo-se espaço também para os excluídos, tendo em vista contrapor o racismo e a
hegemonia dominante do saber. Ele considerava a escola como espaço para a construção do
pensamento e da ação (teoria e prática), assim como instrumento para construção do território
(GONÇALVES, 2013).

Adepto às ideias socialistas, Rodríguez propõe uma educação igual a todos, sem
distinção, abrindo espaço para os excluídos, como os pardos, os negros e os índios,
contrariando assim as teorias raciais inatistas. Rodríguez acreditava que a educação
era fundamental para a construção da nação, logo, deveria ser obrigatória e pública,
bem como deveria ser a mescla harmoniosa entre educação social, corporal, técnica
e científica. (GONÇALVES, 2013, p. 26).

Rodríguez propõe que o Estado garanta uma educação mista, onde tenham filhos da
aristocracia, pobres, negros e indígenas, e que seja de meninos e meninas. Galeano (1996, p.
122) destaca como deveria ser a educação para Rodríguez:

Se ha de educar a todo el mundo sin distinción de razas ni colores. No nos


81

alucinemos: sin educación popular, no habrá verdadera sociedad. [...] En las


escuelas deben estudiar juntos los niños y las niñas. Primero, porque así desde
niños los hombres aprenden a respetar a las mujeres; y segundo, porque las mujeres
aprenden a no tener miedo a los hombres. (GALEANO, 1996, p. 161-162).

A escola de Simón Rodríguez era parte de sua utopia de libertação. A educação seria
um dos instrumentos de reforma da sociedade e transformação do ser humano, portanto, não
deveria existir distinção entre os educandos e educandas. Assim, Galeano (1996, p. 160)
expressa: “El loco Rodríguez se propone mezclar a los niños de mejor cuna con los cholitos
que hasta anoche dormían en la calle. [...] en la escuela de don Simón, niños y niñas se
sientan juntos, todos pegoteados.”
Seus escritos são de enfrentamento à educação vigente, e a terminologia Educação
Popular está em grande parte de seus debates e práticas. Na obra Luces y Virtudes Sociales
(1840), Simón Rodríguez esclarece: “El objeto del autor, tratando de las Sociedades
Americanas, es la Educación Popular, y por Popular entiende Jeneral. — Instruir no es
Educar; ni la Instrucción puede ser un equivalente de la Educación, aunque Instruyendo se
Eduque.” (RODRÍGUEZ, 1954, p. 370).
Para Simón, todas as pessoas teriam condições de adquirir luzes e virtudes sociais a
partir da educação, o que levaria à participação ativa na sociedade. Para ele, a educação
tornaria o povo americano consciente de sua força na organização da nação. Nos argumentos
de Rodríguez: “los pueblos no pueden dejar de haber aprendido, ni dejar de sentir que son
fuertes: poco falta para que se vulgarice, entre ellos, el principio motor de todas las acciones,
que es el siguiente: la fuerza material está en la MASA y la moral en el MOVIMIENTO.”
(RODRÍGUEZ, 1954, p. 181).
A defesa do povo mestiço da América Latina lhe rendeu perseguições, mas também
espaços de proposições e lutas em favor de uma educação igual para todos, com princípios
socialistas e soberanos. Rodríguez evidenciou seu posicionamento em relação às sociedades
dominantes e como percebia o povo dos países periféricos.

Aquéllos, maldicen la terquedad de unas naciones fuertes, acaudilladas por


Príncipes poderosos ... astutos ... enemigos de la Igualdad Social – Estos se burlan
de la sencillez de unos pueblos dóciles, que los eligen por maestros ... los aclaman
por jefes ... y les ruegan con la obediencia. (RODRÍGUEZ, 1954, p. 203).

Segundo Mazilão Filho (2017), Rodríguez foi denunciado e perseguido pela Coroa
Espanhola por conspiração para a derrubada do governo espanhol na Venezuela, o que
ocasionou sua fuga para a Jamaica em 1797. Tal fuga o levou para muitos lugares do mundo,
como Alemanha, Prússia, Rússia e Holanda, onde passa a educar e criar escolas, bem como
82

envolver-se nos debates socialistas. Conheceu de perto as propostas educacionais e não


deixou de fazer críticas e expor sua defesa a uma educação para todos e todas. O mestre de
Bolívar conseguiu levar seu projeto de educação para vários países.
De acordo com Tavares (2013, p. 186), aos 52 anos, Rodríguez volta para a América
do Sul, “disposto a dar todo o seu conhecimento para construir a Pátria Grande, liberta do
jugo espanhol. Vinha honrar o juramento que fizera com Bolívar há quase 20 anos. As guerras
de independência já estavam quase consolidadas. Bolívar era o grande libertador e comandava
os destinos de toda a Gran Colômbia.”
A Educação Popular, presente nos escritos de Rodríguez, passa a fazer parte do plano e
processo de libertação “del libertador Simón Bolívar”. Para ele, assim como para seu
preceptor, a educação era instrumento central na formação da consciência e emancipação dos
povos mestiços, somente o conhecimento poderia garantir a consciência da liberdade recém-
conquistada. A educação, para Bolívar, tinha a tarefa da construção do conhecimento
científico, negado ao povo nativo, mas também de consolidar uma consciência coletiva de
cidadãos livres no novo mundo.

A escravidão é filha das trevas; um povo ignorante é um instrumento cego de sua


própria destruição: a ambição e a intriga abusam da credulidade e da inexperiência
de homens alheios a todo conhecimento político, econômico ou civil. Adotam-se
como realidade meras ilusões. [...] Um povo pervertido, se alcança rapidamente sua
liberdade, logo volta a perdê-la, porque é inútil tentar mostrá-lo que a felicidade
consiste na prática da virtude; que o império das leis é mais poderoso que o dos
tiranos. [...] Com membros inchados pelos grilhões, a vista enfraquecida pelas
sombras das masmorras e aniquilados pelas pestilências servis, serão capazes de
caminhar com passos firmes rumo ao augusto templo da liberdade? Serão capazes de
admirar de perto seus esplêndidos raios e de respirar sem opressão o ar puro que ali
reina? (BOLÍVAR, 1992, p. 85).

Simón Rodríguez, pedagogo Venezuelano, considerado por pesquisadores como o


primeiro socialista da América Latina – intelectual comprometido com a educação das
crianças, meninos e meninas, negros, brancos, índios e mestiços –, declarou, em uma de suas
obras, “no nos alucinemos: sin Educación Popular, no habrá verdadera Sociedad.”
(RODRÍGUEZ, 1975, p. 79).
Até à sua morte, Simón Rodríguez falou sobre a subordinação dos povos colonizados e
a urgência de uma educação que contribuísse na emancipação dos povos. Ele faz parte do
pensamento libertador da educação Americana, e, portanto, alguém que se soma ao conjunto
de intelectuais da América Latina na construção da soberania e de uma pedagogia libertadora.
Em uma de suas falas, expõe:

Yo dejé la Europa por venir a encontrarme con Bolívar, no para que me protegiese,
83

sino para que hiciera valer mis ideas a favor de la causa. Estas ideas eran (y serán
siempre) empreender una educación popular, para dar ser a la República
imaginaria que rueda en los libros y en los Congresos. (RODRÍGUEZ, 2004, p. 17).

Para Antequera (2013), Simón Rodrigues conheceu a sociedade colonial mais do que
qualquer sociólogo. Por ter estudando não somente nos livros, mas vivido os problemas
sociais, sendo ele mesmo um excluído desde seu nascimento até sua morte. E, portanto, suas
críticas e reflexões a respeito da educação têm a ver com a equidade de direitos e justiça
social. Segundo a autora, por muito tempo, a grandeza de seu pensamento não foi
compreendida.
O próprio Simón Rodríguez chegou a reconhecer: “Hay ideas que no son del tiempo
presente aunque sean modernas, ni de moda aunque sean nuevas. Por querer enseñar más de
lo que todos aprenden, pocos me han entendido, muchos me han despreciado y algunos se
han tomado el trabajo de perseguirme.” (RODRÍGUEZ, 1975, p. 298).

Aquele que forjou Bolívar para a libertação tinha tanto amor pela educação que,
apesar de toda a sisudez, foi capaz de produzir poesia. “Ler é ressuscitar ideias
sepultadas no papel. Cada palavra é um epitáfio. Chamá-las à vida é uma espécie de
milagre e, para fazê-lo, é necessário conhecer o espírito das palavras”. Tratado como
louco ele ficou esquecido por longo tempo. Agora, tal qual as palavras que amava,
ele também ressuscita, para assumir seu lugar no panteão dos grandes sábios dessa
Abya Yala. (TAVARES, 2013, p. 192).

Na complexidade das relações sociais e na formação do Estado nos países da América


Latina, com lutas por libertação, é que a Educação Popular se forja, o que Raul Mejía
denominou de “teia social da América Latina”, considerando que:

[…] como na Educação Popular não é uma prática de agora ou dos últimos quarenta
anos, mas uma dinâmica que, nos últimos duzentos anos, tem estado presente na teia
social da América Latina. Deste modo, se reconhecemos que nosso pai é Freire, o
nosso avô é Simón Rodríguez, professor de Simón Bolívar, que estabeleceu, no
começo do século XIX, as bases da Educação Popular que a América precisava e
que, então, foi proposta para alguns dos pais das repúblicas latino-americanas.
(MEJÍA, 2006, p. 206).

Para Mazilão Filho (2017), as raízes da Educação Popular latino-americana referem-se


aos processos de secularização da educação, que ocorreram com a expulsão dos jesuítas dos
impérios ibéricos e a construção das repúblicas latino-americanas, entre a metade do século
XVIII e a primeira metade do século XIX.
A intencionalidade emancipatória da proposta de educação popular de Simón
Rodríguez fecundou no território e teve continuidade com o cubano José Martí. As duas
obras, e suas respectivas singularidades, têm contribuído na formulação epistemológica de
84

práticas de movimentos sociais latino-americanos. Rodríguez e Martí “encontram-se” na


proposta de uma educação para todos e todas, sem distinção de classe ou de raça.

3.1.2 José Martí (1853-1895)

José Julián Martí Pérez (1853-1895), filho de Mariano Martí (sargento de polícia da
cidade), natural de Valência, na Espanha, e Leonor Pérez Cabrera, das Ilhas Canárias, foi
poeta, jornalista, político e escritor cubano. Segundo Rodríguez (2006, p. 8), José Martí
nasceu em 28 de janeiro de 1853, em uma das últimas colônias da Espanha na América. Teve
a vida dedicada a contrapor o avanço imperialista “lutou para subverter a ordem em seu país,
no continente e no mundo”, priorizando a América Latina e suas relações com os Estados
Unidos.

Martí, adolescente, manteve-se a par do desastre espanhol com a anexação de Santo


Domingo, da vitória dos liberais mexicanos frente ao império de Maximiliano, e do
triunfo do norte abolicionista sobre o Sul escravagista nos Estados Unidos. As
principais características do contexto sócio político era o liberalismo, o
republicanismo, o progresso técnico e científico e a luta pela abolição da
escravatura. (RODRIGUEZ, 2006, p. 8).

De acordo com Rocha (2014, p. 3), Martí tinha afinidade com as letras desde muito
cedo, o que o levou a aproximar-se de um de seus professores da escola secundária, o poeta
Rafael Maria de Mendive, que contribuiria na construção do pensamento de seu educando.
Com apenas dezesseis anos, José Martí “foi preso pelo governo espanhol por estar na posse de
documentos considerados revolucionários.” Segundo a autora, “naquela época, Martí já havia
participado da publicação do periódico ‘La Patria Libre’, em 1869, ano em que o clima
político em Cuba se encontrava extremamente conturbado”, pois, no ano anterior, iniciara um
processo de independência na colônia, sob a liderança de Carlos Manoel Céspedes.
Rocha (2014, p. 3-4), menciona, ainda, que aos 18 anos José Martí foi exilado em
Madri, “decorrente de sua condenação a seis anos de trabalhos forçados por seu envolvimento
com atividades políticas.” Em Madri, graduou-se em Direito, Filosofia e Letras,
posteriormente, morou em outros países, como França, México e Guatemala. José Martí viveu
e observou a vida política e cultural em cada país que passou. Como pensador crítico, ao
analisar a conjuntura de outras realidades voltou-se ainda mais para suas raízes, e, portanto,
sobre a independência de seu povo.

No final do século 19, aquele cubano nervoso e sensível de eloquência torrencial na


palavra oral e escrita, de roupas gastas e sapatos rasgados, atribuiu-se o propósito de
85

impedir a expansão territorial e econômica dos Estados Unidos para o sul do


continente, pelas Antilhas, como primeiro e necessário passo de seu percurso
dominador. (RODRIGUEZ, 2006, p. 8).

Em 1878, retornou a Cuba, “após a primeira fase da guerra da independência, mas foi
novamente deportado logo em seguida, em 1880, pelo envolvimento com atividades
revolucionárias.” (ROCHA, 2014, p. 4).

Foi para Nova Iorque, em 1881 e por lá ficou até a sua morte, em 1895, tendo tido
uma breve passagem pela Venezuela. Foi nos Estados Unidos onde Martí vivenciou
o seu período mais produtivo, tanto na publicação de crônicas, artigos e textos
literários, quanto na sua atividade política. Ele publicava em periódicos como La
Opinión Nacional, de Caracas; La Nación, de Buenos Aires e El Partido Liberal, do
México. Em 1892, fundou o Partido Revolucionário Cubano e o seu jornal diário
Patria. (ROCHA, 2014, p. 4).

Segundo Rodriguez (2006, p. 9), foi nos últimos anos de vida que Martí alcançou a
plenitude como pensador e político, dedicando-se “às tarefas de organizar a guerra pela
independência.” Sua concepção latino-americanista amadurecia progressivamente, iniciando a
execução de sua estratégia de realização das práticas libertadoras para o continente e de
projeções universais. Martí contribuía na reorientação das nações do continente com bases na
justiça social para as massas populares, ao mesmo tempo expandia o pensamento de unidade
dos povos latino-americanos para combater o inimigo de fora, a partir da revolução e a
construção da “Nuestra América”.

Nada espera el pueblo cubano de la revolución que la revolución no pueda darle. Si


desde la sombra entrase en ligas, si con los humildes o con los soberbios, sería
criminal la revolución, e indigna de que muriésemos por ella. Franca y posible, la
revolución tiene hoy la fuerza de todos los hombres previsores, del señorío útil y de
la masa cultivada, de generales y abogados, de tabaqueros y guajiros, de médicos y
comerciantes, de amos y libertos. Triunfará con esa alma, y perecerá sin ella. Esa
esperanza, justa y serena, es el alma de la revolución. Con equidad para todos los
derechos, con piedad para todas las ofensas, con vigilancia contra todas las zapas,
con fidelidad al alma rebelde y esperanzada que la inspira, la revolución no tiene
enemigos, porque Espanã no tiene más poder que el que le dan [...] (MARTÍ, 2001,
p. 138).

“Nuestra América” é a expressão da identidade latino-americana, escrita e defendida


por José Martí. Para ele, “uma outra América era necessária”, construída a partir dos povos
daqui, para vencer a cultura colonial e eurocentrada, que não fazia parte da realidade do
continente (STRECK; ADAMS; MORETTI, 2008, p. 417).

Nossa América é ao mesmo tempo ficção e realidade. É ficção porque em nenhum


mapa encontramos um território identificado com esse nome e não há demarcação
do que estaria dentro ou fora dessa nossa América. É realidade porque José Martí
preenche a expressão com um sentido denso e preciso. (STRECK, 2008, p. 32).
86

De acordo com Ianni (1987), uma das prioridades de Martí consistia na construção de
uma Nação soberana, que tivesse uma constituição em conformidade com as forças sociais e
uma economia baseada na realidade, considerando as diversidades regionais, raciais e
culturais. O autor prossegue dizendo que as lutas simbolizadas por José Martí e muitos outros
estão enraizadas no preceito de emancipar a colônia, criar o Estado e organizar a Nação, para
superar o colonialismo e tudo o que ele representou para o continente latino-americano.

O que há de épico nas lutas simbolizadas por Tausaint Louverture, Francisco de


Miranda, Simón Bolívar, José Artigas, José Morelos, Miguel Hidalgo, Bartolomé
Mitre, Bernardo O'Higgins, Antonio Sucre, José Bonifácio, Frei Caneca, Ramón
Betances, José Martí e muitos outros, está enraizado na façanha destinada a
emancipar a colônia, criar o Estado, organizar a Nação. Retirá-la do colonialismo,
absolutismo, mercantilismo, acumulação originária, conferindo-lhe um nome. A
criação do Estado, segundo os princípios adotados na constituição, em conformidade
com as forças sociais, as peculiaridades da economia, as diversidades regionais,
raciais e culturais, tudo isso representa o empenho de descobrir o perfil da Nação.
(IANNI, 1987, p. 6).

José Martí denunciou o poder oligárquico e o sistema colonial implantado no


continente. Para ele, era fundamental a unidade continental e a luta emancipatória do
território. Conforme Fernandes Retamar (2006, p. 17-18), para Martí era essencial “avançar
na direção de um pensamento revolucionário próprio da América Latina e forjar soluções
revolucionárias específicas, que não poderiam ser importadas nem da Europa, nem dos
Estados Unidos (de onde saíram a velha dominação colonial e o novo imperialismo).”
Suas obras compõem a utopia da Educação Popular, com práticas educativas
libertadoras e de construção da autonomia e emancipação ─ entendendo-a como educação de
qualidade para todos e todas, com contribuição na formação de homens e mulheres capazes de
conduzir espaços políticos na sociedade.

Talvez a figura mais expressiva seja José Martí, com sua insistência na formação de
homens e mulheres para o que ele chamava de nossa América, uma educação que
reconhecesse as peculiaridades deste subcontinente e que formasse cidadãos e
governantes para as jovens nações que aqui nasciam. (STRECK, 2010, p. 302).

Danilo Streck (2008), analisando o pensamento de José Martí, argumenta que nos
debates do educador e libertador se encontra uma expressão lúcida do que ele compreendia
ser a educação latino-americana, com traços de uma pedagogia própria da realidade. Segundo
o autor, a dedicação de Martí “à causa revolucionária em Cuba ao longo da segunda metade
do século XIX inclui a educação como um fator central para conquistar a independência.”
(STRECK, 2008, p. 3).
87

A meu ver, é importante mencionar que assim como Simón Rodríguez, Martí pensava
a educação para todas as classes sociais na América Latina. Sua intencionalidade era tornar o
território livre, e, portanto, a educação era um dos principais instrumentos de libertação do seu
povo. Argumentava que “un pueblo ignorante puede engarfiársele con la superstición, y
hacérsele servil. Un pueblo instruido será siempre fuerte y libre.” (MARTÍ, 2001, v. 19, p.
375).

Educación popular no quiere decir exclusivamente educación de la clase pobre;


sino que todas las clases de la nación, que es lo mismo que el pueblo, sean bien
educadas. Así como no hay ninguna razón para que el rico se eduque, y el pobre no,
¿qué razón hay para que se eduque el pobre, y no el rico? Todos son iguales.
(MARTÍ, 2001, v. 19, p. 375).

José Martí acreditava numa educação própria do território como direito de todo o
povo. Para ele, a nação seria infeliz se não educasse seus filhos, declarando que um povo
educado seria sempre um povo livre. Em suas palavras, “La educación es el único medio de
salvarse de la esclavitud. Tan repugnante es un pueblo que es esclavo de hombres de otro
pueblo, como esclavo de hombres de sí mismo.” (MARTÍ, 2001, v. 19, p. 375-376).
Os povos camponeses tiveram grande importância nos escritos de José Martí, que
considerava as cidades como a “mente” das nações, e o campo como o “coração e o sangue”,
sendo “a melhor massa nacional”. O pensamento pedagógico de Martí (2001) estava
relacionado à vida, e, desse modo, os camponeses não podiam abandonar o trabalho na terra
ou andar grandes distâncias para aprenderem. Dessa forma, propunha uma educação que
concebesse “o conhecimento direto e fecundo da natureza” (p. 67), ou seja, uma educação que
lhes fizesse sentido entre os conhecimentos científicos e a prática das suas vivências.
Para tanto, Martí (2001) preconizou que “maestros ambulantes” percorressem as
comunidades e vilas, tirando dúvidas, respondendo perguntas, dialogando. Tais mestres
“ensinariam com eles”, num processo em que as pessoas do campo mantivessem o
conhecimento da terra e a transcendência da vida.

No enviaríamos pedagogos por los campos, sino conversadores. Dómines no


enviaríamos, sino gente instruida que fuera respondiendo a las dudas que los
ignorantes les presentasen o las preguntas que tuviesen preparados para cuando
vinieran, y observando dónde se cometian errores de cultivo o se desconocían
riquezas explotables, para que revelasen éstas y demostraron aquéllos, con el
remedio al pie de la demonstración. (MARTÍ, 2001, v. 8, p. 291).

Segundo Streck (2008, p. 21), para Martí, o conhecimento técnico e científico não era
uma finalidade em si. O autor argumenta, que mesmo sendo de total relevância tais
conhecimentos, para Martí eram considerados “meios criados pela humanidade para enfrentar
88

as dificuldades da vida que, por sua vez, não se esgotam através daquilo que a ciência é capaz
de prover.” Para Martí, sua proposta estava relacionada à construção humana e levar através
dos pedagogos/mestres mais que ciência: “eis aqui [...] o que têm de levar os mestres pelos
campos. Não somente explicações agrícolas e instrumentos mecânicos; mas a ternura, que faz
tanta falta e tanto bem aos homens.” (MARTÍ, 2001, v. 8, p. 289).
O debate da educação científica, para José Martí, ganha importância quando ele
percebe a necessidade de abrir escolas normais com mestres que trabalhem a teoria e a
prática. Para ele, a educação deveria atingir vales e colinas. Nesse sentido, a escola ambulante
era a única que podia tornar os campesinos povos cultos a partir de suas realidades. A
educação na cidade e no campo deveria ser pública e para todos: “que la enseñanza científica
vaya, como la savia en los árboles, de la raíz al tope de la educación pública.” (MARTÍ,
2001, v. 8, p. 278).
Para o libertador cubano, a filosofia e a educação das jovens repúblicas deveriam
contrariar a instrumentalização da educação para a “repetição”, mas deveria alimentar-se da
criticidade e da curiosidade. Para Martí, o mestre deveria ir ao encontro do povo, levando não
apenas o conhecimento científico de sua época, mas também ternura. A educação martiana
acompanhava os movimentos da sociedade e da vida, não pela superação da barbárie por meio
da civilização, como defendia Sarmiento, mas por intermédio do reconhecimento das
características próprias da mestiçagem latino-americana, de sua natureza, em relação à “falsa
erudição”, porque se sabe que se imita demais ao norte.
Segundo Rodriguéz (2006, p. 7), o pensamento de Martí tinha dois eixos essenciais:
“Seu latino-americanismo e seu anti-imperialismo.” Tal pensamento foi e é base para as lutas
dos movimentos sociais deste continente. Martí apresentou a necessidade de libertar, e
demostrou que ser latino-americanista é complementar a ser anti-imperialistas, e, portanto,
forja junto de outros libertadores um processo de lutas e pensares críticos e de enfrentamento
à colonialidade do poder.
As obras de Rodríguez e Martí atravessaram fronteiras, para além de territórios
denunciaram o discurso colonial, e compuseram o pensamento pedagógico do continente,
alicerçado em ideias de autonomia, emancipação e libertação. Essa pedagogia tem veias de
resistência dos povos, com olhares e práticas insubordinadas à colonialidade. Simón
Rodríguez e José Martí compõem a gama de lutadores e intelectuais da libertação das terras
de Abya Yala.
89

3.2 EDUCAÇÃO POPULAR: DIFERENTES PERSPECTIVAS

Historicamente, a educação popular é associada a diferentes termos. Das variadas


formas atribuídas à educação popular, Garcés (2006, p. 77) lembra que a denominação
“educação popular” é usada com outros sentidos, “por exemplo, como educação do povo feita
pelo Estado, com objetivo de moralizá-lo, ‘civilizá-lo’ ou, em outras etapas, ‘integrá-lo’ ao
desenvolvimento.” Porém, o autor se reporta ao termo popular da “educação popular”, que,
segundo ele, desde os anos 1960 opta pela promoção de práticas educativas “libertadoras”,
com objetivo da emancipação humana, desenvolvendo sujeitos coletivos e populares capazes
de constituírem-se protagonistas das necessárias mudanças sociais e políticas em favor da
justiça e da igualdade.
Segundo Puiggrós (2003, p. 19), a educação popular não pode ser reduzida a uma
modalidade educativa, como educação não formal, educação de adultos, alfabetização rural,
ou trabalho com setores populares. A “educação popular é sempre uma posição política e
político-pedagógica, um compromisso com o povo.” Por outro lado, conforme Brandão
(2003, p. 44), a educação popular tradicionalmente oscila entre a vocação populista e um
compromisso de classe, sendo que esse consiste “não apenas uma forma avançada de
educação do povo, mas um movimento pedagógico e, depois, um movimento popular que
incorpora um movimento pedagógico.”
De acordo com Brandão (2003, p. 44), “na margem esquerda de um trabalho
institucional de educação para o povo, a educação popular irrompe como um movimento
primeiro de renovação e, depois, de revolução do saber e de transformação do mundo pelo
poder de um saber popular.” Esse saber popular sistematizado e organizado se contrapõe ao
saber capitalista, e, junto com outros processos contra-hegemônicos, procura superar o
sistema que desde o início foi colonizador, escravagista e de exploração do continente latino-
americano. Essa perspectiva educativa promoveu o discurso da autonomia de classe,
absorvendo elementos das teorias marxista e gramsciana, construindo experiências de
contracultura e da contra-hegemonia.

Em contrapartida, temos proclamado também a existência alternativa de um modelo,


que, em diferentes contextos limitados de realização de trabalho pedagógico, tem
gerado inúmeras possibilidades reais de uma prática educativa com o povo, uma
educação que quer ser autônoma e produtora de autonomia de classe, dialogal,
comprometida, participante, crítica, conscientizadora, livre e libertadora. A ela temos
dado o nome de educação popular e, não raro, o título de educação libertadora.
(BRANDÃO, 2003, p. 32).
90

Conforme Mejía (2001, p. 16), na América Latina foi construído um “pensamiento


educativo y pedagógico latinoamericano que es múltiple y todavía disperso.” No entanto, ao
longo do tempo, as práticas educativas que perpassaram várias conjunturas produziram teorias
próprias ao continente, o que Mejía (2011, p. 145) caracterizou como “acumulado histórico”
da educação popular.

Si miramos hacia atrás, reconocemos troncos refrendadores de la Educación


Popular en infinidad de prácticas: los métodos alfabetizadores, los grupos
cristianos, los procedentes de la academia, los procesos productivos, los
movimientos culturales, los procesos políticos y muchos más. Esta variedad de
orígenes produce una cierta dispersión en los elementos constitutivos de la
Educación Popular; razón demás para que sean analizados y así buscar la manera
de construir – desde ese acumulado histórico, en ocasiones contradictorio – la
nueva práctica de la Educación Popular. (MEJÍA, 2001, p. 10).

O autor prossegue em seu argumento de que todo processo pelo qual passou a
educação popular foi de grande valia sociopolítica, assim como o conhecimento produzido
sobre o tema foi sendo enriquecido ao longo do tempo. Tal acúmulo foi e é imprescindível
para a ressignificação e recomposição temática da educação popular. Retomar tradições
históricas, carregadas de símbolos, identidades e sonhos, para reorganizar o campo na
atualidade – essa é a tarefa dos intelectuais e dos pesquisadores (MEJÍA, 2001).

La tarea central consistirá en retomar todas esas tradiciones históricas, analizar lo


que le han aportado a la Educación Popular y construir una nueva identidad; esto
es, permitir una recomposición temática que no sea la suma de todas las tradiciones
sino la ampliación de ellas en lo que hoy es vigente. Así será posible reorganizar su
campo de tal manera que construyamos un horizonte con el legado histórico
acumulado, haciendo un ejercicio de desechar, pero por vía de la vigencia histórica
en este contexto. (MEJÍA, 2001, p. 11).

Um complexo conjunto de sentidos que a noção de educação popular adquiriu no


continente resultou em práticas e entendimentos tipicamente latino-americanos. Mejía (2011,
p. 16), argumenta que suas últimas pesquisas demonstram o reconhecimento da contribuição
da pedagogia latino-americana na origem e configuração das pedagogias críticas no mundo de
hoje, formuladas em outras parte do mundo, especialmente “desde el mundo del Norte.”
Segundo o mencionado autor, a educação popular faz parte do pensamento educativo e
pedagógico latino-americano como “una práctica con historia” (MEJÍA, 2011, p. 19), que
cruzou fronteiras, e que, por vezes, é mais reconhecida no norte do que em nosso continente.
Assim, reconhecer o processo histórico que constituiu a educação popular é fundamental para
entender porque esta educação se torna de fato popular.
91

[…] significa no sólo recoger los retos para dar respuesta a estos cambiantes
tiempos, sino también un ejercicio de volver al adentro de ella y de sus prácticas, y
desde allí reconocer los elementos que desde su acumulado hoy le dan una
presencia y una vigencia que nos permita dar cuenta en este momento histórico de
¿para qué?, ¿por qué?, ¿cómo? se hace educación popular. (MEJÍA, 2011, p. 19).

A educação popular teve impacto na história educacional e organizacional do povo da


América Latina. Como lembra Mejía (2011), com desenvolvimentos próprios,
desaparecimento/invisibilidade e ressurgimento/emersão em determinadas conjunturas e
processos sociais de momentos específicos, deu-se forma a uma educação popular que os
autores ressignificam no século XXI. Defendendo a tese do “acumulado histórico”, Mejía
considera elementos de quatro troncos históricos como constituintes da educação popular na
América Latina:

a. En los pensadores de las luchas de independencia, el más explícito en hablar de


Educación Popular en este período fue Simón Rodríguez (1769-1854), maestro del
libertador Simón Bolívar. Habla de una educación que él denomina como popular y
que en sus escritos aparece con tres características:
• Nos hace americanos y no europeos, inventores y no repetidores.
• Educa para que quien lo haga, no sea más siervo de mercaderes y clérigos.
• Hace capaz de un arte u oficio para ganarse la vida por sus propios medios.
b. En los intentos de construcción de universidades populares a lo largo de la
primera mitad del siglo XX en América Latina, las más notables fueron las de Perú,
El Salvador y México. En ellas se trabajaba para dar una educación también con
características diferenciadas de las otras universidades:
• Educaba a los obreros y requería, por los sujetos destinatarios, cambiar el
contenido, los tiempos y la manera de hacer concreto el proceso educativo.
• Los dotaba de conciencia sobre su lugar y su papel en la historia.
• Construía y orientaba hacia la organización que defendía los intereses de estos
grupos.
c. En las experiencias latinoamericanas de construir una escuela propia ligada a la
sabiduría aymara y quechua, una de las más representativas fue la escuela Ayllu de
Warisata en Bolivia, promovida por Elizardo Pérez. Algunos de sus fundamentos
serían:
• Existe una práctica educativa propia de los grupos indígenas, derivada de su
cultura. Por ello, plantea hacer una propuesta de educación como movimiento,
proceso de creación cultural y transformación social.
• Se constituyen las “Escuelas del esfuerzo” en cuanto se plantean una
pedagogía basada en el trabajo.
• La escuela se extiende y es comunidad su arquitectura, su propuesta educativa.
Por ello, afirma: “más allá de la escuela estará la escuela”.
d. Construir proyectos educativos al servicio de los grupos más desprotegidos de la
sociedad. En este sentido, José María Vélaz, s.j., y su intento por construir una
escuela desde la educación popular integral como fundamento del Movimiento Fe y
Alegría, desde el año 1956 construía esta idea así:
• “Educación para romper las cadenas más fuertes de la opresión popular
mediante una educación cada día más extensa y cualificada.”
• “La desigualdad educacional y por lo tanto cívica de nuestra sociedad
pretendidamente democrática, en la que los privilegiados de clase reciben todos
los recursos académicos, técnicos y culturales para ser los dueños del pueblo.”
• “Después de tanta lucha no nos podemos resignar a vivir en una justicia
media. Éste debe ser el momento más alto, más claro, más resonante de nuestra
justicia integral.”
92

• “Fe y Alegría nació para impulsar el cambio social por medio de la educación
popular integral”. (MEJÍA, 2011, p. 20-22).

Na perspectiva desse autor, os quatro troncos históricos compõem um conjunto


diversificado de elementos que particularizam a educação popular na América Latina, ou seja,
pensadores das lutas da independência, universidades populares, escolas ligadas a saberes de
povos tradicionais, assim como projetos educativos e escolas baseadas na educação popular
integral. Para Gadotti (2012, p. 22), “a educação popular se constitui na contribuição teórica
mais importante da América Latina ao pensamento pedagógico universal.”
Gadotti (2012, p. 22) considera que, na origem, a educação popular é fruto de diversas
influências: “o anarquismo do proletariado industrial do início do século passado; o
socialismo autogestionário; o liberalismo radical europeu; os movimentos populares; as
utopias de independência (nacional desenvolvimentismo); as teorias da libertação e a
pedagogia dialética.”
Outros autores latino-americanos mencionam o uso do termo educação popular a partir
do final do século XIX, relacionado à escola, ou, nos termos de Puiggrós (2003, p. 20, 21) à
“instrução pública”. A autora menciona a influência do anarquismo e do socialismo que,
mesmo se tratando de posicionamentos adversários ao Estado, defendiam o vínculo com a
escola e, no fundo, com ideias liberais positivistas. Nesse sentido, considerava-se “o povo da
América Latina atrasado e necessitado de contribuições de uma cultura moderna, que
substituísse seu conhecimento tradicional.” Em outras palavras, para essa autora, anarquistas e
socialistas tentavam desconstruir o poder e o discurso dominante, porém, acreditavam que a
escola poderia dar conta da instrução do povo por meio de conteúdos de esquerda.
Brandão (2003) aponta que a primeira vez que se usou a expressão educação popular
de forma sistemática e militante foi na luta dos educadores por escola pública, no final do
século XIX, associada à “democratização liberal da educação”. Esse processo favoreceria o
avanço da participação dos cidadãos na sociedade/nação. O autor afirma tratar-se de “uma
proposta associada à esperança de que a distribuição igualitária do saber erudito propicie uma
correção na desigualdade de relações de trocas de bens e poder existentes nos outros setores
da vida social.” (BRANDÃO, 2006, p. 36).
Conforme Wanderley (2003), entre o final do século XIX até a primeira metade do
século XX, a educação popular seguiu tensionando a educação oficial e o debate da
democracia. Nesse contexto, a educação oficial se caracterizava pela orientação ideológica de
“integração”, ou seja:
93

[...] a eliminação da marginalidade social e sobre a necessidade de integração do


campesinato no capitalismo, o que seria conseguido enfatizando a alfabetização
como bandeira primeira de integração na cultura e no desenvolvimento, e depois
com o ensino profissionalizante, com a integração escola-indústria, e com os meios
de comunicação de massa como o grande meio de difusão cultural. No limite,
dependendo do estágio de cada nação, objetivava a expansão e consolidação do
capitalismo interno e sua compatibilização com a nova etapa do capitalismo
monopolista internacional. Essa educação buscava a ampliação da hegemonia das
classes dominantes burguesas e a sujeição das demais à ideologia dessas mesmas
classes, sendo a que mais se distanciava dos reais interesses das classes populares.
Em resumo, com essa orientação se desejava popularizar a educação oficial.
(WANDERLEY, 2003, p. 71).

Ao mesmo tempo, a educação popular encontrava-se pautada pela “orientação


nacional-populista” (WANDERLEY, 2003, p. 72). A intencionalidade era mobilizar setores
das classes populares para fazer alianças com setores das classes dominantes, então associadas
ao processo de industrialização e, portanto, com ideias ligadas ao desenvolvimento das nações
latino-americanas. Segundo Wanderley (2003, p. 72), buscava-se criar consenso sobre
“valores e tradições englobados numa cultura nacional.” Nesse processo, existiam duas
perspectivas para a educação: para os setores dominantes, a “educação tinha por intenção
distribuir as benesses da educação ‘oficial’ e, obviamente, não devia questionar sua
legitimidade ou seus fundamentos ideológicos”; para os que estavam na oposição, o autor se
refere a um “pequeno grupo com uma visão da educação popular e uma prática mais
consequente e um número ponderável dos que agiram no sentido de um trabalho ligado mais
diretamente com o povo.”
Conforme esse autor, a educação populista do início da década de 1960 não promoveu
participação popular. Em geral, as práticas eram paternalistas e desprezavam as obras
culturais das classes populares, desvalorizando e negando as possibilidades organizativas. De
forma concomitante, os grupos de oposição marcavam resistência, provocando uma ruptura da
aliança populista:

[…] setores populares passaram a reivindicar uma participação decisiva no poder


quando grupos de seus intelectuais orgânicos começaram a influir nas decisões de
planos nacionais de cultura e educação popular, e 73 setores dominantes temerosos
mudaram sua orientação de apoio àquele pacto social. (WANDERLEY, 2003, p.
72).

Nos debates e nos enfrentamentos antagônicos da intenção de aliança entre as classes


(processo constituído na orientação nacional-populista/nacional-desenvolvimentista) surgem
experiências de uma educação popular que estimula as potencialidades da classe
subalterna/popular, “comprometendo-se na luta pela dinamização das resistências populares
contra as injustiças e a exploração.” (WANDERLEY, 2003, p. 73).
94

Segundo Puiggrós (2003, p. 21), a orientação de libertação que emerge da ruptura do


populismo instaura “novos discursos antagônicos ao discurso pedagógico liberal positivista
moderno”, vindos, especialmente, da pedagogia socialista cubana e da pedagogia da
libertação. Conforme essa autora, a “pedagogia socialista cubana seguiu os cânones do
modelo pedagógico soviético, vinculando a educação ao sistema político e ao sistema
produtivo e orientando-a, em seu conjunto, para a educação do povo.” (PUIGGRÓS, 2003, p.
21).
Na América Latina, a pedagogia da libertação terá, então, aporte decisivo de Paulo
Freire:

Suas formulações de uma educação libertadora e da “conscientização” como


processo de mudança de consciência orientado para a transformação social, mesmo
tendo sido formuladas inicialmente a partir de uma ótica mais humanista que política
e sem uma clara definição de classe, impuseram uma mudança teórica e
metodológica radical em relação às experiências de educação de adultos anteriores.
(JARA, 2003, p. 105).

Nesse período prolifera uma grande quantidade de experiências educativas, que se


articulam por meio de organizações operárias, camponesas e comunitárias, sendo que a
maioria desses grupos já não conseguia separar as atividades político-organizativas das
atividades educativas, “Fundamentalmente porque as ações de educação popular começaram a
ser realizadas por exigência do próprio processo organizativo e da mobilização de massas.”
(JARA, 2003, p. 106). Nesse contexto, associa-se, também, a Teologia da Libertação,
resultado de lutas de base que fortaleceram práticas de educação popular, ligadas às pastorais
da Igreja Católica na América Latina.
Nessa conjuntura, a tarefa da Educação Popular ocorria de forma coletiva entre os
agentes: educadores-animadores e educandos (pessoas das classes populares). Segundo
Wanderley (2003, p. 73), caracterizava-se pela “troca de saberes entre eles e de participação
em práticas conjuntas de força libertadora.” Os educadores-animadores

[...] eram agentes dos quadros das organizações e movimentos que sustentavam e
assessoravam o trabalho de educação popular, mas que não pertenciam à situação de
classe do povo, apesar de que um número reduzido de líderes das classes populares
tivesse chegado também a exercer esse papel e, em certos casos, sua quantidade
tendesse a crescer. (WANDERLEY, 2003, p. 73).

Desse contexto, surgem os intelectuais orgânicos, com a tarefa de atuar nos processos
organizativos, educativos e formativos da consciência crítica. Tais pessoas estabeleceram uma
relação “orgânica” entre massa e organizações, avançaram para o acúmulo necessário de
95

conhecimento e certo nível de consciência em torno de sua classe, e, nesse caso, subalterna.
Essas gentes seguiram fazendo educação popular no interior dos movimentos sociais,
organizações populares e pastorais, interligando formulações teóricas e ações prático-políticas
revolucionárias.
Em síntese, a educação popular latino-americana se caracterizou por um pensamento
educativo múltiplo e disperso, influenciado por distintas abordagens sociopolíticas, fruto de
um acumulado histórico que atravessou fronteiras e influenciou diferentes mundos,
constituindo-se em referência para o pensamento pedagógico universal. Nessa diversidade de
perspectivas, historicamente a educação popular oscila entre extremos: da vocação populista
ao compromisso de classe. Na sequência, abordarei a educação popular libertadora que tem
como fundamento a luta de classes.

3.3 EDUCAÇÃO POPULAR LIBERTADORA

Para Gadotti (2006), a concepção libertadora de educação evidencia seu papel na


construção de um novo projeto histórico, que ultrapassa as fronteiras da pedagogia, atuando
também no campo da economia, da política e das ciências sociais. O autor menciona que a
educação popular nasce das utopias de independência, autonomia e libertação do continente
americano. Tais utopias propunham um modelo de desenvolvimento baseado na justiça social.
Gadotti (2006) também expressa que para a educação popular a conquista do Estado
era fundamental, pois seria a forma de dar poder ao povo. Porém, esse processo foi
interrompido pelas intervenções militaristas e autoritárias, consideradas pelo autor como
brutais. Consequentemente, a educação popular se refugiou nas organizações não
governamentais e, em alguns casos, na clandestinidade (GADOTTI, 2006, p. 155).
Assim, para Streck (2005, p. 58), “com o silenciamento das culturas foram silenciadas
suas pedagogias que continuaram sobrevivendo na clandestinidade.” São as organizações
populares que mantêm a educação popular como parte de suas práticas, com um pensamento
emancipador, anticolonial e anti-imperialista.
De acordo com Carrillo (2012), não há uma maneira única de entender a educação
popular, pois ela teve variações em diferentes momentos históricos. O autor argumenta que
para alguns autores tal forma de educação aparece descrita por um conjunto de atividades
educativas em torno da defesa e autonomia do mundo popular. Carrillo (2012) considera que
há um “núcleo comum” de elementos que constituem a educação popular libertadora dentre
essas várias concepções que analisou, sendo elas:
96

1. Una lectura crítica del orden social vigente y un cuestionamiento al papel


integrador que ha jugado allí la educación formal.
2. Una intencionalidad política emancipadora frente al orden social imperante.
3. Un propósito de contribuir al fortalecimiento de los sectores dominados como
sujeto histórico, capaz de protagonizar el cambio social.
4. Una convicción que desde la educación es posible contribuir al logro de esa
intencionalidad, actuando sobre la subjetividad popular.
5. Un afán por generar y emplear metodologías educativas dialógicas,
participativas y activas. (CARRILLO, 2012, p. 18).

Para esse autor, a proposta educacional popular tem uma clara intenção política.
Reconhece elementos do sistema social do continente que explica a subjugação econômica,
social, política e cultural dos setores populares. Carrilo prossegue: “Son las estructuras
sociales injustas las que impiden que las mayorías populares tengan la posibilidad de tener,
saber, poder y actuar por sí y para sí mismas.” (CARRILLO, 2012, p. 19).
Assim, a educação popular tem como pressuposto básico o questionamento ao caráter
injusto da ordem social nas sociedades latino-americanas. Carrilo (1993, p. 15) expressa a
necessidade de uma educação libertadora a serviço das classes populares. Essa “utopia
libertadora” é propulsora da construção de um “propio proyecto histórico”, pelos
subalternos da sociedade, para a construção de outra sociabilidade, no horizonte político da
transformação.

La crítica a la sociedad capitalista y al sistema educativo, lleva a la justificación


de un ideal de sociedad y de educación alternativos. Por ello, un rasgo central
en toda propuesta educativa popular es su clara intención por contribuir a la
construcción de un nuevo orden social con un contenido democrático y de
justicia, inicialmente identificado con el socialismo. (CARRILLO, 1993, p. 15).

Carrillo (1993) indica que a educação popular está alicerçada num diagnóstico
estrutural, associada à influência das ciências sociais críticas na América Latina
(especialmente o marxismo), bem como sobre os movimentos populares e à esquerda dos
anos sessenta. O autor argumenta que a história da formação política do continente contribuiu
para “la necesidad de una educación liberadora al servicio de las clases populares.”
(CARRILLO, 1993, p. 16).
Para Jara (2003, p. 109), as experiências mais desenvolvidas de educação popular
tratam de fortalecer e desenvolver uma consciência de classe nas massas populares de nosso
continente. Segundo este autor, “a consciência de classe é sempre uma consciência social ou
coletiva, que se expressa em determinado grau de organização de classe como manifestação
consciente da prática que realiza.”
97

A formação e o desenvolvimento da consciência de classe supõem uma inter-relação


dialética de fatores estruturais e superestruturais; objetivos e subjetivos. Ocorre no
processo de constituição de uma “classe em si”, determinada por sua posição no
processo produtivo em “classe para si”, através de uma prática social e histórica a
partir dessa posição, que lhe permite organizar-se e unificar-se: configurar-se
realmente como classe social. Desse modo, a consciência de classe não está
desligada da prática de classe, já que “a consciência não pode ser outra coisa a não
ser o ser consciente, e o ser dos homens é seu processo de vida real”. (JARA, 2003,
p. 109-110).

Carrillo (2012) aponta para uma leitura classista no momento fundacional da educação
popular libertadora. Ou seja, a análise do padrão de luta de classes na América Latina se
desdobra no campo educacional popular como possibilidade de produzir conhecimento capaz
de agir diretamente como campo de intervenção das forças vivas das classes subalternas. O
conceito de “classes populares”, de Wanderley (1987), permite-nos visualizar a consonância
do debate de classe incorporado às múltiplas formas de lutas no território.

[Classes populares são] aquelas que vivem uma condição de exploração e de


dominação no capitalismo, sob suas múltiplas formas. Exploração que se liga
tipicamente à atividade produtiva, mas se produz e se reproduz também em outras
dimensões do processo econômico como um todo. E dominação nos planos social e
político, vinculada à exploração econômica, que por seus efeitos acaba identificando
as distintas categorias sociais existentes na vida social concreta, nos bairros,
homogeneizando-as em atitudes e comportamentos comuns, ainda que
analiticamente devam ser distinguidas. Classes populares, pois, serão entendidas no
plural, compreendendo o operariado industrial, a classe trabalhadora em geral, os
desempregados e subempregados, o campesinato, os indígenas, os funcionários, os
profissionais e alguns setores da pequena burguesia. (WANDERLEY, 1987, p. 63-
64).

O discurso classista da educação popular se aproxima do debate da colonialidade.


Quijano (2007) descreve a colonialidade como um dos elementos constitutivos do padrão
global do poder capitalista, que se funda na imposição de uma classificação racial e étnica
dentro de um padrão de poder que opera também na vida material. Assim, o debate classista
está evidente na luta contra-hegemônica ao padrão eurocêntrico da colonialidade no plano
material e do saber.

A história do capitalismo mundializado, eurocentrado, marca a história da América


Latina, uma vez que a colonialidade e a modernidade se instalam em seu território
como eixos constitutivos de padrão de poder. Esta imposição configurou identidades
societais e geoculturais, ou seja, impôs experiências de colonialidade e de
colonialismo correspondentes às necessidades do capitalismo. Como resposta
contra-hegemônica às relações de dominação, a América Latina deu espaço a um
pensamento emancipador, radicalizado e antiimperialista; é a partir dele que se
elabora a teoria da dependência, surge a teologia da libertação e se apresenta a
pedagogia do oprimido [...]. A insurgência, superando sua forma de levantamento
apenas, nos remete a sujeitos em luta contra o esquecimento. (STRECK; MORETTI,
2013, p. 35).
98

Paludo expõe que a “concepção de Educação Popular (EP) como campo de


conhecimento e como prática educativa se constituiu em exercício permanente de crítica ao
sistema societário vigente, assim como de contra-hegemonia ao padrão de sociabilidade por
ele difundida.” Ainda, nos termos dessa autora, trata-se de “uma concepção educativa que
vincula explicitamente a educação e a política, na busca de contribuir para a construção de
processos de resistência e para a emancipação humana, o que requer uma ordem societária
que não seja a regida pelo capital.” (PALUDO, 2015, p. 220).
A essa concepção educativa libertadora se associa ao termo utopia como “horizonte
crítico”, tendo em vista o pressuposto de uma práxis revolucionária para o advento de um
“homem novo” (DUSSEL, 1985, p. 357).

[…] a utopia é um “para-além” do horizonte ontológico, do ser do capital. A


totalidade do capital é superada por um âmbito que transcende o seu fundamento. Se
a ontologia pensa o ser, a crítica do ser se efetua desde um […] outro mundo que se
aspira, espera, propõe e imagina como alternativa ao presente, injusto, perverso. A
utopia futura é, assim, polo afetivo, tendencial que mobiliza a ação. O oprimido,
alienado, subsumido no capital, tem assim um projeto de libertação que cria o
fundamento para uma práxis revolucionária de libertação. Este homem, que hoje é
oprimido, mas que hoje espera uma nova sociedade, e por ela luta, já se transforma,
desde o presente em um “homem novo”. (DUSSEL, 2012, p. 359).

O termo “homem novo” leva a associar duas outras categorias presentes no debate:
“popular” e “povo”. Ao termo “popular” emprego como sinônimo de “condenados da terra”,
“esfarrapados do mundo” e “oprimidos”, conforme concepções de Frantz Fanon e Paulo
Freire, anteriormente referidos nesta dissertação.
Brandão estabelece uma distinção entre saber “erudito” e saber “popular”:

A produção de um saber popular se dá, pois, em direção oposta àquela que muitos
imaginam ser a verdadeira. Não existiu primeiro um saber científico, tecnológico,
artístico ou religioso “sábio e erudito” que, levado a escravos, servos, camponeses e
pequenos artesãos, tornou-se, empobrecido, um “saber do povo”. Houve primeiro
um saber de todos que, separado e interdito, tornou-se “sábio e erudito”; o saber
legítimo que pronuncia a verdade e que, por oposição, estabelece como “popular” o
saber do consenso de onde se originou. A diferença fundamental entre um e outro
não está tanto em graus de qualidade. Está no fato de que um, “erudito”, tornou-se
uma forma própria, centralizada e legítima de conhecimento associado a diferentes
instâncias de poder, enquanto o outro, “popular”, restou difuso – não centralizado
em uma agência de especialistas ou em um pólo separado de poder – no interior da
vida subalterna da sociedade. (BRANDÃO, 2006, p. 15).

Para esse autor, a distinção entre saber popular e saber erudito não se refere à questão
de qualidade do saber, mas à relação com o poder, pois o saber erudito é visível e legitimado
pelos poderes instituídos, enquanto que o saber popular permanece invisibilizado na vida das
camadas subalternas da sociedade. Nessa direção, o autor se posiciona dizendo: “por isto,
99

achamos que o termo popular não é mais que uma referência a esse caráter definitivamente
classista, que situa o processo educativo como um processo ligado às necessidades, exigências
e interesses das classes populares.” (BRANDÃO, 2003, p. 109).
Boff (2015, p. 1) propõe uma definição sociológica da categoria povo, destacando um
“certo rigor do conceito”, para não cair no populismo:

Sociologicamente “povo” aparece também como uma categoria histórica que se


situa entre massa e elites. Numa sociedade que foi colonizada e de classes, aponta
clara a figura da elite: os que detêm o ter, o poder e o saber. A elite possui seu ethos,
seus hábitos e sua linguagem. Face a ela, surgem os nativos, os que não gozam de
plena cidadania nem podem elaborar um projeto próprio. Assumem, introjetando, o
projeto das elites. [...]. Mas sempre há rachaduras no processo de hegemonia ou
dominação de classe: lentamente da massa, surgem lideranças [...] que organizam
movimentos sociais, com visão própria do país e de seu futuro. Deixam de ser
“povo-massa”. [...]. Da articulação desses movimentos entre si nasce um “povo”
concreto. Já não depende das elites. Elabora uma consciência própria, um projeto
diferente para o país, ensaia práticas de resistência e de transformação das relações
sociais vigentes. [...]. “Povo”, portanto, nasce e é resultado da articulação dos
movimentos e das comunidades ativas. Ele nunca acaba de nascer totalmente,
porque depende da mobilização dos grupos sociais que buscam mais e mais
participação e assim vão fazendo nascer um povo.

Dussel (2012, p. 386), ao conceituar a categoria povo, argumenta que não se trata de
um conglomerado amorfo. Segundo o autor, “povo” é sujeito histórico que, em sua análise,
tem caráter político, no sentido revolucionário, “com as memórias de suas gestas, com cultura
própria, com continuidade no tempo […]. O povo é o coletivo histórico de pobre nos
momentos limites da aniquilação de um sistema e de passagem a outro.”

[...] “povo” é um bloco social da sociedade civil, anti-hegemônico enquanto


oprimido e explorado nas épocas finais de um sistema, de um modo de apropriação e
produção, quando a estrutura não resiste ao impulso criador das forças produtivas e
deve reprimir o surgimento de um novo sistema. (DUSSEL, 2012, p. 384-385).

Os dois referidos autores, Dussel e Boff, apontam para uma convergência de sentido
para a categoria povo. Para ambos, trata-se de um sujeito histórico da sociedade civil,
emergente de comunidades ativas que produzem práticas de resistência contra-hegemônicas,
tendo em vista transformar modos de produção e reprodução hegemônicas.
Sendo “posição política e político-pedagógica”, nos termos de Puiggrós (2003, p. 19),
a educação popular é instrumento para expressão libertária do povo organizado no interior de
comunidades e movimentos, favelas e campos, tendo em vista subverter a ordem e o poder
hegemônicos.
Nesse sentido, o ser humano é percebido para além das relações sociais determinadas
pelo capital, como sujeito com possibilidades de protagonismo para a transformação. Em
100

outros termos, conforme Dussel (2012), a criação de um novo tipo de sociedade implica a
“negação da alienação”, produzida pela sociedade exploradora e opressiva. O protagonismo
ocorre pelo fortalecimento dos setores populares organizados. A educação popular libertadora
não é algo elaborado para o povo, ela está com o povo, enraizada no viver e conviver das
comunidades, nos saberes, pensares e na cultura que é própria.

[...] Hacer educación popular es reconocer el carácter político de la educación y su


papel en la búsqueda de una sociedad más justa y democrática; es asumir una
opción explícita por el fortalecimiento de las organizaciones y movimientos
gestados por los sectores populares; es trabajar en la creación el desarrollo de las
condiciones subjetivas que posibiliten las acciones emancipadoras y de
transformación social por parte de estos sujetos populares; es generar alternativas
pedagógicas, metodológicas y didácticas coherentes. (CARRILLO, 2012, p. 22).

Para Gadotti (2006, p. 138), a educação popular “fundamenta-se numa teoria do


conhecimento que parte da prática concreta na construção do saber do educando como sujeito
do conhecimento.” Baseado no “profundo respeito pelo senso comum” e considerando
práticas cotidianas, trata-se de evidenciar elementos conceituais constitutivos da prática
popular. Tal problematização exige raciocínio rigoroso, científico e unitário, tendo em vista a
formulação de uma nova epistemologia.
Nessa perspectiva, a educação popular libertadora fundamenta-se no pensar do povo
como premissa, a partir da relação do sujeito com o mundo, em um diálogo teoria e práxis.
Para Gadotti e Torres (2003, p. 15), trata-se de abordar a educação,

[…] como produção e não meramente como transmissão do conhecimento; a luta


por uma educação emancipadora, que suspeita do arbítrio cultural o qual,
necessariamente, esconde um momento de dominação; a defesa de uma educação
para a liberdade, precondição da vida democrática; a recusa do autoritarismo, da
manipulação, da ideologização que surge também ao estabelecer hierarquias rígidas
entre o professor que sabe (e por isso ensina) e o aluno que tem que aprender (e por
isso estuda); a defesa da educação como um ato de diálogo no descobrimento
rigoroso, porém, por sua vez, imaginativo, da razão de ser das coisas; a noção de
uma ciência aberta às necessidades populares e um planejamento comunitário e
participativo.

No Brasil, a concepção de educação popular passa a integrar um sentido de luta e de


organização popular, na primeira metade dos anos 1960. Saviani (2013, p. 317) esclarece que
a educação passa a ser considerada instrumento para a construção da consciência de classe e
para a libertação de situações de opressão. Em outros termos, a educação “do povo, pelo povo
e para o povo” deixa de ser destinada somente às elites, que a usavam para manipulação e
dominação.
Brandão (2003) menciona que a educação popular se consolida como uma prática
101

militante, tendo como base de referência os movimentos sociais de vinculação popular e os


próprios movimentos populares. O autor apresenta quatro características que, segundo ele,
constituem a educação popular a partir da década de 1960:

1) propõe inicialmente uma teoria renovadora de relações


homem/sociedade/cultura/educação e uma pedagogia que pretende fundar, a partir
do seu exercício em todos os níveis e modalidades da prática pedagógica,
justamente, uma nova educação, uma “educação libertadora”;
2) realiza-se no domínio específico da educação com adultos das classes populares, a
partir de onde, pouco a pouco, se define como um trabalho político de libertação
popular, através também da educação e dos efeitos de um trabalho conscientizador
com sujeitos, grupos e movimentos das classes populares;
3) afasta-se de ser apenas uma atividade de escolarização popular (por exemplo, de
“alfabetização” e “pós-alfabetização”) e busca meios de ser toda e qualquer prática
de agentes eruditos “comprometidos” e sujeitos populares, onde há qualquer tipo
sistemático de intercâmbio de saber, a partir das próprias práticas sociais populares;
4) perde sua característica original de movimento emergente de educadores e se
redefine como um trabalho político de mediação a serviço de projetos, sujeitos e
movimentos populares de classe ou, então, movimentos tendentes a isso.
(BRANDÃO, 2003, p. 45).

Nessa direção, Zitkoski (2000, p. 2) explica que, na década de 1960, a educação


popular se destaca como novo “paradigma educacional”, em um cenário de efervescência
sociocultural e política na América Latina. Esse “novo” tem origem numa das variadas
perspectivas de educação popular, a que defendia o trabalho de organização sociopolítica das
classes populares por meio dos Movimentos Sociais. Segundo o autor, essa estratégia
respeitava os saberes populares e/ou o mundo vivido da sociedade civil, a partir disso “foram
sendo construídas as bases de uma nova epistemologia em permanente dialetização entre
teoria e prática.”
Conforme Saviani (2003), a educação popular emerge de movimentos e centros
militantes de educação e cultura: Centro Popular de Cultura (CPC), Movimento de Cultura
Popular (MCP), Movimento de Educação de Base (MEB),

Apesar de suas diferenças e particularidades, esses movimentos tinham em comum o


objetivo da transformação das estruturas sociais e valorizando a cultura do povo
como sendo a autêntica cultura nacional, intensificavam-se com a visão ideológica
nacionalista, advogando a libertação do país dos laços de dependência com o
exterior. (SAVIANI, 2013, p. 318).

De acordo com Saviani (2013 p. 318), os CPCs estavam ligados às artes e


multiplicavam-se por todo o país. Entendia-se a cultura popular ligada diretamente à ação
política. Ou seja, teatro, cinema, música, literatura se constituíam em espaços propícios para
despertar a consciência das massas que assim se “preparavam para a revolução.”
Os MCPs promoviam uma educação “genuinamente brasileira”, construída a partir da
102

própria cultura popular. Sua prática objetivava aproximar a intelectualidade do povo, por meio
do diálogo “aprender e ensinar”, por meio do qual intelectuais “misturavam-se” com a massa
e ambos partilhavam saberes. Essas experiências serviram de base às ideias de Paulo Freire,
nas quais o diálogo, a generosidade e a amorosidade se convergem no aprender coletivamente
(SAVIANI, 2013, p. 318).
O MEB abordou o meio rural e teve grande influência na organização sindical. Por ser
um movimento de Igreja foi o único que sobreviveu ao golpe militar de 1964. No MEB
trabalhava-se com monitores e animadores dos grupos de base em escolas radiofônicas.
Conforme Wanderley (1984), os embriões da “igreja popular” foram forjados pela ação do
MEB.
Segundo Streck (2010, p. 301), dentre as experiências de educação popular “a
referência mais marcante desse movimento pedagógico-político-cultural é o projeto de Paulo
Freire em Angicos, no Rio Grande do Norte, em 1963”, que se tratava de um “Movimento de
Cultura Popular (MCP) criado pela Prefeitura de Natal”, com a campanha “De pé no chão
também se aprende a ler”, acompanhada do “Movimento de Educação de Base (MEB), criado
pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.”
Nesse sentido, Paludo (2001, p. 91) destaca a importância de Paulo Freire para a
educação libertadora.

É nos anos 1960, com Paulo Freire, que no Brasil se tem, pela primeira vez, de
forma consistente, uma pedagogia anunciada das classes populares. Pela primeira
vez, começa-se a conceber uma pedagogia na educação brasileira (e latino-
americana) que leva em consideração a realidade brasileira com vistas à sua
transformação, em que as classes populares assumem papel central. (PALUDO,
2001, p. 91).

Essa pedagogia, com vistas à transformação da realidade brasileira, tem como uma das
tarefas fundantes a emancipação e libertação dos oprimidos. Para Garcés (2006, p. 77), a
educação “libertadora ou problematizadora, em sentido freireano” contém uma
intencionalidade de protagonismo histórico dos oprimidos. Nessa perspectiva, Fals Borda
(2008, p. 17) sugere que a educação se constitui pela subseção, ou seja, “aquella condición
que refleja las incongruencias internas de un orden social, descubiertas por miembros de éste
en un período histórico determinando a la luz de nuevas metas valoradas que una sociedad
quiere alcanzar.”
No final da década de 1960, na América Latina, nasce a Teologia da Libertação, uma
corrente teológica cristã que opta em se posicionar pelos pobres. Essa teologia tencionou a
hierarquia hegemônica da igreja católica e desenvolveu uma diversidade de práticas
103

educacionais de base. Conforme Paiva (1984), o trabalho do MEB se fundamentava, entre


outras referências, na obra de Paulo Freire.
Segundo Paludo (2015, p. 226):

A Educação Popular se firma em um período em que as análises teóricas


salientavam que o Estado e a educação, notadamente a formal, reproduziam as
relações econômicas e socioculturais, assim como em um contexto em que houve
um avanço importante das ciências humanas e sociais para o entendimento das
sociedades latino-americanas. Marcadamente, do ponto de vista das suas fontes
teóricas, pode-se citar a teoria marxista; os autores latino-americanos, dentre os
quais ganham destaque Martí e Mariátegui e, acima de todos, Paulo Freire, com o
método de alfabetização de jovens e adultos e a formulação da “Pedagogia do
Oprimido”; as matrizes da Teologia da Libertação; do sindicalismo; a indigenista;
dos movimentos urbanos, rurais e comunitários; do socialismo; da revolução; das
artes, com o Teatro do Oprimido; e a da comunicação.

No período 1960-1970 ocorrem expansão e diversificação significativas de


experiências de educação popular, como frentes de luta política. Na América Latina, na
década de 1970, vive-se o auge da ascensão ao poder de um movimento popular
revolucionário: os sandinistas da Nicarágua.

El período de ascenso de luchas populares y de movimientos políticos de izquierda


vivido a lo largo de la década de los setenta, alcanzaría su cumbre con la llegada al
poder de los sandinistas en Nicaragua, luego de una insurrección triunfante. Para
el imaginario de época se iniciaba un nuevo período histórico en América Latina,
que marcaba el camino de los otros países del continente. Luego del triunfo, una de
las primeras tareas de la Revolución Sandinista fue la de realizar una masiva
campaña de alfabetización que la afirmara ideológicamente. En consecuencia, el
Frente Sandinista solicita al sacerdote jesuita Fernando Cardenal la Cruzada de
Alfabetización Héroes y Mártires. Ante la necesidad de formar un equipo de
especialistas, Cardenal invita a personas y colectivos con trayectoria en el tema.
Fue así como el recién conformado equipo colombiano de Dimensión Educativa se
incorpora en el diseño, preparación e implementación de la propuesta.
(VALENCIA; CARRILLO, 2011, p. 340).

De acordo com Carrilo (2011, p. 37), o triunfo da Revolução Sandinista na Nicaragua


e o surgimento de guerras insurrecionais populares na América Central, incentivaram a leitura
de classe da sociedade e alimentaram as esperanças da possibilidade de acesso ao poder do
povo por intermédio de uma rota revolucionária armada. Para essa autora, “lo popular se
asimiló al desarrollo de la lucha de clases y lo educativo al desarrollo de la ‘conciencia de
clase’. La identidad política de los sectores populares estaba basada en el concepto de
‘autonomía de clase’.”
Para Jara (2003, p. 107), a Nicarágua abre caminho de resistência política para outros
países, por meio da educação popular. O autor destaca que a partir do triunfo da revolução
104

sandinista, dirigida pela Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), abrem-se novos
horizontes teóricos e práticos no campo da educação popular. Jara (2003) comenta:

Imediatamente depois do dia 19 de julho de 1979, a revolução enfrenta como tarefa


prioritária a educação política das massas, com o objetivo de transformar uma
consciência anti-somozista e antiamericana em uma autêntica consciência de classe
e antiimperialista, capaz de apropriar-se teoricamente do sentido histórico de toda a
prática da luta revolucionária que o povo nicaragüense tinha travado desde a epopéia
de Zeledón e Sandino e, ao mesmo tempo, apontar os rumos da construção de uma
nova sociedade.

Para esse autor, vencer o analfabetismo de mais da metade da população era um


grande desafio, sendo necessária a formação de quadros em todos os campos de atuação do
processo revolucionário. No contexto de que trata o autor, a educação popular era prioridade
nas organizações de massa e em muitos ministérios do governo, “porque ela deverá
possibilitar a participação consciente, ativa e organizada de todo o povo nas tarefas
revolucionárias.” (JARA, 2003, p. 107).
Os autores/pesquisadores da educação popular latino-americana enfatizam as lutas no
continente como processos educativos para a formação da consciência emancipatória. Ao
mesmo tempo consideram que os movimentos sociais populares, com ações revolucionárias,
têm a educação popular como força constitutiva das práticas educativas.
A educação popular surge da subalternidade, emerge dos próprios condenados da terra.
Ela é parte dos debates pedagógicos, especialmente, das práticas dos movimentos sociais e
organizações populares que surgiram ao longo do processo histórico, forçados pelos
antagonismos criados pela hegemonia do grupo dominante. A educação popular é parte da
correlação de forças vinda dos subalternos como forma de compor o processo de contra-
hegemonia, e, segundo Moretti e Adams (2011, p. 450), “como resposta à colonialidade do
conhecimento vindo do Norte.”
Brandão (2003, p. 45) expressa que “a possibilidade histórica da construção de uma
nova hegemonia no interior da sociedade capitalista dependente é o horizonte da educação
popular.” Para o autor, a viabilidade de transformação da ordem da vida social popular, no
horizonte da educação libertadora, implica a acumulação popular de saber, o que para ele é
diferente de acumulação de saber popular.
Sob esse aspecto, a educação popular libertadora é reconhecida como instrumento de
luta contra-hegemônica do pensamento e da vida dos povos da América Latina, e, portanto,
subversora da ordem estabelecida na perspectiva da decolonização.
Assim, a educação para a liberdade indica o caminho para práticas educativas contra-
105

hegemônicas que, potencialmente, levam à desconstrução de discursos e práticas colonialistas


por meio da problematização de relações sociais cotidianas, que colocam em evidência formas
instituídas do poder, do saber e do ser. Gadotti e Torres (2003) mencionam que entre os
intelectuais da educação popular há uma reflexão e uma recusa à educação do colonizador.
O autor sugere que o fator educativo fundamental não era a ação pedagógica em si,
mas o próprio processo revolucionário e histórico. A atmosfera de ascensão dos movimentos
populares e o compromisso da educação popular com os processos organizativos do povo
destacaram a sua dimensão política da educação. Nesse contexto, foram criados múltiplos
programas, instâncias e diversificadas formas de educação popular, com “intensidade e
características diferentes em países, como o Peru, Equador, Bolívia, Panamá, El Salvador e
Guatemala.” (JARA, 2003, p. 107).
Segundo Carrillo (2011, p. 36), a politização de práticas educativas populares foi
favorecida pela influência da tradição pedagógica de esquerda, que passou a integrar grupos
de base e lutas sociais de setores operários. O autor prossegue, mostrando que esse período foi
também de questionamento de práticas da educação popular. Nas palavras do referido autor, a
esquerda “heredera de una concepción ilustrada y vanguardista de la educación, la
educación de inspiración marxista cuestionó la pedagogía liberadora tachándola de utópica,
moralista y culturalista.” Tais questionamentos levaram educadores populares, em sua
maioria provenientes dos setores cristãos, a acolherem algumas dessas críticas e a
ressignificaram a práxis da educação popular.
Pensadores e pesquisadores têm se dedicado à busca pela refundamentação,
revisitando territórios e espaços, conceitos e metodologias, tendo em vista (re)estabelecer
novos fundamentos para a educação popular libertadora. Elementos desse trabalho em
andamento serão objetos da próxima seção desta dissertação.

3.4 EDUCAÇÃO POPULAR: REFUNDAMENTAÇÃO

De acordo com Pontual e Ireland (2006, p. 9), um grupo de educadores populares


passou a repensar a educação popular, considerando a nova conjuntura mundial e a produção
das ciências humanas e sociais do início de novo milênio. Em outros termos, “a Educação
Popular busca novos paradigmas e instrumentos de ação político-pedagógica capazes de
responder a uma realidade de crescente exclusão que vem provocando vários questionamentos
acerca da qualidade das nossas democracias.”
Conforme Paludo (2006, p. 46), a “nova ordem internacional” instaura desafios atuais
106

para a educação popular:

[…] da fase atual do processo de acumulação capitalista, que iniciou na década de


1970, capitaneada pela Inglaterra e Estados Unidos e se fez sentir, com
profundidade, na América Latina, nas décadas de 1980/1990. Além disso, a queda do
“socialismo real” e o resultado concreto de algumas experiências como a chilena e a
nicaraguense e a não materialização dos triunfos populares em El Salvador e
Guatemala geraram a consequente perda de referenciais e de certezas da esquerda
latino-americana (e mundial). Também a forte hegemonia do pensamento único de
direita, expresso na máxima de Fukuyama de que a história havia chegado ao seu
final; o empobrecimento objetivo crescente da população e a crise ética, política e de
valores vivenciados na atualidade são aspectos do contexto que permitem
compreender o processo atual vivido pela Educação Popular. (PALUDO, 2006, p.
46).

Vargas (2006) indica condições contraditórias da sociedade pós-industrial como


responsáveis por recondicionar os modos de viver, baseados numa racionalidade que não é
unicamente econômica. O autor expõe que a globalização forçou os movimentos sociais a
avançarem num acúmulo de “capital político alternativo” ao neoliberalismo, gerando um novo
cenário em que a educação popular.

A modernidade é vista como uma ameaça, com a experiência do incontrolável, do


incerto, da dependência, da vulnerabilidade, da impotência perante a emergência, da
exclusão. O medo é imposto, a sociedade se torna mais agressiva, fundamentalista,
descrente e enclausurada em espaços privados seguros. (VARGAS, 2006, p. 190).

Para Paludo (2006 p. 46), há uma indissociabilidade entre educação popular e


processos sociais e históricos.

A partir de meados dos anos 1990, diversos estudos sobre os desafios da Educação
Popular, no final do século XX e início do novo milênio, apontavam a necessidade
de uma revisão crítica das práticas e concepções até então vigentes na Educação
Popular à luz das grandes transformações em curso no mundo e, de modo particular,
nas sociedades latino-americanas. Este debate, denominado refundamentação da
Educação Popular, buscou redefinir seu papel, suas tarefas, sua concepção
metodológica e criar novos instrumentos para sua intervenção. Deste amplo campo
de discussão, destaco [...] aqueles aspectos referentes às contribuições da Educação
Popular para os processos de construção de uma cidadania ativa e de democratização
das estruturas políticas e espaços públicos. (PONTUAL; IRELAND, 2006, p. 92).

A América Latina tem uma história de resistência, de gentes que se organizaram


construindo processos educativos e revolucionários fazendo a contraposição à ordem colonial
e imperialista. Destas gentes surgiram pensadores e intelectuais que usaram suas obras para
descrever e analisar a construção contraditória do capitalismo dependente, baseado em
relações de exploração e racismo, assim como da história contra-hegemônica de subversão e
rebeldia. Paludo (2006, p. 45) refere-se a um “Campo Popular latino-americano”.
107

Os Campos Populares constituíram-se como movimentos contra-hegemônicos e


orientaram-se por utopias de transformação social, às quais foram atribuídas as mais
diversas denominações, dentre as quais se podem citar, a partir das leituras, como
exemplos: projeto histórico; projeto libertador; novo contrato social; nova
sociedade; sociedade justa, democrática, participativa e solidária; projeto alternativo
de sociedade; sociedade sem oprimidos e sem opressores; sociedade socialista.
(PALUDO, 2006, p. 45).

Para Paludo (2006, p. 46), a formação dos campos populares, assim como a formação
do movimento de Educação Popular, sofreu diversas influências a partir dos anos 1960:

[…] do Concílio Vaticano II; dos documentos de Medellin e da proposta da Teologia


da Libertação; do ideário de Paulo Freire; das experiências da Revolução Cubana e
da Nicaraguense; dos processos do Chile, do México e de outros em curso no
Continente; da teoria do desenvolvimento e da teoria da dependência. Além destes,
havia a Revolução Soviética e, posteriormente, a Chinesa e o pensamento marxista
que animavam o fortalecimento da sociedade civil latino-americana e, no seu in-
terior, um forte movimento, no sentido da construção da organização popular
autônoma, com consciência de classe e imbuída do desejo de construção do “poder
popular”.

Nos termos dessa autora, os educadores populares latino-americanos estão


comprometidos em compreender o novo momento de realidade do projeto da “Modernidade e
de ressignificar (refundamentar) a Educação Popular.” A autora declara que “há muitas
identidades, e a maior delas parece ser a urgência do resgate, não do sentido ou da
importância da Educação Popular, mas dos lineamentos do projeto e da pedagogia que orienta
as práticas, aclarando, desta forma, quais devam ser suas maiores incidências.” (PALUDO,
2006, p. 42).
Carrillo (2011) indica que discussões realizadas no âmbito do Conselho de Educação
de Adultos da América Latina (CEAAL), durante a década de 1990, apontam para uma
revisão de pressupostos da educação popular.

O CEAAL é uma rede latino-americana de cerca de 200 organizações não-


governamentais, situadas em 21 países do nosso continente e que, desde princípios
dos anos 1980, vem cumprindo a missão de ser um espaço de articulação e
sistematização do movimento da Educação Popular na América Latina. Inspirada
nas formulações de Paulo Freire, que foi seu primeiro presidente, essa rede vem, ao
longo de sua existência, procurando reunir grande parte das instituições e
educadores(as) que desenvolvem práticas de Educação Popular comprometidas com
os processos de construção de uma cidadania ativa e de uma democracia integral em
nosso continente. (PONTUAL; IRELAND, 2006, p. 9).

Para Carrillo (2011), a refundamentação da educação popular está associada a


múltiplos fatores. Para esse autor, desde meados de 1980 constata-se a insatisfação quanto aos
discursos que orientavam experiências e práticas da educação popular, em face da nova
conjuntura. Segundo Carrillo (2011, p. 21), “los referentes teóricos con los que
108

interpretábamos a la sociedad, orientábamos los proyectos y comprendíamos los sujetos que


los protagonizaban, no expresaban todo lo que queríamos decir o no correspondían a la
realidad sobre la cual estábamos actuando.”
Refundamentar significava rever fundamentos da educação popular a partir de
avaliação e autocrítica, considerando as novas conjunturas sociais, econômicas e epistêmicas
do continente. Carrillo (2011, p. 70) considera como principais deslocamentos dos
componentes do discurso fundacional da educação popular:

a) De una lectura clasista ortodoxa de la sociedad, a la incorporación de otras


perspectivas y categorías analíticas como hegemonía, movimientos sociales,
sociedad civil y sujetos sociales.
b) De una lectura revolucionaria de “toma del poder” como única vía del cambio, a
la ampliación del sentido de lo político a todas las esferas de la vida social, la
reivindicación de la democracia como forma de gobierno y defensa de lo público.
c) De una mirada económico política de los sujetos sociales a una mirada integral
de los mismos, que da especial importancia a los procesos culturales de su
identidad y de su dimensiones individual y personal.
d) De un énfasis en la toma de conciencia al enriquecimiento de la subjetividad
individual y colectiva en todas sus dimensiones (intelectual, emocional, corporal...).
e) De las seguridades metodológicas centradas en el método dialéctico y el uso
instrumental de las técnicas participativas, a la reivindicación de lo pedagógico de
la EP, la incorporación de aportes de otras corrientes pedagógicas y el interés por
el diálogo de saberes. (CARRILLO, 2011, p. 70).

Tais deslocamentos indicaram para a necessidade de ressignificação e aprofundamento


do conjunto de elementos constitutivos que até então caracterizaram a educação popular na
América Latina. A pesquisa bibliográfica que realizei evidencia que uma das marcas da
refundamentação consiste no reconhecimento de novos sujeitos políticos como setores
socialmente oprimidos a serem considerados no campo da educação popular:

As questões da mulher, dos indígenas, das crianças, dos refugiados, dos favelados,
das comunidades locais, das diferentes gerações etc. despontaram como um sintoma
de um processo de constituição de novos sujeitos políticos, que eram setores
socialmente oprimidos anteriormente, mas que não tiveram voz nos discursos
maximalistas do século. Entre seus direitos humanos, direitos do povo, começaram a
despontar as reivindicações pela posse do poder como educandos e como
educadores. A “educação popular”, em suas diversas tendências, deve voltar a pensar
em seus sujeitos. (PUIGGRÓS, 2003, p. 24-25).

Outro marco da refundamentação, recorrente nas referências consultadas, refere-se ao


Seminário Taller sobre Educação Popular na América Latina e no Caribe, realizado em La
Paz, Bolívia, de 9 a 14 de julho de 1990. Na ocasião, evidenciaram-se críticas consensuais a
respeito da educação popular.

Nas palestras e discussões do seminário constatou-se uma crise tanto no discurso


quanto na prática da educação popular. Esta crise se expressa, por um lado, na
109

insuficiência do discurso para falar e explicar a ação e, por outro, nos problemas que
afetam as próprias práticas e sua especificidade no novo contexto social e político da
região. No entanto, cabe assinalar, tal análise não nega os desenvolvimentos e
contribuições desse movimento educativo, mas, pelo contrário, resgata seus
postulados e aprendizagens para redefini-los ante os desafios colocados pela nova
realidade da América Latina. (EDUCACÃO..., 2006, p. 347).

De acordo com o texto-síntese do seminário, historicamente, os debates da educação


popular aprofundaram a análise da estrutura de dominação que caracteriza a sociedade latino-
americana, conforme premissas marxistas. No entanto, essa perspectiva descuidou “da
compreensão da natureza simbólica das práticas educacionais, suas especificidades
pedagógicas e as características dos cenários e processos cotidianos nos quais elas
transcorriam.” (EDUCACÃO..., 2006, p. 347-148).
Em consequência, os debates do seminário enfatizaram a necessidade de associar à
crítica, até então realizada, reflexões de outros campos e esferas do saber. Ou seja, trata-se da
educação popular “enriquecer a interpretação de suas práticas e, ao mesmo tempo, contribuir
com experiências e reflexões” (EDUCACÃO..., 2006, p. 351), considerando as seguintes
contribuições:

a) O resgate e a valorização do cotidiano como dimensão política, a importância da


experiência vivida e da lógica própria do mundo cotidiano. A partir desse horizonte
percebe-se de outra forma a sociedade e seus processos macrossociais.
b) O resgate das lógicas socioculturais sobre a lógica econômica – própria do
modelo neoliberal – para entender, por exemplo, o funcionamento das economias de
subsistência; a racionalidade das estratégias que se implementam para poder
sobreviver e obter recursos de apoio; o sentido de numerosas ações sociais que
permitem compreender os processos de formação de lideranças locais; a reprodução
e a recriação de identidades de grupos populares que estabelecem de uma outra
forma o problema da eficácia e da razoabilidade .
c) A contraposição da ética do modelo neoliberal – de mercado, baseada no
individualismo e na competência – com a utopia da educação popular, fundada na
ética da comunicação, do diálogo, da responsabilidade social, da democratização, da
justiça, da igualdade de direitos etc., que potencializa o comunitário e o solidário.
d) O resgate e a revalorização do conceito pedagógico de educação popular, que tem
colocado em prática formas eficazes de aprendizagem para adultos; a transmissão de
conhecimentos relacionados ao saber próprio dos grupos e suas experiências
cotidianas, trabalho em grupo, vinculação de conhecimento com a produção, etc.
(EDUCACÃO..., 2006, p. 351-352).

O Seminário abordou, prioritariamente, a questão dos sujeitos da educação popular.


Avaliou-se que a grande maioria dos países latino-americanos possuía realidades multiétnicas,
plurilíngues e pluriculturais, “a problemática indígena ocupou um amplo espaço.”
(EDUCAÇÃO... 2006, p. 356). Tais realidades exigem maior consistência e complexidade do
conhecimento científico-técnico vinculado a essa problemática.
110

Constatou-se que muitas vezes a análise é feita a partir de uma perspectiva classista
ou étnica de maneira unilateral. Com a finalidade de não impor uma visão ocidental
ou externa, não foram analisados os processos de diferenciação e transformação que
tem sofrido as próprias culturas indígenas e a posição que elas ocupam nas
dinâmicas de poder regionais e nacionais. Por outro lado, também se indicou que,
muitas vezes, o processo de educação popular leva implícita uma mensagem
ocidental. Como já foi assinalado, a metodologia pedagógica freqüentemente não se
relaciona com os princípios que organizam o pensamento das culturas indígenas, e
as estruturas organizacionais e de liderança propostas se opõem às formas históricas
que estas têm assumido em uma determinada comunidade. Enfim, a educação
popular deve fazer uma leitura crítica de si mesma para contribuir com um novo tipo
de análise que permita compreender, por exemplo, as relações econômicas, de classe
e de gênero a partir das culturas indígenas; e estas, a partir das dinâmicas de poder e
de conflito da sociedade nacional. (EDUCAÇÃO… 2006, p. 356-357).

Nos termos do referido seminário de La Paz, as questões de gênero devem integrar o


trabalho da educação popular, criando espaços próprios para as mulheres, assim como espaços
mistos, de cooperação e ação conjunta com os homens. Trata-se de construir coletivamente
uma nova forma de poder, uma nova estrutura de poder, gerando novas relações de gênero.
Em relação à questão de gênero e sexualidade, “na maioria dos programas de educação
popular, a mulher tem sido considerada como um tema, como um problema em si, associado à
pobreza ou aos sistemas de classe.” (EDUCAÇÃO... 2006, p. 362). Nessa perspectiva, as
lutas políticas objetivariam a superação da pobreza e democratização da sociedade, ignorando
experiências e saberes que foram acumulados na vida concreta das mulheres. No entanto, “é
necessário aprofundar o conhecimento dos mecanismos existentes de discriminação sexual,
para enfraquecer e suprimir as hierarquias sexuais e garantir um desenvolvimento mais
integral, menos conflitante, mais harmônico e justo entre mulheres e homens.”
(EDUCAÇÃO... 2006, p. 363).
Ou seja, “o problema de gênero incide em toda a vida social”, portanto, é necessário
“analisar as diferentes questões da educação a partir dessa nova perspectiva de gênero.” Essa
questão precisa estar articulada com o debate de classe e de etnia, no interior de cada
realidade, cultura e grupo social (EDUCACIÓN…, 2006, p. 363).
Do meu ponto de vista, o processo de refundamentação da educação popular
promoveu profundas mudanças conceituais, as quais se articulam com questões que emergem
do debate sobre a decolonialidade. A articulação entre as categorias gênero, classe e etnia
caracterizam o campo da educação popular na perspectiva da rede modernidade/colonialidade,
apresentada na seção anterior desta dissertação.
Nesse sentido, Lugones (2008) desenvolve e incorpora o debate da colonialidade de
gênero, apresentando a concepção de colonialidade de um ponto de vista feminista. Para ela,
as mulheres vítimas da colonialidade do poder sofrem inseparavelmente da colonialidade de
111

gênero. Esse conceito significa uma releitura da modernidade capitalista colonial, que inclui
dimensões da estrutura do sistema. A autora investiga e problematiza os debates que as
mulheres criaram das análises críticas do feminismo hegemônico e que, precisamente,
ignoraram a interseção de raça/classe/sexualidade/gênero.

Sobre todo, ya que es importante para nuestras luchas, me refiero a la indiferencia


de aquellos hombres que continúan siendo víctimas de la dominación racial, de la
colonialidad del poder, inferiorizados por el capitalismo global. El problematizar su
indiferencia hacia las violencias que el Estado, el patriarcado blanco, y que ellos
mismos perpetúan contra las mujeres de nuestras comunidades, en todo el mundo,
es el resorte que me lleva a esta investigación teórica. (LUGONES, 2008, p. 76-77).

Para Lugones (2008, p. 78), a noção de colonialidade de gênero integra o conceito de


colonialidade do poder, elaborado por Quijano. A autora expande a análise da colonialidade
do poder de Quijano, agregando o que chama de “sistema de gênero/ moderno/colonial”.

Y, por lo tanto, es importante entender hasta qué punto la imposición de este sistema
de género fue tanto constitutiva de la colonialidad del poder como la colonialidad el
poder fue constitutiva de este sistema de género. La relación entre ellos sigue una
lógica de constitución mutua. Hasta aquí, debería haber quedado claro que el
sistema de género moderno, colonial no puede existir sin la colonialidad del poder,
ya que la clasificación de la población en términos de raza es una condición
necesaria para su posibilidad. [...] Concebir el alcance del sistema de género del
capitalismo eurocentrado global, es entender hasta qué punto el proceso de
reducción del concepto de género al control del sexo, sus recursos, y productos es
constitutiva de la dominación de género. Para entender esta reducción y el
entramado de la racialización y el engeneramiento, debemos considerar si la
organización social del “sexo” precolonial inscribió la diferenciación sexual en
todos los ámbitos de la existencia incluyendo el saber y las prácticas rituales, la
economía, la cosmología, las decisiones del gobierno interno y externo de la
comunidad. (LUGONES, 2008, p. 93).

Para Lugones (2008, p. 99), o sistema “gênero/moderno/colonial” contém um


paradoxo: visível/claro e oculto/obscuro. Em consequência, a pesquisa desse paradoxo na
educação popular coletiva e participativa constitui o debate sobre a colonialidade do poder
(LUGONES, 2008, p. 99).

La educación popular puede ser un método colectivo para explorar críticamente


este sistema de género en sus grandes trazos pero, lo que es más importante,
también en su detallada concretitud espacio-temporal para así movernos hacia una
transformación de las relaciones comunales. (LUGONES, 2008, p. 77).

A referida pesquisa evidencia novos sujeitos, diferentes práticas e distintos campos de


ação, que reafirmam a necessidade de considerar questões étnicas, classistas e de gênero.
De acordo com o texto-síntese do seminário da La Paz, “deve haver uma articulação
entre gênero e movimento social que não negue a especificidade das contribuições de homens
112

e mulheres.” (EDUCAÇÃO… 2006, p. 363). A presença das mulheres nas organizações


sociais contribui para o desenvolvimento de debates vinculados às relações de poder e
subjetividade no interior das organizações.
Paludo (2006) considera que o processo de reconhecimento de outros sujeitos da
educação popular “deslocou do homem econômico, para o homem integral e para o conjunto
integral das necessidades e direitos que possui.” Segundo a autora, essa perspectiva é de
ordem material, mas também espiritual, afetiva, de reconhecimento, valorização, participação
e não discriminações de qualquer ordem.

Parece ser esta renovada visão antropológica aquela que tem tido centralidade na
orientação nas leituras do projeto hegemônico e das suas conseqüências, da esfera da
política, da economia e da cultura, incluindo-se aí as inovações da sociabilidade em
formação a partir da primazia do mercado. Pelo apresentado nos textos, esta nova
visão tem sido parâmetro para a reflexão dos educadores populares sobre as suas
práticas e dos próprios Campos Populares. (PALUDO, 2006, p. 48).

Enfim, a refundamentação influencia várias frentes de debate. Segundo Carrillo


(2011), alguns autores, como Mejía, abordam a conjuntura neoliberal e seus efeitos
econômicos e sociais que consolidam relações de injustiças e desigualdades, perpassando as
relações sociais nos mais diferentes âmbitos. Em consequência, o sistema capitalista, na sua
face oculta, contém elementos que produzem formas de colonialidade do poder, do saber e do
ser. Nesse contexto “em que uma boa parte dos fundamentos e instituições do mundo
moderno desmoronou; portanto, o pensamento crítico e, dentro disso, educação popular” está
atravessada por desafios inelutáveis (CARRILLO, 2011, p. 43).
De acordo com Dussel (2005, p. 29), cada pessoa ou povos (coletivos), ao “descobrir-
se inocente julga a modernidade como culpada da violência sacrificadora, conquistadora
originária, constitutiva, essencial.” Reconhece o mundo periférico, que, para o autor, é a outra
face oculta e essencial da Modernidade, que teve o índio sacrificado, o negro escravizado, a
mulher oprimida, a criança e a cultura popular alienadas. Segundo Dussel, quando eticamente
se descobre a dignidade do outro (da outra cultura, do outro sexo e gênero, etc.), supera-se a
“razão emancipadora” como “razão libertadora”.
Conforme Carrillo (2011), dessa conjuntura emergem novas demandas e lutas inéditas,
as quais produzem “Nuevos Movimientos Sociales”:

[…] además de la fábrica, también eran espacios de conflicto en el barrio, la salud,


la familia, el consumo y hasta el uso del tiempo; y que, además de los sindicatos y
de las organizaciones indígenas y vecinales, se estaban generando nuevas formas de
organización entre mujeres, jóvenes, ecologistas, defensores de los derechos
humanos, entre otras. (CARRILLO, 2011, p. 43).
113

Em consequência, conforme Paludo (2006, p. 156), “a


ressignificação/refundamentação da Educação Popular e a sua maior ou menor incidência
concreta está, também, diretamente relacionada com a refundamentação e ressignificação do
Campo Popular.” A meu ver, tais ressignificações contribuem para a construção da
decolonialidade por meio de diferentes lutas contra-hegemônicas, de oposição e resistência
em relação a diferentes formas de violência advindas do patriarcado e do racismo.
Tais oposições e resistências incluem o projeto de uma epistemologia particular. Nunes
(2009, p. 233) destaca as Epistemologias do Sul como projeto indissociável do contexto
histórico do continente. Segundo o autor, tal projeto faz emergir novos atores no “Sul global”,
“sujeitos coletivos” com saberes e conhecimentos “que, a partir do cânone epistemológico
ocidental, foram ignorados, silenciados, marginalizados, desqualificados ou simplesmente
eliminados.” Santos e Meneses (2010, p. 52) apontam que o processo violento da colonização
produziu “epistemicídio”, em suas palavras: “um epistemicídio maciço tem vindo a decorrer
nos últimos cinco séculos”, desperdiçando experiências cognitivas dos povos do continente.”

A este modo chamo fascismo epistemológico porque constitui uma relação violenta
de destruição ou supressão de outros saberes. Trata-se uma afirmação de força
epistemológica que oculta a epistemologia da força. O fascismo epistemológico
existe sob a forma de epistemicídio cuja versão mais violenta foi a conversão
forçada e a supressão dos conhecimentos não ocidentais levadas a cabo pelo
colonialismo europeu e que continuam hoje sob formas nem sempre mais subtis. No
pólo oposto, está a tentativa de minimizar ao máximo essa assimetria na relação
entre saberes. (SANTOS; MENESES, 2010, p. 468).

Santos e Meneses (2010, p. 154) defendem um conjunto de epistemologias que partem


da diversidade e da “globalização contra-hegemônica”, que ele chama de “ecologia dos
saberes”, que torna visíveis os saberes subalternos, como parte da construção epistemológica
do sul. Dessa forma, o autor se posiciona “quando falo de ecologia de saberes, entendo-a
como ecologia de práticas de saberes.”
Conforme Santos e Meneses (2010, p. 42), o subalterno manifesta-se através de
movimentos que constituem a “globalização contra-hegemônica”. Para esse autor, no sistema
mundial a injustiça social global está intimamente ligada à injustiça cognitiva global,
portanto, para ele, a luta pela justiça social global deve ser também uma luta pela justiça
cognitiva global.
Essa epistemologia está associada, nos termos de Carrillo (2011), à construção de um
pensamento de oposição que supere o eurocentrismo e o colonialismo:

[…] donde a partir de la pregunta ¿Por qué si hay tanto para criticar en
114

el mundo actual, es tan difícil generar teorías sociales críticas que nos orienten los
actuales procesos de transformación?, se propone construir un pensamiento de
oposición que, al mismo tiempo que recupere las promesas de emancipación social
de la modernidad, supere lo que hay en ellas de eurocentrismo y colonialismo e
incorpore los aportes críticos que se están produciendo desde las diferentes luchas
culturales, sociales y políticas actuales. (CARRILLO, 2011, p. 88).

Mejía (2014, p. 23), por sua vez, entende que ações e reflexões de nossas instituições e
organizações requerem “um exercício profundo da interculturalidade, que será marcado pela
tomada de consciência de que somos daqui.” Segundo esse autor, é necessária uma
revitalização da memória histórica dos povos do Sul, silenciados pelos exercícios de
colonização da mente, do corpo e do desejo, em suas múltiplas manifestações. Nesse sentido,
o autor destaca que a educação popular é parte da construção de uma epistemologia do sul,
associada ao projeto emancipador da teoria crítica do mundo do norte.
Para Mejía (2013), os povos originários e sua relação orgânica com a natureza são
exemplo de contradição diante da modernidade capitalista que trata a natureza como
mercadoria. A ideia da Pachamama contém a defesa dos povos e da natureza, que fazem parte
de novos horizontes de luta e construção do conhecimento na educação popular:

La idea de la pachamama nos replantea una tradición que ha usado la naturaleza


como algo externo a los seres humanos y en la modernidad capitalista integrada a
un proceso productivo, en función de convertir la naturaleza en mercancía. En ese
sentido, la relación que se forja en la interculturalidad con los grupos indígenas y
afrodescendientes, tiene un sentido descolonizador, en cuanto al relacionarnos con
ellos aprendemos de una identidad y unos sentidos de lucha que están colocados en
otros lugares a los cuales nos abocábamos en nuestras comprensiones,
incorporando contenidos y prácticas que en los grupos populares llama a replantear
también muchas de sus relaciones y deconstruir miradas que en algunos escenarios
comienzan a tomar forma en el reconocimiento de los derechos de la naturaleza.
(MEJÍA, 2013, p. 14).

Jara (2003, p. 102) considera que o processo vivido pela educação popular nos coloca
diante de dois problemas. Por um lado, a “existência de um inegável fato político que está
influenciando, por diferentes formas, o avanço dos movimentos populares em nosso
continente.” Por outro lado, “a indefinição teórica de seu significado, seu papel e suas
perspectivas.” Tais problemas produzem a “necessidade de avançar na elaboração de uma
teoria da educação popular a partir da América Latina”,

[…] não com um interesse especulativo ou acadêmico, mas com um objetivo


fundamentalmente prático: elaborar uma concepção global e coerente que nos
permita orientar o sentido e as formas concretas que deve assumir a tarefa de levar a
cabo um processo de ação e reflexão consciente entre as organizações populares,
com vista à transformação revolucionária da sociedade. (JARA, 2003, p. 102).
115

No seminário de La Paz, anteriormente referido, produziu-se uma crítica à


modernidade constituída como “única lógica”, racional e legítima, que trata como
subordinadas outras lógicas e outros pensares.

Na história da América Latina, os processos culturais estão associados,


precisamente, à negação da diversidade e à difusão da homogeneidade. Inclusive, a
modernidade tem sido entendida como a imposição de uma única lógica, como
racional e legítima, subordinando e destruindo as outras lógicas e formas de pensar
por serem “primitivas”, “não racionais” ou “alienadas”. Exemplos dessa imposição
foram a conquista dos espanhóis associada à evangelização dos missionários; a
consolidação dos Estados nacionais, vinculada à uniformidade lingüística; e a
modernidade associada a uma visão “científica” da realidade ou articulada pelas leis
do mercado. Esses processos têm aprofundado as distâncias sociais internas, adiado
o desenvolvimento e empobrecido as culturas nacionais na sua capacidade de
produzir consensos profundos e legítimos na sociedade. Enfim, tais políticas
culturais não permitem a construção de uma diversidade de sujeitos e de bases éticas
e lingüísticas, onde eles se comuniquem, se reconheçam e se expressem em toda sua
riqueza e complexidade. (EDUCAÇÃO… 2006, p. 356).

A refundamentação supõe uma renovação paradigmática da educação popular, a qual


implica, segundo Carrillo (2011, p. 92), parafraseando Marx, “nós educadores populares
precisamos ser educados novamente.” O desafio desse processo está em como “desaprender
los esquemas profundos de interpretación heredados del ‘gran paradigma occidental’ en el
cual se construyeron varios de nuestros supuestos y que, aunque invisibles a nuestros ojos,
definen nuestra concepción del mundo.”
Nos debates de refundamentação reafirma-se que o termo popular continua sendo o
povo. Conforme Paludo (2006, p. 48), no projeto da Modernidade, o popular foi e continua
sendo o povo; os “não-povo” historicamente são “os com dinheiro e os com poder e cultura.”
Portanto, popular/povo são:

Temidos quando organizados, em movimento e em luta, elogiados nos discursos em


épocas de eleição, o popular é plural, complexo, multifacetado, apresentando marcas
de conformismo, mas também de resistência e rebeldia. Uma multidão de pessoas
exploradas, dominadas, não valorizadas, sem teto, sem terra, sem alimentação
adequada, sem trabalho ou com trabalho precarizado, sem acesso aos bens culturais,
desvalidos (idosos e crianças abandonadas), mas, também, lutadores e lutadoras
individuais para poder sobreviver que, quando se articulam, se organizam e se põem
em movimento contra a violência segregadora, porque sabem ser segregados,
tornam-se, como diz um dos textos , o “povo político”, conformam o que se chama
de classe popular – de potencial para real, porque em movimento e em luta – e
possuem, como diz Freire (1987), potencial de (re)fundação social. (PALUDO,
2006, p. 49).

No contexto do CEAAL, Carrillo (2011) indica a existência de diferenças e


divergências nos debates. O autor menciona duas posições: uma em que a educação popular é
reduzida a instrumento ou ferramenta a serviço de diferentes práticas sociais, como os
116

movimentos sociais; por outro lado, a educação popular é considerada uma opção política, um
movimento cultural, um campo intelectual, uma comunidade de pensamento ou uma prática
educativa. No ponto de vista do referido autor, é necessário reconhecer a educação popular
como uma “prática histórica”, ao mesmo tempo, um movimento educacional e uma corrente
pedagógica.

Por un lado, la EP puede ser caracterizada como corriente pedagógica originada


en América Latina en torno al aporte fecundo de Paulo Freire, desde la cual se han
generado una serie de planteamientos educativos y propuestas pedagógicas que
tienen como referencia el campo de relaciones entre educación y política, en
particular el de las prácticas educativas intencionalmente emancipadoras.
(CARRILLO, 2011, p. 62).

Conforme Gadotti (2012), a educação popular consiste em um paradigma conceitual


que emerge do contexto de históricas lutas populares e se encontra em pleno processo de
reinvenção.

Trata-se de um paradigma teórico nascido no calor das lutas populares que passou
por vários momentos epistemológicos e organizativos, visando não só à construção
de saberes, mas também ao fortalecimento das organizações populares. Sem perder
seus princípios, a educação popular vem se reinventando hoje, incorporando as
conquistas das novas tecnologias, retomando velhos temas e incorporando outros: o
tema das migrações, da diversidade, o lúdico, a sustentabilidade, a
interdisciplinaridade, a intertransculturalidade, a questão de gênero, idade, etnia,
sexualidade, desenvolvimento local, emprego e renda [...] mantendo-se sempre fiel à
leitura do mundo das novas conjunturas. (GADOTTI, 2012, p. 22).

Para Gadotti e Torres (1994, p. 8), a educação popular tem a tarefa “de diminuir o
impacto da crise social na pobreza e de dar voz à indignação e ao desespero moral do pobre,
do oprimido, do indígena, do camponês, da mulher, do afro-americano, do analfabeto e do
trabalhador industrial.”
Nessa mesma direção, Streck (2012, p. 192) menciona o vínculo da educação popular
com os movimentos sociais populares. De acordo com esse autor, trata-se de “uma pedagogia
do movimento no sentido de se integrar às lutas de quem busca construir novos territórios
para viver e conviver.” Os territórios de luta reaparecem no cenário como algo novo, mas que
já eram parte da tensão e da correlação de forças na América Latina. Assim, a educação
popular, como “pedagogia do movimento”, é também “pedagogia em movimento”.

Por isso a educação popular é cada vez mais uma pedagogia indígena, uma
pedagogia feminista, uma pedagogia negra, uma pedagogia dos sem-terra e sem-
teto. Mas ela é também uma pedagogia em movimento na medida em que
dificilmente ela se deixa enquadrar em esquemas teóricos clássicos. Ela corresponde
à diversidade de tempos e de culturas que constituem o campo das práticas
educativas. (STRECK, 2012, p. 192).
117

A educação popular como movimento persiste no discurso crítico e autocrítico e segue


contribuindo para a unidade latino-americana, do horizonte da “Pátria Grande” de Martí.
Como pondera Paludo (2006, p. 50), a educação popular “está, hoje, no momento do resgate
de raízes e de continuidade da ressignificação”, que necessita “seguir em frente, praticando e
formulando, a partir do que foi (re)afirmado”, e que é nosso desafio.

Afirma-se a necessidade da continuidade da construção do poder popular, do


protagonismo popular, da democracia radical e substantiva, de uma forma ética de
fazer política. Nega-se o vanguardismo, o doutrinarismo, exalta-se a diversidade, o
respeito à subjetividade etc. De qualquer modo, ao lado desta convicção afirmada e
reafirmada da necessidade de transformação da sociedade atual e do alargamento
dos referenciais da sociedade desejada – democracia substantiva econômica, cultural
e política –, não há o indicativo claro da tradução disso em um projeto político para
este momento histórico, capaz de se apresentar como alternativa ao hegemônico.
Isto, entretanto, não significa imobilismo, dado o relato das experiências trazidas
pelos documentos e textos. Tudo indica que estas alternativas estão em processo de
gestação. (PALUDO, 2006, p. 50).

A partir das abordagens e aportes feitos pelos autores, percebo os diversos momentos
epistemológicos e organizativos pelos quais passou a educação popular libertadora,
reassumindo lutas históricas e reafirmando o compromisso pedagógico deste continente.
Em síntese, o objetivo da presente seção foi mostrar aspectos conceituais que
caracterizam a noção de educação popular. A origem da educação popular reporta-se às
vivências de comunidades primitivas, nas quais a produção da própria existência material
levava o ser humano a produzir saberes e aprendizagens. O termo educação popular apresenta
contradições e ambiguidades, pois a mesma expressão toma diferentes significados conforme
o contexto sócio-histórico do qual emerge.
Na América Latina, há certo consenso em atribuir a dois educadores populares o lugar
de precursores: Simon Rodriguez e José Martí. Suas propostas são parte de uma pedagogia
crítica e radical, comprometida com a libertação. No Brasil, no início dos anos 1960, as
práticas educativas eram paternalistas e desprezavam a cultura popular, ao mesmo tempo,
grupos de oposição marcavam resistência às formas instituídas de dominação, por meio de
organizações operárias, camponesas e comunitárias.
No continente latino-americano, a concepção libertadora de educação evidencia seu
papel na construção de um novo projeto histórico, que ultrapassa as fronteiras da pedagogia,
atuando também no campo da economia, da política e das ciências sociais. Trata-se de uma
perspectiva fundamentada na luta de classes e em resistências contra-hegemônicas diante do
padrão eurocêntrico da colonialidade, na qual a educação é indissociável da política.
118

A refundamentação da educação popular é fruto do tensionamento provocado pela


conjuntura mundial neoliberal e pela produção das ciências humanas e sociais do início do
século XXI. Trata-se de buscar novos paradigmas considerando a emergência de novos
sujeitos políticos, pertencentes a setores socialmente oprimidos; assim como realizar uma
crítica à modernidade e ao pensamento único, instaurando bases de uma epistemologia do Sul,
fundamentada nos saberes e nos pensares do povo latino-americano.
Na presente seção os diferentes elementos conceituais apresentados não significam
camadas superpostas, ao contrário, consistem em acúmulos sócio-históricos em interação que
se (re)atualizam constantemente, nas concepções e nas práticas de educação popular. Na
proxima seção apresento o trabalho de campo, no qual problematizo práticas educativas de
um coletivo feminista classista.
119

4 COLONIALIDADE E PRÁTICAS EDUCATIVAS POPULARES: TENSÕES


EMERGENTES

Na presente seção, meu objetivo é evidenciar questões sobre a colonialidade, que


emergem de práticas educativas singulares de jovens mulheres militantes de um coletivo
feminista classista. As opções teórico-políticas desta dissertação, referentes à educação
popular libertadora, impulsionaram-me a realizar um percurso que valorizasse a dialogicidade
na construção do conhecimento junto a atores sociais da educação popular.
Inicialmente, apresento aspectos da abordagem metodológica que fundamentaram as
entrevistas/prosas que realizei com jovens mulheres feministas classistas, da Pastoral da
Juventude Rural e Pastoral da Juventude do Meio Popular. O foco de nossas conversas esteve
centrado em questões individuais e coletivas concernentes às práticas singulares nos
chamados “grupos de base”.
Na sequência, exponho fragmentos de nossos diálogos (prosas), articulados com
elementos conceituais sistematizados nas seções anteriores. Trata-se de caracterizar práticas
individuais e coletivas de poder, saber e ser de pessoas implicadas em um coletivo de
mulheres feministas classistas, considerando a tensão entre colonialidade e decolonialidade.

4.1 ESCUTA SINGULAR DE MULHERES MILITANTES

O trabalho de campo foi realizado no Coletivo Feminista Classista, no qual participo e


sou uma das dirigentes. Atualmente, o coletivo conta com um conjunto de trinta e cinco
jovens mulheres, cujas idades variam entre quinze e quarenta e três anos. Essas mulheres são,
em grande parte, coordenadoras de base da Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP)24 e
Pastoral da Juventude Rural (PJR)25, vinculadas a comunidades (urbanas e rurais),

24
A Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP) “nasceu em 1978 no Recife (PE), carregando na história do
seu surgimento as sementes jogadas pela Juventude Operária Católica destruída pela ditadura com o golpe
militar de 1964.” Essa pastoral da Igreja da Libertação “nasceu e se consolidou sendo um espaço onde os jovens
empobrecidos tomam consciência da sua realidade e nela atuam para transformá-la”, com o objetivo de “suscitar
entre os jovens do meio popular, uma vivência da fé a partir da sua condição social e de classe.” (PASTORAL
DA JUVENTUDE DO MEIO POPULAR, 2018).
25
A Pastoral da Juventude Rural (PJR) é uma pastoral da Igreja Católica que nasceu em 13 de março de 1983.
Articula-se nacionalmente em territórios camponeses em vários estados do país. Organiza a juventude
camponesa, tendo como pauta seu protagonismo na superação das situações de opressão, desigualdades sociais,
permanência do jovem no campo e enfrentamento ao capital no campo. Atua conjuntamente com outros
movimentos sociais camponeses. A PJR é uma organização que é vinculada à Igreja Católica, mas que segue
características classistas, assumindo a luta territorial dos excluídos e explorados pelo sistema capitalista. É parte
da Via Campesina (articulação internacional de organizações campesinas). A PJMP e a PJR são organizações
nacionais, que compõem as quatro pastorais da Juventude do Brasil: PJMP, PJR; Pastoral da Juventude
120

organizações locais (escolas, igrejas) e movimentos sociais, situadas em cidades do Extremo-


Oeste de Santa Catarina. As demais participantes são dirigentes que desenvolvem atividades
políticas em diferentes instâncias das pastorais e movimentos sociais (comunicação,
formação, articulação, representação política – nacional e internacional).
O Coletivo Feminista Classista nasceu de debates da PJMP e PJR. Essas duas
Pastorais da Juventude explicitam a opção de classe, em seus documentos oficiais,
estabelecendo essa opção como propulsora de ações pastorais e militantes. Além disso, o foco
no estudo do feminismo é fruto de reflexões e formações em níveis regional e estadual, assim
como de reuniões das coordenações e de assessorias nacionais da PJMP e PJR. Desse modo, o
Coletivo entendeu que a corrente feminista classista se constituiria no centro dos debates e
ações a serem realizadas.
O Coletivo Feminista Classista é uma organização autônoma, de base territorial e
socialista. Em fevereiro de 2012, no contexto da preparação da jornada de luta do 8 de
março26, houve a formalização do coletivo como organização política, fruto da convergência
de relações de militância historicamente construídas. O Coletivo declara que sua luta política
é, ao mesmo tempo, anticapitalista, anti-imperialista, antipatriarcado, decolonial e
revolucionária.
Em termos de construção tática são considerados os seguintes elementos orientadores:
democracia, trabalho político-social no território/base, educação popular, solidariedade de
classe e de gênero; articulação com outros setores e territórios em luta, homens e mulheres em
construção coletiva do feminismo classista.
No que diz respeito a tarefas, destacam-se: elaboração e distribuição de um jornal
comunitário (PJR e PJMP); formação interna permanente e sistemática; realização de
encontros e oficinas com coordenadoras de base; trabalho de base – com jovens e mulheres
dos bairros, favelas e roça (camponesas); encontros e formações com mulheres de diferentes

Estudantil (PJE) e Pastoral da Junventude (PJ). Por serem as duas pastorais que assumiram a luta de classes,
articulam-se com organizações internacionais de lutas contra o extermínio da juventude pobre, reforma agrária,
permanência dos jovens no campo, soberania alimentar, demarcação das terras indígenas e quilombolas, etc.
26
As questões em torno do surgimento do dia Internacional das Mulheres são polissêmicas. Nesse sentido, cabe
às organizações feministas, com perspectivas de classe, retomar os acontecimentos e trazer elementos reais da
história. De acordo com Faria (2010), o reconhecimento do dia 08 de março está relacionado à homenagem das
mulheres na história da Revolução Russa. A decisão da escolha deste dia ocorreu na Conferência das Mulheres
Comunistas, coincidindo com o Congresso da Terceira Internacional, realizado em Moscou, em 1921, com o
objetivo de unificar as comemorações em torno das lutas das mulheres no mundo, correlacionada às mulheres
socialistas “Foram as manifestações das mulheres na Rússia, no dia 8 de março de 1917 (dia 23 de fevereiro
segundo o antigo calendário russo) que motivaram a escolha do Dia Internacional das Mulheres, alguns anos
depois. A confluência das comemorações do Dia Internacional das Mulheres com a greve das operárias têxteis e
a revolta das mulheres com a escassez de alimentos foi o estopim da Revolução de fevereiro de 1917 na Rússia.”
(FARIA, 2010, p. 13).
121

movimentos populares; participação nas mobilizações de caráter local, estadual e nacional;


lutas territoriais e estruturais. O Coletivo enfatiza a participação de companheiros como parte
do processo de construção do feminismo classista, em espaços dialógicos entre companheiras
e companheiros. Em síntese, no Coletivo as mulheres assumem-se feministas, socialistas e
revolucionárias.
Na presente dissertação estou trabalhando com o seguinte problema de pesquisa: Que
questões emergem da relação entre educação popular e (de)colonialidade? Para problematizar
essas questões, construí um processo de articulação tendo em vista realizar o trabalho de
campo junto ao Coletivo Feminista Classista. Essa articulação me levou a apresentar a
pesquisa e a proposta metodológica. Em razão da particularidade organizacional do coletivo,
com a proposta de trabalho aceita foram estabelecidos coletivamente critérios para a escolha
das entrevistadas. Foi definido que as participantes da pesquisa seriam duas dirigentes, duas
jovens coordenadoras de base e uma das coordenadoras do Coletivo.
Na sequência, apresento elementos do perfil de cada entrevistada, para as quais foi
atribuído um código individual, tendo em vista preservar seu anonimato:

a) M1 (Dirigente do Coletivo) é jornalista, desenvolve tarefas de comunicação,


articulação, coordenação e direção política da organização. Tem graduação em
Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, e especialização em Educação
no Campo, com Ênfase na Realidade Brasileira. Profissionalmente trabalha em uma
Cooperativa de comunicação social e colabora com movimentos sociais e
organizações populares;
b) M2 (Dirigente do Coletivo) é camponesa (assentada), desenvolve tarefas de
acompanhamento de bases rurais, coordenação e direção política da organização e
articulação estadual. É licenciada em História. Profissionalmente, trabalha como
professora/educadora;
c) M3 (Coordenadora de base) desenvolve tarefas de articulação de grupo de base e
coordenação do Coletivo. Está cursando licenciatura em Sociologia.
Profissionalmente, trabalha como educadora social;
d) M4 (Coordenadora de base) desenvolve as tarefas de articulação de grupo de base e
coordenação do Coletivo. Está cursando o ensino médio. Profissionalmente, trabalha
como auxiliar de escritório;
e) M5 (Coordenadora do Coletivo) desenvolve tarefas de articulação em diferentes
grupos de bases. Está cursando licenciatura em Pedagogia da Terra.
122

As “prosas” com as jovens mulheres seguiram uma abordagem qualitativa, que


propiciou um diálogo dinâmico e criativo, baseado na metodologia da entrevista
compreensiva. Conforme Minayo (2001, p. 21-22), a pesquisa qualitativa “trabalha com o
universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a
um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser
reduzidos à operacionalização de variáveis.”
A entrevista compreensiva, desenvolvida pelo sociólogo francês Kaufmann (2013),
propõe que a investigação promova uma compreensão do sentido da ação humana. Para
Kaufmann (2013, p. 47), a entrevista se constitui em importante metodologia na pesquisa
social, tendo em vista que “a questão da relação entre teoria e campo está no cerne da
sociologia compreensiva (e da metodologia qualitativa).” Em minha experiência com essa
abordagem da entrevista, ao longo do trabalho de campo e na relação entrevistadora e
entrevistadas, compreendi que “são nas situações de maior intensidade, mas notadamente de
maior naturalidade, na interação em campo, que se revelam as camadas mais profundas de
verdade.” (KAUFMANN, 2013, p. 16).

[...] não é comum o reconhecimento da complexidade do metodológico em seu


sentido mais profundo: que implica sustentar teoricamente e organizar de forma
rigorosa uma determinada sequência de momentos que seja coerente com uma
fundamentação teórico-filosófica e que se execute de forma criadora. (JARA, 2011,
p. 5).

Na educação popular libertadora o diálogo se constitui elemento estruturante da


prática individual e coletiva. Em minha prática como militante, seja no trabalho de base, seja
como dirigente, o diálogo se traduz por situações de “prosa”, em rodas de conversa, embaixo
das lonas, nas visitas às famílias em suas casas e unidades de produção, nos corredores das
formações, nas ruas durante as mobilizações, nas atividades políticas. Para Kaufmann (2013,
p. 79), o objetivo desse método é o de “quebrar a hierarquia, o tom que se deve buscar é muito
próximo de uma conversa entre dois indivíduos”, uma forma de interlocução a partir da
experiência e das diferentes referências que constituem respectivamente entrevistadora e
entrevistada. “O informante se surpreende por ser ouvido profundamente e se sente elevado,
[…] a um papel central. Ele não é vagamente interrogado a respeito de sua opinião, mas por
aquilo que possui, um saber precioso que o entrevistador não tem.” (KAUFMANN, 2013, p.
80).
123

Elementos da pesquisa bibliográfica (SEVERINO, 2007), articulados à minha


experiência, foram referência para a elaboração de um roteiro (Apêndice A) para realizar as
entrevistas com as cinco mulheres do coletivo. Esse roteiro consistiu em subsídio que foi
utilizado para orientar o rumo das prosas realizadas. Tais questões foram elaboradas de modo
a conduzir o dialogo referente a situações individuais e coletivas emergentes das trajetórias
pessoais, militantes e profissionais de cada mulher entrevistada.

A grade de perguntas é um guia muito flexível no quadro da entrevista


compreensiva. Uma vez redigidas, é raro que o investigador tenha que lê-las ou
ordená-las uma após a outra. É um simples guia para fazer os informantes falarem
em torno de um tema, sendo que seu ideal é o de estabelecer uma dinâmica de
conversação mais rica do que a simples resposta às perguntas, evitando que se fuja
do tema e, de certa forma, se esqueça da grade. Mas para alcançar isso é necessário
que ela tenha sido anteriormente redigida com atenção, totalmente assimilada.
(KAUFMANN, 2013, p. 74-75).

Cada uma das entrevistadas foi previamente consultada sobre sua disponibilidade para
realizar a entrevista e seu acordo foi expresso pela assinatura de um Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido (Apêndice B). As entrevistas foram gravadas e inteiramente transcritas.27
A sistematização e a análise dos dados do trabalho de campo observaram princípios da
entrevista compreensiva. . As entrevistas foram previamente agendadas e realizadas em
espaços e tempos distintos.
Tendo em vista meu pertencimento ao Coletivo Feminista Classista, as entrevistas
foram realizadas com companheiras com as quais convivo e milito. No trabalho de campo, a
pesquisa foi assumida como uma tarefa coletiva. No plano individual, cada entrevistada
realizou o encontro com a pesquisadora imbuída, ao mesmo tempo, pela responsabilidade de
abordar a experiência coletiva e também expressando formas de entusiasmos pela
possibilidade de contribuir com a produção de conhecimento em andamento.
Conforme Kaufmann (2013, p. 81), “para encontrar a pergunta certa, não há outra
solução que não seja a de se colocar intensamente na escuta do que é dito e de refletir a
respeito enquanto o informante fala.” Como uma das dirigentes do coletivo, a situação de
pesquisadora me levou a estar “ao lado”, e, ao mesmo tempo, fazendo um esforço para manter
certa distância. Algumas vezes foi difícil, emocionei-me com as interlocutoras, por ouvir as
realidades sofridas dos povos, nas quais elas se incluem, comprometidas com a
transformação. Confesso que me surpreendi com algumas falas, detalhes que haviam passado
despercebidos na convivência que temos.

27
As transcrições foram feitas por mim e também por outras duas pessoas do Coletivo.
124

Nesse sentido, procurei realizar cada entrevista no caminho do “artesão intelectual”


(KAUFMANN, 2013, p. 33), que “realiza uma obra (e isso não está restrito a alguns autores
importantes) que se destaca por sua importância, que está acima do fluxo uniforme de dados
simples e de outras informações.” Ao fim das entrevistas “revisitei” os sons de cada palavra.
Ao fim das transcrições, li e reli cada palavra registrada. E, como dirigente, compartilho com
essas mulheres das dores e das utopias vivenciadas e construídas umas com as outras.
Na sequência da presente dissertação analiso fragmentos emergentes das entrevistas
realizadas com militantes do Coletivo Feminista Classista, tendo em vista problematizar a
relação entre educação popular e colonialidade em três planos distintos e articulados entre si:
poder, saber e ser.

4.2 COLONIALIDADE DO PODER: LUTAS ESTRUTURAIS, ORGANIZACIONAIS E


IDENTITÁRIAS

De acordo com Quijano (2005, p. 248), a América Latina constituiu-se como o eixo
mundial de um padrão de poder caracterizado pelas relações de exploração e de dominação
em consequência da conquista colonial. Na invasão/construção do território, a partir da
“emergência da América” se consolidou o modo de produção dominante para as formas de
exploração e controle do trabalho, assim como para o conjunto de relações sociais.
A colonialidade imposta ao território, iniciada com a invasão, dominação e
colonialismo, não se rompeu com a independência das nações. Segundo Fanon (1968, p. 83),
com as libertações, “o martelamento da artilharia, a política da terra arrasada deram lugar à
sujeição econômica.”
Quijano (2009, p. 101) menciona que “na América, no capitalismo mundial,
colonial/moderno, os indivíduos classificam-se e são classificados segundo três linhas
diferentes, embora articuladas numa estrutura global comum pela colonialidade do poder:
‘trabalho, raça, género.’” Tais relações sociais formam a estrutura de poder de classificação
social, dando origem às “classes sociais” heterogêneas, descontínuas e conflituosas.
O autor argumenta, ainda, que enquanto essas três instâncias de classificação “forem
entendidas e manipuladas de modo separado ou, pior, em conflito”, não haverá “libertação”
das vítimas da exploração/dominação. Considerar essa classificação social separadamente é
um meio eficaz de os capitalistas manterem o controle do poder (QUIJANO, 2009, p. 105).
Saffioti (2013, p. 63), ao abordar a estrutura das sociedades capitalistas e analisar a
“mulher na sociedade de classes”, aproxima-se da afirmação de Quijano, argumentando: “a
125

tradição de submissão da mulher ao homem e a desigualdade de direitos entre os sexos não


podem, contudo, ser vistas isoladamente.” A autora refere-se à complexidade do sistema
capitalista e das relações sociais, econômicas e políticas que geram os conflitos em torno das
classes sociais.

Então a nossa luta principal, a pauta principal é o feminismo classista, o rompimento


da sociedade de classes, que está ligado a todo o contexto de luta até porque a
opressão pré existe ao capitalismo. Então quando a gente fala que quer construir
uma nova sociedade, que a gente não quer mais o capitalismo significa que a gente
não quer mais o capitalismo e nenhum outro modo de vida onde a opressão exista.
Não é só no capitalismo, mas em qualquer outro modo de vida que houver opressão
a gente quer desconstruir isso. (M1 p. 4).

[...] se o feminismo não for classista, se ele não for e não tiver bebendo das veias e
das indignações das explorações do povo, não tiver bebendo da classe trabalhadora
ele não transforma, […] então o feminismo dentro da luta de classe que é
transformar toda uma relação de luta que a gente tem, que a gente constrói no Brasil
e nos movimentos sociais e trazer pra dentro esse feminismo, que é a igualdade pra
que a gente consiga construir nós as companheiras e os companheiros juntos. (M2,
p. 2).

[...] a gente não é só feminista [...] a gente é feminista classista, que é a mulher como
proletária do proletário [...] mas uma coisa que eu sempre deixo claro assim, quando
as pessoas me pedem [...], “ah, você é feminista?”, sim, mas sou feminista classista e
eu não sou só feminista. Então não quero me impor ao homem, eu quero fazer com
que ele entenda que, os meus direitos precisam sim ser reconhecidos, eles não foram
totalmente reconhecidos e eu ainda acho que há uma trajetória bem longa, mas, que
é preciso andar junto [...] que essa construção é coletiva, independente da opção ou
orientação sexual [...] então acho que essa é nossa principal luta. Junto com as outras
pautas [...] que são abordadas pela PJMP, pela PJR. (M 4, p. 3).

As minhas interlocutoras evidenciam que são feministas classistas, como forma de


afirmar suas identidades de classe. Jovens mulheres urbanas e camponesas, exploradas e
oprimidas, porém, insurgentes e rebeldes diante do sistema de poder que ousam confrontar de
forma organizada e coletiva, alinhadas a uma estratégia classista. “Quando eu vou pra rua, por
exemplo, [...] contra a reforma da previdência, eu tô lá como uma mulher feminista classista,
eu tô lá como uma menina que [...] mora numa periferia.” (M 4, p. 3) (informação verbal).
Não encontrei cautela nessas jovens mulheres. O sonho que vivem coletivamente
parece encorajar e impelir para algo que talvez elas desconheçam. A juventude tende a ser
audaciosa, quem sabe era sobre isso que Che Guevara se referia, quando declarou “ser jovem
e não ser revolucionário é uma contradição genética.” Contudo, essa coragem que identifiquei
está para além dos confrontos, na maioria das vezes, encontra-se na firmeza das falas, ao
mesmo tempo imbuídas de um amor profundo pela humanidade. No contexto em que Freire
(1997, p. 37) expressa: “a coragem de lutar ao lado da coragem de amar.”
126

As realidades relatadas por minhas interlocutoras evidenciam impactos do padrão de


poder em diferentes planos, econômico, cultural e social, bem como o racismo como recurso
eficiente para legitimar as relações de dominação (QUIJANO, 2005). Em nossas prosas,
manifestaram percepções em torno da questão étnica e racial, consideradas categorias de lutas
do coletivo.
As militantes identificam que a colonialidade persiste na opressão aos povos, e
consideram fundamental a unidade nas lutas. Porque mesmo identitárias (étnicas, raciais,
gênero, etc.), estão correlacionadas a um contexto maior – tendo a tarefa do enfrentamento ao
modo de produção capitalista e a construção de uma nova humanidade, de “um homem
novo.” (FANON, 1968, p. 56).

Primeiro que a opressão dos povos ela está relacionada novamente ao contexto da
luta de classes. E a gente sabe que existe uma cristalização histórica de um discurso,
[…] alguns autores inclusive falam sobre a colonização das mentes […] e a gente
tem o entendimento de que romper com esse discurso que historicamente foi
cristalizado, que fazer a defesa dos povos indígenas, que fazer a defesa dos
quilombolas, fazer a defesa dos negros e negras, dos caboclos e caboclas, não são
lutas isoladas, não são lutas específicas, isso faz parte de um contexto maior. Os
povos indígenas [...] foram exterminados e a cada dia estão sendo mais
exterminados [...] toda essa luta contra o racismo, contra todas as formas de
opressão, contra todas as formas de violência, ela não deve se dar de maneira
isolada, em um espaço, ou com uma categoria. Nós entendemos que tudo faz parte
de um contexto maior que é a luta de classes, onde a gente luta pelos povos do
Brasil, onde a gente luta pelos povos da América Latina e do mundo. A opressão não
se deu só no espaço onde eu estou, apenas no país onde eu vivo, mas ela se dá num
contexto de mundo e na medida que a gente consegue avançar no debate, o racismo
ele vai terminar a partir do momento em que esse sistema for exterminado, que um
novo modo de vida for construído, novas relações de mundo forem construídas.
(M1, p. 6-7).

A citação da M1 traduz as práticas sociais fundadas pela colonialidade do poder,


compostas por uma categoria mental, forjada pela ideia de raça. Segundo Quijano (1993), tais
ideias moldaram profundamente todo um complexo cultural, uma matriz de ideias, imagens,
valores e atitudes, o que provocou a colonialidade mental. Essa realidade, somada ao processo
de violência física durante a invasão e conquista do território, impeliu os povos a construírem
formas de resistência e de lutas que se somam na história com outras lutas estruturantes.

[…] então a gente precisa romper com todo esse sistema que gera a morte, mas a
gente precisa romper com essas relações que são formadas a partir desse machismo
secular. Então eu acho que esse é um debate que ele precisa estar presente, que a
gente sim, quer terminar com o capitalismo, mas a gente quer terminar com a
opressão, independente de qual modo de vida a gente for viver a partir do momento
em que o capitalismo não existir mais [...] sem isso a gente não vai conseguir
transformar a sociedade né? Então ainda é bastante desafiador assim, você discutir o
feminismo classista dentro dos movimentos ou, por exemplo, eu vou chegar numa
comunidade indígena e vou discutir o feminismo classista [...], sendo que as
mulheres muitas vezes nem conseguem se expressar a gente nem consegue chegar
127

muitas vezes até elas [...], o marido, o companheiro que vem receber e que dita as
regras [...]. Então é um processo todo de base, a gente volta a falar do trabalho de
base [...] (M1, p. 7).

Elementos das entrevistas evidenciam que as mulheres indígenas não acolheram o


conceito de feminismo. Nesse sentido, há dificuldade em aproximar o feminismo da luta
comum com os homens pelo direito a terra (demarcações), da autonomia e auto-organização
de mulheres também como lideranças, ou, ainda, de questões que envolvem a vida das
mulheres, como a sobrevivência das comunidades e seu estilo de vida (cultura). Assim, avalia
minha interlocutora: “[…] a gente faz luta pelos povos indígenas, pelos povos quilombolas e
tudo mais, mas a gente sabe que o machismo está muito impregnado dentro das aldeias, das
comunidades indígenas.” (M1, p. 6-7) As militantes convergem ao mencionar um sistema
maior que precisa ser rompido, em suas palavras, “exterminado”. Para elas, as transformações
nas relações se darão quando a opressão e a dominação não mais existirem. Evidenciam o
debate feminista interligado à história da luta de classes, e perpassam o debate étnico, racial e
identitário necessário no contexto latino-americano, “[…] a opressão ela está em todas essas
realidades, presente em toda a sociedade.” (M1, p. 2)

[...] o sistema capitalista já impõe diversas coisas que nos impossibilitam, o


crescimento, a liberdade de escolha e de pensamento, então é por isso que a gente é
classista [...]. A gente luta primeiro libertação da nossa classe, e junto com isso
caminham as outras coisas [...], caminham a luta LGBT, da mulher negra que acaba
tendo um peso muito maior né, pela cor, pela... enfim. Na verdade eu penso que cada
mulher tem o seu universo [...], enfrenta suas dificuldades, e quando digo que eu sou
feminista classista, eu tô comprando essa briga, eu vou levar o universo de cada
mulher comigo [...], então eu sendo feminista, não posso ser a favor do capitalismo,
porque não tem como eu me expressar, vou ter que agir conforme é o capitalismo
né? (M 4, p. 5).

É o Socialismo que queremos, pra isso é preciso quebrar, romper com o capitalismo,
como esse sistema que foi nos imposto [...], então primeiro essa é nossa bandeira
principal, como eu disse, a gente leva, levanta essa bandeira e depois vêm as outras,
de cada mulher. (M 4, p. 5).

Seguindo nesse princípio, a entrevistada M4 me devolve um questionamento a partir


da prosa que estávamos desenvolvendo: “como eu vou ser feminista [...] lutar pelos direitos da
mulher sem pensar na luta de classes e como vou pensar na luta de classes sem pensar na
quebra do capitalismo?” (M 4, p. 7). Tal questionamento ocorreu de forma a afirmar sua
convicção, que, obviamente, veio sendo construído do coletivo que faz parte.
Para essas mulheres, o processo de enfrentamento da colonialidade do poder e a
perspectiva da construção da contra-hegemonia está na articulação; nas lutas construídas a
partir da rua (assumindo suas identidades e realidades); na construção teórica individual e
128

coletiva, que levará ao avanço da consciência da classe trabalhadora e na organização coletiva


da base até as instâncias de comando. A organização dessas jovens mulheres é exemplo das
palavras de Quijano (2007, p. 04), “es un tiempo de luchas y de opciones. América Latina fue
el espacio original y el momento inicial de formación del capitalismo colonial/moderno. Hoy
es, por fin, el centro mismo de la resistencia mundial y de la producción de alternativas
contra este patrón de poder.”
Na mesma direção, Mignolo (2008, p. 258) enfatiza a importância das organizações e
movimentos sociais para o pensamento decolonial, afirmando: “la genealogía del
pensamiento de-colonial es planetaria y no se limita a individuos, sino que se incorpora en
movimientos sociales.”

Então a gente criou o grupo conversando com a coordenação, com as companheiras


e também com os companheiros sobre essa necessidade de criarmos um grupo
feminista classista, primeiramente com as companheiras, com meninas e com as
companheiras que estão há mais tempo na militância por a gente entender também
que alguns temas, alguns assuntos são mais difíceis para as mulheres, diante do
cenário, do contexto histórico de exploração e também pelo fato de que muitas
mulheres historicamente sempre ficaram caladas, tinham medo inclusive de sair de
dentro de suas casas, então imagine falar sobre determinado tema. (M1, p. 1).

[…] esse grupo é uma construção coletiva [...] um pouquinho também da


necessidade das meninas do coletivo [...] aprofundar um pouco mais o que seria esse
feminismo classista que a gente fala, luta e se organiza pra construir [...], então a
minha entrada foi dessa forma, inclusive, até da organização do grupo e da
construção desse espaço coletivo. (M2, p. 1).

Por ser classista, um grupo feminista, a gente faz enfrentamento, esse é o mínimo
[...] Pra transformar, pra fazer essa mudança estrutural no sistema, a gente precisa
fazer esse enfrentamento né. Então é um grupo que vai pra rua, é um grupo que vai
pras bases, que vai pra favela, que vai pro campo, que não fica quieto, que se
mobiliza, constrói e produz material [...] então ele é um grupo de transformação e
que não fica quieto, então essa é a nossa relação com a sociedade [...], é de falar, de
se expor, de tá presente. (M2, p. 6).

[...] porque ter um grupo feminista, classista, numa região [...] que é extremamente
preconceituosa, extremamente machista isso incomoda muito, e a existência desse
grupo incomoda muita gente, e a gente percebe isso, porque [...] vem muitas pessoas
disseminar o ódio [...], esse discursos de ódio vem em cima da gente, só que isso a
gente não interpreta como uma coisa ruim, a gente interpreta e percebe que isso é
uma coisa boa, porque a gente tá incomodando. Eles tão vendo que tem mulheres
que estão discutindo as questões [...], as relações de gênero, as relações da mulher e
da sociedade, trabalho, e é de classe [...], isso é o resultado da nossa discussão do
nosso debate, da existência do nosso grupo. (M 3, p. 8).

O complexo cultural da inferioridade e superioridade, criadas pela colonialidade,


revela os preconceitos de raça, gênero e classe. Estes que se manifestam por meio de
perseguições, repressões, difamações, e por vezes, discursos de ódio. No decorrer da história
latino-americana, processos violentos foram usados para manter a ordem política, social e
129

econômica, assim, quando grupos subalternos se organizam e se fortalecem, haverá reações


dos que se consideram superiores.
Fazer enfrentamentos estruturais requer um nível de consciência e organização que
somente será possível por meio de fatores e práticas diárias. Minhas interlocutoras destacam
estudos, debates, formações, prosas, etc., que levarão a um processo de percepção e
internalização das necessidades coletivas, no caso em específico, o estudo de gênero
interligado com o feminismo classista.

Primeiro eu conheci a Pastoral da Juventude do Meio Popular [...], lá eu conheci um


pouco da realidade que é parecida com a minha, me identifiquei e surgiu a
necessidade de um grupo feminista, [...] pra gente discutir a relação de gênero dentro
da pastoral também [...]. Ali eu participei desde o primeiro encontro, que surgiu essa
ideia, onde fomos discutindo mais coisas, aprofundando os debates, estudos,
conseguimos dar continuidade aos encontros e a gente foi percebendo que
precisávamos mais do que uma conversa de relação de gênero. Como nós somos
filhas de proletários, trabalhadoras [...], então surgiu essa necessidade de discutir o
feminismo classista, a relação de classe junto com a relação de gênero. (M5, p 1).
(informação verbal).

Os diálogos com essas mulheres me levaram a perceber o discernimento em relação ao


debate de gênero para além do patriarcado, porém, não ignoram que ambos precisam de
estudos e discussões ampliados. Para tanto, buscam fundamentos teóricos em variadas fontes
para comporem o coletivo.
Reporto-me a Saffioti (2013, p. 136), quando menciona os sistemas duais, compostos
pelos domínios do patriarcado e do capitalismo. A autora argumenta que tratar a hierarquia
entre homens e mulheres, construída por milênios, com primazia masculina “em termos
exclusivamente do conceito de gênero distrai a atenção do poder do patriarca, em especial
como homem/marido, ‘neutralizando’ a exploração-dominação masculina.”
Lugones (2008) elabora o conceito de colonialidade de gênero a partir do feminismo,
introduzindo o neologismo “categorial” para indicar relações entre as categorias, pois,
segundo ela, foi construída uma dicotomia, ao pensar gênero, raça, classe como categorias.
Como tal, foram pensados como binário: masculino/feminino, branco/negro,
burguês/proletário.
As análises de Lugones (2008, p. 99) indicam a necessidade do debate feminista diante
da estrutura da sociabilidade dividida em classes. A autora destaca a conexão do trabalho das
feministas que abordam as questões raciais e de classe com o trabalho de Quijano sobre a
colonialidade do poder, questionando a falta de enfoque dado às questões do colonialismo
pelas “feministas brancas”.
130

Ao contexto inquirido por Lugones, é possível associar o debate das interlocuras da


entrevista quando questionadas a respeito do feminismo classista posto na sociedade, na
construção com outros movimentos sociais (mistos) e com outros movimento feministas.
A jovem (M1) expõe a relação com sociedade: “[…] sobre o feminismo classista a
gente tem sérios enfrentamentos. Até mesmo a palavra ‘feminismo’ ela soa com um
radicalismo que ninguém entende porque justamente não há esse estudo, esse
aprofundamento.” (M1, p. 2) (informação verbal).
Cisne (2005, p. 3) pondera que o gênero possui classe, raça, etnia, orientação sexual,
idade, etc., e que essas diferenças e especificidades devem ser percebidas, porém, “não podem
ser vistas isoladas de suas macrodeterminações, pois, por mais que “o gênero una as
mulheres”, a homossexualidade una gays e lésbicas, a geração una as(os) idosas(os) ou
jovens, etc., a classe irá dividi-las(os) dentro da ordem do capital.”
Dessa forma, percebemos inúmeras manifestações feministas deslocadas dos debates
suprapostos. Zetkin (1907), em outro período histórico, dentro de um processo de
sistematização das conclusões políticas de várias décadas de luta e de disputa, advertiu que na
disputa política e ideológica as feministas proletárias não podem se associar com o feminismo
burguês reivindicatório, e evidenciou o lugar de luta e organização das mulheres da classe
trabalhadora.

As proletárias não devem contar, portanto, com o apoio das mulheres burguesas na
luta por seus direitos civis; as contradições de classe impedem que as proletárias
possam aliar-se com o movimento feminista burguês. Com isso, não queremos dizer
que devam rechaçar as feministas burguesas se elas, na luta pelo sufrágio universal
feminino, se puserem a seu lado e sob sua direção para combater nas frentes o
inimigo comum. Porém, as proletárias devem ser perfeitamente conscientes de que o
direito de voto não pode ser conquistado mediante uma luta do sexo feminino sem
discriminações de classe contra o sexo masculino, mas somente com a luta de
classes de todos os explorados, sem discriminação de sexo, contra todos os
exploradores, também sem nenhuma discriminação de sexo. (ZETKIN, 1907).

Nos argumentos das jovens entrevistadas, o debate do feminismo classista com os


demais movimentos sociais, sindicatos e organismos de esquerda não tem avançado. Segundo
elas, o termo “feminismo classista” ainda é desconhecido, em geral, as organizações usam o
termo “feminista”, desconsiderando a categoria luta de classe. A jovem (M5) considera que
esse processo se explica pelo avanço do feminismo radical. Ao mesmo tempo, a jovem (M1)
reforça que nas atividades e mobilizações dos movimentos campesinos é constantemente
usado o “grito de ordem”: Sem feminismo, não há socialismo. E destaca que nessas palavras
estão inseridas as ideias de transformação almejada para as mulheres e para os homens.
131

Segundo ela, não há como construir o Socialismo sem que mulheres e homens se assumam
feministas classistas.

Nós somos as feministas classistas […] com a sociedade é o primeiro rompimento


com o próprio conceito, falar do classista. Então, há um enfrentamento porque o
nosso grupo ele tá relacionado a várias pautas que são unitárias com os movimentos
mas nem sempre algumas pautas dos movimentos são unitárias com a discussão do
feminismo classista. Até porque vários movimentos e eu falo movimentos sociais, as
próprias organizações populares, as organizações sindicais ainda não fazem essa
discussão sobre o feminismo classista, ou falam em simplesmente “feminismo”, mas
não o feminismo de classe que é o que deveria [...] ser estudado, que deveria ser
defendido porque ele está alinhado politicamente a várias pautas que a gente defende
e aqui eu vou citar algumas, por exemplo: que nós temos bastante proximidade, as
pautas construídas a partir de vários movimentos da Via Campesina, e inclusive, é
importante ressaltar que um dos gritos de ordem que a gente mais utiliza seja no
espaço da formação e especialmente também na rua é o grito de ordem: “Sem
Feminismo não há Socialismo”, porque, ele foi um grito criado na quinta
conferência latino-americana das organizações do campo que é a Cloc [...] a Via
Campesina Internacional, justamente porque nesse grito de ordem estão inseridas
todas as ideias de que nós buscamos uma sociedade transformada para as mulheres e
para os homens. Não há como construir o Socialismo se nós não formos feministas,
se nós mulheres e homens não formos feministas classistas. (M1, p. 5-6).

Eu vejo a relação de discussão do feminismo classista apagada com os outros


movimentos, parece que não tem tanta abertura, muitos não conhecem o feminismo
classista né. O feminismo radical talvez tenha tomado toda a atenção ou outro
feminismo, mas não esse classista que a gente discute a relação de classe junto com
o feminismo. Mesmo assim eu acho que existe, mesmo que ainda não de uma forma
ideal, a troca de saberes, é importante levar para os movimentos essa discussão.
(M5, p. 3).

[...] alguns movimentos a gente consegue se identificar mais que outros, eu percebo
que, a mulher mesmo dentro desses espaços ainda tem esse papel inferior ao homem
[...]existe muitos homens dirigentes [...] muitos deles acham que a mulher talvez não
tenha capacidade, pra ser dirigente também, pra fazer uma assessoria. Já vivenciei
momentos, mesmo com companheiros que nem são dirigentes, [...] nem fazem parte
da assessoria, companheiros nossos assim, que tão do nosso lado, falando
disseminando essa cultura machista [...] talvez muitas vezes sem eles perceberem,
essa cultura que a gente já nasce nela [...] a gente é ensinado a ser assim, mas mesmo
dentro da nossa organização, de outras organizações principalmente, por que na
nossa organização o debate já está um pouco evoluído, mas eu percebo que é
complicado [...] essa questão da mulher. (M3, p. 6-7).

A auto-organização das mulheres é considerado imprescindível nos movimentos


sociais e organizações populares. No interior das organizações, há o entendimento da
importância das mulheres nas instâncias de lutas e deliberações, portanto, as mulheres têm se
auto-organizado, seja nas unidades de produção, nos debates e formações, seja nas
coordenações e direção dos movimentos, mesmo que ainda não seja colocado em pauta o
debate do feminismo classista.
Fora das organizações populares e movimentos sociais, grupos de mulheres
organizadas são negados, o padrão de poder definido pelo capitalismo supõe a desarticulação
132

dos subalternos. Os padrões de poder fundados pela dominação colonial persistem em


diversos âmbitos da vida social, a mulher como ser colonizado recebe uma herança social e
econômica ainda mais perversa. Esse debate movimenta-se pela trilha da expressão usada por
Flora Tristan: “mesmo o homem mais oprimido pode oprimir outro ser, que é sua própria
mulher. A mulher é a proletária do proletário.”
No caso das jovens mulheres do campo, a colonialidade expressa nas relações
patriarcais apresenta-se na divisão dos trabalhos da roça, ou na obrigatoriedade do
deslocamento para a cidade, saída definitiva da roça, forçados pelo avanço do capitalismo no
campo.

[…] a gente vive no capitalismo, então várias coisas nos afetam enquanto crianças,
jovens, adultos, idosos e inclusive a minha saída do campo está refletida nesse
contexto [...] do capitalismo, de forçar as famílias a saírem do campo e irem para as
cidades, periferias. Então a gente discutia a transformação dessa sociedade. (M1, p.
2).

Nossa é assustador algumas vezes assim, quando a gente tá na cidade a gente


percebe que tem várias relações que passa por opressão [...] desde o momento de
entrar no trabalho, em casa e tudo mais. Mas no campo parece que é gritante em
alguns momentos sabe por que parece que a gente devia estar mais adiante e nós
estamos lá, lá atrás [...] Desde a divisão do trabalho, coisa básica [...] que deveria ser
uma relação já que a gente deveria ter avançado [...] Desde o companheiro e a
companheira ter que ir os dois para a roça, voltar [...] quem que cuida da casa, se tu
não constrói com o companheiro vai ser a companheira então, e infelizmente ainda
como é tudo muito distante pegando em especial o espaço onde eu tô vivendo no
momento quem acaba reproduzindo as relações de machismo são as mulheres [...]
exatamente porque o momento de se encontrar acaba sendo o momento de
julgamento [...] então são coisas que vão se perpetuando, que parece que eram coisas
dos nossos avós e que está ali, escancarado [...] Então qualquer espaço do campo há
machismo [...] até na sua relação dentro de casa até na tua relação com a
comunidade. O fato de você estar envolvida em uma reunião já é julgada pelos
companheiros, pelas companheiras e tudo mais, então é muito gritante o machismo
no campo, essa relação. (M2, p. 3-4).

A perspectiva decolonial busca adentrar nas heranças coloniais que se fortaleceram


pela cultura, economia, classe social, raça, etnia, gênero e construíram forças hegemônicas
que destruíram modos de vida dos povos de Abya Yala. Para pensar uma perspectiva
decolonial é necessário entender tais heranças alicerçadas no que Grosfoguel (2008) chama de
“sistema-mundo europeu/euro-norte-americano capitalista/patriarcal moderno/colonial.”
Escobar (2003, p. 61), ao mencionar a perspectiva decolonial, afirma que os
movimentos representam territórios necessários para a decolonização, chamando-os de
“movimentos decoloniais”. Argumenta que o programa modernidade/colonialidade tem a
“necesidad de considerar seriamente la fuerza epistemológica de las historias locales y de
pensar teoría desde la praxis política de los grupos subalternos.”
133

Tal práxis política diz respeito às pautas de lutas que as interlocutoras de minhas
entrevistas abordam. Pautas específicas e outras que são comuns entre as organizações e
movimentos sociais. As jovens mulheres do coletivo destacam a importância da unidade no
processo revolucionário de construção da contra-hegemonia, bem como o reconhecimento de
seus territórios de lutas (identidades) como forma de avançar no processo de transformação da
realidade, avançar na perspectiva decolonial.

[…] coletivo feminista classista assume junto dos movimentos algumas pautas
conjuntas né, que é a reforma agrária, a Via Campesina também trabalha algumas
pautas conjuntas do campo, também entra a pauta específica da PJR que é a
permanência da juventude no campo, cultura pra cidade então toda essa relação.
Então junto com os outros movimentos a gente se soma bem como eles se somam
com nós né, daí então a luta, há momentos que as lutas são conjuntas e o grupo
feminista está ali pra debater, pra ajudar a debater, construir e fazer a formação e a
construção do movimento, da mobilização e tudo mais. (M2, p. 7).

Da Pastoral da Juventude Rural então, a permanência da juventude no campo né,


que daí é assumida pelo grupo feminista classista que inclusive a gente tem que
fazer um trabalho em separado e coletivo com os companheiros, em especial no
campo até pra ir de encontro com essa realidade que eu coloquei anteriormente dessa
desigualdade e do machismo muito forte no campo. Então a permanência da
juventude no campo, a luta pela terra [...] porque é importante. A construção da
identidade na cidade, de renda, de reconhecer os morros da cidade e que, reconhecer
o papel também que as mulheres vêm exercendo nas cidades, o processo de
formação de identidade, que a mulher também faz parte desse processo de formação
da identidade, então a gente vai assumindo essas pautas [...] contra violência como
eu já falei, pautas específicas e também coletivas [...] do coletivo da PJR e PJMP.
(M2, p. 5).

Quijano (2005, p. 9) menciona que a América Latina foi o espaço original, “a primeira
entidade/identidade histórica do atual sistema mundo colonial/moderno e de todo o período da
modernidade.” Nesse argumento, Quijano aponta a identidade eurocentrada, de culturas de
fora, que foram impostas aos povos latino-americanos.
Se, portanto, na América Latina o colonialismo produziu violentamente a aculturação,
o desafio, nesse cenário, é pensar caminhos de libertação, que, para as interlocutoras, está na
consciência de sua realidade e na necessidade de transformação. Gramsci (2004a, p. 60)
menciona a consciência unitária do proletariado por meio da crítica à civilização capitalista e
a urgência em “conhecer a si mesmo”, “para ser o senhor de si mesmo”. Para as
interlocutoras, tal consciência é adquirida coletivamente nas organizações a partir das práticas
políticas e educativas, que possibilitam a construção de uma identidade de mulher da classe
trabalhadora, das periferias, da favela e do campo.

Como coletivo feminista classista a gente assume a luta de classes junto com os
companheiros homens. As lutas são pela reforma agrária, uma luta do campo que
nós enquanto PJMP assumimos junto com a PJR. Contra a violência e morte das
134

juventudes negras e pobres das periferias e favelas. Como eu sou uma jovem da
periferia me sinto muito identificada nessa pauta porque vejo os sinais de violência
em vários momentos e lugares onde eu moro. Também assumimos a pauta de luta
pela universidade pública e popular, porque os jovens da favela também não têm
condições de bancar uma faculdade e nem queremos nos inserir nesses moldes do
sistema, queremos uma universidade com o nosso jeito, com as nossas cores. Eu
inclusive estou cursando Educação no Campo com Ênfase em Educação Popular no
Instituto Federal Catarinense de Abelardo Luz, que é um campus referência dos
movimentos populares. Eu e mais dois jovens da periferia estamos naquele espaço
porque justamente fizemos parte desse coletivo de luta. (M5, p. 3).

Então as nossas lutas são essas, elas abraçam as lutas da classe trabalhadora [...]
contra todo o processo de violência, contra o machismo, porque sem feminismo não
há socialismo […] então a gente abraça todas essas lutas […] e em especial é isso
[...] construir no berço da nossa organização toda essa relação de igualdade, que a
gente consiga juntos, companheiros e companheiras [...] ir transformando, daí é
junto lá, é na periferia, é no campo, nos espaços de formação, é ali, com a juventude.
(M2, p. 3).

[...] outras pautas [...] está a luta contra o uso de agrotóxicos, a questão do
agronegócio também, a luta contra violência à juventude empobrecida das favelas e
periferias, a luta por uma educação pública e de qualidade, porque a gente sabe que
todo esse machismo construído historicamente, implantado digamos assim, ele é
fruto de uma educação bancária, mercantil, de uma educação que historicamente fez
muitas mulheres ficarem trancadas em casa, terem medo de ocuparem alguns
espaços e não terem condições de ocuparem alguns espaços pela própria condição de
opressão sofrida [...]. (M1, p. 6).

O patriarcado se construiu em nossa sociedade lado a lado com as relações de


mercado, com a propriedade privada, e os bens que passam a serem acumulados. Karl Marx
afirma que “a mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas
propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas,
provenham do estômago ou da fantasia.” (MARX, 2002, p. 57).
O sistema mundo colonial em que estamos inseridos colonizou também nossas mentes
e nossos seres. É comum olhar para tudo como mercadoria, a partir desse ponto de vista, o
que são as “mulheres da noite”, as prostitutas, se não mercadorias que provêm da fantasia?! E
nós, “outras mulheres”, as “mulheres de bem”, o que somos se não mercadorias da mesma
forma, estilizadas nas músicas, danças e rodas de conversas dos “homens de bem”?!
Fechadinhas em nossas arrogâncias e hierarquizadas de conhecimentos e realidades,
mercantilizadas juntamente com a natureza e tudo que pode ser vendido e comprado.
A interlocutora (M5), ao fazer inferência à sua realidade, relatou as relações com as
prostitutas.

É comum, eu tenho até amigas que são prostitutas né, eu vejo que é uma necessidade
e muitas vezes elas são muito julgadas. Mas o que quero me referir com a questão
das prostitutas é o modo como muitas vezes são tratadas, também como mercadoria,
sofrem violência, são julgadas porque moram nas favelas e essas pessoas não sabem
135

que muitas vezes essa é a forma que elas tem para buscar um sustento imediato ou
enfim, quem somos nós para julgá-las. (M5, p. 2).

Diante do contexto posto, entendo como a colonialidade do poder, do saber e do ser,


movimenta-nos e orienta-nos. Neste seguimento, concordo com Catherine Walsh (2012, p. 15-
16), que o pensamento decolonial “ha asumido el reto de construir atajos que inspiran la
rebeldía y la desobediência.” E, nesse caso, considero o coletivo feminista classista um desses
atalhos, para que a violência de gênero, étnico, racial, ou qualquer outra violência causada
pela ordem patriarcal, de racismo ou de classe seja eliminada. Assim, considero os
argumentos de Saffioti (2009, p. 38) que “uma sociedade sem ordem patriarcal de gênero, sem
racismo e sem classes sociais não terá necessidade de violência, o que proporcionará
expressivo conforto a homens e mulheres, a brancos e negros, enfim, a todos os seres
humanos.”
Um dos desafios postos pela colonialidade do poder é a formação das mulheres como
dirigentes das organizações e movimentos decoloniais. A colonialidade de gênero define o
lugar subalterno da mulher, inclusive, no interior das organizações e movimentos sociais.
Segundo a jovem (M2), “há uma masculinização na direção de alguns movimentos que
também não permite a participação e a emancipação.” Portanto, é tarefa das mulheres
tensionarem as instâncias de comando para que elas também estejam à frente.
As entrevistadas argumentam em torno da formação de dirigentes em várias instâncias
das organizações. Segundo elas, o feminismo classista tem forjado lideranças e dirigentes
capazes de fazer parte de um conjunto de intelectuais, mas especialmente, capazes de
comandar processos contra-hegemônicos e decoloniais. De acordo com M4 (p. 7), “nós temos
uma dirigente mulher que se manifesta mais do que um dirigente homem por exemplo [...]”
Essas mulheres buscam a libertação nas vielas da subalternidade e compõem o coletivo maior
de luta antipatriacal, anti-imperialista, anticapitalista.

Uma porque muitas vezes tem a relação de ser uma mulher na frente [...] porque
como nosso coletivo da PJR e da PJMP tenta construir coletivamente os processos
de luta com as companheiras e os companheiros é coletivamente que a gente faz os
enfrentamentos [...] Então essa relação de ter uma companheira na frente, de ter uma
mulher perante toda essa relação, como se fosse mais frágil [...] e tem toda relação
de que os aparatos de ordem eles tem como objetivo limitar todo […] processo que a
gente constrói pra expor as nossas ideias, pra transformar, pra se mobilizar [...]
Então essa é bem tênue no sentido de, na nossa relação com os aparatos de ordem.
(M2, p. 7).

[…] há uma masculinização na direção de alguns movimentos que também não


permite a participação e a emancipação [...] que as mulheres tomem um pouco do
poder e da direção dos movimentos e dos processos, então ainda existe sim o
machismo dentro dos movimentos sociais e é [...] compreender o que é o feminismo
136

classista, não se trata somente falar de feminismo, falar de luta de classes, mas é
compreender e tentar desenvolver isso e daí não é só com as companheiras, tem que
ser com os companheiros em especial [...] então são vários momentos que a gente
tem que construir [...] com as meninas, com as companheiras e também os
companheiros. (M2, p. 2).

Uma das grandes preocupações e urgências, externalizadas pelas militantes


entrevistadas, diz respeito a avançar na construção do feminismo classista com os homens, do
seu núcleo familiar ou companheiros de organização e movimentos. Para elas, a
transformação que perpassa o feminismo, ou a revolução socialista somente vai acontecer se
houver unidade entre homens e mulheres, especialmente, na unidade camponesa, operária,
indígena, negra e de gênero.

[...] uma das pautas também que a gente tem muito, além da evoluir no nosso debate
da mulher [...] mas a gente conseguir levar esse debate para nossos companheiros,
pros homens [...] não é só a mulher que tem que ser feminista, ou que tem que lutar
pelas pautas feministas, que tem que lutar pela mulher, mas os homens também. [...]
a gente não acredita que a mulher deve ser, [...] melhor que o homem ou deve atingir
[...] ocupar espaços melhores que os homens. (M 3, p. 4).

[...] nós sozinhas não vamos fazer a luta de classes por isso que a gente não pode se
impor ao homem, a gente quer os nossos companheiros do nosso lado e é assim que
eles se identificam [...] porque eles também buscam a luta de classes [...] como
pessoa e como organização. (M 4, p. 7).

Essa colonialidade que hegemoniza um padrão global de poder, também desafia essas
jovens militantes na construção de territórios subversivos, subalternos e decoloniais. Elas
consideram fundamental o que têm construído, para essas jovens, a decolonialidade é
possível. M2 expressa: “o feminismo é uma ferramenta necessária [...] se não a gente não
transforma.” Suas lutas correlacionadas com a vida e as realidades me apresentou a esperança
de que é possível, de que pautas unitárias existem e podem mudar relações e o próprio
sistema.

[...] a nossa organização tá [...] ali viva, forte, eu acho que o medo assim fica um
pouquinho pra traz. É o amor que tu sente pela luta, pela organização, pelos
companheiros que tu tem do teu lado é maior que isso assim, é, tu sente aquele
medo, mas tu sente que o que tu pode fazer é maior que isso, que tu pode fazer o que
tu quiser naquele momento. Então eu acho que enquanto tiver o coletivo, enquanto a
gente tiver essa organização e a gente estiver junto assim, a gente vai estar
preparado. (M3, p. 10).

[...] nos reconhecermos enquanto classistas, enquanto classe trabalhadora, enquanto


pessoas que fazem parte de uma classe, que é empobrecida, que é menosprezada,
que sofre [...] que passa por todas essas dificuldades, esses problemas que a gente
passa, e essa é a pauta mais importante é nós nos reconhecermos enquanto grupo,
enquanto classistas pra gente conseguir atingir e conseguir fazer a revolução. (M 3,
p. 4).
137

Considero que a postura de resistência e enfrentamento das militantes do coletivo


feminista classista diante das realidades de opressão e violência condiz com a práxis
decolonial. A vontade de integrar seus companheiros aos debates de libertação de gênero e de
classe as move em um processo de conscientização amplo, que inclui mulheres e homens
como seres colonizados e, ao mesmo tempo, seres capazes de alavancar a decolonização desse
território.
Em síntese. Conforme Quijano (2005), a colonialidade do poder consiste no padrão de
poder de dominação e de exploração, fruto do modo de produção capitalista que se generaliza
para o conjunto de relações sociais. Ao mesmo tempo, esse padrão produz uma classificação
dos indivíduos em termos de trabalho, raça e gênero, dando origem às classes sociais e à
divisão sociotécnica do trabalho.
Segundo militantes do Coletivo Feminista Classista, a análise da situação da mulher na
sociedade de classes evidencia que a divisão de classes produz a desigualdade de direito entre
os sexos. Em outros termos, a sociedade de classes naturaliza a opressão da mulher como um
modo de vida, inclusive, no próprio mundo proletário – mulher como “proletária do
proletário”. Em consequência, a luta pela igualdade impõe a superação de classe.
A identidade de classe de feministas classistas implica, ao mesmo tempo, situações de
exploradas e oprimidas, assim como insurgentes e rebeldes. Nesse sentido, a luta política
supõe planos concomitantes: pessoal, pela expressão da “audácia”; social, pelas formas de
enfrentamento; místico, por meio do “amor pela humanidade”. No entanto, a unidade de lutas
identitárias e estruturais está diretamente vinculada à luta de classe.
A prática militante mostra que há diferentes planos de resistência endógena à luta
contra a opressão, seja no próprio movimento, seja nas comunidades locais, seja nas relações
interpessoais. Essas constatações indicam a apropriação de elementos da refundamentação da
educação popular em trabalhos de base, pois a referência à subjetividade foi comumente
estigmatizada como expressão do individualismo no discurso militante. Em outras palavras, a
refundamentação, ao interrogar fundamentos da educação popular, produz uma abertura para
posturas autorreflexivas de militantes e lideranças, as quais propiciam condições para
desconstruir práticas de dominação, inclusive, no interior dos espaços de luta política.
A consciência de classe e a organização coletiva das lutas do povo contra a exploração
e a dominação, assim como a construção de alternativas, colocam o problema da articulação
da luta política com a formação de militantes e de lideranças em diversos níveis. A prática do
coletivo indica vários conteúdos que vêm sendo abordados em diferentes dispositivos
formativos, formais e não formais.
138

Em pleno século XXI, na América Latina que experimentou tempos democráticos


recentes, há territórios caracterizados por preconceito, machismo, “discurso do ódio”, nos
quais práticas coletivas feministas classistas produzem efeitos de intervenção, junto a
diferentes atores sociais do respectivo território (mídia, gestores públicos, empresários, forças
de segurança, Igrejas). Tais atores reagem a práticas contra-hegemônicas reproduzindo formas
arcaicas de colonialidade: perseguição, repressão, calúnia e difamação.

4.3 COLONIALIDADE DO SABER: SABERES POPULARES E TROCAS DE SABERES

O legado da invasão europeia como sistema de dominação e hierarquização alicerçou-


se por um conjunto de elementos estruturantes, tendo, como parte importante, a colonialidade
do saber. Segundo Quijano (2005, p. 111), a expansão do colonialismo europeu conduziu à
elaboração da perspectiva eurocêntrica do conhecimento, não somente desconsiderando e
negando o conhecimento dos colonizados, como reprimindo as formas de produção de
conhecimento, seus padrões de produção de sentidos, seu universo simbólico, seus padrões de
expressão e de objetivação da subjetividade. Para o autor, “a repressão neste campo foi
reconhecidamente mais violenta, profunda e duradoura” contra os povos indígenas,
especialmente, da América e da África.
Quijano (2005) argumenta que a colonialidade do saber foi produzida pela imposição
do eurocentrismo como ordem exclusiva do pensamento e a exclusão de outros saberes e
epistemologias. Para Lander (2005, p 13), a colonialidade do saber está alicerçada na
“necessária superioridade dos conhecimentos que essa sociedade produz (ciência) em relação
a todos os outros conhecimentos.”
Necessário retomar Santos e Meneses (2010, p. 32), que definem o pensamento
moderno-ocidental como um “pensamento abissal”. Trata-se de uma forma de pensamento
que estabelece divisões entre (Norte e Sul), entre aqueles que estão “deste lado da linha” e “do
outro lado da linha”, este que estariam os saberes populares, femininos, camponeses,
indígenas, etc. – e desaparecem como realidade, tornam-se inexistentes e são mesmo
produzidos como inexistentes pelo universo simbólico dominante.
Lugones (2008, p. 94) menciona que os processos do capitalismo eurocêntrico global
fizeram distinção entre mulheres brancas e “fêmeas não brancas”. Mulheres brancas foram
contadas como mulheres, as mulheres não brancas não eram apenas subordinadas, também
foram vistas e tratadas como animais. Segundo a autora, “no-blancas eran consideradas
139

animales en el sentido profundo de ser seres ‘sin género’ marcadas sexualmente como
hembras, pero sin las características de la femineidad.”
Na narração das interlocutoras, uma violência em particular chama a atenção: a
prostituição. Para elas, não é uma opção, mas o que resta às mulheres pobres, negras,
mestiças, caboclas. Essa herança colonial marca sexualmente as mulheres não brancas, como
fêmeas, sem considerar sua feminilidade (LUGONES, 2008).
Durante a entrevista, a jovem M5 menciona a prostituição (em vários momentos)
como alternativa de sobrevivência para as mulheres da favela onde mora. Destaca a questão
racial e a internalização de que o conhecimento científico não cabe a elas, mas às outras
mulheres de fora da comunidade.

É sobre aquilo que conversamos antes. La onde eu moro, na favela, várias amigas
são prostitutas [...] e também outras mulheres que conheço. Eu me dei conta agora,
de que todas que conheço são caboclas ou negras, acho que isso é cultural [...] sei lá.
Porque o sistema capitalista faz isso com a gente né? Nos jogou para as favelas e as
vezes é a única alternativa [...] que as mulheres encontram. Assim, um dia
conversando com uma amiga ela me disse que ela era muito burra pra estudar, então
trabalhava de empregada doméstica e fazia programa, e que quando ia na escola
tinha sofrido muito preconceito. Eu sei bem o que é o racismo e o preconceito, por
morarmos na favela nos tratam como bicho às vezes. Muitas [...] meninas que
conheço pararam de estudar, a gente tem que ser teimosa pra aguentar, eu, por
exemplo, fui chamada muitas vezes de burra, mas cheguei na faculdade porque [...]
sou ruim (risos). (M5, p. 2).

A cultura machista e racista, fortalecida pelo processo de colonização, evidenciou o


lugar, o ser e o saber da mulher. Diante da realidade, coube a elas dobrar-se a uma cultura
construída sobre as dores dos povos latino-americanos. Consideradas incapazes de aprender e
de se emanciparem na construção de outra cultura e de outras relações. A militante M5 relata
o que uma de suas amigas a contou: “[...] meu pai mesmo sempre me dizia ‘pra que ir na
escola, pra aprender a ser puta?’. Eu sabia que o pai dela falava isso, porque eu mesma ouvi
ele dizer isso pra ela.” (M5, p. 2).
Quando minha interlocutora menciona “a gente tem que ser teimosa pra aguentar”, ou
quando diz que chegou à faculdade porque é ruim, é da subversão que ela se refere, a
subversão de que fala Fals Borda (2008), da descoberta das pessoas “à luz de novos objetivos
valorizados que uma sociedade deseja alcançar.” Ela se refere a um tipo de saber que a
tornou teimosa, ruim e subversiva. Um saber “repartido” e construído coletivamente. “Nada é
fácil para quem mora na favela, mas se torna mais leve, menos dolorido quando nos
organizamos e trocamos conhecimento com outros jovens iguais à gente.” (M5, p. 3).
140

Nós temos a discussão em vários locais, temos o grupo Tribo da Perifa, que é o
grupo de base que eu faço parte e envolve outros jovens das comunidades São
Francisco de Assis e Vila Nova I. Ali a gente tenta fazer esse diálogo e vamos
conversando sobre a nossa vida, realidade e as lutas que a gente precisa fazer para
que a gente consiga garantir os nossos direitos, embora nesse momento que a gente
vive [...] na verdade, nenhum momento que viveram essa gente da favela, foi fácil.
(M5, p. 3).

Na continuidade dessa reflexão, a jovem M2 descreve os obstáculos em dar


seguimento aos estudos, por parte das mulheres camponesas. De acordo com Caldart (2008), é
no campo onde se encontra o maior número de analfabetos no país. As mulheres são maioria
na escala do analfabetismo, seguidas de negros e homens brancos. As mulheres são, com
certeza, as mais prejudicadas no processo do avanço do capital no campo, seja no debate da
produção, educação, seja nas relações de gênero.

Num debate com a assessoria num dos finais de semana de formação, lembro que foi
dito “que a roça no contexto do capitalismo, sempre foi vista como espaço de gente
atrasada, e por isso deveria ser extinta”. Lembrei das conversas com minha mãe,
pensa [...] mulher, negra e camponesa sem terra, um dos seres humanos mais
excluídos do sistema. Ela me contava que pouco pôde estudar, enquanto a escola era
na roça, e que dividia seu tempo com os trabalhos em casa e na roça. Também vivi
isso, até que um dia resolveram fechar as escolas do campo e levar todo mundo pra
cidade, que crime isso. Minha mãe viveu sob o comando do pai dela até casar, e
depois sob o comando do meu pai. Até que ela conheceu o MMC, sabe?!. E ela
passou a estudar e entender que o que ela viveu até então foi sob a ordem do
machismo. Tinha gente que dizia que ela ia virar uma vagabunda, porque agora vivia
só na rua atrás de movimento. Ouvi meu pai insinuar isso também. [...] um dia
minha mãe me levou junto num encontro do MMC e conheci meninas da PJR e
PJMP. Então depois de um retiro de catequese entrei para essas organizações, e
passei a entender que os apelidos que recebia na escola por minha mãe ser negra era
racismo, e por eu dividir um tênis com minhas irmãs era pobreza mesmo, alguém
tirou de nós o direito de termos um tênis cada uma. (M2, p. 4).

A sociedade patriarcal determinou o lugar que as mulheres deveriam e devem ocupar


na casa, na unidade de produção e na comunidade. Historicamente, suas tarefas têm relação
com a criação e a educação dos filhos e filhas. Ficam elas com os piores “cantinhos” de terra
para fazerem suas “rocinhas”, trabalham três vezes mais que o companheiro e são
consideradas como “criaturas” sem condições de participarem das decisões de âmbitos
maiores na sociedade. Para a maioria delas foi negado o direito a estudar.
A família patriarcal é fruto do processo de colonização, construída e orientada pela
estrutura social, como o latifúndio, escravismo e o homem como o “chefe” e senhor
(patriarcado). Esse tipo de núcleo familiar foi elemento determinante em nossa organização
social, que colocou a mulher em determinado lugar na casa e na sociedade. Essa cultura,
entranhada na vida das pessoas, é transferida entre as gerações e regida por um tipo de
transferência de saber. Nesse contexto, relata minha interlocutora.
141

Olha, eu percebo [...] uma relação de senso comum mesmo, uma cultura que foi
passada de pai pra filho, de mãe pra filha né, lá na minha casa, por exemplo, existe
muito o machismo dentro da minha casa. Então eu tento primeiramente entender,
porque não basta ser mulher pra entender o feminismo, é uma cultura então a gente
precisa ter um embasamento, a gente precisa estudar pra entender, porque antes de
conhecer o que era feminismo eu achava tudo normal né. Achava que aquilo era o
certo, era o normal [...] tem coisas que foi passado de gerações pra gerações, então
precisa ser desconstruído na família. Eu só mudei meu jeito de ver o mundo quando
entrei para a Pastoral e depois que criamos o coletivo feminista classista, antes disso,
pensava que tudo era normal. (M5, p. 2).

As palavras das interlocutoras da pesquisa expõem as relações conflituosas, forjadas


pelos processos do sistema de gênero colonial/moderno, que perduram por meio da
colonialidade do poder e do saber (LUGONES, 2008). Ao mesmo tempo, apontaram
elementos de abordagens práticas educativas de suas organizações, mencionando a PJR, PJMP
e MMC. Em particular, destacaram as relações entre os sujeitos educacionais e suas trocas de
saberes, que valorizam a interdependência e a reciprocidade, íntima ligação entre experiência
e conhecimento.
As jovens demonstraram coerência com suas organizações, ao lembrarem que o
compromisso está na teoria e no trabalho de base. Para elas, a experiência e o conhecimento
acontecem a partir das bases (grupos organizados nas comunidades, escolas, igrejas, etc.),
portanto, as práticas educativas estão intrínsecas com a vida das pessoas. Assim, argumenta a
M1 (p. 2), “como a gente vai transformar? O que a gente precisa pra transformar essas novas
relações? A gente precisa fazer a troca de conhecimento, precisa estudar, ver a teoria, mas a
gente precisa levar essa teoria para a base.”

Quando eu comecei a participar do grupo feminista classista eu fui entendendo


também que para transformar a sociedade a gente precisa transformar as relações e
para transformar as relações a gente precisa fazer a discussão disso com as pessoas,
desde a base, espalhando, trocando esses saberes com o campo, com a cidade, com
as periferias. (M1, p. 2).

Uma em especial é fazer a formação […] desse coletivo, permanente formação [...]
estudo, compreender o que é o feminismo classista e disseminar [...]. A gente tá em
vários espaços [...] é um coletivo não muito grande, mas é um coletivo que se soma
em vários espaços, grupos de base e tudo mais. (M2, p. 2).

É na leitura de mundo, que Paulo Freire (2001) fala que mulheres e homens se
organizam, libertando-se e construindo outras relações, outras possibilidades de viver com o
mundo. Esse processo vai além da leitura de letras e palavras, tem a ver com se tornar
protagonistas de outro mundo, de superar qualquer situação de opressão. Para Freire (1997, p.
88), “a mudança do mundo implica a dialetização entre a denúncia da situação desumanizante
e o anúncio de sua superação, no fundo, o nosso sonho.”
142

Então a gente entendeu que nesse primeiro momento seria necessário conversar
entre nós, trocar saberes, os conhecimentos, falar das realidades das meninas que
vinham da roça, as camponesas e também as meninas da periferia, da cidade. Fazer
essa troca de saberes, nos conhecermos mais também né? Porque até então a gente
sempre fez a discussão de todos os temas, de todas as lutas envolvendo a luta
classista em coletivo, envolvendo os meninos. (M1, p. 1).

Os saberes subalternos, mencionados por Mignolo (2005), são retomados como


instrumentos da decolonialidade. Encontro nos relatos das militantes uma integração entre
diversas dimensões do saber como condição para uma visão complexa da realidade que se
articula com a intervenção transformadora sobre ela.
Para o Coletivo Feminista Classista, a organicidade está profundamente ligada à
28
mística , porque expressa a vida interligada com a utopia. Os problemas estruturantes e as
possibilidades específicas de transformação dos contextos concretos em que as mulheres
vivem e trabalham, alimentando a inspiração, os sonhos, as práticas e as orientações que
guiam o movimento. “Sim, nós temos uma mística que nos move, é assim que falamos, essa
mística nos faz movimento.” (M1, p. 4). A mística, mencionada pela M1, é elemento
primordial para os movimentos sociais, que possibilitam momentos formativos em torno do
tema.

Me formei em história pela minha organização. E sei a importância e a falta que me


faz estar aqui [...] No nosso coletivo, partilhamos nossas angústias, e as utopias,
primeiro [...] partimos de nós mesmas, de nossas realidades [...] mas também
buscamos nas lutadoras que deixaram a herança do sonho socialista e que nos
ensinam demais [...] agora é nosso momento de aprender e ensinar. Mas só
partilhamos nossa mística com quem sonha parecido com a gente, com quem quer
sonhar junto, alguém já disse isso um dia [risos]. Essa mística que só nós sabemos o
bem que faz e a importância que tem para seguir lutando sabe? [...] Como dizia
Paulo Freire [...] que a esperança que temos não é uma esperança de “esperar”, mas
uma esperança de esperançar, de viver com os outros e outras [lágrimas], a mística
faz parte de nossas práticas, da nossa militância e tudo mais. (M2, p. 4).

A mística representa o alicerce essencial da abordagem político-pedagógica do


coletivo. É a mística que convida e aproxima as bases, entre elas e com a direção. Nos relatos
das jovens percebi que repetiram inúmeras vezes a palavra “mística”, ou se reportavam a
momentos de intensa vivência, descrevendo singularmente os sentimentos: “poder partilhar os
momentos mais difíceis das nossas vidas, é um momento de muita confiança, é muito

28
Segundo Ademar Bogo (2010), dirigente do MST (Bogo contribui nas assessorias formativas das organizações
e movimentos): “A palavra mística é a representação de mistério. Usa-se geralmente a palavra ‘mistério’ para
designar coisas inexplicáveis ou coisas indecifráveis, mas neste caso não é. Mistério para a mística é saber a
razão porque na luta as coisas extraordinárias acontecem.” Bogo destaca como características da mística
militante: a capacidade do ser humano de ir longe na resistência, os desafios de todas as forças e todos os limites,
para que uma causa coletiva seja vitoriosa, a capacidade de tomarmos estranhos como aliados e os protegemos
como se fossem parte de nós, para ele este é o mistério (BOGO, 2010).
143

místico.” (M3 p. 3). “Aquele momento à noite, que a gente fala de nós mesmas, é o [...] mais
marcante na vida militante que tive.” (M4 p. 4). A coordenadora do coletivo, M5 (p. 3)
declarou: “o melhor momento pra mim são nossas místicas, é o momento que a gente se
entrega. Em cada encontro eu entendo que tenho muito que aprender com essas
companheiras.” Esses diálogos foram cheios de emoção, o que me levou a concluir que a
mística é o princípio vital do coletivo, sem contemplação, é a mística que traduz os sonhos e
utopias.

[...] costumamos iniciar o grupo com uma mística que é um momento bastante
nosso, partilhando seja uma música, poesia, texto, ou fala de alguém que se sinta à
vontade para fazê-la. Depois disso são feitas outras conversas em grupos, depois
outras discussões mais abertas nesse conjunto maior onde a gente se baseia em
alguns autores e autoras, sempre trazendo presente as leituras de Marx, estamos
falando do feminismo classista, de classes, no rompimento de uma sociedade
dividida em classes. São feitos momentos muito bacanas também da roda de partilha
à noite, falando sobre questões do cotidiano, que podem levar a reflexões maiores
também. (M1, p. 4).

Nós estudamos, que a gente tem muito claro que militante, no nosso caso feministas,
precisamos estudar e estudar pra além do feminismo, do conceito das palavras, mas
também fazer e compreender todo processo de luta que teve até então [...] Então a
gente parte primeiramente do estudo, temos o nosso momento que é mais íntimo que
é o nosso momento que enriquece o nosso espaço de formação [...] fala uma pra
outra do que tá acontecendo e como coletivamente a gente pode ajudar uma a outra a
construir, a se fortalecer nesse processo, então nesse momento é um momento de
colocar as angústias, todo processo de opressão que acontece, é um momento da
gente sentir a indignação que ela é necessária para uma militante, pra que a gente
não pare. Esse é o nosso momento mais rico assim e sempre colocando pra frente.
(M2, p. 4).

As militantes destacaram em vários momentos o trabalho de base. De onde vieram e o


lugar para onde voltam como compromisso militante. Essas bases acontecem no meio dos
problemas estruturais da sociedade, é onde se manifestam todas as contradições do “sistema-
mundo moderno/colonial.” (MIGNOLO, 2005). Portanto, para essas coordenadoras e
dirigentes faz-se necessário o desafio constante de provocar nos seres humanos a
compreensão de serem sujeitos socialmente condicionados e ingênuos. No contexto em que
Freire (1997, p. 101) expressa: “não é possível superar a ingenuidade, o senso-comum sem
assumi-los. Já disse uma vez e vale a pena repetir: ninguém chega lá, saindo de lá, mas
daqui.”
As entrevistadas consideram que a contribuição do feminismo classista para o debate
da contra-hegemonia e decolonialidade não pode ficar simplesmente na introdução de
conteúdos, como a questão feminina, para elas implica uma mudança radical. Para tanto, é
144

necessário propor a transformação da sociedade por meio de ações concretas nas bases, nas
ruas, formações, enfrentamentos ao capital, etc.

[…] aquilo que Paulo Freire sempre nos ensinou muito. Primeiro conhecer o chão
onde a gente está pisando pra depois poder levar algo a mais, avançar na discussão.
É um trabalho que precisa ser feito, precisa continuar, mas que é bastante desafiador
começando por reunir essas jovens e desconstruir com o machismo que nem elas
percebem que existe. (M1 p. 4).

Dentro dessa luta que a gente faz enquanto grupo, o mais importante é que a gente
bebe da nossa realidade [...] a gente bebe de quem nos fortalece que é muito além de
quem já tombou por esta luta que é o feminismo classista, mas também é quem nos
fortalece em casa, ali no coletivo, nos espaços de formação, nos espaços de debate,
de debate político é aqui que a gente bebe, da nossa realidade, da luta de classe, é daí
que a gente parte pra fazer todo nosso processo de formação coletiva dentro do
grupo feminista. (M2, p. 9).

[...] o que a gente estuda tem que passar pra base então nos grupos de base, falando,
fazendo formação, é visitando, é conhecendo, da mesma forma que a gente se
conhece nos grupos a gente tenta conhecer as pessoas que a gente trabalha. É assim
que a gente vai trabalhando, vai passando o conhecimento do que a gente vai
estudando e o estudo ele se dá de forma coletiva. Organizamos o material,
estudamos e dali a gente vai compreendendo […] cada um ajudando um pouquinho,
tendo uma compreensão coletiva [...] saberes coletivos. (M2, p. 4).

Santos e Meneses (2010) elaboram também a ecologia dos saberes como pensamento
pós-abissal, na construção das epistemologias do sul, propondo a construção subversiva de
intervenções epistemológicas de denúncia das epistemologias dominantes e a retomada dos
saberes dos povos do sul. Na continuidade com essas reflexões, destaco que a conceituação da
colonialidade do saber é essencialmente importante para o pensamento decolonial,
evidenciando as epistemologias do sul como parte desse pensamento.
A educação popular que acontece dentro dos movimentos sociais e étnicos tem a ver
com a paixão pela vida, com o respeito e o comprometimento com os povos. Educar e se
deixar educar entre os oprimidos é parte dos legados de Simón Rodríguez, José Martí, Paulo
Freire, entre outros e outras. Os movimentos sociais e organizações populares internalizaram
as propostas dessas pessoas como prática político-pedagógica, alimentando a utopia
revolucionária do aprender e ensinar nas tarefas e relações de cada dia. De acordo com Freire
(2004, p. 57), “não há prática pedagógica que não parta do concreto cultural e histórico do
grupo com quem se trabalha.”

[...] então nos momentos [...] que a gente vem, seja um texto a assessoria traga que a
gente consegue discutir [...] mesmo que eu tenha sei lá quinze, vinte anos, consiga
contribuir junto com outras pessoas que têm idades diferentes, que têm vivências
diferentes, consiga contribuir, mostrar que eu também, por mais que sou nova, por
mais que eu não tenha tanto conhecimento sobre isso, que eu consiga mostrar pras
pessoas [...] aquilo que eu penso [...] É a partir do momento que eu consiga mostrar
145

que eu, a partir do que eu tenho, eu consiga construir alguma coisa com outras
pessoas, isso é muito importante pra mim enquanto pessoa também. Eu não tenho só
que absorver conteúdo, que eu não tenho só que absorver informação, mas que eu
possa contribuir pra aquilo, mudar [...] eu também tem um saber [...] É muito
gostoso saber que você tem esse poder, que você consegue fazer isso, isso dá mais
motivação pra gente continuar no debate, de continuar no processo. (M3, p. 6).

Eu acredito que aquela mulher que, pode ser até aquela mulher que não teve
oportunidade de estudo, não conseguiu estudar, mas às vezes ela tem uma sabedoria
muito maior de vida e ela tem uma experiência muito melhor das relações feministas
que acontecem, e machistas [...] com a mulher do que aquela que estudou, mas ela
estudou a vida inteira com aquele pensamento machista [...] na cabeça assim [...] E
sim, a gente tem muito que ensinar [...] o que ensinar e o que aprender também.
(M4, p. 9).

A gente tem isso [...] com as outras, por isso falei de trazer, de nos aproximarmos
mais [...] levar o grupo feminista mais perto das outras organizações, para que haja
mais essa troca né. Assim, em discussões, em movimentos na rua, tudo eu acho que
há essa troca de ensinamentos né. Mas eu ainda acho que tem que estreitar mais
essas relações. Fortalecer mais. (M4, p. 9).

Eu acho que o principal elemento que nós temos é a formação né? Pra gente discutir,
que é a parte que eu mais gosto também, não que ler e buscar não seja bom [...] é
lógico que a gente precisa disso pra discutir né, mas essa troca de informações, a
troca de conhecimento que acontece quando a gente, depois do estudo, não tem
melhor forma. O melhor método de se obter conhecimento, sabedoria é assim, na
busca, na partilha [...] sempre a gente pode buscar ouvindo outro [...] e isso contribui
[...] pra todo o resto. (M4, p. 5).

As ações na construção de uma nova cultura e de um novo agir, este comprometido


com a cultura do cuidado, da generosidade, do respeito entre os gêneros, do respeito e da
relação com toda a natureza, deve ser internalizado por toda a militância. A prática diária
dentro das organizações é Freiriana.
A pedagogia das organizações populares e movimentos sociais nasce na América
Latina a partir da Teologia da Libertação e do pensamento de Paulo Freire, reconhecendo os
precursores da educação popular Simón Rodríguez e José Martí, que são referências para as
formulações da pedagogia popular. Mesmo com a proposta pedagógica dos movimentos é
importante destacar a importância da escola enquanto espaço de acúmulo histórico. Nesse
viés, a educação formal é pauta de luta das organizações, a partir da constatação de que a
escola deve ser um instrumento da construção da contra-hegemonia e da decolonização.
Durante as entrevistas, minhas interlocutoras sublinharam algumas diferenças significativas
entre a educação recebida na escola (ou na universidade) e a que vivenciam no coletivo
feminista classista, caracterizando a organização/movimento como um lugar privilegiado de
problematização e emancipação.

Esses momentos do grupo feminista [...] são muito diferentes do que nós jovens
estávamos acostumados em casa ou mesmo na escola. Porque na escola a gente tem
um tipo de educação, que contribui também pra que a mulher [...] seja menosprezada
146

[...] que a classe pobre seja também empobrecida, a gente faz parte disso [...] e a
gente tinha uma realidade dentro da escola, por exemplo, que não discutia, não
debatia da forma como a gente debate no grupo feminista classista, é um outro tipo
de educação, é uma educação que é imposta pra gente, e muitas vezes a gente não
consegue discutir, não consegue debater, não consegue perguntar o porquê daquilo
ser assim, porque daquilo ser de outra forma, e a gente não consegue contribuir.
(M3, p. 6).

Às vezes nos debates com as bases, a juventude fala que na escola se sente
deslocada [...] Nós temos discutido isso, que a escola deveria ser o lugar de
formação revolucionária, mas como dentro do sistema capitalista né? [...] O mesmo
acontece na universidade, os enfrentamentos políticos são enormes, chega ser
cansativo. Olha, nossos coletivos fizeram uma baita luta pela UFFS, tínhamos
dirigente nossa na coordenação do movimento, e hoje a universidade consegue
cumprir seu papel em alguns cursos, já choramos alguma vez durante essa luta. [...]
por isso as formações nas bases com a juventude e no coletivo feminista é
grandiosamente importante, mas não vamos largar a luta pela escola pública e pelas
universidades, essa é uma pauta prioritária pra gente, nossa gurizada precisa ocupar
esses espaços, mas precisamos nos educar por aqui também. (M1. p. 8).

Mignolo (2008, p. 287) propõe a “desobediência epistêmica”, sem ela, a desobediência


civil seguirá “presa em jogos controlados pela teoria política e pela economia política
eurocêntricas.” Para o autor, os subalternos têm a tarefa política dessa desobediência. Os
subalternos construíram historicamente jeitos de aprender e ensinar. Brandão (2006)
argumenta que nas formas tribais de sociedade já se fazia essa troca de conhecimentos, assim,
os povos de Abya Yala acumularam conhecimentos e consciência, desconsiderados pelo saber
eurocentrado, e, por isso, um conhecimento subversivo capaz de emancipar e libertar.
Minhas interlocutoras compartilharam nas prosas suas práticas nas trocas de saberes.
Destacaram a importância da educação popular libertadora para o fortalecimento organizativo
de seu coletivo, mas, especialmente, para a construção de outra cultura, outras relações de
gênero e de outra sociabilidade.

A gente lê algumas autoras e autores que falam sobre os temas, sobre o feminismo, a
luta de classe e a partir daí a gente passa um pouquinho para o que a gente
compreende, para além dos textos. O texto nos mostra, nos trazem em palavras
muito bem colocadas e é a partir dele que a gente vai buscar compreender o que
acontece na nossa realidade, tudo a gente tenta trazer para a nossa realidade, pra que
a gente consiga visualizar nos períodos históricos o que acontece, o que perpetua, o
que a gente tem que lutar, o que sempre foi pauta de luta. E assim a gente vai
fazendo, lê coletivamente, faz trabalhos em grupo, faz dinâmicas é muito
importante. […] dinâmica é interessante e que vai também mexendo com o nosso
jeito de pensar, de agir, de conversar dentro do grupo, [...] do nosso ser, das nossas
relações, a partir dali a gente vai descascando [...] construindo um pouquinho do
conhecimento popular […] (M2, p. 4).

A jovem M1 menciona a necessidade da prática em cada palavra escrita das teorias.


Para ela, ninguém é capaz de teorizar o que o mundo precisa ler, sem ter vivido e
147

experienciado. Essas jovens mulheres vivem intensamente as relações com as pessoas, não as
interessa somente mudar o mundo, as interessa mudar a si mesmas.

Eu não sei se existe algum teórico que na vida tenha escrito algo sem antes ter
vivido [...] ter escrito algo que realmente contribuiu num contexto maior da
humanidade sem antes ter vivenciado alguma dessas coisas que ele escreveu.
Sempre aprendi muito com o conhecimento, com os saberes populares, aquilo que a
gente ouvia sentada na roda de chimarrão, quando a gente se deslocava pra periferia
pra fazer trabalho de base, sentava com as famílias, ouvia, ou propriamente em uma
celebração que a gente fazia, seja na “Pedreira”, ou nas “Vilas”, “São Francisco”,
que são os lugares periféricos de São Miguel do Oeste que a gente tem mais contato
e foram em todas essas conversas, idas e voltas de carro ou de apé, que a gente ouvia
as pessoas e a gente mesmo enquanto jovens, trocando o que cada um também ouviu
nessas visitas […] que a gente ia formando essa consciência de classe. Eu acredito
[...] que esse conhecimento mais tarde nos leva a procurar a teoria pra gente também
avançar nesse processo maior, mas acho que tudo parte da base, desse
conhecimento, dessas vivências, dessas realidades diferentes. (M1, p. 3).

Abya Yala nos mostra que a libertação e a emancipação para a decolonização são
possíveis e são feitas por mulheres capazes de pensar e contrapor a ordem do poder global
capitalista. Da “caça às bruxas” até hoje somos também tratadas como gentes da desordem,
que têm a característica da desobediência. As mulheres foram consideradas impuras e
portadoras de desgraças na Bíblia e nos mitos gregos; foram perseguidas e queimadas vivas
em fogueiras da “santa inquisição”; perseguidas, torturadas e violentadas pelas ditaduras
militares na América Latina; ignoradas pelas instâncias de poder. Porém, percebemos que a
violência objetiva e subjetiva nos move, seja para a submissão, seja para a busca curiosa
indócil, corajosa e rebelde.
Essa rebeldia que nos torna mulheres inquietas nos liberta das correntes da sociedade
marcada pela violência. Pensar outra forma de organização social, com novas relações, em
que as mulheres sejam reconhecidas como parte do todo, precisa estar nas construções
educativas em todas as esferas. Assim como conclamou Rosa Luxemburgo “quem não se
movimenta, não sente as correntes que o prendem”.

Nas ruas, durante as mobilizações já nos chamaram de todos os nomes, os piores,


sempre chamam né? [...] vagabundas, vadias, ficam gritando “vão trabalhar”, como
se não trabalhássemos [risos]. Um dia na sala de aula um professor me disse que eu
era rebelde sem causa, mas dei uma aula pra ele. Mas fiquei braba, sou rebelde com
todas as causas, inclusive as suas. Achei que ele ia me tirar da sala [...] Fui falando,
falando, falei tanto que minha colega disse “senta fulana”, e eu mandei ela ficar
quieta, e disse para o professor, pode me chamar do que quiser, de desobediente, mal
educada, mas me chame também de rebelde, de revolucionária, e de ruim, porque eu
sou ruim, aprendi a ser assim. (M5, p. 2-3).

A partir dos elementos e por intermédio das narrações das minhas interlocutoras, é
possível reconstruir algumas dimensões político-pedagógicas dos encontros do coletivo
148

feminista classista, orientadas pelos princípios da educação popular libertadora. As palavras


insurgentes dessas meninas referem-se a um processo de formação inacabado, no qual os
conteúdos educativos são fruto de temas enraizados no universo de cada realidade e da
perspectiva de mudança (FREIRE, 2004).
O texto-síntese (2005) que trata da refundamentação da educação popular menciona
que “o problema de gênero incide em toda a vida social”, e, portanto, é necessário “analisar as
diferentes questões da educação a partir dessa nova perspectiva de gênero.” Os espaços
educativos devem ser coletivos e de cooperação para que mulheres e homens tenham
condições de construírem uma “nova forma de poder”. Esse poder que é de todos, é do povo e
é popular, é isso que querem as feministas classistas. O texto-síntese remete a esse debate, ao
mencionar que “trabalhar com mulheres implica trabalhar em conjunto [...], homens e
mulheres estão envolvidos em outras relações sociais igualmente opressivas, que geram
pontos de encontro e solidariedade entre eles.”
Nada é tão capaz de subverter a ordem de uma sociedade machista, sexista e
opressora, do que mulheres que se juntam, dialogam, convivem e aproximam-se da realidade
umas das outras. Essa aproximação e entrega tem a ver com as transformações e superações
das relações de submissão, envergonhamento e discriminação, é o empoderamento dos
saberes de uma mulher com a outra e não sobre a outra, sem hierarquização do saber – essa
prática chama-se educação popular.
Em síntese. Conforme Quijano (2005), a colonialidade do saber consiste na imposição
da perspectiva eurocêntrica do conhecimento, e, ao mesmo tempo, na exclusão de outros
saberes e epistemologias. Em outras palavras, trata-se de um pensamento que estabelece
divisões e hierarquias simbólicas entre diferentes saberes, produzindo invisibilidades e mesmo
desaparecimento.
A colonialidade do saber é produzida também na vida cotidiana das classes populares,
em que mulheres negras, caboclas e indígenas estão submetidas a diferentes formas de
violência material e simbólica em razão de sua condição racial e de seu pertencimento
territorial. Em consequência, histórias de vida são assim condenadas a percursos
deterministas, naturalizados e estigmatizados. Tais percursos se caracterizam por
analfabetismo total e funcional, ocupações profissionais subalternas, evasão e abandono
escolar.
Em termos contra-hegemônicos, a prática do coletivo feminista classista mostra que a
formação das classes populares é condição para a desconstrução da naturalização da opressão
149

e da exclusão por meio da apropriação de conhecimentos: ligação entre experiência e


conhecimento, estudos e reflexões, educação formal.
Nesse sentido, uma forma de abordar a militância é problematizar a realidade a partir
de si mesma e de sua respectiva realidade de vida para compreender o sentido da luta política.
Essas prosas entre companheiras do coletivo classista evidenciam formas para troca e
socialização de saberes, tendo em vista produzir condições para transformar a si mesma e a
sociedade. Outro plano a considerar é o intercâmbio entre membros de grupos de base e de
coletivos urbanos e rurais.
O trabalho realizado no Coletivo evidencia as funções estruturante e agregadora da
mística, na perspectiva político-pedagógica da educação popular libertadora. A abordagem do
mistério e do inexplicável, não redutível ao religioso, produz efeitos de encontro consigo
mesmo e com o outro, assim como promove uma visão solidária com o povo, o território e a
natureza.
Conforme Santos e Meneses (2010), a educação popular libertadora leva a denunciar
estruturas de dominação e de exploração, fundamentadas em um pensamento único e
hegemônico. A construção de Epistemologias do Sul retoma saberes tradicionais e populares,
para fundamentar práticas políticas e pedagógicas de movimentos sociais e de organizações
populares. Nesse sentido, Mignolo (2008) propõe a desobediência epistêmica, como tarefa das
classes subalternas para construir historicamente jeitos de aprender e ensinar para subverter a
ordem social hegemônica na perspectiva da decolonização.

4.4 COLONIALIDADE DO SER: MUDANÇAS INDIVIDUAIS E COLETIVAS

A constituição do “ser” como dimensão humana remodelou-se obrigatoriamente ao


longo do processo histórico colonial do continente. O modo de produção capitalista,
estruturado pelo padrão global de poder, transformou culturas das gentes de Abya Yala,
obrigados a modificar violentamente seus modos de vida, assumindo novas identidades. De
acordo com Fanon (2009), a violência atua diretamente na estrutura cognitiva do ser
colonizado.
Quijano (2005) aponta que o embrião das novas identidades está relacionado à
colonialidade do poder e do saber, ambas suscitadas pelas forças hegemônicas no período da
invasão. A mudança de ambiente, de formas de trabalho, vida, estudo, comunidade, também
dão origem a um novo ser pensante, especialmente, dos denominados subalternos da
sociedade.
150

A formação de relações sociais fundadas nessa ideia, produziu na América


identidades sociais historicamente novas: índios, negros mestiços, e redefiniu outras.
Assim, termos como espanhol e português e, mais tarde europeu, que até então
indicavam apenas procedência geográfica ou país de origem, desde então,
adquiriram também, em relação às novas identidades, uma conotação racial.
(QUIJANO, 2005, p. 107).

Assim, as mudanças culturais forçadas ocasionaram uma mudança radical em toda a


formação humana, especialmente, nos saberes tradicionais, que foram substituídos pela
correlação de forças em um processo conflituoso, cuja resistência ainda se mantém em áreas
periféricas e homogêneas.
A partir da matriz genética da colonialidade, uma tripla articulação se reproduz: a
colonialidade do poder, do saber e do ser, de forma a manter o controle de todas as dimensões
da vida. Ou seja, das implicações da colonialidade nos diferentes aspectos da vida é que o
conceito de colonialidade do ser emerge.

[...] se a colonialidade do poder se refere à inter-relação entre formas modernas de


exploração e dominação e a colonialidade do saber está relacionado ao rol da
epistemologia e a tarefas gerais da produção do conhecimento na reprodução de
regimes de pensamento coloniais, a colonialidade do ser se refere, então, à
experiência vivida da colonização e o seu impacto na linguagem. (MALDONADO-
TORRES, 2007, p. 130).

Desde o início da história deste território, a mulher sofre diversas violências objetivas
e subjetivas, inclusive, sendo considerada ser humano inferior. Na invasão europeia, esse
cenário se reproduziu com as mulheres indígenas e negras e, depois disso, deu-se
continuidade a um histórico de estupros, cerceamento da liberdade, agressões, entre outras.
Nas palavras de Lugones (2014, p. 938):

A “missão civilizatória” colonial era a máscara eufemística do acesso brutal aos


corpos das pessoas através de uma exploração inimaginável, violação sexual,
controle da reprodução e terror sistemático (por exemplo, alimentando cachorros
com pessoas vivas e fazendo algibeiras e chapéus das vaginas de mulheres indígenas
brutalmente assassinadas). A missão civilizatória usou a dicotomia hierárquica de
gênero como avaliação, mesmo que o objetivo do juízo normativo não fosse
alcançar a generização dicotomizada dos/as colonizados/as.

Lugones (2014, p. 940) aprofunda o debate, quando menciona que, além da violência
contra o corpo da mulher, na história da humanidade, também há um sentido de servilismo,
visto que a mulher é considerada um ser subserviente ao homem e a tudo na sociedade, sendo
esta pré ou pós-capitalista. Segundo a autora, diferentemente da colonização, a colonialidade
do gênero persiste em nossas relações, é o que “permanece na intersecção de
gênero/classe/raça como construtos centrais do sistema de poder capitalista mundial.”
151

A respeito desse aspecto, Maldonado-Torres (2008, p. 25) afirma: “A colonialidade do


ser terá de se referir não apenas a um acontecimento de violência originário, mas também ao
desenrolar da história moderna em termos de uma lógica da colonialidade.” Ele se refere à
necessidade do entendimento do ser dentro da perspectiva da implantação de uma dominação
advinda da lógica do colonialismo do poder e do saber.
O ser historicamente constituído no continente é vítima do padrão de dominação
hegemônico. Entretanto, o caráter opressivo leva tanto à resistência organizada dos povos
quanto a construções contra-hegemônicas do povo (no sentido sociológico). Nesse contexto, a
M1 destaca táticas encontradas para iniciar o processo de superação da violência e da
retomada do sentido epistemológico do ser.

[…] então nesse momento que a gente criou o grupo foi pra gente se conhecer,
enquanto meninas, enquanto militantes pra depois poder avançar também e quem
sabe mais pra frente reunir os meninos para fazer algumas discussões mais
aprofundadas. Eu senti necessidade de estar nesse espaço com essas outras
companheiras pra entender qual é a minha tarefa e de que maneira eu posso
contribuir com o grupo feminista classista mas também com a organização num
contexto mais geral da PJMP e da PJR. (M1, p. 1).

A retomada desse autoconhecimento e amadurecimento, para a compreensão de si e


depois de outras pessoas, faz parte de um processo de base minucioso, o qual abrange o que
Lugones aponta como tarefa da feminista decolonial.

Ou seja, a tarefa da feminista decolonial inicia-se com ela vendo a diferença colonial
e enfaticamente resistindo ao seu próprio hábito epistemológico de apagá-la. Ao vê-
la, ela vê o mundo renovado e então exige de si mesma largar seu encantamento com
“mulher”, o universal, para começar a aprender sobre as outras que resistem à
diferença colonial. (LUGONES, 2014, p. 948).

Ao vê-la e, por conseguinte, ver o mundo, a mulher desenvolve a capacidade de


intervir como protagonista de mudanças. Esse processo de consciência acontece em diferentes
níveis e momentos. Todavia, aprender sobre as outras, com as outras, e juntas sentirem-se
comprometidas com as transformações, faz parte do processo de construção coletiva da
consciência e de classe.

Então a realidade nos obriga muitas vezes a procurar saídas [...] a mulher é uma das
figuras que é muito desvalorizada, excluída e até mesmo em nossos espaços, então
pra mim estudar e fazer parte desse coletivo também é isso, faz parte de um processo
de amadurecimento pessoal [...] que é compreender isso, mas também de construção
[...] da minha consciência enquanto classe, enquanto mulher e do que eu realmente
estou lutando nesse coletivo e para a sociedade. (M2, p. 1).
152

A contribuição do conhecimento de si e a evolução dessa fase levam, no decorrer do


processo, à compreensão plural da estrutura social, política, cultural, de poder, que está
entrelaçada com a vida das mulheres, desde antes de seu nascimento. A consciência nesse
caso é, também, um processo coletivo. A própria resistência é um conhecimento produzido
coletivamente e, nesse sentido, a consciência de classe para si parte do princípio de que é
necessário abrirmos mão daquilo que entendemos como “verdade” para entrarmos em um
processo dialético, de entender a crítica social como elemento imprescindível para nos
emanciparmos do senso comum (GRAMSCI, 2004a).

No grupo eu sinto que eu vivo um processo de coletividade que é diferente muitas


vezes do que eu vivo ou já vivi na sociedade, o que eu já vivi na família, na escola.
É um processo de coletividade onde a gente busca se entender e se respeitar diante
da nossa diversidade. (M1, p. 2).

Mauro Iasi (1999, p. 9) menciona que a consciência de classe é a única capaz de


promover qualquer ação revolucionária. Assim, ele detalha que: “Apesar das alterações da
consciência só poderem ser vivenciadas em nível individual, o processo de transformação que
irá realizá-la é necessariamente social, envolvendo mais que a ação individual, a de classe.”

[...] o que aconteceu comigo enquanto pessoa depois do grupo feminista e falar do
grupo feminista parece que é um horizonte que se abre [...] feminismo classista,
nossa, são duas coisas que estão intrínsecas às nossas realidades [...] a necessidade
de transformar essa igualdade e a classe [...] Então pra mim participar do grupo e
fazer parte inclusive da construção foi transformador, desde o jeito de pensar porque
muitas vezes a gente vê as opressões, a gente sente na pele, muitas vezes a gente fala
mas estando com o grupo podendo conversar e construindo com o grupo a gente age
melhor, a gente constrói as coisas melhores […] essa transformação pessoal que é tu
poder inclusive quando você captar uma relação, um processo de opressão que às
vezes passava por despercebido. Porque o machismo e toda relação de opressão que
acontece com as mulheres ela é tão intrínseca à nossa sociedade, as relações sociais
por muitas vezes passou despercebido, então isso foi a transformação, é tirar aquelas
vendas dos olhos e conseguir enxergar a realidade e tudo o que acontece. (M2, p. 1).

O processo de transformação de consciência é construído dentro de um contexto de


classe, de homens e mulheres que são oprimidos e oprimidas e que, diante de tamanha
supremacia do poder dominante, a mulher torna-se ainda mais humilhada, inferiorizada,
mesmo que o sujeito com quem busca construir esse processo de emancipação seja o próprio
companheiro de vida. Entende que não há, nesse sentido, como construir um novo ser capaz
de fazer transformações revolucionárias sem promover a mudança desde a base, na realidade
que vivem.

[...] transformações temos nas relações tanto em casa com o companheiro desde
questões simples, da divisão de tarefas que é algo simples, mas pode se tornar uma
153

carga bastante pesada. Desde o diálogo com a minha mãe que é de outra geração e a
base dela foi construída com um machismo muito forte […] foi uma transformação
bacana na relação com ela, de fazer ela entender tudo isso e ela se entender nesse
processo, e também o que eu acho que mudou também foi na própria ocupação de
alguns espaços em outras organizações também, nos espaços que eu passei a
frequentar junto com as companheiras para a formação. (M1, p. 3).

Compreender as relações de opressão que aconteceram e acontecem em nosso dia a


dia e naquilo que eu falava antes que é o trabalho de base, a partir do momento que
tu faz parte do processo de formação feminista classista tu passa a trabalhar de
forma diferente então, é no famoso trabalho formiguinha que é transformador, que é
no trabalho de base, na conversa, que é nas relações do dia a dia que o grupo faz das
suas maiores ações. É nesse momento de transformação, no diálogo, nas conversas,
nas relações. (M2, p. 8).

Nesse sentido, o processo de formação de uma consciência revolucionária não é linear.


Os dizeres das interlocutoras contribuem para a análise de que o ser humano, ao mesmo
tempo que evolui, estuda, busca dialogar em grupo, regride pelo conflito que é ocasionado
dentro do modelo e relações antagônicas que cercam o seu meio. Movimentar-se nesse âmbito
não é uma experiência tranquila e torna-se cada vez mais necessário romper com esse
fracionamento, entre a alienação e a superação dessa situação.
Minha interlocutora M1 aponta que a superação dessa distância, citada pelo autor, não
se concretiza de maneira isolada, mas na perspectiva coletiva, na passagem do “eu” me
preocupo comigo, para o “nós” nos preocupamos com os outros e outras.

A luta específica do grupo feminista classista é em si o feminismo classista que é a


luta da emancipação das mulheres entrelaçada à emancipação de todos os oprimidos.
Isso que eu falo está baseado em estudos que a gente passou a fazer no grupo,
inclusive essa é uma fala que a gente defende, de uma feminista chamada de Flora
Tristan e ela diz que não existe como as mulheres se emanciparem de uma forma
isolada, específica, tendo uma sociedade que envolta a tantos outros oprimidos.
Inclusive uma fala que ela usa é de que o homem mais oprimido pode oprimir um
ser, que é a sua companheira, a proletária do proletário. (M1, p. 4).

A transição do estado individual para o coletivo tem a ver com a capacidade de sentir
dores similares, vivências diferentes, que se encontram pela singularidade em que os conflitos
sociais se encontram. “A difícil passagem do Eu para o Nós. A capacidade de ver no outro sua
própria angústia, de ver no outro algo além que a extensão do opressor, algo humano que nos
torna humanos e descobrir as energias insuspeitáveis da ação coletiva.” (IASI, 1999, p. 9).
Ao articular os elementos teóricos com as experiências partilhadas pelas minhas
interlocutoras, destaco a construção do conhecimento a partir das relações de escuta, acolhida
e solidariedade. Tais relações se apresentam como partes na formação e construção de “um
novo ser”, “uma mulher nova”, capaz de pensar e buscar formas de organização
revolucionárias para romper com a colonialidade do poder.
154

A gente transborda nossas vidas em nossos momentos [...] então a gente ultrapassa
os nossos limites, inclusive de estar ali para além de estudar e conversar então eu
vivo intensamente cada minuto porque a gente está ali, consegue se ver nas
companheiras, nos processos de opressão que as companheiras vivem e também a
gente consegue falar, se abrir, é o espaço que a gente escuta e consegue falar, então é
um espaço que para além de nos ajudar a construir mais forte também nos alivia.
(M2, p. 1).

Muito bem, o trabalho do coletivo da PJR e da PJMP ele carrega várias pautas né e
uma delas é o feminismo e o trabalho pra além do grupo ele se dá de forma muito
interessante assim pensando, porque tudo o que a gente aprende ali, cada encontro a
gente sai com os olhos mais abertos então a partir do momento que eu comecei a
fazer parte do grupo feminista eu passo a enxergar as relações de forma diferente, eu
passo a enxergar a negação, as dificuldades que algumas vezes, que as meninas
apresentam em participar e colocar de forma diferente, então aprendemos com o
grupo a desenvolver uma metodologia diferente de trabalho, de trabalhar em
especial com as meninas, até o fato da gente entender que tem momentos em que a
gente precisa sentar só com as meninas pra conversar, pra compreender o que tá
acontecendo ou até de você sentar e escutar o que está acontecendo com a
companheira, pra entender o porquê isso tá acontecendo, porque ela tem estado
nervosa e tudo mais. Então com o grupo feminista eu passo a compreender, a gente
passa a compreender a vida além da figura, do ser humano né, o que tem por trás né
e trabalhar no grupo de base a partir disso, sempre indo mais a fundo, não somente
com o primeiro momento de convivência. (M2, p. 5).

A interlocutora M2 contribui nesse sentido, ao reafirmar a linha teórica do processo de


consciência coletiva para além do grupo de base da qual ela faz parte, mas, também, a
compreensão do todo que envolve a história da sociedade, do seu país de origem, da formação
latino-americana e dos povos que compõem esse território.

[...] se compreender parte da América Latina, parte do todo desses países latino-
americanos que foram explorados, muitos povos que foram assassinados e
eliminados da América Latina. A gente faz esse debate sentindo-se latino-americanas
também, [...] que a nossa luta enquanto movimentos sociais é coletiva a nossa luta
enquanto latino-americanos é coletiva. Todo o processo de opressão que aconteceu
no Brasil, os golpes militares que aconteceram no Brasil, inclusive o que tá
acontecendo hoje também faz parte de um processo de golpes e relação de opressão
e de extermínio que aconteceu em toda a América Latina né, então faz parte de todo
um projeto de exploração né que acontece e que é implementado na América Latina,
então a luta também é coletiva na América Latina. (M2, p. 7-8).

A interlocutora M3 menciona uma forma de mudança, ao integrar o Coletivo


Feminista Classista, e o processo que fez ao interpretar a vida e a sociedade a partir das prosas
coletivas. Essas mudanças também contribuem para as transformações nas relações em outros
lugares, seja em casa, escola ou na rua.

Então, assim, é, o fato da minha relação, partindo né do grupo [...] que eu já faço
parte, que eu já amadureci, que eu já, já tenho essa luta, essa vivência feminista. É
como eu disse antes, eu não consigo e eu não posso, porque eu tenho o dever de
estar na formação, dentro do grupo discutindo a questão da mulher, discutindo a
questão classista, e eu tenho o dever de outros espaços, de outros momentos, e
outras situações, ser coerente com aquilo que eu sou, porque se em outros momentos
155

e outras pessoas eu não conseguir, é, mostrar pra elas, que da forma que hoje a
sociedade se organiza, da forma como hoje a sociedade trata a mulher é errado, eu
vou tá sendo incoerente com aquilo que eu acredito e com aquilo que eu luto, então
o meu, eu [...] enquanto sociedade assim, eu sempre prezo em vários espaços que eu
vou, que eu frequento, eu sempre tô discutindo e tô tentando disseminar e tentando
quebrar essa cultura que é machista, que é né, que trata a mulher de forma diferente
[...] nos momentos que eu acho que devo contribuir, que eu devo é, discutir isso, eu
vou discutir, tem alguns momentos que a gente percebe que a gente tem que
entender que não vai valer a pena porque a gente pode tá também [...] nos
prejudicando enquanto pessoa, enquanto organização também, mas seria
imprudência minha, incoerência do grupo também é, em outros espaços a gente não
disseminar, a gente não conversar, a gente não discutir, a gente não debater, porque
tudo que a gente aprende no grupo, a gente leva em outros espaços, a gente leva pra
escola, a gente leva pra faculdade, a gente leva pra dentro da nossa família, porque
dentro do grupo a gente vai descobrindo certas coisas de nós, certas coisas da nossa
família, e a gente precisa construir uma nova, um novo jeito de ser, é, de se
organizar dentro da família, dentro da escola, dentro da sociedade. Então a gente tem
que tá [...] ser coerente, é uma coisa que a gente tem que ter, pensar que a gente não
pode só em um momento, só em um espaço ser de uma forma e em outro espaço ser
de outra, isso seria incoerência [...] incoerência militante isso. (M3, p. 7-8).

A dominação que controla como as pessoas devem ou não ser ou se comportarem, as


percepções que possuir sobre elas e o mundo em que vivem, está interligado ao que Gramsci
(2004) aponta, quando menciona a superestrutura e fala das relações tanto culturais quanto
ideológicas como importantíssimas à compreensão do ser no mundo. Para ele, essas duas
questões são fundamentais e vão reproduzir o indivíduo, talvez crítico ou alienado, em
qualquer tempo e espaço. Por isso, defende a construção de uma cultura que seja popular para
se contrapor à lógica da colonialidade do poder sobre o saber e em sequência, a transformação
do ser.
Fanon (1968) alerta quanto ao processo de colonização como responsável por utilizar
todos os recursos possíveis de dominação da cultura, da ciência, educação sobre os povos. A
contra-hegemonia necessária nesse cenário é possibilitar as condições para uma organização
coletiva que levará à transformação. E essa realidade pode ser percebida quando a
interlocutora M4 destaca a mudança que sentiu na composição do seu ser em relação às
demais pessoas, a partir dessa estruturação do grupo como prática real e revolucionária.

O coletivo: é uma relação de companheirismo, de solidariedade e de amor né, dessa


coisa de a gente se entender, de carinho. (M4, p. 3).
[...] eu tinha certos pensamentos mais eles estavam escondidos digamos assim né, o
que prevaleciam era, eram os pensamentos machistas né, conservadores, moralistas,
que tinham que, é uma coisa que vem de família já né, que é aquela construção né,
aquela, hierarquia desde pequena já, e eu soube lidar, digamos assim né, quando ela
veio me dizer isso, se fosse antes eu, na verdade nem sei como eu ia agir né, eu ia
ficar sem saber o que agir, e agora primeira coisa quando ela me disse que ela tinha,
que ela chegou né. (M4, p. 3).
156

A jovem militante M5 analisa, a partir de sua realidade, onde a cultura também foi
colonizada e todo o poder de dominação constituiu a parte mais excluída da sociedade, a
periferia social. Ela correlaciona o campo (roça) com a favela:

Tem diferença, mas o propósito dessa luta e o que a gente sofre é muito igual. Essa
liberdade que a gente não tem nem na favela e nem na roça. Decisões do corpo,
decisões da casa, a gente não tem isso, a gente vê que no geral nós sofremos o
mesmo machismo, mas tem diferença por ser comunidade da favela né, pega mais o
lado da prostituição né, você não ter outro caminho e se prostituir né, por isso que eu
falei que as relações do capitalismo são comerciais né e eu acho que na roça, pelas
vivências com as meninas da PJR que são também do coletivo feminista classista.
Então as decisões né, você não poder tomar decisões dentro de casa, isso é
semelhante tanto no campo quanto na favela, questão financeira, você não poder sair
porque tem que ajudar a mãe dentro de casa, essas limitações que toda menina tem
né indiferente se for na favela ou na roça. (M5, p. 3).

O rompimento da colonialidade imposta com o poder de dominação dos povos e suas


linguagens, do saber corrompido e, em muitos casos, aniquilado, e do ser, que foi
transformado, para sustentar essa lógica que obedece a um conceito europeu de vida, pode
ocorrer na base da luta coletiva, na organização de um povo no âmbito popular. “[…] Base é
chão, de onde você pisa né, é tu conhecer com quem tu vai trabalhar, no nosso caso que
trabalhamos com a juventude é ir lá na realidade da juventude, saber o que a juventude tá
passando, as dificuldades, os desafios, o que está necessitando.” (M2, p. 8).
Assim também expressa Lugones (2014, p. 942): “é o movimento rumo à coalizão o
que nos impulsa a conhecer uma à outra como entes que são densos, relacionais, em
socialidades alternativas e alicerçadas nos lugares tensos e criativos da diferença colonial.”
Decolonizar o ser, sem excluir as especificidades de cada realidade, faz parte da luta classista
e, desse modo, do feminismo classista, que conta com a contribuição de homens e mulheres
que vão se libertando entre si, a partir de uma relação de igualdade de gênero e rompimento
de pré-conceitos, de “verdades” que os acompanhavam anteriormente.
Há, nessas entrevistas, a ideia de organização popular com base nas lutas contra-
hegemônicas, as quais acontecem nas pequenas e grandes construções que transcorrem no
espaço da educação, mídia, família, organizações sociais, rua e com o povo.

Será que o nosso papel é ir pra rua simplesmente sei lá, tirar a roupa, não que não é
uma crítica moral, mas só fazer isso? Será que essa é nossa tarefa? Ou a gente pode
ajudar a construir mais? Ou a gente pode ajudar a construir conceitualmente
também, tanto nas práticas quanto teoricamente. Companheiras que estão indo para
outros espaços e vão conseguindo estudar para poder contribuir nas formações [...] E
eu acho que cada vez que a gente vai pra rua, cada vez que a gente consegue alinhar
uma pauta, cada vez que uma companheira nossa pega o microfone e consegue fazer
uma fala que tem toda essa ligação com o feminismo classista isso já é um grande
avanço. A gente não precisa fazer uma “grande” transformação, sei lá, que alguém
157

acha que tem que ser uma grande transformação, mas cada vez que a gente vê que
uma companheira consegue fazer isso eu também me sinto representada e eu
também quero fazer isso [voz trêmula - de choro; lágrimas da entrevistada e da
pesquisadora]. A gente se emociona porque é muito difícil [...] você ocupar um
espaço, pautar determinada questão justamente porque também dentro dos
movimentos existe muito esse machismo. (M1, p. 8).

Os lugares epistêmicos, políticos e sociais, de onde emerge a perspectiva da


decolonialidade, estão sendo espalhados pelas mãos e fazeres dos diversos territórios de luta,
de história, de memória, de língua, nos quais seus pensamentos foram tecidos. De acordo com
Mignolo (2003), essas gentes e esses territórios têm em comum a perspectiva da crítica à
modernidade desde a colonialidade, questionando a própria lógica pela qual a modernidade
foi pensada.
O pensamento decolonial representa diversos momentos de elaboração e luta a partir,
especialmente, dos subalternos e subalternas que se organizam e subvertem, de forma criativa
e corajosa, a ordem do poder global. Se na colonialidade do ser “a invisibilidade e a
desumanização são expressões primárias” (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 150), então é
necessário dar visibilidade aos subalternos, transformando relações de subserviência em
relações humanas e amorosas.
Em síntese. Maldonado- Torres (2008) considera que a colonialidade do ser está
relacionada tanto com a violência originária da colonização quanto com o padrão de
exploração e dominação, próprios ao modo de produção capitalista hegemônico. Nos termos
de Quijano (2005), a colonialidade do ser se articula com a colonialidade do poder e do saber;
ou seja, os três elementos são indissociáveis.
Para Lugones (2014), o processo civilizatório colonial produziu exploração e violação
dos corpos dos povos. Essa autora considera que em relação ao corpo da mulher, tal violência
construiu um sentido de servilismo e subserviência. Uma forma para a desconstrução e
superação dessa colonialidade do ser, na prática da educação popular libertadora, consiste em
promover ações coletivas que levem ao autoconhecimento das mulheres militantes.
A violência colonizadora e o padrão de dominação e exploração capitalista foram
processos homogeneizantes dos povos do território latino-americano. Lutas contra-
hegêmonicas para a afirmação da diferença e da diversidade implicam práticas educativas
populares. Tais práticas são baseadas em processos coletivos, que subvertem a ordem do
poder hegemônico, produzindo transformações pessoais e organizacionais. Essas
transformações repercutem em mudanças junto a outros espaços de vida então
158

correlacionados. Essas práticas contra-hegemônicas contribuem para a formação de um novo


ser decolonizado.
Para finalizar. Nessa seção, meu objetivo foi evidenciar questões sobre a
colonialidade, que emergem de práticas educativas singulares de mulheres militantes, de um
coletivo feminista classista. Inicialmente, apresentei o trabalho de campo realizado junto ao
coletivo, no qual atuo tanto no trabalho de base quanto em funções de dirigente nas instâncias
políticas. Realizei cinco entrevistas com militantes de idades e funções diversificadas,
considerando parâmetros da entrevista compreensiva. Os dados evidenciaram três questões
sobre formas como se constrói, ao mesmo tempo, a colonialidade e forças contra-
hegemônicas nas práticas singulares das mulheres militantes, considerando três planos
distintos e articulados: poder, saber e ser.
Conforme Quijano (2005), a colonialidade do poder refere-se ao padrão hegemônico
de dominação e de exploração, fruto do modo de produção capitalista que se generaliza para o
conjunto de relações sociais. Ao mesmo tempo, esse padrão produz uma classificação dos
indivíduos em termos de trabalho, raça e gênero. A sociedade de classes naturaliza a opressão
da mulher como um modo de vida, inclusive, no próprio mundo proletário. A identidade de
classe de feministas classistas é paradoxal, pois, ao mesmo tempo, identificam-se como
exploradas e oprimidas, assim como insurgentes e rebeldes. As lutas políticas contra-
hegemônicas implicam três planos concomitantes: pessoal, social e místico; além disso,
formação e postura autorreflexiva de militantes e lideranças. No entanto, a unidade de lutas
identitárias e estruturais está diretamente vinculada à luta de classe. A prática militante mostra
que há diferentes planos de resistência endógena na luta contra opressão, seja no próprio
movimento, seja nas comunidades locais, seja nas relações interpessoais. A pesquisa mostrou,
ainda, que em territórios caracterizados por preconceito, machismo, discurso do ódio as
práticas contra-hegemônicas feministas classistas enfrentam reações que reproduzem formas
arcaicas de colonialidade do poder.
Segundo Quijano (2005), a colonialidade do saber consiste na imposição da
perspectiva eurocêntrica do conhecimento, no estabelecimento de divisões e hierarquias
simbólicas entre diferentes saberes e a exclusão de outros saberes e epistemologias. A
colonialidade do saber é produzida também na vida cotidiana das classes populares, em razão
de sua condição racial e de seu pertencimento territorial. Em consequência, histórias de vida
são assim condenadas a percursos deterministas, naturalizados e estigmatizados. Em termos
contra-hegemônicos, tendo em vista a transformação de si mesmo e da sociedade, a formação
das classes populares é condição para a desconstrução da naturalização da opressão e da
159

exclusão, por meio da apropriação de conhecimentos. Essa desconstrução supõe, ainda, troca
e socialização de saberes, assim como o intercâmbio entre membros de grupos de base e de
coletivos urbanos e rurais. Ainda, a mística produz efeitos de encontro consigo mesmo e com
o outro, além de promover uma visão solidária com o povo, o território e a natureza.
Conforme Santos e Meneses (2010), a construção de epistemologias do sul retoma saberes
tradicionais e populares, para fundamentar práticas políticas e pedagógicas de movimentos
sociais e de organizações populares. Nesse sentido, Mignolo (2008) propõe a desobediência
epistêmica, como tarefa das classes subalternas, para construir historicamente jeitos de
aprender e ensinar para subverter a ordem social hegemônica na perspectiva da
decolonização.
Maldonado- Torres (2008) considera que a colonialidade do ser está relacionada tanto
com a violência originária da colonização quanto com o padrão de exploração e dominação
próprios ao modo de produção capitalista hegemônico. Nos termos de Quijano (2005), a
colonialidade do ser se articula com a colonialidade do poder e do saber; ou seja, os três
elementos são indissociáveis. Para Lugones (2014), o processo civilizatório colonial produziu
exploração e violação dos corpos dos povos. Em particular, em relação ao corpo da mulher
essa violência construiu servilismo e subserviência. O padrão de dominação e exploração
capitalista instaurou processos homogeneizantes do território latino-americano. Em termos
contra-hegemônicos, a educação popular libertadora, por meio de processos coletivos,
subverte a ordem do poder hegemônico, produzindo transformações pessoais e
organizacionais. Essas transformações repercutem em mudanças junto a outros espaços de
vida então correlacionados. Essas práticas contra-hegemônicas contribuem para a formação de
um novo ser decolonizado.
160

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na presente dissertação meu objetivo foi analisar questões que emergem da relação
entre educação popular e (de)colonialidade. A origem da educação popular reporta às
vivências de comunidades primitivas, nas quais a produção da própria existência material
levava o ser humano a produzir saberes e aprendizagens. O termo educação popular apresenta
contradições e ambiguidades, pois a mesma expressão toma diferentes significados, conforme
o contexto sócio-histórico do qual emerge. Na América Latina, o termo refere-se, em
particular, a uma forma de movimento multifacetado. Entre diferentes perspectivas, na
presente dissertação, meu trabalho de investigação tem como foco a educação popular
libertadora.
A pesquisa realizada mostrou que há convergência entre autores que reconhecem um
núcleo comum de elementos que constituem essa forma educativa: leitura crítica da ordem
social vigente, intencionalidade política emancipadora, contribuição ao fortalecimento de
setores oprimidos da sociedade, atuação junto à subjetividade popular, metodologias
educativas dialógicas e participativas. Além disso, trata-se de uma perspectiva fundamentada
na luta de classes e em resistências contra-hegemônicas face ao padrão eurocêntrico da
colonialidade.
A formação do continente latino-americano se particularizou por um modo de
produção capitalista dependente, que produziu conflitos de classes e injustiças sociais,
baseados no racismo. Tais estrutura e conjuntura levaram um conjunto diversificado de
intelectuais e de pensadores a formular uma perspectiva crítica a respeito da formação do
continente. A ideia de raça se relaciona a uma visão de superioridade eurocêntrica, que foi a
base de sustentação da colonização política, econômica e cultural dos povos latino-
americanos. A classificação racial/étnica da população fundou o padrão global de poder. Esse
padrão fundamenta a colonialidade do poder que, associada à coloniadade do saber e do ser
constituem o sistema mundo moderno/colonial hegemônico. A desconstrução desse padrão
supõe rupturas contra-hegemônicas, epistêmicas, teóricas e políticas, que levam à constituição
histórica de um giro decolonial, tendo em vista um pensamento novo/homem novo.
Na pesquisa realizada se evidenciaram quatro momentos sócio-históricos
significativos da construção da colonialidade hegemônica e das lutas contra-hegemônicas
latino-americanas e, particularmente, brasileiras. O primeiro refere-se à invasão das terras e
dominação de povos indígenas, no contexto das grandes navegações europeias, em busca de
matéria-prima e de novos mercados. Nesses tempos, ocorreu a morte de povos inteiros e o
161

nascimento da resistência, por meio de lideranças e guerras históricas indígenas contra os


colonizadores. No segundo, abordei a colonização europeia do continente, baseada no
trabalho de escravos, que eram tratados como mercadoria, em uma relação de posse e
propriedade. A resistência dos escravos negros foi parte das relações escravistas e se
expressou em diferentes formas, de suicídios a insurreições, surgindo lideranças cotidianas e
históricas do povo negro. O terceiro momento se caracteriza pelo processo de industrialização
e de urbanização, associado ao capitalismo liberal e à internacionalização de investimentos de
capital, principalmente, norte-americano. No contraponto emergiram lutas de trabalhadores
influenciadas por ideias socialistas, comunistas e anarquistas, provenientes do movimento
operário europeu. Mais recentemente, influenciou a educação popular de base libertadora,
lutas essas que levaram ao processo de redemocratização. No quarto momento me reportei aos
tempos atuais de globalização, nos quais houve ascensão de governos populares, que
promoveram políticas sociais e não romperam com o capital hegemônico neoliberal, até certo
ponto apresentado como única opção possível. No plano contra-hegemônico, evidenciam-se
formas de resistência popular, indígena e negra, campesina e urbana, em um contexto de
articulação internacional, por meio de novos tipos de movimentos sociais multi e
pluriclassistas.
Em termos históricos, há certo consenso em atribuir a dois educadores populares o
lugar de precursores da educação popular no continente. Suas propostas são parte de uma
pedagogia crítica e radical, comprometida com a libertação. Para o venezuelano Simón
Rodríguez e o cubano José Martí, um povo que sabe quem é, educando-se a partir disso,
torna-se livre. A educação popular é associada a diferentes influências e diversos termos,
opostos e mesmo contraditórios entre si, da vocação populista ao compromisso de classe. A
educação popular libertadora se caracteriza por um pensamento emancipador, radicalizado e
anti-imperialista, no qual a educação é indissociável da política. A refundamentação da
educação popular é fruto do tensionamento provocado pela conjuntura mundial neoliberal e
pela produção das ciências humanas e sociais do início do século XXI. Consiste em uma
crítica à modernidade e ao pensamento único, instaurando bases de uma epistemologia do Sul,
fundamentada nos saberes e nos pensares do povo latino-americano.
O trabalho de campo ocorreu junto a um Coletivo Feminista Classista, do extremo-
oeste de Santa Catarina, no qual atuo tanto no trabalho de base quanto em funções de
dirigente nas instancias políticas. Realizei cinco entrevistas com militantes de idades e
funções diversificadas. Trabalhei considerando particularidades da entrevista compreensiva,
que se traduz por uma situação de “prosa”, em um contexto de maior naturalidade na
162

interlocução. Meu objetivo foi evidenciar questões singulares a respeito da colonialidade, que
emergem de práticas educativas populares de mulheres militantes. As entrevistas foram
gravadas e os conteúdos integralmente transcritos. A sistematização e análise de dados
observaram pressupostos da entrevista compreensiva.
Os resultados desse trabalho mostraram que a colonialidade se evidencia em três
planos distintos e articulados entre si: poder, saber e ser. A colonialidade do poder refere-se ao
padrão hegemônico de dominação e de exploração, fruto do modo de produção capitalista que
se generaliza para o conjunto de relações sociais. Esse padrão produz uma classificação dos
indivíduos em termos de trabalho, raça e gênero. As lutas políticas contra-hegemônicas
implicam planos concomitantes: pessoal, social e místico, além da formação e postura
autorreflexiva de militantes e lideranças. A unidade de lutas identitárias e estruturais está
diretamente vinculada à luta de classe.
A colonialidade do saber consiste na imposição da perspectiva eurocêntrica do
conhecimento, no estabelecimento de divisões e hierarquias simbólicas entre diferentes
saberes e a exclusão de outros saberes e epistemologias. Em termos contra-hegemônicos, a
formação das classes populares é condição para a desconstrução da naturalização da opressão
e da exclusão, por meio de: apropriação de conhecimentos, troca e socialização de saberes,
intercâmbio entre membros de grupos de base e de coletivos urbanos e rurais, mística. Nessa
perspectiva, situa-se a construção de epistemologias do sul, que retoma saberes tradicionais e
populares, para fundamentar práticas políticas educativas, assim como a desobediência
epistêmica, que implica aprender e ensinar para subverter a ordem social hegemônica na
perspectiva da decolonização.
A colonialidade do ser está relacionada tanto com a violência originária da colonização
quanto com o padrão de exploração e dominação, próprios ao modo de produção capitalista
hegemônico. A colonialidade do ser se articula com a colonialidade do poder e do saber, ou
seja, os três elementos são indissociáveis. Em termos contra-hegemônicos, a educação
popular libertadora, por meio de processos coletivos, subverte a ordem do poder hegemônico
produzindo transformações pessoais e organizacionais que contribuem na formação de um
novo ser decolonizado.
Os resultados da pesquisa realizada me levam a formular quatro hipóteses, que,
entendo, sinalizam rumos para pesquisas subsequentes:

a) a luta política é indissociável da prática educativa;


163

b) a educação popular libertadora se constitui em um caminho para a construção de


forças contra-hegemônicas, na luta contra a dominação e a exploração;
c) as lutas contra-hegemônicas contêm em perspectiva o projeto histórico da
decolonialidade, no entanto, a reprodução de formas arcaicas da colonialidade
constitui o povo latino-americano;
d) a desconstrução de práticas de dominação e exploração supõe instaurar condições para
posturas autorreflexivas e a formação de militantes e lideranças.

A presente dissertação materializa o meu processo para formação como pesquisadora


no campo da educação. O tema da educação popular libertadora nasceu em meu percurso de
militância política e educativa, vinculada à pastoral social da Igreja Católica. Nesse caminho,
sempre tive influência de um contexto familiar militante e minhas interrogações referentes ao
feminismo classista.
O ingresso no mestrado em educação propiciou uma formação para me tornar
pesquisadora na perspectiva do método para a problematização de práticas educativas,
desenvolvido pela minha orientadora. “Esse método instaura condições para questionar
percursos e situações, possibilitando, ao mesmo tempo, a emergência da pergunta do sujeito
em diferentes níveis complementares de complexidade.” (DALPIAZ, 2017, p. 713). Nesse
sentido, fui levada a me interrogar sobre minha prática militante e buscar subsídios, históricos
e conceituais, para problematizar práticas singulares de militantes políticos, em um Coletivo
Feminista Classista, considerando o tensionamento da colonialidade e decolonialidade.
Para concluir, a título indicativo de características do percurso formativo, aponto
alguns elementos a seguir. No plano político, tendo em vista meu pertencimento ao Coletivo
Feminista Classista e a particularidade do nosso funcionamento organizacional, o trabalho da
dissertação, até certo ponto, não foi um trabalho solitário, porque foi sistematicamente
acompanhado e socializado pelos companheiros e companheiras militantes. No plano pessoal,
apesar da angústia provocada pelo desafio dos novos conhecimentos, o mestrado está sendo
vivenciado com entusiasmo e curiosidade. No plano militante, o percurso realizado no
mestrado foi atravessado por um tensionamento entre a prática militante – enraizada na vida
do Coletivo e no tempo presente, e a prática acadêmica – baseada no trabalho abstrato e
reflexivo, projetado no tempo.
164

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APÊNDICE A – Roteiro de entrevista


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APÊNDICE B – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido


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