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O caminho é pra lá do caritó: a decomposição da imagem do senhor e o

desgoverno dos mortos vivos

As tochas incendeiam com fogo e luz caminhos fechados, desconhecidos e


inexplorados, que guardam mistérios jamais descobertos pelos homens que saem em
busca da imagem e semelhança do Jesus em decomposição. No presente do tempo
espiralar Jesus se transmuta em múltiplos sentidos e direções, desafiando os rumos
direcionados por crenças milenares jamais questionadas, pelo seu status de
imponência econômica e de saber, que regula e pastoreia modos de organização e
subjetivação conjunta de sociedades dissonantes e incongruentes ao ditame
esperado. Tradição essa que move vidas e montanhas desconhecidas e por isso
temidas.

Todos os anos a cidade de Oeiras-PI, reconhecida até hoje como a capital da fé,
apesar de já não ser mais a capital do Piauí, carrega consigo uma história colonial
singular, regulada imageticamente e simbolicamente polos ditames e poderes
imaculados da igreja. Ponto alto da Semana Santa, momento onde centenas de fiéis
reencenam os paços de jesus até o momento da sua ressureição, é a procissão do
fogaréu, momento em que os homens encenam a perseguição dos soldados romanos
em busca da sua imagem e semelhança. Os homens saem portando tochas de fogo
em perseguição ao senhor, anunciada pelo som do clarim e uma bandeira da imagem
de cristo, como representação do seu aprisionamento.

Assim como a representação imagética que persiste totalitária nos espaços


destinados a apreciação e estimulação da arte, o toque compassado e espaçado dos
sinos ordenha e regula a vida cotidiana de uma comunidade, organizando o perceber
e passar do tempo, estabelecendo ações que agem promovendo reações de
limiaridades – processo ritual que evoca forças capazes de suspender vínculos
socias, clamando por transições e transcendências capazes de estabelecer um novo
ordenamento das funções e elos comunitários, marcados sempre pela multiplicidade
e dissonância de sons, cores e formas que pulsam em frequências diferentes e
irregulares, como devem ser.

O tilintar na contagem e distribuição das moedas e o ritmo maquinários das fábricas


reencenam também a existência de seres fluídos e compostos por múltiplos vetores,
que se equilibram no tecer da limiaridade arquitetada pelo controle e processão
masculinos, orientada sobretudo pelo controle e exploração do outro em prol de si e
dos seus semelhantes e que hoje queima em brasa no decompor da própria
mesquinhez de significados e sentidos.

As mulheres, em seus múltiplos aspectos, se englobam no processo maquinário e


monetário como forma de sobrevivência e adaptação; Já na procissão do fogaréu,
elas não participam como atores em prol da perseguição da imagem do senhor, mas
rezam em casa clamando pela misericórdia da sua representação, observando pelas
brechas das portas, janelas e becos escuros, as rotas de fuga dos passos do senhor,
que trilham caminhos circulares, capazes de alterar a materialidade do tempo e
espaço criado pelos homens em prol do senhor iluminado por eles e para eles.

Estaria a imagem do senhor em processo de decomposição e recomposição ou os


homens iluminam caminhos cegos pelos próprios olhos e bocas?

A procissão do fogaréu se encerra no ano de 2018 com um sermão entoado pelo


Padre Edivaldo Pereira dos Santos, que inicia sua fala com um questionamento
pertinente ontem e hoje: “Quem é que vocês estão procurando?”

O silêncio ensurdecedor lançado com essa pergunta assola o coração de muitos fieis,
que sem respostas põem-se em silêncio, observação e reinterpretação.

De volta ao evangelho caminhemos agora com luzes apagadas a partir dos


ensinamentos de João rumo a um jardim, que se assemelha ao paraíso do Gênesis,
de onde o homem foi expulso. Guiados pelas tochas apagadas operamos em
caminhos entrecruzados e encruzilhadas paralelas e indissociáveis, rumo a profecia
dos pequenos gestos sentimentos e atos, em busca de uma cultura de paz, banhada
pelas águas dos rios que desaguam em oceanos infinitos e infindáveis, formados por
gotas fluídas que não podem ser laçadas como nós em pingos d'água.

Seguindo a direção entoada pelo som dos sinos somos lançados a operar em dois
modos: um que resplandece o júbilo, alegria, euforia e outra envolta e enclausurada
pela contrição, tristeza e luto, contrição aqui assume o significado de uma criação
cristã que expressa o arrependimento pelos próprios pecados. No jardim paradisíaco
uma serpente aguarda ansiosa pela chegada dos homens que atiçados pela traição
ao senhor são lançados para fora do reino prometido. A arte como metáfora se aplica
e se reveste das peles de cobras rasteiras e traiçoeiras, seduzida pelo conhecimento,
independência, liberdade, prazer e autonomia lança os homens a um questionamento
crucial do nosso tempo espiralar: Qual é a imagem e semelhança dos homens? Essa
imagem perpetua poder e controle ou uma construção comunitária rumo a paz?

O jardim super aquecido e em chamas aqui apresentado é povoado por uma


percepção coletiva, marcada pelo clamor por mudanças de comportamento social e
simbólico que clamam por uma reestruturação social do tempo e de seus efeitos na
memória coletiva, ou pelo menos a atualizam de normas e estruturas no tempo
presente. Qual seria pois o papel da arte no processo de questionamento sobre a real
procura reencenada todos os anos pelos homens na procissão do fogaréu? Qual seria
também a função patrimonial de inovação e movimentação dos espaços culturais e
artísticos da cidade de Oeiras que mantem, zelam e enclausuram os circuitos da arte
a exposição e reinterpretação da imagem e signos católicos que não dialogam, pelo
menos nos museus, com criações artísticas contemporâneas, que questionam a
própria colonialidade do ser e do saber perpetuada pelas imagens e signos do
catolicismo eurocentrado, hetero e branco?

Aqui a máquina do tempo paira sobre cabeças inconformes e corpos marcados por
linhas temporais forçadas a repetições socialmente controlados por regimes de
violência excludentes, que definem e ordenam os modos de vida, morte e a própria
visão do mundo que nos foi dado a conhecer, reconhecendo os limites imagéticos e
sonoros orientados pelas imagens reproduzidas nas igrejas e museus e os sons que
soam despertando o povo para os elos imaculados previamente organizados.

Nesse sentido, proponho lançar não mais as tochas acessas rumo a iluminação dos
caminhos em busca da imagem e semelhança do senhor, mas sim um apagão, capaz
de desorientar, reorientar e reordenar os corpos em busca de elementos que
extrapolem as representações imagéticas e sonoras perpetuadas nos espaços
públicos destinados a arte na cidade de Oeiras-PI. O projeto se inicia pois em um
processo de escuta e aprendizagem juntos a comunidades tradicionais da referida
cidade, em busca de narrativas outras, descentralizadas e a margem dos discursos
perpetuados e reinterpretados. A partir disso, proponho a criação de uma obra
audiovisual que mescla texto ensaio, teatralidade, ficção documentária e sussurros
sonoros buscados no contexto real vivenciado pela população.
Objetivos:

Questionar a hegemonia cristã em torno da arte, lançar o circuito cultural de Oeiras


em debates contemporâneos que borram e transbordam as limiaridades promovidas
pela fé, vida, morte e ressureição de Deus e de nós, explorando não só a imagem,
mas as próprias matérias, sons e símbolos que os cercam.

Produção:

O projeto visa a criação de uma obra audiovisual, baseada em resgates ancestrais


que chocam e friccionam saberes populares marginalizados e os impedimentos
coloniais que impedem o diálogo da cidade com narrativas outras. Além disso,
proponho também a criação de uma série fotográfica produzida no entrecruzamento
da produção da própria criação audiovisual, na forma de imagens estáticas que
podem ser exibidas em museus ou demais espaços destinados a arte e a cultura da
cidade.

Execução:

Para a execução do projeto será necessário a produção objetos de apoio para a


cenografia e figurino, ambos relacionados com a proposta apresentada
anteriormente. Além disso, é imprescindível a disponibilidade ou o aluguel de câmeras
fotográficas e demais materiais para a gravação e fotos.

Referências:

Confira na integra o sermão da procissão do Fogaréu | Diocese de Oeiras

Procissão do Fogaréu – Identidades Sonoras

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