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Mangá Para
Quem Não
Os Olhos Conhece
Grandes do
Mangá
Nem tudo
é Olho
Grande
O Mangá
no Brasil
O Fim do
Mangá
parte 1
O Fim do
Mangá
parte 2
O Fim do
Mangá
parte 3
Sobre o
Autor
Introdução
Em 1968, quando eu tinha cinco anos animados da minha vida: Cyborg 009,
para seis anos de idade, achei em algum Samurai Kid, National Kid, Príncipe
canto de casa uma revista feminina que Planeta e outros da primeira leva de animes
– soube depois – era sobre horóscopos e, que foram exibidos no Brasil. Eu os assistia
provavelmente, comprada por minha mãe. encantado pelo simples motivo de que
Creio que o nome dela era “Zodíaco”. o desenho deles era “igual” ao da minha
As coincidências da vida sempre serão “namorada”, facilmente identificáveis pelos
surpreendentes... Eu ainda não sabia ler, mas olhos grandes e brilhantes. E desde então,
comecei a folheá-la porque tinha muitas não perdi nenhum anime que tenha sido
ilustrações e fotos. De repente, ao virar uma exibido nas TVs brasileiras. É claro que
página, me deparei com um desenho em desenhos norte-americanos passavam
preto e branco de uma garota com rosto também, mas nenhum deles me agradava.
lindo, olhos enormes e brilhantes olhando Eu os achava fracos, sem graça, bobos
fixamente para mim. Criança inocente, eu demais. Já os desenhos animados de olhos
me “apaixonei” por aquele desenho, e passei grandes sempre eram mais bem animados,
a vê-lo todos os dias e chamá-la de “minha com personagens mais cativantes, mais
namorada”. Este foi meu primeiro contato ação e emoção. Às vezes alguns
com o mangá (para ser mais exato, shoujo deles me faziam chorar,
mangá, mas não sabia disso na época). De principalmente
uma forma muito real, posso afirmar que o quando algum
mangá foi a primeira paixão da minha vida. personagem
Em 1969 a primeira televisão chegou morria. Coisa
em casa, onde assisti aos primeiros desenhos de criança...
Boa leitura
A é indicada
principalmente
para quem não
sabe nada sobre mangá,
mas está interessado
desenhistas de mangá que
o Brasil tem de jogadores
de futebol profissionais.
Mas como
em aprender. Ela não esse mercado
pretende te transformar funciona?
num especialista no tema Tudo começa nas revistas
com um punhado de semanais – algumas delas
parágrafos, mas um pouco vendendo mais de um
de conhecimento da cultura milhão de exemplares
pop nunca é demais, certo? semanalmente, todas com
mais de quatrocentas páginas
Mangá – Negócio por edição, verdadeiras listas
de Bilhões telefônicas! Tente imaginar
Em 2007, o ano mais a quantidade de papel
recente que consegui necessário para dar conta de
informações, a venda de uma única edição – e existem
mangás alcançou a cifra várias delas sendo publicadas!
astronômica de 406 bilhões
de Yens (cerca de 3.6 bilhões
de dólares), e olha que
nesta conta não entram os
ganhos com os produtos
que levam a imagem das
séries mais famosas, nem
dos videogames ou animes!
Portanto, mangá é um
negócio muito sério no
Japão, gerando empregos
para milhões de pessoas
(somando toda a cadeia
de produção: gráficas,
fabricas de papel, de tinta,
distribuidoras e as próprias
Estas revistas semanais Então, um dos poucos
têm em média doze a vinte momentos para relaxar é
séries, cada uma desenhada ler um bom mangá na ida/
por um artista diferente, volta do trabalho/escola.
com 20 páginas em média Mas voltando às revistas
por história. Estes números semanais, elas custam em
quase inacreditáveis para média 500 Yens (uns quatro
nós ocidentais são atingidos dólares). Bem baratas,
por dois motivos básicos: se levarmos em conta a
1 – Japoneses adoram quantidade de páginas e
ler – São educados desde seu formato (que realmente
a infância para tomarem parece uma lista telefônica
gosto pela leitura e, quando – tanto no número de
crescem, não largam páginas como no tamanho!).
este saudável hábito. Agora um detalhe
2 – A pressão do trabalho/ importante: a venda destas
escola – Cerca de 90% dos revistas raramente dá lucro!
japoneses são da classe Se elas cobrirem as despesas,
média, com bons salários. a editora já se considera
Mas para garantir isso, na vantagem. Então, por
trabalham até 14 horas que continuam a publicá-
por dia e se ainda estudam, las, se tanto trabalho
ficam na escola de 8 a 10 não rende? É porque as
horas por dia mais o que se editoras não lucram na
estuda em casa. Apesar de venda das revistas semanais,
terem dinheiro, os japoneses mas sim nas edições
têm pouco tempo para lazer encadernadas chamadas
devido às cargas horárias de Tankoubons (algo como
de trabalho ou estudo. “livro de bolso”), que tem
em média 200 páginas
em formato pequeno e
contém a compilação de,
em média, oito capítulos
de uma mesma série que
já foi publicada em revistas
semanais. Estes Tankoubons
são comprados pelos fãs
de determinadas séries
e têm tiragens menores,
mas a venda é mais
garantida, pois é impressa
a quantidade exata para
atender a procura. Se uma
edição esgota, é lançada
a segunda edição e assim
por diante. Alguns Tankoubons chegam
a ter mais de trinta edições, dependendo
da fama da série e sua procura pelos
fãs. É neste sistema muito inteligente
de vender literalmente a preço de custo
suas séries de mangá ao público, visando
lucrar a médio prazo com a compilação
de dois meses de publicação, que as
editoras japonesas faturam seus bilhões.
1900 a 1941
Neste período, o mangá adquiriu
sua forma definitiva, incorporando
Em 1905 é lançada a Shonen Pakku, a japonês proibiu a publicação de revistas
primeira revista de mangá para crianças, em geral, desviando todo o papel para o
uma concorrente da Shounen Sekai (Mundo esforço de guerra. A partir desta época,
Jovem) e em 1906 surge a Shoujo Sekai com a entrada do Japão na Segunda
(Mundo das Garotas), a primeira revista Guerra Mundial e seu lento caminho até
de mangá para o público feminino. Em a derrota em 1945, o mercado de mangá
1924 surge a Kodomo Pakku. Em 1935 ficou parado pela falta de matéria-prima
surge a Mangá no Kuni (o País do Mangá), (papel e tinta), a ida de muitos artistas
explorando a segunda guerra sino-japonesa, para o front e a destruição das indústrias
durando até 1941, ano em que o governo e gráficas japonesas pelos pesados
bombardeios norte-americanos nos últimos
meses da guerra. Mesmo derrotado e
literalmente bombardeado até quase a era
das cavernas, o Japão não demoraria muito
para retomar a publicação de mangás.
1946 a 1970
Durante a ocupação militar no pós-
guerra (1945-1952), e sem muitos mangás
para ler, a opção dos japoneses eram os
comics que vinham na bagagem dos
soldados ianques. Por isso, quando a década
de 1950 começou, os mangás estavam
influenciados pelo estilo norte-americano.
Era o surgimento do mangá moderno, com
a linguagem e o estilo que conhecemos
atualmente, que teve uma fantástica explosão
Ryoko Ikeda e Lady Oscar, sua O violento Devilman, criado por Go Nagai.
personagem mais famosa, do
mangá A Rosa de Versailes.
com o premiado Hi Izuru Tokoro no Tenshi mudanças básicas em sua forma de
(Imperador da Terra do Sol Nascente, publicação. Mudam os autores e alguns
1980). Com seus trabalhos, essas garotas detalhes nos estilos de desenho e roteiro,
talentosas mudaram totalmente os rumos mas o – digamos – “princípio ativo” continua
do mangá feminino, impondo um novo imutável. As únicas mudanças expressivas nos
estilo de desenho com olhos ainda maiores e últimos 15 anos foram o aumento de cenas
mais brilhantes que os criados por Jun-ichi, sensuais e eróticas tanto nos mangás shoujo e
aliados a uma narrativa poética e delicada, shounen, como um refinamento nos cenários
mais uma total liberdade na disposição dos e itens mecânicos em séries de FC. No mais,
quadrinhos dentro de uma página, como se as sequências de luta dos mangás nos anos
fossem quadros clássicos, cheios de detalhes. 1970 em diante se tornaram cada vez mais...
Sobre as revistas de Shoujo mangá,
alguma delas são mais antigas que as suas
equivalentes Shounen. As três maiores
atualmente, todas de publicação semanal
são: Ciao (990.000 exemplares, lançada
em 1977), Nakayoshi (400.000 exemplares,
lançada em 1954) e Ribon (380.000
exemplares, lançada em 1955). Mas no
total, existem cerca de quarenta revistas
Shoujo de periodicidade semanal, quinzenal
ou mensal nas livrarias japonesas. Devido
a esta saturação do mercado, as vendas
ficam mais baixas que as suas equivalentes
Shounen, mesmo tendo uma quantidade
similar de publicações. Isso se explica pelo
fato de o público masculino consumir
muito mais mangás que o feminino.
No geral, desde o começo da década
de 1980, os mangás não tiveram muitas
Ao lado: Ilustração do mangá Hi Izuru Tokoro no Tenshi (1980).
Abaixo: três revistas populares de shoujo mangá: Ciao, Nakayoshi e Ribon.
realistas, chamemos assim. Mas no Ocidente
elas ainda são consideradas “violentas demais
para crianças”. E sim, elas realmente são
violentas para crianças de 11 anos ou menos.
Mas todos se esquecem que no Japão tais
sequências de luta são publicadas em revistas
para adolescentes! Aqui no Brasil, não existe
este controle por idade, simplesmente porque
se convencionou que “quadrinhos são para
crianças”. Assim, mangás destinados para
leitores acima de 13 anos são classificados
e vendidos como se fossem para crianças
menores de 11 anos, que acabam tendo
acesso a revistas que não deveriam por
causa da pouca idade e pela incapacidade
de diferenciar a realidade da fantasia!
Enfim, o mercado de mangá, juntamente
com seus desdobramentos em animes e
videogames, está em mais de 100 países ao
redor do globo – uma prova da eficiência
e qualidade dos desenhistas e de
suas histórias. Só há que lamentar
a falta de desenvolvimento, pois
há mais de 30 anos se segue a
mesma fórmula. Será que teremos
algum dia nos mangás uma
nova explosão de criatividade
como a que aconteceu nos
dez primeiros anos após a
Segunda Guerra? Só o futuro
responderá esta pergunta.
Os Olhos Grandes
do Mangá
Do Proto-mangá à
Segunda Guerra
Como qualquer outra criação da mente
humana, o mangá não surgiu num passe
de mágica, prontinho e com personagens
cheios de olhos grandes e brilhantes. O
mangá “comercial” que compramos na
banca da esquina e lemos confortavelmente
em nossas casas, já traduzidos para o
português, é o resultado de quase mil anos
no aprimoramento da arte de desenhar,
escrever e criar estórias. Centenas de ideias
e invenções humanas colaboraram direta e
indiretamente na evolução lenta e gradativa
do mangá – e a maioria das pessoas que
participaram do processo viveu e morreu
sem imaginar o que ajudou a criar. O
mangá não tem um criador supremo – usados para proteger o pergaminho quando
centenas de desenhistas conhecidos ou enrolado. Um rolo de madeira está ligado
não ajudaram em seu desenvolvimento. na extremidade esquerda e forma um
O que podemos chamar de “proto- eixo para ajudar a abrir o pergaminho.
mangá” são os emakimono – pergaminhos Os primeiros emakimono, com sua
com ilustrações intercalando textos, forma narrativa mesclando imagem e
contando uma história à medida que texto, nada mais eram do que simples
eram desenrolados. Um Pergaminho cópias traduzidas dos pergaminhos de
de Rolagem chinês ou um Emakimono rolagem chineses, que os faziam pelo menos
tem mais ou menos o mesmo formato: desde o Período das Primaveras e Outonos
de 20 a 30 centímetros de largura por 9 (770 AC até 481 AC), ou seja, mais de
a 12 metros de comprimento. Ele pode mil anos antes dos japoneses. A China
ser desenrolado à medida que se lê ou já criava pergaminhos de rolagem com
totalmente, dependendo do tamanho e ilustrações e textos pelo menos desde o
do seu conteúdo. No caso de um texto, período da Dinastia Han Oriental (25 até
desenrola-se aos poucos, assim como 220 DC), como prova o Pergaminho das
num texto com imagens. Quando Admoestações da Instrutora do Tribunal
se trata de uma grande ilustração no de Justiça (Nsh Zhēntú), pintado para
pergaminho, ele é aberto totalmente. ilustrar um texto poético escrito em 292
Há um suporte de seda protetora e DC, por Zhang Hua. O poema narra como
decorativa com um pequeno etiqueta- a Imperatriz Jia repreendia e dava conselhos
título sobre ele. Na extremidade direita para as mulheres da Corte Imperial.
há uma madeira que serve como suporte. Considera-se o emakimono um alicerce
Um cordão de seda e um prendedor são para o mangá por ser a primeira forma de
Ukiyo-e (“Retratos do Mundo Flutuante”, fama dentro e fora do Japão até hoje. Mas
numa tradução aproximada) é a forma sua colaboração ao mangá foi uma série
japonesa da xilogravura – ilustrações de livros chamada Hokusai Mangá – uma
desenhadas em uma folha transparente coleção de desenhos e esboços de vários
e depois aplicadas em ripas de madeira assuntos como paisagens, flora e fauna,
dura que em seguida são “esculpidas” em vida cotidiana e criaturas sobrenaturais.
relevo poupando os traços do desenho. O “mangá” do título não se refere as
Uma vez pronta, se passa tinta apenas na histórias em quadrinhos que conhecemos
parte em relevo, sendo pressionada em atualmente, mas ao sentido caricato e
uma folha como se fosse um carimbo divertido dos desenhos. Foram publicados
gigante. Os retoques, correções e colorido 15 volumes a partir de 1814 até 1834,
são aplicados à mão após a secagem. Este com milhares de ilustrações e esboços. Os
método permite a reprodução exata de um
mesmo desenho centenas de vezes, e por
isso mesmo a preço bem mais baixo que
um emakimono totalmente feito a mão.
Por serem feitos em série, eram
mais baratos e podiam ser adquiridos
por comerciantes e pessoas da “classe
média”, ajudando na difusão deste
tipo de arte. Os desenhos dos ukiyo-e
eram tão bem trabalhados quanto nos
emakimono, e alguns artistas davam
muito destaque aos olhos, mas utilizando
os mesmos artifícios dos atores da época:
“maquiando” sobrancelhas e pálpebras.
Os primeiros mangás com este nome
foram criados por Katsushika Hokusai
(1760-1849) um dos maiores artistas de
ukiyo-e, ilustrador e gravurista no final do
Período Edo. Sua obra mais conhecida é a
série em ukiyo-e “Trinta e Seis Vistas do
Monte Fuji” (1830 a 1833), que lhe deu
Páginas da série Hokusai Mangá, feitas por Katsushika Hokusai, que
usou pela primeira vez a palavra “mangá” associada a desenhos.
três últimos volumes foram publicados desenho/narrativa, visando agradar a
postumamente, dois deles montados por seus leitores, já que cada uma tinha
seu editor a partir de material inédito. O público-alvo diferente. Nos mangás
volume final tem desenhos publicados para rapazes predominavam estórias de
anteriormente e mais alguns que não foram guerra, aventura e heroísmo, cores fortes
feitos por Hokusai. Mas a palavra mangá, e desenhos mais “realistas”. Nas revistas
daí por diante, ficou definitivamente ligada de mangá feminino, estórias de romance
aos desenhos. Tais livros pareciam mais e fantasia, com desenhos mais delicados,
emakimonos na forma de livros ocidentais, cores suaves e olhos mais elaborados
mas a palavra “pegou” para definir para dar ênfase nas expressões faciais.
narrativas ilustradas, e com o surgimento Os Shoujo Mangá (mangás para
das primeiras revistas em quadrinhos na garotas) têm até hoje olhos enormes. Mas
Europa por volta de 1860/70, publicações há outra característica que os diferem dos
similares surgiram no Japão de 1874 em Shounen Mangá (mangás para rapazes):
diante se autodenominando “mangás”. os corpos dos personagens são em geral
Por volta de 1900 já havia várias mais esguios ou se preferir, “esticados”,
revistas de mangá para rapazes, moças e sempre fazendo movimentos suaves e
crianças – separadinhas por sexo e idade, delicados. Esse diferencial físico e de
exatamente como são publicadas até hoje. linguagem visual vem das raízes do Shoujo
Com o surgimento de várias as
publicações e a criação de um mercado
consumista, as revistas de mangá
desenvolveram formas particulares de
Então, se Desenho
Olhos Grandes, já
Desenho Mangá?
A resposta para esta pergunta é NÃO!
O mangá é muito mais do que apenas olhos
grandes. Há todo um conjunto de técnicas
e detalhes que precisam ser dominados
como enquadramentos de cena, linhas de
movimento, narrativa cinematográfica,
onomatopeias, arte-final, sombreamento
e aplicação de retícula (os “tons cinza”
que dão volume ao desenho). Quando se
domina o conjunto destas técnicas é que
se pode falar com relativa segurança que se
desenha parecido com mangá. E mesmo
assim, mangá é o nome para as histórias em
quadrinhos desenhadas no Japão, não o nome
de um estilo de desenho. Portanto, mesmo
que você desenhe uma história com
todos os quesitos requeridos à perfeição,
ainda não será tecnicamente considerado
um mangá, porque não foi desenhado
no Japão. Mas debate-se ultimamente o
surgimento de um estilo chamado “mangá
Arthur Garcia, um dos desenhistas brasileiros que foi influenciado diretamente pelos mangás.
brasileiro”, onde se enquadram todos os de desenho e modo de desenhar os “olhos
desenhos feitos por brasileiros, imitando o grandes”, e então pratique um pouco mais.
mangá japonês. Uma discussão que ainda Depois de tudo isso, num processo de vários
está longe de terminar. Por hora, o mais anos (e não meses como alguns pensam)
importante é que os desenhistas brasileiros de muita prática, você sem perceber terá se
aprendam a desenhar bem e absorver tudo tornado um desenhista. Achou que seria
que o mangá tem de bom a oferecer. fácil e rápido? Nada disso, caro leitor! Como
Mas para ser um bom desenhista de tudo o mais na vida, ser um bom desenhista
mangá é preciso estudar muito e praticar exige treino, muito treino, com doses
bastante (entenda-se, desenhar todo dia). fortes de determinação, força de vontade
Depois, praticar mais ainda. Pesquise e paciência. Todo esforço é recompensado,
referências e pratique mais (copiar desenhos quando não se desiste do objetivo.
de um mangaká que se gosta não é pecado Mas se você não quer ser um mangaká
e é até recomendável – desde que não profissional, mas apenas desenhar por
vire vício). Aprenda na prática a técnica hobby ou só ler como passatempo,
e os conceitos enquanto desenha mais. então dispense estes conselhos.
Desenvolva no processo seu próprio estilo Escolha seu caminho e seja feliz!
Nem tudo é
Olho Grande
Acha que todos os mangás têm
olhos grandes? Nada disso! Há exceções
característica tão forte e marcante que
se destaca na primeira olhada, como as
à regra, e em alguns casos, nem há histórias em quadrinhos do Japão. Mas o
como diferenciar um mangá sem mangá é muito mais que olhos grandes,
olhos grandes de um quadrinho norte- pois outras características são: traços
americano ou europeu. Conheça a seguir limpos, riqueza de detalhes em cenários
alguns dos desenhistas japoneses que não e maquinaria, uso constante de linhas de
se deixaram seduzir pelos olhos grandes! fundo para simular movimento, ângulos
cinematográficos e closes dramáticos
Marca Registrada fazem parte desta técnica. Atualmente,
Para a maioria das pessoas, identificar vários países orientais imitam o estilo
um mangá (literalmente “quadrinhos
irresponsáveis” – no sentido divertido da
palavra), como são chamadas as histórias
em quadrinhos publicadas no Japão, é
fácil: se os personagens tiverem olhos
grandes e brilhantes – bingo – mangá
na certa! Este detalhe no rosto dos
personagens de quadrinhos e desenhos
animados japoneses se tornou uma marca
registrada reconhecida mundialmente, e
conquistou uma legião de fãs em todo o
mundo. Nenhum outro país possui uma
mangá, criando suas próprias versões há mais de 70 anos, as histórias nos
como o Manhwa da Coreia e o Manhua mangás em algum momento terminam,
da China. Mas por que o mangá faz sendo substituídos por uma nova série
tanto sucesso? assim que a anterior perde o interesse
do público. Graças a esta constante
Como não é este o objetivo desta renovação, o mangá está sempre
matéria, segue uma explicação rápida: atualizado com os gostos do público
o mangá é produzido no Japão para leitor.
públicos direcionados por sexo e idade,
com o grau de “realismo” e ”violência” Quanto à origem dos “olhos
aumentando juntamente com a idade grandes” corrigimos uma informação
do leitor. Usando uma linguagem visual passada erroneamente em várias
cinematográfica e histórias emotivas matérias e livros: Osamu Tezuka não é
onde os valores humanos positivos são o criador dos olhos grandes no mangá!
explorados sem apelar para exageros Sem dúvidas ele foi o mais criativo
irreais como vemos, por exemplo, nos e versátil mangaká (desenhista de
desenhos do Pernalonga, o mangá se mangá), a ele devemos a disseminação
torna mais “convincente” e por efeito, do estilo e a criação das primeiras
agrada a seus leitores. E ao contrário séries animadas para TV no Japão com
de personagens como o Superman, seus personagens de olhos enormes.
publicado em constantes “renovações” Sem Tezuka, o mangá não seria o
que é hoje, e ele faz por merecer o Clover” em abril de 1934, considerada
título de “Mangá no Kami-sama” (o precursora do mangá moderno. Ele
Deus dos Mangás). Mas os olhos fazia ilustrações com personagens
grandes já existiam desde a década de de olhos grandes, influenciado como
1920, criados por Jun-ichi Nakahara vários outros mangakás da época pelas
(1913-1983), ilustrador que trabalhou belas personagens de olhos grandes
inicialmente como desenhista de moda presentes nas ilustrações de Jun-
até ser convidado para fazer as capas ichi. Estes e outros desenhistas dos
da revista de mangá feminino “Shoujo anos 1920/30, que seguiram o estilo
no Tomo” (Amiga das Garotas) até o do ilustrador Jun-ichi, são de fato
final dos anos 1930. Apesar de não os primeiros mangakás a desenhar
ter sido um mangaká, as personagens personagens com olhos grandes e
com olhos grandes de Jun-ichi brilhantes.
impressionaram e influenciaram vários
desenhistas, criando assim os olhos
grandes utilizados até hoje. Outro
Mangás Diferentes
Mas se engana quem acha que
grande expoente dos “olhos grandes”
todo mangá é desenhado com olhões,
– e este sim um mangaká – foi Katsuji
pois assim como nem todo brasileiro
Matsumoto (1904-1986), que publicou
joga futebol ou samba, nem todos os
a história de 16 páginas “Nazo no
As Exceções da Regra
A seguir, apresentamos três
mangakás que, definitivamente, não
seguem a “cartilha dos olhos grandes”.
Nós os selecionamos entre quase meia
centena de outros artistas japoneses por
dois motivos: serem desconhecidos no
Brasil e desenharem bem fora do padrão
japonês. Qualquer um deles poderia
publicar tranquilamente na Europa ou
Américas, e ser confundido com um
desenhista de quadrinhos local! Além
dos estilos de desenho incomuns para
um japonês, suas histórias são também
bem diferentes do que esperamos de um
mangá tradicional, como Cavaleiros do
Zodíaco ou Naruto. Mas ainda assim,
são mangakás!
Matsumoto Jiro
Nascido em 1970, publica
profissionalmente desde 1996. Possui
um estilo de desenho bem rabiscado
e muito diferente do que estamos
acostumados a ver nos mangás,
com seus traços limpos e definidos.
O resultado final lembra mais um
rascunho, mas um rascunho muito
bem feito, do ponto de vista visual e
narrativo! Suas histórias não abordam
um único tema, e Jiro já tratou de
quase tudo utilizado no estilo seinen
(mangás para homens adultos): drama,
psicológico, ação, fantasia, ficção
científica, tragédia, aventura e até
mesmo robótica! O ponto comum
em quase todas as suas histórias são
personagens sofridos, angustiados,
traumatizados – por vezes, no limite
da sanidade – e que ganham contornos
bem mais realistas e dramáticos
justamente por causa do desenho que
mais parece um rascunho. Ah, sim, os
“olhos de mangá” ainda estão presentes
em suas personagens femininas – mas
quase desaparecem por conta dos
traços rachurados. Seus trabalhos de
maior relevância são: Alice in Hell
(Alice no Inferno) e Mikai no Hoshi
(Planeta Incivilizado).
Motofumi Kobayashi
Nascido em 1951, este mangaká
veterano desde o início de sua carreira
em 1985, desenha apenas história
militar – para ser mais exato, Segunda
Guerra Mundial – e sempre do ponto
de vista do soldado alemão! Para
nós que conhecemos as atrocidades
nazistas, espanta que existam
quadrinhos onde soldados das temíveis
tropas SS sejam os personagens
principais, mas há explicação para
isso. Os trabalhos de Kobayashi são
publicados em revistas de modelismo
(que tratam principalmente de
miniaturas dos tanques da Segunda
Guerra), onde histórias retratando
combates verídicos, descritos em
detalhes, são de interesse dos leitores.
Seu traço em absolutamente nada
lembra os tradicionais mangás –
está muito mais para um desenhista
europeu do que para um japonês! Mas
como seu alvo é um nicho de público
interessado apenas na Segunda Guerra
e em miniaturas de tanques alemães,
seu traço e estilo de narrativa estão no
lugar certo! Alguns de seus trabalhos
mais conhecidos são Panzer Vor!,
Panzergrenadier, The Blacky Knight
History e as biografias em “mangá”
do Marechal Rommel, Michael
Witmman (comandante de tanque das
SS) e Jochen Peiper (comandante nas
Waffen-SS). Também fez um ótimo
mangá sobre uma hipotética invasão
russa à ilha de Hokkaido em algum
ano da década de 1980 (Battle Over
Hokkaido) e sua continuação em
Tóquio (Tokyo Wars). Seu trabalho
mais conhecido no Ocidente é Cat
Shit One, chamado nos EUA de
Apocalypse Meow, onde bichinhos
fofinhos como coelhos e gatos
antropomórficos tomam o lugar dos
humanos durante a Guerra do Vietnã.
Yukinobu Hoshino
Nascido em 1958, seu traço é tão
“americano”, que poderia facilmente
desenhar uma edição do Homem
de Ferro e ninguém perceberia se
tratar de um mangaká! Desde seu
primeiro trabalho publicado em
1975, ele se dedica a um único
tema: ficção científica! Mas sem as
esperadas batalhas espaciais épicas.
Hoshino leva ficção muito a sério,
e suas histórias sempre tratam de
exploração e desenvolvimento espacial,
de mundos alienígenas exóticos e suas
formas de vida ainda mais exóticas;
das velhas superstições, sonhos,
cobiças e pecados humanos levados
ao espaço. A única coisa que pode
ser identificada nos desenhos que faz
como sendo “mangá”, é o capricho
nos detalhes, seja nas naves espaciais
ou nos mundos alienígenas nascidos
de sua imaginação. Seu estilo de
narrativa lembra muito o do escritor
de ficção científica Arthur C. Clarke
(2001 – Uma Odisseia no Espaço,
A cidade e as Estrelas e Encontro
com Rama entre outras obras). Não
à toa o trabalho mais conhecido de
Hoshino – e um dos melhores mangás
de FC já feitos – se chama 2001
Nights, uma epopeia espacial com
três volumes (700 páginas) narrando
quase 400 anos da evolução das viagens
espaciais até a humanidade alcançar
as estrelas. Outros mangás de sua
autoria são: Kotetsu no Queen (A
Rainha Blindada), Stardust Memories,
Blue City, Munakata Kyoju Denkiko
(Considerado Professor Lendário
Munakata) e uma rara exceção, El
Alamein no Shinden (Templo de El
Alamein), uma coletânea de histórias
com soldados do Afrika Corps alemão,
na Segunda Guerra.
Os Tempos Negros
Como já disse um editor de mangá
numa palestra anos atrás, o mangá não
começou quando você, leitor, nasceu.
Há um longo caminho até chegarmos
aos dias atuais, onde comprar
mangás ficou fácil e barato com
dezenas de títulos disponíveis
confortavelmente em qualquer
banca de esquina. Existiram
tempos negros em que ser fã
de mangás no Brasil era um ato
de coragem. Como não havia títulos
em português, a saída era comprar nas
livrarias da Liberdade que importavam
mangás do Japão. Mas os atendentes
destas livrarias não viam com bons
olhos “gaijins” comprando mangás. Era
preciso persistência (e dinheiro) para muita persistência e a coragem de
comprar um mangá importado, sendo um editor para que os primeiros
tratado pelos lojistas com desprezo e desenhos no estilo mangá desenhados
desconfiança. Mostrar mangás para por brasileiros fossem publicados, e
amigos, parentes e colegas de escola era mesmo assim, trinta anos se passaram
procurar encrenca. Afinal, só “malucos” desde a primeira tentativa até que as
viam aquelas revistas com quadrinhos publicações de mangá ganhassem um
“de trás para frente” e cheios daqueles espaço digno nas bancas e livrarias.
“desenhos estranhos de olhos grandes”. Pesquisar o começo da história do
Desenhar no estilo mangá era mangá no Brasil – seja ele desenhado
considerado quase um sacrilégio! Por aqui ou importado – foi difícil. Não há
total desconhecimento e preconceito, os nenhum livro sobre o assunto, e mesmo
editores mais “esclarecidos” diziam que esse as editoras que os publicaram não se
tipo de desenho “não vendia” no Brasil, importaram em fazer registros precisos.
porque ninguém gostava dele (na verdade, Apesar das dificuldades, conseguimos
os editores é que não gostavam, e reunir de maneira cronológica e
achavam que os leitores pensavam resumida muitas informações que
como eles. Mas nenhum destes agora apresentamos a você. Haverá
profissionais se deu ao trabalho de muitas referências de datas, pessoas
fazer uma pesquisa para confirmar e editoras, portanto, é um texto que
esta opinião). Foi preciso exige atenção. Vamos começar?
Primeiras Décadas A Primeira Geração dos
Os mangás chegaram ao Brasil junto Mangás Nacionais
com primeira leva de colonos japoneses As possibilidades de publicações usando
a partir de 1908. No Japão, desde 1878 o estilo mangá eram virtualmente nulas –
já havia revistas periódicas. Conforme tanto por desconhecimento da existência
os colonos japoneses chegavam ao deste estilo de desenho como desinteresse
Brasil e iam criando núcleos e pequenas comercial dos editores. Foi uma iniciativa
comunidades, surgiram livrarias que isolada que publicou a primeira revista
importavam livros e revistas do Japão, com desenhos no estilo – chamemos assim
em encomendas por navio que chegavam – “mangá brasileiro”. A Editora Edrel,
mensalmente. Entre estas revistas, fundada em 1966 por Salvador Bentivegna,
é claro, vinham também os mangás. Jinki Yamamoto e Minami Keizi, que ficou
Existiram mais de 20 livrarias e sebos responsável pela parte editorial da Edrel,
que vendiam exclusivamente revistas em fins de 1966 lançou a revista “Álbum
japonesas entre as décadas de 1950 e Encantado” com lombada quadrada e capa
1980, só no bairro da Liberdade em São dura com fábulas adaptadas ou escritas pelo
Paulo. Houve também uma “locadora próprio Minami e ilustradas por Fabiano
de mangá” que alugava revistas por 10% Dias. Os desenhos de Osamu Tezuka
do valor de capa por dia. Haviam outras foram a base para os desenhos de Minami e
livrarias nos estados de São Paulo, Santa Fabiano. Foi a primeira publicação nacional a
Catarina e Paraná. Mas a apesar da
grande quantidade de revistas importadas Claudio Seto (1944 –
do Japão, elas ficavam limitadas aos 2008), um dos mais
produtivos desenhistas
japoneses e seus descendentes, sendo da época da Editora
muitos poucos os brasileiros que tinham Edrel. Ao lado,
duas das revistas
acesso ou interesse nestas publicações. desenhadas por
ele: O Samurai
Os mangás, por décadas, ficaram (1968) e O
limitados à colônia japonesa no Brasil. ninja (1967).
ter desenhos de mangá feitos por brasileiros. da Cova; Paulo Fukue fazia Tarun, Super
Com um bom retorno nas vendas, Heros, Pabeyma e estórias avulsas de faroeste
Minami decidiu investir no “mangá e terror. Apesar da forte censura por conta da
nacional”, reunindo em torno de si vários ditadura militar, Minami tomou o cuidado
desenhistas – em sua maioria, nisseis – de não abordar temas políticos, religiosos ou
todos eles tinham em comum gostar e de alguma forma polêmicos. A Edrel estava
serem influenciados pelo mangá: Chuji indo muito bem nas vendas, tendo começado
Seto Takeguma (mais conhecido como negociações para publicar mangás japoneses
Cláudio Seto), os irmãos Paulo I. Fukue e com as devidas adaptações para o sistema
Roberto Fukue, Fernando Ikoma, Lucílio ocidental de leitura. Mas em 1972, por
C. Zawadzki e outros. Inspirando-se nas desentendimentos sobre a linha editorial com
publicações japonesas onde as revistas são Jinki Yamamoto (Salvador Bentivega já havia
divididas por sexo e idade, Minami criou se desligado da empresa), Minami saiu da
duas linhas editoriais: uma para jovens e Edrel. Em seu lugar ficou Paulo Fukue, que
outra para adultos (onde foram feitos os um mês depois de assumir o posto foi preso e
primeiros quadrinhos eróticos do Brasil surrado nas dependências da Polícia Federal
no estilo mangá). Surgia assim a primeira não ter sido cauteloso com o que publicava
geração de desenhistas brasileiros de mangá. como Minami. Após este incidente, Paulo
Para dar conta da produção, Minami Fukue e Jinki saíram da Edrel, que entrou em
organizou três equipes de trabalho que decadência por má administração dos novos
tinham muito para desenhar: Cláudio Seto
tinha proprietários, encerrando suas atividades
era responsável
re pelas revistas O Samurai, em 1975. Por sua iniciativa em publicar as
Flavo Ninja e Maria Erótica; Fernando
Flavo, primeiras revistas com mangás desenhados
Ikoma
Ikom produzia Cibele, a Espiã de Vênus, Satã, no Brasil, Minami Keizi é chamado por
Alma Penada, Fikom, Play Boy e A Turma
a Alm muitos de “o pai do mangá brasileiro”.
Minami
Min ami Ke
Keizi
eizi (1
(1945
945-2009
20 – na fotoo, em exposição dos desenhistas da
Editora Edrel em 1970), mes esmo sob pr press
essão e vigilância constante da
ditadura militar, publicou vár
várias revistas inspiradas nos mangás.
Grafipar, uma Breve Era de influências do mangá, estes eram tentativas
Prata “puras” de seguir o estilo. Super Pinóquio era
Em 1977, em Curitiba, a Editora Grafipar uma “cópia carbono” do Astro Boy de Osamu
lançou a revista Personal, com quadrinhos Tezuka, e Robô Gigante era claramente
eróticos nacionais – alguns deles no estilo inspirado no anime (desenho animado)
mangá. Como venderam bem, foram Gundam, com personagens copiados de
lançadas várias revistas de quadrinhos outras séries de mangá da época. Em
eróticos produzidas por desenhistas 1983 a Grafipar encerrou as publicações
brasileiros: Claudio Seto, Roberto de quadrinhos/mangás brasileiros por
Kussumoto, Ataíde, Shimamoto, Magno. problemas administrativos. Mas nos seus
O sucesso destas revistas entre 1979 e 1980 seis anos de publicações, surgiu a segunda
abriu as portas para uma nova geração de geração de quadrinhistas brasileiros e
desenhistas/roteiristas/editores que em sua manteve, apesar de por um breve período,
maioria ainda estão na ativa, como Franco a publicação de “mangás brasileiros”.
de Rosa, Walmir Amaral, Imamura, Rodval
Matias, Mozart Couto, Gustavo Machado, Piratarias, Clubes
Paulo Hamasaki, Bonini, Sergio Lima e e Publicações
Watson Portela. Em 1980 o departamento Paralelo ao fim dos “mangás
de arte passou ao comando de Claudio Seto brasileiros” da Grafipar, pequenas editoras
e colocou-se nas capas o selo “Bico de Pena”. começaram a publicar mangás eróticos
As revistas da Grafipar então melhoraram sem licença ou direito autoral pago. O
a qualidade e começaram a estampar um método seguido era mais ou menos o
anúncio provocativo com os dizeres “Leia mesmo: compravam-se revistas de mangás
Quadrinho Nacional”. Desta época, três eróticos importados do Japão nas livrarias
títulos no estilo mangá merecem destaque: do bairro da Liberdade, tiravam-se
Xanadu (roteiro e desenhos de Watson xeroxes das páginas para serem retocadas
Portela), Robô Gigante (Watson Portela e e “traduzidas” – na maioria dos casos, as
Franco de Rosa) e Super Pinóquio (roteiro traduções eram inventadas já que não
e desenhos de Cláudio Seto), todos com havia ou não se queria pagar um tradutor.
apenas uma edição. Diferentes de outras Centenas destas publicações piratas
revistas da Grafipar como Maria Erótica e chegaram às bancas entre 1984 e 2005,
Katy Apache de Cláudio Seto, que tinham feitas por uma vintena de editoras. Apesar
Três revistas de “mangá nacional” publicadas na fase final da Editora Grafipar: Robô Gigante, Super Pinóquio e Xanadu.
como Erica Awano e
Eduardo Francisco.
Por volta de 1987 uma
editora cujo nome não
conseguimos descobrir
publicou na integra o
primeiro volume do mangá
Mazinger Z, de Go Nagai,
o primeiro robô gigante
pilotado dos mangás. Foi a
primeira revista publicada
no Brasil (e provavelmente
no Ocidente) que seguiu a
forma japonesa de leitura
da direita para a esquerda.
Mas a editora fechou e a
venda foi tão baixa que é
da qualidade (e ética) questionável destas muito raro achar um exemplar da única
publicações, graças a elas muitos mangás edição publicada, se tornando um item
eróticos foram lidos por brasileiros. quase lendário nas coleções dos fãs.
Em 1985, a Nova Sampa Diretriz Em 1988 houve duas tentativas
Editoral publicou a minissérie de cinco valentes: a Editora Dealer lançou o
edições Drácula – A Sombra da Noite, com primeiro capítulo do mangá de ficção
roteiro de Ataíde Braz e desenhos de científica Cobra, esta editora pretendia
Neide Harue, imitando o estilo clássico lançar também o mangá Baoh, mas
dos mangás femininos. Foi um grande ficou só nisso. A Editora Cedibra
sucesso de vendas, além de ser a primeira lançou junto com seu pacote de revistas
série de mangá desenhada no Brasil da editora norte-americana First
publicada até o fim, num total de quase
300 páginas. A Nova Sampa publicaria
O Retorno de Drácula – Um Vampiro no
Ragtime com a mesma dupla de autores
em 1987, mas não repetiu o sucesso
e ficou apenas na primeira edição.
Surgiram na década de 1980 os
primeiros clubes para fãs de mangá –
Abrademi em 1984 e ORCADE em 1988,
que mantiveram uma longa parceria
com a Gibiteca Municipal Henfil de
São Paulo de 1990 a 2003, se tornando
o único ponto de encontro semanal
para fãs de mangá em todo o país e
também um viveiro de jovens talentos,
onde se encontravam vários desenhistas
novatos que atualmente são profissionais,
Comics, a série Lobo Solitário. Foi uma 1990 a primeira fase do mangá
publicação que recebeu uma impressão Criyng Freeman numa minissérie de
de alta qualidade e que teve muita quatro partes. Em setembro desse
repercussão da imprensa na época, mesmo ano, publicou em formatinho
durando nove edições. Mas a Cedibra parte da série Lobo Solitário, num
enfrentou problemas financeiros total de 27 edições, até 1996.
por conta dos frustrados planos
econômicos da era Sarney, tendo AC e DC – Antes de
que cancelar todas as publicações. Cavaleiros e Depois
Em dezembro de 1990 até 1998 de Cavaleiros
é lançada com grande divulgação O ano de 1994 se tornaria um
na imprensa a versão colorida e marco para mangás e animes no
invertida de Akira pela Editora Globo. Brasil devido ao lançamento na TV
Aproveitando o sucesso de Akira, a Manchete do anime Cavaleiros do
Editora Abril publicou seus primeiros Zodíaco, que foi um sucesso estrondoso
mangás: Mai a Garota Sensitiva com
oito edições entre agosto e novembro
de 1992, e A Lenda de Kamui com três
edições entre janeiro e março de 1993.
A Nova Sampa publicou em
de audiência e milhões de bonecos 1995 até hoje. A maioria eram cópias
dos personagens da série vendidos pioradas da Herói e não passaram da
nos três anos seguintes. Seguindo a primeira edição, pois o objetivo delas
linha do oportunismo, surge em 1994 era pegar carona no sucesso que a
a revista Herói, criada pela Editora Herói fazia enquanto teve Cavaleiros
Acme em parceria com a Nova Sampa. do Zodíaco na capa. Mas entre todas
Ela vinha com matérias sobre filmes, estas, algumas merecem destaque
cinema e quadrinhos, mas sempre porque foram realmente informativas.
estampando na capa da alguma A Nova Sampa publicou seis
imagem de Cavaleiros do Zodíaco em edições da Japan Fury, a primeira
publicações semanais (algumas vezes, revista brasileira totalmente dedicada
até duas vezes por semana) e vendendo a matérias sobre animes e mangás
centenas de milhares de exemplares. japoneses. Com o fim da Japan
Após a Herói, mais de setenta outras Fury sua equipe foi para a Editora
revistas “informativas” sobre anime/ Magnum, onde lançou em 1996 a
mangá/cinema foram lançadas de revista Animax, que durou 50 edições
e publicou duas revistas com “mangás outros que ainda estão desenhando
nacionais” em 1997: Megaman com o páginas de quadrinhos/mangá neste
personagem de videogame de mesmo momento – em sua maioria, para
nome, com 16 edições, e Hyper editoras nos EUA e Europa.
Comix – uma revista satirizando O sucesso de Cavaleiro do Zodíaco,
os próprios mangás e animes que aliado às revistas informativas,
durou 14 edições. Para recrutar os divulgaram o mangá e o anime entre
desenhistas destas duas revistas, foi crianças e jovens, estimulando o
feita uma campanha pela Animax surgimento de dezenas de milhares
convidando os leitores a enviar testes de fãs por todo o Brasil. Emissoras
de desenho para avaliação. Mais de 600 de TV começaram, então, a procurar
testes foram enviados somente para o freneticamente por mais animes e
Megaman, o que permitiu uma seleção as editoras por mais mangás. Afinal,
rigorosa. Os melhores desenharam agora a coisa havia ficado “séria”,
uma edição inteira do Megaman ou e as grandes empresas finalmente
histórias curtas na Hyper
er Comix. Pela perceberam quão lucrativos aqueles
primeira vez no Brasil foi aberta uma “desenhos de olhos grandes” er r am.
eram.
oportunidade para desenhistas
nhistas novatos,
epetido.
um feito até hoje não repetido. 2000 em diante: a
cionados,
Entre os que foram selecionados, Avalanche de Mangás
eira geração
alguns formaram a terceira Depois do sucesso de Cavaleiros
os de mangá:
de desenhistas brasileiros g do Zodíaco, o mangá e o anime se
Érica Awano, Eduardo Francisco, tornaram populares no Brasil, com
Paulo Henrique, Fábio Paulino, editoras negociando direto no Japão
Denise Akemi, Roberta Pares, entre
a publicação de vários títulos: A Editora Conrad (antiga Acme)
A Editora Trama (depois rebatizada entre 2001 e 2009 publicou vários
Talismã) foi sem dúvidas a que mangás de sucesso, como Dragon
mais investiu no “mangá brasileiro” Ball, Cavaleiros do Zodíaco, Battle
nesta época, lançando em 1998 a Royale, Monster, One Piece, Dr. Slump,
minissérie de quatro partes Street Fushigi Yuugi, Gen Pés Descalços,
Fighter Zero 3, desenhada por Érica Evangelion, Adolf, Sanctuary e vários
Awano, que em 1999 desenharia outros. Alguns destes títulos não
também Holy Avenger – uma saga foram integralmente publicados
com 40 edições mais dois especiais, porque a editora foi vendida,
se tornando o “mangá brasileiro” de sendo seu futuro ainda incerto.
maior sucesso e duração já publicados. A Editora JBC entrou junto com
Em 2000 é lançada revista Anime a Conrad na briga pelo mercado dos
EX, continuação da Animax, de mangás em 2001, lançando títulos de
onde surgiu em 2001 a Mangá EX, peso: X 1999, Rayearth, Sakura Card
a única revista informativa no Brasil Captors, Angelic Layer, XXX Holic,
dedicada exclusivamente aos mangás, Love Hina, Negima, Inu Yasha, Bastard,
mas que durou apenas três edições. Futari H, Death Note, Hellsing, e a série
Ainda pela Talismã, em 2001 a revista nacional com influências do mangá
Defensores de Tóquio tentou manter Combo Rangers, de Fábio Yabu.
o sistema de abrir oportunidades a Mais recentemente, a partir de
desenhistas novatos no estilo mangá, 2003, a Editora Panini também
mas durou somente três edições.
começou a disputar espaço nas bancas na bancas! Uma coisa é certa: o mangá
com uma linha extensa de mangás: chegou com força. E para ficar!
Naruto, Éden, Fullmetal Alchemist, Angel
Sanctuary, Astro boy, Berserk, Wolf ’s Sem Espaço
Rain, Black Lagoon, Bleach, Claymore, O lado negativo de tantos títulos
Highschool of the Dead e vários outros. de mangás japoneses nas bancas:
Em menos de dez anos, de uma dúzia eles literalmente engoliram o espaço
de títulos publicados
p no Brasil,, mais de que
q poderia
p ser ocupado
p por revistas
p
100 séries de mangá chegaram às bancas, com desenhistas nacionais. Com a
ocupando um bom espaço das prateleiras. chegada massiva de mangás “made in
Panini e JBC mantêm uma média de Japan” devidamente licenciados
licencia nas
dez títulos novos por ano, cada uma. O bancas, oportunidades para brasileiros
fã de mangás não pode reclamar, pois desenharem mangá diminu
diminuíram cada
nunca houve tantas revistas disponíveis vez mais, se tornando quase inexistentes
de 2003 em diante. Aconte
Aconteceram e
acontecem tentativas isolad
isoladas feitas
por editoras de pequeno po porte, como a
Camargo & Moraes com as séries Fighter
Dolls, Sad Heaven e Valiant Hook, em
2002, mas o sucesso de Holy
Hol Avengers
não se repetiu em nenhum título. O originais. Resta então aos desenhistas
quadrinho nacional ficou espremido nas nacionais trabalharem para editoras dos
bancas entre os comics norte-americanos EUA e Europa, onde apesar de haver
e os mangás, e esta é uma situação que mais mangá sendo publicado que no
ainda perdura, sem perspectivas de Brasil, há espaço para desenhistas locais
melhora, já que para as editoras interessa e até de outros países. É a globalização
o mangá original que já vem pronto salvando o mangá nacional, quem diria!
e é certeza de boas vendas. O mesmo
problema dos anos 1960 ainda persiste: Fontes de Pesquisa para esta matéria:
nenhum editor quer arriscar e publicar Sobre a Editora Edrel
uma revista 100% nacional, pois as Site Guia dos Quadrinhos - http://
vendas não são tão garantidas quanto um www.guiadosquadrinhos.com
mangá japonês de renome. Mas a culpa Artigo por Elydio dos Santos
é, principalmente, dos leitores brasileiros, na Gibiteca da USP - http://
que só gostam de comics/mangás www.eca.usp.br/gibiusp
Origens
As primeiras características do
mangá apareceram no período
Nara (século 8 DC), com
os emakimono –
pergaminhos com
ilustrações
intercalando
textos, contando uma história à
medida que eram desenrolados. Por
cerca de oitocentos anos o emakimono
foi a única forma de leitura para
entretenimento e narrativa de fatos
históricos que unia texto e imagem.
O mais antigo emakimono existente
data de 1.130, é uma adaptação do
milenar conto Genji Monogatari, e
o mais famoso é o Chojugiga, que se
Duas cenas do Genji Monogatari, o emakimono mais antigo exis- acredita, foi feito pelo monge Kakuyu
tente, datado de 1.120 AC. No meio, close em cena de um ukiyo-e. Toba, e está até hoje no templo
Kozangi, em Kyoto. O emakimono
foi a primeira forma de leitura a ter
imagens sustentando a narração, uma
característica herdada pelos mangás
modernos.
Durante o período Edo (ou
Shogunato Tokugawa – 1603 a 1868),
chegam ao Japão os livros ocidentais,
que em pouco tempo substituem os
emakimono. Inicialmente, as imagens
eram usadas para ilustrar romances e
poesias, mas não demoraram a surgir
livros para ver, e não apenas para ler.
Outra vertente ganha força com o
surgimento dos ukiyo-e no século 16 –
ilustrações produzidas em série usando
matrizes de madeira. Isso permitiu à
população de classe média adquirir
ilustrações por preços acessíveis, e
também ajudou sua difusão pelo país.
Mas é com Katsushika Hokusai
(1760-1849), conhecido artista de
ukyo-e, que surge pela primeira vez
a palavra “mangá”, em sua célebre
coleção de caricaturas publicadas em
15 volumes, de 1814 até 1834, em
Nagoya, e chamada por ele mesmo
de Hokusai Mangá (Desenhos
Irresponsáveis de Hokusai – com o
“irresponsável” aplicado no sentido
descontraído, relaxante, dos desenhos).
Nesta série, Hokusai retratou paisagens,
o cotidiano das pessoas, criaturas
sobrenaturais, flora e fauna. Estes mangás
Foto de como é guardado um emakimono.
– os chamemos assim – foram sucesso Mas a ideia pegou, surgindo em 1875 a
imediato de vendas e ele continuou a Kisho Shimbun, claramente inspirada
produzi-los até o fim de sua vida. na Eshinbun Nipponchi. Seguiu-se
Os mangás ainda não tinham sua a Marumaru Chinbun, em 1877, e a
forma atual, sendo muito mais livros Garakuta Chinpo, em 1879.
de ilustrações com um pouco de texto. Em 1895 surge a Shounen Sekai
Mas com a abertura do Japão ao resto (Mundo Jovem), a primeira revista de
do mundo após a queda do shogunato mangá dedicada exclusivamente aos
em 1868, começam a surgir jornais e adolescentes masculinos, criada por
revistas influenciados pelas publicações Iwaya Sazanami, um famoso escritor
ocidentais, e destas a mais marcante para crianças. A Shounen Sekai era
foi a revista britânica Punch Magazine, essencialmente nacionalista e tratou
com suas caricaturas sátiras e algumas principalmente da primeira guerra
das primeiras tiras seqüenciais de sino-japonesa (1894/1895). Em
quadrinhos. Em 1874 é publicada a exatos 21 anos após o surgimento da
primeira revista totalmente dedicada ao Eshinbun Nipponchi, e antes da virada
mangá – a Eshinbun Nipponchi, criada do século, as revistas de mangá como
por Kanagaki Robun e Kawanabe conhecemos hoje, com quadrinhos
Kyosai. Fortemente influenciada pela narrando uma história, já estavam
Punch Magazine, ela não vendeu bem, firmemente estabelecidas no mercado.
sendo cancelada depois de três edições.
Cena do Hokusai mangá (1814).
Algumas das capas desenhadas por Jun-ichi Nakahara (1913-1983) durante a década de 1930 para a revista Shoujo no Tomo. São as
primeiras ilustrações com garotas de olhos grandes, que influenciam inúmeros desenhistas de mangá até hoje.
diversas edições da “Shoujo no Tomo” O ilustrador e mangaká Katsuji Matsumoto (1904-
1986) inovou ao usar ângulos cinematográficos em
(Amiga das Garotas) até o final dos suas histórias, como em Nazo no Clover (à esquerda).
anos 1930. Apesar de não ter sido um
mangaká, as personagens com olhos
grandes de Jun-ichi impressionaram e
influenciaram vários desenhistas, sendo
imitados até hoje.
E a primeira história de mangá
a ter as características atuais dos
mangás – narrativa dinâmica e ângulos
cinematográficos – foi feita por Katsuji
Matsumoto (1904-1986) na história
“Nazo no Clover”, considerada a
história precursora do mangá moderno.
Mas bem antes disso, mais de mil anos
atrás, os emakimono (pergaminhos
com texto e ilustrações) já continham
ilustrações onde os olhos tinham
grande destaque.
Paralelo à evolução das revistas de
mangá, diversas séries surgiram nos
jornais japoneses: Norakuro, de Suihou
Tagawa, e Bouken Dankichi (As
aventuras de Dankichi), de Shimada
Keizo foram as mais populares até os atividades culturais e artísticas foram
anos 1940, quando toda a imprensa, submetidas à censura do governo. Mas
o próprio governo japonês não hesitou
em utilizar os quadrinhos para fins de
propaganda. Por fim, em janeiro de
1941 o governo proibiu a continuidade
das revistas de mangá, devido à
necessidade de papel e tinta para o
esforço de guerra.
Mangá Pós-guerra
O Japão em 1945 havia sido
literalmente bombardeado de volta
até a Idade Média. Toda a infra-
estrutura econômica e industrial do
país estava em ruínas: fábricas, usinas,
cidades inteiras, enfim, precisavam ser
reconstruídas. Foi um tempo terrível
para os japoneses, com pouca comida,
pouco dinheiro e muito trabalho.
Qualquer forma de diversão era um
luxo - fosse cinema, teatro ou mangás. vermelha, do tamanho dos cartões
Com a ocupação militar do país até postais. Eram os precursores dos
1952, os mangakás receberam grande atuais tankobon (os encadernados
influência das histórias em quadrinhos dos mangás semanais), mas um pouco
ocidentais da época, traduzidas e menores. E devido ao baixo poder de
difundidas em grande quantidade nos consumo da população, as “locadoras
jornais e revistas japoneses do pós- de mangá” se proliferam pelo Japão,
guerra. Apesar da vontade das pessoas chegando às dezenas de milhares.
em ler mangá, poucos tinham dinheiro Neste tipo de livraria, loca-se um
para gastar com qualquer forma de mangá ou livro por um décimo do seu
lazer. São criadas então as compilações valor de capa por dia. Elas já existiam
chamadas akahons (livros vermelhos), desde o período Edo, quando eram
produzidos com papel barato e capa alugados livros para as classes mais
privilegiadas da época do Shogunato
Tokugawa, mas após a Segunda Guerra
elas ganharam novo fôlego. Foi graças
a estas locadoras que o gosto por
leitura e mangás continuou forte entre
os japoneses. Pelo menos uma destas
locadoras de mangá funcionou no
bairro da Liberdade em São Paulo até
2011.
O Deus do Mangá
Apesar de não ser o criador dos
olhos grandes, Osamu Tezuka
(1928-1989) aplicou em
seus trabalhos muito do
o que havia sido criado
e desenvolvido pelos
mangakás pré-guerra, como linhas Tesouro), que alcançou grande sucesso,
de fundo que simulam velocidade, vendendo mais de 400 mil exemplares
onomatopeias que se fundem com os – números estonteantes para a época,
quadrinhos, a mudança de ângulos levando-se em conta que mal haviam
de visão a cada quadrinho e é claro, passado dois anos desde que o Japão
os olhos grandes. Os fragmentos do fora arrasado pelos bombardeios.
todo que formam o mangá moderno, Desenhando sem parar, Tezuka
que estavam espalhados em vários produziu dezenas de milhares de
desenhistas, foi reunido no estilo de páginas de mangá, quase dois mil
Tezuka, que crescera lendo mangás personagens e centenas de histórias
dos anos 1930 e assistindo a desenhos em mais de 50 anos de carreira. Entre
animados de Walt Disney, aliado a suas grandes obras, destacam-se Buda,
outras influências, como o Teatro Adolf, Ribon no Kishi (versão animada
No, onde os atores usam maquiagens exibida no Brasil, na década de 1970
que dão destaque aos olhos, ele como “A Princesa e o Cavaleiro”),
desenvolveu um estilo único de Kimba, Doutor Black Jack, Cleópatra –
desenho, que influenciou todos os o primeiro desenho animado erótico de
mangakás que vieram depois dele. Seu longa metragem do Japão – e Atomu
primeiro grande sucesso foi em 1947, ou Astro Boy, a primeira série animada
no formato akahon, com um mangá produzida totalmente no Japão,
escrito por Sakai Shichima, chamado lançada em 1963. Ele também foi
“Shin Takarajima” (A Nova Ilha do amigo e mentor de muitos mangakás
como Fujiko e Fujio (dupla criadora
de Doraemon), Akatsuka Fujio, Akira
“Leiji” Matsumoto (Yamato, Capitain
Harlock e Galaxy Express 999), Tatsuo
Yoshida (criador de Speed Racer) e
Shotaro Ishinomori (Cyborg 009). Em
reconhecimento a todo o seu trabalho
como desenhista, animador e roteirista,
que impulsionou o mangá a ser o que Cyborg 009
é hoje, após seu falecimento foi-lhe (1964-1981)
de Ishinomori
concedido o título de Manga-no- Shotarou
(1938-1998).
Kamisa (O Deus dos Mangás).
Tezuka foi precursor do
merchandising, ao vender a
imagem de seu Astro Boy para
brinquedos, camisetas e outros itens.
Os empresários japoneses então
perceberam que além de simples
entretenimento, o mangá e seu filho
direto – o anime (desenho animado
produzido no Japão), podiam gerar
muitos lucros com produtos que
levassem a imagem dos personagens, e
passaram a patrocinar a produção das
séries para TV. Era o começo de uma
parceria lucrativa que dura até hoje. E um
dos primeiros passos para o fim do mangá.
Doraemon (1969-1996) de Fujiko Fujio –
nome artístico dos mangakás Hiroshi Fujimoto
(1933–1996) e Motoo Abiko (1934-).
O Mal da Vitória
Em 7 de dezembro de
1941, os japoneses atacaram de
surpresa a base naval norte-
americana de Pearl Harbour
no Havaí, causando grande
destruição:
4 encouraçados
afundados e outros 4
seriamente danificados;
2 destróieres afundados
e 1 danificado;
3 cruzadores
danificados; 3 navios
de apoio danificados
e 1 afundado; 188
aviões destruídos e
155 danificados; 2.402
marujos/soldados mortos
(1.104 só no encouraçado
muito maior dos japoneses, visando
conquistar uma série de territórios
ricos em matérias-primas e petróleo.
Enquanto bombas caíam sobre os
navios norte-americanos, a Marinha
e o Exército Imperiais faziam ataques
simultâneos por todo o Oceano
Pacífico e parte da Ásia.
Apenas no mês de dezembro de
1941, tropas japonesas invadiram a
Tailândia (08) que se rendeu em 24
horas, desembarcaram nas ilhas Gilbert
(09), nas Filipinas (10), invadiram
Guam na Ilhas Marianas e ocuparam
Bangcoc (12), e invadiram Bornéu
(16). Em 21 de dezembro, o governo
da Tailândia aliou-se formalmente ao
Japão. Apesar de brava resistência, a
pequena guarnição de fuzileiros na ilha
Wake se rendeu em 23 de dezembro.
O “presente de Natal” foi a rendição
de Hong Kong no dia 25. A maioria
destes alvos foi atacada horas ANTES
do reide sobre Pearl Harbour, mas
devido ao fuso horário do Pacífico, já
se estava em 8 de dezembro.
Durante quatro meses, as
forças japonesas colheram uma
série de vitórias espetaculares com
pouquíssimas baixas, afundaram
muitos navios de guerra aliados,
derrubaram centenas de aviões, fizeram
centenas de milhares de prisioneiros
e conquistaram um vasto território,
ampliando o tamanho do Dai
Nippon Teikoku (Grande Império
do Japão) para fantásticos
7.400.000 (sete milhões e
quatrocentos mil) quilômetros
quadrados – o maior império
marítimo da história da
humanidade! Mas a vitória,
assim como a derrota,
também traz problemas.
A Marinha Imperial, por
mais navios que tivesse, não
possuía o suficiente para controlar
tal vastidão oceânica. As linhas de
suprimento para sustentar as tropas
do Exército estavam esticadas ao
máximo, com cada ilha conquistada
a milhares de quilômetros umas das
outras e precisando de guarnições,
e, consequentemente, de navios
para abastecê-las. Era cada vez mais
difícil concentrar muitos navios de
guerra para um ataque maciço como
acontecera em Pearl Harbour, pois a
frota ficou espalhada em pequenas
esquadras. O Japão tinha, literalmente,
esticado sua força ao máximo, diluindo
sua capacidade de ataque. O auge
desta situação aconteceu em abril
de 1942, quando todos os objetivos
designados no Plano de Guerra
preparado em 1941 haviam sido
conquistados. A segunda fase deste
plano determinava que fosse feita uma
pausa no avanço enquanto as poucas
baixas eram repostas, suprimentos
enviados e se fortificavam os territórios
conquistados. Era uma estratégia
sensata, mas as vitórias tinham sido tão
mais rápidas e fáceis do que o previsto,
que o alto comando japonês foi tomado
por um perigoso excesso de confiança.
O contra-almirante Hara, após
a guerra, definiu esta “doença
psicológica” que contagiou todos
os almirantes e generais japoneses
de “Mal da Vitória”. Os aliados
se mostraram inimigos fracos e
mal organizados e então, ao invés
de consolidar o que já havia sido
conquistado, decidiu-se pular a
segunda fase e continuar o avanço.
Disto resultaram duas batalhas
decisivas, que selaram o destino do
Japão na guerra: a Batalha do Mar
de Coral, em 7 e 8 de maio de 1942,
onde pela primeira vez uma tentativa
de desembarque japonês foi repelida
com a perda de um porta-aviões americanos se recuperavam das perdas
leve japonês contra um porta-aviões nos meses anteriores e colocava seu
pesado americano, e dois outros gigantesco parque industrial a serviço
pesadamente danificados – um para da guerra, fabricando navios, aviões e
cada lado. Apesar de continuar em tanques numa quantidade esmagadora,
vantagem na contagem geral de o que lhes garantiu a vitória. Um misto
porta-aviões, tantos aviões e pilotos de arrogância, excesso de confiança e
experientes foram perdidos pelos ganância dos comandantes nipônicos
japoneses, que dois porta-aviões foi o que determinou a derrota do
pesados não puderam participar da Japão na Guerra do Pacífico.
batalha seguinte em Midway, a 4 de
junho, quando quatro porta-aviões
pesados japoneses foram afundados
O Milagre Econômico
Com o mangá foi praticamente a
com todos os seus 248 aviões, contra
mesma coisa. Durante os anos 1960 e
apenas um porta-aviões americano
1970, conforme a gradual recuperação
e uma centena de aviões abatidos.
econômica do Japão rendia frutos
Com a perda de tantos porta-aviões
(o chamado “milagre econômico
e pilotos experientes, os japoneses
japonês”), as editoras também cresciam
foram obrigados a ficar na defensiva
e produziam cada vez mais revistas.
de seu imenso território, enquanto os
Era uma verdadeira espiral ascendente
econômica, onde quanto mais se
consumia, mais se produzia e mais se
lucrava. No começo dos anos 1980 o
Japão era uma das maiores potências
industriais e financeiras do mundo,
com 90% da sua população estabilizada
na classe média e o melhor sistema
educacional público possível cobrindo
do pré-primário até a faculdade –
e tão padronizado que os alunos
disputam vagas nas escolas não pela
sua qualidade de ensino, mas sim pela
beleza do uniforme (é sério!). Desde
pequenos, os japoneses são estimulados
por este sistema educacional a
ler e a gostar de ler, tornando sua
população na maior consumidora de
livros e revistas do mundo – e o mais
importante, com dinheiro no bolso
para gastar com isso.
Junto com o sucesso dos mangás
que a cada ano vendiam mais, os
animes são produzidos em quantidade
(e qualidade) cada vez maiores graças
à parceria entre os fabricantes de
brinquedos, emissoras de TV e estúdios
de animação. É um esquema simples,
mas muito prático e cômodo: quando
um mangá faz sucesso entre o público
(e não precisa ser um megasucesso),
a editora já negocia os direitos de
exibição com uma emissora de TV
ao mesmo tempo em que vende a
imagem/marca do mangá/anime para
empresas que produzem brinquedos,
doces, videogames e o que mais
puder. Acertados os contratos, é só
chamar algum estúdio para produzir o
anime, exibi-lo na TV e todos lucram
alegremente com o mangá “modinha”
do momento – e ainda há um bônus
para a editora além de todo o lucro
com o licenciamento, pois o anime
sempre ajuda a vender mais algumas
centenas de milhares de tankobons.
É um sistema eficiente, prático e
lucrativo que se desenvolveu durante
a década de 1960, quando surgiram as
primeiras séries de anime para TV, que
se consolidou na década de 1970 e está
em uso desde então, sem mudanças
importantes.
Crescimento Estonteante
e o “Mal do Mangá”
Os anos de 1980 assistiram a um
aumento quase inacreditável na venda e
produção de animes/mangás, que pode
muito bem ser comparado ao avanço
fulminante da Marinha e Exército
Imperiais entre dezembro de 1941 e
abril de 1942. Acompanhe a expansão
comercial e econômica dos mangás:
A partir dos anos 1970 foram
produzidos dezenas de longa-metragens
de alta qualidade apreciados ainda hoje;
em 1984 é lançado Dallos – o primeiro
OVA (Original Vídeo Animation –
anime feito para venda apenas em
lojas e locadoras) que aproveitou os
milhões de videocassetes que estavam
nas residências dos japoneses; depois de
Dallos, vieram OVAs aos montes; todas
as grandes emissoras exibiram várias
séries de animes, alguns com mais de
cem episódios como Saint Seiya, Dragon
Ball e Hokuto no Ken, chegando a
encomendar longas e media-metragens
especiais para exibição exclusiva nas
telinhas.
Os mangás também acompanharam
esta verdadeira expansão “militar” rápida
e feroz, com a multiplicação de títulos nas
bancas. Um exemplo deste crescimento
vertiginoso é a Shounen Jump, que
chegou ao final da década de 1990
com vários “filhos”: Super Jump, Ultra
Jump, Monthly Jump, Business Jump,
Young Jump, Jump Square e Akamaru
Jump. Outras revistas semanais fizeram
o mesmo, criando novos títulos usando
como gancho sua principal publicação
– Nakayoshi, Ribon, Shounen Sunday,
Shounen Magazine e todas as revistas que
na época vendiam milhões de exemplares
tiveram vários “filhos”. Os leitores de
mangá não tinham do que reclamar, pois
havia revista para todas as idades, gostos
e bolsos.
Rumo ao Abismo
Era o “Mal do Mangá” em ação,
mas ainda sem os efeitos desastrosos
que levaram o Japão à derrota em
1942. Não se tratava de uma batalha
entre porta-aviões que se decidia em
um ou dois dias num jogo de esconde-
esconde onde ganhava quem achasse
e atacasse primeiro. O fim do mangá
– bons mangás, torno a frisar – foi
um processo lento e que teve vários
fatores importantes desligados do
mercado editorial em si. É muito fácil
hoje em dia sentarmos e analisarmos
tranquilamente a questão, tendo
todos os fatos e dados à mão. Mas
ali, no calor do momento, com suas
mentes votadas apenas para a próxima
edição e quanto ela venderia, ninguém
envolvido no sistema parou para
pensar nas consequências futuras.
Mas uma coisa é certa: o primeiro
passo rumo ao abismo foi dado pelas
próprias editoras, que aumentaram
violentamente a quantidade de revistas
sem se preocupar seriamente em
manter a qualidade. E tudo foi movido
pelos mesmos motivos que levaram o
Japão às suas derrotas aeronavais em
1942: excesso de confiança, arrogância
e ganância.
Mas não podemos culpar totalmente
as editoras pelo fim do mangá.
Mesmo os editores mais inteligentes
e atentos não perceberam o
perigo se aproximando, pois até
1995 este crescimento continuou
firme e forte, como mostram
as vendas da Shounen Jump de
1995/96, atingindo a marca épica
de quase SEIS MILHÕES E
MEIO de exemplares semanais
vendidos! Para distribuir milhares
de toneladas de revistas na data
certa (tente imaginar quantas
florestas foram derrubadas para
suprir o papel de uma única
edição!), a Jump era impressa
numa velocidade alucinante
em duas rotativas enomes, pois
nenhuma máquina podia dar
conta de tal produção sozinha.
Agora, multiplique isso por mais
umas trinta revistas semanais – a
menor delas com meio milhão de
exemplares/semana, e você terá
uma ideia de como era gigantesco
o mercado editorial do Japão. Mas
esta mamata estava para acabar.
As editoras e o mercado
de mangá em geral teriam nos
próximos anos os seus equivalentes
às batalhas do Mar de Coral
e Midway, e que perderiam
miseravelmente. Estas batalhas
se chamariam “Internet” e
“Videogame”.
Escritório da Editora Shueisha, que publica a revista de mangá Escritóriod a Editora Shogakukan, que publica a revista de
semanal Shounen Jump. mangá semanal Shounen Sunday.
Parte 3
Nas partes anteriores desta
matéria nós apresentamos as origens
do mangá, seu desenvolvimento
e como foi sua evolução artística
e comercial até se tornar uma
das maiores ferramentas de
entretenimento do mundo. Agora,
falaremos de seu sucesso mundial
e paradoxalmente da sua lenta
decadência artística. Sem dramatizar
a realidade, é correto afirmar que
a década de 1990 assistiu o auge
absoluto e uma queda estrondosa
do mangá. E como isso aconteceu?
É o que explicamos a seguir.
Respeito Mundial
Enquanto as vendas de revistas
semanais de mangá no Japão O mundo começou
atingiam números estratosféricos a prestar atenção
nos mangás
até 1996, neste mesmo período o depois de Akira.
mundo conhecia e reconhecia a força
e a qualidade daquelas estranhas
histórias em quadrinhos desenhadas
de maneira cinematográfica e com
personagens de olhos grandes e
brilhantes. Até 1988, apenas uns
poucos países da Europa (em especial
Itália), muitos do Oriente (Coreia
do Sul e China em especial) e quase
nenhum nas Américas sabia o que
era o mangá. Nos EUA, era quase um
quadrinho de gueto, apreciado por
poucos fãs e publicado valentemente
por pequenas editoras. Mas depois do
sucesso mundial de Akira, dezenas
de países ávidos por mais mangás
descobriram a vastidão de histórias,
desenhistas e revistas que há décadas
eram publicadas no Japão. Foi como
se uma gigantesca represa tivesse
suas comportas abertas de repente,
inundando o planeta com séries
de mangá. Editoras que nunca se
interessaram por “aqueles quadrinhos
estranhos com olhos grandes”, de
repente queriam publicar qualquer
coisa – desde que fosse um mangá.
Era um merecido reconhecimento
mundial após décadas de
trabalho duro e competições
entre as editoras japonesas.
Mas a chegada dos mangás no
resto do mundo, muitas vezes veio
como consequência do sucesso dos
animes – os desenhos animados
japoneses. Fazendo o rumo inverso
ao do Japão, onde primeiro o mangá
deveria fazer um (relativo) sucesso
para virar anime, em outros países o
anime chegava primeiro, para então
surgir uma editora interessada em
publicar o mangá para aproveitar
a “modinha”. Mas o resultado,
de qualquer forma, foi o mesmo:
surgiram em dezenas de países
legiões de fãs de anime/mangá
que se renovam continuamente
até hoje. Sem dúvidas, é uma
das mídias de entretenimento
com maior sucesso no mundo.
Vale citar aqui que, a despeito
do feroz sucesso que Akira teve no
Brasil quando de seu lançamento
em 1988, depois dele pouquíssimos
mangás foram publicados até
a explosão de títulos em 2001.
Nem mesmo a febre do anime
Cavaleiros do Zodíaco em 1994/95
e o conhecimento do sucesso dos
mangás nos EUA estimularam
editoras brasileiras para publicar
alguma coisa. Foi preciso uma editora
dar o primeiro passo publicando os
mangás dos Cavaleiros e Dragon
Ball, para outros editores perceberem
que havia um público sedento por
histórias com “personagens de olhos
grandes”. Mais uma vez o Brasil,
que teve todas as chances para ser
um dos primeiros a publicar mangás
em grande escala no mundo, perdeu
o bonde da história durante mais
de dez anos graças ao desinteresse,
descaso, desconhecimento ou simples
preconceito por parte de editores.
Mais Quantidade,
Menos Qualidade
Juntamente com este sucesso
mundial e o aumento nas vendas
das revistas, aumentaram também a
quantidade de títulos publicados a
níveis e quantidades que chegavam
quase ao absurdo! Usando como
exemplo novamente a Shounen
Jump semanal, ela teve oito outras
revistas “filhas” semanais, quinzenais
e mensais. E todas as grandes revistas
semanais/mensais de mangá entre
1985 até 1996 também seguiram esta
– chamemos assim – linha editorial,
com vários “filhos” para suas
publicações principais. O resultado
foram centenas de publicações para
todas as idades, sexos, gostos e bolsos.
E para dar conta dos milhares
de páginas que todas estas revistas
pediam, um verdadeiro exército de
desenhistas de mangá trabalhava seis
ou sete dias por semana, num ritmo
de produção alucinante. Felizmente,
no Japão há tantos desenhistas
de mangá quanto há jogadores de
futebol no Brasil, portanto mão
de obra qualificada não faltava.
Bons desenhistas há de sobra, já
que o hábito de desenhar desde a
infância é tão comum aos japoneses
quando é o jogo de futebol de rua
no Brasil. Por lá, ser um grande
desenhista de mangá é um sonho
acalentado por dezenas de milhares
de jovens, como por aqui o de ser
um grande jogador de futebol. Não,
o começo do fim do mangá não
foi a falta de bons desenhistas.
Começaram a faltar boas histórias.
Erotismo Demais
Esse rumo fácil para garantir
vendas por partes das editoras foi,
sem dúvidas, uma das pedras no
túmulo dos bons mangás, mas não
foi a única e nem a mais importante.
Determinar um único fator para
o fim do mangá é impossível, mas
alguns dos principais podemos
detectar facilmente. E um deles, foi,
com certeza, o excesso de erotismo.
Além do aumento gradativo
dos fan services, no começo da
década de 1990 surgiram várias
revistas de mangá erótico com alta
qualidade – tanto em desenho quanto
em roteiro. A mais famosa foi a
Candy Time, da Fujimi Publishing,
periodicidade mensal, 250 páginas
e capas sensuais que deixava claro
qual era o conteúdo. Usando um
formato usado apenas em revistas
quinzenais, como a Young Jump
(folhas grampeadas), ela alcançou
notável sucesso de vendas e se tornou
referência para os mangás eróticos,
que eram publicados até então de
forma discreta e usando desenhistas
de terceiro escalão. Após a Candy
Time, dezenas de revistas similares
surgiram, copiando descaradamente
o formato e número de páginas
– mas nem sempre a mesma
qualidade nas histórias. Atualmente,
a Candy Time não existe mais,
tendo sido substituída por outras
revistas de mangá erótico com o
exato mesmo formato e número de
páginas de uma Shounen Jump. Os
mangás eróticos conquistaram um
lugar de destaque nas prateleiras
japonesas, mas também tiveram
sua parcela de culpa no fim do
mangá por estimularem os leitores
a prestar mais atenção no corpo das
personagens do que no roteiro.
O Grande Tombo
Nada Virtual
O auge das vendas de mangás
em 1996 foi também o início de
sua maior queda, pois neste ano a
internet já era extremamente popular
no Japão, e se tornava cada vez mais
rápida e barata graças a instalação
em escala nacional dos cabos de fibra
ótica. Qualquer desenhista meia-boca
tinha seu próprio site, onde divulgava
suas ilustrações e fanzines. Seguindo
a tendência, todos os desenhistas de
mangá profissionais também criaram
seus sites. Mas curiosamente, não
surgiram grandes revistas virtuais
de mangá. O motivo disso é que
as editoras decidiram não criá-las,
pois toda a estrutura industrial/
editorial, custo de impressão, pontos
de venda teriam obrigatoriamente
que ser dispensados, o que geraria
uma onda de desemprego sem igual
no Japão. Mas mesmo que fosse
criada uma revista de mangá on-
line, seu retorno financeiro não seria
o mesmo de uma revista impressa,
por mais público que tivesse. Então,
a internet até o momento não
conseguiu substituir os mangás. As
pessoas ainda gostam de ler suas
revistas de maneira física. Mas as
Ragnarok Online e outros
MMORPGs como ele tiraram
milhões de leitores dos mangás.
próximas gerações, quem sabe...?
O estrago começou na virada do
milênio, quando os celulares que
os milhões de estudantes japoneses
usam começaram a ter acesso à
internet rápida tanto para consulta
Jogos de alta qua- como para troca de mensagens.
lidade e a possibi- Surgiram os videogames on-line
lidade de interagir
com milhares de chamados MMORPGs (Massively
outros jogadores
em tempo real, multiplayer online role-playing
se tornaram um
passatempo muito
game), onde milhares de pessoas
mais interessante jogam e interagem como em
aos jovens do que
a tradicional leitura Ragnarok, o primeiro do gênero no
de mangás. Brasil. Estes e outros videogames
tiravam cada vez mais leitores
dos mangás, que foram atraídos e
preferiam jogar com seus amigos
via internet a gastar horas com
leitura. Mesmo uma das mais
tradicionais instituições japonesas
– a leitura de mangás durante as
viagens de ida e volta nos trens
– diminuiu drasticamente com
os celulares interconectados. Era
muito mais divertido fofocar com
as colegas ou namorar via Torpedo
do que ler um shoujo mangá. E
quando não eram os celulares ou os
MMORPGs que tiravam o tempo de
leitura dos mangás, os videogames
portáteis terminavam o serviço.
Com a chegada do Playstation
2 em 2000, que permitia jogos on-
line, outro tijolo foi acrescentado
ao túmulo do mangá. As crianças
e jovens começaram a passar mais
tempo jogando que lendo mangás
nas horas de entretenimento. Com
gráficos mais realistas, estupendos
efeitos visuais e sonoros, não havia
como os mangás em preto e branco
competirem com os videogames.
E nem se pode culpar os jogos
eletrônicos por isso, já que foram
as próprias editoras que haviam
decidido desde o começo dos anos
1990 trilharem o caminho do lucro A maioria das melhores histórias publicadas no Japão
atualmente estão nas Light Novels, com as de maior sucesso
fácil, valorizando o visual e deixando ganhando suas próprias séries de anime.
de lado roteiros mais elaborados. Os
anos de descaso e descuido vinham
agora cobrar o seu preço, pois se a
disputa era para ver quem tinha o
desenho mais bonito e colorido, jogos
em PC ou videogames ganhavam de
goleada! E assim, a partir de 1996,
as vendas de mangás começaram
a ter uma lenta e imutável queda,
que nenhum desenhista conseguiria
mudar, por melhor que fosse. Mas
não devemos ser muito cruéis ao
criticar as decisões que derrubaram
violentamente as vendas dos
mangás. Afinal, no auge das boas
vendas, quem poderia imaginar
uma queda tão brutal? Mas houve
também comodidade e despreparo
com o futuro, e o resultado foi que
as editoras de mangás japonesas
entraram no novo milênio
cancelando publicações, diminuindo
tiragens e dispensando desenhistas.
Mas a humilhação maior, a prova
cabal que boas histórias de mangá
eram coisa do passado, chegaram
na forma de Light Novels.
Livros de Bolso
Humilham os Mangás
Antes de prosseguir precisamos
explicar o que é uma Light Novel.
Chamadas no Japão de Ranobe ou
Rainobe, são histórias escritas para
publicação em revistas de contos
ilustrados como a Gekkan Dragon
Magazine ou a The Sneaker. Tem
como alvo os adolescentes e jovens
– mesmo público do mangá, note.
Quando já foram publicados vários
capítulos de uma série, estes são
reimpressos numa única edição em
forma de livros de bolso, o mesmo
esquema usado nos mangás semanais. poucos mangás estão ganhando versão
Desde o começo deste milênio revistas animada. Devido ao sucesso de vendas
de Light Novels têm conquistado das Light Novels, tem sido muito
cada vez mais leitores, e muitas mais vantajoso investir em animes
histórias publicadas se tornaram para elas. É uma situação totalmente
animes e – ironicamente – mangás! diferente das décadas de 1980/90,
Algumas adaptações de Light Novels quando mangás tinham seus animes
para mangá foram publicadas no garantidos e alguns até recebiam
Brasil, como Trinity Blood, Fullmetal versões em Light Novel! Para dar uma
Panic e Record of Lodoss War. ideia da quantidade de Light Novels
Atualmente, mais da metade dos que os fãs de anime gostam sem saber,
animes produzidos para TV são aqui vai uma pequena relação das mais
adaptações de Light Novels. Tirando famosas: Suzumiya Haruhi, Fullmetal
séries de grande sucesso como Bleach, Panic, Koukaku no Regios, Trinity
Naruto, One Piece e Fairy Tail, Blodd, Vandread e Lodoss War.
As Light Novels estão
dando uma surra nos
mangás atuais, a ponto
O segredo para este sucesso é bem
de ganharem versões simples: as melhores e mais criativas
em anime, videogame
e... mangás! Situação histórias estão nas Light Novels,
exatamente oposta dos e não mais nos mangás. Diferente
anos 1980, quando
mangás tinham suas de um mangá, onde o autor precisa
versões em desenhar e fazer uma boa história,
Light Novel!
o escritor de uma Light Novel só
precisa se concentrar em escrever – e
os prazos de produção são bem mais
flexíveis, o que livra os autores das
estressantes e temidas “deadlines”
(jargão para a data de entrega do
serviço). E há o motivo óbvio: uma
revista de contos TEM que ter boas
histórias que prendam a atenção
do leitor ou... não vendem! E assim
como nas grandes revistas de mangás,
as revistas de Light Novels também
realizam concursos para atrair novos
talentos, mantendo a alta qualidade.
Belo tapa na cara dos editores de
mangá, que não procuraram manter
a qualidade de suas publicações.
Enfim, cada um colhe o que planta!
No mangá Bakuman (abaixo), é contada de maneira romanceada
a estressante produção de um mangá semanal, e quão feroz é a E Há Salvação?
competitividade no mercado editorial japonês.
Graças a um conjunto de fatores
internos e externos que apresentamos
nestes três capítulos desta matéria,
o mangá chega aos dias atuais no
fundo do poço, com a Shounen Jump
vendendo dois milhões e oitocentos
mil exemplares por semana – menos
da metade do auge de 1996, e as
outras revistas têm quedas piores
ainda! A qualidade dos mangás
atuais é uma mera sombra dos áureos
tempos dos anos 1980 – há bons
mangás, claro, mas infelizmente são
minorias. Das centenas de revistas
publicadas nos anos 1990, mais da
metade foi cancelada, o que não
ajudou no aumento das vendas.
O público japonês simplesmente
não se interessa mais por mangá
como antigamente, pois aprendeu
a procurar boas histórias em outros
lugares. Mas o mercado editorial
japonês está longe do fim. Apesar
de todos os tombos que tomou,
ele sobreviveu e se adaptou.
Analisando friamente, apenas não
existe mais a venda fácil e garantida
dos anos 1980, visto que tantas
outras formas de entretenimento
surgiram para disputar espaço com
as revistas semanais. As vendas
caíram, mas as editoras, não.
Paradoxalmente, o Comic Market
está mais vigoroso do que nunca
– tanto em fanzineiros como em
público, e continua sendo a melhor
fonte para encontrar novos talentos.
A esperança sobrevive na mão
dos desenhistas novatos, de onde
virá a futura geração de mangakás
que daqui alguns anos teremos a
chance de ver em ação. Aos que
desejarem vê-los agora, só indo
a um Comiket e outras feiras de
fanzines do Japão para encontrá-los.
A solução mais aparente, se
as editoras quiserem sobreviver e
recuperar uma fração da glória de
quase trinta anos atrás, é investir
cada vez mais na qualidade – tanto
de desenhos como de histórias.
Não há outra maneira de
competir com a internet e
os videogames, que não seja
com histórias bem contadas e
desenhadas. Felizmente, o Japão
ainda tem tantos desenhistas
profissionais quanto o Brasil
tem jogadores de futebol.
Gente de talento para a tarefa,
portanto, não falta. Esperemos
que as editoras japonesas
estejam se empenhando em
como reverter esta situação.
Pois se nada for feito, logo
terão que se render ao sucesso
das histórias nas Light Novels,
e passar a publicar versões em
mangá delas. Esta situação ainda
está longe de uma solução, e a
nós brasileiros resta torcermos
para que as coisas melhorem.
Até lá é peneirar os mangás
que lemos, para achar as
pepitas que valem a pena.