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TA TA 02 (2019) 147-168

TEOLOGIA

A ética do amor autêntico a partir da obra:


Amor e Responsabilidade de Karol Wojtyla

Marcelo Lima1

Resumo: Ao abordar a temática da ética do amor autêntico nesse artigo,


postulamos refletir sobre a vivência deste na perspectiva da responsabilida-
de, que deve acontecer numa doação total de si ao outro, tendo como fim
a pessoa. Para isso, seremos guiados pelo pensamento filosófico de Karol
Josef Wojtyla, presente na obra Amor e Responsabilidade. A reflexão se des-
dobrará em três momentos: exposição dos pressupostos epistemológicos do
pensamento de Karol Wojtyla; apresentação da obra Amor e Responsabili-
dade, e, por fim, iremos discorrer sobre o amor segundo Karol Wojtyla. Este
último ponto versará sobre dois “eus” que se tornam um nós; a realidade
psicológica e moral do amor, e a análise moral do amor. Faremos as consi-
derações finais, fruto da pesquisa, notando que a sexualidade humana tem
como fim o amor esponsal.
Palavras-chave: Filosofia; Amor; Responsabilidade; Sexualidade; Ética, e Karol
Wojtyla.
Résumé: En abordant la thématique de l’éthique de l’amour authentique dans
cet article, nous postulons sur le vécu de celui-ci dans la perspective de la res-
ponsabilité, qui doit surgir du don de soi à l’autre, ayant comme finalité la

1
Graduado em Licenciatura plena em filosofia pelo Instituto de Estudos
Superiores do Maranhão. Este artigo científico é o resultado do Trabalho
de Conclusão de Curso apresentado, defendido e aprovado como exi-
gência para obtenção do título de Bacharel em Filosofia, em dezembro
de 2016, sob a orientação do Profª. MSc. Ir. Maria dos Milagres da Cruz.
Bacharelando no curso de teologia da Faculdade Dehoniana, Taubaté/SP.

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personne humaine. Ceci étant, nous serons guidés par la pensée philosophique
de Karol Josef Wojtyla, contenue dans l’ouvrage Amour et Responsabilité. La
reflexion s’articulera en trois moments à savoir: la présentation de l’ouvrage
Amour et Responsabilité, la présentation de l’amour selon Karol Wojtyla. En
dernière analyse, nous parlerons des deux “moi” qui deviennent un “nous”;
la réalité psychologique et morale de l’amour, et l’analyse morale de l’amour.
Nous ferons les considérations finales, fruit da la recherche, en mentionant que
la sexualité humaine a pour finalité l’amour conjugal.
Mots-clés: Philosophie; Amour; Responsabilité; Sexualité; Éthique et Carol Wo-
jtyla.

Assim como no tempo das espadas e das lanças, hoje,


na era dos mísseis, é o coração humano
que mata, mais do que as armas.
Karol Wojtyla

Introdução

Nosso objetivo neste artigo é apresentar a ética do amor


autêntico presente no pensamento de Karol Wojtyla, na obra
Amor e Responsabilidade. No decorrer desse artigo faremos
uma reflexão dos diversos sentidos do termo “amor” a partir de
uma visão personalista e ética. Teremos como pano de fundo
a ética do amor esponsal, contida no pensamento de Wojtyla,
que postula a vivência desse sentimento na perspectiva da
responsabilidade. Tomaremos como ponto de partida a dignidade
da pessoa humana para discorrer sobre o que pensador polaco
propõe quanto a sexualidade humana, que tem como fim um
amor esponsal no qual a pessoa é vista não como um meio, mas
sempre como o fim da ação.

1. Pressupostos epistemológicos do pensamento


de Karol Wojtyla

Karol Josef Wojtyla é filho da geração que viveu a revolução


industrial, os efeitos das primeira e segunda guerras mundiais. Isso
possibilita que ele veja de perto a degradação da pessoa humana.
Wojtyla se tornou um leitor ativo, chegando a aprender espanhol

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A ética do amor autêntico a partir da obra

para ler livros na língua materna dos autores: São João da Cruz,
Santa Tereza D’Ávila e São Luís Maria de Montfort. Com toda
essa bagagem cultural e muito desejoso de dar significado à sua
existência no mundo, ele foi um solo fértil, pronto para receber as
sementes do conhecimento.
Estando formado em filosofia polonesa e teologia, o jovem
Wojtyla dá voos ainda mais altos na sua formação acadêmica. Ao
partir para Roma, logo após ser ordenado padre, em junho de
1948, defende a tese de doutorado: “A doutrina da fé em São João
da Cruz”. A pesquisa o levou a ver no pensamento de São João
da Cruz uma fenomenologia mística que o inspirou a escrever a
obra “Pessoa e ato” (Osoba i Czyn), publicada em 1969. Com os
estudos em São João da Cruz ele deseja conhecer mais a fundo o
mistério do ser humano.
A experiência que Wojtyla obteve ao entrar em contato com
o pensamento de São João da Cruz, em quem se sobressai a refle-
xão sobre a experiência subjetiva no encontro com Deus, o con-
duziu aos estudos sobre o pensamento de São Tomás de Aquino.
Fundamentado nessa corrente filosófica, percebe “o ser
pessoa do homem, de que este se relaciona consigo mesmo,
com os outros seres humanos, com o mundo das coisas e com
Deus”2. O pensamento de Tomás de Aquino, principalmente
no que alude à antropologia e à ética, é um forte pilar na filo-
sofia wojtyliana.
Wojtyla, em 1959, publica sua tese para a livre docência na
Universidade de Cracóvia “Max Scheler e a ética cristã” na qual in-
vestiga a possibilidade de a fenomenologia de Scheler servir como
ferramenta para a construção de uma ética cristã. A conclusão
mostra que não é possível. Karol percebe que Scheler apresenta
um pensamento que até certo ponto se assemelha à sua visão per-
sonalista, mas reconhece que a filosofia fenomenológica do pensa-
dor alemão reduz a pessoa à unidade de diversos atos. Ele percebe
que o alemão desconsidera a importância da consciência na vida
moral da pessoa, tornando essa percepção dependente da percep-
ção afetivo-intencional.

2 Karol WOJTYLA, Persona y acción, 2011, p. 22.

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A experiência ética se encontra inerente ao ato volitivo e


não no seu exterior, no sentimento, como pensa Max Scheler. A
vida ética, na teoria scheleriana, é constituída pela experiência
emocional do valor e não pela causalidade da pessoa. [...] Scheler
não se dava conta de que a pessoa é a causa eficiente de suas ações
e pensava, ainda, que os atos pessoais fossem, apenas, um sujeito
secundário dos valores éticos3.
Karol Wojtyla também recebe a influência do pensamen-
to de Emmanuel Kant que reflete uma ética até certo ponto
convergente com a ética personalista, pois tem a pessoa como
fim de qualquer ação. O contato com esse filósofo robustece o
pensamento personalista do pensador polaco. Ao relacionar o
pensamento de Scheler e Kant, o filósofo polaco acrescenta a
estes a filosofia aristotélico-tomista de potência e ato. Ele teve
ainda contato com o pensamento de Jacques Maritain, figura
importante para a retomada dos estudos da filosofia tomista
no século XX, e com Emmanuel Mounier, principal figura do
personalismo.
Nos escritos Karol Wojtyla vemos os frutos dessas in-
fluências intelectuais. Na obra Amor e responsabilidade (1960),
Wojtyla expõe seu pensamento sobre afetividade e sexualidade
não mais em uma perspectiva negativa e casuística. O pensador
revela-se prudente e astuto ao usar a tradição filosófica clássica,
impelido pela sua herança tomista, com base no personalismo
cristão e em uma ética originária do seu contato com Scheler
e Kant.
Na obra Pessoa e ato (1969), inspirada em sua tese de dou-
torado em São João da Cruz, o autor analisa a consciência e a
causalidade eficiente da pessoa, o papel da consequência da ação
consciente e a experiência basilar vivida pelo sujeito ao ser causa
das próprias ações. O pensador ainda se detém à transcendência da
pessoa na ação. Sobre isso Luigi Accottoli afirma:
A pessoa é causa eficiente da ação porque se autodetermina,
não reflete simplesmente os condicionamentos internos e exter-
nos, mas pode decidir tornando uniforme a sua escolha pela ver-

3 Paulo Cesar da SILVA, A ética cristã de Karol Wojtyla: ética sexual e


problemas contemporâneos, 2001, p. 27.

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dade que conhece com relação ao bem. Desse modo a pessoa se


realiza a si próprio como pessoa4.
Além dessas obras, mesmo depois de eleito papa em 1978,
Wojtyla continua a produzir numerosos escritos frutos de re-
flexões filosóficas e teológicas. Parte deles deram origem a uma
trilogia publicada em 1997. São elas: “Minha visão de homem”,
“O homem e seu destino” e “O dom do amor”. Na obra Minha
visão de homem, a ética é o assunto norteador como também
temas relevantes e inerentes ao homem: o amor, a felicidade e a
justiça. Já na obra O homem e seu destino, Wojtyla tem uma preo-
cupação antropológica e procura levar o leitor a refletir sobre
a subjetividade personalista, os relacionamentos interpessoais, a
responsabilidade, a cultura e ao destino do homem. Por fim, na O
dom do amor, a terceira da trilogia, o filósofo faz uma análise do
matrimônio e da família sobre a perspectiva do amor como dom.
Para ele o amor entre os cônjuges é uma doação mutual entre os
dois e os filhos são dom e frutos da íntima e amadurecida união
entre o casal.
Segundo alguns especialistas, a síntese das obras do pensa-
dor poderia ser classificada como um coerente “tratado sobre o
homem”5 ou uma investigação que tem por alvo uma “filosofia do
homem” e a “defesa de um humanismo não utópico e solidamente
ancorado na realidade e na experiência”6. Como expressão de um
humanismo amadurecido, Wojtyla nos leva a perceber que a pes-
soa é o sujeito motor da ação, e não apenas um elemento impelido
por sensações e experiências de valor.

2. Apresentação da obra Amor e Responsabilidade

O conteúdo da obra Amor e responsabilidade de Wojtyla pre-


tende colaborar no esclarecimento quanto ao seu papel desses va-
lores na vida adulta madura, afetiva e sexual. Baseando-se no pen-

4 Luigi ACCATTOLI, Karol Wojtyla: o homem do fim do milênio, 1999, p.


34-35.
5 STYCZEN apud Luigi ACCATTOLI, op. cit., p. 35.
6 SERRETI apud Luigi ACCATTOLI, op. cit., p. 35.

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samento de São Tomás de Aquino, Wojtyla afirma que “o bem é o


fim do ser porque contribui para o seu aperfeiçoamento. O bem,
em consequência, é sempre a perfeição do ser”7. Assim, em vista das
relações interpessoais (o que inclui as conjugais) refuta a possibili-
dade das relações utilitaristas. Usando-se da fenomenologia, Wojtyla
afirma que a pessoa é consciência. Essa condição torna a pessoa ca-
paz reconhecer o valor do ser, por isso, pode dirigir-se ao outro se
compreendendo responsável por cuidar do dom em si que o outro é.
No primeiro capítulo (A pessoa e a tendência sexual), por
meio de uma análise das palavras gozar, amar e usar, Wojtyla com-
bate a tendência utilitarista afirmando que “o valor da pessoa é
sempre considerado superior ao valor do prazer”8. Afirma ainda
que a pessoa é um ser capaz de decisão, podendo sempre ser su-
jeito ativo na ação e tem a capacidade de autoconter-se. Por isso,
a pessoa humana não deve ser instrumentalizada nem colocada
como meio para obtenção de prazer.
No segundo capítulo (A pessoa e o amor), Wojtyla procede
com uma análise geral do amor que une os casais, destaca que esse
sentimento está intrínseco na relação entre duas pessoas de sexo
oposto e que ele só acontece porque há um encanto mútuo entre
os ambos. A atração desperta desejo e pode gerar um amor. Desta-
ca ainda que “a facilidade com que nasce esta atração recíproca é
fruto da tendência sexual”9: um desejo que nunca deve ser vivido
de forma utilitarista, mas sempre tendo em vista o valor da pessoa.
Ainda no segundo capítulo, Wojtyla chama a atenção para a ne-
cessidade de refletir sobre a sexualidade, pois ela é um bem para a es-
pécie humana. Para uma pessoa existir é condição necessária o impul-
so sexual. O autor aborda a dimensão psicológica do amor. Elenca os
efeitos psicológicos despertados por esse sentimento e a forma como
eles devem ser percebidos e vividos a partir de uma conduta virtuosa.
No terceiro capítulo da obra Amor e responsabilidade (A pes-
soa e a castidade), Wojtyla dirige sua preocupação para a pessoa e a
castidade, e aborda a perda da estima pelas palavras “virtude” e “cas-

7 Karol WOJTYLA, Mi visión del hombre, 2010, p. 140.


8 Karol WOJTYLA, Amor e Responsabilidade: moral sexual e vida interpes-
soal, 1979, p. 31.
9 Idem, p. 64.

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A ética do amor autêntico a partir da obra

tidade”, afirmando que “não falta quem se tenha esforçado por forjar
toda uma argumentação para demonstrar que ela (a castidade) não
só não é útil ao homem, mas pelo contrário, lhe é nociva”10. Atribui
essa atitude a um ressentimento que nasce a partir dos insucessos
em viver uma virtude, por exemplo, a castidade. Assim a pessoa
desobriga-se da vivência de determinada virtude. O ressentimento,
nativo da mentalidade subjetivista, barganha o valor pelo prazer e
leva à decepção, ao passo que o cultivo da castidade conduz ao amor
altruísta. Finaliza o capítulo afirmando que uma pessoa casta é antes
de tudo alguém que tem conhecimento e domínio de si mesmo.
No quarto capítulo (Justiça para com o criador), o pensador
utiliza das Escrituras Sagradas e dos escritos de Aristóteles11 para
apontar a importância do matrimônio na vida humana quando vi-
vido de forma autêntica. Dá destaque ainda à vivência da relação
de modo monogâmico e à sua indissolubilidade, devendo essa per-
durar mesmo quando uma das partes já não sente atração sexual
pela outra, uma vez que o casamento não visa tão somente o sexo
e a procriação, também o cuidado mútuo.
No quinto capítulo (A sexologia e a moral), uma espécie de
apêndice, Wojtyla evidencia a importância da sexologia e da moral
abordando de forma mais livre alguns temas mencionados no de-
correr da obra que não foram aprofundados. Um deles é o proble-
ma da regulação dos nascimentos.
Diante disso, percebemos que o autor propõe ao longo de
sua obra a centralidade da pessoa e não das qualidades físicas ou os
aspectos exteriores. Ele apresenta a integração da pessoa na ação
como cerne da sua reflexão. Por meio de uma proposta realista e
humana sugere que o próprio sujeito canalize as potencialidades
naturais do seu corpo e psique para que nessa integração aconteça
uma unidade do seu ser.

10 Idem, p. 134.
11 Para o pensador grego, “[...] é mais incisivo (a vida matrimonial para o
homem) que ser um animal político, na medida em que a família é mais
antiga e mais necessária do que o Estado [...]” ARISTÓTELES, Ética a
Nicômaco, L 8 1220 15

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A ética do amor autêntico a partir da obra

3. O amor segundo Karol Wojtyla

Wojtyla afirma que entre os cônjuges o amor tem sua forma


mais adequada na doação de si ao outro, um amor esponsal. Essa
afirmação possibilita questionar a respeito de como um ser inalie-
nável e insubstituível pode doar-se a alguém. Isso seria retirar-lhe a
liberdade e subjetividade?
Para Wojtyla, o amor em sua essência é pura comunhão e
responsabilidade, superação do amor hedonista e utilitarista que
cede lugar à ética do amor autêntico. O amor como doação de si
não se adequa à uma vontade egoísta do amante. Na relação amo-
rosa não há uma perda da subjetividade por parte dos indivíduos
que a compõem, ao contrário, ela será potencializada. Para que
isso ocorra, o amante e a amada precisam desenvolver as virtudes
necessárias para cultivar uma relação mútua como doação de si.
Aja vista o reconhecimento do valor inerente à pessoa amada, o
amante opta por subordinar sua autonomia, vontades e desejos, à
pessoa amada, e vice-versa, assegura Wojtyla:
O amor, e sobretudo aquele que aqui nos interessa (um
amor autêntico), é não só uma tendência, mas um encontro, uma
união de pessoas. [...] O aspecto individual não desaparece no as-
pecto interpessoal. Pelo contrário, este é condicionado por aquele.
Segue-se que o amor é sempre uma espécie de síntese interpessoal
de gostos, de desejos e de benevolência12.
Aprofundando essa reflexão o filósofo destaca que a
pessoa dominada pelos vícios, por não possuir alto controle, é
alienado, não tem a pertença de si. Permanecendo nessa con-
dição, não poderá dar-se a outrem em um amor esponsal. Se
vier a insistir será causa de sofrimento a si e ao outro, pois não
possuindo as ferramentas necessárias para cultivar tal amor, o
deixará morrer. Wojtyla observa ainda que “[...] a escolha da
pessoa amada feita não só pelos valores sexuais, mas também
e acima de tudo pelos valores da pessoa, dá ao amor a sua es-
tabilidade”13 porque com o passar do tempo os valores sexuais

12 Karol WOJTYLA, Amor e Responsabilidade: moral sexual e vida inter-


pessoal, 1979, p. 85.
13 Idem, p. 122.

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A ética do amor autêntico a partir da obra

e afetivos e a sensualidade tendem a deixar de existir. Diante


disso, se a escolha primeira tiver sido motivada somente pelo
prazer, aparecerá a decepção e a constatação de terem vivido
um amor desfigurado, interesseiro.
Wojtyla expõe ainda que amar de forma autêntica não é
querer alguém como um bem porque isso significa posse, domínio.
O outro é sempre o dom. Assim, amar é doar-se a alguém de forma
desinteressada. Nessa entrega de um ao outro como “dom de si”,
Wojtyla não se refere a “‘dom’ no sentido puramente psicológico,
e menos ainda como ‘abandono’ no sentido físico”14. Para chegar a
um amor autêntico, em uma perspectiva ontológica, o homem e a
mulher devem pôr-se em uma atitude de doação.
Por isso, experiência de um amor esponsal é capaz de com-
bater as tendências egoístas ou utilitaristas e levar o casal a dar
passos firmes rumo a realização de ambos enquanto amantes. Com
efeito, se faz necessário afirmar que tal experiência de amor não é
algo que se dá por acaso, também não é encontrar um ser sonha-
do, mas construir-se com alguém amando-o. Um amor autêntico é
algo que vai sendo aprimorado na medida da convivência, na qual
eles vão se descobrindo e ajudando-se mutuamente a tornarem-se
melhores. A síntese desse movimento exterior e interior são dois
“eus” tornando-se um nós, como veremos a seguir.

3.1 Dois “eus” tornando-se um nós15

A partir do conceito de amor autêntico dado por Karol Woj-


tyla, um amor esponsal, o amor entre um casal (mulher e homem)
nasce da atração que é despertada através do impulso sexual exis-
tente naturalmente no ser humano. Os fatores que contribuem
significativamente para o surgimento dessa atração são os senti-
mentos e a vontade. Observa Wojtyla:

14 Idem, p. 88.
15 O tema principal da crítica é que o amor romântico nada tem de subli-
me ou divino. Ele é uma invenção cultural dos homens, criada para sub-
jugar as mulheres. Nesse amor, os homens idealizam as mulheres para
explorá-las, e as mulheres idealizam os homens e se deixam explorar.
(cf. Monique CANTO SPERBER, Dicionário de ética e filosofia moral,
2013, p. 73).

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A ética do amor autêntico a partir da obra

Os sentimentos nascem de modo espontâneo [por isso a


atração por uma pessoa surge muitas vezes de modo ines-
perado], mas esta reação é, no fundo, cega. A ação natural
dos sentimentos não tende a captar a verdade do seu ob-
jeto (o atraente). [...] é preciso, contudo, exigir, tanto em
nome do valor da atração, como no do amor, que a verdade
sobre a pessoa, objeto da atração, desempenhe uma função
não inferior à da verdade dos sentimentos16.

Para saber se o atraente realmente é um bem para o atraído


será necessário proximidade e diálogo entre os dois. O que há no
atraente que particularmente desperta interesse no atraído e porque
o atrai, são fatores de origem inata, herdados e adquiridos, que cons-
tituem um mistério peculiar do processo de vida de cada pessoa17.
Sentimentos esses vem acompanhados do amor de con-
cupiscência que caminha junto com a atração. Diante disso,
é necessário: no amor de concupiscência o amante deseja a
amada com um bem real para si, mas não se trata de um desejo
apenas sensual, ele deseja a pessoa dela. Já a concupiscência
em si “pressupõe a sensação desagradável duma carência, sen-
sação que pode ser eliminada graças a um bem definido” 18. Por
isso, movida pela concupiscência, a pessoa busca a outra em
vista de satisfazer-se.
Já o amor de benevolência possui uma característica singu-
lar: o querer bem desinteressado. A pessoa quer apenas o bem da
amada sem pensar em si, chegando, assim, ao máximo da essên-
cia pura do amor. Vale notar que concupiscência e benevolência,
apesar de opostos, não são incompatíveis, pois para uma pessoa
querer outra como um bem para si (concupiscência) requer que

16 Karol WOJTYLA, Amor e Responsabilidade: moral sexual e vida interpes-


soal, 1979, p. 67-68. (grifo do autor)
17 Com base no pensamento de Freud, o dicionário de ética e filosofia
moral, afirma que “Cada pessoa define para si uma estrutura erótica de
demandas e de expectativas que são as precondições do fato de se apai-
xonar”. (cf. Monique CANTO SPERBER, Dicionário de ética e filosofia
moral, 2013, p. 73).
18 Karol WOJTYLA, Amor e Responsabilidade: moral sexual e vida interpes-
soal, 1979, p. 71.

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A ética do amor autêntico a partir da obra

a pessoa desejada seja um bem agradável (benevolência). Ressal-


tamos que para um amor autêntico se faz necessário que esses
dois sentimentos estejam em equilíbrio, do contrário corre-se o
risco de cair num vazio estéreo.
Diante do que refletimos em vista de pontuar esses dois
“eus” tornando-se um nós”, a reciprocidade será fundamental
para alcançar um amor autêntico. Sobre isso afirma Wojtyla:
“o amor não está nem na mulher nem no homem – porque
então teríamos no fundo, dois amores – [...] é alguma coisa
que os liga” 19. É importante destacar que a reciprocidade não
pode ser fruto de dois desejos egoístas ou maus, que em co-
mum acordo atendem à concupiscência. Para Wojtyla “[...] a
reciprocidade deve necessariamente pressupor o altruísmo de
cada um [...]”20.
O autor apresenta ainda mais três elementos necessários
para dois “eus” transformarem-se em um nós: a simpatia, a ami-
zade e a camaradagem. Para ele, “[...] a simpatia designa antes de
tudo o que sucede entre as pessoas no campo da sua vida afetiva,
aquilo pelo qual as experiências emotivo-afetivas as unem entre
si”21. Destaca também que a atração possui relevante influência
para o despertar da simpatia.
Contudo, o fato de uma pessoa se identificar com as ex-
periências vividas por outra, pode fazer com que atribua a essa
pessoa maior valor, o que é puramente subjetivo. Wojtyla adverte
que um amor não pode ser construído tendo como base a sim-
patia, é mais perfeito que antes se transforme em amizade. Isso é
possível e apropriado, uma vez que os elementos que geram essa
simpatia são favoráveis para que haja uma certa sincronia e em-
patia entre o casal, o que coopera para estabilidade e manutenção
de uma relação.
Já na amizade, assim como a pessoa quer o bem para
outra, de modo igual o deseja para si. Assim, “o teu ‘eu’ tor-
na-se o meu e, portanto, vive a mesma vida. [...] A ‘duplici-
dade’ do ‘eu’ põe em evidência a união das pessoas realizada

19 Idem, p. 74.
20 Idem, p. 78.
21 Idem, p. 79.

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A ética do amor autêntico a partir da obra

pela amizade” 22. A decisão objetiva se faz presente na amiza-


de já que diferente da simpatia, ela é movida por uma vonta-
de refletida, o que dá possibilidade de escolha consciente por
parte das pessoas envolvidas.
Um terceiro elemento apontado por Wojtyla como ne-
cessário para um amor autêntico é a camaradagem que ganha
espaço nas relações interpessoais de trabalho, por exemplo,
onde as pessoas ajudam-se mutuamente nos afazeres do dia
a dia. Com essa camaradagem o amor se torna visível nos
atos cotidianos, mostrando-se afetivo e efetivo, indo além das
sensações que um desperta no outro e corroborando para um
amor autêntico.
Cada um desses elementos, de modo distinto, oferece uma
contribuição para se alcançar um amor autêntico, mas que só
têm validade se vividos em equilíbrio e unidade. A força de ape-
nas um deles pode até unir um casal, no entanto, possivelmente,
não será suficiente para que permaneçam juntos por longas datas.
Vale ressaltar que cada relação, formada por pessoas com perso-
nalidades e histórias de vida distintas, terão diferentes sensibili-
dades, necessidades e abundâncias de cada um desses elementos.
Logo, cada relação irá experimentá-los de forma única.
Ratificamos que foi o que refletido até agora não se trata
de um tratado a respeito de como conquistar ou construir um
amor autêntico (se o fosse, seria incompleta) mas antes uma
exposição de predicados que favorecem para que isso aconte-
ça. Assim, conforme trabalharemos no próximo tópico, o amor,
embora radicado no corpo, não é apenas um movimento exte-
rior – se fosse assim não seria amor – mas também um movi-
mento interior que se dá em um estado psicológico e orientado
por uma moralidade.
3.2 A realidade psicológica e moral do amor
O amor que surge entre homem e mulher, ao contrário do
que muitos pensam, está para além do contato ou uma atração
física. Como observa Mário Quintana: “Amar é mudar a alma de

22 Idem, p. 81.

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A ética do amor autêntico a partir da obra

casa”. No pensamento de Wojtyla, o ato de amar envolve um es-


tado psicológico23. De tal modo, quando dois “eus” tornam-se um
nós, tem-se uma relação também de almas.
A reflexão feita por Wojtyla tem início “pelo que constitui
‘parte elementar’ da vida psíquica do homem, isto é, a percepção
e a emoção que daí deriva”24. Isso se dá aos sentidos quando, diante
de um objeto que produz excitação25 no sujeito, ligado à percep-
ção, causa alguma reação.
Os valores que um objeto possui, exercem um papel tão
importante quanto suas propriedades, no tocante à experiência
sensorial imediata que ele produz no sujeito. Por exemplo, o en-
contro entre duas pessoas de sexo oposto, por serem naturalmen-
te dotados da mútua atração, fazendo uso da visão ou do tato,
levará à uma percepção. Se uma das partes possui valores que
instigam a outra, isso provocará uma emoção. As duas – percep-
ção e emoção – oferecem grande contribuição para a excitação
despertada entre elas.
É necessário ter em mente que valores materiais normal-
mente despertam emoções superficiais, mas “quando, pelo contrá-
rio, o seu objeto é constituído por valores supramateriais, espiri-
tuais, chega ao mais fundo do psiquismo do homem”26. Supõe-se
que, se isso ocorrer entre um casal, o uso dos sentidos internos e
a emoção que gera o arquivamento de percepções, dão indício de
uma vivência interior do ser humano.
Segundo Wojtyla, todo esse evento, nas relações afetivas, en-
tre um casal, por exemplo, deixa impresso no psiquismo não só

23 Para assegurar essa tese, fazemos memória da etimologia do termo psi-


cologia que vem do grego psyché, que significa alma, e logos, que se
refere a razão, portanto significa “estudo da alma”.
24 Karol WOJTYLA, Amor e Responsabilidade: moral sexual e vida interpes-
soal, 1979, p. 91.
25 Dado o contexto, é importante acolher o substantivo “excitação” não
no sentido de desejo sexual, mas no sentido de estímulo, entusiasmo.
Ratificando, o verbo “excitar”, no minidicionário Houaiss, p. 339, que
dizer: “fazer ter reação física ou psicológica; estimular (se), instigar (se),
fazer sentir desejo sexual”.
26 Karol WOJTYLA, Amor e Responsabilidade: moral sexual e vida interpes-
soal, 1979, p. 93.

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A ética do amor autêntico a partir da obra

a imagem que representa a outra pessoa, mas também os valores


que ela possui. Caso essas características sejam atraentes ao sujeito,
isso pode se configurar como os primeiros passos rumo a um amor.
Nesse ponto colocamos como foco a sensualidade: por vez, motivo
do primeiro contato entre do casal. Caso uma das partes se dete-
nha a ela, esquecendo-se da pessoa e do seu valor, acontecerá um
desvio da função da sexualidade, tornando-a um obstáculo para o
caminhante que tem por meta um amor.
Em Amor e responsabilidade, o filósofo polaco esclarece ao
leitor sobre a sensualidade, que é um elemento precioso e difícil de
gerenciar. Diz que é preciso cautela ao deparar-se com ela, por causa
da repercussão na emoção que a mesma causa, atingindo não só o
psiquismo, mas também se manifesta no corpo, principalmente nas
zonas erógenas. O desejo despertado não é de contemplação, mas
de posse – amor Eros – que faz a outra pessoa objeto de prazer, con-
trariando o amor autêntico e a norma personalista. Adverte Wojtyla:
A orientação para os valores sexuais enquanto objeto de
prazer exige a integração: precisa de ser inscrita uma atitude acei-
tável com respeito à pessoa. Doutro modo não será amor. Sem
dúvida, a sensualidade é atravessada por uma espécie de corrente
de amor de concupiscência, mas se não é completada por outros
elementos, mais nobres, no amor, se não é senão concupiscência,
então certamente não é amor27.
Vista de modo isolado, a sensualidade leva à morte: do amor
e da pessoa. Por outro lado, a sensualidade não pode ser por intei-
ra desconsiderada, uma vez que ela é um elemento imprescindí-
vel para um amor de entrega total. Para isso precisa ser mesclada
com outros fatores para que resulte em uma relação integrada, por
exemplo à afetividade. Sendo a afetividade a fonte do amor afeti-
vo (concreto) “reage à pessoa no seu conjunto. Os valores sexuais
notados permanecem referidos à pessoa inteira e não se limitam
ao seu corpo”28. Ao passo que a sensualidade induz à busca pelo
prazer que o corpo pode oferecer, a afetividade manifesta o terno
desejo de contemplar o que há de belo no outro.

27 Idem, p. 98.
28 Karol WOJTYLA, Amor e Responsabilidade: moral sexual e vida interpes-
soal, 1979, p. 100.

160
A ética do amor autêntico a partir da obra

Wojtyla destaca que a manifestação da afetividade e da se-


xualidade no homem e na mulher se dão de forma distinta29. É de
praxe que ela por natureza seja mais emotiva e ele mais sensual,
explica Wojtyla:
A própria estrutura do psiquismo e da personalidade do
homem é tal que este se sente impelido mais depressa do que a
mulher a manifestar e a experimentar o que tem escondido nele.
Isto está em relação com a função mais ativa que tem o homem no
amor e com as suas responsabilidades. Na mulher, pelo contrário,
a sensualidade está, em certo sentido, dissimulada na efetividade.
Por este motivo, ela é por natureza lavada a considerar também
como uma prova de amor afetivo o que o homem reconhece como
já a ação da sensualidade e do desejo de prazer. [...] Ela aparece
sobre este ponto de vista mais passiva, embora sob outro ponto de
vista seja ativa30.
A afetividade com todos seus méritos, merece cuidados, uma
vez que ela é normalmente acompanhada por um entusiasmo, so-
bre isso ele afirma que “o amor afetivo permanece sob influência
da imaginação e da memória [...] se explica o fato de atribuir ao
objeto do amor diversos valores de que pode não estar dotado.”31.
Por isso colocar à par da realidade da pessoa com a qual o amante
se relaciona, é imprescindível para o estabelecimento de um rela-
cionamento saudável e realizador.
Sobre isso, Wojtyla afirma: “A verdade está diretamente
ligada ao domínio do conhecimento. O conhecimento humano
não se limita a refletir objetos, mas é inseparável da expe-
riência vivida do verdadeiro e do falso” 32. O conhecimento é
necessário para que exista liberdade. Essa permite à pessoa
escolher o que lhe faz bem e dizer não ao mal. O objetivo dele
com essa reflexão é propor uma experiência do conhecimento,

29 A palavra amor não tem o mesmo sentido para os dois sexos [homem
e mulher], e essa é a causa dos sérios mal-entendidos que os dividem
(BEAUVOIR, S. apud cf. Monique CANTO SPERBER, Dicionário de
ética e filosofia moral, 2013, p. 73).
30 Karol WOJTYLA, Amor e Responsabilidade: moral sexual e vida interpes-
soal, 1979, p. 101.
31 Idem, p. 102.
32 Idem, p. 104.

161
A ética do amor autêntico a partir da obra

que não se refere a um desnudamento de corpos, mas acima de


tudo de almas. Esse conhecimento deve ser direcionado pela
busca de querer conhecer melhor a pessoa e não apenas o seu
corpo.
Na obra Amor e responsabilidade, Wojtyla nos indica ainda
a moral do amor, que se faz necessária para regular de forma
objetiva a relação conjugal. Ressaltando o amor como virtude,
o autor afirma que esse sentimento não é algo que se torna
estável, concluído, quando o casal encontrar um ao outro e se
decidem por namorar ou casar-se. Os passos para um amor au-
têntico exigem constância, guiada pelo valor da pessoa humana,
e a certeza de que os dois sempre terão algo a aperfeiçoar. Para
isso, a seguir a moral do amor.

3.3 Análise moral do amor

Não é raro ouvir expressões como “o mais importante é que


os dois se amam”, quando abordamos temas relacionado a vida
interpessoal de um casal. Para Wojtyla, o amor não é apenas um
estado psicológico, é uma virtude. Adverte o autor que “é preciso
procurar a plena integração do amor humano não só no campo da
psicologia, mas também no da moral”33. Assim, ressalta que o amor
moral se faz necessário:
O amor não é amor mesmo quando se limita a uma ati-
tude afetiva a respeito dum ser humano do outro sexo. Como
se sabe, a experiência – tão fortemente radicada na percepção
da feminilidade e da masculinidade – pode apagar-se com o
tempo se não está intimamente ligada à afirmação do valor da
pessoa 34.
Na busca por um amor autêntico, o conhecimento desse
valor é uma ferramenta extremamente útil e por isso, indispen-
sável. Pois em decorrência dele, estando o amante consciente da
singularidade da amada, quando das suas reações às manifesta-
ções afetivas e atributos sexuais que há nela, acolhe tudo isso

33 Idem, p. 110.
34 Idem, p. 113.

162
A ética do amor autêntico a partir da obra

com serenidade35. Percebendo-a não como um aglomerado de ca-


racterísticas que excitam as suas emoções ou simplesmente como
o sexo oposto, mas como ser de valor incomensurável. Aquele
que percebe o valor da pessoa, como dom de si, empregará todas
as suas forças para tê-la em sua companhia, pois descobriu que
“os valores sexuais se transformam e até desaparecem, [no en-
tanto] o valor essencial, o da pessoa, permanece sempre”36, o que
dá certeza de estar buscando algo que possui marcas do eterno, e
que por isso merece crédito.
Wojtyla afirma que tal acontecimento dá sacralidade à união
dos dois: realidade necessária para a vivência matrimonial. O retra-
to do que está posto não é apenas uma união de corpos, acima de
tudo de pessoas, para ser mais fidedigno, uma comunhão de pes-
soas, uma vez que é recíproco. Isso leva a um sentido de pertença:
um faz-se responsável pelo outro.
Semelhante escolha não desconsidera a dimensão sexual – o
que tornaria o amor algo incompleto – mas também não permite que
ela seja o critério único ou superior para a escolha. Quando o amante
elege uma companheira, ou vice-versa, segundo a análise moral do
amor proposto por Wojtyla, vê nela (e) um complemento de si.
Karol Wojtyla deixa claro que a vivência de um amor espon-
sal, convidativo a dar-se, não se trata de algo fantasioso ou mera
pieguice: o dar passos nesta estrada exigirá uma real fidelidade en-
tre os dois. Isso levará a um legítimo comprometimento de liber-
dade entre as partes, o que poderia ser visto como algo negativo,
castrador, se não fosse o amor. Esse sentimento torna tal ato em
algo positivo, já que “o homem deseja o amor mais que a liberdade:
a liberdade é um meio, o amor é um fim”37.

35 Freudianos e não-freudianos sugerem que a personalidade sexual é o cen-


tro da personalidade moral, e que nossa maneira de perceber nosso parcei-
ro sexual e de nos comportarmos para com ele reflete e influencia nossa
percepção e nosso comportamento geral face ao outro. Assim sendo, a in-
capacidade de dominar a busca do prazer sexual pode prejudicar a elabo-
ração de um caráter virtuoso (cf. Monique CANTO SPERBER, Dicionário
de ética e filosofia moral, 2013, p. 73).
36 Karol WOJTYLA, Amor e Responsabilidade: moral sexual e vida interpes-
soal, 1979, p. 122.
37 Idem, p. 124.

163
A ética do amor autêntico a partir da obra

Para Wojtyla, o bem querer mútuo entre o casal, gerado pelo


amor moral, se configura como um grande sinal de esperança e
possibilidade de conversão, uma vez que, por mais que o sujeito
seja mau, envolvido pelo amor verdadeiro, tendo reconhecido o
valor da outra pessoa, passa a desejar-lhe o bem. Isso já é suficiente
para que o conceito de mau a respeito dela seja revisto. Pois quan-
do se vive um amor autêntico há uma (gradativa) mudança de
consciência por parte do casal, o que revela o amor como sendo o
mais alto valor moral.
Para viver esse valor, Wojtyla sugere uma educação para
o amor, pois não é encontrando alguém especial que se vive um
amor, mas construindo esse amor ao lado de alguém que reconhe-
ceu seu valor. Como bem observa Wojtyla:
O amor nunca é uma coisa toda feita e simplesmente “ofe-
recida” à mulher e ao homem: deve-se ir elaborando. [...] o amor
nunca “é”, mas “vai sendo” a cada instante o que de fato lhe confere
cada pessoa e a profundidade do seu compromisso. Este tem a sua
base no que se lhe tiver “dado”38.
O amor será mais verdadeiro e profundo, à medida que os
dois se dirigirem um ao outro de maneira verdadeira e profunda.
Wojtyla conclui que a educação para o amor se dá por meio de
um processo, e parte dele acontece no interior dos amantes. Deste
modo, direcionar algo tão forte, como o amor, para um ser tão
valoroso como o ser humano, exigirá um esforço sobrenatural, por
isso é preciso uma ajuda divina. Consequentemente, devido a esse
auxílio os amantes não precisam temer errar o caminho ou não
conseguir vivê-lo, já que não é porque o amor errou o caminho
que significa que se perdeu para sempre. Esse auxílio do céu e a
vontade dos dois os reconduzirá à direção almejada.
Diante da reflexão abordada, compreendemos que os passos
para um amor autêntico são feitos de sentimentos que são des-
pertados pelos aspectos exteriores da pessoa, cujo corpo os reve-
la. Contudo, se o amor não tiver raízes na interioridade, não será
amor. A interioridade é sumamente importante e faz despertar
sentimentos direcionando à pessoa de modo integral, permitindo

38 Idem, p. 128.

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A ética do amor autêntico a partir da obra

um real conhecimento da pessoa ao qual o amante se dirige. Para


que esse amor não seja anulado por desejos egoístas e falsas im-
pressões, o autor propõe um amor moral. Por meio dele deseja-se
que os dois não se envolvam em vista apenas do prazer, mas que
a união dos valores que a pessoa de cada um traz os façam mais
humanos.

Considerações finais

Impelidos pelo anseio de conhecer a ética do amor autêntico,


a nossa pesquisa consistiu em apresentar as reflexões de Karol
Wojtyla, na sua obra Amor e Responsabilidade, a respeito do amor
esponsal na relação a dois. Segundo ele, o amor deve ser vivido
pelo viés da comunhão e da responsabilidade: uma ética do amor
autêntico, superando o utilitarismo. O amor não é apenas uma
confluência de ações afetivas e sexuais, mas acima de tudo, via
para uma vida conjugal integrada.
A resumida apresentação que fizemos da vida pessoal e
intelectual de Karol Wojtyla foi suficiente para percebermos
que os desfechos dos acontecimentos trágicos levaram ele a ser
influenciado intelectualmente por santos e filósofos como São
João da Cruz, Max Scheler, São Tomás de Aquino e Aristóteles.
Já ao apresentar as obras que ele produziu, cujo conteúdo traz
reflexões filosóficas, antropológicas e teológicas, nos deparamos
com o ser humano ocupando o centro do pensamento desse autor.
Por meio desse artigo compreendemos ainda a importância
do amor marcado pela amizade, no qual o amante vê à amada
com um outro eu, cooperando para uma convivência harmoniosa.
Mas verificamos que para o casal viver um amor verdadeiro,
somente o entusiasmo suscitado pela Philia (amizade) não é
suficiente. Essa união deve ser acompanhada também pelo amor
de concupiscência (Eros). Assim, o Eros e a Philia, unidos a outros
elementos, possibilitam equilíbrio para construção de um amor
autêntico.
A experiência afetiva do amante não deve ater-se à atração
e a emoção que sente em relação à amada. A reflexão, que se
manifesta na buscar por conhecer a amada, deve averiguar se há

165
A ética do amor autêntico a partir da obra

reciprocidade, já que ela é fundamental nesse caminho. Se apenas


um amar, não é possível que o casal viva um amor autêntico.
Com a reciprocidade virá a proximidade e o diálogo entre os
dois, o que será necessário para conhecerem a pessoa um do outro. Em
decorrência pode surgir entre os dois uma simpatia, sentimento que
nasce da empatia, fruto da relação existente entre as experiências que
os dois viveram anteriormente, com uma contribuição da vontade.
A simpatia permeada por elementos subjetivos: a amizade dará
equilíbrio a essas forças. A amizade tem em vista um envolvimento
afetivo condicionada aos valores e virtudes que a outra pessoa
possui, atribuindo um caráter de objetividade à relação.
A ética do amor autêntico nos levou a compreender que
na amizade deve estar contido um sentimento de altruísmo e de
camaradagem. O primeiro dará vida a uma disposição a abrir mão
de si em vista do outro. O segundo tornará o amor afetivo em
efetivo.
Com essa pesquisa concluímos ainda que no amor há duas
dimensões: uma psicológica e outra moral. O amor psicológico
aponta que o ser humano ama não apenas com o corpo, também
com a alma, pois possui uma interioridade. Por isso, conhecimento
do valor da pessoa do outro se faz necessário. Nesse quadro o amor
moral surge como o fundamental auxílio nessa análise a respeito
da realidade que perpassa a pessoa atraente.
A moral torna o amor uma virtude, pois tem em vista
sempre o valor da pessoa e o seu bem. O amante movido por esse
sentimento, para o bem da amada, dispõe-se a viver essa virtude.
Em um ato de liberdade decide abrir mão de si para viver, em um
amor esponsal, uma entrega total à amada e vice-versa.
Ressaltamos que a ética do amor autêntico atinge o seu ápice
no amor esponsal, mostrando que é possível, na relação a dois, um
amor que não espera o prazer como retribuição utilitarista. Esse
sentimento entre as duas pessoas que se unem, na sua essência, é
pura comunhão e responsabilidade, superação do amor hedonista.
Os pressupostos para viver essa responsabilidade estão fundados
no verdadeiro conhecimento da realidade que envolve os dois, para
além dos desejos e emoções. Isso só é possível ao reconhecermos o
valor da pessoa, essencialmente inalienável e insubstituível.

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A ética do amor autêntico a partir da obra

Em meio à sociedade atual, com todas as suas dificuldades


em viver o amor, a ética do amor autêntico, a partir da obra
Amor e Responsabilidade, de Karol Wojtyla, oferece uma segura
contribuição. Colocando-a em prática, a pessoa, ao sentir-se
atraída por alguém, antes de responder aos sentimentos e emoções
despertados, buscará conhecê-la, rompendo as impressões e
sensações para adentrar ao mundo interior da outra pessoa.
Há duas realidades que surgem como um desafio para a
ética do amor autêntico. A erotização, na música, no cinema e
propaganda, por exemplo, nos leva a cada vez mais valorizar os
aspectos físicos em detrimento do valor da pessoa. Essa ética
pede o reconhecimento do valor da pessoa e não apenas do seu
corpo enquanto fonte eminente de prazer. Outro entrave é o
imediatismo. Para reconhecer o valor de uma pessoa e viver uma
relação estável é necessário tempo e dedicação. Uma vez que o
amante é imediatista, preferirá saborear o prazer a contemplar o
valor da pessoa, o que gera relações superficiais, com motivações
fugazes, intensas, que todavia terminam as vezes antes de começar.
Em suma, o reconhecimento do valor da pessoa atraente,
que se dá como que em uma retirada da capa da exterioridade, leva
o amante a dirigir-se a ela com amor, como ao lidar com algo raro,
fino, usando de delicadeza. Deste modo, a ética do amor autêntico
vem a ser útil não apenas para a vida conjugal, mas também para
as demais relações sociais.

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A ética do amor autêntico a partir da obra

Referências

ACCATTOLI, Luigi. Karol Wojtyla: o homem do fim do mi-


lênio. Tradução de Clemente Raphael Mahl. São Paulo: Paulinas,
1999.
ARISTÓTELES. A ética a Nicômaco. Tradução, adicionais
e notas de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2014. (Série Clássicos
Edipro).
CANTO SPERBER, Monique. Dicionário de ética e filosofia
moral. São Leopoldo - RS: Unisinos, 2013.
SILVA, Paulo Cesar da. A ética cristã de Karol Wojtyla: ética
sexual e problemas contemporâneos. Aparecida: Editora Santuário,
2001.
WOJTYLA, Karol. Amor e Responsabilidade: moral sexual e
vida interpessoal. Cidade: editora, 1979.
______. Mi visión del hombre. Madrid: Biblioteca Palabra,
2010.
______. Persona y acción. Tradução de Juan Manuel Burgos e
Rafael Mora. Madrid: Biblioteca Palabra, 2011.

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