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AS ROTAS DA VARÍOLA:
Perspectivas sociais da disseminação
da varíola e do serviço de vacinação
no Rio de Janeiro...
Poliana Orosa
AS ROTAS DA VARÍOLA: Perspectivas sociais da disseminação da varíola e do serviço de vacinação
no Rio de Janeiro Imperial (1830-1880).
Ent re vacinas, doenças e resist ências: os impact os de uma epidemia de varíola em Port o Ale…
Jaqueline Brizola
Bet ween vaccines, diseases, and resist ances: t he impact s of a smallpox epidemic in ninet eent h-cen…
Jaqueline Hasan Brizola, Fábio Kühn
AS ROTAS DA VARÍOLA:
Perspectivas sociais da disseminação da varíola e do serviço de vacinação
no Rio de Janeiro Imperial (1830-1880).
RIO DE JANEIRO
2021
Orosa Rodrigues, Poliana
As rotas da varíola: Perspectivas sociais da
696 disseminação da varíola e do serviço de vacinação no
Rio de Janeiro Imperial (1830-1880). / Poliana
Orosa Rodrigues. -- Rio de Janeiro, 2021.
96f.
Aprovado em:
Banca examinadora:
_________________________________________________
Profa. Dra. Claudia Rodrigues
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO
_________________________________________________
Profa. Dra. Mariana Muaze
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO
_________________________________________________
Profa. Dra. Laurinda Maciel Rosa
Casa de Oswaldo Cruz – COC/Fiocruz
Rio de Janeiro
2021
AGRADECIMENTOS
acompanhamento foi crucial para elaboração desse trabalho e por ele sou eternamente
grata.
“Em certo sentido, a doença só passa a
existir quando decidimos de comum acordo que
ela existe – percebendo-a, dando-lhe nome e
respondendo a ela.”
C. E. Rosenberg
7
RESUMO
ABSTRACT
This dissertation analyzes the presence of smallpox and the struggle against the
disease in the city of Rio de Janeiro, especially in the Royal Court, between the 1830s
and 1880s. Taking into account how the disease behaved in the city and how it’s residents
reacted to the threat of smallpox, and also the reasons why, despite the existence of
entities responsible for the vaccination service since 1811, the Court presented cases of
smallpox both endemic and epidemic ways, during all the 19th century. We will mainly
use, the work of Baron de Lavradio, one of the main medical figures of his time, and his
work “Esboço historico das epidemias que tem grassado na cidade do Rio de Janeiro
desde 1830 até 1870”, and excerpts found in newspapers, with the aim of investigating
the presence of smallpox in the daily life of the Brazilian Empire. In order to understand
how the Fluminense Court behaved in the face of the smallpox threat, analyzing the
population, those who exercised the popular knowledge of healing and scientific practice;
medical theories and the social content involved in them.
INTRODUÇÃO .............................................................................................................10
CAPÍTULO 1 - A história da varíola no mundo e suas principais características .14
1.1 A varíola no corpo humano .................................................................................. 14
1.2 A varíola em suas formas...................................................................................... 16
1.3 Práticas de cura ocidentais no combate a varíola.................................................. 22
1.4 A Progressão da varíola (séc XV ao XVIII) ......................................................... 29
CAPÍTULO 2 - A varíola no Brasil .............................................................................34
2.1 A provável chegada da varíola e sua presença no Brasil colônia ......................... 34
2.2 A prática de cura colonial ..................................................................................... 40
2.3 A vacina jenneriana em terras brasileiras ............................................................. 47
CAPÍTULO 3 - A varíola na capital do Império ........................................................56
3.1 O cotidiano da varíola na corte ............................................................................. 56
3.2 O estabelecimento da prática médica licenciada .................................................. 64
3.3 Varíola: biológica, social e cultural ...................................................................... 75
CONCLUSÃO................................................................................................................85
FONTES ........................................................................................................................88
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................92
INTRODUÇÃO
1 GURGEL, Cristina Brandt Friedrich Martin; DA ROSA, Camila Andrade Pereira; CAMERCINI, Taise
Fernandes. A Varíola nos tempos de Dom Pedro II. Cadernos de História da Ciência, [S.l.], v. 7, n. 1,
maio 2019, p. 59
2
FERNANDES, Tania Maria. Vacina antivariólica: visões da Academia de Medicina no Brasil Imperial.
Hist. cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 11, supl. 1, 2004, p.145.
11
3
FERNANDES, Op. cit.
4 Esboço historico das epidemias que teem grassado na cidade do Rio de Janeiro desde 1830 até 1870”.
Diário Official do Império do Brazil , Rio de Janeiro, 1872
5
Hemeroteca Digital, BN. Diário do Rio de Janeiro, 7 de janeiro de 1822, p.4. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/094170_01/1333 Acesso: Maio de 2021.
6
CHALHOUB, Op. cit.
7
LEVI, GUIDO CARLOS; KALLAS, ESPER GEORGES. Varíola, sua prevenção vacinal e ameaça como
agente de bioterrorismo. Rev. Assoc. Med. Bras., São Paulo, v. 48, n. 4, Dec. 2002, pp.359.
8
ROSENBERG, Op. Cit., p.306.
12
científica; as teorias médicas e o teor social envolvido nas mesmas. Apesar de o discurso
médico brasileiro ter se apropriado de teorias sobre doenças9, essas também tiveram a
influência de discursos locais.
Levando em consideração esse objetivo, é fundamental entender os processos
relativos ao cotidiano da Corte, como técnicas de cura e a influência da religiosidade.
Além disso, também será necessário compreender como funcionavam e atuavam os
órgãos governamentais e médicos envolvidos no combate à doença e suas lideranças. Os
responsáveis por esses órgãos eram, em sua maioria, ligados à elite médica da época e
por isso é importante entender a dinâmica destes grupos, além de analisar quem eram
essas figuras e qual foi o papel exercido por elas. Explorando todos esses pontos, será
possível examinar o impacto da varíola nesta sociedade e podermos entender melhor
como esses acontecimentos posteriormente culminaram nas fortes epidemias que
atingiram a corte nas últimas décadas do século XIX.
Este trabalho está dividido em três capítulos. No primeiro, analisaremos as
características principais da doença, já que se trata de uma doença erradicada
mundialmente na década de 1980. Em seguida, observaremos as primeiras evidencias
históricas do surgimento da doença, e como esta progressivamente se espalhou pelos
continentes, adquirindo características culturais próprias em cada um deles. Abordaremos
também as técnicas de cura empregadas no controle da varíola no ocidente, até a
descoberta da vacina de Jenner.
No segundo capítulo, apresentaremos a chegada da varíola no Brasil, e como
ela está intimamente relacionada ao projeto imperialista europeu. Em seguida,
observaremos como as práticas de cura ocidentais se desenvolveram no contexto colonial,
adquirindo formatos únicos, até que eventualmente a vacina jenneriana chegasse à solo
brasileiro.
No terceiro e último capítulo, será analisado a constância e presença da varíola
na corte carioca, levando em consideração o andamento dos órgãos de vacinação e o
aspecto das marcas da varíola nos anúncios de escravos publicados nos periódicos da
época. Refletiremos ainda sobre como o processe de institucionalização da prática médica
interferiu e influenciou o combate a varíola na cidade. Analisaremos as brechas sociais e
institucionais do sistema de vacinação, levando em consideração seu direcionamento, e a
resistência de parte da população ao mesmo. Por fim, observaremos como os escravizados
9
FERNANDES, Op. Cit., p.144
13
10
SNOWDEN, Frank. Epidemics in Western Society Since 1600: Smallpox (I): "The Speckled Monster"
(Yale University: Open Yale Courses.
11
FENNER F, Henderson D, Arita I, Jezek Z, Ladnyi ID. ‘The history of smallpox and its spread around
the world’. In: Fenner F, Henderson D, Arita I, Jezek Z, Ladnyi ID, editors. Smallpox and its
eradication. Geneva: WHO; 1988, p.210.
12
SNOWDEN, Frank. Smallpox (I): "The Speckled Monster" Op. Cit.
13
SNOWDEN, Frank. Smallpox (I): "The Speckled Monster" Op. Cit.
15
razões do adoecimento, bem como seu poder de contágio e por esta razão, não se sabiam
ainda da necessidade de quarentena e isolamento.14
Posteriormente, surgiam os sintomas mais característicos da varíola com o
aparecimento progressivo das erupções cutâneas, se espalhando geralmente da mucosa
oral, rosto até as extremidades do corpo.15 Nesse ponto, o paciente podia apresentar
dificuldade de falar e engolir e também podia apresentar lesões na língua e céu da boca.
O surgimento progressivo de pus nas feridas também podia ocasionar delírios, febre
intensa e em casos mais graves, sepses. Numa era sem a presença dos antibióticos, a morte
ocasionada por infecções secundárias era muito comum. Quando o indivíduo sobrevivia.
dependendo da intensidade dessas lesões e das complicações causadas pela doença, esses
danos físicos poderiam se tornar permanentes.16As marcas irreversíveis são um dos danos
posteriores principais da varíola, assim como foi à cegueira. Frank Snowden aponta que
durante os séculos XVII e XVIII a varíola foi uma das maiores causadora de cegueira na
Europa.17 Além disso, a desfiguração causada em diversas pessoas certamente teve
impacto no mercado dos casamentos. Também se destacam os danos psicossociais
gerados pela doença, pois a aparência das pessoas era modificada para sempre.18
Em relação ao surgimento da doença, as primeiras teorias a respeito da presença da
varíola em humanos são alguns relatos de pragas existentes antes da era cristã, dentre elas
se destacam: a praga de Hititas, ocorrida no Egito em 1346 a.C; a praga de Atenas em
430 a.C; o cerco a Siracusa, que impediu o controle da Sicília pelos cartagineneses em
395 a.C.19 Vestígios físicos de lesões em múmias da 18ª dinastia egípcia a.C.20, também
indicam a presença da varíola no Egito. Outras hipóteses defendem seu surgimento na
Índia, como retratado no livro sagrado do hinduísmo, Atharva Veda.21
Apesar das características singulares posteriores ocasionadas pela varíola,
descrições mais consolidadas pelas pesquisas e bibliografias recentes, definem sua
presença a partir da era cristã, tendo grande presença nos locais com maior concentração
14
SNOWDEN, Frank. Smallpox (I): "The Speckled Monster" Op. Cit.
15
1527 SCHATZMAYR, Hermann G.. A varíola, uma antiga inimiga. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro,
v. 17, n. 6, Dec. 2001, p. 1527.
16
SNOWDEN, Frank. Smallpox (I): "The Speckled Monster" Op. Cit.
17
SNOWDEN, Frank. Smallpox (I): "The Speckled Monster" Op. Cit.
18
SNOWDEN, Frank. Smallpox (I): "The Speckled Monster" Op. Cit.
19
TOLEDO JUNIOR, Antônio Carlos de Castro. ‘História da varíola’, In: Revista Médica de Minas
Gerais, Minas Gerais, v. 151, fev. 2004, p.58.
20
LEVI, GUIDO CARLOS; KALLAS, ESPER GEORGES. ‘Varíola, sua prevenção vacinal e ameaça
como agente de bioterrorismo’. In: Rev. Assoc. Med. Bras., São Paulo, v. 48, n. 4, Dec. 2002, pp.357.
21
TOLEDO JUNIOR, Op. Cit., p.59
16
de pessoas22. O primeiro relato efetivo da doença surge na China nos escritos de Ko Hung,
alquimista da Dinastia Jin, no ano de 340 D.C.23 Com isso, a doença vai progressivamente
se espalhando e aumentando seus relatos, locais com altas concentrações de pessoas,
foram sendo sistematicamente os primeiros a receber a doença. A alta movimentação
ocasionada pelas guerras, e pelas rotas de mercadorias também foram fortes aliadas para
o espalhamento da doença.24
22
TOLEDO JUNIOR, Op. Cit., p.59
23
TOLEDO JUNIOR, Op. Cit., p.59.
24
SNOWDEN, Frank. Op. Cit.
25
FENNER F, Henderson D, Arita I, Jezek Z, Ladnyi ID. ‘The history of smallpox and its spread around
the world’. In: Fenner F, Henderson D, Arita I, Jezek Z, Ladnyi ID, editors. Smallpox and its
eradication. Geneva: WHO; 1988, p.216.
26
FENNER F. e al. Op. cit., p. 219.
27
FENNER F. e al. Op. cit., p. 219.
17
28
FENNER F. e al. Op. cit., p. 219.
29
FENNER F. e al. Op. cit., p. 214.
30
FENNER F. e al. Op. cit., p. 217.
31
TOLEDO JUNIOR, Op. Cit., p.61.
32
TOLEDO JUNIOR, Op. Cit., p.61.
18
33
TOLEDO JUNIOR, Op. Cit., p.60.
34
TOLEDO JUNIOR, Op. Cit., p.59.
35
SNOWDEN, Frank.: Smallpox (II): Jenner, Vaccination and Erradication, Op. Cit.
36
FENNER F. e al. Op. cit., p. 229.
37
TOLEDO JUNIOR, Op. Cit., p.60.
38
TOLEDO JUNIOR, Op. Cit., p.60.
39
FENNER F. e al. Op. cit., p. 229.
19
urbanos europeus, entre os séculos XVII e XVIII. Grandes transformações vividas no que
diz respeito à circulação, como a Expansão Ultramarina e o avanço do comércio
transoceânico alavancaram sua transmissão, espalhando-se para outros continentes por
meio da colonização europeia. É justamente durante o século XVII que a varíola substitui
a peste negra, tornando-se a praga mais temida do continente.40
Outra descoberta no ramo médico que também ocorre no século XVII é do físico
Thomas Sydenham, como já havia feito séculos atrás Ko Hung na Ásia, ele descreve as
distinções presentes entre a varíola e o sarampo, por diversas vezes as doenças foram
confundidas por suas semelhanças.41 Estima-se que 1/3 da mortalidade infantil durante o
século XVII seja atribuída à varíola, a doença se tornou a maior causa de cegueira42 nesse
período, tendo sido responsável pelo término da dinastia Stuart (XIV-XVIII), na
Inglaterra. No decorrer do século XVIII aproximadamente 400.000 pessoas morriam da
doença por ano.43 Destacam-se as grandes epidemias ocorridas em Paris em 1719 e 1723.
Ainda durante o século XVIII a varíola fez uma quantidade relevante de vítimas
nos tronos europeus, dentre elas estão: Rainha Mary II da Inglaterra (1662-1694), o rei
Luís I da Espanha (1707-1724), Czar Pedro II da Rússia (1715-1730), a Rainha Ulkira
Eleonora da Suécia (1688-1741), rei Luís XV da França (1715-1774).44 E ainda
incontáveis membros das famílias reais, como da tragédia pessoal de Maria I de Portugal
que assistiu a morte de seu herdeiro D. José (1766-1788), D. Mariana Vitória (1768-1788)
sua filha, o marido da mesma o infante D. Gabriel (1752-1788), e ainda seu neto Carlos
(1788) que faleceu aos 12 dias de vida, todos vítimas da varíola.
Assim como enxergado na Ásia, uma divindade religiosa também foi atribuída à
varíola. O patrono da doença no catolicismo foi, São Nicasius, ele foi bispo de Rheims
na França, e apesar de ter morrido por decapitação no século V, foi atribuído à varíola
por aparentemente ter sobrevivido à mesma pouco antes de sua morte. 45 Donald A.
Henderson e al. destaca que o santo passou a ser referenciado durante a Idade Média,
perdendo espaço com o avanço da peste negra sobre o continente.46 Entretanto o mesmo
passa a retomar sua notoriedade com o avanço da varíola no final do século XVII.47
40
SNOWDEN, Frank. Smallpox (I): "The Speckled Monster" Op. Cit.
41
FENNER F. e al. Op. cit., p. 229.
42
A cegueira causada pela varíola se dava através do acometimento da córnea pela doença.
43
LEVI; KALLAS, Op. cit.
44
FENNER F. e al. Op. cit., p. 230-231.
45
SNOWDEN, Frank.: Smallpox (II): Jenner, Vaccination and Erradication, Op. Cit.
46
FENNER F. e al. Op. cit., p. 219.
47
SNOWDEN, Frank.: Smallpox (II): Jenner, Vaccination and Erradication, Op. Cit.
20
48
REZENDE, J. M. De. Dos quatro humores às quatro bases. À sombra do Plátano: crônicas de história
da medicina. [S.l.]: Editora Fap-Unifesp, 2009. p.50.
49
A indução ao suor, aliada a outras práticas como a utilização de purgantes e sangrias buscava a
restauração do equilíbrio do corpo, que derivava da teoria dos humores.
50
SNOWDEN, Frank. Smallpox (I): "The Speckled Monster, Op. cit.
51
FENNER F. e al. Op. cit., p. 231.
52
FENNER F. e al. Op. cit., p. 231.
21
outra hipótese provável é que a introdução da varíola tenha se dado no século X, por
intermédio dos árabes através das rotas comerciais.53
No século XVI, o leste da África já apresentava a forma epidêmica da doença que
no mesmo século foi levada aos portos da parte ocidental do continente.54 Donald A.
Henderson e al. frisam que colônias árabes já estavam instaladas nas cidades portuárias
ao longo da parte oriental da África, e que o comercio árabe se estendeu pelas partes mais
distantes da Ásia. É provável, portanto, que a varíola fosse periodicamente importada
através das cidades portuárias entre o século XIII e XIV.55 Assim como em outros locais,
os portos foram fundamentais para a disseminação da doença. Nos reinos da África
Ocidental, é possível que a varíola tenha existido de forma endêmica bem antes do contato
com o continente europeu. O primeiro registro europeu que registra a presença da varíola
nessa parte da África data do século XVII, nesse momento a doença parece disseminada.56
O comércio de escravos contribuiu para o espalhamento da doença tanto no
continente africano, quanto para outras localidades. As caravanas que contribuíam para o
comércio humano ajudavam a carregar a doença a toda parte central da África, e na
caminhada de volta até costa, fazendo com que a doença transitasse por todo continente
e eventualmente fosse carregado para outros.57 A existência de uma divindade religiosa
da varíola em segmentos do continente africano indica a forte presença da doença nesses
locais.58 Como indica Donald A. Henderson e al.:
Nesse universo cultural, a doença ia além dos limites das teorias de contágio
europeias. Na cultura Yorubá, a doença seria considerada como tendo razões e origens
53
FENNER F. e al. Op. cit., p. 233.
54
FENNER F. e al. Op. cit., p.212.
55
FENNER F. e al. Op. cit., p. 233.
56
FENNER F. e al. Op. cit., p. 233.
57
FENNER F. e al. Op. cit., p. 233.
58
FENNER F. e al. Op. cit., p.219.
22
mágicas. As pústulas eram vistas com significando por vezes um castigo da furiosa deusa
Sopona, os motivos desses castigos podiam ter uma gama de explicações como a violação
das tradições ou o descumprimento dos deveres para com os deuses.59
No ocidente, a prática médica foi pautada pela medicina humoral por mais de dois
mil anos e só começou a perder espaço devido às descobertas da estrutura celular do corpo
humano e da microscopia.60 A noção dos humores vem da antiguidade, idealizada por
Hipócrates, derivando da ideia da existência de uma substância presente no corpo
humano, que comandaria a manutenção da vida e da saúde. O conceito passa a
posteriormente se dividir aos quatro humores do corpo: o sangue, a fleuma, a bile amarela
e a bile negra.61
Segundo Joffre Marcondes de Rezende a doutrina se encaixava perfeitamente com
a noção filosófica da estrutura do universo, correspondendo os quatro humores aos quatro
elementos (terra, ar, fogo e água), com as quatro qualidades (frio, quente, seco e úmido)
e também com as estações do ano (inverno, primavera, verão e outono). O processo de
cura, segundo Hipócrates, estava ligado à desarmonia desses humores, considerando que
o corpo humano teria uma tendência natural pra a cura, corrigindo a desarmonia.62 O
papel do médico nesse sentido, seria se aliar a natureza e ao corpo, pois o corpo sozinho
buscaria restaurar a saúde, bastando ao físico se unir nesse combate, auxiliando na
eliminação ou correção do humor desbalanceado.63
No que diz respeito à propagação da prática humoral, Galeno de Pérgamo foi seu
maior interprete. De acordo com Joffre Marcondes de Rezende, é ele quem reedita a
teorial humoral de Hipócrates:
59
FAGUNDES, F. R. R. As práticas de cura africanas, que viajaram nas redes de informações do Império
Ultramarino Português: final do século XVIII e ínicio do século XIX. In: V Seminário Fluminense de
Pós Graduandos em História, 2017, p.6.
60
REZENDE, J. M. De. Dos quatro humores às quatro bases. À sombra do Plátano: crônicas de história
da medicina. [S.l.]: Editora Fap-Unifesp, 2009. p. 52.
61
REZENDE, J.M. Op. Cit., p.50.
62
REZENDE, J.M. Op. Cit., p.51-52.
63
Frank Snowden, Epidemics in Western Society Since 1600: Classical Views of Disease: Hippocrates,
Galen, and Humoralism. (Yale University: Open Yale Courses), http://oyc.yale.edu (Accessed May 13,
2009). License: Creative Commons BY-NC-SA
23
Outro grande defensor da prática humoral foi Thomas Sydenham, médico inglês do
século XVII, cujo livro, Observationes Medicae, teve grande repercussão, lhe rendendo
o título de “Hipócrates inglês”. A adoção da prática médica humoral perdurou pelo menos
até o século XVIII, quando começa a ser questionada após a descoberta da noção dos
elementos de Lavoisier. 65
Em relação ao tratamento da varíola, práticas humorais foram amplamente
utilizadas, como o método da sangria, largamente adotado na prática médica ocidental,
até o século XIX. Outro cuidado relacionado à medicina humoral foi a indução ao suor,
na intenção de expulsar a doença do corpo através do mesmo.66
A partir de 1720, as técnicas de tratamento ocidentais são impactadas pela chegada
da variolização no continente europeu.67 Originária da Ásia, a prática consistia na
inserção intradérmica das crostas de erupção variólica em pessoas saudáveis. O objetivo
era induzir uma forma mais branda da doença, e assim obter imunidade. Diversos métodos
de variolização foram observados ao redor do mundo, como, por exemplo, o de
introdução nasal observado na China, aqui já citado.68
Utilizada a milênios na cultural oriental, a Royal Society of London já recebia nas
primeiras décadas do século XVIII comunicados sobre os resultados dos métodos chinês
e turco de variolização (bem semelhante ao método hindu).69 Mas a técnica foi realmente
introduzida na Europa através de Lady Montagu, esposa do embaixador inglês na
Turquia. De acordo com Magali Romero Sá, após ter feito inocular seu filho de três anos
de idade, em 1717, na Turquia, a repetiu posteriormente, já de volta à Inglaterra, em 1721,
64
REZENDE, J.M. Op. Cit., p.52.
65
SNOWDEN, Frank. Classical Views of Disease: Hippocrates, Galen, and Humoralism, Op. Cit.
66
SNOWDEN, Frank. Smallpox (I): "The Speckled Monster, Op. Cit.
67
TOLEDO JUNIOR, Op. Cit., p.61.
68
TOLEDO JUNIOR, Op. Cit., p.61.
69
TOLEDO JUNIOR, Op. Cit., p.61
24
em sua filha de cinco anos. Ela auxiliou amplamente a difusão da técnica no país e
posteriormente no resto do continente.70
A prática pode ser entendida como o primeiro esforço efetivo de combate à varíola
no continente. Entretanto, ainda apresentava riscos, pois a inoculação era feita com o vírus
que causava a doença, o que podia ocasionar casos de contaminação. O processo em si
era doloroso e incomodo, podendo ocorrer exantemas como é possível observar na
Imagem 3 e 4, também poderia haver febre e evolução para casos graves.71 Por isso, a
prática era geralmente operada com a presença de um físico ou curandeiro, que conduziria
a variolização. Na Europa, o processo era feito dessa maneira, sendo o indivíduo
confinado para o procedimento. Além disso, tinha sua dieta, exercícios e ar controlados,
tudo de acordo com a prática médica do período.72
Imagem 3 – Progressão do processo de variolização, do segundo ao décimo dia feito a partir das
ilustrações publicadas por Gold-Kirtland no início do século XIX
FONTE: KIRTILAND,
Gold. 30 plates of the smallpox and
cowpox drawn from nature. 1802, Welcome Institute Library London. Disponível em:
https://wellcomecollection.org/works/e3wv4nrv/items.
70
SÁ, Magali Romero. A "peste branca" nos navios negreiros: epidemias de varíola na Amazônia colonial
e os primeiros esforços de imunização. Rev. latinoam. psicopatol. fundam., São Paulo, v. 11, n. 4, supl,
Dec. 2008, p. 821-822.
71
TOLEDO JUNIOR, Op. Cit., p.61.
72
SNOWDEN, Frank.: Smallpox (II): Jenner, Vaccination and Erradication, Op. Cit.
25
FONTE: KIRTILAND, Gold. 30 plates of the smallpox and cowpox drawn from nature. 1802, Welcome
Institute Library London. Disponível em: https://wellcomecollection.org/works/e3wv4nrv/items.
73
FENNER F. e al. Op. cit., p.231.
74
FENNER F. e al. Op. cit., p.231.
75
TOLEDO JUNIOR, Op. Cit., p.61.
26
Um ano depois, em 1796, Jenner inocula uma criança, com o material retirado das
lesões de cowpox de uma mulher que trabalhava no campo. O menino não apresenta
sintomas após a performance da inoculação, a prática é então replicada em outras
crianças, que também não sofrem de varíola (smallpox). Esta técnica fica conhecida como
vacinação braço a braço. Em 1801, Edward Jenner publica seu trabalho intitulado The
origin of the vaccine inoculation.80
Sua descoberta enfrentou certa resistência inicial, pelo fato de inocular em humanos
um material que adivinha de animais.81 No início do século XIX, o público “educado” já
era receptivo à ideia de Jenner e a vacina, que mantinha os benefícios da variolização,
com riscos bem menores.82 Como a variolização era feita a partir do vírus humano, era
possível que neste processo ocorresse à contaminação em outras pessoas e, para isso, era
76
LOPES, Myriam Bahia. O sentido da vacina ou quando o prever é um dever. Hist. cienc. saude-
Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, Junho 1996, p. 66.
77
“O dr. Hunter, que defende a unicidade entre a blenorragia, a sífilis e o cancro, se inocula o vírus da
sífilis. Ele mobiliza os seus sentidos para estudar experimentalmente a sífilis. Seu corpo se transforma
em um quadro vivo da doença que se apaga por ocasião de sua morte, anos após a inoculação
experimental.” LOPES, Op. Cit., p.71.
78
LOPES, Op. Cit., p.71.
79
TOLEDO JUNIOR, Op. Cit., p.62.
80
TOLEDO JUNIOR, Op. Cit., p.62.
81
SNOWDEN, Frank.: Smallpox (II): Jenner, Vaccination and Erradication, Op. Cit.
82
FENNER F. e al. Op. cit., p.261.
27
necessário o isolamento da pessoa durante a prática. Como a inoculação era feita a partir
do cowpox, esse risco não ocorria, pois não se tratava do vírus humano (smallpox).83 A
progressão do processo de inoculação pelo cowpox era menos agressivo por isso, como
observado nas Imagens 5 e 6.
Imagem 5 – Progressão do processo de inoculação com o cowpox, do segundo ao décimo dia, feito a
partir das ilustrações publicadas por Gold-Kirtland no início do século XIX.
FONTE: KIRTILAND,
Gold. 30 plates of the smallpox and cowpox drawn from nature. 1802, Welcome Institute Library London.
Disponível em: https://wellcomecollection.org/works/e3wv4nrv/items.
83
FENNER F. e al. Op. cit., p.261.
28
84
TOLEDO JUNIOR, Op. Cit., p.62.
85
TOLEDO JUNIOR, Op. Cit., p.63.
86
SNOWDEN, Frank.: Smallpox (II): Jenner, Vaccination and Erradication, Op. Cit.
87
TOLEDO JUNIOR, Op. Cit., p.63.
88
As vacas são refratárias ao vírus sifilítico. LOPES, Op. Cit., p.66.
89
LOPES, Op. Cit., p.66.
29
90
LOPES, Op. Cit., p.67-68.
91
TOLEDO JUNIOR, Op. Cit., p.62.
92
SNOWDEN, Frank. Smallpox (I): "The Speckled Monster, Op. Cit.
93
FENNER F. e al. Op. cit., p.232.
94
SNOWDEN, Frank.: Smallpox (II): Jenner, Vaccination and Erradication, Op. Cit.
95
TOLEDO JUNIOR, Op. Cit., p.61.
30
epidemiológica, uma vez que seus corpos não possuíam a memória imunológica
necessária para combater a doença.96
A expansão europeia nas Américas também inaugura o primeiro ato intencional de
terrorismo biológico, ocorrido na colônia norte-americana. Durante a Revolta de Pontiac
em 1763, que ocorreu entre ingleses e franceses aliados Iroquis, o general inglês Sir
Jeffrey Amherst ordenou que fossem distribuídos propositalmente cobertores infectados
com vírus da varíola para os índios. A entrega do material contaminado acarretou um
surto da doença entre os nativos, o que facilitou a vitória do lado inglês.97
No caso do continente africano, como já abordado aqui, a varíola já estivera ali
presente, pelo menos desde o século XVI, através das rotas comerciais com a Ásia. Tal
contato foi claramente intensificado após a presença europeia na África. Em alguns casos,
o colonialismo europeu introduziu a varíola em segmentos do continente africano onde a
doença ainda não havia chegado, como Cape Town, local livre da varíola até a chegada
dos holandeses em 1652.98
A presença da varíola em certos locais do continente também foi determinante para
realização do comércio de escravos, na segunda metade do século XVII. Angola
apresentou surtos da doença que acabaram por reduzir drasticamente o interesse dos
compradores de escravos.99 Mesmo não tendo sido essa a única razão para recessão
angolana, Leonardo Dallacqua de Carvalho e Wesley Dartagnan Salles argumentam que
a presença da varíola no local forneceu um argumento forte para a mudança desses
compradores para a Costa da Mina.100
Outro local que era controlado pelos portugueses e que viveu um problema
relacionado à presença da varíola foi Luanda, o que ocasionou a preferência pela Costa
da Mina no comércio de escravizados. O que se destaca nessa mudança é que a Costa da
Mina, diferentemente de Luanda onde o monopólio português estava estabelecido, os
negócios eram feitos livremente contando com a presença de holandeses, franceses e
96
SOUZA, Sheila Maria Ferraz Mendonça de; ARAUJO, A. J. G.; FERREIRA, L. F. Paleopatologia e
Paleoepidemiologia: o estudo da doença em populações pré-históricas brasileiras. In: SANTOS, R. V. e
COIMBRA JR., c.e.a (org). Saúde e povos indígenas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1994, v., p.28-29.
97
TOLEDO JUNIOR, Op. Cit., p.61.
98
FENNER F. e al. Op. cit., p.233.
99
CARVALHO, L. D.; SALLES, W. D. Varíola, tabaco e sistemas atlânticos: as causas da ascensão da
Costa da Mina e queda de Angola no comércio negreiro na segunda metade do século XVII. Revista
Brasileira do Caribe (Impresso), v.17, 2016, p.263.
100
CARVALHO, L. D.; SALLES, W. D. Op. Cit., p.278.
31
101
CARVALHO, L. D.; SALLES, W. D. Op. Cit., p.271-272.
102
FENNER F. e al. Op. cit., p.233.
103
GOMES, Wederson de Souza. Entre Costas da África e a praça mercantil do Rio de Janeiro: os conflitos
entre o corpo do comércio e os agentes de saúde na sociedade luso-brasileira
oitocentista. Temporalidades – Revista de História: UFMG, Minas Gerais, v. 12, n. 2, 30 set. 2020,
p.70.
104
CARVALHO, L. D.; SALLES, W. D. Op. Cit., p.267.
105
SÁ, Op. Cit., p. 819.
106
TOLEDO JUNIOR, Op. Cit., p.61.
32
doença.107 Ainda neste século, o governador de Cuba envia uma expedição sob o comando
de Narváez que desembarca no México, em abril de 1520. Junto à campanha do mesmo,
também estava um escravo africano, contaminado por varíola. As dimensões ocasionadas
pela contaminação foram descritas por um frade espanhol em 1525, que menciona o
tamanho da destruição acarretada pela doença.108
Consequências igualmente desastrosas também foram enxergadas em outros pontos
da América. O Império Asteca foi dizimado pela varíola, introduzida pelas expedições
conduzidas por Hernán Cortés. Outro caso semelhante foi o que atingiu o Império Inca,
na década de 1520, que acabou por ceifar a vida do imperador e de seus herdeiros, além
de boa parte de seu povo. O estrago causado pela doença acabou sucedido por uma guerra
civil que facilitou a dominação espanhola comandada por Francisco Pizarro. Em muitos
casos, como o asteca e o inca, a presença esmagadora da varíola foi fundamental para a
conquista europeia.109
Os territórios que hoje correspondem a Colômbia e Venezuela também vivenciaram
a mesma experiência devastadora ocasionada pela varíola em outros pontos da América.
No Chile, ela foi introduzida pela primeira vez em 1554 e depois novamente nos anos de
1561 e 1591.110 Dados indicam que em 1588 toda a face Sul do continente americano já
havia sido integralmente contaminada pela doença. Estima-se que a mortalidade fosse de
30% a 50% logo nos primeiros dias pós contágio, nos nativos localizados em ambos os
lados dos Andes.111 No México, a estimativa é que três milhões de nativos tenham
morrido por conta da doença. 112
Na colônia britânica, o primeiro registro da doença é de uma epidemia ocorrida na
costa leste, em Massachusetts, que durou de 1617-1619. Ela teria ocasionado grande
mortalidade entre os povos indígenas da localidade, como também observado nas
colônias espanholas. Por lá, a doença continuou a ser importada pelos navios
principalmente ao leste do continente, através da constante chegada de colonos e
posteriormente de escravos vindos da África, surtos continuaram a ocorrer durante todo
o século XVII.113
107
FENNER F. e al. Op. cit., p.236.
108
FENNER F. e al. Op. cit., p.236.
109
TOLEDO JUNIOR, Op. Cit., p.61.
110
FENNER F. e al. Op. cit., p.236.
111
GURGEL, Cristina Brandt Friedrich Martin; ROSA, Camila Pereira da. História da medicina: A varíola
no Brasil colonial (séculos XVI e XVII). Revista de patologia tropical, vol. 41(4), out- dez, 2012, p.390.
112
LEVI, GUIDO CARLOS; KALLAS, ESPER GEORGES. ‘Varíola, sua prevenção vacinal e ameaça
como agente de bioterrorismo’. In: Rev. Assoc. Med. Bras., São Paulo, v. 48, n. 4, Dec. 2002, pp.357.
113
FENNER F. e al. Op. cit., p.238.
33
114
FENNER F. e al. Op. cit., p.237.
115
FENNER F. e al. Op. cit., p.238.
34
CAPÍTULO 2
A varíola no Brasil
116
GURGEL; DA ROSA, Op. Cit, p.390
117
TOLEDO JUNIOR, Op. Cit., p.61.
118
GURGEL; DA ROSA, Op. Cit, p.390-391.
119
GURGEL, C. Doenças e Curas. O Brasil nos Primeiros Séculos. São Paulo: Editora Contexto, 2010, p.
124
120
FENNER F. e al. Op. cit., p.237.
35
surto de varíola dizimou quase toda a população em 1563.121 A doença também ganhava
força quando os habitantes, tentando fugir da contaminação, acabavam levando a varíola
a novos locais. Casos como esse foram registrados em redutos jesuíticos no Recôncavo
Bahiano durante o século XVI.122
No século seguinte, as empreitadas holandesas no Rio de Janeiro e na Bahia também
sofreriam as consequências da convivência com a varíola, em 1641, quando surtos da
doença que estariam ligados a escravos importados da África Central, causaram uma
grande epidemia.123 Outra epidemia também foi registrada em Santos em 1666, a
gravidade foi tamanha que uma passagem local relata que já não havia mais espaço na
igreja para que corpos fossem sepultados.124 Parecido ocorreu ainda século XVII no Grão
Pará e Maranhão, onde a varíola causou grande devastação principalmente para os povos
nativos e escravos.125 A varíola continuou a assolar toda extensão do solo brasileiro,
durante o século XVII com surtos sendo registrados em quase todas as décadas.126
No século XVIII, surtos de varíola continuam a ser registrados em diversos pontos.
Como observa Ernesto de Souza Campos, locais que já haviam sido atingidos pela varíola
como São Paulo e Maranhão sofrem mais uma vez com a violência da doença.127
A prática de deliberadamente entregar utensílios contaminados, que foi observada
nos EUA, também parece ter sido aplicada no Brasil de acordo com Cristina Gurgel. A
autora analisa um ofício feito em Ilhéus onde doações de objetos contaminados estariam
relacionados a baixas indígenas. Numa passagem do relato do naturalista Von Martius do
início do século XIX destaca a ‘técnica’ dos objetos contaminados sendo utilizada contra
povos nativos que importunavam os portugueses.128
Como indicado no primeiro capítulo os portos foram instrumentos fundamentais
para disseminação da doença no Brasil. Apesar de a entrada de escravos não ser a única
causa do incremento dos casos de varíola, a intensidade de navios desembarcando com
frequência nos portos cariocas com certeza teve relativo impacto na propagação da
doença; ainda mais se levarmos em consideração que parte desses escravos tinha como
121
GURGEL, C., Op. Cit., p.127.
122
GURGEL; DA ROSA, Op. Cit, p.392.
123
GURGEL; DA ROSA, Op. Cit, p.394.
124
CAMPOS, Ernesto de Souza. “Considerações sobre a ocorrência da varíola e vacina no Brasil nos
séculos XVII, XVIII e XIX vistas sobre a luz de documentação coeva”. In Revista do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro, vol. 231, abril-junho, 1956, p.142.
125
SÁ, Op. Cit., 819.
126
GURGEL; DA ROSA, Op. Cit, p.394.
127
CAMPOS, Op. Cit.
128
GURGEL, C., Op. Cit., p.129.
36
origem, locais onde a varíola era endêmica. Entre o século XVII e XVIII, por exemplo,
uma parte significante de escravos que entravam nos portos cariocas era oriunda da África
Central, onde epidemias de varíola já tinham impactado a atuação dos traficantes de
escravos.129
Essa situação ganha maior significado ao se levar em consideração o papel central
do Rio de Janeiro em um dos setores mais relevantes da economia colonial: o tráfico de
escravos.130 Ainda mais com as mudanças significativas no cenário carioca durante o
século XVIII. A descoberta das Minas fez crescer progressivamente a entrada de escravos
na cidade. Assim como ocorreu com o avanço na agricultura nos engenhos de açúcar e
plantações de café.131
Outros acontecimentos também impactaram a movimentação de entrada nos portos
do Rio de Janeiro, como a instalação do Tribunal da Relação, em 1752 132 e quando na
década seguinte o Rio de Janeiro passa a ser capital do Brasil e também sede do vice-
reinado, fazendo com que a população da cidade, assim como a demanda de mão de obra
escrava e o movimento do porto, aumentassem numerosamente.133 Todo esse processo
culminou, em meados do século XVIII, com a transformação do porto do Rio de Janeiro
no mais importante do Império português.134
A relevância da cidade e seu porto se intensificou ainda mais no início do século
XIX, com a chegada da família real e a abertura dos portos em 1808. O que alterou
significativamente o quantitativo de pessoas que circulavam pela cidade, bem como
novos produtos para que a cidade se adaptasse à chegada da Corte, além do aumento da
demanda por escravos que atendessem a demanda dos recém-chegados.135
A chegada da Corte no Brasil também trouxe novos impasses, um dos mais
relevantes é o que diz respeito às condições de vida na cidade. Tania Maria Fernandes
frisa que o quadro de morbi-mortalidade era preocupante e se colocava como empecilho
136
FERNANDES, Tania Maria. Vacina Antivariólica: ciência, técnica e o poder dos homens, 1808-1920.
2ed. rev./ Tânia Maria Fernandes. – Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2010, p.44.
137
EDLER, Flavio Coelho. Saber médico e poder profissional: do contexto luso-brasileiro ao brasil
imperial. In: REIS, José Roberto Franco; VELASQUES, Muza Clara Chaves. Cantos, contos e imagens:
puxando mais uns fios nessa história. Rio de Janeiro: Fiocruz/Epsjv, 2010. Cap. 1. p. 43.
138
HONORATO, Op, cit, p.120.
139
A peste negra até a descoberta da relação com os ratos era entendida com uma doença contagiosa. (Frank
Snowden, Epidemics in Western Society Since 1600: Plague (II): Responses and Measures (Yale
University: Open Yale Courses), http://oyc.yale.edu (Accessed May 13, 2009). License: Creative
Commons BY-NC-SA)
140
PIMENTA, Tânia Salgado; BARBOSA, Keith; KODAMA, Kaori. A província do Rio de Janeiro em
tempos de epidemia. Dimensões, v. 34, 2015, p.156.
141 O termo “bexigas” era o nome geralmente utilizado para designar a infecção por varíola.
38
142
CAMPOS, Op. Cit., p.138.
143
CAMPOS, Op. Cit., p.139.
144
HONORATO, Cláudio de Paula. Valongo: o mercado de almas da praça carioca. 1. ed - Curitiba: Appris,
2019, p.125, Apud LISBOA, Baltazar da Silva. Anais do Rio de Janeiro, 1834, v.2, p.53. In: ABREU,
Maurício. Geografia Histórica do Rio de Janeiro (1502-1700). Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson
Estudio, 2011. V.2, p.450.
145
HONORATO, Op, cit, p.91.
146
HONORATO, Op, cit, p.92.
147
HONORATO, Op, cit, p.93.
148
HONORATO, Op, cit, p.96.
149
Esboço historico das epidemias que teem grassado na cidade do Rio de Janeiro desde 1830 até
1870”. Diário Official do Império do Brazil , Rio de Janeiro, 1872.
39
os cargos passaram a centralizar a Fisicatura Real, que nomeados pelo rei fiscalizavam as
artes de curar no reino de Portugal e seus domínios.150
Segundo Tânia Salgado Pimenta, o Brasil passou a integrar os quadros da Fisicatura
a partir do regimento de 1744, que buscava em suma controlar as consequências da falta
do órgão controlador na colônia, uma vez que a falta dessa fiscalização levou a muitas
queixas e decisões arbitrárias daqueles que exerciam a prática médica.151 Mesmo assim,
não houve grandes mudanças e, em 1782, D. Maria transformou a Fisicatura em Real
Junta de Protomedicato. As funções exercidas não se alteraram, mas os cargos de físico-
mor e cirurgião-mor deixaram de existir, assumindo no lugar sete deputados.152
Com a chegada da família real no Brasil e a preocupação com o estado sanitário da
cidade, foi recriada a Fisicatura-Mor. O cargo de físico mor foi ocupado por Manoel
Vieira da Silva e o de cirurgião-mor por José Correia Picanço153. Junto com o regimento
da fisicatura, em 28 de julho de 1809, foi criada a Provedoria Mor da Saúde e o cargo de
provedor-mor da Saúde foi ocupado pelo aqui já citado, Manoel Vieira da Silva.154
Também conhecido como Barão de Alvaiazere, ele já havia sido deputado da Real Junta
do Protomedicado, e continuou a exercer cargo semelhante.155
Indo além da atuação da Fisicatura, cujas atribuições eram fiscalizar as artes de
cura, a Provedoria-mor de saúde buscava atentar-se aos cuidados da saúde da população,
visando principalmente à entrada de doenças através das embarcações como explicita o
Regimento da Provedoria:
150
PIMENTA, Tania Salgado. Artes de curar: um estudo a partir dos documentos da Fisicatura-mor no
Brasil do começo do seculo XIX. 1997. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Filosofia e Ciencias Humanas, Campinas, SP, p.20.
151
PIMENTA, Op, cit, p. 20-21.
152
PIMENTA, Op, cit, p. 22.
153
PIMENTA, Op, cit, p. 22.
154
HONORATO, Op, cit, p.121.
155
PIMENTA, Op, cit, p. 22.
156
PIMENTA, Tania Salgado. Artes de curar: um estudo a partir dos documentos da Fisicatura-mor no
Brasil do começo do seculo XIX. 1997. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Filosofia e Ciencias Humanas, Campinas, SP, p.20. Apud Regimento da Provedoria-mor de
Saúde, de 22 de janeiro de 1822, códice 528, vol 1, AN.
40
estava relacionada com a recente abertura dos portos, que aumentaria o fluxo de
imigrantes e também de escravos trazidos das costas africanas.157
Como provedor-mor de Saúde, Manoel Vieira da Silva promoveu um debate
importante sobre a fiscalização dos navios que chegavam à cidade, principalmente os
envolvidos com tráfico de escravos.158 Nesse contexto, é possível identificar
discordâncias entre o provedor-mor e os principais comerciantes portuários da cidade,
gerando um debate sobre a necessidade de inspeção e quarentena dos navios para evitar
a disseminação de epidemias na cidade. Nessa discussão, Vieira da Silva chega a invocar
a importância dessas práticas para a ‘saúde pública’, e alega que nações estrangeiras mais
zelosas já praticam as quarentenas e inspeções.159
O fato é que algumas embarcações, mesmo sob os protestos do provedor-mor,
obtiveram isenção das inspeções de saúde.160 Enquanto os traficantes de escravos
conseguiam licença para que todos os escravos sadios fossem levados banhados, vestidos
e direcionados aos seus proprietários, os não sadios ficariam a cargo do físico-mor.161
Essas medidas acabavam por vezes, sendo burladas e tudo isso se constituía em um
elemento que dificultava a concretização de medidas higiênicas na cidade.
Como analisado anteriormente, até 1744 não havia nenhum tipo de controle sob as
práticas de curar no Brasil, tendo elas sido regulamentadas por meio do “Regimento que
devem observar os Comissários delegados do Fisico-mor do Reyno no Estado do Brazil
elaborado em 1742 por ordem de D. João V”, regimento que estendia o funcionamento
da Fisicatura-Mor de Portugal ao Brasil. 162
157
PIMENTA, Op, cit, p. 24.
158
GOMES, Wederson de Souza. Entre Costas da África e a praça mercantil do Rio de Janeiro: os conflitos
entre o corpo do comércio e os agentes de saúde na sociedade luso-brasileira
oitocentista.. Temporalidades – Revista de História: UFMG, Minas Gerais, v. 12, n. 2, 30 set. 2020,
p.74.
159
HONORATO, Cláudio de Paula. Valongo: o mercado de almas da praça carioca. 1. ed - Curitiba: Appris,
2019, p.125, Apud Série Sáude IS2 – Protesto do Provedor contra a isenção de visita da saúde de algumas
embarcações.
160
HONORATO, Op. Cit., p.124.
161
O físico-mor, cargo derivado da Fisicatura-Mor, deveria atuar no serviço de higiene, além de outras
atribuições. GOMES, Op. Cit., p.77.
41
163
PIMENTA, Op, cit, p. 20-22.
164
PIMENTA, Op. Cit., p.310.
165
PIMENTA, Op. Cit., p.311.
166
PIMENTA, Op, cit, p. 15-16.
167
RIBEIRO, MM. A Ciência dos Trópicos: a Arte Médica no Brasil do Século XVIII. São Paulo: Hucitec,
1997, p.34
168
RIBEIRO, Op. Cit., p.35.
42
Para além de somente médicos, a falta de cirurgiões e até mesmo boticários fez com
que esses ofícios fossem ocupados por qualquer indivíduo que demostrasse algum tipo de
dom terapêutico.169 Mesmo nos locais mais urbanizados, a falta de pessoas habilitadas
nas artes de curar foi padrão170. Como já relatado aqui na metade do século XVIII havia
para a cidade do Rio de Janeiro três médicos e três cirurgiões licenciados.
Até mesmo quando se tratava dos medicamentos, no período colonial foi necessário
se submeter ao que havia disponível, uma vez que remessas de remédios eram
esporádicas. Isso fez com que houvesse um maior aproveitamento de itens nativos,
adaptando itens europeus aos brasileiros.171 Nesse sentido, os cargos de boticário também
sofriam com a ausência de pessoas habilitadas. O que fez com que muitas pessoas
desprovidas de aptidão assumissem a função, para além do serviço precário, como
observado por Márcia Moíses Ribeiro, acarretando também o abuso de preços, um
comércio que de acordo com a autora se tornava “altamente lucrativo e capaz de gerar
disputas acirradas pelo direito de vendas.”172 Talvez por essa razão tenha se feito
necessário o regimento que em 1744 fixava o preço de uma variedade de medicamentos,
buscando evitar vendas exorbitantes.173
Apesar da presença dos oficiais, essa não parece ter sido suficiente para a
quantidade de pessoas a fiscalizar. Mesmo que a falta de fiscalização incomodasse as
autoridades competidas, o fato é que a distância entre metrópole e colônia facilitou as
diversas modalidades da medicina popular.174
Mais próximos do cotidiano da vida colonial, governadores e representantes das
câmaras municipais atentavam para a impossibilidade de transpor as leis portuguesas para
a realidade da vida na colônia.175 A hierarquização médico-científica enxergada na
Europa não era vista no Brasil, o que fez com que a tradição popular se influísse
fortemente sob as tentativas de institucionalização da medicina que ocorreriam durante o
século XIX.176
169
RIBEIRO, Op. Cit., p.38.
170
RIBEIRO, Op. Cit., p.33.
171
RIBEIRO, Op. Cit., p.24-26.
172
RIBEIRO, Op. Cit., p.31.
173
RIBEIRO, Op. Cit., p.31.
174
RIBEIRO, Op. Cit., p.42.
175
RIBEIRO, Op. Cit., p.40.
176
FERREIRA, Luiz Otávio. Medicina impopular: ciência médica e medicina popular nas páginas dos
periódicos científicos (1830-1840). In: Chalhoub, Sidney; Marques, Vera Regina Belträo; Sampaio,
Gabriela dos Reis; Galväo Sobrinho, Carlos Roberto. Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de
história social. Campinas, Unicamp, 2003, pp.102.
43
Muito além das práticas não oficializadas de cura, a medicina colonial foi permeada
pela combinação das tradições dos três povos que ali estavam: os povos indígenas,
europeus e africanos. Entre eles se encontrou um elemento em comum: a associação entre
a doença e o divino.177
A conexão das doenças às forças sobrenaturais já era um fenômeno conhecido de
sociedades do Antigo Regime, e foram intensificados na colônia, fazendo parte do
cotidiano das classes superiores até as mais populares.178 Elas teriam nutrido “novos
elementos ao imaginário europeu relativo à arte médica”, a presença e a convivência entre
esses povos teriam feito com que crenças e costumes fossem apropriados nesses sistemas
de cura.179
Muito além de somente métodos de cura, a ausência de terapêuticos europeus
também fez com que se recorresse aos elementos naturais do local, cujos povos nativos
conheciam bem. Os jesuítas tiveram papel relevante nesse intercambio de remédios,
através da troca de informações entre campos e da elaboração da farmacopeia jesuítica.180
A conexão entre medicina humoral e cosmo já era utilizada largamente na Europa
Moderna. Esses hábitos também foram trazidos no Brasil.181 A medicina culta se
misturava às noções mágicas de cura, coexistindo entre “experiência e a crença.”182
Apesar dessas práticas terem sido extensamente condenadas na metrópole, o cenário
encontrado na colônia era outro.183 Sendo por vezes propositalmente ignoradas pelo clero,
principalmente porque parte delas derivava de crenças que vinham da Europa
Medieval.184 A relação entre as doenças e os astros também ajudava a designar porque
certos locais eram atingidos por determinadas doenças e isso foi levado em consideração
pelos colonos ao determinar porque o Brasil era tão atingido pelo mal de bexigas, a razão
estaria essencialmente em seu clima propício as doenças, como pode ser observado no
livro Ramalhete de Dúvidas, publicado pelo médico lusitano, Alexandre da Cunha:
P. Porque razão, os cometas da América produzem mais seus
efeitos fazendo bexigas, do que em outras partes do mundo? R. Porque
as bexigas se fazem por ebulição e fervor do sangue, e o clima da
América naturalmente é quente, e úmido, e por isso mais capaz para
177
RIBEIRO, Op. Cit., p.23.
178
RIBEIRO, Op. Cit., p.44.
179
RIBEIRO, Op. Cit., p.55.
180
RIBEIRO, Op. Cit., p.61-62.
181
RIBEIRO, Op. Cit., p.73.
182
FERREIRA, Op. Cit., p. 102.
183
MOTT, LUIZ. "Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu", in Laura de Mello e Souza
(org.), História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa (São Paulo:
Companhia das Letras, 1997), pp. 192.
184
MOTT, Op. Cit., p. 199.
44
As teses mais básicas de Galeno também tiveram associações com o divino. Entre
os quatro humores, por exemplo, se associava o da melancolia como o favorito do
demônio e por isso seria mais adequada a utilização de um purgante para que o mesmo
fosse eliminado.186 Os métodos de purga e vomitórios foi um dos mais utilizados pela
medicina humoral.
Essas associações também se estendiam a determinadas substâncias, Márcia Moises
analisa que venenos eram comumente confundidos com feitiços pela dificuldade entre se
tratar ambos, pelo dano semelhante eles eram geralmente associados.187 Assim como o
consumo de determinadas substâncias repugnantes foram utilizadas no tratamento de
doenças, sendo a moléstia um castigo divino, o consumo de tais elementos possibilitaria
restaurar a saúde.188
Também eram atribuídas a certas partes do corpo aberturas mágicas que drenariam
o mal que acometia o indivíduo. Elas eram permeadas pela ideia de que se poderia
transferir o mal da pessoa para outro local.189 Uma técnica como esta é descrita para sanar
a varíola no livro “Árvore da Vida”, escrito pelo Padre Affonso da Costa e publicado em
torno de 1720, que busca, segundo o mesmo, “"curar com facilidade quasi todas as
doenças, e queixas, a que a corpo humano esta sogeito, principalmente em terras
destituidas de Medicos e Boticas".190 A técnica indicada pelo padre seria a seguinte:
se aplicaram na sola dos pés com o peito para as mesmas solas pombos
vivos amarrando-os levemente para que não morram logo. E melhor
que tudo será pegando nos pombos com a mão e aplicar o seu sesso
(ânus) ao sesso do enfermo como muitas vezes tenho visto; porque
assim atrai mais depressa a malignidade do mal a si, e morre, e
morrendo um aplique-se logo outro, e assim se continue, até que um
185
RIBEIRO, MM. A Ciência dos Trópicos: a Arte Médica no Brasil do Século XVIII. São Paulo: Hucitec,
1997, p.74. Apud Alexandre da Cunha. Ramalhete de dúvidas. Porto, Oficina de Francisco Mendes de
Lima, 1759, p.234.
186
RIBEIRO, Op. Cit., p.81.
187
RIBEIRO, Op. Cit., p.51.
188
Algumas desses antídotos utilizados contra doenças eram: fezes humanas, compostos a base de pedras
e excrementos, muco nasal, o sangue menstrual. Atribuía-se a grande parte deles propriedades mágicas,
de acordo com o mal que atingia o indivíduo. RIBEIRO, Op. Cit., p.72.
189
RIBEIRO, Op. Cit., p.84.
190
COSTA, Affonso da. Árvore da Vida … Província de Goa, 1720. Welcome Institute for the History of
Medicine.
45
191
COSTA, Affonso da. Op. Cit.
192 MEIRELLES, J. G. Ilustração, medicina e circulação de ideias no mundo luso-brasileiro (séc. XVIII-
XIX). Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, [S. l.], v. 9, n. 17, 2017, p.150.
193
PIMENTA, Op, cit, p. 307-308.
194
MARCÍLIO, Maria Luiza. Mortalidade e morbidade da cidade do Rio de Janeiro imperial. Revista de
História, [S.L.], n. 127-128, 30 jul. 1993. Universidade de Sao Paulo, Agencia USP de Gestao da
Informacao Academica (AGUIA), p.54.
195
MARCÍLIO. Op. Cit., p.51.
196
MEIRELLES, J. G. Ilustração, medicina e circulação de ideias no mundo luso-brasileiro (séc. XVIII-
XIX). Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, [S. l.], v. 9, n. 17, 2017, p.155. Apud
46
Ele também destaca o porto como local de perigo para espalhamento de doenças,
sendo, de acordo com Maria Luiza Marcílio, um “ponto produtor de doenças e mortes”.
A sugestão do físico é que fosse criado um lazareto aonde os escravos recém-chegados
seriam destinados para quarentena e também aqueles que tiverem qualquer tipo de doença
contagiosa ou cutânea.197 O trecho de maior relevância no trabalho de Manoel Vieira no
contexto que busco analisar é justamente o que retrata a questão dos médicos não
licenciados na cidade do Rio de Janeiro:
SILVA, Manoel Vieira da. Reflexões sobre alguns dos meios propostos por mais conducentes para
a melhoria do clima da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1808, p.21-22.
197
MARCÍLIO. Op. Cit., p.51.
198
MEIRELLES, J. G. Ilustração, medicina e circulação de ideias no mundo luso-brasileiro (séc. XVIII-
XIX). Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, [S. l.], v. 9, n. 17, 2017, p.15. Apud
SILVA, Manoel Vieira da. Reflexões sobre alguns dos meios propostos por mais conducentes para
a melhoria do clima da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1808, p.26-27.
199
FERREIRA, Op. Cit., p. 102.
200
MEIRELLES. Op. Cit., p.146.
47
farmacêutico José de Souza Pinto.201 A publicação de todas essas obras, assim como
outras, contribuiu pra disseminação das ideias ligadas a prática médica oficializada
É nesse contexto que a vacina contra a varíola chegaria a terras brasileiras, vacina
jenneriana já vinha sendo difundida pela Europa no final do século XIX, sendo pouco a
pouco adotada pelos diferentes países. Portugal já havia enviado a vacina antivariólica
para Goa, na Índia, em 1802. Em Lisboa, ela chega dois anos depois e, a partir deste
momento, as autoridades coloniais são alertadas sobre a possibilidade da vacinação.202
Logo, a propagação do pus vacínico foi ordenada principalmente do marquês de
Barbacena e outros comerciantes da Bahia, o envio de sete escravos é custeado para que
fossem a Europa, onde eles seriam inoculados através do método ‘braço a braço’ e
voltariam para o Brasil carregando o pus vacínio em si, para que fosse posteriormente
utilizado em outras pessoas.203
A necessidade da importação do material vacinal para o Brasil residia no fato de o
cowpox não ser encontrado em animais daqui. O que fez com que a linfa fosse importada
durante um período considerável de tempo.204 Mesmo com a importação sendo feita,
alguns ofícios apresentados por Ernesto de Souza Campos mostram que o procedimento
muitas vezes não dava certo. Em um ofício enviado em 17 de janeiro de 1805, o pus
vacínio é encomendado no Maranhão. Mas, cerca de um mês depois, um novo ofício
enviado ao Visconde de Anadia mostra que eles não obtiveram sucesso:
Apesar das tentativas de importação, nem sempre elas davam certo. Essa questão
geralmente tinha a ver com a má operação do pus vacínio e também com a baixa qualidade
da linfa varíola oferecida, e ainda pelas dificuldades que o trajeto além-mar apresentava
até a chegada ao Brasil. No caso de Saldanha Gama, por exemplo, sua primeira tentativa
foi feita através da importação da Inglaterra, mas essa não trouxe os resultados esperados.
Ele pede então para que se traga o material que estava na Bahia e havia sido importado
de Portugal. Apesar de num primeiro momento, as alegações sobre a chegada da vacina
serem positivas, logo fica demostrado outra tentativa falha.206
O sucessor de Saldanha Gama, em 11 de agosto de 1806, envia um ofício para
comunicar que a tratativa não havia sido tão bem-sucedida como ele argumentou no
passado:
Tendo o General meu antecessor mandado vir da Cidade da Bahia por
duas veses a vacina não produziu effeito algum a primeira e a segunda
que se presumia verdadeira, tem sido causa de ter perecido das bexigas
naturaes uma tão grande parte das pessoas que se vaccinarão: e isto
talvez procedido do mau estado em que ambas as vezes em que aqui
veio (...)207
Com a vinda da família real ao Brasil, junto com diversos outros órgãos também
foi criada por D. João em 1811 a Junta Vacínica da Corte, que estaria subordina à
Fisicatura-Mor, a qual, como observado, devia fiscalizar as práticas de curar na colônia,
e a Intendência Geral de Polícia.208
No mesmo ano em que a linfa variólica chega ao Brasil, ela também chega ao solo
carioca, utilizando do mesmo método braço a braço que foi operado de Lisboa a Bahia.
Antes mesmo da chegada da família real ao Brasil, a vacinação no Rio de Janeiro passou
a ocorrer às quintas-feiras e domingos no Palácio do Governo. O serviço de vacinação e
a conservação da linfa ficaram a cargo do médico Hercules Octaviano Muzzi. 209
De acordo com o médico responsável pela vacinação e também de acordo com o
vice-rei, a adesão à vacinação teria sido positiva. Sidney Chalhoub atribui a aceitação
inicial à vacina principalmente à atitude favorável de Dom João VI, tendo vacinado seus
206
CAMPOS, Op. Cit., p.154.
207
CAMPOS, Ernesto de Souza. “Considerações sobre a ocorrência da varíola e vacina no Brasil nos
séculos XVII, XVIII e XIX vistas sobre a luz de documentação coeva”. In Revista do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro, vol. 231, abril-junho, 1956, p.155. Apud Arquivo do Conselho Ultramarino, v
6., 1792-1807, p.364.
208
GURGEL e al. Op cit.,p.59.
209
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. 2ªed. - São Paulo:
Companhia das Letras, 2017, p.124.
49
210
CHALHOUB, Op. Cit., p.124-125.
211
HONORATO, Op, cit, p.132.
212
CHALHOUB, Op. Cit., p.125-126.
213
FERNANDES, Tania Maria. Vacina Antivariólica: ciência, técnica e o poder dos homens, 1808-1920.
2ed. rev./ Tânia Maria Fernandes. – Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2010, p.45.
214
GURGEL e al. Op cit., p.59.
215
HONORATO, Op, cit, p.131.
216
CHALHOUB, Op. Cit., p.128.
217
HONORATO, Op, cit, p.132.
50
218
HONORATO, Cláudio de Paula. Valongo: o mercado de almas da praça carioca. 1. ed - Curitiba: Appris,
2019, p.132, Apud FREIREYSS, George W. Viagem ao interior do Brasil nos anos de 1814-1815. Trad.
Alberto Lofren. São Paulo: 1982, p.130.
219
HONORATO, Op, cit, p.133.
220
HONORATO, Op, cit, p.132.
221
Quadro elaborado a partir dos registros reunidos em: Gazeta do Rio de Janeiro, 22 de julho de 1820, p.
3.
51
Os dados mostram que o número de pessoas negras vacinadas eram quase todos os
anos o triplo em relação às pessoas brancas vacinadas. Também demonstra que o número
de indígenas vacinados era baixíssimo, em nenhum ano atingindo mais de dez pessoas. O
gráfico também mostra outra coluna de alta importância: a dos que “não comparecerão”,
provavelmente, relativa aos que não retornaram ao serviço de vacinação para retirada da
linfa. No total, elas somam 9.810 pessoas, um pouco mais da metade do total.
Entretanto, o informativo publicado no jornal diz respeito somente aos vacinados
na Casa da Câmara, o que, levando em consideração o que já abordava Chalhoub, pode
indicar que a parcela mais rica da população provavelmente estava sendo vacinada em
suas casas por médicos particulares.222 Mesmo assim, ajuda a entender o perfil de
vacinados nas duas primeiras décadas do século XIX.
A criação da Junta, em 1811, inaugurou, segundo Filipe Portugal, a prática médica
como uma ação do estado, se assemelhando a órgãos que já existiam na Europa, como o
Instituto Vacinogênico Inglês, o Chambon de Paris e também a Academia de Ciências de
Lisboa e Portugal.223 Apesar disso, e da iniciativa de D. João, a vacinação teria tido pouca
expressividade quando comparada à presença da varíola na capital 224. Apesar dos
números que chegavam aos milhares, sendo apresentados pela Junta, eles eram pequenos
perto das quase cem mil pessoas que chegaram a habitar a cidade durante o período
Joanino225, mesmo quando levado em consideração que a parcela mais abastada da
população estava sendo vacinada em suas casas.
Apesar do aparente sucesso da vacinação nos primeiros anos, pela aceitação inicial
que esta manteve, a questão da linfa varíola se apresentou como um problema para o
avanço do sistema de vacinação. Em 1805, o governo do Espírito Santo, que vivia uma
epidemia de varíola, solicitou em ofício ao governo carioca o envio da linfa para que se
fizesse a vacinação. A resposta do Rio de Janeiro, entretanto, foi de que não havia linfa
disponível na capital, sendo a mesma enviada somente meses depois. Dessa maneira, o
222
CHALHOUB, Op. Cit., p.128.
223
PORTUGAL, F. S. A vacina antivariólica na Corte do Rio de Janeiro (1804-1820). In: Seminario
Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, 2016, Florianópolis. 15º Seminario Nacional de
História da Ciência e da Tecnologia, trabalhos completos, 2016, p.10.
224
FERNANDES, , Op. Cit., p.46.
225
PORTUGAL, Op. Cit., p.15.
52
serviço de vacinação teria sido suspenso por pelo menos alguns meses. No ano de chegada
da corte ao Brasil, o cenário parecia o mesmo, a vacinação não estava ocorrendo.226
Os problemas iam além da questão da linfa, de acordo com Sidney Chalhoub a
atuação do médico da corte, Theodoro Ferreira de Aguiar, seria meramente formal.227 No
que diz respeito à atuação da Polícia da Corte, a qual o órgão de vacinação estava
submetido. De acordo com Hercules Octaviano Muzzi, um dos médicos responsáveis pela
vacinação, era costume que um segurança da cavalaria fosse enviado para chamar os
vacinados para retornar e dar continuidade a vacinação braço-a-braço (que ocorria no
oitavo dia).228
A falta da linfa estava provavelmente relacionada ao seu mal estado e também ao
não retorno dos vacinado que, como atestam os dados fornecidos pela Junta, somavam
um número relativamente alto. Publicações foram distribuídas pelo Intendente aos
Ministros dos Bairros do Rio de Janeiro na tentativa de incentivar o retorno de vacinados,
implicando ainda que caso não voltassem isso implicaria na perda da linfa.229
Passagens nos jornais atribuíam o insucesso da vacinação à “ignorância, frouxidão
e preguiça com que os pais e chefes de família, se descuidam de fazer vacinar os filhos,
com a desculpa de que era incerto o efeito da vacina.”230 Outra questão recorrente é a de
que a população rural rejeitava a vacina, pois o procedimento da mesma poderia atrasar
o trabalho das plantações no campo.231 A aceitação dos primeiros anos, já não era mais
vista da mesma forma.
Algumas mudanças ocorrem na década de 1820. Segundo Tânia Maria Fernandes,
o novo período trazia “a perspectiva de constituição de um novo estado nacional, que
gradativamente foi incorporando vários setores”, como o da medicina e suas questões.
Com a constituição de 1824 e a lei de 1º de outubro de1828, que demarcava o poder e as
atribuições das câmaras municipais, algumas mudanças ocorreram. A Fisicatura-Mor, que
controlava as artes de curar e os serviços atribuídos a ela passaram a ser de competência
das câmaras municipais.232 Segundo Chahoub, a vacinação foi relativamente bem-
226
PORTUGAL, Op. Cit., p.4-5.
227
PORTUGAL, Op. Cit., p.10-11.
228
PORTUGAL, Op. Cit., p.11.
229
PORTUGAL, Op. Cit., p.12.
230
PORTUGAL, F. S. A vacina antivariólica na Corte do Rio de Janeiro (1804-1820). In: Seminario
Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, 2016, Florianópolis. 15º Seminario Nacional de
História da Ciência e da Tecnologia, trabalhos completos, 2016, p.12-13. Apud SILVA, Maria Beatriz
Nizza. A Gazeta do Rio de Janeiro (1808-1820): Cultura e Sociedade. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2007.
pág.75.
231
PORTUGAL, Op. Cit., p.12-13.
232
FERNANDES, , Op. Cit., p.46.
53
Apesar disso, a lei não atingiu seu objetivo, pois a obrigatoriedade geralmente não
era obedecida, uma vez que “o uso da vacina era muito desacreditado e temido”.238
Dois anos depois uma epidemia de varíola atingiu o Rio de Janeiro, tendo início em
1834 e só tendo fim no ano seguinte. O barão de Lavradio em seu livro ‘Esboço histórico
das epidemias que teem grassado na cidade do Rio de Janeiro’, ao tratar sobre a epidemia
de varíola, argumenta que havia alguns anos que a varíola não residia epidemicamente na
cidade, apesar de admitir que sua presença era endêmica em 1831.239
A epidemia teria tido início em julho, tendo caráter “mais ou menos grave”, tendo
acometido principalmente recrutas das províncias do norte, escravos e africanos em casas
de correção. A provável causa do reaparecimento da doença, na opinião de Lavradio,
233
CHALHOUB, Op. Cit., p.130-131.
234
FERNANDES, , Op. Cit., p.47.
235
GURGEL e al. Op Cit.,p.59.
236
GURGEL e al. Op Cit.,p.59.
237
FERNANDES, , Op. Cit., p.47.
238
FERNANDES, Tania Maria. Vacina Antivariólica: ciência, técnica e o poder dos homens, 1808-1920.
2ed. rev./ Tânia Maria Fernandes. – Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2010, p.47. Apud GUARANY, S.
Da vacinação e revacinação no Brasil. Memória apresentada à Academia Imperial de Medicina do Rio
de Janeiro. Gazete Médica do Rio de Janeiro, 23: 273-275, 1863.
239
REGO, José Pereira. Esboço historico das epidemias que teem grassado na cidade do Rio de Janeiro
desde 1830 até 1870”. Diário Official do Império do Brazil , Rio de Janeiro, 1872, p.4.
54
poderia ter a ver com o retorno do tráfico de escravos, através dos descumprimento da lei
de 1831, que previa a proibição do tráfico.240 Mesmo assim, o mesmo escreve que dentre
o “Seio da Sociedade de Medicina desencontradas foram as opiniões emitidas na
discussão”.241 Um dos trechos ressalta que a varíola estendeu suas vítimas até mesmo a
pessoas vacinadas, residindo aí um problema pertinente, uma vez que a questão da
contaminação pós vacina continuaria ao longo de todo o século XIX.242 A descrença
crescente sob a vacina estava principalmente relacionada a estes casos de contágio por
varíola mesmo após a vacinação. Um debate que se acendia na Europa após quase duas
décadas da descoberta do Jenner, era de que com o tempo o efeito da vacina se esvaia, e
que a revacinação poderia ser necessária.243
A situação não melhoraria nos anos seguintes, Chalhoub atesta que com a proibição
do tráfico em 1831 e a pressão inglesa, a vacinação de escravos teria se tornado cada vez
mais complicada ano após ano.244 De acordo com Lavradio, outra epidemia ocorre em
1836, tendo começado em setembro, mas agravada a partir do mês de março do ano
seguinte:
Começando em Setembro do mesmo anno por atacar com mais
violência alguns dos recrutas vindos do Pará, e soldados da artilharia-
de marinha, manifestou-se depois em vários pontos da cidade; mas,
conservando sempre pouca intensidade até o mez de Março de 1837,
tomou depois um caracter de gravidade, como, havia muito tempo, se
não tinha visto nesta cidade, atacando vaccinados e não vaccinados.245
Ao passo que a varíola avançava, a adesão à vacina diminuía cada vez mais.
Médicos que redigiam os relatórios da Junta argumentavam cada vez mais sobre o terror
da população com a vacina.246 A falta de retorno dessas pessoas comprometia fortemente
o sistema de vacinação que dependia da volta dos vacinados para a continuidade da
imunização.
A virada da década exigiu mudanças com o avanço das epidemias de varíola e febre
amarela. De acordo com Tânia Maria Fernandes, as iniciativas tomadas a partir desse
240 José Pereira Rego provavelmente se refere ao tráfico ilegal advindo do descumprimento da lei Feijó, de
1831. Que ficou conhecida como “lei para inglês ver”, pois a publicação da mesma advinha da pressão
diplomática inglesa para descontinuidade do tráfico, que como indica a expressão acima não foi levada
a cabo.
241
REGO, José Pereira, Op. Cit., p. 6.
242
REGO, José Pereira, Op. Cit., p.6.
243
FERNANDES, Op. Cit., p.48.
244
CHALHOUB, Op. Cit., p.129.
245
REGO, José Pereira, Op. Cit., p.22-23.
246
CHALHOUB, Op. Cit., p.131.
55
247
FERNANDES, Op. Cit., p.50.
248
GURGEL e al. Op Cit., p.60.
56
CAPÍTULO 3
A varíola na capital do Império
Como foi possível observar nos capítulos anteriores, a varíola fez parte do dia a dia
do Rio de Janeiro. Apesar das tentativas de combate, a doença se espalhou com
intensidade na cidade ao longo do século XIX. A população escrava, grupo mais
comumente associado à doença, sofria com o contágio muitas vezes antes mesmo de
deixar o continente africano. Embarcados em condições desumanas e altamente propícias
a propagação da doença, muitos já desembarcavam na cidade contaminados, já outros
seriam contaminados nas epidemias e endemias que nela ocorreriam.
A vacinação obteve determinado direcionamento para os escravizados. Porém, as
estratégias não foram suficientes para conter o avanço da varíola entre a população
escrava, como aqui foi observado. Apesar da prática de variolização não ser tão difundida
em Portugal e seus domínios, é possível que ela fosse utilizada no caminho além-mar por
sangradores que operavam nos navios. Isto porque, de acordo com Fernanda Ribeiro
Rocha Fagundes, os traficantes de escravos já estavam cientes da prática de variolização,
que vinha sendo difundida na Europa antes mesmo da descoberta de Jenner. 249 Além
disso, os escravos costumavam rejeitar físicos dentro dos navios, preterindo africanos
sangradores que geralmente vinham da África Centro-Ocidental e tinham “uma
proximidade de complexo cultural, uso da língua Bantu e visões cosmológicas” em
comum.250
Charles Rosenberg argumenta que, muito além de somente um evento biológico as
doenças também legitimam ações, políticas públicas, e sanções baseadas em valores
culturais. Muito além de só atingirem o corpo, as doenças se comportam como um agente
249
FAGUNDES, F. R. R., Op. Cit., p. 6.
250
FAGUNDES, F. R. R., Op. Cit., p. 8.
57
social.251 Dessa maneira, o grupo majoritariamente atingido e o lugar social que ele ocupa,
podem impactar diretamente a maneira como a sociedade de modo geral lida com a
ameaça da doença. No caso da varíola na cidade do Rio de Janeiro, isso pode ser
claramente enxergado no direcionamento que o combate a doença manteve em relação a
população negra. Numa sociedade altamente hierarquizada como o império brasileiro, os
escravos foram apontados como principal agente causador. Da mesma maneira, o serviço
antivaríolico foi voltado principalmente para esse grupo, como pode ser analisado através
dos dados de vacinação.
No cotidiano da corte carioca, seja endêmica ou epidemicamente, a varíola
permaneceu continuamente nos quadros médicos da cidade durante o século XIX. As
marcas deixadas pela varíola no continente europeu já causavam problemas relacionados
ao mercado de casamentos e danos psicossociais. Isso porque as pústulas, tão
características da contaminação por varíola, eram em muitos casos agravadas por
determinadas medicações utilizadas pela prática médica do período, como uso do
mercúrio. Outro ponto complicador eram as infecções secundárias, que acabavam por
deixar as feridas mais fundas e mais difíceis de serem removidas.252 Em um trecho
publicado no primeiro tratado médico brasileiro em 1735, o Érario Mineral, uma receita
busca solucionar os problemas causados pelos “sinaes ou covas de bexigas”253 No Rio de
Janeiro a presença constante de escravos contaminados e posteriormente marcados,
parece ter ocasionado outro tipo de impacto.
Um exemplo desta desfiguração em solo carioca pode ser visto na forma como as
marcas de varíola foram usadas na sociedade escravista do Rio de Janeiro enquanto forma
de caracterizar e diferenciar escravos fugidos, como observado em diversos anúncios
descrevendo escravos com “signaes de bexigas ou “picado de bexigas” no jornal Diário
do Rio de Janeiro:
251
ROSENBERG, Charles. Framing disease: Illness, society and history. In: Rosenberg, Charles.
Explaining epidemics and other studies in the history of medicine. Cambridge: Cambridge University
Press, 1992, p.305-306.
252
SNOWDEN, Frank. Smallpox (I): "The Speckled Monster" Op. Cit.
253
FERREIRA, Luís Gomes. Erário mineral (Org. Júnia Ferreira Furtado). Belo Horizonte; Rio de Janeiro:
Fundação João Pinheiro; Fundação Oswaldo Cruz, 2002, p.355.
58
entregallo na rua Direta Nº 32, lado direito indo para o largo do Paço,
onde se lhe recompençará o seu trabalho.254
254
Hemeroteca Diginal, BN. Diário do Rio de Janeiro, 7 de janeiro de 1822, p.4 Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/094170_01/1333. Acesso: maio de 2021.
255
Hemeroteca Diginal, BN. Diário do Rio de Janeiro, 29 de março de 1824, p.4. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/094170_01/3965. Acesso: maio de 2021.
256
Hemeroteca Diginal, BN. Gazeta do Rio de Janeiro, 26 de julho de 1820, p.4. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/749664/5997 Acesso: maio de 2021
257
Hemeroteca Diginal, BN. Diário do Rio de Janeiro, 17 de janeiro de 1822, p.2 Disponível em:.
http://memoria.bn.br/DocReader/094170_01/1367 Acesso: maio de 2021.
59
Ainda foi possível encontrar alguns anúncios que mencionavam escravos que
haviam fugido com o enxerto da linfa antivariólica em si:
258
LOPES, Op. Cit., p.69.
259
Hemeroteca Diginal, BN. Diário do Rio de Janeiro, 28 de agosto de 1824, p.4. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/094170_01/4454. Acesso: maio de 2021.
260
Hemeroteca Diginal, BN. Diário do Rio de Janeiro, 28 de agosto de 1824, p.4. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/094170_01/4454. Acesso: maio de 2021.
60
A escolha em descrever que sua escravizada ainda não havia tido a doença pode
ajudar a indicar a presença constante da enfermidade na cidade, principalmente entre as
crianças.
Apesar dos problemas enfrentados pelo sistema de vacinação do Rio de Janeiro, ele
provavelmente funcionava melhor na sede da Corte do que em outros locais do Brasil.
Mesmo dentro do espaço territorial do Rio de Janeiro, as regiões mais distantes já
enfrentavam complicadores no exercício da vacinação.
Um artigo publicado no Astrea, jornal da cidade do Rio de Janeiro, na década de
1830, pelo “Excel. Sr. Ministro do Império” demostra certa preocupação com o estado da
saúde pública em outros locais que não a cidade do Rio de Janeiro. Ao se referir
especificamente sobre a vacinação, ele comenta sobre o feito da descoberta para os
médicos e como mesmo preservaria o “bello sexo” provavelmente levando em
consideração as marcas comumente vistas depois da contaminação da doença, que
podiam causar grande deformação, a possibilidade da vacinação, preservaria as mulheres
desse dano. Ainda assim, argumenta que:
261
Hemeroteca Diginal, BN. Diário do Rio de Janeiro, 7 de maio de 1824, p.4. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/094170_01/4093. Acesso: maio de 2021.
61
262
Hemeroteca Diginal, BN. Astrea, 23 de junho de 1832, p.3. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/749700/3386. Acesso: maio de 2021.
263
FERNANDES, Tania Maria. Imunização antivariólica no século XIX no Brasil: inoculação,
variolização, vacina e revacinação. Hist. cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 10, supl. 2, 2003,
p.464.
264
Hemeroteca Diginal, BN. Seminário de Saúde Publica pela Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro,
26 de março de 1831, p.2. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/702560/69. Acesso: maio de
2021.
62
O trecho assinado por Luiz Vicenti De-Simone, continua pontuando que para o
pleno exercício da vacinação seria necessário ainda o apoio da população, além do apoio
do governo para que, enquanto não fosse possível obter a linfa diretamente de Londres,
está fosse disponibilizada de outro lugar. Para isso também seriam necessárias instruções
precisas relativas à vacinação, para assim se pudesse dar continuidade ao processo ‘braço
a braço’.
Há ainda relatos durante a segunda metade do século XIX de que vacinadores não
estavam sendo pagos.265 E mesmo antes, quando da criação do Instituto Vacínico do
Império na década de 1840, incluíam em seu quadro de funcionários quatro vacinadores
efetivos, dois supranumerários, um Comissário Vacinador na capital de cada província e
Comissários Vacinadores em todos os povoados”266. Esses números seriam certamente
insuficientes para atender toda a província do Rio de Janeiro.
Já a questão da linfa antivariólica se estendeu como um problema durante todo o
século XIX no Brasil, a solução seria obtida com a chegada da vacina animal que
ocorreria no final do mesmo século.267 A todas essas questões se juntaria a progressiva
reação negativa da população em relação à vacina.
A historiografia sobre a história da vacinação antivariólica é diversa, mas na obra
de Sidney Chalhoub, Cidade Febril, encontramos um capítulo dedicado a desmembrar as
origens da vacinofobia. Uma das primeiras razões abordadas por ele é a presença de um
médico lusitano, ainda sob o governo de D. João VI, que se opunha à vacinação e a criação
de Jenner. A sua visão negativa sobre a vacina teria tido impacto nos primeiros bons anos
de vacinação no Brasil.268
No quesito médico, as controvérsias daqueles que não acreditavam na vacina
geralmente estavam associadas à crença de que a mesma não tinha efetividade ou que no
ato da vacinação pudesse haver algum tipo de transmissão de doenças do gado para
humanos. Apesar de não estarem relacionadas ao gado, algumas doenças contagiosas
realmente puderam ser ocasionadas no ato da vacinação, como foi o caso da sífilis.269
As razões médicas para a desconfiança da vacina se reacenderam mais ou menos
na metade do século XIX, quando na Europa e no Brasil se sucederam casos de vacinados
265
PIMENTA; BARBOSA; KODAMA, Op. Cit., p.158.
266
GURGEL e al. Op cit., p.60.
267
FERNANDES, Tania. Vacina antivariólica: seu primeiro século no Brasil (da vacina jenneriana à
animal). Hist. cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 6, n. 1, jun. 1999, p.32.
268
CHALHOUB, Op. Cit., p.133.
269
CHALHOUB, Op. Cit., p.134.
63
que haviam sido contaminados pela varíola. Isso acabou ocasionando um debate acerca
da eficácia da própria vacina e também sobre a possível necessidade de revacinação, que
era por muitos médicos mal-vista.270
Outra razão comumente explorada pela historiografia e por Chalhoub era que o
processo “braço a braço” era demorado e incomodo. A questão do retorno do vacinado já
havia se tornado um problema nos quadros de vacinação da cidade, esse impasse muitas
vezes derivava da tensão entre vacinados, vacinadores e autoridades policiais. Estas
pressionavam o retorno dos vacinados, o que muitas vezes para essas pessoas podia ser
uma ocasião desconfortável por causa da técnica que também levava uma quantidade de
tempo alta. 271
Além disso, o próprio quadro de funcionários do serviço de vacinação não parecia
em pleno funcionamento, ao ponto de o primeiro diretor do Instituto, o dr. Theodoro
Ferreira de Aguiar, ser descrito por Chalhoub como o primeiro funcionário fantasma da
Corte. Para além disso, havia também a questão da precarização da linfa. Os vacinadores
eram poucos para os serviços a desempenhar, e pareciam não gostar de exercer sua função
fora do Instituto; o que complicaria ainda mais a já difícil vacinação para outras áreas da
cidade.272
Além disso, Chalhoub analisa um trecho escrito pelo Barão de Lavradio onde o
mesmo insinua que a população poderia ter dificuldade em distinguir os métodos de
variolização e inoculação.273 O que de fato podia ocorrer, uma vez que se tratavam de
técnicas parecidas. Enquanto a variolização era feita com o vírus da varíola humana
podendo realmente acarretar surtos da doença, a inoculação braço a braço era feita de
forma parecida mais usando o agente bovino da doença.
Tânia Maria Fernandes analisou as razões para a confusão entre as práticas
utilizadas, o que por sua vez poderia até mesmo ter acarretado dificuldade na verificação
do estado vacinal. Outro ponto abordado pela autora, é que a questão da contaminação
após a vacina poderia ser ocasionada pela dificuldade/confusão de diagnóstico. A
catapora, por exemplo, era frequentemente confundida com a varíola.274
270
CHALHOUB, Op. Cit., p.138.
271
CHALHOUB, Op. Cit., p.141.
272
CHALHOUB, Op. Cit., p.142-143.
273
CHALHOUB, Op. Cit., p.148.
274
FERNANDES, Op. Cit., p. 464-465.
64
275
FERNANDES, Op. Cit., p. 35.
276
LOPES, Op. Cit., p.73.
277
SNOWDEN, Frank.: Smallpox (II): Jenner, Vaccination and Erradication, Op. Cit.
278
LOPES, Op. Cit., p.73.
279
SNOWDEN, Frank.: Smallpox (II): Jenner, Vaccination and Erradication, Op. Cit.
280
LOPES, Op. Cit. p.73.
281
FERREIRA, Op. Cit., p. 101-102.
282
LOPES, Op. Cit., p.73.
65
início do século XIX, mais precisamente em 1808, foram criadas duas escolas de
medicina e cirurgia, posteriormente elas foram transformadas em Academias Médico-
cirúrgicas, uma no Rio de Janeiro (1813) e outra na Bahia (1816). Entretanto, as licenças
para exercer os ofícios de cura continuavam submetidas à Fisicatura-Mor do Reino. Tânia
Maria Fernandes destaca a pouca autonomia e articulação dessas escolas médicas,
principalmente por estarem ligadas à Fisicatura.283 Em relação a outros ofícios de cura,
como sangradores, parteiras, boticários e curandeiros, constata-se que, apesar da carta da
Fisicatura restringindo sua atuação, essas pessoas continuavam a operavam além do que
lhe era concedido, prescrevendo remédios e praticando suas artes de curar 284.
Grande parte dos órgãos destinados às práticas de curar sofreram significativas
mudanças com a chegada do Império. É o que também ocorre nas Escolas de Medicina.
Em 1824 foi fundada a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, sob os moldes da
academia francesa e de acordo com Tânia Maria Fernandes, esta criação buscava
legitimação e organização dos médicos brasileiros.285
Pouco depois, em 1826, sob a autoridade do governo imperial, foi permitido às
academias de médicos e cirurgiões, que concedessem títulos para regulamentar sua
atuação.286 O que ajudou a conceder maior autonomia para a classe médica. Entretanto, é
a partir da década de 1830, que médicos e cirurgiões se estabelecem e se organizam como
instituição. Consolidam-se como universidade, agora não mais dependendo da relação
com a Universidade de Coimbra287 e se aproximando teoricamente dos conceitos da
Universidade de Paris.
A escola de medicina de Paris inaugurou a divisão dos conceitos médicos que
vigoravam desde o medievo, para a medicina moderna. Teses que vigoravam há séculos
na história da medicina, como as de Galen e Hipocrátes, começam a ser lentamente
questionadas. Isso se deu principalmente por meio das novas descobertas científicas que
acabavam derrubando a teoria de humores, como: a teoria da circulação do sangue de
William Harvey, a revolução química de Lavoiser e o trabalho de Paracelsus. Todas essas
descobertas eram incompatíveis a medicina humoral.288 Isso não significou, entretanto,
283
FERNANDES, Tania Maria. Vacina antivariólica: visões da Academia de Medicina no Brasil Imperial.
Hist. cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro , v. 11, supl. 1, 2004, p.142-143.
284
PIMENTA, Op. Cit., p.309.
285
FERNANDES, Op. Cit., p. 143.
286
FERNANDES, Op. Cit., p. 143.
287
FERNANDES, Op. Cit., p. 144.
288
SNOWDEN, Frank. Epidemics in Western Society Since 1600: Nineteenth-Century Medicine: The
Paris School of Medicine. (Yale University: Open Yale Courses), http://oyc.yale.edu (Accessed May 13,
2009). License: Creative Commons BY-NC-AS.
66
que a prática da medicina humoral foi abandonada. Novas teorias foram incorporadas à
prática médica científica, como as teorias do contágio e a prática médica hospitalar. Essas
mudanças tiveram grande influência do avanço da revolução industrial e também do
iluminismo.289
Os hospitais passaram então a ser considerados como local de instituição
científica, e Paris e seus hospitais tornam-se referência da prática médica ocidental. A
medicina passou a incorporar novas práticas, principalmente à do exame e da observação,
sendo possível a classificação das doenças pelo método da análise e investigação. Apesar
da relativa revolução no conceito do entendimento das doenças, há poucas mudanças no
quesito tratamento.290
Não obstante a organização desses médicos, ainda havia um obstáculo para a
consolidação da medicina no Brasil e este problema vigorou por todo o período colonial.
Ao mesmo tempo em que os médicos da Sociedade de Medicina carioca buscavam se
estabelecer como prática oficial, aumentavam os números de casos de varíola na cidade.
Para uma população que contou por tanto tempo com as artes de cura, agora consideradas
“não-oficiais”, a assimilação dessas práticas não foi imediatamente bem recebida.
A criação das escolas de medicina também foi uma maneira de afastar o saber
médico científico do popular. Para seus criadores, as faculdades tinham como missão
desvincular os padrões médicos (baseados na medicina popular), incorporando assim as
tendências médicas europeias, como os conceitos da clínica e da higiene.291 Xavier Sigaud
que participou da fundação da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1829,
destacava o ecletismo médico do período com várias visões e modelos médicos distintos.
Esse “ecletismo médico, presente a partir de meados dos anos 1830, foi necessário
para a conciliação, entre os diversos sistemas de cura que buscavam legitimar uma
medicina própria no país”.292 Isso destaca a imposição da questão cultural sob o saber
médico-científico, colocando-se como empecilho para a consolidação da medicina
”oficial”. Um decreto imperial de 1835 transformou a Sociedade de Medicina em
Academia Imperial de Medicina. Ela passou então a vigorar sob novos moldes, com novos
estatutos, que incluíam a prática da medicina, cirurgia e farmácia. Além disso, passou a
289
SNOWDEN, Frank: Nineteenth-Century Medicine: The Paris School of Medicine, Op. Cit.
290
SNOWDEN, Frank: Nineteenth-Century Medicine: The Paris School of Medicine, Op. Cit.
291
FERREIRA, Op. Cit., p. 102-103.
292
FERNANDES, Op. Cit., p. 144.
67
ocupar novo prédio e também a fazer publicações nos periódicos através da Revista
Médica Fluminense.293
É neste contexto que com a ocorrência das epidemias de varíola ocorridas na década
de 1830, as autoridades imperiais passaram a consultar órgãos como a Academia de
Medicina para debater as ações a serem tomadas para o controle da doença. Uma das
principais pautas de discussão vigorou em torno do debate acerca da revacinação. A
mudança do comportamento estatal deve-se em parte pelo avanço das epidemias de
varíola e febre amarela, que exigiu um novo parecer acerca das medidas sanitárias
tomadas pelo governo.294
No início da segunda metade do século XIX, a Academia de Medicina viveu uma
crise político-financeira, que só foi contornada em meados da década de 60 através
principalmente da entrada de novos nomes e novas articulações. Com isso se reacendeu
o tema da vacinação antivariólica.295
Nesse novo contexto, José Pereira Rego ou simplesmente Barão de Lavradio, foi
uma figura de suma importância para os quadros médicos cariocas. Nascido em 1816 na
cidade do Rio de janeiro, era filho do capitão Manoel José Pereira Rego e de Anna Fausta
de Almeida Rego. Foi casado com Maria Rosa Pinheiro com quem teve três filhos. Pereira
Rego integrou a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1833, doutorando-se em
dezembro de 1838. Dois anos depois ele passou a fazer parte da Academia Imperial de
Medicina como membro titular.296
Ele atuou intensamente no campo da saúde pública tendo feito parte da Comissão
Central de Saúde Pública; da Junta de Higiene Pública, como presidente; do Instituto
Vacínico do Império, como inspetor geral e mais tarde também operou como diretor
interino da seção de serviço sanitário do Hospital Geral da Santa Casa de Misericórdia do
Rio de Janeiro. Ele também trabalhou como médico particular em casas de saúde e em
sociedades médicas nacionais e internacionais.297
José Pereira Rego também escreveu para importantes periódicos médicos da época
como: a Revista Médica Fluminense, a Revista Médica Brasileira e Annaes da Medicina
Brasiliense que integravam as publicações da Academia Imperial de Medicina.298 No que
293
FERNANDES, Op. Cit., p. 145.
294
FERNANDES, Op. Cit., p. 35.
295
FERNANDES, Op. Cit., p. 145.
296
REGO, José Pereira. Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-1930)
297
REGO, José Pereira. Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil, Op. Cit.
298
REGO, José Pereira. Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil, Op. Cit.
68
diz respeito a sua produção intelectual, publicou uma quantidade expressiva de trabalhos,
entre eles o que destacarei aqui: “Esboço historico das epidemias que teem grassado na
cidade do Rio de Janeiro desde 1830 até 1870”.
A obra foi publicada em 1872 pelo Diário Official do Império do Brazil, e traz um
parecer sobre a dimensão e intensidade das epidemias recorrentes na cidade do Rio de
Janeiro, dentre as quais estava à varíola. De acordo com o Barão de Lavradio, a principal
causa para a continuidade da varíola na primeira metade do século XIX, era o tráfico de
escravos. Especialmente o tráfico ilegal299, que não passava pelas inspeções do porto e
que poderia acarretar assim epidemias de varíola na cidade.300
A primeira menção feita por José Pereira Rego é do ano de 1834. Segundo o autor,
a varíola não estaria entre as doenças que vigoraram no Rio de Janeiro há quase cinco
anos. Seu reaparecimento, entretanto, teria sido “mais ou menos” grave.301 É provável
que nessa meia década sem a presença da varíola tenha havido uma alta de não imunes.
No que diz respeito ao grupo mais atingido estes teriam sido vacinados: os recrutas
vindos das províncias do norte, os escravos e africanos presos nas casas de correção. Em
relação ao ressurgimento da doença, o Barão de Lavradio a atribuiu principalmente a
importação ilegal de escravos, embora segundo o próprio:
299
José Pereira Rego provavelmente se refere ao tráfico ilegal advindo do descumprimento da lei Feijó, de
1831. Que ficou conhecida como “lei para inglês ver”, pois publicação da mesma advinha da pressão
diplomática inglesa para descontinuidade do tráfico.
300
REGO, José Pereira, Op. Cit., p.VII.
301
REGO, José Pereira, Op. Cit., p.6.
302
REGO, José Pereira, Op. Cit., p.6.
69
303
REGO, José Pereira, Op. Cit., p.22-23.
304
REGO, José Pereira, Op. Cit., p.24.
305
REGO, José Pereira, Op. Cit., p.24.
306
REGO, José Pereira, Op. Cit., p.24.
307
REGO, José Pereira, Op. Cit., p.31-37.
308
REGO, José Pereira, Op. Cit., p.41-51.
309
REGO, José Pereira, Op. Cit., p.54-55.
70
proibidos os sepultamentos dentro das igrejas, que de acordo com o autor era uma
demanda antiga da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, há pelo menos vinte anos.
Com o declínio da febre amarela, em junho de 1850, a cidade foi atingida com a presença
da varíola que contribuiu para o quadro alto de mortalidade naquele ano.310
A varíola parece ter continuado na cidade em 1851, embora com menos
gravidade.311 No ano de 1853 destacam-se algumas mudanças relevantes no estado
sanitário da cidade. De acordo com José Pereira Rego teriam sido elas: a limpeza das
valas da cidade e o calçamento de algumas ruas. Mesmo assim, não ocorrem grandes
mudanças meteorológicas, que de acordo com Lavradio parecem influenciar diretamente
sob o impacto das epidemias.312 Apesar de serem mencionadas epidemias com grande
impacto nas últimas décadas, é ao período de 1850 e 1860, que o médico atribuiu as piores
epidemias vividas no Rio de Janeiro, dentre as quais a de febre amarela e a cólera. 313 A
varíola é de novo mencionada no ano de 1857, principalmente como complicador no meio
de doenças já em andamento na cidade. Mas parece aumentar em gravidade no ano
seguinte, quando a mortalidade aumenta consideravelmente. Aqui é destacada a
benignidade com a qual a doença atingiu indivíduos já vacinados, enquanto os não-
imunizados eram atingidos de forma grave.314 No ano de 1859 ainda se remete à presença
da varíola, desta vez não com tanta gravidade, mas novamente com a presença de
vacinados sendo contaminados, com grande presença de complicações secundárias entre
os doentes. Já no ano seguinte o estado sanitário da cidade parece novamente desagradar
à opinião do médico, que frisa ainda a influência do tempo sob a cidade. A varíola parece
ter permanecido endemicamente e o ambiente é equiparado à situação que antecedeu a
epidemia de febre amarela na cidade em 1850.315
Entre 1861 e 1864 a varíola parece ter variado em gravidade, residindo tanto
epidemicamente quanto endemicamente. Em 1865, há diversos trechos acerca da situação
sanitária da cidade, mas destaca-se principalmente a circulação de pessoas na cidade por
conta do envio de soldados e voluntários com destino à guerra do Paraguai.
Coincidentemente, a varíola grassou a cidade com violência, mantendo uma cifra alta de
mortalidade.316 A presença constante de pessoas em locomoção, acarretada pela guerra,
310
REGO, José Pereira, Op. Cit., p.56-62.
311
REGO, José Pereira, Op. Cit., p.71.
312
REGO, José Pereira, Op. Cit., p.79.
313
REGO, José Pereira, Op. Cit., p.83.
314
REGO, José Pereira, Op. Cit., p.91-99.
315
REGO, José Pereira, Op. Cit., p.99-105.
316
REGO, José Pereira, Op. Cit., p.115 -118.
71
provavelmente teria contribuído, segundo ele, para alta de casos e mortalidade nesta
epidemia. Apesar de não manter a mesma gravidade do ano anterior, em 1866 a varíola
ainda se fazia presente epidemicamente na cidade. Nesse ano se destacam a “cessação da
chegada de tropas, extinguindo sua aglomeração, alguns melhoramentos na hygiene
publica com a remoção do lixo para fora da cidade”. As boas condições não parecem
durar tanto tempo, pois em 1867, as tropas voltam a transitar na cidade, junto com o
cólera-morbus.317
A varíola que, segundo o próprio da Lavradio, “nunca desapparecera de todo”
voltou a atacar a cidade epidemicamente, principalmente os recrutas do exército, essa
ocasião, fez-se 225 vítimas.318 Em menor escala a varíola permaneceu presente no ano de
1868. Com a chegada da década de 1870, a varíola ganha novamente caráter epidêmico,
assaltando novamente vacinados, cujo formato da doença permaneceu menos grave nos
imunizados.319
De acordo com José Pereira Rego, a varíola era mais comum principalmente entre
“classes inferiores da sociedade”. A doença seria constantemente agravada e importada
através das costas da África, sendo o tráfico uma poderosa causa da ocorrência da
moléstia. Ademais, a alimentação utilizada por este grupo social poderia contribuir para
o favorecimento e expansão de determinadas doenças.320 A questão da dieta da população
escrava já havia sido abordada, no século XVIII, no já citado tratado médico, Érario
Mineral.321 A relação entre pobreza nutricional e doenças também é abordada na obra de
Dauril Alden e Joseph Miller. Para ambos, a desnutrição não somente agravava a
contaminação por varíola, mas também tornava o período pós-contaminação mais
complicado, com o risco de infecções secundárias nas pústulas ainda em período de
cicatrização.322, É possível notar um forte direcionamento das causas das epidemias ao
tráfico de escravos, mesmo quando há outras plausíveis causas, como da movimentação
de tropas e recrutas. Mesmo com o fim do tráfico, os escravizados continuam sendo
apontados pelo autor como responsáveis pela cadeia de transmissão da varíola no Rio de
Janeiro.
317
REGO, José Pereira, Op. Cit., p.123-125.
318
REGO, José Pereira, Op. Cit., p.127.
319
REGO, José Pereira, Op. Cit., p.138-149.
320
REGO, José Pereira, Op. Cit., p.180-181.
321
FERREIRA, Luís Gomes. Erário mineral (Org. Júnia Ferreira Furtado). Belo Horizonte; Rio de Janeiro:
Fundação João Pinheiro; Fundação Oswaldo Cruz, 2002.
322
ALDEN, Dauril; MILLER, Joseph. Out of Africa: the slave trade and the transmission of smallpox to
Brazil. Journal of Interdisciplinary History: Cambridge, v.18, n.2, 1987, p.198.
72
323
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febri: cortiços e epidemias na Corte Imperial. 2ªed. - São Paulo:
Companhia das Letras, 2017, p.103.
324
CHALHOUB, Op. Cit. p.145
325
FERREIRA, Luiz Otávio. ‘O viajante estático: José Francisco Xavier Sigaud e a circulação das ideias
higienistas no Brasil oitocentista’. In: BASTOS Cristiana; BARRETO Renilda (Orgs). A Circulação do
Conhecimento: Medicina, Redes e Impérios. Lisboa: Imprensa das Ciências Sociais, 2011. p. 84-85.
326
FERREIRA, Op. Cit., p.84-85.
73
327
FERREIRA, Op. Cit., p.87-88.
328
FERNANDES, Op. Cit., p. 144-148.
329
FERREIRA, Op. Cit., p.102.
330
Hemeroteca Digital, BN. Seminário de Saúde Publica pela Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro,
edição 2, 1831, p.4. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/702560/12. Acesso: Maio de 2021.
74
331
Hemeroteca Digital, BN. Seminário de Saúde Publica pela Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro,
24 de dezembro de 1831, p.1-2. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/702560/241. Acesso
em: maio de 2021.
332
FERREIRA, Op. Cit., p.103.
75
Luiz Otávio Ferreira demostra que, pela falta de leitores especializados, os médicos
que trabalhavam nesses periódicos acabaram se deparando com a necessidade de debater
com “leigos ilustrados” que formavam até então a maioria de seu público. Esse fato
acabava demostrando a imposição do saber popular sobre o oficial em muitos casos,
mesmo assim, o diálogo com o público leigo pode ter se apresentado como uma opção de
inserção do saber médico científico.333
Apesar das tentativas da prática médica licenciada de aproximar o público leigo aos
médicos “oficiais”, através dos periódicos, a população continuava por vezes preterindo
a procura de práticas enxergadas como “não oficiais”. Não só pelo prestígio social que
elas haviam alcançado, durante todo o período colonial, mas também por serem mais
acessíveis às classes menos abastadas.334 No que diz respeito à rejeição a varíola pela
população, os periódicos médicos passaram, então, a culpabilizar a população pela recusa
em vacinar como será observado a seguir.
333
FERREIRA, Op. Cit., p.104.
334
GURGEL e al. Op cit.,p.65-66.
335
Hemeroteca Digital, BN. Gazeta do Rio de Janeiro 14 de janeiro de 1818, p. 5 Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/749664/4787. Acesso: Maio de 2021.
336
FERNANDES, Tania Maria. Vacina antivariólica: visões da Academia de Medicina no Brasil Imperial.
Hist. cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro , v. 11, supl. 1, 2004, p.145.
76
337
NEVES ABREU, J. L. Prédicas para a alma e o corpo: algumas questões para a compreensão da doença
no contexto luso-brasileiro do século XVIII. Revista Brasileira de História & Ciências
Sociais, [S. l.], v. 9, n. 17, 2017, p.122.
338
DOMINGUES, Angela. Para um melhor conhecimento dos domínios coloniais: a constituição de redes
de informação no Império Português em finais do Setecentos. História, Ciências, Saúde – Manguinhos,
Rio de Janeiro, v.8, supl., 2001, p.827.
339
ROSENBERG, Op. Cit., p.305-306.
77
principalmente vindo de senhores brancos. Isso porque, a doença, para eles poderia ser
derivada de feitiços.340
As questões envolvendo a institucionalização da prática médica e os costumes
curativos de parte desses grupos sociais passaram a impactar diretamente o serviço de
vacinação antivariólica. Essas pessoas passaram então a ser acusadas pelo “atraso” da
recusa em se vacinar. Até mesmo os relatórios feitos pelos diretores dos institutos de
vacinação parecem ter discutido os motivos da recusa desses indivíduos em vacinar-se,
buscando culpabilizá-los por tal fato, como analisado na obra de Sidney Chalhoub:
340
CHALHOUB, Op. Cit., p.159.
341
CHALHOUB, Op. Cit., p.141.
342
Hemeroteca Digital, BN. Seminário de Saúde Publica pela Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro,
12 de novembro de 1831, p.4 Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/702560/220. Acesso:
maio de 2021.
78
possível estimar a quantidade de pais que não teriam levados seus filhos para vacinar, e
ainda, obter um maior controle sobre o andamento da vacina.343
A sugestão do periódico, não foi instaurada, mesmo assim no ano seguinte a
veiculação da notícia, em 1832 se estabeleceu pela primeira vez a vacinação obrigatória,
que funcionou exclusivamente para a vacinação de crianças, estabelecendo-se multa para
quem não a cumprisse. Também se tornou obrigatória à figura do vacinador nas fazendas
e, assim, a vacinação em escravos alcançou o índice de 40% em relação aos demais
vacinados, segundo Tania Fernandes.344 Outras leis semelhantes também foram
instauradas nas décadas seguintes, mas nenhuma delas obteve um impacto expressivo.
Com o passar dos anos, a contaminação de vacinados e os debates sobre a
revacinação parecem ter afastado ainda mais as pessoas da busca pela vacinação. A
possibilidade de contaminação por outras doenças como a sífilis, também foi um
complicador. De acordo com Sidney Chalhoub, o medo da contaminação por sífilis
durante a vacinação teria adquirido ”charme nostálgico”, tendo até mesmo sido propagada
em periódicos.345 O pavor da contaminação por sífilis durante a vacinação, ajudou a
contribuir com a repugnância que uma parcela considerável da população já tinha da
doença. Essas publicações enfatizavam que “a vacina tem causado a degenerescência
física e moral da espécie humana” e ainda a “extinção daquela forte raça do Império,
daqueles homens de granito, daqueles belos granadeiros da Guarda, grandes como a
armadura de Francisco I.”346
Houve ainda outra grande questão, pois com o fim do tráfico de escravos se tornava
cada vez mais difícil vacinar aqueles escravos que entravam ilegalmente na cidade. Os
escravizados eram o principal público-alvo da vacinação, principalmente pelo fato de
parte dos médicos vê-los como principais responsáveis e propagadores da varíola na
cidade. Se agora não se podia mais imunizar os escravos que chegavam na cidade, isso
criava um problema ainda maior para o esquema vacinal.
A questão da resistência popular a vacinação antivariólica vai muito além de um
problema único. Engloba uma gama de problemas sociais que tiveram início antes mesmo
da chegada da vacina no Brasil, e perduraram durante todo o século XIX Entender esses
343
Hemeroteca Digital, BN. Seminário de Saúde Publica pela Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro,
12 de novembro de 1831, p.4 Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/702560/220. Acesso:
maio de 2021.
344
FERNANDES, Op. Cit., p.35.
345
CHALHOUB, Op. Cit., p.140.
346
CHALHOUB, Op. Cit., p.140.
79
347
RIBEIRO, Op. Cit., p.33
348
FERNANDES, Op. Cit., p.143.
349
PIMENTA, Tânia Salgado. ‘Terapeutas populares e instituições médicas na primeira metade do século
XIX’. In: Chalhoub, Sidney; Marques, Vera Regina Beltrão; Sampaio, Gabriela dos Reis; Galvão
Sobrinho, Carlos Roberto. Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social. Campinas,
Unicamp, 2003, p.325.
350
FERREIRA, Op. Cit., p. 109.
80
De acordo com Rosenberg, um dos aspectos mais importantes no âmbito das artes
de cura, é sobre aqueles que as exercem. Pois é a figura de cura, seja ela compreendida
como um agente ‘não-oficial’ ou licenciado, que detém a capacidade de por um nome ao
desconforto de seu paciente. Mesmo uma projeção ruim frente à determinada doença,
pode ser melhor, do que um mistério ou um mal que não se pode nomear. .352 Isso pode
ajudar a entender a preferência pelos curandeiros, pois estes frequentemente recorriam às
razões mágicas e divinas das doenças, que pareciam ser mais facilmente absorvidas por
grande parte da população. Enquanto os médicos licenciados, agora recorriam às
explicações científicas sobre as enfermidades; muitas delas inacessíveis aos grupos
populares.
É importante refletir que a rejeição ao conteúdo mágico ou até divino das doenças
por parte dos médicos licenciados é um fenômeno recente para o Brasil do século XIX,
isso porque ele reflete uma institucionalização lusitana tardia, enquanto grande parte da
Europa vivia progressivamente os contornos iluministas e seu impacto nas universidades.
Portugal seguiu utilizando práticas derivadas do medievo europeu e amplamente
influenciadas pela religião, enquanto boa parte da Europa já as entendia como
ultrapassadas.353 Esse processo de desenvolvimento e disseminação do saber científico na
medicina só passa a ocorrer a partir do final do século XVIII.
Por isso, não é de se estranhar que esse modelo de pensamento sobre elementos
mágico-religiosos da doença tenha persistido entre os habitantes brasileiros. Já que, se
institucionalização havia chegado tardiamente em Portugal, o cenário era agravado em
seus domínios, onde a circulação do saber era dificultada pelo além-mar. Essas
implicações divinas para epidemias parecem ter refletido na resistência popular pela
vacinação. Na análise de uma epidemia que “grassou” em uma cidade próxima à corte,
Porto Cunha, Chalhoub analisa a recusa da população em vacinar-se. Uma das motivações
351
CHALHOUB, Op. Cit., p.193.
352
ROSENBERG, Op. Cit., p.307.
353
ABREU, Jean Luiz Neves. A Colônia enferma e a saúde dos povos: a medicina das ‘luzes’ e as
informações sobre as enfermidades da América portuguesa. História, Ciências, Saúde – Manguinhos,
Rio de Janeiro, v.14, n.3, jul.-set. 2007, p.763.
81
principais seria de que uma intervenção sob o curso natural da doença pudesse ocasionar
a piora dos pacientes.354 Cabe aqui ainda frisar que uma das principais defensoras do
movimento anti-vacina nesta época foi a Igreja Católica, que enxergava a vacinação como
não natural.355
Analisando a experiência epidêmica retratada por Chalhoub, há diversos trechos
que versam sobre o pânico da população em vacinar-se durante o avanço da doença. A
recusa derivava principalmente do medo de se contaminar durante o processo,356
reforçando assim a tese da provável e continua confusão que existia entre as práticas de
variolização e inoculação. A confusão entre as técnicas surgia quando levamos em
consideração que a prática de variolização, empregada durante tantos anos na Europa, era
feita da mesma forma que a inoculação do vírus cowpox, executada durante a
vacinação,357 uma vez que ambas eram realizadas lancetando o braço do paciente.
Havia também outras questões em relação à citada epidemia de varíola que atingiu
Porto Cunha. Uma delas é que uma considerável parte da população parece ter recorrido
primeiramente a curandeiros até que, um médico apontado pelo autor como Dr. Teixeira,
tivesse sido chamado, 358 demonstrando que as pessoas davam preferência primeiramente
a presença da prática médica não-licenciada. A relativa truculência com a qual
vacinadores geralmente estavam associados, por contarem quase constantemente com o
apoio policial, também afastava as pessoas do processo de vacinação.359
Tais aspectos podem ter contribuído para que parte da população que rejeitava a
vacinação buscasse outra forma de proteger-se, como a variolização. Provavelmente
porque era uma prática plenamente difundida na Europa e com a qual esses indivíduos
provavelmente já haviam contado no passado.
Segundo Sidney Chalhoub “não há dúvida: a inoculação do pus variólico realizada
por ‘curiosos’ – talvez não só por eles – era prática comum tanto na Corte quanto no
interior do país ao longo do século XIX.”360 Baseado nessa afirmação, é compreensível a
apreensão dos higienistas em relação à adoção da prática e sua busca por reprimi-la. Não
muito distante da Corte, em Irajá, a variolização parecia estar sendo praticada por esses
354
CHALHOUB, Op. Cit., p.147.
355
LOPES, Op. Cit., p.73.
356
CHALHOUB, Op. Cit., p.146.
357
CHALHOUB, Op. Cit., p.154.
358
CHALHOUB, Op. Cit., p.144.
359
CHALHOUB, Op. Cit., p.141.
360
CHALHOUB, Op. Cit., p.149.
82
ditos “curiosos”, junto com uma “legião de adeptos.”361 Por isso, enquanto os próprios
“lanceteiros” pensavam estar combatendo a ignorância ao impor o esquema vacinal à
parte da população,362 várias pessoas buscavam suas próprias maneiras de desviar do
sistema, fugindo das tentativas de controle médico-científico sobre a enfermidade.363
Apesar da constante ligação entre o tráfico de escravos e a varíola, o fato é de que
ele não era a única causadora das epidemias na cidade. É evidente que a quantidade
expressiva de navios chegando constantemente de áreas nas quais a varíola era
relativamente comum, contribuiu para a presença da doença na cidade. Mesmo assim, há
outros pontos para se levar em consideração. Um deles é o porto como um propagador
geral de doenças no período. Não só pela entrada constante de escravos, mas pela chegada
de produtos e de imigrantes que passaram a desembarcar com frequência no Rio de
Janeiro a partir da chegada da família real ao Brasil; dentre os quais a maioria era de
europeus, de onde a varíola também se fazia presente com certa frequência (vale aqui
frisar que durante a segunda metade do século XIX, a Europa contou com surtos
epidêmicos em diversos países)364. Essa preocupação relativa ao porto e as eventuais
epidemias que o mesmo poderia causar, refletiu-se nas diversas medidas impostas pelas
autoridades governamentais da época e que já foram aqui abordadas.
O direcionamento da varíola a população negra também se transcreve nos diversos
anúncios analisados aqui, aonde a presença da doença é ao mesmo tempo um elemento
positivo para compra de escravos (para aqueles que foram contaminados e sobreviveram,
poupando o senhor de eventuais baixas) e um marcador social para aqueles que fugiram.
Essa condução do combate à doença, entendendo a população negra como principal
difusora da varíola, também se traduziu no esquema de vacinação, onde escravizados
continuaram sendo durante todo o século XIX o grupo alvo para a vacinação (mesmo
quando em outras localidades, como na própria Europa, a vacinação se voltava para as
crianças). Como abordado por Sidney Chalhoub, o fato de escravos serem os principais
acometidos pela enfermidade, também influenciou a maneira como a doença era vista e
combatida, uma vez que médicos voltados para o tratamento da doença acabaram
direcionando esforços e recursos para o combate de doenças que atingiam mais brancos,
361
CHALHOUB, Op. Cit., p.155.
362
CHALHOUB, Op. Cit., p.175.
363
PIMENTA; BARBOSA; KODAMA. Op. Cit., p.158.
364 FENNER F. e al. Op. cit., p. 231.
83
como a febre amarela. Em virtude disto, doenças comuns entre negros, como a varíola e
a tuberculose, foram permanecendo em segundo plano.365
Relativa parte desses médicos, por sua vez, ignoravam as tradições que vigoravam
entre alguns desses escravizados, em prol das suas próprias concepções de progresso,
nesse caso o avanço médico-científico. . A variolização enxergada por grande parte da
população residente em reinos localizados na África Ocidental (como Daomé, Costa da
Mina, Angola, Sudoeste da Nigéria etc) onde residia a cultura Yorubá como parte de
ritual religioso importante, era desprezada e vista pelos médicos licenciados como um
atraso ao avanço da vacinação. No universo cultural analisado a doença ultrapassava os
limites da prática médica licenciada, porque o flagelo podia resultar de um castigo
provocado pela violação das tradições ou deveres com os deuses, mas também ser
ocasionado por um feitiço.366
Entre as décadas de 1830 e 1840, apenas 6,5% dos escravos presentes na cidade do
Rio de Janeiro era oriundos da área da África Ocidental, devotos prováveis dos vodus e
orixás e também da deusa Sopona/ Sagbatá.368 Apesar disso, na primeira metade do século
XVIII, houve, uma quantidade expressiva de africanos vindos da África Ocidental, no
Rio de Janeiro. Dados dos óbitos da freguesia da Candelária, entre 1724 e 1736, apontam
que os escravos africanos provenientes de áreas da África Ocidental representavam quase
metade (49%) dos mortos.369 Índice este que parece decair por volta de 1760, com o
colapso econômico vivido pelas minas. Entre 1793 e 1800, os ocidentais desaparecem
dos livros de óbitos, dando lugar a um massivo contingente de centro-ocidentais.370
Apesar disso, com a revolta dos malês (1835) e o fim do tráfico na década de 1850, houve
incremento do tráfico interprovincial entre Rio de Janeiro e Bahia, a partir do qual os
365
CHALHOUB, Op. Cit., p.109.
366
CHALHOUB, Op. Cit., p.159.
367
CHALHOUB, Op. Cit., p.161.
368
CHALHOUB, Op. Cit., p.163.
369
SOARES, Op. Cit., p.54.
370
SOARES, Op. Cit., p. 58-59.
84
escravos advindos da África Ocidental eram maioria.371 Diante disso, podemos cogitar
que na segunda metade do século XIX houvesse maior tendência aos africanos e seus
descendentes com propensão a fazer uso da prática da variolização.
Para Chalhoub, o melhor indício de que esta prática estava sendo empregada no Rio
de Janeiro seria a presença do candomblé na cidade. Ainda segundo o autor, o registro
mais antigo seria anterior à década de 1850, no qual negros-mina foram presos e acusados
de bruxaria. De acordo com uma denúncia, “Tais africanos praticavam candomblé e
dançavam batuque de forma circular durante a noite”372 Isso porque a presença do culto
de Omolu teria causado furor durante as epidemias de varíola que ocorriam na Bahia. 373
Dessa maneira, levando em consideração a presença da variolização na corte carioca
durante o século XIX, cujas autoridades vinham tentando combater,374, é possível assumir
que alguns desses negros estivessem recorrendo à ela, principalmente quando levamos
em consideração a prática do candomblé em meados do século XIX.
371
CHALHOUB, Op. Cit., p.164-165.
372
CHALHOUB, Op. Cit., p.163.
373
CHALHOUB, Op. Cit., p.165.
374
CHALHOUB, Op. Cit., p.149.
85
CONCLUSÃO
Ao longo deste trabalho procurei demonstrar que, apesar dos incontáveis problemas
que o serviço de vacinação enfrentava e também os que os médicos defensores do saber
científico vivenciaram, a recusa da população em vacinar foi a principal causa apontada
pelos contemporâneos, para a falha do sistema de vacinação. No entanto, apesar desta
narrativa da época, as causas do fracasso do serviço de vacinação antivariólica foram
múltiplas.
Essas diversas razões se refletem nos impasses ocorridos entre o governo e alguns
dos médicos, como ficou explicitado nos incontáveis desacordos vistos dentro das
instituições de ensino médico e também em seus periódicos. Como do debate sobre o
método de cauterização, analisados no capítulo três. Nem os médicos conseguiam
concordar plenamente sob a vacinação, uma vez que desde o princípio houve aqueles que
se opuseram a vacina. Posteriormente, esses debates foram ganhando novos contornos
por meio da descoberta de contaminação por sífilis e da necessidade da revacinação, e
depois, com a passagem da vacinação braço a braço para o método de vacinação animal
no final do século XIX.
Deve-se ainda levar em consideração que, mesmo quando a população teve relativa
vontade em vacinar-se, como ocorreu nos primeiros anos do serviço, o mesmo não
funcionava adequadamente, atingindo uma quantidade inexpressiva de vacinados, quando
comparada à quantidade de habitantes que a cidade mantinha. Apesar de não produzir
uma alta mortalidade, as “bexigas” continuavam a assombrar os quadros médicos da
cidade com frequência, ao longo de todas as décadas do século XIX,375 complicando ainda
outras epidemias em andamento, como ocorreu durante a década de 1850 (quando surgiu
a grande epidemia de febre amarela). A continua presença da varíola na cidade também
se apresentava como um atraso civilizatório e científico, uma vez que a vacina era
enxergada como a solução para o problema e também representava o avanço médico da
época.376
375
CHALHOUB, Op. Cit., p.152.
376
CHALHOUB, Op. Cit., p.209.
86
377
FERREIRA, Op. Cit., p. 115.
378
CHALHOUB, Op. Cit., p.195.
379
CHALHOUB, Op. Cit., p.154.
380
CHALHOUB, Op. Cit., p.177-179.
381
ROSENBERG, Op. Cit., p.306.
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