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UNIVERIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Programa de Pós-graduação em História Comparada – PPGHC


Instituto de História – IH

AS PRODIGIOSAS AVENTURAS DE VICENTE AVELLAR (MADAME DE


THÉBAS) – Repressão, Curandeirismo e Cartomancia no Rio de Janeiro (1904 - 1907).

VALQUÍRIA CRISTINA RODRIGUES VELASCO

Rio de Janeiro
2023
AS PRODIGIOSAS AVENTURAS DE VICENTE AVELLAR (MADAME DE
THÉBAS) – Repressão, Curandeirismo e Cartomancia no Rio de Janeiro (1904 - 1907).

Valquíria Cristina Rodrigues Velasco

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-


graduação em História Comparada. Centro de Filosofia e
Ciência Humanas da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a
obtenção do Título de Doutora em História Comparada.
Orientador: Dr. André Leonardo Chevitarese.

Rio de Janeiro
2023
AS PRODIGIOSAS AVENTURAS DE VICENTE AVELLAR (MADAME DE
THÉBAS) – Repressão, Curandeirismo e Cartomancia no Rio de Janeiro (1904 - 1907).

Valquíria Cristina Rodrigues Velasco

Orientador: Dr. André Leonardo Chevitarese.

Banca Examinadora:

____________________________________________________________

Presidente. Prof. Dr.

____________________________________________________________

Prof. Dr.

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Prof. Dr.

____________________________________________________________

Prof. Dr.

____________________________________________________________

Prof. Dr.

Rio de Janeiro
2023
VELASCO, Valquíria. AS PRODIGIOSAS AVENTURAS DE VICENTE
AVELLAR (MADAME DE THÉBAS) – Repressão, Curandeirismo e Cartomancia no
Rio de Janeiro (1904 - 1907). 2023. Tese (Doutorado). Programa de Pós-graduação em
História Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2023.

Resumo

Esta Tese é resultado de pesquisa que parte da Dissertação desenvolvida neste


mesmo Programa de Pós-graduação. Ao analisar inúmeros processos
envolvendo a repressão policial a religiosos, foi possível classificar e mapear
estas ações. Dentre os envolvidos nas repressões avaliadas na Dissertação,
Vicente Ferreira da Cunha Avellar apareceu como um sujeito peculiar, como uma
experiência religiosa que chamava atenção para sua organização e grandiosa
influência, quando reunia dezenas de “filiados” em abaixo-assinado pedindo sua
liberação do cárcere, onde respondia pelos artigos 157 e 158. Com esta Tese,
vamos observar mais cuidadosamente o contexto que envolve espíritas, justiça
e médicos, na cidade do Rio de Janeiro, em um contexto de disputa de poderes
científicos e espirituais. Vamos encontrar Avellar envolvido em um grande
movimento social da cidade neste mesmo ano, enquanto já respondia pelo
processo que nos serve de fonte. Seguimos ao segundo inquérito em 1907, o
que na ocasião da Dissertação, de fato nos despertou para a possibilidade de
uma pesquisa com potencial de Tese. Três anos depois de ter sido preso com
uma organização religiosa bem definida, Avellar é novamente preso e responde
por processo nos artigos 157 e 158, mas dessa vez envolvido em uma trama
onde anunciava-se como cartomante nos jornais do Rio de Janeiro – a Madame
de Thébas – figura francesa, internacionalmente famosa por suas profecias e por
seu poder de influência política. Os mesmos jornais que levam os policiais à
porta de Vicente Avellar em 1907, nos leva a reconstruir as aventuras de Avellar
pela Cidade, seus prodigiosos dons de curador e vidente, mas também suas
tentativas outras de sobreviver como professor envolvido em recorrentes
problemas com a polícia.

Palavras-chave: Repressão; Curandeirismo; Espiritismo; Ocultismo;


Cartomancia; Código Penal; Rio de Janeiro.
VÉLASCO, Valquíria. LES PRODIGIEUSES AVENTURES DE VICENTE
AVELLAR (MADAME DE THÉBAS) – Répression, Guérison et Cartomancie à
Rio de Janeiro (1904 - 1907). 2023. Thèse (Doctorat). Programme d'études
supérieures en Histoire Comparée, Université Fédérale de Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2023.
RÉSUMÉ

Cette thèse est le résultat d'une recherche qui part de la thèse, développée dans
ce même programme d'études supérieures. En analysant de nombreux
processus impliquant la répression policière des personnes religieuses, il a été
possible de classer et de cartographier ces actions. Parmi les personnes
impliquées dans les répressions évaluées dans la Dissertation, Vicente Ferreira
da Cunha Avellar est apparue comme un sujet particulier, comme une expérience
religieuse qui a attiré l'attention sur son organisation et sa grande influence,
lorsqu'il a rassemblé des dizaines d'« affiliés » dans des pétitions demandant sa
libération. de prison. , où il était responsable des articles 157 et 158. Avec cette
thèse, nous allons observer plus attentivement le contexte qui implique spirites,
justice et médecins, dans la ville de Rio de Janeiro, dans un contexte de dispute
scientifique et les pouvoirs spirituels. On retrouvera Avellar impliqué dans un
grand mouvement social dans la ville cette même année, alors qu'il était déjà
responsable du processus qui lui sert de source. Nous avons suivi la deuxième
enquête en 1907, qui au moment de la Dissertation, nous a en fait éveillé à la
possibilité d'une recherche avec le potentiel d'une Thèse. Trois ans après avoir
été arrêté avec une organisation religieuse bien définie, Avellar est de nouveau
arrêté et répond par voie de procès aux articles 157 et 158, mais cette fois
impliqué dans un complot où il s'annonce comme diseur de bonne aventure dans
les journaux de Rio de Janeiro - Madame de Thébas - figure française,
internationalement connue pour ses prophéties et pour son pouvoir d'influence
politique. Les mêmes journaux qui ont amené la police à la porte de Vicente
Avellar en 1907 nous amènent à reconstituer les aventures d'Avellar dans la Ville,
ses dons prodigieux de guérisseur et de voyant, mais aussi ses autres tentatives
de survie en tant qu'enseignant impliqué dans des problèmes récurrents avec la
police.

Mots-clés : Répression ; Guérison; Spiritisme; Occultisme; cartomancie; Code


pénal; Rio de Janeiro.
VELASCO, Valquíria. THE PRODIGIOUS ADVENTURES OF VICENTE
AVELLAR (MADAME DE THÉBAS) – Repression, Healing and Cartomancy in
Rio de Janeiro (1904 - 1907). 2023. Thesis (Doctorate). Graduate Program in
Comparative History, Federal University of Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2023.

SUMMARY

This Thesis is the result of research that starts from the Dissertation, developed
in this same Graduate Program. By analyzing numerous processes involving
police repression of religious people, it was possible to classify and map these
actions. Among those involved in the repressions evaluated in the Dissertation,
Vicente Ferreira da Cunha Avellar appeared as a peculiar subject, as a religious
experience that drew attention to his organization and great influence, when he
gathered dozens of “affiliates” in petitions asking for his release from prison. ,
where he was responsible for articles 157 and 158. With this thesis, we are going
to observe more carefully the context that involves spiritists, justice and doctors,
in the city of Rio de Janeiro, in a context of dispute of scientific and spiritual
powers. We will find Avellar involved in a large social movement in the city that
same year, while he was already responsible for the process that serves as a
source. We followed the second inquiry in 1907, which at the time of the
Dissertation, in fact awakened us to the possibility of a research with the potential
of a Thesis. Three years after being arrested with a well-defined religious
organization, Avellar is arrested again and responds by process in articles 157
and 158, but this time involved in a plot where he announced himself as a fortune
teller in the newspapers of Rio de Janeiro – Madame de Thébas – French figure,
internationally famous for his prophecies and for his power of political influence.
The same newspapers that brought the police to Vicente Avellar's door in 1907
lead us to reconstruct Avellar's adventures in the City, his prodigious gifts as a
healer and seer, but also his other attempts to survive as a teacher involved in
recurrent problems with the police. .

Keywords: Repression; Healing; Spiritism; Occultism; Cartomancy; Penal Code;


Rio de Janeiro.
Ìmò wá mònà mòwé
Kó jé nà mímò àsé
Kó jé nà mímò àsé
Kó jé nà mímò àsé

Procurar o conhecimento, certamente torna


Inteligente.
A comida (amalá) faz adquirir e aumenta
o conhecimento do Axé
(Orikí de Xangô.
Tradução José Flávio Pessoa de Barros)

Até você se tornar consciente,


o inconsciente irá dirigir sua vida
e você vai chamá-lo de Destino.
- Carl Gustav Jung (1948).

Tinha certeza, que o maior legado


que eu poderia deixar para o Brasil
era fazer com que os jovens que
nasceram pobres chegassem na
universidade. Vocês não sabem a
minha felicidade ao ver que um
filho de pedreiro virou doutor ou
uma filha de empregada doméstica
virou médica.
- Presidente Luiz Inácio Lula da
Silva (2017).
Dedicatória

Dedico esta Tese à memória de minha mãe, Tereza


Cristina Rodrigues, grande mulher, filha de Xangô,
empregada doméstica que criou uma filha Doutora.
Agradecimentos

Agradecer é um ato apreciado por deuses e ancestrais. É um ato de


poder. E, são tantas e tão potentes as forças que lanço com esses
agradecimentos que temo esquecer alguém.

Por isso, antes de tudo agradeço e celebro a minha ancestralidade, os


mortos que me guiaram até este dia, aqueles que estão ligados a mim pela força
do sangue ou pela afinidade do trabalho nesta encarnação. Foi Xangô quem me
trouxe ao mundo e com ele aprendi a ser forte como um leão e por isso esta
Tese é dedicada à minha mãe. Agradeço a Oxum, que me salvou e me salva
todos os dias, me ensina o amor e a doçura das palavras. Ogum e Oxóssi que
são os caçadores, eles que não me deixaram desistir no meio deste trabalho.
I(Y)emanjá sempre foi e continua sendo a luz que ilumina minha cabeça, tantas
vezes cansada.

Agradeço ao Caboclo das Três Estrelas pelo rigor e pelas transformações


em minha vida. Agradeço a Vovó Catarina pelo colo quente onde minhas
lágrimas rolaram tantas vezes. Agradeço ao Pai Benedito por me fazer lembrar
qual era a missão aqui. Agradeço a Cigana e seu povo por nunca me deixar faltar
o pão, o sal e o ouro. Agradeço a cada Orixá, Vodun, Nkisi e Espírito de Luz que
esteve presente e segue vivo no meu caminho.

Do lado de cá da vida, preciso celebrar também inúmeras entidades, cada


uma dessas com sua importância e com seu papel na construção desta Tese.
Minha esposa e companheira. Gabriella Catorza, que além de me ajudar com
toda estrutura física e emocional, da qual demanda uma tese em meio a uma
pandemia, ainda leu atentamente e participou ativamente da construção desta
Tese, transcrevendo periódicos, apontando crases que deveriam ou não existir,
vírgulas e toda essa coisa que costumamos deixar para lá no processo da
escrita. Além, é óbvio, de toda paciência (não foi pouca), amor e momentos de
descontração que dedicou a mim e ao Avellar. Obrigada por ser companheira
ativa e viva nesta viagem louca que foi o doutorado.

Aos amigos que contribuíram de muitas formas aqui. Gabrielle Catorza


Oliveira, minha sobrinha amada que enfrentou também a transcrição de muitos
periódicos em um português do início do século XX. Cecília Capetine, minha
paleógrafa oficial, a quem tantas vezes recorri. Aos companheiros do Grupo
Egbé por dividirem comigo os medos e os anseios da pesquisa com fontes da
repressão, em especial, Caio Moraes, Eduardo Possidônio e Nathália
Fernandes, companheiros incansáveis. Agradeço, também, aos amigos que
estiveram sempre por perto para ajudar com ideias e boas palavras: Danielle
Theodoro, Ogã Jaçanã, Ekedj Basilia Paula – Xangôs sempre presentes na
minha vida. Ao irmão e amigo Rafael Valladão, à amiga de longa data Letícia
Urbano, à minha madrinha e irmã Fernanda Gonçalves. À minha parceira de
lutas e conquistas, que tantas vezes me deu força para iniciar esta caminhada,
ainda lá nas Semanas de História da Veiga de Almeida, Tatiana Sobral. E
agradeço à minha terapeuta querida, que me aturou por dois anos deste
Doutorado falando de Avellar e Madame Thébas, acho que agora poderemos
seguir para outras questões, Carla Rodrigues.

Uma Tese é feita a muitas mãos, além dessas duas que escreve, as dos
amigos e companheiros que as apoiam, têm aqueles que oferecem parte de seus
saberes na construção do conhecimento que levaremos para vida. Aos
professores devo tudo. Agradeço ao meu orientador André Chevitarese, o cara
que sempre soube me guiar pelo melhor caminho e quando eu me sentia
perdida, abria sua casa, junto com sua companheira, querida Tayná Louise, e
me ofereciam um bom café, horas de bate-papo e um licor delicioso. Aos
professores que fizeram parte de minha formação nas disciplinas cursadas no
Programa de Pós-graduação em História Comparada, professores: Flávio
Gomes, fera demais; José D’Assunção Barros; Helena Theodoro; Wallace
Moraes e Carlos Eugênio Soares. Aos queridos que participaram da qualificação
desta Tese e contribuíram para os passos seguintes, professora Gabriela
Sampaio, professor Daniel Justi e professora Iamara Viana. Aos professores que
foram responsáveis pelo início desta caminhada na Universidade Veiga de
Almeida, agradeço, sobretudo, a Claudia Dantas que acreditou no meu potencial,
a Verinha Moraes que me ensinou o amor pelo ensino e agradeço à diva
Verônica Pires, por ser exemplo de historiadora, professora e pessoa, nunca me
esquecerei das lições sobre ABNT depois das aulas de América, graças a essas
lições estou aqui.
Com toda certeza alguns nomes ficaram de fora, mas nunca deixarei de
agradecê-los em minhas preces. Devemos ser gratos até aos que tentaram
atrapalhar, é o que dizem.

A CAPES precisa ser citada aqui, sem a bolsa que me foi concedida, tanto
no mestrado quanto no doutorado, eu nunca conseguiria chegar neste ponto. A
resistência de todos os funcionários da Educação Superior, pesquisadores e
estudantes, principalmente nos 4 anos em que produzi esta Tese, precisa
também ser mencionada. Aos companheiros da comunidade “Bolsistas Capes”
no Facebook, obrigada por todas as gargalhadas e ajuda, espero que existam
muitos de nós aguardando a “Lud neymar” por muitos anos.

Por fim, agradeço aquele Tranca-Ruas que profetizou este dia.

A menina virou Doutora.

Laroye!
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................... 14

Pandemia – doenças, curas e negacionismos. .................................. 14

CAPÍTULO I - MICRO-HISTÓRIA DA REPRESSÃO: AS PEDRAS


MIÚDAS DE UM GRANDE LAJEDO. ............................................................... 18

1.1 O que foi dito antes de nós sobre Vicente Avellar ..................... 21

1.1.1 Crime e Cura ......................................................................... 21

1.1.2 O Avellar Professor ................................................................ 23

1.2 A pedrinha miudinha desse terreiro – Vicente Avellar a “Madame


Thebas”......................................................................................................... 25

1.2.1 As fontes ................................................................................ 28

1.3 O Oculto que revela – Madame Thebas....................................... 32

1.4 Repressão e Religiosidades. ........................................................ 36

1.4.1 Domingos Sodré – um sacerdote africano. ............................ 38

1.4.2 O Alufá Rufino. ...................................................................... 40

1.4.3 Juca Rosa – Papai Quibombo ............................................... 42

1.5 O Código Penal de 1890. ............................................................. 44

1.5.1. “O defeituosíssimo Código que temos”: sistemas e teorias. . 45

1.5.2. Dos crimes “indígenas”, debates e discordâncias - juristas e


jornais........................................................................................................ 49

1.5.2.1. Espíritas Kardecistas no embate contra o Código Penal. .. 54

Capítulo II – Cura em disputa – charlatanismo, curandeirismo e medicina.


......................................................................................................................... 65

2.1 Fluidez religiosa na Cidade .......................................................... 67

2.2 Les Chévaux de Rétour................................................................ 68

2.2.1 Os Corvos do Egito – Ciganos............................................... 69

2.2.2 Estrangeiros........................................................................... 76
2.2.3 Prostitutas .............................................................................. 80

2.3 A República e a Violência ............................................................ 86

2.3.1 As disputas sobre a cura no Rio de Janeiro .......................... 87

2.3.2 Drogas – emplastos, elixires e milagres da cura. .................. 90

CAPÍTULO 3 – AS “ASSOMBROSAS” PERIPÉCIAS DE VICENTE


AVELLAR ......................................................................................................... 93

3.1 Quem não é visto não é lembrado. .............................................. 95

3.2 Fazendo negócios e inimigos ..................................................... 100

3.2.1 – Ensino à Pau .................................................................... 115

3.3 Segredo da Vida, Mistério da Alma. ........................................... 117

3.3.1 A Sociedade Scientífica de Estudos Filosóphicos Jesus


Nazareno................................................................................................. 120

3.3.2 O Occultismo ....................................................................... 150

CAPÍTULO 4 – ENTRE PYTONISAS E CARTOMANTES, MADAME


THEBAS E VICENTE AVELLAR .................................................................... 167

4.1 Anne Victorine Savigny – A. de Thèbes. .................................... 174

4.1.1 A. de Thèbes suas Obras e Profecias. ................................ 181

4.1.2 Madame de Thébas e seus desdobramentos ...................... 193

4. 2 Cartomantes no Rio de Janeiro ................................................. 213

4.2.1 – As Esfinges e seus enigmas ............................................. 221

Conclusão ............................................................................................ 237

Referências.......................................................................................... 241
14

INTRODUÇÃO

Pandemia – doenças, curas e negacionismos.


Em março de 2020, quando iniciávamos o segundo ano de pesquisa, logo
no segundo dia das aulas, abateu-se sobre o Rio de Janeiro o comunicado da
OMS (Organização Mundial de Saúde), era uma Pandemia, que vinha desde
dezembro do ano anterior, fazendo vítimas no Oriente, alastrando-se pela
Europa, África e Américas. Uma doença, até então, pouco conhecida. Naquele
momento, manifestava-se de forma tão desconhecida quanto eram
desconhecidos também suas formas de cura. Doença provocada por um Vírus
Sars-CoV-2.
O Covid-19 chegou ao Brasil logo depois do carnaval de 2020, e o
comunicado de pandemia sobreveio na segunda semana de março, a OMS
alertava ao mundo sobre o perigo. Não era “só uma gripezinha”. Os
governadores ainda reticentes começaram, aos poucos, a impor o “Lockdown”
em seus Estados, seguidamente as prefeituras faziam o mesmo. Por fim, o
governo federal, na gestão de Bolsonaro, apesar de todo desserviço que fez
durante todo o período de seu governo, também precisou se posicionar.
Desde então, seguimos em ondas, tal qual num mar de mortos, ora mais
infectados, ora menos mortos. Os cientistas correndo contra o relógio para
produzir uma vacina, e os negacionistas gerando suas “Fake News”, dando força
ao vírus, causando mortes. Uma catástrofe mundial que no Brasil, como tudo,
tomou dimensões políticas e sociais. Ninguém sairia o mesmo daquela
pandemia. Foi neste contexto de caos político, sanitário, social e econômico que
esta Tese foi escrita.
Em maio de 2021, quando apresentei à banca o projeto de Qualificação
desta Tese, fui alertada, generosamente, pelos queridos professores Gabriela
Sampaio e Daniel Justi, para uma dimensão importante, que na prática eu estava
seguindo, sem ter, no entanto, me dado conta de sua magnitude na teoria. Meu
objeto de pesquisa estava envolto na temática das doenças, da morte e das
epidemias.
Em 1904, nosso personagem central, Vicente Avellar participou da
Revolta da Vacina, em 1916 perdeu uma filha para a Febre Espanhola. Em 2020,
estava eu pesquisando Avellar, suas façanhas e produzindo em meio ao caos,
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sem saber de verdade se estaria viva e sã em 2023 para defender esta Tese,
ironias do destino?
A própria pandemia e o fechamento dos Arquivos e Bibliotecas, me levou
a buscar meios de seguir por novos caminhos. A pesquisa não poderia parar, e
não parou. Já era ideia utilizar os recortes de jornais, tal como fizemos no
Mestrado, sem dar, porém, ênfase nesta fonte, como a pandemia nos provocou
a fazer. Os processos e a produção intelectual de Avellar, até ali, teriam o
protagonismo entre as fontes, porém ao sermos impelidos pela necessidade,
imposta pela doença, a Hemeroteca tornou-se um alento, e dos jornais
resgatamos informações preciosíssimas sobre nosso objeto de pesquisa, até
mesmo sua participação na Revolta da Vacina e a morte de sua filha, coisas que
não poderiam ser resgatas por outras fontes. Vicente Avellar era posto
novamente em um contexto de doença, cura e negacionismo.
No projeto inicial desta tese, o enfoque seria dado ao processo de
resistência e às reformulações das experiências religiosas que o nosso
personagem fez durante a vida. Buscávamos as estratégias de escape à
repressão que o Estado levava em vigor nos anos iniciais da República contra
religiosos. Como dissemos, porém, o contexto de escrita deste trabalho, assim
como as relações do momento atual com o tempo de nosso personagem, nos
fez repensar estes enfoques que deveriam ser dados, sem mudar, porém, os
objetivos da Tese.
Desta maneira, a Tese busca tratar da Micro-história da repressão a
religiosos no Rio de Janeiro a partir da trajetória de Vicente Ferreira da Cunha
Avellar. Ele, que ao ser preso duas vezes pelos crimes previstos no Código penal
de 1890 (art. 157 e 158), em 1904 e em 1907, apresenta em suas andanças pela
cidade um pouco dos desafios e questões que a sociedade carioca enfrentava.
Conseguimos ver, a partir dele, as disputas e as negociações que envolviam as
religiosidades na Cidade, que não podem nem devem ser reduzidas apenas aos
católicos, afro-religiosos e alguns kardecistas, são variadas e multicoloridas, as
experiências religiosas na cidade e o trânsito entre as práticas é o que dá mais
cor aos movimentos.
Professor Avellar não é indivíduo comum, longe disso, como veremos ele
circula entre vários nichos da sociedade e em diversos pontos se apresenta
como organizador de grupos em disputas. Rastros deixados por ele, porém, nos
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alerta para a possibilidade de resgatar outras tantas histórias que passam


despercebidas, são nossas pedrinhas miúdas, onde o próprio professor circula
e arregimenta, ou tenta arregimentar, estando ora na liderança, ora se
camuflando entre elas.
A história e a trajetória do Professor Avellar nos fazem adentrar em
observações sobre uma cidade que respira ares franceses, mas que entre as
ruazinhas do centro escondia querendo mostrar as magias e os espíritos. Uma
cidade cheia de magia “oculta”, das cartomantes que se anunciam nos jornais,
mesmo com o perigo de receber a polícia em seus consultórios, um risco a mais.
Avellar é quem nos leva até elas quando rouba para si a identidade de uma
Pitonisa francesa, exaltando mais das fumaças inebriantes de um ocultismo
revelado. Seguimos os traçados que Avellar nos deixou: dele até Madame de
Thebas, a do Rio de Janeiro - cidade negra, ao Rio de Janeiro - francês das
Madames cartomantes, passando pelo Rio de Janeiro adoecido pelos ideais de
saúde e limpeza, exalando aromas e mistérios.
Desta forma, esta Tese é formada por Quatro Capítulos com a intenção
de apresentar Vicente Avellar, suas peripécias e o contexto da repressão a
religiosos e cartomantes nos primeiro anos do século XX. No Primeiro Capítulo,
buscamos apresentar inicialmente o personagem escolhido para compor esta
Tese. Vicente Ferreira da Cunha Avellar, o professor Avellar não é um
personagem típico do contexto da repressão policial a religiosos no século XX,
e, justamente, por isso tornou-se personagem desta Tese. Apresentar as
pedrinhas miúdas do grande lajedo que é a sociedade brasileira, a república em
seus primeiros anos e principalmente a repressão foi objetivo deste capítulo.
Para isso, contamos com obras que antes de nós tratavam de Vicente Avellar
dentro e fora do contexto que analisamos: compreender quem era ele passava
por compreender a sua ampla passagem pela sociedade carioca. No primeiro
capítulo, também, tratamos de apresentar a personagem que chega até nós
através do Inquérito policial de 1907 – Madame de Thébas.

No Segundo Capítulo, intentamos contemplar as sugestões que


recebemos na Qualificação realizada em 2021, metade do tempo para conclusão
da pesquisa que originou esta Tese. Com as gratas orientações dadas pelos
professores Gabriela Sampaio e Daniel Justi sobre o referencial teórico acerca
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das discussões que levantamos aqui sob a ótica das disputas entre médicos e
curandeiros na cidade. A partir disso, buscamos também compreender outras
esferas que são importantes para construção de nosso objeto. A percepção
sobre os estrangeiros no Brasil, a presença de ciganos no Rio de Janeiro e das
prostitutas, todas categorias importantes quando formos observar Avellar,
Madame Thébas e as cartomantes que passaram pela repressão da polícia.

No Terceiro Capítulo, apresentaremos de forma mais aprofundada a


trajetória de professor Avellar no contexto que o leva ao seu primeiro inquérito
policial em 1904. Para isso, analisaremos através dos recortes em periódicos, as
peripécias de Avellar na cidade do Rio de Janeiro. A importância dessas fontes
é tamanha, pois conseguimos compreender que Avellar vê os jornais como uma
ferramenta importante de divulgação de seus serviços, o que o levaria prisão
pela segunda vez em 1907. Neste capítulo, buscamos também apresentar as
várias disputas sociais e políticas em que Avellar se envolve, além de suas notas
sobre sua prisão em 1904 no livro escrito em 1909 sobre seus dons de cura e
profecia.

O Quarto e último capítulo desta Tese, será dedicado à Madame Thébas,


a “incorporada” por Vicente Avellar no inquérito de 1907 e a original francesa.
Esta personagem, que apesar de ter sua trajetória apresentada em diversas
leituras, não foi ainda alvo de investigação científica no Brasil. Por sua
importância no cenário internacional, buscamos as produções internacionais que
envolviam sua história, assim como os livros produzidos pela própria A. de
Thèbes, originais em francês. Avellar e Madame Thébas nos apresentam um Rio
de Janeiro envolto nas fumaças oníricas do destino, entre cartomantes e
quiromantes, apresentaremos outras personagens que foram presas por
cartomancia entre 1904 e 1907.
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CAPÍTULO I - MICRO-HISTÓRIA DA REPRESSÃO: AS PEDRAS


MIÚDAS DE UM GRANDE LAJEDO.

Pedrinha miudinha
Na Aruanda ê
Lajedo tão grande
Tão grande na Aruanda ê

Pedrinha miudinha
Na Aruanda ê
Uma é maior
A outra é menor
A miudinha é que nos alumeia

Pedrinha de um lado
Pedrinha de outro
Pedrinha na Aruanda aê
Quem pode mais é meu Deus do céu, Jesus, Maria e José
Quem sabe mais é meu Deus do céu, Jesus, Maria e José1

Ifá nos aconselha não subestimar aquilo que julgamos ser pequeno.
Certa vez, um encantado cuspiu: “seu moço, de um pequeno se faz um
grande”. Vivemos em um mundo em que somos assombrados pelos
paradigmas de grandeza. Dessa maneira, desencantados pelos efeitos
dessa obsessão, não aprendemos os segredos que encarnam no
miúdo. Para contrariar essa lógica haveremos de nos apequenar
negando os pressupostos arrogantes de determinadas formas de ser e
saber que julgam grandes. Apequenar-se na gramática macumbeira
tem efeito de mandinga, saber que ficou gravado nos elos da pertença
entre o velho e o novo e podem nos ensinar a despachar o carrego e
fechar o corpo para nossas batalhas (SIMAS e RUFINO, 2019).

O grande espanta, o grande encanta, o grande ofusca, mas é o miúdo que


“alumeia”. Nos terreiros de Macumba de todo o Brasil, as pedrinhas miúdas são
as que verdadeiramente importam. É do miúdo que se faz o grande e a magia
está em apequenar-se. Os Caboclos, de Pena ou os de Couro, representam a
gente do Brasil, o povo, os mais miúdos. E, nos terreiros, esses “encantados”
retornam para socorrer e tratar seus filhos e filhas, todos, pedrinhas miudinhas,
como eles.
"O que está em cima é como o que está embaixo. E o que está embaixo
é como o que está no alto"2. O Caibalion afirma que, através da aplicação deste
axioma, se possibilita a compreensão de paradoxos obscuros e segredos da

1 Ponto de Umbanda, para Boiadeiro, Linha auxiliar de Caboclo, conhecidos também como
Caboclo de Couro.
2 Segunda Lei Hermética – Lei da Correspondência. “Este Princípio contém a verdade que existe
uma correspondência entre as leis e os fenômenos dos diversos planos da Existência e da Vida”.
(INICIADOS, 2021)
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natureza. Aplicamos ao método científico, a Lei de Correspondência e a fim de


pensar o que está no mundo, tal como as Pedrinhas de Aruanda, apequenamos
nosso olhar para compreender aquelas possibilidades que escapam aos olhares
assombrados pela grandeza.
Na dissertação desenvolvida no Programa de Pós-graduação em História
Comparada, defendida em 2019, sob orientação do professor Doutor André
Chevitarese, mantivemos uma preocupação com o macro. Construir as
Geografias da Repressão policial a religiosos entre os anos de 1890 e 1929 era
o objetivo do apurado levantamento que realizamos no Arquivo Nacional e nos
periódicos da época na Hemeroteca. A construção dessas Geografias nos
permitiu sobretudo reconhecer o perfil dos religiosos perseguidos e reprimidos,
assim como o movimento realizado pela própria repressão, com o deslocamento
dos religiosos pela Cidade.
Dentre os 124 casos de repressão sobre os quais nos debruçamos
naquele momento, muitos nos chamaram a atenção, no entanto, dois processos
envolvendo um mesmo personagem se destacaram. Eram os processos do
acervo de base judiciária, do Arquivo Nacional, onde o réu era o “Professor
Avellar”. Em 1904, o processo de código “RMI 0666” nos dava entrada na história
do professor, em um arquivo substancial de mais de cento e vinte páginas, com
depoimentos policiais, de testemunhas e do próprio Avellar.
Em 1907, outro processo envolvendo o professor Vicente Ferreira da
Cunha Avellar, um processo bem menor e menos substancial em informações e
personagens, mas rico no simbolismo e importante chave que nos fez repensar
sobre a possibilidade de realizar um estudo com outro foco sobre a repressão de
religiosos. Avellar nos gritava para um olhar mais atento de suas experiências, e
sobre quem ele era enquanto pessoa e agente histórico. Que pedra seria Avellar,
das miúdas ou das grandonas?
Na construção das Geografias da Repressão, a observação macro do
processo histórico não nos permitiu uma observação mais profunda das relações
humanas, nem os contextos pessoais daqueles que passavam pelas batidas
policiais por praticarem uma experiência religiosa que não se encaixava no
padrão civilizador das elites cariocas. Os crimes previstos no Código Penal de
20

1890 para a prática de Medicina Ilegal3, Cartomancia, Espiritismo, uso de


talismãs e magias4, e prática de curandeirismo5 foram utilizados para incriminar
diversos personagens, enquanto os jornais da Cidade se encarregavam de
realizar uma verdadeira devassa na vida dessas pessoas. Portanto, a
investigação no macro, por mais que tenhamos priorizado a observação das
experiências que envolviam o processo de repressão-resistência, não nos
permitiu que em cada um dos casos levantados, fossem realizadas observações
detalhadas dos personagens participantes.
Pensando em dar continuidade à pesquisa, através de uma observação
do contexto de repressão que assolava a Cidade do Rio de Janeiro, amparada
em um Processo Civilizador, voltamo-nos aos Inquéritos do “Professor Avellar”,
buscando encontrar neles um maior aprofundamento da experiência da
repressão e da sociedade carioca que se envolve nas tramas dessas querelas.
Através de um amplo levantamento no Arquivo Nacional, encontramos outros
documentos que, junto dos recortes de jornais viabilizados pela Hemeroteca, nos
possibilitou a construção da Micro-História biográfica do Professor Vicente
Ferreira da Cunha Avellar.
Ao escolhermos o personagem para a construção desse trabalho, a
observação da trajetória peculiar que ele representa foi definidora. Sua
experiência religiosa logo em 1904 no primeiro processo, se mostra muito bem-
organizada, em um inquérito policial rico em informações. Quando novamente é
preso em 1907 por uma experiência completamente diferente da primeira a
diferença das situações nos alertou para um grande personagem, mas não
tínhamos ideia do que viria. Vicente Avellar é uma “pedrinha”, enquanto alusão
ao miúdo que é um mundo em si mesmo e suas crenças em magias e ocultismos,
mas ao mesmo tempo faz parte de um grande “lajedo”, destacando-se de outras
pedras miúdas como ele.

3 BRASIL. Decreto 847 de 11 de outubro de 1890. Código Penal. Artigo 156.


4 BRASIL. Decreto 847 de 11 de outubro de 1890. Código Penal. Artigo 157.
5 BRASIL. Decreto 847 de 11 de outubro de 1890. Código Penal. Artigo 158.
21

1.1 O que foi dito antes de nós sobre Vicente Avellar

Vicente Ferreira da Cunha Avellar não é um personagem completamente


inédito, daqueles retirados dos porões dos arquivos antes nunca tocados. Pelo
contrário, hora ou outra Avellar passa por uma pesquisa, seja como ilustração
do contexto de criminalização aos procedimentos de cura popular, nos primeiros
anos da República, seja por aparecer em muitos lugares e contextos.
Dessa forma, nos deparamos, nós também, com um personagem
instigante, que já levantou a curiosidade de outros pesquisadores. Porém, em
nenhum dos casos em que Avellar foi citado, os autores buscaram mais a fundo
quem ele era, nem as nuances mais aprofundadas de seus processos.
Na verdade, o processo que levantou a curiosidade de outros
pesquisadores antes de nós, foi o de 1904, quando Avellar é processado nos
artigos 156 e 157 do Código Penal. Pego em flagrante no sobrado de número
201 na Rua de São Cristóvão, subúrbio do Rio de Janeiro, praticando curas e
prescrevendo remédios. Em nenhuma das pesquisas anteriores que citaremos,
aparece menção sobre o processo de 1907, quando Avellar é preso por
cartomancia, se anunciando nos jornais como Madame Thebas, e este foi
justamente o processo que nos trouxe de volta a Avellar, acreditando que sairia
uma Tese de doutorado de suas andanças.

1.1.1 Crime e Cura


O primeiro trabalho em que verificamos a presença de Avellar é a
Dissertação de Adriana Gomes (2013) de título Entre a fé e a polícia: o
espiritismo no Rio de Janeiro (1890 – 1909). A historiadora que defendeu seu
trabalho pelo programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual
do Rio de Janeiro (UERJ), dedicou-se em observar o processo de inserção do
Espiritismo de Allan Kardec no Brasil, principalmente no Rio de Janeiro, em meio
a repressão provocada pelo Código Penal do início da República. Gomes (2013)
trata o processo de 1904 de Avellar no terceiro capítulo de sua dissertação,
ilustrando tudo que ela se propôs a trabalhar na dissertação. Observa a fundo
os trâmites do direito que envolvia a investigação e o resultado do inquérito. No
entanto, em nenhum momento Gomes (2013) cita, ou parece ao menos conhecer
22

o processo que envolve Avellar três anos depois, quando ele é processado por
cartomancia.
Avellar também aparece na Dissertação de Caio Sergio de Moraes,
defendida em 2017 na Universidade Federal Fluminense com o título A cidade
do Feitiço – Feiticeiros no cotidiano carioca durante as décadas iniciais da
Primeira República – 1890 a 1910. A pesquisa de Caio gira entorno das práticas
religiosas na Cidade do Rio de Janeiro, buscando nos processos criminais a
presença dos “feiticeiros” na cidade. Tal como as outras pesquisas, Moraes
(2017) utilizou o caso de Avellar como ilustração da repressão e das disputas
judiciais entorno desses casos. Apesar de também não mencionar em nenhum
momento o segundo processo envolvendo Avellar em 1907, Moraes faz uma
observação mais aprofundada do processo de 1904, identificando as atividades
da Sociedade Beneficente Jesus Nazareno e relacionando com suas atividades
de professor, diretor e redator de revistas como a da Associação de Professores
em 1900 (MORAES, 2017, p. 125).
Outra pesquisadora que cita Vicente Avellar em seu trabalho de pesquisa
é Glicia Caldas da Silva (2019), em sua tese de doutorado, defendida no
Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro (UNIRIO). Com o título A CABAÇA DO SEGREDO:
religiosidades e concepções populares de cura no Rio de Janeiro (1889 –
1927), Silva (2019) trata da repressão policial ao curandeirismo e feitiçaria no
Rio de Janeiro. A autora trata do caso de Avellar no segundo capítulo de sua
tese quando apresenta o serviço de saúde pública e a repressão aos
curandeiros. Avellar vai surgir no trabalho de Silva (2019), tal como apareceu no
de Gomes (2013) e de Moraes (2017), em seu processo de 1904.
As pesquisas se dedicam a analisar o Inquérito Policial que envolve
Avellar, as nuances do processo e o andamento judicial dado ao caso. No
entanto, acabam por ignorar o fato de que Avellar é preso novamente em 1907,
e processado novamente no artigo 157 do Código Penal, não mais por
Espiritismo e curandeirismo, mas sim por Cartomancia.
Durante o levantamento de fontes para a dissertação, nos foi permitido
verificar a presença de dois processos no acervo do Arquivo Nacional
envolvendo Vicente Avellar. O processo de 1904 é substancialmente mais
atrativo por seu tamanho e riqueza de detalhes, sem dúvidas atrai pela
23

grandiosidade. Mas é no segundo processo, o de 1907 que podemos notar como


o “Professor Avellar” não é mais um sendo processado por “medicina ilegal” ou
“espiritismo”, ou por último como “cartomante”. Madame Thebas, o personagem
“encarnado” por Avellar no segundo processo nos fez ponderar sobre suas ideias
e concepções de mundo, mal sabíamos o que nos esperava.

1.3.2 O Avellar Professor


Avellar é uma constante surpresa. No processo de 1904 ele diz ser
“professor”. Tanto Gomes (2013), Moraes (2017), quanto Silva (2019)
apresentam esta informação em suas investigações sobre Avellar. Sua profissão
acaba sendo pouco relevante no contexto da repressão, nada para além do fato
de Avellar afirmar que se reunia com seus discípulos no espaço da Sociedade
Beneficente Jesus de Nazareh. Nada mais é dito sobre sua formação, ou sua
relação com o ensino.
No entanto, em pesquisa mais aprofunda ao acervo do Arquivo Nacional
foi possível encontrar outro Inquérito policial contra Avellar, esse do ano de 1902,
envolvendo um aluno menor de idade. Avellar é processado pelo pai de seu
aluno no “Collégio Rio de Janeiro”, sediado na Rua Haddock Lobo na Tijuca,
onde Avellar também residia. O pai do menino alega que Avellar agrediu o aluno
à palmatória.
De fato, então, Avellar era professor, diretor e proprietário de um
“Collégio”. Partimos assim para pesquisas nos jornais e pudemos rastrear
diversas facetas de Avellar que serão aprofundadas mais à frente. Aqui basta
apresentarmos uma de suas faces, para que possamos falar de outro trabalho
acadêmico, onde Vicente Ferreira da Cunha Avellar aparece. O professor Avellar
anunciou, durante anos nos jornais da Cidade do Rio de Janeiro, seu livro
“Tratado Elementar de escripturação mercantil ao alcance de todas as
inteligências”, assim como, aulas particulares para formação na profissão de
“Guarda-livro”6.
Dessa forma, vamos encontrar outra citação ao nosso “professor” na
Dissertação de Amado Francisco da Silva (2005) defendida pela Universidade
Católica de São Paulo, na pós-graduação em Ciências contábeis e financeiras.

6 Guarda-livro era o que hoje conhecemos pelo profissional de Contabilidade, o “Contador”.


24

Sob o título de A Contabilidade brasileira no século XIX – Leis, ensino e


literatura, Silva (2005) apresenta diversos autores do século XIX ligados à
contabilidade. Quão grata não é nossa surpresa quando nos deparamos com
Vicente Avellar.
Silva (2005) se baseia no “Diccionário Bibliográphico Brazileiro” de
Augusto Victorino Alves Sacramento Blake para apresentar Vicente Ferreira da
Cunha Avellar. A Obra de Blake (1902) enumera e apresenta em sete volumes
todos os autores que pôde localizar em seu tempo, apresentando uma breve
biografia e a relação de suas obras. Assim, Silva (2005) irá também apresentar
as informações dadas por Blake (1902), aqui citamos Blake:

V i c e n t e F e r r e i r a da Cunha A v e l l a r — Filho de
Bernardo Avellar, nasceu no estado de Pernambuco a 5 de abril
do 1860 e depois de ter cursado os melhores estabelecimentos de
instrução, como o ex-colégio Pedro II, que frequentou até o 3°
ano, entrou para o comércio com doze anos de idade, carreira que
abandonou, passados três anos, para dedicar-se ao magistério.
Abriu um curso particular de diversas disciplinas com seu pai, a
quem substituiu na cadeira de escrituração mercantil do Instituto
comercial; foi o fundador de diversos Colégios, lente de francês
em muitos outros e professor do Lyceo de Artes e Officios;
fundou várias sociedades literárias, entre elas a 24 de Maio, a José
Alencar e a Sylvio Roméro ; foi o organizador da Empresa
Commercial, forense e domestica, criou a Academia livre do
commercio e por último a Escola de commercio para o sexo
feminino. Escreveu :
— Boas festas : versos. Rio de Janeiro, 1695 [1895], in-
8°.
— Elementos de economia politica. Rio de Janeiro, 1895.
— Tratado elementar de escripturação mercantil ao
alcance de todas as intelligencias. Rio de Janeiro, 1886 — Ha
segunda edição de 1893, 112 pags.,e terceira de 1900,221 pags.,
na qual vem adicionada uma escripturação domestica cuja
utilidade é incontestável.
— A instrucção e o jogo : comedia. Rio de Janeiro. .
— Corrupção social. Rio de Janeiro, 1898 — Redigiu :
— O Guarda-Lívros: órgão do defesa dos direitos da
classe. Rio de Janeiro, 1888.
— Commercio -. órgão defensor dos direitos do caixeiro.
Rio de Janeiro, 1893 (BLAKE, 1902, p. 453).

Avellar era um escritor ávido, além da produção apresentada por Blake


(1902), encontramos junto à Biblioteca Nacional outros livros e periódicos: o
Jornal A Eschola: órgão da associação dos professores do Brazil (1900), O
25

Barão do Rio Branco e o Brazil (1909), “O Occultismo” e as curas


assombrosas produsidas pelo conhecido professor Avellar (1909) e o
Epsódios da Evolução Commercial pelo professor Avellar (1913).
Durante a Dissertação (VELASCO, 2019) nós apresentamos também o
jornal “A Fé” utilizado como prova no inquérito de 1904 contra Avellar, onde ele
assinava como Redator-chefe, Moraes (2017) e Silva (2019) também
mencionam este periódico.
Diante de tanta complexidade em um personagem, buscamos apresentar
as nuances das relações de Avellar com suas experiências religiosas, que o leva
à prisão duas vezes. Suas relações sociais, através das trocas que faz com
personagens importantes na sociedade carioca do início do século XX, o seu
envolvimento com diversos movimentos sociais, caminhando entre as camadas
mais variadas na Cidade. Nisso, os jornais de ampla publicação, nos permitiram
traçar as aventuras de Avellar, onde por exemplo encontramos o professor
envolvido com a Revolta da Vacina em 1904, já respondendo ao processo por
“prática ilegal de medicina e Feitiçaria” e em 1906 à frente da luta dos
comerciantes pelo fechamento obrigatório das portas às oito horas da noite e
aos domingos.

1.2 A pedrinha miudinha desse terreiro – Vicente Avellar a “Madame


Thebas”.
Vou abrir minha Jurema,
vou abrir meu Juremá
Com a licença de Mamãe Oxum
E nosso Pai Oxalá

Tratamos nesse trabalho do processo de repressão que o Código Penal


de 1890 deu base legal para acontecer. Porém, como Reis (2008), Carvalho,
Gomes e Reis (2010), e Sampaio (2000) mostraram com seus estudos, a
repressão a determinadas práticas e experiências religiosas é uma tradição do
Estado no Brasil desde a Colônia. Os autores demonstram também, que a
repressão às experiências religiosas negras foi imperiosamente mais arraigada
que às demais cores de fé. E, dessa forma, o Código Penal de 1890 acaba por
“confundir” a repressão que já existia há séculos, dando margem à prisão e
processamento de outras experiências religiosas, como o Espiritismo do tipo
Kardecista.
26

É importante ressaltar alguns fatos sobre Vicente Ferreira da Cunha


Avellar, e assim compreendermos a repressão em suas nuances mais sutis.
Avellar era pardo, carioca, filho de um pernambucano e uma fluminense de
família abastada em Campos (FIGURA 1), fluente em francês e inglês, professor
desses idiomas, e do português, contabilidade, geometria entre outras ciências.
Ou seja, Avellar era um cidadão muito acima da média na população carioca em
princípios do século XX. Isso não impediu que a repressão policial, baseada no
Código Penal de 1890, chegasse até ele e suas peculiares formas de exercer a
fé. No entanto, a forma como Avellar é tratado, nos jornais e na documentação
que envolve juízes, advogados, policiais e testemunhas, deixa evidente seu lugar
na sociedade, quando comparado com outros processos, há uma diferença
significativa no tratamento dado a Avellar.
Professor, cartomante, ocultista, curador, a influência de Avellar parece
ser um ponto fora da curva. Preso duas vezes por prática de magia, espiritismos
e seus sortilégios, permanece caminhando entre autoridades, dando suas aulas
e oferecendo palestras por décadas, até sua morte. A repressão e os crimes
cometidos, se abalaram sua figura, foi apenas momentaneamente, apesar de
não terem sido esquecidos por todos. Mas não chegam a abalar a imagem
pública de Avellar ao ponto de lhe fechar as portas dos salões e da sociedade
letrada.
Estudar o caso de Avellar e seus processos em 1904 e 1907, assim como
a observação das tramas que envolviam Avellar na sociedade carioca, nos
possibilita através do micro, pensar o macro nos processos de repressão.
Avellar, um homem de pele clara, letrado, escritor, organizador de jornais,
associações, professor e comerciante, não teve sua figura pública exposta e mal
afamada pelo envolvimento com as práticas de espiritismo e cartomancia, nem
pela prática ilegal de medicina, ou promessas de cura por imposição das mãos.
Avellar não teve uma campanha pública nos jornais como Jucá Rosa no seu
tempo, ou como “Papae Felix” em 1897 (VELASCO, 2019, p. 73). Ao contrário,
os jornais continuaram chamando Avellar de professor, anunciando seus
projetos e trazendo sua figura relacionada aos grandes nomes de sua época.
27

Figura 1 - Arvore Genealógica de Avellar

Fonte: FamilySearch (2019).

O que, portanto, diferencia Avellar de Jucá Rosa, Félix e tantos outros que
eram execrados pela opinião pública por praticarem suas experiências religiosas
e serem incriminados por elas? Algumas hipóteses são levantadas aqui para
mais à frente tratarmos com mais afinco essas ideias. Primeiro, Avellar se
alinhava ao ideal civilizador pensado para o Rio de Janeiro no início da república.
Apesar de ser processado pelos crimes de feitiçaria, medicina ilegal, espiritismo,
curandeirismo e cartomancia, Avellar não se caracterizava como o feiticeiro
“típico”. Em segundo, Avellar era um cidadão “culto”, dentro dos padrões
europeus e refletia para a sociedade esses valores. A própria experiência
religiosa pela qual foi reprimido em 1904 estava alinhada ao padrão europeu de
“espiritismo”, que deixaria progressivamente de ser visto como alvo da
repressão.
28

Por fim, Avellar não era um feiticeiro carioca, do tipo que alertava a polícia,
a mídia e suas aspirações de modernidade. Ou seja, Avellar não era negro, nem
“enegrecido” pela cor da sua crença (VELASCO, 2019). Avellar incensava os
padrões franceses que eram os mesmos que a elite buscava para “civilizar” o
Rio de Janeiro, mesmo que usando de subterfúgios, o professor oferecesse os
mesmos serviços que os feiticeiros negros ofereciam.
Para ser possível a construção dessa Tese utilizamos fontes já clássicas
no estudo da repressão: os Jornais, periódicos do momento, que traziam
enormes informações sobre as batidas policiais, e no caso de Avellar,
apresentavam o próprio personagem, com o que parece ser uma “estratégia de
marketing” do professor; os Inquéritos Policiais e processos do judiciário, onde
podemos observar a trajetória dos personagens da repressão; o mapeamento
que realizamos durante o mestrado, e nos ajuda a ler melhor a cidade e a própria
repressão. A seguir apresentaremos as fontes que compõem a construção da
Micro-História de Avellar.

1.2.1 As fontes
Figura 2 - Mapa de Calor: repressão e freguesias do Rio de Janeiro (1904 –
1915).

Fonte: VELASCO, 2019.


29

Ambos os eventos de repressões sofridas por Avellar se encaixam no


mapa acima (FIGURA 2), com três anos de diferença. Na primeira vez, em 1904,
na Freguesia de São Cristóvão, na segunda vez em 1907, na Freguesia do
Sacramento. Através da construção das Geografias da Repressão é que tivemos
contato com Avellar e as primeiras fontes que constituem esse trabalho de
Doutorado, os dois Inquéritos Policiais. As demais fontes foram levantadas
durante os dois primeiros anos de pesquisa (2019 e 2020)7 e apresentaremos a
seguir, de forma mais detida, cada fonte e a forma com que trabalharemos nos
capítulos três e quatro dessa tese.
O Inquérito “T70 PCR 622” do controle Arquivístico do Arquivo Nacional,
onde o pai do menino Manuel Bitencourt, após receber seu filho com várias
marcas de palmatória nas mãos e pelo corpo, o levou a delegacia para abrir
queixa contra o proprietário e professor do “Collégio Rio de Janeiro”, ninguém
menos que nosso Vicente Avellar. Esse é o primeiro Inquérito Policial que
conseguimos levantar nos arquivos consultados. Processo que aparentemente,
nada tem a ver com os inquéritos que movem este trabalho (diretamente ligados
aos artigos 157 e 158), mas que veremos, coloca Avellar em um novo rumo.
Este Inquérito nos mostrou, primariamente, que a informação que
tínhamos observado ainda na pesquisa da dissertação, dada pelo próprio Avellar
à polícia em 1904 era verdade, ele de fato era professor. Além disso ele teve um
colégio (mais à frente veremos que na verdade ele teve mais de um). E, para
além, o Collégio Rio de Janeiro situado na Rua Haddock Lobo, número 29A,
nos mostra a proximidade de um outro caso de polícia que encontramos nos

7 Devido a pandemia de COVID -19 que iniciou em março de 2020, um movimento de


“Quarentena”, os arquivos públicos, assim como as bibliotecas públicas na Cidade do Rio de
Janeiro se mantiveram fechados por todo o ano de 2020. A Quarentena iniciou-se em 16 de
março, em outubro foi disponibilizada a plataforma “Módulo de Atendimento a Distância”, no
sistema do Arquivo Nacional, onde pedimos os documentos encontrados na base SIAM com
referência a Avellar e seus filhos, apenas no dia 9 de março de 2021 foi feito o retorno com os
documentos pelo Arquivo Nacional, estes serão utilizados como fontes nos capítulos dois e três.
Na Biblioteca Nacional, a situação foi ainda pior. Seguiu fechada desde março de 2020 reabrindo
apenas em março de 2022. No caso da BN, nenhuma forma de consulta virtual, além da que já
existe no site da Hemeroteca, foi disponibilizado aos pesquisadores. Tínhamos fontes
importantes, para consultar no acervo de obras raras da BN, que só tivemos acesso no último
ano da pesquisa.
30

jornais8, mas que infelizmente não foi possível (ainda) encontrar seu referido
processo nos Arquivos. Veremos as nuances de imbróglio de maneira mais
detida no capítulo três desta Tese.
O Inquérito “RMI 0666” de 1904 e o “CQ 230” de 1907, ambos também
levantados no acervo Judiciário do Arquivo Nacional, seguem como fontes desta
Tese9. Em 1904, quando Avellar é acusado nos artigos 157 e 158 do Código
Penal, e nos artigos 250 e 251 do Decreto 5.224, Regulamento Processual da
Justiça Sanitária, apresenta um cenário onde Avellar aparece como líder de uma
organização, a “Sociedade Scientifica de Estudos Philosophicos Jesus
Nazareno”. Segundo o relato do Doutor Sebastião Barroso, o inspetor sanitário
que o acusa, Avellar estaria dando consultas no sobrado, acima de sua
residência. Barroso estava observando a movimentação da “Pharmácia Únião”,
situada na Rua de São Cristóvão, número 191.
Nos vale aqui, apresentar algumas questões interessantes que aparecem
quando recorremos aos jornais. Durante a Pandemia de Covid-19 e a
impossibilidade de pesquisar fontes nos arquivos, traçamos como estratégia
levantar a trajetória de Avellar nos periódicos da Cidade. Iniciamos as pesquisas
na “Hemeroteca” da Biblioteca Nacional através das palavras-chaves: “Professor
Avellar” e “Vicente Avellar”, para nossa surpresa conseguimos registros dele
para além de seus crimes. Havia uma longa trajetória de Avellar nos jornais, sua
vida social, econômica, religiosa e política desde 1881 com anúncios de suas
aulas, até 1928 com o aviso de seu falecimento. Os jornais se apresentaram
como excelente ferramenta para informações de nosso personagem, revelando
facetas que não eram possíveis de verificar através dos inquéritos e documentos
judiciais.
Por exemplo, através dos jornais verificamos que enquanto seu processo
por acusação de prática ilegal de medicina, espiritismo e curandeirismo, corria
na justiça, Avellar estava envolvido com a luta da anti-vacinação obrigatória.
Dessa maneira, os jornais foram uma excelente ferramenta para observar as
tramas sociais por onde Avellar transitava.

8 Fonte de importância fundamental para a construção da trajetória de Avellar pela cidade, ainda
mais com o fechamento dos Arquivos públicos na Pandemia. A Hemeroteca e todo seu acervo
digital precisa ser sempre exaltado.
9 Fontes levantadas para a organização de nosso trabalho de Dissertação (VELASCO, 2019),

como já foi citado.


31

Tal como representa a rotina no jornal O Globo, o personagem de Lima


Barreto em sua obra: “Recordações do Escrivão Isaias Caminha”, podemos
pensar na rotina de Avellar e os Editores dos jornais da cidade, mas
principalmente do Jornal do Commércio, onde ele está sempre presente
bajulando os grandes divulgadores de sua figura:
O seu gabinete era alvo de uma peregrinação. Durante o dia e nas
primeiras horas da noite, entrava toda a gente, militares, funcionários,
professores, médicos, geômetras, filósofos. Uns vinham à cata de
elogios, de gabos aos seus talentos e serviços. Grandes sábios e
ativos parlamentares eu vi escrevendo os seus próprios elogios
(BARRETO, 1917, p. 145).

Durante décadas, Avellar fez questão de estar constantemente nas


páginas dos jornais, enviando presentes aos editores, e como resultado, aparece
com mais frequência nas páginas desses periódicos. É importante frisar também
que o destaque dado aos casos policiais e judiciais de Avellar são mínimos.
Pequenas notas são feitas sobre o inquérito de 1904 e em 1907 há um
intercruzamento curioso de informações. Um cidadão que como “Cid. Adon.”,
envia uma provocação ao “O Rio-nu”, que pode muito bem falar ao Avellar em
seu segundo caso de prisão pelo art. 157, em 1907. Envia Cid. Adon., a pilhéria:

Uma Consulta. (Ao bom amigo Thebas).


<<Atrasos na vida e casamentos difíceis, negócios ruins, pazes e
talismãs da felicidade, toda a pessoa que o tiver consegue tudo que
deseja, com Madame Thebas, na rua tal, número tantos>> - Então
você, seu Thebas! deixa agora Sua esposa tratar de casamentos
Difíceis, aqui diz -e, deitar fora. Da vida, os passos maús, ruins
tormentos?!... Assim!...peço a você sem mais demora, Licensa, pois
não tenho maus intentos, Prá uma consulta ter de sua senhora. Às
casadas não faço atrevimentos!... Você sabe...eu perdi minha noiva
amada; Em negócios, não sou feliz em nada, E, p'la vida, o lutar já me
incomoda... Portanto quero ver se ela me guia; Da vida, a minha
escripta, poe, em dia, Que há muito ando atrasado, cá na ... escripta!...
Cid. Adon. (O Rio-nu, 04 de maio de 1907, p. 3.)

Cid. Adon., ao que parece, faz um jogo de palavras em seu reclame,


deixando as palavras-chaves para que algum dia nós a encontrássemos.
Primeiro ele dedica “Ao bom amigo Thebas”, depois em destaque aparecem as
palavras “seu”, em referência ao masculino de “senhor” Thebas, “esposa”,
seguindo a alusão de que está falando a um homem que resolve os problemas
de “atrasos na vida e casamentos difíceis, negócios ruins, pazes e talismãs da
felicidade”, no entanto, ele insinua que o “seu Thebas” estaria deixando sua
“esposa”, novamente a palavra em destaque, “tratar de casamentos difíceis”. Por
32

fim, afirma que faria uma “consulta” com sua “senhora”, mesmo que ele não
tivesse “atrevimento” com mulheres casadas, mas como bem sabia o “seu”
Thebas, ele (Cid. Adon.) havia perdido a noiva.
E, para arrematar a dica de quem estava dizendo, ele afirma usando por
duas vezes a mesma palavra em destaque: “Da vida, a minha escripta, põe, em
dia, Que há muito ando atrasado, cá na ... escripta!”. Ao que parece, essa última
incógnita gira entorno da profissão de Avellar, que oferece, desde 1880, todos
os dias nos jornais, aulas e livros de “Escripturação mercantil”. Nos parece que
era o recado de um “cliente insatisfeito”, talvez por ter perdido a noiva, mas nos
abre o gancho para o “segundo personagem” desta Tese: A Madame Thebas –
de Avellar, que trataremos mais detidamente no quarto capítulo da Tese.

1.3 O Oculto que revela – Madame Thebas

oh no fundo do mar tem pedra


debaixo da pedra tem areia
debaixo da areia tem conchinha
debaixo da conchinha mãe sereia
(Ponto de Iemanjá na Umbanda)

Como já foi dito, há dois personagens nesta biografia, Avellar, o


personagem central e Madame Thebas, o personagem que ele encarna e que o
levaria novamente às garras da polícia em 1907. Madame Thebas é um
personagem ficcional na trama de Avellar, mas que, de fato, existiu. Madame de
Thèbes foi uma “pitonysa”, “quiromante” e “profetiza” francesa, de fama mundial
que utilizava o nome da cidade egípcia “Catedral da magia antiga” além de sua
representação grega: fera-mulher que lançava enigmas e devorava os homens
que, até ela, iam buscando se provar.
A partir de recortes dos periódicos cariocas, foi possível rastrear a
presença de anúncios de cartomantes na capital a partir de 1870, anúncios
pequenos com poucas palavras, davam conta apenas de apresentar o trabalho
de “cartomante”, o endereço do atendimento e o valor. Com o tempo algumas
vão se destacando nas páginas, entre anúncios de remédios naturais
“milagrosos” e recompensas pela recuperação de “negros fugitivos”, as
cartomantes marcam sua passagem pela cidade.
33

Madame Potier, Madame Campet, Madame Josephine, Professor Magico


Salvador Bonnici, Professora Thereza Meraldi, entre tantas outras figuras que
até o fim do século XIX apresentavam seus dons e faziam a vida através da
“Buena Dicha”, ou a leitura da sorte, fosse nas cartas, na palma das mãos ou
pelo “sonambulismo”. Afirmar que tinha acabado de chegar, da Europa, da
França ou ainda do Egito, ou que era natural deste último, ou mais ao Oriente,
levava valor ao anúncio e possivelmente rendia algum lucro.
Em 1856, quando não eram ainda comuns os anúncios de cartomantes,
encontramos o que pode ter sido a “origem”, ou a popularização da tradição no
Rio de Janeiro. A editora H. Laemmert & C.10 anunciava em maio daquele ano,
para “servir de divertimento e passatempo nas noites de São João e Santo
Antônio”, o novo jogo: “A Pythonissa de Paris – Cartas da celebre cartomante
Mlle. Lenormand”. O anúncio do jogo segue dando uma pequena explicação de
quem é a Mademoiselle Lenormand e o uso daquelas cartas:

que ella servia para predizer os acontecimentos os mais


importantes do futuro. Foi ella quem vaticinou a Napoleão a sua
exaltação e glória, e quem anunciou a Frederico Guilherme III da
Prússia +1840+ como ano de sua morte. Consta esse jogo de
um baralho de 36 cartas coloridas com a explicação em
portuguez (JORNAL DO COMERCIO, ed. 150, 1856, p. 3).

Outra senhora francesa, precursora da leitura da sorte em Paris: a


Mademoiselle Le Normand, Marie Anne Adelaide Le Normand. Foi, como ela
própria narrou, em diversas publicações autorais, responsável por ler a sorte dos
jacobinos durante a revolução francesa, previu à, ainda desconhecida, “madame
Bonaparte”, as mudanças políticas que aconteceriam, e a ascensão de Napoleão
(LE NORMAND, 1816). Leu a sorte do próprio Napoleão, e frequentou sua Côrte,
mantendo seu gabinete de atendimento na Rua de Tournon, nº 5 em Paris, onde
atendia com a leitura de cartas, mãos e astrologia .
A morte de Lenormand em 1843 abalou a cidade Luz, levando às ruas
milhares de admiradores, e até os dias atuais seu túmulo recebe visitações no
Cemitério Père Lachaise. Segundo Dantas (2004), o “Tarô de Lenormand”,
composto por 36 cartas, passou anos desaparecido após a morte de sua autora,

10Desde 1838 imprimindo, encadernando e distribuindo produções literárias das mais variadas,
era uma das poucas Typografias que acumulava todo o processo completo de produção.
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tendo sido resgatado em 1893 por grupos de ciganos que encontraram seus
manuscritos e dois baralhos, entre eles o que ficou popularmente conhecido
como Baralho Cigano no Brasil.
No entanto, o que pudemos resgatar através dos periódicos cariocas é
que menos de quinze anos depois da morte de Mademoiselle Le Normand, um
baralho de 36 lâminas estava sendo lançado com seu nome no Brasil, e com
instruções em português por uma grande Tipografia da época. O nome de Le
Normand foi associado ao baralho de 36 lâminas e tornou-se quase impossível
dissociá-lo, no entanto, a mademoiselle, não teve nenhuma influência na criação
do baralho, ou menos ainda, nunca o utilizou como oráculo. A Origem das
lâminas que são conhecidas como Petit Lenormand ou Baralho Cigano, é de um
jogo de salão Alemão do final do século XVIII, o “Das Spiel der Hoffnüng”, Jogo
da Esperança alemão (CAMPOS, 2017).
Ao que parece, a arte da adivinhação, através das cartas, da
numerologia, da quiromancia e a profecia, nunca perdeu forças, na França ou no
Brasil. E o século XIX, o mesmo século da Razão, estava mergulhado nas
crenças espirituais e suprafísicas. Os anos 50 do século XIX traziam ideias sobre
espíritos e oráculos importadas diretamente da França para o Brasil, o
“Espiritismo de Allan Kardec” ou o “Baralho de Lenormand” registram mais que
as crenças nas esferas espirituais e seu entrelaçamento com o mundo físico,
mas um consumo de ideias francesas, como seus hábitos e costumes eram
importados ao Brasil, sobretudo ao Rio de Janeiro.
A Madame de Thebas, a “original” francesa que aqui nos referimos, é
Annette Savary11 ou Anne Victorine Savigny, nascida em 1843 no vilarejo de
Ménilmontant, vizinha a Paris (DAVIES, 2018), (EDELMAN, 2006). A. de Thèbes,
como a própria assinava, foi uma conceituada “adivinha”. Sua fama ultrapassou
as fronteiras do espaço e do tempo. A madame tornou-se uma espécie de lenda
urbana, e a história hoje se mistura com a ficção.

11 Na obra “A Supernatural War. Magic, Divination, and Faith During the First World War”, Owen
Davies está preocupado em apresentar as crenças e superstições que estavam presentes nas
trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Davies apresenta a madame de Thébas como uma
famosa adivinha que previu o início da guerra em 1914. Na obra, Davies afirma que seu nome
verdadeiro é Annette Savary (DAVIES, 2018, p. 27). Davies levanta também sua origem no
vilarejo de Menilmontant, nascida em 1844.
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Anne Savigny teve a profissão de atriz, antes


das profecias. Em seus anos de palco, tornou-se amiga de ninguém menos que
Alexandre Dumas, o filho. E foi o próprio que a aconselhou usar o nome de
“Madame de Thèbas”, em homenagem a mulher misteriosa de sua peça nunca
acabada “La Route de Thèbes”. Assim, em 1895, quando Dumas encontrou seu
fim derradeiro, a Madame de Thebas já era uma figura conhecida e com forte
clientela que a visitava no número 29 da Avenue de Wagram, em Paris (DAVIES,
2018).
No quarto capítulo desta tese, analisaremos as obras de A. de Thèbas
“L’Enignime de la main” de 1900 e “L’Enigme du Rêve” de 1905, assim como o
filme mudo de 1915 “Madame de Thèbes” escrito por Martin Jørgensen e Louis
Levy e dirigido por Mauritz Stiller. A história inspirada em Anne Savigny servirá
para compreender melhor o pensamento europeu sobre as questões que
envolvia o estigma do “Cigano”. A peça de Alexandre Dumas Fils “ La Route de
Thebes”, que parece ter tido em Anne a sua inspiração, nunca chegou a ser
terminada, com a morte prematura do autor em 1895, tivemos acesso aos
manuscritos da peça, acervo de posse da “Bibliothèque Nationale de France” e
totalmente digitalizado. A obra “A Critical Edition of la Route de Thebes. By
Alexandre Dumas Fils Edited and With na Introduction by H. D. Lewis (1998),
rara edição de uma crítica à peça de Dumas, foi também levantada para servir
aos nossos estudos no quarto capítulo quando tratarmos de Madame Thebas.
Ainda no quarto capítulo desta tese, aprofundaremos a comparação entre
outros casos de repressão a cartomantes na Cidade do Rio de Janeiro e
personagens que frequentemente se apresentavam nos jornais como adivinhas
e poderosos curadores, sob títulos de professores, madames, mademoiselles e
tantas pompas, todo tipo de gente estava anunciando poderes magísticos em
jornais, indo diretamente contra ao contexto da repressão.
Existia um mercado consumidor desses serviços, a exposição os colocava
em situação de risco, mas havia vantagens em fazê-lo. Seguindo ainda a
hipótese de que uma rede das relações de Avellar o protegia de sofrer maiores
consequências em suas querelas com a polícia, apresentaremos essa rede de
relações, traçando nomes e meios por onde nosso professor circulava, e quais
as vantagens em assumir para si o nome de Madame Thebas no Rio de Janeiro
de 1907.
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1.4 Repressão e Religiosidades.

Durante a escrita da Dissertação que antecedeu a pesquisa desta Tese,


nos aprofundamos em ler os clássicos que envolvem a repressão religiosa,
sobretudo religiosidades negras. Dessa maneira, foram analisadas as
publicações divididas em dois eixos, o antropológico e o historiográfico.
Dividimos assim as produções de acordo com o momento de suas produções,
tal como suas naturezas científicas. Foram levantadas as obras de Nina
Rodrigues (1932), Fernando Ortiz (1906), Mattos (1938), Bittencourt (1940),
Roger Bastide ([1983] 1946), Reis ([2009]1989), Maggie (1992), Sampaio (2009)
e Oliveira (2015).
O primeiro eixo foi composto por uma escola antropológica, onde
encontramos a produção de Nina Rodrigues ([1988] 1932) como a pioneira desta
tradição. Nina dedicou um capítulo de sua obra sobre religiões africanas na
Bahia para tratar da sobrevivência destas religiões e problematizar a questão da
repressão através da leitura de periódicos do início do século XX, um clássico
que não pode deixar de ser citado por seu protagonismo.
Fernando Ortiz (1906), cubano, dedicado a uma investigação sobre a
Hampa Afro-cubana12 nos foi interessante por dois motivos: primeiro pela
influência de Nina Rodrigues e da Escola Lombrosiana na construção de sua
obra, e em um segundo pelo uso que foi dado de sua obra pela polícia do Rio de
Janeiro nas Perícias de objetos religiosos.
No caminho traçado inicialmente por Nina Rodrigues, encontramos
Bittencourt (1940) que apresentou um artigo na obra organizada por Arthur
Ramos como resultado do II Congresso Afro-brasileiro (Salvador) de 1937. Esse
Congresso teve como objetivo a discussão da liberdade das crenças afro-
brasileiras e apesar de ser essa a questão central do II Congresso, não houve o
devido destaque ao tema entre os artigos lançados. Apenas o de Bittencourt
abordou o problema com profundidade.
Em 1938, Mattos, um advogado paulista, publicou um artigo de
abordagem inédita onde se dedicou a observar os processos criminais

12 Quadrilhas Afro-cubana (tradução nossa).


37

realizados pela Delegacia de Costumes de São Paulo, dedicada naquela época


à repressão de crimes envolvendo os artigos 157 e 158 do Código Penal. A
leitura desta produção foi essencial para compreender a posterior produção para
o contexto carioca. Assim, como a leitura do consagrado Roger Bastide ([1983]
1946), que trabalhando muito inspirado pelo artigo de Mattos (1938), montou um
perfil da “Macumba paulista”, utilizando também como fontes os inquéritos da
mesma Delegacia de Costumes, seguimos os passos de Yvonne Maggie (1992).
Por último, naquele momento, apresentamos no eixo antropológico a obra
de Yvonne Maggie (1992), que na verdade foi para nós a primeira que lemos, e
a “guia” para as outras. Maggie foi pioneira nos estudos sobre repressão às
religiosidades afro-brasileiras tendo como fontes os arquivos policiais da
repressão para o Rio de Janeiro. Não existiriam pesquisas como esta, se Maggie
não houvesse realizado um mergulho nos arquivos da Polícia Civil, e no Arquivo
Nacional, quando a tecnologia ainda não fornecia a ajuda ímpar que temos hoje.
No segundo eixo, que chamamos de historiográfico, apresentamos as
produções de Reis (1989), Sampaio (2000) e Oliveira (2015), assim, procuramos
dentro da historiografia aquelas obras que trataram sobre a repressão religiosa,
as duas primeiras se referem ao período do Império. Reis (1989) é o primeiro a
trabalhar com processos criminais dentro de uma nova perspectiva, para o
momento da publicação, utiliza a metodológica da História Social Inglesa,
enquanto trabalha com casos baianos da repressão às crenças dos negros
durante o Império. Sampaio (2000), de forma inédita, faz um trabalho de Micro-
história para “retirar do tumulo” a história de Juca Rosa, um curandeiro-feiticeiro
da Corte durante o século XIX. Já Oliveira (2015) trouxe em sua dissertação de
mestrado um estudo sobre a repressão policial às religiões afro-brasileiras
durante o Estado Novo (1937-1945) seguindo a linha traçada na década de 1990
por Yvonne Maggie.
Através dessas obras, acreditávamos ser possível compreender o estágio
em que estava o desenvolvimento das pesquisas sobre a repressão policial,
possibilitando um avanço nas ideias que propomos ao fim para nossa pesquisa.
No entanto, como qualquer produção de Dissertação, não conseguimos dar
conta de ler tudo que estava sendo escrito, por outros pesquisadores como eu.
O que para o doutorado, buscamos ampliar as leituras, assim como aprofundar
as análises que já havíamos iniciado no mestrado, como a de Sampaio (2000).
38

Aqui destacamos obras dedicadas à Micro-História, escritas a partir do


gênero biográfico nesse campo temático, envolvendo a repressão a religiosos.
As três obras que discutiremos a seguir tratam de personagens negros, inseridos
na lógica das experiências religiosas afro-brasileiras e africanas. Buscamos
essas obras por acreditarmos que nelas encontramos os “genes” que darão base
à repressão pela qual passa Vicente Avellar nos dois processos que responde
em 1904 e 1907. Em muito, Avellar se diferencia de Alufá Rufino, Domingos
Sodré e Juca Rosa, começando por sua origem e etnia, no entanto buscando
compreender para além da figura que biografamos, a própria sociedade em que
este se insere, acreditamos que os personagens analisados por Gabriela , João
José Reis, Flávio Gomes e Marcus Joaquim de Carvalho, nos ajudarão a
compreender a lógica civilizatória que envolve a repressão aos religiosos negros
e não negros no Brasil, desde o Império, assegurando as diferenças que ficarão
evidentes na construção de nosso personagem.

1.4.1 Domingos Sodré – um sacerdote africano.


Domingos Pereira Sodré, africano liberto, foi denunciado em julho de
1862, por um funcionário da Alfandega diretamente ao chefe de Polícia. A
acusação girava entorno de suas formas de ganhar a vida com a adivinhação e
feitiçarias. O uso do termo “Candomblé” pelo chefe de polícia era comum
naquele período para definir práticas e crenças de origem africana, como nos
afirma Reis (2008), e é assim que o autor também utiliza a palavra de forma
ampla.
As fontes que Reis (2008) utiliza para construir a história de Domingos
são aquelas, tal como Ginzburg (1976) alerta, que devem ser vistas com maior
atenção por historiadores que desejam escrever histórias de personagens
invisibilizados, as fontes policiais, e inquisitoriais, que podem e devem ser
utilizadas para capturar os relegados pela História. Documentos ligados à prisão
de Domingos acabaram por levar o autor a outros documentos que o permitiu
“ampliar o foco” (REIS, 2008, p. 15) sobre essa prisão.
Dessa forma, Reis (2008) apresenta um personagem que chegou ao
Brasil, vindo de Lagos, cidade da atual Nigéria, na condição de escravo em um
engenho no Recôncavo, onde se manteve até a morte do proprietário, que, por
indícios, parece ter lhe dado a alforria por essa ocasião. Reis encontra a
39

presença de Domingos na “Cidade da Bahia” em 1940, já um homem livre, em


um registro de batismo, como padrinho.
Reis (2008) afirma que Domingos prosperou na cidade, tornando-se
proprietário de escravos e casas. Casou-se na Igreja e ficou viúvo de sua
primeira mulher, casou-se novamente, e ao fim da vida deixou para sua viúva,
os poucos bens que ainda acumulava, seu inventário é também parte das fontes,
onde relatam sua doença, morte e funeral. O autor encontra demandas de
Domingos na justiça com outros africanos libertos, outras documentações que
possibilitam a observação dos círculos sociais de Domingos.
Por fim, Reis (2008) afirma que:
Através da vida de Domingos penetramos no mundo dos libertos
africanos, centenas de homens e mulheres que tinham conseguido, por
meio de acordos com seus senhores, se alforriar gratuitamente ou,
mais amiúde, comprar sua alforria. Esses libertos , que na sua maioria
trabalhavam no ganho de rua, tiveram papel fundamental na formação
do candomblé, uma religião que se constituiu em suas grandes linhas
precisamente na época em que Domingos viveu na Bahia. Muitos
personagens do candomblé oitocentista, libertos como Domingos,
comparecem neste livro e entrelaçam sua biografia com a dele (REIS,
2008, pp. 18 -19).

Os documentos oficiais apresentam esses homens e mulheres como


“adivinhos, curandeiros e chefes de casas de culto” fazendo-os alvo de
repressão pela polícia. A imprensa tem papel de destaque nessa perseguição,
tal como veremos no decorrer do processo de repressão da República.
O método punitivo utilizado contra esses religiosos não era unanime entre
as autoridades. Tal como nós mostramos na pesquisa de dissertação
(VELASCO, 2019), o discurso de Nina Rodrigues, por exemplo, refletia essa
contradição. Reis (2008) verifica as disputas sobre essa realidade entre “a
tolerância e a repressão”.
A impressa, também nos tempos de Domingos, exercia um papel
fundamental na construção da repressão, esse papel foi verificado também por
nós (VELASCO, 2019) quando as denúncias e a construção da batida policial se
iniciam pela investigação jornalística. Reis (2008) se depara, também, com essa
realidade nos tempos de Sodré. Por fim, justifica que ao observar a vida de
Domingos, é possível verificar parte do debate cultural, guia da narrativa da
história do candomblé na Bahia daqueles tempos, ou seja, a história de
Domingos e a do Candomblé estão intrinsicamente ligados à história da
Repressão policial e da violência para Reis (2008).
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Reis (2008) ressalta, ainda, a questão racial envolvendo a ação policial


nos casos de batidas aos candomblés. Em uma batida ao “candomblé do
Pojavá”, depois de grandes polêmicas com o chefe de polícia João Henrique e o
subdelegado João Piapitinga, que tinham formas bastante diferentes de ver o
candomblé e a melhor maneira de lidar com ele, onde mais de cem pessoas
estavam presentes, porém cerca de sessenta, apenas, foram detidas. Dos
detidos, duas mulheres e um homem, eram africanos, 22 homens e 23 mulheres
eram crioulos, negros nascidos no Brasil, e mais quatro mulheres pardas e três
homens pardos (REIS, 2008). Como Reis (2008) ressalta, não se verifica a
presença de brancos entre os detidos, o que obviamente não invalida a presença
deles, visto que cerca de 40% dos presentes não foram sequer levados para
delegacia, esses poderiam ser bancos “liberados pela polícia sob a desculpa de
serem simples curiosos”. O processo de crioulização dos candomblés era um
problema à parte para as autoridades.13
Na construção biográfica da história de Domingos Sodré, Reis (2008) vai
desdobrando histórias sobre a formação dos candomblés na Bahia, histórias da
repressão a religiosos e histórias da própria escravidão e liberdade naquela
cidade. O autor não atribui ao seu livro uma metodologia micro, mas na prática
da sua escrita o que se verifica é a constante mudança de foco entre o micro e
o macro de maneira a ilustrar uma à outra. A história social da escravidão e da
liberdade está diretamente ligada à biografia de Domingos Sodré a partir dessa
biografia o autor vai construindo caminhos para outras histórias em perspectiva
macro.

1.4.2 O Alufá Rufino.


Rufino José Maria foi preso em 1853 em sua residência, em Pernambuco.
Os autores Flávio Gomes, João José Reis e Marcus de Carvalho (2010) iniciam
o trabalho afirmando que a história de Rufino é escrita a partir das mesmas
fontes que são origem da maioria das informações sobre escravos e negro
libertos no Brasil, documentos policiais. Novamente, as fontes policiais servem

13Outros textos de João José Reis se debruçam na presença de brancos entre os frequentadores
dos candomblés, e a intensa crioulização da crença o capítulo “Nas malhas do poder escravista:
a invasão do candomblé de Accú” in.: Reis & Silva (1989), por exemplo, trata de mais um
candomblé varejado, dessa vez em Accú.
41

de substrato para a construção da história de um personagem “marginal”. Dessa


forma, Gomes, Reis e Carvalho (2010) escrevem mais que uma biografia,
constroem uma história social do tráfico e da escravidão no Atlântico, tendo em
Rufino e em sua história, a bússola de navegação, Rufino é o “zoom” da lente de
Gomes, Reis e Carvalho (2010) para observarem os eventos sobre o tráfico e a
escravidão.
A prisão de Rufino dá-se por ser ele um muçulmano. Desde a rebelião dos
Malês em 1835, o medo das revoltas fomentava um clima de tensão entre os
senhores de escravos em todo o Brasil, e esse é o ponto de maior destaque
dessa produção. Gomes e Reis (2010) conseguiram mostrar, através da
biografia de Rufino e suas andanças, que não era apenas em Salvador, ou na
Capital do Rio de Janeiro que o medo era companheiro dos brancos, mas em
Porto Alegre também havia o constante temor do levante negro, quando esses
iam se tornando mais presentes na cidade. Por sua origem, língua e experiência
religiosa, Rufino tornava-se suspeito e por mais de uma vez, possivelmente, é
levado às autoridades policiais para explicar suas associações.
Gomes, Reis e Carvalho (2010) constroem seu relato sobre Rufino
partindo principalmente de duas fontes, o processo crime e uma carta publicada
por alguma testemunha, no jornal, onde esse defendia o direito de Rufino exercer
livremente seu culto, tal como regia a Constituição do Império. No processo
crime, o próprio Rufino conta em depoimento suas aventuras, desde sua
chegada ao Brasil, pelo tráfico transatlântico e posteriormente suas andanças
pelo território brasileiro, sendo vendido e comprado por senhores, até seu último
senhor, um poderoso escravocrata, o chefe de polícia Peçanha. Sob as ordens
do chefe de polícia, Rufino trabalhou no ganho e além, parecia ter levado alguma
quantia em sua ida da Bahia para o Rio Grande do Sul, o que contribuiu ao valor
somado de 600 mil Réis, que afirmava ter pagado por sua liberdade.
A narrativa que Gomes, Reis e Carvalho (2010) constroem, é permeada
por informações sobre a escravidão transatlântica, assim como pelos números
da escravidão no Brasil. Os autores não resumem suas análises aos fatos
ocorridos com Rufino, mas usam a história de Rufino para buscar outras
questões que decorrem da escravidão e das tensões sociais que dão tempero à
vida de Rufino. Por exemplo, o fato de Rufino ser alforriado, exatos dois meses
42

depois da eclosão da revolta Farroupilha em 20 de setembro de 1935 com um


ataque a Porto Alegre.
Em 1853, quando interrogado, Rufino afirmou não ter tomado partido nos
conflitos Farroupilha, logo se retirando de Porto Alegre, no entanto, os autores
ponderam sobre a possibilidade de uma história alternativa a essa. Em
documento de 1838, são deportados dois africanos libertos de Porto Alegre para
o Rio de Janeiro, por suspeita de conspiração Malê, os nomes desses homens:
José e Rufino (GOMES; REIS; CARVALHO, 2010, s/n). Teria, nessa teoria,
Rufino ido para o Rio Grande, onde o governo antifarroupilha funcionava, e lá
em 1838, uma batida policial apreendido documentos em árabe, na posse
desses dois negros libertos. O Rufino da batida policial poderia muito bem ser o
que novamente estava sendo inquerido por sua crença, e omitia o fato da
investigação anterior por óbvios motivos.
Não apenas pelo método utilizado por Gomes e Reis (2010), mas por uma
escolha teórica de construir a compreensão de seu objeto, partindo das
experiências de um subalternizado, dando ênfase na narrativa desse
personagem para através dele resgatar o contexto social da escravidão no Brasil.
Assim, como pela compreensão da repressão a uma experiência religiosa vista
como perigosa pelas elites, e por isso caso de polícia, entendemos que a obra
sirva como referência para nossa construção, do que para além da biografia de
Avellar, podemos compreender como a Micro-História da Repressão policial a
religiosos na recém-nascida República Brasileira.

1.4.3 Juca Rosa – Papai Quibombo


José Sebastião da Rosa – o Jucá Rosa – nome que marcou o imaginário
dos cariocas por décadas, tornou-se “sinônimo de feiticeiro negro” (SAMPAIO,
2000, p. 14), tem sua vida devassada pelos periódicos do Rio de Janeiro em
1873, quando foi processado. Gabriela Sampaio, em seu doutorado, esmiúça
esse personagem a partir da biográfica de Juca constrói a Micro-História da
sociedade carioca da década de 1870, quando impasses como a Lei do Ventre
Livre marcam com passos decisivos o fim do Império.
A narrativa de Sampaio (2000) é da clássica Micro-História social,
diferente da feita por Ginzburg, na narrativa da vida de Menochio, quando
constrói uma Micro-História cultural (REVEL, 1998). Sampaio está preocupada
43

em organizar os círculos sociais de Juca e mostrar suas teias de relações. Essa


preocupação de Sampaio está diretamente ligada às suas fontes, e à importância
dada aos demais personagens que estão envolvidos na vida de Juca, as várias
mulheres, brancas e negras, e os homens, negros, brancos, comuns e
poderosos, que podem, por fim, tê-lo levado até a situação que se encontrava
no dia cinco de julho de 1871.
A autora considera, portanto, que o contexto social do momento foi
determinante para que o caso de Juca, tivesse a repercussão que teve, ela
destaca a situação da população negra na Cidade do Rio de Janeiro daquele
momento. Sampaio (2000) nota que o aumento das taxas de alforrias concedidas
e a presença de negros livres na Corte eram recordistas naquele momento.
Afirma, também, que houve um aumento nesses índices no pós-guerra do
Paraguai, principalmente.
Para se ter uma ideia, em 1849 os escravos eram quase 42% da
população do município da Corte, incluindo paróquias rurais: 110.602
cativos em um total de 266.466 habitantes. Só na Corte havia 80 mil
cativos, o que fazia do Rio a cidade com maior população escrava
urbana das Américas. Havia ainda cerca de 10.800 libertos, e
somavam-se a eles entre 20 e 30 mil pardos e pretos livres. No censo
de 1872, constatou-se que a população cresceu pouco em relação a
1849, subindo de 266.466 para 274.972 habitantes. Entretanto, o
número de escravos diminuiu espantosamente: eram 48.939 escravos,
representando apenas 17% do total de habitantes do município.
(SAMPAIO: 2000, p.19).

Para Sampaio (2000), seria esse aumento no número de negros e pardos


libertos em relação à diminuição dos escravizados que geraram na sociedade
carioca um sentimento de medo diante do futuro da sociedade branca e de elite.
Não muito diferente do contexto que envolve a prisão de Domingos analisado
por Reis (2008), onde a preocupação com a presença de africanos libertos e
crioulos nos candomblés acaba intensificando a repressão (REIS, 2000).
Para confirmar sua hipótese, Sampaio alega que as discussões sobre a
Lei do Ventre Livre tomaram os anos de 1870 e 1871, o momento exato que o
caso de Juca era exposto e tão explorado pelos jornais. (SAMPAIO: 2000, p. 37).
Juca deveria servir, portanto de “exemplo” do que, para a elite, seria o futuro do
Brasil caso a Lei do Ventre Livre fosse aprovada.
Precisamos ressaltar algumas questões que ficam evidentes ao olharmos
as produções levantadas: primeiro, a repressão a religiosos não foi inventada
pela República. O Código Penal de 1890 tem papel oficializador de uma
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repressão que sempre existiu, o código faz também uma confusão na prática da
execução da lei, pois inclui entre “alvos”, muitos dos que tradicionalmente
acabavam escapando dos processos de “estelionato”, como os espíritas
Kardecistas e práticas brancas de cura, leitura da sorte e magias. Segundo, ao
tratarmos da cidade do Rio de Janeiro, a produção acadêmica está voltada para
as motivações e resultados da repressão aos religiosos afro-brasileiros,
principalmente, no entanto, o cenário das religiosidades é mais complexo e
talvez, algumas dessas formas de experiências religiosas tenham sido deixadas
de lado, não por ignorá-las, mas por considerá-las de menor expressividade.
Com isso ressaltamos dois tipos que estão sempre aparecendo e carecem de
investigação: as cartomantes e os ocultistas, ambas categorias em que Avellar
se enquadra.

1.5 O Código Penal de 1890.


O que diferencia a repressão que sofreram Domingos Sodré (REIS,
2008), Alufá Rufino (GOMES; REIS; CARVALHO, 2010) e Juca Rosa
(SAMPAIO, 2000), e os mais de trezentos envolvidos nas devassas policiais,
incluindo nesse número Vicente Avellar, no mapeamento feito por nós durante o
Mestrado (VELASCO, 2019)?
O Código Penal de 1890 é a primeira resposta, a mais óbvia que nos vem
à ideia. Portanto, é a partir dele que iniciaremos a problematização da repressão.
Tentamos buscar as origens do Código 1890, os personagens que envolvem sua
fundamentação, as teorias do Direito que o impregnam, e quando possível os
embates, principalmente em decorrência dos artigos 157 e 158.
O artigo 156 que fala de uma classe específica, trataremos no segundo
capítulo quando falarmos do contexto de cura e medicina na cidade do Rio de
Janeiro, pois ao analisar os trabalhos já citados, entre outros que ainda
discorreremos, fica evidente o papel deste artigo como o propulsor da repressão
e impulsionador dos outros dois artigos. No caso de Avellar, mesmo que o 156
não tenha sido utilizado nas acusações, é fundamental para compreendermos
as disputas no cenário da cura em que está inserido nosso professor.
45

1.5.1. “O defeituosíssimo Código que temos”: sistemas e teorias.

Disposições sobre feiticeiros não são dignas de figurar em um


código no crepúsculo do século XIX. [...] Este cap. encerra uma
classe menos grave de crimes contra a incolumidade pública,
mas talvez mais fácil e mais frequente em realizar-se. É a última
categoria dos crimes de dano e perigo comum esta que se refere
à saúde e alimentação pública ; se dividindo em várias espécies
principais, e não em rosário de injunções, como fez o cod. pen.
incluindo feiticeiros e curandeiros, que devem ser objeto de
disposições de leis mais modestas ou incidirem no direito
comum, ao menos em homenagem à nossa cultura jurídica.
(ARAUJO, 1901, p. 194). (Grifo nosso)

O Código Penal de 1890 sofreu inúmeras críticas ferozes, emendas e


tentativas de reforma no passar dos mais de quarenta anos em vigor. Um dos
mais ferrenhos opositores foi João Vieira Araújo, jurista e professor da Faculdade
de Direito do Recife, teve seu anteprojeto de Código Penal recusado em 1889.
A Comissão encarregada de julgar a qualidade do texto escrito por João Vieira
Araújo contava com a presença de João Baptista Pereira, “conselheiro” que
substitui Araújo ainda em 1889 na empreitada de criar um Código Penal para o
Império. O descer as cortinas da monarquia não o impediu, porém, de ser
chamado em 1890 pelo Ministro da Justiça Manuel Ferraz de Campos Sales para
escrever o Código Penal da república recém-nascida. E, assim o fez Baptista
Pereira, em tempo recorde, é necessário notar.
Vieira Araújo tornou-se, então, o maior rival e mais focado oponente,
participando de perto das propostas que tentaram derrubar o “defeituosíssimo
Código”, logo em 1893, quando ele próprio criou um projeto para substituí-lo, ou
em 1899 quando é a vez da Câmara dos Deputados de tentar. Novamente, em
1913 outra tentativa frustrada, agora de Galdino de Siqueira. Também não
obteve acolhimento tal como os seus antecessores. Apenas em 1927, o governo
de Washington Luís (1926 – 1930) dá ao jurista Virgílio de Sá Pereira, a
incumbência de fazer um novo projeto de reforma ao Código. No entanto, o
projeto não foi visto nos três anos que se seguiu até a Revolução de 1930,
quando se tornou uma questão menos relevante (MACHADO, 1941).
Para apresentarmos diretamente as críticas feitas pelos especialistas ao
Código de 1890, precisaremos retomar um pouco a História do Direito Penal no
Brasil em sua formação, e principalmente a formação do Código Anterior, para
46

então adentrar a fundo na questão do Código de 1890, suas características


teóricas e contexto das críticas.
Alcantara Machado, ao dedicar-se à construção da História Penal
brasileira (1941) dá voz ao que chama de “proclamação ufana e justa” de
Francisco Bernardino Ribeiro14: sobre o Código Criminal do Império, é
“Testemunho decisivo da excelente cultura jurídica de seus elaboradores, o
código criminal .de 16 de dezembro de 1830 representava de fato ‘em alguns de
seus pontos... a última expressão da penalidade moderna’” (MACHADO, 1941,
p. 1).
O Código Criminal do Império, datado de 1830, foi compreendido, por
quase unanimidade entre os especialistas que questionavam o Código de 1890,
como o Código modelo. Bem-feito e coerente com as Correntes do Direito Penal
de sua época. Sofreu, no entanto, inúmeras adaptações em seus 60 anos de
vigência, e ao fim tornou-se uma grande “colcha de retalhos” com decretos e leis
complementares. Até que não dava mais conta do contexto social brasileiro no
pós-abolição, o que obrigatoriamente levou Joaquim Nabuco em 4 de outubro de
1888 a apresentar, à Câmara de Deputados, o projeto de um dispositivo penal
que desse conta de todas as mudanças ocorridas: “Fica autorizado o Ministro da
Justiça a mandar fazer uma edição oficial das leis penais do Império, de acordo
com a lei de 13 de maio de 1888, e intercalando as disposições esparsas"
(MACHADO, 1941, p. 6).
É bem óbvio o porquê de ao ser analisado em comparação ao Código
Penal de 1890, o Código Criminal do Império parecer tão bom. O Código do
Império substituiu o “nefasto” Código Filipino. Compilado de leis reformadoras
das Ordenações Manuelinas, com penas físicas rigorosas e atrelado ao passado
colonial, que devia ser deixado no passado segundo a mentalidade da época em
que a nova legislação foi gestada. Assim , o Código do Império, de fato se
preocupa, sobretudo em substituir a herança da metrópole portuguesa, mas para
falar em inovação pouco se deu.
Alvarez (et al., 2003) afirma que:
No entanto, a organização jurídico-política que foi sendo constituída,
nas primeiras décadas do período imperial, ainda mesclava ideias que

14 Lição inaugural do curso de direito criminal, em Minerva Brasileira, apud. T. ALVES JR., Anot. ao cod.
crim., 1.19. (MACHADO, 1941, p. 1).
47

estavam em debate na Europa e nos Estados Unidos com aspectos da


herança colonial. No campo penal, as concepções sobre os crimes e
as formas de punição são bastante reveladoras dessa tensão que se
mantém ao longo do Império. Mas nem por isso o Código deixou de
contemplar formas já consideradas arcaicas de punição, como a pena
de morte, as galés, a prisão perpétua. A estrutura escravista suportava
igualmente a conservação dos castigos corporais aos escravos
(ALVAREZ, SALLA e SOUZA, 2003, p. 2).

O Código da República modifica severamente os tipos de punição. Com


o fim da escravidão ficou latente a necessidade da mudança do Código, por isso
o pedido feito por Joaquim Nabuco, por isso a inicial organização de Baptista
Pereira de um novo texto. A República, no entanto, acaba por interromper
momentaneamente o projeto. Quando Campos Salles renova o pedido a Baptista
Pereira para produzir o projeto do Código Penal, este é analisado por uma
comissão avaliadora, onde o próprio Ministro da Justiça estava. Baptista Pereira,
ao tecer esclarecimentos sobre seu Código em 1898, afirmou que o projeto foi
aprovado “na sua quase totalidade pois muito poucas foram as alterações que
sofreu, sem falar nas emendas de mera redação” (PEREIRA, 1898, p. 266).
Dentre as principais críticas ao Código Penal de 1890, estava justamente
o pouco tempo em que foi lançado. Nilo Batista (2003), porém, não concorda
com essas críticas, afirmando que o escopo da nova legislação era o Código
Criminal do Império, com o acréscimo de regulamentos publicados de maneira
independente. Ainda, segundo Batista (2003), a parte geral da norma já estava
pronta quando sobreveio a República, ficando mais fácil para Baptista Pereira
quando Campos Sales o convocou para continuar seu trabalho que teve fim em
três meses.
Críticas que muito constantemente eram feitas ao Código Penal de 1890
estavam no sistema de organização do Código que era “defasado” em relação
às teorias mais modernas, às lacunas deixadas pelo texto, às incoerências com
as demais leis republicanas e por favorecer os criminosos por tirarem partido
dessas falhas. A Escola Clássica aparece como sendo a grande influência de
Baptista Pereira ao escrever seu Código, num mundo, porém, onde as ideias da
Criminologia já se faziam presentes, e que se fortaleceram nos anos que se
seguiram.
Inspirado ainda na intuição clássica, não satisfez completamente as
aspirações e necessidades do país, sendo objeto, por isso, de intensa
crítica, em muitos pontos procedente, como se verá no decorrer deste
trabalho. No entanto, tendo ante si o longo período de tempo decorrido
da independência, com todos esses ensinamentos que o tempo e a
48

experiência ministram; como paradigma o código de 1830 e as diversas


leis penais posteriores, onde se condensavam muitos princípios
eminentemente jurídicos, além das codificações dos outros povos, as
mais recentes apontadas como obras perfeitíssimas, todo esse
contingente precioso e abundante trazido* pelas ciências sociais e
antropológicas, em geral, e pela criminologia em particular, era de
esperar que o codificador, já distinguido pelo último governo do Império
com igual incumbência, nos dotasse com um código que
correspondesse à nossa civilização, ás tradições do nosso direito
(SIQUEIRA, 2003, p. 11 - 12).

Siqueira (2003) vai ainda afirmar que não há um método definido, nem “na
distribuição geral das figuras delituosas, quer na coordenação destas entre si,
lacunoso em muitos pontos, parco daquilo que já tem tido entrada no direito
positivo de povos cultos”. A ausência da Escola Positivista de Direito, também
conhecida por Criminologia é, portanto, o que mais incomoda aos juristas que o
criticam.
O Liberalismo Penal, chamado de Escola Clássica no apogeu da
Criminologia por Ferri, um dos idealizadores desta, é fruto do Humanismo e está
diretamente ligado à contestação dos poderes absolutistas. A pena de morte e
da galês, por exemplo, deixou de ser presente apenas com Código Penal de
1890 no Brasil, assim como inaugurou a pena de prisão com trabalho, visando a
correção do indivíduo. Estas ações estão em direta consonância com a Escola
Clássica, mesmo que seu principal redator Baptista Pereira, aceitasse também
os postulados da Escola Positiva. O entendimento do Direito Penal a partir da
Criminologia dos italianos Lombroso e Ferri, inaugurado em 1882, já havia
adentrado ao Brasil e marcava a formação de muitos juristas, favorecendo ainda
mais as críticas ao Código de 1890.
Comparativamente, as Escolas são opostas em si. Enquanto a Escola
Clássica prioriza a liberdade individual, a Escola Positiva visa a defesa social.
Então, para a Escola Positiva a negativa do livre-arbítrio e da liberdade moral
parte do determinismo, onde acreditam que o criminoso possui em sua formação
antropológica a tendência ao crime. Portanto, para a Escola Positiva o foco
passa do crime – como na Escola Clássica – para o criminoso. A pena não está
mais pautada no crime e sim na “temibilidade” do delinquente, forma-se também
o conceito de anormalidade do criminoso, sua caracterização como delinquente.
Os fatores de prevenção ao próprio crime tomam destaque, pela possibilidade
de “prever” grupos de delinquentes natos (SBRICCOLI, 2009).
49

A Escola Positiva encontrou solo fértil para suas ideias no Brasil, em um


momento tão singular com a abolição recente da escravidão negro-africana, e
com a Proclamação da República, onde o autoritarismo do Estado se destacou
sobretudo. Não havia mais espaço para filosofias humanistas e privilégios do
Livre-arbítrio. A posição do Direito Penal deveria acompanhar as necessidades
de enquadrar e ditar os modelos de normalidade (Civilização) e de anormalidade
(delinquência). Esse é, portanto, o grande motivador de todas as críticas ao
Código Penal, o foco dado aos crimes e não aos criminosos. E, sobretudo a
abertura e possibilidades interpretativas como no caso do artigo 27 em seu inciso
4º, onde atrela a responsabilidade jurídica do réu à sua livre vontade e
inteligência pelo ato cometido, mais uma vez demonstrando a marcada Escola
Clássica que conduz o Código.
Antônio José da Costa e Silva (2004) explicita o teor das críticas ao
Código Penal de 1890 como “severas, não raro exageradas” (SILVA, 2004, p.
25). Exageradas ou coerentes, as críticas não foram suficientes para derrubar o
Código Penal de 1890 e esse é um problema que precisa ser investigado de
perto. Como uma legislação que em desacordo com a teoria do direito, mais
aceita pelos juristas da época pôde permanecer atuante por tanto tempo?

1.5.2. Dos crimes “indígenas”, debates e discordâncias - juristas e jornais.


A incoerência que se apresenta ao avaliarmos que a criação do Código
Penal da República, lançado (outubro de 1890) antes da Constituição (fevereiro
de 1891), e muito antes do Código Civil, instituído apenas em 1917, é
fundamental para compreensão do cenário autoritário que constituía o
pensamento das elites brasileiras. A demanda pelo Código Penal representa a
necessidade do Estado Republicano de controlar e “por ordem”.
No entanto, José Murilo de Carvalho, ao analisar a República
(CARVALHO, 2013), nos alerta para o cuidado que precisamos ter de não
dicotomizar a relação Estado-Cidadãos. Onde ao Estado sobra uma áurea de
total repressão e ao povo a impotência diante do “chicote”. O que tratamos
enquanto incoerência, nesse momento é das Legislações, na frieza que
representam. Há de se equilibrar as relações a diante, onde veremos que não
há ação sem reação.
50

Ao que tange o frio pesar da pena, temos uma legislação contraditória e


impositiva, que é favorecida pela ação moralista das autoridades republicanas.
Diversas condutas consideradas “desprezíveis” e “vis” à Civilização foram
combatidas, tendo como base o Código Penal de 1890. A Capoeira, por exemplo
levada aos limites da repressão pelo Chefe de Polícia no Governo de Deodoro
da Fonseca, ou os jogos de apostas, também reprimidos, quiçá o entrudo 15,
festejo já mal visto desde a época do Império, alvos certos da “limpeza” proposta
por leis e fomentas pelas elites, intelectuais, políticas e econômicas,
principalmente, a Cidade do Rio de Janeiro, campo de convívio de “autoridades”
e “marginais” de todo tipo (CARVALHO, 2013).
Como já vimos, o Código Penal sofre inúmeras críticas e tentativas de
derrubada ao longo dos anos que esteve em vigor. Se manteve forte, porém,
contando com o apoio de personalidade e instituições importantes, como o
“Instituto da Ordem dos Advogados Brazileiros”. Essa Instituição questiona,
fortemente em um parecer (1897), o projeto de João Vieira de Araújo, proposto
em 1894, afirmando que “o Código Penal vigente não é perfeito, os projetos em
substituição dele são imperfeitíssimos”.
Na apresentação de seu parecer a Ordem dos Advogados Brasileiros
indica o contexto em que se achava o Direito Penal e o que existia quando o
Código Penal foi aprovado em 1890. Mostrando que não são mais os tempos do
Governo Provisório, quando “concentrava em si todos os poderes e agindo
dictatorialmente usou de um processo summario que facilitava seus intuitos e o
fazia chegar mais depressa ao fim” (ADVOGADOS, 1897, p. 4). Dizem isso para
justificar o parecer, frente ao projeto que caminhava na Câmara dos Deputados
já passando à terceira discussão e por pedido do Presidente da Câmara, A.
Milton, tomando a consulta de instituições competentes. Afirmam, ainda, que das
Corporações consultadas apenas a Faculdade de Direito de São Paulo, e os
Tribunais de Goiás, Pará, Rio Grande do Norte e a Côrte de Apelação do Distrito
Federal corresponderam ao convite feito.

15 Autoras como Maria da Cunha Fonte bibliográfica inválida especificada. e Rachel Soihet
Fonte bibliográfica inválida especificada. apresentam o entrudo como um festejo popular que
ocupava as ruas da Cidade do Rio de Janeiro, nos três dias que antecediam a Quaresma. Por
força da repressão policial, a prática de pintar o rosto e sair às ruas jogando farinha, ovos, frutas
podres e o que mais pudesse sujar os passantes tradição muito forte durante o Império,
principalmente entre os negros escravizados, foi aos poucos perdendo sua forma e dando
espaço ao Carnaval moderno.
51

Afirmam ainda que a proposta de ouvir opiniões especialistas era


louvável, mas que não compreendiam por que isso foi feito de maneira pouco
empenhada, sem dar chances a outras categorias e instituições de contribuírem:
não se sabe por que esse tentanmen foi empreendido de modo tão
incompleto e parcimonioso, excluindo-se a audiência de corporações
doutas e de profissionais competentes, que poderiam Ilustrar os
debates do parlamento e as discussões no seio da própria comissão,
tais como as Faculdades Livres de Direito desta capital, da Bahia e de
Minas Gerais, os Institutos de Advogados, e especialistas de nomeada
nos vários ramos das ciências que são auxiliares da ciência do direito
criminal, corno a antropologia, a, medicina legal , e principalmente a
psiquiatria, que tão importante papel representa hoje no estudo das
moléstias físicas e na solução de complicados problemas da
imputabilidade criminal. Limitou-se sem razão plausível ao círculo de
informações, quando a comissão poderia bebê-las em fontes
abundantes, aproveitando conhecidas aptidões para colaborarem em
obra de tanta magnitude (ADVOGADOS, 1897, p. 4).

O parecer ironiza o fato da Comissão da Câmara do Deputados, presidida


por João Vieira Araújo, deixar passar por duas discussões um projeto de Código
Penal que em quase nada se diferencia do Código em vigor. Os advogados são,
então, diretos, citando um trecho da proposta, que logo nos auxiliará em nossa
questão:
<< Não há negar, diz a comissão, que cada povo constitui um meio ã
parte, onde se desenvolvem certos vícios, assim como frutificam certas
virtudes; que tem hábitos capazes de lhe darem feição toda especial,
que afeiçoam-se a uma ordem de atentados, os quais por sua
renovação constante mais parecem os indícios de uma educação mal
conduzida do que as provas de uma perversidade instintiva. Este facto
se deve qualificar de idiossincrasia moral. E por assim dizer. o crime
indígena que por ele se revela e se ostenta. Assim, podem bem servir
de exemplo entre nós: a capoeiragem, o furto de animais cavalares e
os jogos de azar.>> (ADVOGADOS, 1897, p. 5)

Os responsáveis pelo relatório afirmam que as alterações propostas são


“irrelevantes” e que a “necessidade de prever o crime indígena “ manifestado nos
exemplos da capoeiragem, do roubo de animais e nos jogos de azar, já eram
previstos pelo Código Penal de 1890 nos artigos 402 e 403 para Capoeiragem,
331 § 4 para roubo de animais e nos artigos 363 e 370 para jogos de azar. Vão
ainda mais fundo quando tratam dos “crimes contra saúde pública”, criticando a
supressão do artigo que criminaliza o “officio” de curandeiro, avaliam ser se suma
importância que haja a diferenciação dada pelo Código de 1890, quando põe um
artigo prevendo crime de “exercício ilegal da medicina” e outro para a prática do
curandeirismo. Questionam ainda que se mantiveram sobre o nome de crime
indígena outras práticas que revelam a “idiossincrasia moral do nosso meio”,
52

porque não o fez com o artigo 158, visto que “é tão indígena quanto os outros”
(ADVOGADOS, 1897).
Assim, os autores do relatório saem em defesa do Código Penal de 1890
em seus artigos 157 e 158:
Para cancelar do código essa figura delituosa a comissão parlamentar
nem obedeceu ao motivo que a determinou, nem mostrou conhecer as
circunstâncias do nosso meio, as condições especiais da nossa
sociedade, escandalizada, como é, com a presença de tantos
aventureiros, audazes como velhacos, que debaixo de um nome ou
outro, com esta ou aquela máscara, especulam com a credulidade e a
superstição das classes ignaras, e que , a pretexto de curar, fazem
enlouquecer, envenenam e matão com o mesmo desembaraço com
que outros especula dores, inculcando poder sobrenatural, renovam,
com diversas praticas, a nicromancia (que também pretendia
comunicar com o mundo invisível) e prometem curar com receituários
vindos de além-túmulo, mais perigos que os adivinhos prognosticam e
explicam os sonhos, as cartomantes com seus sortilégios, os
feiticeiros com seus talismãs e encantações, com que todos fascinam
ou subjugam a credulidade pública, perturbando o sossego e a paz
das famílias ameaçando a saúde e a vida da população. A toda essa
horda de malfeitores o substitutivo concedeu carta de corso!
(ADVOGADOS, 1897, p. 8 - 9).

Como já vimos, em defesa de sua proposta João Vieira Araújo afirma que
“disposições sobre feiticeiros não são dignas de figurar em um código no
crepúsculo do século XIX” (ARAUJO, 1901, p. 195). GOMES (2020) assegura
que Araújo entendia o Espiritismo de forma diferente do exercício de
curandeirismo e das práticas ilegais da medicina, por isso ele postula que as
práticas prejudiciais à saúde não deveriam ser associadas ao livre exercício da
fé Espírita. Para ilustrar sua percepção, Araújo (1901) usa o discurso de quatro
magistrados em suas decisões penais sobre apreciação dos artigos 156 e 158.
Aqui apresentaremos dois, Gabriel Ferreira e Francisco José Viveiros de Castro.
Gabriel Ferreira, Subprocurador Geral no Distrito Federal, defendia que “a
simples prática do espiritismo não constituía crime, ou uma manifestação da
liberdade de consciência, garantida na Constituição Política da República”
(ARAUJO, 1901, p 198). Já sabemos, porém, da incoerência que há na formação
do Código Penal anterior à Constituição, o que feriu de morte tal “liberdade de
consciência”. Gabriel pondera, afirmando que o “espiritismo pode ser a causa
eficiente de um delito” de duas formas: contra a personalidade ou contra a
propriedade.
« Contra a personalidade, si algum chefe de seita espírita provocou,
pelas cerimônias e ritos do sou culto, praticados imprudentemente
diante de degenerados, graves alterações da saúde ou mesmo a
morte, incide nas penas dos arts. 157 § 1° e 297 do código penal,
53

contra a propriedade—si houver emprego de manobras fraudulentas,


de uma hábil encenação capaz de produzir a esperança ou o temor de
um acontecimento quimérico, locupletando aqueles que delas usam, o
espiritismo reveste os caracteres jurídicos do estelionato.» (ARAUJO,
1901, p.198).

O juiz Viveiros de Castro vai falar especificamente da recorrência em usar


o artigo 72 § 24 da Constituição que determina liberdade de exercício
profissional, como defesa para os casos de “ofício de feiticeiro”. O magistrado
afirma que nesses casos o indivíduo não pode invocar a liberdade garantida pela
Constituição da República, pois:

<<Ha neste ponto um abuso de credulidade de pessoas ignorantes,


incutindo-se em seu espírito fraco e inculto esperanças quiméricas,
que, aliás, podem ser nocivas ú saúde, e foi por este motivo que o
código penal destacou esta forma do estelionato para classificá-la entre
os crimes especialmente contra a saúde pública >>. Acordo do Tribunal
Civil e Criminal, 3 de junho de 1895-— (relator) Viveiros de Castro
(ARAUJO, 1901, p. 199).

Dessa forma podemos observar que os juízes concordam que através da


prática do Espiritismo é possível praticar crimes, contra a personalidade e contra
a propriedade (FERREIRA apud ARAUJO, 1901), assim como pode ser nocivo
à saúde e forma de estelionato (VIVEIROS DE CASTRO apud ARAUJO, 1901).
Mesmo diante de tais afirmativas, Araújo, deixa de fora o artigo 157 e 158 de seu
projeto de Reforma do Código Penal, por acreditar que outros artigos, como do
crime de estelionato e de exercício ilegal da profissão, dariam conta de garantir
a segurança da sociedade.
Gomes (2020) entende que o Instituto da Ordem dos Advogados
Brazileiros e todos aqueles que compreende o Espiritismo como “crime indígena”
o fazem por acreditarem que essa prática “rompe com a tranquilidade pública”
(GOMES, 2020, p. 258). No projeto de Civilização que se propõe ao Brasil, não
há espaço para práticas religiosas e crenças que permitam de alguma forma
interpretações tão mau vistas pela medicina da época, charlatanismo e
curandeirismo são considerados perigosos e inoportunos para a ascensão do
Brasil a uma Civilização.
Quando os juristas falam em espiritismo, não há uma definição clara do
tipo que estão falando. Inclui-se então, nessa categoria crenças e práticas que
envolvam espíritos, o que permite uma gama considerável de variações. Na
observação feita por nós em nossa Dissertação, foi possível um perfil das
54

pessoas mais atingidas pela repressão policial: eram principalmente homens,


negros e pardos, fatalmente das classes mais pobres da sociedade carioca,
moradores dos subúrbios e praticantes de uma experiência religiosa considerada
“incivilizada” pelas autoridades. O espiritismo que sofreu mais com a legislação
na prática, era uma “crença de cor” (VELASCO, 2019).
Ao iniciarmos essa sessão falamos no autoritarismo da Lei e da própria
República em seus primórdios, mas alertamos também para a falsa ilusão de
que as pessoas encararam “bestializadas” a força policial que vinha à frente do
processo Civilizador que era operado pelas elites. Não há ação sem reação, os
físicos afirmam, porque seria diferente nos casos de violência do Estado a
religiosos no Rio de Janeiro.
Os jornais, por exemplo são ótimas ferramentas para capturar os
fragmentos dos embates, que como já vimos existiram também no âmago da
justiça e entre os próprios legisladores. Há embates entre a polícia, a população,
os jornais, e entre a população e os legisladores, desde as formas mais
organizadas às mais conflituosas. E desses embates alguns saíram
beneficiados, enquanto a força da repressão pesou ainda mais sobre outros.

1.5.2.1. Espíritas Kardecistas no embate contra o Código Penal.


O marechal Ewerton Quadros esperava um bonde para a cidade,
quando um bonde passou inteiramente vazio. - Por que não toma este?
- perguntaram-lhe. O marechal mergulhou mais a face adunca nas
barbas matusalêmicas: - Não é possível. Está cheio de espíritos maus!
- e, como aparecesse outro inteiramente cheio, agarrou-se ao balaústre
e veio de pé até à cidade. (DO RIO, 2018, p. 72).

Segundo João do Rio, em sua célebre investigação sobre as religiões no


Rio de Janeiro, cenas como a citada acima tornavam-se comuns desde que
“esse estado alucinante” deixou a “traficância do baixo espiritismo” e tomou as
“rodas intelectuais cultivadas” da cidade (DO RIO, 2018, p. 72). Os espíritos e o
contato possível com esses tornaram-se uma espécie de febre desde 1848,
quando nos Estados Unidos da América eventos do sobrenatural, as “mesas
falantes”, se espalharam entre as altas classes. O “espiritualismo” como um
movimento norte-americano reunia centenas de adeptos entre Juízes,
Senadores, membros do Clero, médicos e professores, que dedicavam-se a
escrever e palestrar sobre os “novos tesouros”, e é assim que chega na Europa
a nova moda (DEL PRIORE, 2014).
55

O movimento que se iniciou em Nova York com duas adolescentes, filhas


de pais metodistas, Maggie e Kate Fox, iniciaram uma espécie de comunicação
com o espírito de um ambulante assassinado pelos antigos moradores de sua
casa, que segundo o próprio espírito havia sido enterrado no porão da casa.
Através de batidas na parede um código de comunicação foi desenvolvido,
perguntas eram feitas e tantas batidas eram dadas pelo espírito, até que as
frases fossem formadas – a primeira revelação - “Caros amigos, deveis
proclamar ao mundo estas verdades. É a aurora de uma nova era; e não deveis
tentar ocultá-la por mais tempo. Quando houverdes cumprido vosso dever, Deus
vos protegerá e os bons espíritos velarão por vós” (DEL PRIORE, 2014, p. 28).
Mas, antes mesmo da chegada do fenômeno das mesas saídas da
América para a Europa, do outro lado - do Atlântico – não da vida, os fenômenos
com sonambulismo e magnetismo já eram conhecidos desde 1847, mas eram
atribuídos a extraterrestres. Quando em 1852, Maria Hayden desembarcou na
Inglaterra, levou com ela o legado das mesas, e impressionava a todos por onde
passava. Já em 1853, é lançado o jornal espírita inglês The Spirit World. Da
Inglaterra para a Prússia, da Áustria à Rússia, até chegar na França, os
espetáculos ganhavam destaque e os jornais das grandes cidades (DEL
PRIORE, 2014).
O termo “espiritismo” torna-se comum na França, para designar o
conjunto de práticas desenvolvidas nos EUA em 1848. As práticas que
consistiam, até então, em comunicar-se com espíritos através das mesas
“volantes” eram conhecidas por “espiritualismo americano”, “espiritualismo
moderno”, “fenômenos magnéticos” ou “fenômenos de mesa”. Do Spiritualism
usado como “espiritualismo” nos países anglo-saxões, na França gerava um
problema de conceito. Mary Del Priore (2014, p. 30) afirma que na França a
palavra correspondia a uma corrente de oposição ao “sensualismo” e do
“materialismo”, que aceitam a imortalidade da alma e estudavam suas
evidências. Logo, na prática passou-se a ver os “espiritualistas” como os filósofos
que se comunicavam com os espíritos.
Houve muitas leituras sobre os fenômenos que traziam inquietação aos
salões europeus. Dividindo-se entre as explicações que compreendiam os
fenômenos com fraudes escancaradas, como era o caso da Academia de
Ciências representada por Chevreul e Faraday em uma comissão, ou a
56

movimentos inconscientes das pessoas participantes, o “médiuns”. Por outro


lado, havia as pessoas que acreditavam na ação de seres incorpóreos. E, desse
modo, foi o Le livre des esprits que, ao menos na França, conseguiu capitanear
o maior número de seguidores (GIUMBELLI, 1997).
Assim como na França, no Brasil, as explicações para os fenômenos dos
espíritos chegavam através dos escritos de Allan Kardec16. Rivail teve contato
com os primeiros fenômenos através do Teatro onde exercia a função de
contador, em 1850. Seu interesse e curiosidade cresceu e tornou-se motivo de
pesquisa. De forma racional e científica, Rivail tentava responder as questões:
“Como se movem as mesas?” e “Porque elas se movem?”. Como muitos em sua
época, inicialmente o francês identificou a atuação de fluidos magnéticos em
atuação, até passar a compreender a atuação de espíritos dos mortos (DEL
PRIORE, 2014).
A partir de 1855, o método das mesas foi substituído gradualmente pela
disposição da pena sobre o papel, onde esperavam que o espírito atuasse sobre
a mesma e escrevesse suas mensagens. Dezenas desses escritos foram
entregues a Rivail, e a partir deles pôde completar as respostas às questões que
formulou, juntamente com as “sonambulas” em transe. Assim, Rivail percebeu a
possibilidade de formular uma Lei sobre o espírito pós a morte, e a imortalidade
da alma. Aos céticos, Rivail alertava que não era possível entender os
fenômenos apenas com os conceitos da ciência usual, era preciso desenvolver
métodos próprios ao espírito e assim propõe a formação da “ciência espírita”
(DEL PRIORI, 2014).

[...] o Espiritismo é a ciência nova que vem revelar aos homens, por
meio de provas irrecusáveis, a existência e a natureza do mundo
espiritual e as suas relações com o mundo corpóreo. Ele no-lo mostra,
não mais como coisa sobrenatural, porém, ao contrário, como uma das
forças vivas e sem cessar atuantes da Natureza, como a fonte de uma
imensidade de fenômenos até hoje incompreendidos e, por isso,
relegados para o domínio do fantástico e do maravilhoso (KARDEC,
2013, p. 44)

16Hippolyte Lion Denizard Rivail – pedagogo francês, formado por Pestalozzi em Zuriqui. Em
1857, exatos nove anos das primeiras manifestações americanas do “espiritualismo”, já então
adotando o pseudônimo Allan Kardec, lança o Le livre des esprits”, O Livro dos Espíritos”. A obra
aparece na “onda” dos fenômenos espiritualistas. Segundo Kardec, a obra era resultado de suas
observações empíricas, realizadas em reuniões das quais participava com vários médiuns
(GIUMBELLI, 1997).
57

É esse espiritismo que chega ao Brasil. Já em 1853, correm as notícias


em solo brasileiro, sobre as “mesas girantes” que se observava nos Estados
Unidos e na Europa. Aparentemente um dos primeiros jornais a apresentar o
tema foi “O Cearense”17 de 02 de agosto. Em uma grande reportagem, o jornal
comentava sobre o fenômeno e logo em seguida anunciava que havia chegado
uma semana antes “um vapor do sul” e que naquela mesma noite reuniram-se
“numerosas pessoas amigas do sr. J. S. de V. negociante dessa praça”, todas
céticas aos fenômenos, mesmo assim se dispuseram a colocarem uma mesa
“quadrangular de 4 palmos de extensão no centro da sala”, onde entorno desta
sentaram-se em círculo: o sr. J. S. de V., sua filha, os senhores Manoel Caetano
Spinola, Antônio Paes da Cunha Mamede, Antônio Eugenio da Fonseca, Antônio
Joaquim Barros. Segundo o jornal, por mais de sessenta minutos se colocaram
em silêncio, quando a impaciência já tomava os presentes, a mesa se
movimentou “pronunciadamente sem qualquer interferência dos presentes”. O
sucesso foi grande, o jornal segue afirmando que no dia seguinte outras pessoas
estiveram presentes, entre elas o Sr. Vigário Alencar e o Dr. Castro Silva
Dessa forma, em pequenos grupos, seguiram-se as reuniões “espíritas”
por toda a década de 60. A língua francesa era pré-requisito, pois as obras de
Kardec, já lançadas, não haviam sido traduzidas ainda para o português. Essa
situação mudaria a partir da tradução do Livro do Espíritos, O Livro dos Médiuns
e O Céu e o Inferno em 1875 pela Livraria Garnier, grande editora do Rio de
Janeiro. Os periódicos “O Echo d’Além-Túmulo” (1869) e a “Revista Espírita”
(1875) passam a apresentar ideias e a divulgação dos discursos acerca do
“espiritismo”. Há diferenças conceituais nas publicações, assim como dentre os
grupos que se formam, o que segundo Usarsky (2017) se explica pelas
interpretações divergentes dos autores envolvidos.
O Grupo Familiar do Espírito é fundado em 1865 por Luís Olimpio Teles
de Menezes em Salvador, desse grupo saiu em 1873, a Associação Espírita
Brasileira, e dessa última, saiu em 1874, o Grupo Santa Teresa de Jesus.

17Jornal que circulava no Ceara com tiragens às terças e sextas feiras. Trazia na primeira página
sua convicção política, ligado ao “partido Liberal”. Era publicado pela Typographia Brazileira de
Paiva e Companhia. Fundado por Frederico Pamplona, Tristão Araripe e Tomás Pompeu. Deixa
de circular em 1892. SURGE o Jornal O Cearense. Portal da História do Ceará. Disponível em:
<http://portal.ceara.pro.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3130&catid=297&Ite
mid=101>. Acesso em: 14. Dez. 2020.
58

Usarsky (2017, p. 8) afirma que dessa dinâmica surgiu um “campo altamente


heterogêneo”. Formam-se grupos com perfis próprios, doutrinas e conceitos
próprios, mas altamente organizados em suas divulgações como se pode notar
pela demanda em publicar suas “expressões” do “espiritismo”. Em 1900, já havia
dezenove revistas Espíritas em publicação no Brasil e isso demonstra a
heterogeneidade dos grupos que não constituem uma religião, mas uma série
de fenômenos ligados à fé nos espíritos e em sua influência no cotidiano dos
vivos (GIUMBELLI, 1997).
Assim, quando em 1890, o Código Penal é anunciado com seu artigo
157 a reação dos “espíritas” é quase instantânea. Passam a se pronunciar nos
jornais direcionando sérias críticas ao autor do Código, João Baptista Pereira e
ao famigerado artigo. Dos jornais de grande circulação, o “O Paiz” e o “Jornal do
Commercio” foram dos mais usados nesse embate de opiniões, principalmente,
em colunas sob o pseudônimo de “Max”, críticas iniciadas já no mês de
novembro de 1890. As colunas, em geral, tentavam mostrar o quanto o Código
de Baptista Pereira era retrógrado e “medieval”, de pouca evolução, proposto por
alguém “atrasado”. Por fim, buscavam demonstrar que os “spiritas” não deveriam
ser incluídos entre os “charlatões”, “feiticeiros”, “cartomantes” e “curandeiros”,
pois constituíam uma “sciência”, onde sua face empírica estava sendo atacada
pela Lei.
Há reações também, por parte dos espíritas no “O Paiz” e no “O
Reformador”18. Os embates envolvem ainda outras instituições, além do autor do
Código. Por outro lado, havia os periódicos religiosos opositores, que viam o
espiritismo de forma negativa e advogam em favor dos artigos do Código Penal
em seus meios de imprensa. Nesse caso encontramos, principalmente, o
periódico “Imprensa Evangélica”19, de 1891 onde dedicam três páginas a discutir

18 Esse periódico parece como um dos mais importantes meios de impressa dos Espíritas no
levantamento feito por Oliveira (Imprensa espírita na cidade do Rio de Janeiro: propaganda,
doutrina e jornalismo - (1880 - 1950), 2014). Um periódico fundado em 1883 pela “Federação
Espírita Brasileira” e ainda atuante nos dias de hoje. Gomes (2012) afirma que O Reformador foi
criado para fazer oposição ao movimento “anti-espírita” da Igreja Católica.
19 O Periódico foi fundado por missionários da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos, liderados

pelo Reverendo Ashbel Green Simonton em 1864. Segundo Santos (2018), esse foi o primeiro
periódico Evangélico publicado em língua portuguesa no Brasil. Com tiragens quinzenais esteve
até 1892 circulando na Cidade do Rio de Janeiro.
59

os malefícios do “Spiritismo”. Mas, sem dúvidas o mais empenhado na causa foi


o jornal “O Apóstolo”20.
Max, que segundo Zeus Wantuil (WANTUIL, 2002), era o pseudônimo de
Bezerra de Menezes, médico que foi atuante defensor do espiritismo nas páginas
dos jornais cariocas, desde 1887, publicava no “O Paiz”, depois passando ao
“Jornal do Brasil” e à “Gazeta de Notícias” (OLIVEIRA, 2014, p. 106). Ao fim de
1890, é o mais forte combatente do Código Penal entre os espíritas, publicando
em série, suas críticas constrói uma narrativa forte sobre a defesa do Espiritismo
enquanto uma “sciencia empírica”. Suas críticas são tão duras que fazem o autor
do Código Penal vir aos jornais defender a si mesmo e ao seu Código. As críticas
não param, mas ao que parece a partir de 1891 a estratégia muda, e Max retorna
aos seus propósitos de expor ao grande público “a teoria espírita”.
Em dois de novembro de 1890, “Max” afirma em coluna no “O Paiz”:
[...] O spiritismo tem preocupado a mente dos maiores vultos acalados
pela humanidade.
Se é assim – e se, em nosso tempo, vemos os Crookes - os Wallace –
os Gibier – os Flammarion – os Victor Hugo - os Lincon – os Olinda –
os Abaeté – os José Bonifácio – e mil outros nomes tão distinctos e tão
considerados como estes procurarem, nas práticas spiritas, a solução
de problemas da nova sciencia, parecerá incrível que ainda haja um
homem ilustrado ou com pretensão a isto, que se anime a rebaixa-la,
em documento oficial, ao nível da magia e da feitiçaria.
Vale isso por elevar-se este tal à altura de qualificar aquellas
notabilidades na ordem dos feiticeiros: espíritos fracos – atrasados e
dolosos!
Foi o que sem nenhuma cerimonia ousou praticar o incumbido de
organizar nosso código penal que o governo provisório
desacertadamente aceitou em nome da República dos Estados Unidos
do Brazil!
[...]
Se, mesmo em matéria jurídica, o autor do código comprometeu os
fóros do Brazil, como nação civilizada que aspira sentar-se no convívio
dos que se enobrecem com as ideias do século, quanto mais em
matéria scientifica -de sciencia experimental em que não é, e nem se
quer neófito.
Não admira pois, que a ignorância qualifique como feitiçaria as práticas
spiritas.
E esse ignorância é tão lamentável que não deu, nem pra saber: que
ainda anno passado reuniu-se em Paris, um congresso internacional
spirita, em que tomaram assento verdadeiras notabilidades de todos
os países cultos – tantas que a imprensa parisiense unanime falou com
maiores elogios da constituição e dos trabalhos daquela assembleia.
Estamos convencidos que o autor do código não teria chamado o
spiritismo de feitiçaria, se tivesse sciencia do que disseram os jornaes

20Gomes (2012) apresenta este jornal como o maior meio de comunicação da Igreja Católica aos
seus fiéis na Cidade do Rio de Janeiro até a virada do século XIX. E traça comentários sobre o
embate desses aos “Espíritas”, principalmente após a tradução das obras de Kardec para o
português.
60

profanos da França sobre aquela notabilíssima assembleia – e sobre


as altas questões spiritas que ella resolveu.
[...]
Max não pode concluir estas ligeiras considerações sem pedir ao
governo um estudo serio desse trabalho que vai envergonhar nossa
pátria, quando for conhecido das nações que não mais aceitam as
ideas dos tempos da inquisição.
Max.
(Da União Spirita) (O PAIZ, Ed. 3113, 1890, p.2).

Em resposta à “ofensiva“ espírita, que chega a enviar uma carta ao


Ministro da Justiça Campos Salles (GOMES, 2018), Baptista Pereira vai até o
Jornal do Commercio defender seu código em uma série de quatro publicações
com título “O NOVO CODIGO – O novo Codigo penal e o spiritismo”:
O NOVO CODIGO
O Novo Código Penal e o spiritismo I
O art. 157 e seus dois parágrafos, referentes aos crimes contra a saúde
pública, trouxeram a terreiro alguns adeptos do spiritismo que, acesso
de raiva impotente, praguejaram contra o código e arremeteram co
injurias (?) contra seu autor que bom cristão os perdoa porque está
convencido de que sendo eles uns alucinados, não sabem o que dizem
e devem ser tratados com caridade.
Na opnião da seita, o código nos envergonha ante o mundo civilizado
porque da uma triste ideia do nosso atraso, confundindo o espiritismo
com a feitiçaria e a magia e revela, da parte de quem redigio, um
espírito antediluviano, imbuído nas ideias do tempo da inquisição.
Punir as práticas spiritas importa no mesmo que condenar um sciencia
que conseguiu em menos de meio século, avassalar todas as
consciências que abraçadas pelas maiores celebridades d mundo
acaba de ser consagrada por congressos internacionais.
Há neste modo de argumentar deslealdade e má fé. [...] (Jornal do
Commercio, ed. 00357, 1890, p. 2).

Baptista Pereira vai afirmar, então, que seu código tem a postura e a
preocupação necessária com o cenário da saúde pública no Brasil, e que não
estão para discutir o spiritismo “como sciencia especulativa”, “sabemos respeitar
a liberdade de crenças, ainda as mais extravagantes”. E segue defendendo que
o Código está disposto a criminalizar aqueles que usam do espiritismo para
“praticar curas e exercer ilegalmente a medicina”. Seus argumentos de “respeito
a liberdade” não se solidificam diante da postura jurídica que defende, deixando
transparecer suas verdadeiras crenças, sobre o espiritismo e as demais práticas
que seu Código criminaliza:
Estendemo-la sim, porque nutrimos a convicção de que o spiritismo é
uma renovação, com outras práticas, da antiga necromancia, que tinha
também a pretensão de invocar os mortos de achar-se em
comunicação com deuses, no politeísmo, ou os gênios no gnosticismo
e crenças orientais, e com o diabo no cristianismo, e obter deles efeitos
que excediam a todo poder humano, como estamos convencidos de
61

que há de desaparecer como os deuses do paganismo, os gênios da


gnose e do Oriente com as concepções que lhes deram causa.
[...]
Não tem outro alcance o art. 157 que veio atender a um reclamo da
opnião escandalizada, da qual se fez órgão e intérprete toda a
imprensa desta capital, impressionada com o progresso e
desenvolvimento das moléstias mentais e que não cessava de acusar
a impotência das leis, a frouxidão e a ineuria do legislador.
O código atendendo a esses clamores, correspondeu à cosciencia
jurídica do tempo (Jornal do Commercio, ed. 00357, 1890, p. 2).

Os embates se estendem por muito tempo nas páginas dos jornais, e


apenas a partir da década de 1920, com a associação da polícia do Rio de
Janeiro e a Federação Espírita Brasileira (FEB) é que diminuem esses
confrontos. No entanto, como já vimos o espiritismo não se constituiu em
momento algum como uma prática homogênea, com uma instituição responsável
por dirimir os “verdadeiros adeptos”, logo essa associação da Polícia carioca à
FEB está associada a uma projeção política da FEB e alianças traçadas entre
lideranças, para a saída do espiritismo de um rol criminalizado (Figura 3 e 4).
É possível ver uma defesa feita, por parte do Delegado Augusto Mendes,
em 1927 ao Espiritismo, no Recurso de Habeas Corpus de Maria dos Anjos.
Autuada no dia 17 de maço de 1927, Maria dos Anjos e seu advogado recorrem
em Habeas Corpus alegando que a prática religiosa de Maria era “espiritismo”,
o que é contraposto pelo delegado:
Analfabeta como confessa a impetrante, que capacidade tem ela de
aconselhar seus clientes? Se a sua profunda ignorância não lhe
permite reduzir à inconsciência pessoas cultas e em condições de não
se deixarem sugestionar, como também confessa a impetrante, em que
consiste, então seus conselhos morais?
O espiritismo religioso que a lei permite é de ordem científico,
assentando-se na filosofia, tal como nela apresentam seus fundadores
e grandes mestres Allan Kardec e Leon Dénis, homens de grande
cultura e profundo saber, que certamente, não podem ser entendidas
por uma mulher ignorante como D. Maria dos Anjos, tal como descreve
o ilustre impetrante da ordem de habeas corpus.
Mas, o que realmente D. Maria dos Anjos professa sob a capa de falso
espiritismo, é o chamado “candomblé”, onde se praticam sortilégios,
cartomancias, passes e mais coisas astuciosas, de modo a iludir a boa
fé dos incautos, que aí são explorados.
[...] Comparar a casa de D. Maria dos Anjos, onde se pratica o
“cangerê”, com a Igreja Católica, ou com qualquer templo religioso, que
tem existência legal e personalidade jurídica, porque não ofendem a lei
nem os bons costumes, me afigura absurdo e até uma ofensa aos
cultos permitidos e principalmente ao culto católico, em cuja igreja se
professa cristã, hoje aceita pela maioria dos povos civilizados e grande
parte de brasileiros, com as quais teve aliança constitucional no regime
passado.
[...] As informações que a este acompanham, prestadas pela
benemérita Federação Espírita Brasileira e pela União Espírita Sub-
urbana, representada na pessoa do caridoso e conhecido Ignácio
62

Bittencourt e que são confirmadas pelas declarações de D. Maria dos


Anjos, no auto de flagrante, mostram que ela não é conhecida nos
meios espíritas e não pertence a nenhuma das associações existentes
nesta capital.
[...] Saudações Augusto Mendes (Assina) (Grifo nosso).

Ao criminalizar a prática do “espiritismo, magias, cartomancia e o uso de


talismãs”, o artigo 157 atingia diversas experiências religiosas, do espiritismo
“Kardecista” que se autointitulava “sciencia” com abordagens filosóficas, os
“ocultistas” mais interessados nas manifestações práticas dos espíritos, os
esotéricos com influências como a de Helena Blavatsky (USARSKI, 2017), ou do
“feiticeiros” com práticas “indígenas”, tão próprias da “cultura do povo”,
“curandeiros” e “rezadeiras” com influências indígenas, africanas, europeias ou
qualquer prática que não se estabelecesse no padrão considerado “civilizado”
(VELASCO, 2019).

Figura 3 - Pedido de informações sobre Maria dos Anjos


63

Figura 4 - Resposta da FEB ao Delegado Augusto Mendes


64

Dessa forma, a repressão que sofrem, Juca Rosa, Domingos Sodré e


Rufino em seus respectivos momentos, nunca deixou de existir. E, ao contrário
disso, no pós-abolição e com a Proclamação da República, a repressão passa a
ter uma necessidade maior de diferenciar aqueles que eram “padrão” de
civilidade dos “outros”, “marginais” por essência. Nesse interim, práticas
religiosas das mais variadas vão sofrer a força da polícia, e diversas estratégias
são lançadas para escapar à fúria desta.
No segundo Capítulo, passaremos a tratar da relação da História da
Saúde e a História da Repressão às experiências religiosas no Rio de Janeiro,
como o contexto da saúde pública e do governo republicano favoreciam medidas
violentas contra religiosos, sobretudo os negros. Apresentaremos também a
presença de pessoas consideradas “indesejáveis” na cidade, dando ênfase aos
ciganos, estrangeiros e às prostitutas, três categorias que são representativas
no contexto que analisamos nesta tese.
65

Capítulo II – Cura em disputa – charlatanismo, curandeirismo e


medicina.

Dá licença Pai Antônio Que eu não vim lhe visitar


Eu estou muito doente
Vim pra você me curar
Se a doença for feitiço, Pai Antônio vai levar
Se a doença for de Deus, Pai Antônio vai curar
Coitado de Pai Antônio Preto Velho curandor
Foi parar na detenção
Por não ter um defensor
Pai Antônio é quimbanda, é curandô
Pai Antônio é quimbanda, é curandô
É pai de mesa, é curandô
É pai de mesa, é curandô
Pai Antônio é quimbanda, é curandô
Pai Antônio é quimbanda, é curando
(Ponto de Pai Antônio – Tenda Espírita Nossa Senhora da
Piedade).

Este capítulo nasce das propostas e indicações realizadas no processo


de Qualificação desta Tese. Ao submeter o primeiro capítulo e o projeto da Tese
aos professores Gabriela Sampaio e Daniel Justi, muitas sugestões foram
dadas, sobretudo com relação aos autores e obras de referências, acerca das
questões de saúde pública no Brasil republicano. As disputas entre médicos e
curandeiros na cidade do Rio de Janeiro servem como norte para observação
das prisões e batidas policiais que são fontes para nossas pesquisas. Diante
desse cenário, fomos percebendo ser necessário também, para a construção
teórica de nosso objeto, apresentarmos algumas outras relações de disputa e
poder na cidade, como a presença de estrangeiros, ciganos e prostitutas, que
vão colorindo a miríade de experiências em confrontamento na cidade.

Cada um dos capítulos desta tese é iniciado pela citação de um “ponto


cantado”, tradicionalmente referenciados à “Umbanda”. Isto precisa ser também
explicado aqui. Iniciar com pontos, cânticos, poesias, capazes de encantar a vida
e a morte, são colocadas na intenção de encantar cada um desses portais, que
abrimos ao iniciarmos um novo título. Encantar o mundo, encantar a vida é
dobrar a morte (SIMAS; RUFINO, 2019) e é isso que vamos fazendo ao nos
66

dispor a escrever um trabalho acadêmico, partindo de nosso olhar e de nosso


lugar no mundo, dessa experiência de ser historiadora e macumbeira.

Tratar da violência e da repressão que sempre existiu nessas margens do


Atlântico, sem cair nas armadilhas que muitos antes de nós caíram, é um desafio
em que precisa ter ginga e espírito bem vivo, e nisso os pontos vão sempre nos
lembrando de onde viemos e qual nosso papel nessa missão ancestral.

A primeira prisão de Vicente Avellar aconteceu em 1904, a segunda em


1907, e segundo a crença popular e a oralidade dos religiosos, a Umbanda
“nasceu” em 1908. Quando em uma ação de “resistência”, o Caboclo das 7
Encruzilhadas, tendo sido mal-recebido, em uma mesa de reunião “espírita”
kardecista, por não ter espaço ali “aos espíritos sem evolução”. Fundou ele
próprio uma religião onde “dariam voz aos silenciados”, aos excluídos e aos ditos
“incivilizados”.

Sabemos bem, as inúmeras demandas teóricas que envolvem essas


interpretações que já foram feiras sobre a “Fundação da Umbanda”. Seja em
1908 ou na década de 1920, como baliza a Brown (1994), o que não se pode
negar é a problemática que envolvia as experiências religiosas “espíritas” no
início do século XX, e aqui não estamos falando do Kardecismo que coaptou
para si o nome “Espírita”, negando o nome de seu “fundador” “kardecista”, mas
de todas as experiências religiosas que lidam diretamente com a crença nos
espíritos - Mortos que falam, vivos que se ligam aos não viventes e a “dobra da
morte”.

A efervescência religiosa e espiritual que colore o Rio de Janeiro está em


grande confrontamento com a repressão e o “espírito civilizador” que impulsiona
as ações das autoridades. Nesta disputa, temos as religiosidades “espíritas”
ancestrais, com suas personificações afro-indígenas em constante
movimentação de resistência, drible e ginga diante da civilidade escolhida para
dar forma ao modelo de civilização brasileiro. Quem civilizou quem?

Enquanto uma disputa feroz era travada entre médicos, curandeiros,


policiais, feiticeiros, ocultistas, cartomantes e jornalistas, moviam-se pelo palco
os “charlatões”, aqueles cidadãos que estavam de fato muito interessados nas
“patacas” que conseguiam tirar para seu sustento “explorando” a boa-fé, ou a fé
67

qualquer que fosse. Qual, de fato, é o limiar, para nós historiadores, que
observamos essas personagens e suas experiências, através do recorte do
discurso policial ou do discurso sensacionalista da mídia? Quem de fato eram os
reais charlatões? Muito provavelmente essa é uma das perguntas que ficarão
sem resposta.

Mas, em um exercício contrário, se pensarmos em quais os cidadãos


eram “genuinamente” crentes em suas experiências de fé, e que vendendo seus
“serviços”, não consideravam estar enganando ninguém? Seria outro beco sem
saída, pois, na maioria das vezes, não se consegue resgatar o discurso, ou a
profissão de fé dessas pessoas, que negam em sua maioria ser o que são,
porque ser o que são, lhes levaria diretamente para o lugar de criminosos. Nós
historiadores, podemos então problematizar a própria repressão e as práticas
desses homens e mulheres, guardando cada qual sua própria experiência,
confrontar fontes e contextos buscando reconhecer as experiencias do universo
religioso se pode ser resgatado dessas histórias.

2.1 Fluidez religiosa na Cidade


Dos desafios desta Tese, este é um dos principais. Ao verificarmos os
trabalhos sobre religiosidade no Rio de Janeiro do século XIX e início do XX é
fácil se enganar sobre a presença de religiosos na cidade. João do Rio já nos
mostrava em 1904 que o Rio de Janeiro era um campo fértil para as mais
variadas experiências religiosas, daquelas de base africana, daquelas de
influência ilustrada, do positivismo, do cristianismo em suas diversas
configurações (DO RIO, 1904).

Mas, as leituras que a historiografia vem dando sobre as religiões no Rio


de Janeiro encontramos dois recortes evidentes: ou trata-se de um cristianismo
católico dominante, ou de uma cidade completamente dominada pelos feiticeiros
negros. A presença de Espíritas Kardecistas também é bastante considerada no
contexto de repressão por historiadores a partir dos anos 2000. Mas, o engano
maior não é de uma apresentação minguada dessas experiências que
desconsidera tantas outras formas de representação de fé. O que buscamos
demonstrar nesta Tese é, justamente, que estas experiências não são
68

estanques, seus praticantes não estão isolados em suas realidades, ao


contrário, eles dialogam entre si, partem de um ponto ao outro e retornam para
suas práticas iniciais com tanta facilidade que nos faz questionar a real
importância dos debates acerca do polêmico sincretismo21.

Nosso personagem, um homem branco, de formação tradicional que


transita entre as elites da cidade, mas que também participa da formação cultural
e educacional das populações suburbanas e de camadas medianas da
sociedade, tem uma experiência religiosa bastante diversificada que passa por
uma tradição “Espírita”, que agrega em si valores europeus em uma roupagem
tipicamente carioca. Quando Avellar se apresenta como ocultista, curador e
oferece trabalhos para todos os fins, ele sabe muito bem em quem ele quer
chegar. Não há experiências religiosas estanques na cidade do Rio de Janeiro,
há trânsito e diálogo de seus praticantes e daqueles que as procuram por
interesse nos “serviços” que oferecem. Mesmo que este diálogo se mova pela
opressão, disputa de mercado ou criação de redes de proteção, ele existe e não
pode ser desconsiderado.

Dessa forma é necessário compreender um pouco sobre os estudos e


conceitos que estão envolvidos nesta Tese. Para isso, iremos observar melhor
aquilo que Lená Medeiros de Menezes (1996) chama de “Indesejáveis”.

2.2 Les Chévaux de Rétour

21 O sincretismo aparece tradicionalmente nos campos de estudos sobre religião,

aplicado para tratar de religiosidade afro-brasileiras. Sempre aparecendo como uma forma de
“ofensa” quando aplicada a outras experiências religiosas, como o cristianismo, que se
compreendem “puras”. Há, também, entre religiosos de matriz africana, a partir da década de 80
uma negação ao sincretismo, um busca por um purismo, seguindo o mesmo entendimento das
demais religiões que negam a prática. A discussão do antissincretismo entre as principais
lideranças do candomblé baiano tornou-se debate amplo entre historiadores e antropólogos e
pode ser resgato nos trabalhos de Sérgio Ferreti (1995 e 2006). No entanto, como nos mostra
Dias (2021), apesar de ser uma palavra vista como “maldita”, o sincretismo é presente em todas
as religiões. Droogers (1987) apresenta as origens do termo na obra “Moralidades” de Plutarco
que comenta sobre a prática cretense de unir forças para combater um mal maior, dessa forma,
o sincretismo seria fazer como os soldados cretenses, unindo forças apesar das diferenças,
buscando alinhar-se pelas semelhanças em prol de um bem maior. Nos séculos XVI e XVII o
termo passa a ser negativado, tornando-se um termo “incomodo” (DIAS, 2021).
69

A ninguém é lícito desconhecer que nos grandes centros populosos


existe permanentemente um número extraordinário de indivíduos,
cujos modos de vida constituem um grave perigo para a ordem e a
moral públicas. São esses os réos de polícia,
quero dizer, os freqüentadores assíduos do cárcere, les chévaux de
retour, como os designa a gyria pittoresca das prisões de Paris. É
dessa massa funesta e corrompida, formada pelos vadios, bêbedos,
ladrões, mendigos e desordeiros, que surgem mais tarde os criminosos
contra a propriedade e contra a vida. A polícia não póde abandonar de
vista semelhante gente, pois, se o fizesse, renegaria a sua missão
preventiva. Cabe-lhes o dever inilludivel de evitar o mal maior,
providenciando para rehabilitação desses indivíduos (CHEFE DE
POLÍCIA, 1904, p. 51).22

A historiografia muito tem tratado da parcela marginal da sociedade


carioca nas primeiras décadas do século XX. Nosso trabalho se insere também
nesta categoria, mesmo que utilizemos uma teoria que busque justamente dar
voz aos “marginalizados”, visto que não é possível pensar neste contexto da
repressão policial a curandeiros, espíritas, praticantes das magias africanas ou
europeias, sem pensarmos em todos que eram considerados também “Vadios”
no mesmo período, eles estavam unidos, não somente pela categoria de
“criminosos”, mas por relações sutis de sobrevivência na Capital Federal.
Como nos mostra, Menezes (1996), as autoridades policiais do Rio de
Janeiro estavam constantemente preocupadas com uma permanente desordem
pública e uma “escalada do crime” na capital. Os chévaux de rétour, da gíria
francesa “cavalos de retorno”, apelidava aqueles frequentadores assíduos dos
cárceres, eram marca dos vadios, bêbados, ladrões, mendigos e desordeiros
reincidentes. Desta forma, tratamos aí de grupos, vistos pela polícia da Capital
como propensos ao crime, além dos elencados, podemos aqui também incluir
os tratados no artigos 156, 157 e 158 do Código Penal.

2.2.1 Os Corvos do Egito – Ciganos.


Louis Amédée Eugène Achard23 escreveu em 1841 uma Nouvelle
intitulada Le Bohémien onde trata de um povo, que como descreve, parece ter
sido atingido por uma “antique et foudroyante malediction”24 que os empurra

22
Relatório apresentado ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores, pelo Chefe de Polícia do Distrito
Federal, pág. 51, anexado a BRASIL. Ministério da Justiça. Ministro (J. J. Seabra). Relatório dos anos de
1903 e 1904. Apresentado ao presidente da República dos Estados Unidos do Brazil. Rio de Janeiro,
Imprensa Nacional, 1904. (Anexo C). pp. 52-3.
23 Romancista e Jornalista francês (1814-1875).
24 Uma maldição antiga e trovejante (tradução nossa).
70

através da Europa para uma eterna peregrinação punitiva (ACHARD, 1841).


Esses peregrinos amaldiçoados, descritos por Achard, são os ciganos,
chamados de Bohêmios na França.

O romancista descreve a maneira como os bohêmios eram vistos como


eram tratados, sendo sempre expulsos de um canto para outro na Europa por
quatro séculos:

Passa entre as nações sem se misturar com elas, encontra a


civilização e não guarda nada dela, vai de norte a sul, muda climas,
atravessa raças que obedecem a leis, costumes, línguas diferentes,
move-se no meio de homens que se prostram ao pé da cruz ou
invocam o nome de Maomé; e climas, leis, costumes, línguas, Charami
entre os árabes, Pharaöhites entre os húngaros, entre os ingleses
Gypsis; Gitanos entre os espanhóis e portugueses, Zingaris entre os
moldavos, Zigenners na Alemanha, Caracos em Roussillon, qualquer
que seja onome que carreguem, os bohêmios, em todos os lugares
desprezados, caçados, odiados, são como um bando de párias na
grande família humana. Reis, imperadores, parlamentos, estados
gerais, nunca se ocuparam com eles, exceto para decretar prisões
contra eles; são expulsos de terra em terra, as províncias os enviam
de volta, os reinos os expulsam, assim como os leprosos (ACHARD,
1841, p. 3).

Os ciganos Calons, predominantes nos países Ibéricos, foram


historicamente os primeiros a chegarem nas Américas, através da condição de
“Degredados do Reino” a partir do século XVI. Para compreendermos o que
seriam esses povos “Ciganos”, antes de tudo precisamos compreender a
pluralidade identitária que envolve o termo exônimo da etnia Romá que agrega
os calons, rom, sinti, kalderash, moldowaia, lovaria. Categorias que não
expressam unidade, da qual o termo Cigano pretende reunir. Esse complexo
mosaico étnico possui, no entanto, elementos agregadores, na ideia de
Transnacionalidade e de uma invenção simbólica de uma “Nação Cigana”, a
Romanesthàn (MENINI, 2021).

Ao tratarmos aqui dos Ciganos, o fazemos em concordância com a Tese


apresentada por Nathally Menini (2021), onde esta compreende os ciganos
como um segmento estigmatizado da sociedade. E, dessa forma apresenta o
conceito através da proposição de Erving Goffman que estipula três tipos de
estigmas: as deformidades físicas, as culpas de caráter individual e os estigmas
tribais de raça, nação e religião, que podem ser transmitidos através de
linhagem, “contaminando” por igual todos os membros de uma etnia.
71

Dessa forma, os estigmas associados aos ciganos, calons sobretudo no


Brasil, estão em decorrência de desvios de caráter e não cumprimento das
normas da sociedade cristã europeia. Esses estigmas possuem um profundo
caráter histórico, visto que desde os impérios Ibéricos, os ciganos são vistos
como “desviados” e “prejudiciais à ordem”. Dentre esses estigmas atrelados aos
ciganos estavam os de criminosos, ladrões, desviados sexuais, idólatras,
feiticeiros, sendo constantemente relegados às profissões mais infames como a
de carrascos e o trato direto com o tráfico negreiro, além do ofício de ferreiro que
é passado de pai para filho (ACHARD, 1841).

Achard (1841) define as mulheres bohêmias como “bruxas habilidosas”,


consultadas por homens e mulheres supersticiosos, que as buscam para saber
de suas sortes, estendendo a palma da mão para essas mulheres, na esperança
de ouvir seus destinos desvelados. A procura por elas e a por suas previsões,
lhes imputou mais um estigma, bruxas e magistas habilidosos, ou aos céticos,
são verdadeiros embusteiros e charlatães.

Em muito podemos relacionar o antagonismo que foi criado do estigma da


bruxaria cigana ao estigma dos negros feiticeiros. Ambas as raças
estigmatizadas, estão relacionadas ao que Schwarcz (1997) afirma ser uma
característica dos séculos XVIII e XIX, quando a razão toma um significado
modelador da Civilização, enquanto em oposição a superstição, as magias, as
bruxarias e feitiçarias seriam associadas aos modelos civilizatórios “inferiores”
por sua incapacidade de produzir ciência e explicações racionais.

Desta maneira, chegamos aos ciganos na cidade do Rio de Janeiro,


observados pelo etnógrafo Mello Moraes Filho, que reuniu em pelo menos duas
obras aquilo que pode levantar em estudos e entrevistas feitas com anciões
ciganos no Rio de Janeiro nos anos finais do XIX e início do XX. Tanto na obra
Cancioneiro dos Ciganos (1885), quanto na etnografia Os Ciganos no Brazil
(1886), Moraes Filho levanta a origem dos ciganos no Brasil, sua trajetória pela
Europa e suas características culturais, principalmente no Rio de Janeiro
daqueles anos.

Moraes Filho (1886, p. 28) descreve a chegada dos primeiros ciganos ao


Brasil como resultado do Decreto de 11 de abril de 1718:
72

foram degradados os ciganos do reino para a praça da cidade da


Bahia, ordenando-se ao governador que ponha cobro e cuidado na
proibição do uso de sua língua e gíria, não permitindo que se ensine a
seus filhos, a fim de obter-se a sua extinção .

E, a partir desta ordem, chegaram os avós e parentes do “Calón de 89


anos Sr. Pintos Noite”, que conferenciou por duas horas as histórias de sua
nação ao autor, dando a este uma relação de nove famílias calóns que chegaram
ao Brasil com seus avós, e da Bahia migraram para outras províncias. Ao
chegarem no Rio de Janeiro “alojaram-se em barracas no campo dos Ciganos ,
enorme e inculta praça que se estendia da rua do Cano até à barreira do Senado”
– pelas palavras do Sr. Noites.

O que o Sr. Noites não diz, ou não é trazido até nós por seu entrevistador
Moraes Filho, é que a região onde os ciganos alojaram suas barracas eram
espaço insalubre de brejos e alagadiços, terrenos pouco valorizados naqueles
anos do século XVIII. Segundo Teixeira (2008) e Menini (2021), o Campo dos
Ciganos, primeiro lugar de reunião desses acampamentos, viria a ser o hoje
conhecido Campo de Santana. Ocuparam também a Rua dos Ciganos (atual
Rua da Constituição) e o Largo do Rócio (hoje Praça da República).

Teixeira (2008) afirma que muitos ciganos conseguiram sair da miséria do


degredo e constituir grandes fortunas, principalmente como comerciantes de
escravos. Entre as muitas profissões que ocuparam no momento da
Independência, período de grande florescimento dos ciganos no Brasil, o ofício
de “meirinho”, estratégia para burlar decisões anteriores onde estes não
poderiam ocupar cargos públicos.

Alguns ciganos conseguiam “esconder” sua verdadeira origem, e mesmo


o tom escuro de suas peles com dinheiro, joias, ouro e empréstimos aos
poderosos da Corte25. No Rio de Janeiro, estavam a maioria dos ciganos mais
ricos do Brasil, e com a chegada da Corte de Dom João VI, coisas inconcebíveis
naquela margem do Atlântico aconteciam sem pudores no Rio de Janeiro, como

25
Como no caso do Cigano Joaquim Antônio Rabelo, também chamado José Rabelo, que ficou rico com o
tráfico negreiro, depois recebendo a patente de Terceiro Sargento-mor. Esta figura já bastante
apresentada por memorialistas do Rio de Janeiro como China, J. B. d’Oliveira, “Os ciganos do Brasil”,
Revista do Museu Paulista, Tomo XXI, 1936; Coroacy, V., Memórias da cidade do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, José Olympio, 1955; e o já citado Moraes Filho (1884, 1885).
73

apresentações de danças ciganas no casamento da princesa da Beira, filha mais


velha de Dom João (TEIXEIRA, 2008).

Na ocasião da elevação do Brasil a Reino Unido (1815), em comemoração


“Dom João VI levou a corte inteira e a delegação estrangeira do Campo dos
Ciganos para uma tarde e noite de danças e entretenimento." (DONOVAN,
1992). Havia rumores de que Dom João VI nutria uma especial fascinação por
uma cigana, ironias do destino, visto que seu avô Dom João V, em sua repulsa
enviou dezenas de famílias ciganas em cárcere para o Brasil décadas antes.

Nos anos de 1810, o Campo dos Ciganos se tornou o “bairro boêmio” do


Rio de Janeiro, “uma área conhecida por uma vida noturna alegre e pelos artistas
brasileiros e estrangeiros que ali viviam” (DONOVAN, 1992, p. 126). Essa região
foi cenário de aventuras para o jovem Dom Pedro, que igualmente a seu pai
nutria especial admiração pelas belas ciganas daquele bairro (TEIXEIRA, 2008).

A simpatia da família real, no entanto, não refletia os sentimentos da


população em relação aos ciganos e nem uma afinidade dos ciganos com a
sociedade em geral. Inúmeros viajantes relatam o medo comum entre aqueles
que viajavam pelos interiores do país, os furtos e roubos praticados por ciganos,
além de tornarem-se sinônimo de trapaceiros e velhacos (GRAHAM, 1956)26.

Segundo Teixeira (2008), já nos anos de 1820, não havia mais a


participação dos ciganos nas festividades da Corte Imperial, o que refletia a
impossibilidade do perfil daqueles homens e mulheres serem associados ao “ser
brasileiro”. Isso no século XIX, com a presença de naturalistas no Brasil em suas
campanhas por construir “a cara” do brasileiro, vão associar a miscigenação de
indígenas, europeus e negros, não mencionam a presença de ciganos,
relegando a eles a invisibilidade que é reproduzida até os dias atuais na História
do Brasil, que não menciona essas pessoas.

Além de negá-los a participação na “Nação brasileira”, uma série de ações


tratam de colocá-los também à margem da “boa sociedade”. No século XIX,
quando há a primeira onda de imigração de italianos, alemães, poloneses,
russos e gregos, juntamente com esses chegam os ciganos da etnia Rom.

26
Graham, M., Diário de viagem ao Brasil e de uma estada nesse país durante parte dos anos de 1821,
1822 e 1823, São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1956, p. 286.
74

Mesmo que se tenha conhecimento que em 1830 houve a chegada de um cigano


Rom, Jan Nepomuscky Kubitschek, avô de Juscelino Kubitschek, ao chegar no
Brasil logo se casou com uma brasileira, sinal de que não veio em grupo, mas
sim de forma autônoma.

A entrada desses ciganos Rom, foi logo motivo de legislação e controle,


o que não impediu a chegada desses de maneira clandestina, o que deixa
qualquer pesquisa sobre a origem e quantitativo de ciganos no Brasil um desafio.
Se identificavam como Russos, Poloneses, Romenos e Gregos, para
conseguirem fugir ao controle no porto, ou desembarcavam fugindo ao contato
com as autoridades. Essas pessoas acabam por aparecer como pistas,
principalmente em inquéritos policiais, deixando o desafio aos historiadores que
buscarão estudá-los hoje, visto que foram completamente ignorados pela
historiografia clássica, e quando não, foram lidos de maneira totalmente
etnocêntrica e preconceituosa, o que ajudou a formar o estigma que recai ainda
hoje sobre os ciganos (TEIXEIRA, 2008).

Em março de 1909 aparecia em Juiz de Fora uma horda de


ciganos, composta de 12 homens, 10 mulheres e 15 crianças
que já delata nos meios de vida a influência da reação policial.
Tornaram-se exclusivamente (exclusivamente?...) saltimbancos,
apresentando animais amestrados (ursos, macacos, cães, etc.)
O chefe do grupo, homem alto e corpulento, de cabelos
crescidos até os ombros, interrogado pela polícia, não soube
explicar-se em português e nem outra língua conhecida,
permitindo as autoridades que ele exibisse os seus animais no
pátio da cadeia (DORNAS, 1948, p. 28).
Nos inquéritos e processos envolvendo os Artigos 156, 157 e 158, há
presença de inúmeros imigrantes, principalmente mulheres, e é necessária uma
pesquisa que intente identificar esses indivíduos, pois há grandes chances de
serem ciganos, sobretudo da etnia Rom. No capítulo 4 desta Tese, encontramos
duas mulheres Russas, sendo presas como feiticeiras que segundo as pistas,
eram ciganas Rom.

Coutinho (2016) demonstra em sua pesquisa sobre inquéritos policiais


envolvendo ciganos em Minas Gerais, como a República acirrou o estigma
contra estes grupos. Vistos como perturbadores da ordem, necessitavam do
controle das autoridades. Desta forma, a pesquisa apresenta casos em que os
ciganos interagem com a sociedade de maneira diferente do estigma esperado
75

deles, e busca colocar essas etnias como protagonistas na História. Vai mostrar
também através da investigação policial do assassinato da família cigana Greco
(1917) por um trio de ciganos sérvios, os Anovitch.

No Inquérito Policial, apresentado por Coutinho (2016), os Anovitch foram


acolhidos na família Greco. Os Grecos eram ciganos Gregos, semi-
sedentarizados, fizeram fortuna com o ofício de caldeireiro, tinham valores
cristãos e grande influência entre os fazendeiros da região de Piumhi. Já os
irmãos Mido Anovich e Mitcho Luiz Anovich seguiam viajando com a mulher
Maria Baba, casada com Mido, todos naturais da Sérvia. Mido era viciado em
jogos, mas sem grande sucesso, falava português de forma sofrível. Já a mulher,
Baba, foi vendida aos 13 anos para um patrício, de quem fugiu com o grupo de
Mido quando estes passavam por Belém onde ela estava. Baba era “sympathica
e vistosa”, tirava a “buena dicha” através das linhas das mãos.

No Inquérito Policial que investigava o assassinato de toda a família Greco


e roubo de seus bens (“muito dinheiro em moeda papel e ouro e jóias de grande
valor”), Baba é dita como a grande organizadora da “carnificina”, a mente
criminosa e manipuladora daqueles homens: “tem o traço psychologico do
criminoso nato, incorrigível – uma insensibilidade moral completa”. A imagem
criada sobre a cigana, os relatos de sua vida e na história do crime buscava
associar Baba ao estigma já existente das mulheres ciganas “vistas como
possuidoras de caráter manipulador, sedutor e misterioso” (COUTINHO, 2016,
p. 138). Estigma este reforçado, também pela literatura do século XVII ao XX,
como em Machado de Assis na expressão “olhos de cigana obliqua e
dissimulada”.27

Na esteira dos ciganos, dos estigmas construídos por séculos sobre essas
etnias, vamos aos estrangeiros, categoria por onde muitos conseguiram entrar
no Brasil, visto os impedimentos diretos da imigração cigana no século XIX.
Apesar da política de estímulo da migração europeia no contexto de
branqueamento e da iminente abertura da economia baseada na mão de obra

27 A Expressão é da obra Dom Casmurro de Machado de Assis, e Teixeira (2008),


apresenta desde Cervantes, diversos autores que utilizaram os estigmas ciganos em suas obras
e personagens (TEIXEIRA, 2008, pp. 55 – 74).
76

escrava, vão chegando ao Brasil estrangeiros que se tornaram, muito


rapidamente indesejáveis.

2.2.2 Estrangeiros
Assim, o Brazil do que nécessita, é de agricultores, criadores,
hortelões, vinhateiros, matteiros, pouco importa a especialidade,
mas lodos ligados d terre, oriundos da terra. O Brasil nécessita
de trabalhadores robustos, carpinteiros, pedreiros, Allemâes, ou
Francezes, Irlandezes ou Suissos, pouco importa a
nacionalidade ou a raça ; mas que possâo ser ao mesmo tempo,
obreiros e colonos (RIBEYROLLES, 1856, p. 201).
Como apontou o viajante Charles Ribeyrolles, havia um ideal para o perfil
de estrangeiros que eram desejados para “colonos” entre as elites Brasileiras, já
na metade do século XIX, quando a dinâmica da escravidão apontava sua
falência iminente. Inúmeras ações políticas e judiciais marcaram o processo
imigratório28 no Império e durante a República. Havia um ideal, mas a realidade
se concatenou, apresentando uma dinâmica completamente diferente da
esperada pela proposta inicial.

As elites brasileiras queriam “colonos” europeus para “civilizar” a Nação.


Seyferth (1996) nos mostra que a política de imigração/colonização durante o
Império girou entorno de duas questões: a capacidade de produzir uma
“agricultura moderna” em locais ermos, tendo como modelo assentamentos já
realizados, essa primeira questão gerou uma hierarquia dos imigrantes
desejados; a perspectiva da abolição da escravidão como a única forma de
tornar o Brasil um país civilizado, introduzindo a mão de obra livre de imigrantes
e excluindo os nacionais, os trabalhadores livres e os escravizados.29

A escravidão era encarada como estorvo à modernização, mas


necessária para manter a paz na Nação. A transição do sistema econômico
deveria ser gradual e sem abertura para uma medida revolucionária. O Visconde

28 A partir da Lei 601 de 18 de setembro de 1850 – conhecida como Lei de Terras, abre

caminho para a imigração e facilitação da aquisição de terras no Brasil por estrangeiros.


29 Estas são questões apontadas em 1846 pelo Visconde de Abrantes, que em missão

especial ao Império brasileiro em Berlim, propôs reflexões políticas e econômicas ao Imperador,


de acordo com o que via e se informava dos valores, costumes e crenças circulantes entre as
elites europeias. Suas reflexões podem ser encontradas na publicação Missão Especial do
Visconde de Abrantes, distribuída em dois Tomos, e publicadas em 1853. Disponível em:
https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/224193
77

de Abrantes (1856) apresenta, também, como medida satisfatória aos problemas


econômicos que cercavam o Brasil, diante do fim do tráfico negreiro, a imigração
dos alemães, sobretudo para províncias do Sul do Brasil, onde estariam mais
aclimatados, porém, também serviriam ali, como barreira ao “Systema
Americano de Rosas”30.

O Visconde, mantém uma sobriedade ao apresentar também, ao


Imperador, sua proposta de organizar os meios de ação policial, para obrigar
“aos libertos” a alugar-se aos fazendeiros locais, além de forçar a saída desses
das cidades, com pena de serem transportados para África aqueles que
nasceram por lá, e completa: “Não creio que isto seja utopia, nem contrário à
liberdade individual: a lei deve impor ao proletário a obrigação do trabalho, e
empregar o meios para que não seja iludida esta obrigação”31 (ABRANTES,
1856, p. 123 Tomo I). Como pode ser observado, havia uma esperança em
“limpar” a Nação com a chegada dos imigrantes, além de modernizar a
sociedade e a economia.

O Rio de Janeiro aparece como porta de entrada desses estrangeiros,


como outrora foi de homens e mulheres enviados à força para girar a roda
econômica da escravidão. Menezes (1996) apresenta uma observação sobre o
crescimento da população estrangeira na Capital entre os anos de 1872 e 1920,
mas indica que a primeira contabilização de estrangeiros no Brasil foi feita em
1838. Os número passam de 6,9% do conjunto total da população na capital em
1838, para 25% da população em 1906.32 O crescimento era sentido, mesmo
com inúmeras medidas de controle que ganhavam destaque, e paralisaram a

30 O dito “Systema Americano de Rosas” está associado a Juan Manuel Rosas,

apresentado na imprensa Brasileira como um “Ditador expansionista”, “um inimigo natural” do


Brasil. Autores como José de Alencar e Machado de Assis fizeram questão de marcar suas
posições sobre as ações de Rosas, considerando-o como “tirano” e “ditador”. Havia grupos,
porém, que o consideravam um “Ilustre General”, “defensor das liberdades”. Segundo Rezende
(2016), as medidas de Rosas eram de fato expansionistas e colocavam em risco a soberania
brasileira, sobretudo na região sul do país.
31 Essas palavras do Visconde de Abrantes, direcionada ao Imperador D. Pedro II, ainda

na década de 50 do século XIX, mostra um embrião do que viria a ser os artigos contra vadiagem
e capoeira no Código Penal de 1890.
32 No Decreto 50-A, de 14 de dezembro de 1889 – o Governo Provisório dava cidadania

brasileira a todos os estrangeiros que estavam no território nacional em 15 de novembro de 1889,


com exceção daqueles que não quisessem.
78

entrada de algumas nacionalidades, assim como a expulsão por determinados


atos.33

No primeiro censo da República, em 1890, logo pós-abolição, foram


registrados 155.202 estrangeiros em uma população total de 522.651 pessoas.
Quase que o dobro de estrangeiros em vinte anos, e a partir daí esse número só
cresceria, em oposição às políticas de controle cada vez mais acirradas
(MENEZES, 1996).

A presença de portugueses entre os estrangeiros era pronunciada.


Homens e mulheres vindos de lugarejos pobres, sem instrução e por vezes
analfabetos, passaram pela situação de transformarem-se de “colonizadores” a
“estrangeiros”, sobretudo no Rio de Janeiro. Como Menezes (1996) afirma, os
portugueses foram incontestavelmente maioria entre os estrangeiros presentes
no Rio de Janeiro até os anos 1920. Pobres e sem instrução, eram empregados
no comércio e na construção civil, também nas Docas e no transporte, aqueciam
os números dos subempregos e se constituíam entre a maioria do “mendigos,
vadios e ladrões de origem estrangeira em ação na cidade” (MENEZES, 1996,
p. 74).

O atraso estava, portanto, associado aos estrangeiros portugueses,


enquanto outras nacionalidades representavam a modernidade, principalmente
os franceses. Estes estavam vinculados às atividades do luxo, da moda, dos
prazeres e do lazer na cidade. As mulheres francesas davam “um toque de
progresso à capital”, visão de cronistas que descreviam a capital em seus

33 A primeira medida de controle de entrada de estrangeiros foi a lei Glicério – Decreto

528 de 28 de junho de 1890, que regularizava o serviço de imigração da República. Considerava


livre a entrada de indivíduos válidos e aptos para o trabalho, que não estejam sofrendo ação
criminal em seus países de origem. A exceção ficava aos “indígenas da Ásia, ou da África” que
deveriam ter liberação do Congresso Nacional. Esta primeira medida de controle estava baseada
na ideologia de superioridade racial que eram almejadas para Nação. O Código Penal de 1890
nos artigos 399, 400, 401 e 402, estavam previstas ações de deportação (para o caso de
estrangeiros) envolvidos na vadiagem e capoeira. O Decreto 1566 de 13 de outubro de 1893
previa a expulsão de estrangeiros “mendigos”, “vagabundos”, “atacado de moléstias”, “culpados
de excitação à perpetração de infrações contra a segurança e a tranquilidade públicas”, “os que
pela imprensa ou por outro meio incitarem a desobediência às leis ou à revolta e guerra civil, ou
excitarem ódio ou atos de violência entre ou contra as diversas classes sociais, de modo perigoso
à segurança ou à tranquilidade públicas”, essas duas situações, ultimas, estavam diretamente
ligadas aos casos de anarquistas e socialistas na Capital.
79

cotidianos, pensando na chegada da civilização em oposição ao atraso e da


barbaridade que representavam, portugueses e africanos:

A Artéria principal, a mais elegante, a mais limpa, a de aspecto menos


colonial, ainda é a Rua do Ouvidor.
[...]
A Rua que a municipalidade de então chama Moreira César e o povo,
como sempre, Rua do Ouvidor, é apenas um pobre corredor entre
tantos corredores da cidade, embora menos rústico que os outros,
embora mais festivo, e, sobretudo muito mais frequentado.
A parte de maior animação e maior vida é a que se fixa entre os
quarteirões que se estendem do Largo de São Francisco, que então se
chama Praça Coronel Tamarindo, até a Rua do Ourives. Aí estão as
lojas de mais requintado luxo e aparato, de melhor clientela e
consideração. São rasgões claros em montras de cristal,
resplandecendo, faiscando ao sol, arcos de entrada em boa cantaria,
de madeira de lei envernizada ou mármore, conjunto dizendo certas
distinções, capricho destoando em linha geral do casario irregular de
vulgar arquitetura Todo um bazar de modas. Nelas veem-se caixeiros
e patrões dentro de uniformes de linho branco muito limpos, muito bem
barbeados, afetando maneiras, mostrando sorrisos e falando em
francês ...
Nesse trecho, com pouco mais de cem metros de extensão, é que
palpita a vida elegante da cidade, trânsito obrigatório do que chegam
dos arrabaldes à parte central da cidade, a compras ou passeios
(EDMUNDO, 2003, pp. 39 - 40).

A presença dos franceses entre os imigrantes esteve em segundo lugar,


ligados sobretudo à indústria da moda e dos prazeres e lazer da urbanização.
Menezes (1996) afirma que estavam presentes desde a chegada da Corte
portuguesa, consagrando-se com a abertura de lojas na Rua do Ouvidor,
principalmente as mulheres francesas que expandem seus negócios também
para a prostituição, onde ocupavam o “topo da hierarquia ‘prostitucional’ que
tinha as polacas na base” (MENEZES, 1996, p. 75).

Sobre as prostitutas falaremos mais a seguir, por enquanto ainda


precisamos compreender o papel dos estrangeiros como protagonistas de
crimes e agitação na cidade. Temos a presença dos italianos que ocupavam
profissões humildes como jornaleiros, engraxates, amoladores, sapateiros,
varredores, pedreiros, barbeiros, jardineiros e comerciantes, e claro uma variada
gama de atividades marginais: furto, roubo, falsários entre as mulheres
atividades como cartomantes e falsárias. Essas tendencias também eram
observadas entre os imigrantes sul-americanos, com destaque para argentinos
e uruguaios. (MENEZES, 1996).
80

Os “hospedes perigosos” da cidade, diferente do que era esperado,


definiram-se como inimigos da ordem pública. Estavam inseridos no mundo dos
trabalhadores e dos criminosos, e diferiam da ordem elaborada pelas classes
superiores que buscavam universalizar modelos e valores que detivessem
explosões e contradições. De um lado anarquistas e marxistas escreviam
protestos em sindicatos e ruas, com discursos revolucionários, agitavam a capital
e exacerbavam ainda mais as diferenças sociais. Por outro lado, grupos
criminosos se dividiam entre os pobres: mendigos, jogadores, ébrios, ladrões,
gatunos - os habitués dos cárceres – também chamados pela gíria francesa les
chévaux de rétour. Em outra perspectiva, os criminosos internacionais, que
promoviam redes em nível mundial, onde se destacavam as atividades de
cáftens, “os negociantes de prazer” – que operavam nos bastidores da imigração
europeia, com o tráfico de mulheres para todos os continentes (MENEZES,
1996).

2.2.3 Prostitutas
[...] e a civilização se faz, por tantos modos diferentes, vários e
obscuros, que me parece ver naquelas francesas, húngaras,
espanholas, italianas, polacas bojudas, muito grandes, com
espaventosos chapéus, ao jeito de velas enfunadas ao vento,
continuadoras de algum modo da missão dos conquistadores
(BARRETO, 1956, pp. 105 – 106).
Lima Barreto em algumas de suas crônicas apresentou a sua percepção
sobre a questão da “negociação do prazer” na capital. A prostituição dominava
a cidade do Rio de Janeiro, uma consequência “espúria” da civilização tão
sonhada entre os idealizadores da modernidade brasileira. Mulheres anunciando
sexo e valores antagônicos à moral cristã, circulavam afrontando nas ruas, lojas,
restaurantes, teatros, vindas de diversos países da Europa, fazia parte de uma
dinâmica mundial de poder, dinheiro e subordinação feminina (MENEZES,
1996).

O Código Penal de 1890 representava o crime de Lenocínio no artigo:

Art. 278. Induzir mulheres, quer abusando de sua fraqueza ou


miséria, quer constrangendo-as por intimidações ou ameaças, a
empregarem-se no tráfico da prostituição; prestar-lhes, por conta
própria ou de outrem, sob sua ou alheia responsabilidade,
81

assistência, habitação e auxílios para auferir, direta ou


indiretamente, lucros desta especulação
A associação entre mulheres e fraqueza é representativa do lugar onde
essas mulheres ocupam na sociedade. O patriarcado que compreende o uso dos
corpos femininos como meio de obter lucro em circunstâncias onde mulheres
estejam em situação de miséria, ou usando de suas fraquezas, por ameaça
intimidação, ou seja, sempre com essas mulheres sendo vítimas passivas da
terrível influência de homens mais fortes e poderosos. Não se pode negar,
obviamente, que ao falarmos de “tráfico internacional de mulheres”, como
Menezes (1996) categoriza, essa situação é agravada por promessas de
casamentos, uma vida mais tranquila em um novo país, o que se revela falacioso
assim que chegam ao Brasil. A prostituição é vista por viajantes no fim do século
XIX como um “mal necessário” na cidade em processo de urbanização
(KOSERITZ, 1980).

Além da disputa no campo jurídico internacional com o “tráfico” de


mulheres, a questão da prostituição tomava o campo médico, como quase tudo
nas décadas finais do século XIX. Havia na Europa uma compreensão de que a
prostituição era parte do progresso capitalista e da organização do comércio de
mulheres, o que contribuía ao discurso higienista. O destino da prostituição era
garantir a tranquilidade das famílias, com aval de médicos que encaminhavam a
proposta de regulamentação do meretrício, como o Dr. Henrique de Sá em 1885:

Continuando nas minhas humildes considerações acho conveniente


desde já levantas um solene protesto contra os que pensam que a
prostituição deve ser banida.
A sociedade moderna, ou antes, a lei consente-lhe essa degradação e
proclama-a como uma necessidade.
Bani-la completamente, extingui-a, seria um erro ainda grave, pois que
seguindo uma voz autorizada, a prostituição, filha d deboche e do vício,
corresponde aos ardores brutais dos sentidos.
O que seria da moralidade social, se assim acontecesse, mormente na
época atual em que parece nascer de todos os lados o entusiasmo e o
ardor pelas orgias. O resultado seria o transtorno da ordem e da
tranquilidade pública. A meretriz é, pois, uma entidade indispensável
(SÁ, 1885, pp. 7 – 8).

A aceitação à prostituição não se estendia ao tráfico de mulheres. A


imagem da prostituta como “profissão” necessária para manutenção da ordem
moral da sociedade não se estendia ao lenocínio, que era reprimido, uma
contradição profunda que durou décadas no final do Império aos primeiros anos
82

da República (MENEZES, 1996). A questão da prostituição divide opiniões entre


médicos, enquanto Henrique de Sá defende a importância da figura da prostituta
na sociedade para manutenção da família, outro médico higienista, Ferraz de
Macedo, defendeu a Tese baseada nos argumentos moralistas de Parent-
Duchâtelet de que é o “medonho e cínico comércio, última fase da degradação
da espécie humana” (MACEDO, 1873, p. 2).

Para Macedo (1873), a propagação da sífilis aparece como argumento


médico de seus estudos, mas sua crítica à moralidade social é latente,
recorrendo historicamente a Sodoma e Gomorra para demonstrar que a
prostituição não é um problema da modernidade. Usa como referências também
templos e festivais gregos e romanos onde a “prostituição” era sagrada. Sobre a
prostituição e a presença das prostitutas afirma: “Modernamente é ela um fato
social, considerado necessário, mas indubitavelmente vergonhoso e indigno de
nosso século”(MACEDO, 1873, p. 9).

O autor afirma que diferente de países europeus, como a França, onde há


uma classificação clara de quem pode ser considerada prostituta, no Rio de
Janeiro, não havia meios para diferenciar a “libertinagem pública” da “pública
prostituição”, ou formas de diferenciar a prostituta da “mulher que desprezando
os preceitos da moral e da religião se entrega aos desmandos da concupiscência
sem contudo por seus favores ao alcance de todos em troco de uma paga
qualquer”(MACEDO, 1873, p. 8). Para sua Tese, Macedo reconheceu o sentido
mais “lato” da palavra, ou seja, qualquer mulher que se transviava das regras
morais, ganhando dinheiro ou não para isso.

Rago (1985) ao tratar das disputas nos campos das relações burguesas,
vai apresentando as lutas travadas pelas mulheres na cidade, na fábrica, em
meio aos debates higienistas e moralistas, a formação das múltiplas resistências
que se pronunciavam na fábrica, na escola, na família, no bairro e nas ruas.
Tratando do fator da colonização dos corpos femininos, Rago (1985) apresenta
as teses tanto de Macedo (1873), quanto de Leme (1826), para demonstrar o
ambiente das disputas de classe que as mulheres pobres estavam inseridas nos
primeiro anos da república.
83

Macedo (1873) associa a prostituição pública à ociosidade, preguiça,


desejo desmesurado de prazer, o amor ao luxo, a miséria financeira, o que leva
as mulheres a buscarem recursos próprios, falha na educação moral e como
principal agravante um “temperamento erótico”. Os bailes populares e folias de
carnaval aparecem como propiciadores das condições especiais e de
emergência pervertidas, e claro, onde o clima quente e úmido do Rio de Janeiro
colaborava para o temperamento ardente de seus filhos.

Leme (1926) por sua vez, diferencia os padrões de comportamento da


“mulher honesta” da “vagabunda” e associa a prostituição às camadas mais
pobres da sociedade. Com auxílio de estatísticas policiais busca mostrar a
origem das prostitutas, inclusive criando uma correlação de profissões mais
comuns entre as prostitutas: floristas, costureiras, operárias, domésticas e
artistas de teatro.

A classificação feita por Macedo (1873) é mais extensa e detalhada. O


médico divide “As mulheres públicas” por classes. Na primeira Classe – uma das
classes mais perigosas, não pela sífilis, mas pelo seu poder de “seduzir,
estragando a moral e a fortuna da mocidade”. Afirma que esta classe vivia em
sobrados com luxo disponível para poucas famílias. Apesar de suas origens
modestas, possuem crédito entre comerciantes, o que lhes garantem seus luxos
em roupas, panos, perfumes e joias. Macedo afirma, também, que a maioria
neste grupo é das estrangeiras. São “entregues a ociosidade”, não pensam no
futuro, e quando menos esperam estão marcadas pela velhice prematura e
ocupando “imundos lupanares”.

As Mulheres públicas de segunda classe, Macedo (1873) classifica as que


abundam de maneira mais presente as ruas da cidade, principalmente nas ruas:
do Sabão, Alfandega, Hospício, Senhor dos Passos, São Jorge, Regente, Fogo,
Conceição e nas ruas entre o “Campo da Aclamação” e a Rua da Uruguaiana.
Essas mulheres, ocupavam as casas térreas e os pequenos sobrados, e
diferente das mulheres da primeira classe, são apresentadas como um
problemas para os vizinhos, que evitam morar nas imediações e mesmo passar
por perto, para evitar “cenas asquerosas e repugnantes”.
84

Nas mulheres de Segunda classe, Macedo (1873) deposita as


características mais odientas: “mal-educadas, incapazes de reflexão, vivem nas
janelas, inimigas do asseio”, transmissoras da sífilis. E atribui a essas classes a
presença de “mulheres de cor e portuguesas”. Vale relembrar que neste
momento os portugueses são vistos como estrangeiros de má fama, enquanto
as mulheres “de cor”, sabemos bem, o lugar que os higienistas as tinham.

As mulheres públicas de terceira classe, como classifica Macedo (1873)


“é o conjunto de tudo que há de mais torpe, imundo e asqueroso”, e opta por não
as subdividir em outras subclasses, mas afirma ser possível. Existem nesta
classe, mulheres que após viverem nas classes superiores se encontram nos
seus piores dias, oferecendo-se nas portas à noite, vivendo entre marinheiros,
entregues às bebidas alcoólicas. Há também, nesta classe as mulheres que “se
prestam a satisfazer prazeres antinaturais”. Para sua preocupação com a sífilis,
está neste grupo suas maiores “devastações, onde toma formas mais horríveis”.

Na quarta classe das mulheres públicas, Macedo (1873) não as classifica


pelo luxo, mas pelo modo “especial” em que vivem. Nesta categoria estão as
mulheres que se reúnem em “bordéis”. O autor afirma que varia em número de
10 a 12 mulheres novas, dirigidas por uma “velha e encanecida”. Macedo (1873)
afirma também ser comum a compra de escravas “na maior parte pardas”, para
empregar “nesta abominável indústria”.

Uma outra categoria é classificada por Macedo (1873) como “Prostituição


Clandestina”. Esta categoria é, para ele, tão perigosa quanto as anteriores, mas
em países onde há controle da prostituição, ela se lança como uma mais
perigosa, mas no Rio de Janeiro, onde não existem esses regulamentos ela está
no mesmo grau.

Difere muito na forma da prostituição elas capitais europeias; porque


ali cada profissão é uma capa que esconde este vicio nojento; lá uma
mulher arremedando o oficio de parteira, lavadeira, enfermeira,
alugadora ele criados, pintora, modista, costureira (estes ultimas já
existem aqui ), se oculta aos olhos da Polícia: mas não intervindo aqui
de nenhum modo a polícia na, prostituição pública, não há necessidade
de subtrair-se a sua perspicácia; por isso inútil ó o emprego destas
evasivas: aqui toma outro aspecto a prostituição clandestina. Quem
ignora que a castidade não é sentimento que cultive o coração do
africano ou creoulo embrutecido no cativeiro'? O que há a esperar
deste número avultado de escravas, que muitas vezes por mero luxo
entulham nossas casas (MACEDO, 1873, p. 21)
85

O médico segue afirmando que mulheres de classes inferiores “se


entregam” por vontade aos “abusos morais”, e que homens “seduzidos” deixam
seus leitos nupciais e vão “enlodar-se em imundas senzalas onde dorme a
escrava”. Ou seja, Macedo (1873) segue sua tese de que prostitutas são “por
própria vontade” entregues aos vícios morais, e que por isso são um perigo de
contaminação por sífilis.

Rago (1987) ao comentar as categorias apresentadas por Macedo (1873),


organiza em um quadro que apresentamos a seguir:
Floristas, modistas, costureiras,
vendedoras de charutos,
figurantes de teatro,
Gênero das Prostitutas comparsas, “videntes”,
Trabalhadoras “cartomantes” etc.
Prostituição Primeira Classe
Pública Isoladas em casas,
Gênero das Prostitutas aristocráticas, reunidas em
“Ociosas” hotéis aristocráticos

Prostitutas De colégios, de sobrados, de


Segunda Classe estalagens, bordéis etc.

Inferiores, reformadas, gastas,


Terceira Classe Prostitutas de zungus, amancebadas

Viúvas, casadas,
Em boas condições
divorciadas, solteiras
Prostituição Primeira Classe Mulheres
Clandestina Livres, libertas,
Em baixas condições escravas etc.

Doutrinas lesbianas, coito


Práticas antifísicas contra a natureza, onanismo
nas mulheres
Segunda Classe
Sodomia ou prostituição
Pederastas, ativos,
masculina passivos, mistos,
onanismo
86

Fonte: Adaptado de Rago (1987, p. 88 – grifo nosso)

Aproveitando o esquema criado por Rago (1987) das informações


levantadas por Macedo (1873) em sua tese sobre a prostituição no Rio de
Janeiro, acrescentamos “profissões” constantemente associadas à prostituição
pela polícia do Rio de Janeiro, quando tratamos dos Inquéritos policiais
envolvendo as cartomantes e videntes. Não há evidências, na maioria dos casos
em que a polícia levanta suspeita de “prostituição”, apenas o fato de “receberem
muitos homens” em suas casas, ou quartos, o que poderia ser para consultas de
seus oráculos, mas para polícia essas mulheres estavam em um lugar do perigo,
associando muitos males, conta a saúde pública e contra a saúde moral.

2.3 A República e a Violência


Ordem e Progresso – o lema que saiu vencedor no processo de disputa
por uma “nova ordem política e social” na primeira República. Representava os
ideais daqueles que se estabeleceram no poder com o pensamento sobre a
melhor forma de organizar um país: a filosofia Positivista. A manutenção da
ordem pública, a seguridade da paz, da tranquilidade e a repressão eficaz das
desordens apareciam como prioridades no Decreto nº 01 de 15 de novembro de
1889 e na prática não buscavam mudanças na estrutura social, pelo contrário, e
ordem era pela manutenção dos status já estabelecidos: o poder da aristocracia
rural que havia iniciado um movimento de urbanização ainda no Império e a
solidificação dos militares como classe de poder social, claro, as altas patentes.

A República não promoveu nenhum tipo de transformação profunda da


lógica social ou política. Mesmo no campo religioso, lugar em que a legislação
foi de fato, transformada com a “laicidade”, vamos observando neste trabalho
que também não houve nenhuma grande transformação. A classe média urbana,
que vai se estabelecendo desde meados do XIX, encontra representatividade
nos ideais positivistas e na representatividade do Exército.

Neste contexto, outras classes vão se estabelecendo como uma baixa


burguesia, classes sociais e intelectuais, como a classe médica são
87

importantíssimas no contexto que estudamos, pois estão diretamente


relacionadas às repressões que observamos em nossas fontes. A classe
médica, no contexto da República, teve apoio legislativo em sua busca por
reconhecimento de suas práticas em detrimento ao “curandeirismo” e
“charlatanismo”. Desta forma, observamos a participação ativa de médicos na
ação direta, atuando como força policial a partir de 1904.

2.3.1 As disputas sobre a cura no Rio de Janeiro


As disputas entre médicos profissionais e entre esses e os ditos
curandeiros, não foi iniciada na República, esta observação é importante para
que não nos deixemos cair na ilusão de que a República inaugurou alguma coisa.
Antes, a República aprofundou rachas e disputas já existentes desde o Império.

Dessa forma, Gabriela Sampaio (1995) mostra como a disputa por uma
ortodoxia médica estava presente desde o Império e dava-se em público,
também pelos jornais, como no caso entre Figueiredo Magalhães, médico que
depois tornou-se nome de rua importante de Copacabana e outro doutor,
Henrique Monat. “A briga estendeu-se por meses, sendo publicada quase
diariamente nos principais jornais do Rio. As acusações eram sérias, e nada
contidas; o debate não poupava desaforos e publicações de situações
eticamente não publicáveis, por ambas as partes” (SAMPAIO, 1995, p. 24).

A disputa de Magalhães e Monat iniciou por divergências no tratamento


de um paciente. Rosenwald havia sido operado por Magalhães e posteriormente
foi tratado por Monat que acusava o rival médico de “ter esquecido uma sonda
dentro da bexiga do doente”. As acusações e denúncias tornaram-se públicas,
com uso de xingamentos como “inepto”, “desleixado” e “ignorante”, usados por
ambos os cirurgiões nos jornais O Paiz e Jornal do Commercio, nos primeiros
meses de 1888 (SAMPAIO, 1995).

Com o acaloramento dos debates públicos, outros médicos foram também


se envolvendo na disputa e debate sobre procedimentos e questões centrais
sobre a medicina científica como era feita no Brasil do fim do século XIX.
Sampaio (1995) afirma que estas disputas públicas e a apresentação de casos
de erros médicos deixavam a clientela desses profissionais temerosos por suas
88

próprias vidas ao procurar um médico. Além das acusações sobre honorários,


onde chamavam-se mutuamente de ladrões e exploradores.

Era explícito que não havia um consenso entre os profissionais, mas havia
sempre os apoiadores de ambos os lados. Testemunhas dispostas a defender
um ou outro posicionamento. “Se não era possível saber qual lado tinha razão,
uma coisa era consensual para quem acompanhava aquela guerra: nenhum era
totalmente confiável” (SAMPAIO, 1995, p. 30). O que, obviamente, gerava
insegurança no uso de procedimentos médicos e medo do risco iminente de
morte ao buscar um médico profissional, quais seriam então as opções?

Rafael Rosa da Rocha (2015), em sua dissertação, apresenta uma figura


intrigante: o professor Faustino. O historiador faz um movimento muito parecido
com o que estamos construindo nesta tese, ao acompanhar a movimentação do
Professor Faustino por suas andanças no Brasil. Faustino aparece na pesquisa
de Rocha como um “curador afamado, que curava com a imposição das mãos,
branco, letrado”, que passou por São Paulo, Rio de Janeiro (1899), Minas Gerais
e fez maior fama em Salvador.

De princípio, observamos na pesquisa de Rocha (2015) que Faustino


sabia usar muito bem a ferramenta que são os jornais, estava sempre
relacionado com nomes de poder da sociedade, fazendo circular sua boa fama
para os que tivessem acesso aos periódicos. E, buscava dissociar suas práticas
de cura das africanas, assim como também não assumia para si o lugar de
“kardecista”.

Os professores, Faustino e Avellar, são personagens peculiares de um


ambiente onde a cura e a doença, não só as do corpo, mas também as morais,
estavam em disputa. De um lado uma classe médica despontando, com
péssimas referências, de outro curadores africanos que não condiziam com “os
ideias modernos” da civilização, e por isso reprimidos com mais afinco. Avellar,
Faustino e outros, apareciam como um meio do caminho, com excelentes
depoimentos, testemunhas favoráveis, sobrenomes e famílias de destaque,
89

formação intelectual e brancos34. Eram a cara do progresso, mesmo que tenham


sido pegos na malha fina dos Regulamentos Sanitários.

Em prol da “ordem”, as lideranças médicas passaram a reivindicar a partir


dos anos 1880, a delimitação e o controle, das práticas médicas, através de
regulamentos, a fim de estabelecer a diferenciação entre os profissionais
qualificados pelo ensino formal da medicina e aqueles que praticavam a “falsa
medicina”, o “curandeirismo” e toda sorte de práticas associadas às curas
populares (COELHO, 1999).

Em 1904, mais especificamente em 8 de março daquele ano, o Decreto


5.156 foi posto em vigor, dentro da gestão de Oswaldo Cruz na Diretoria Geral
de Saúde Pública no Distrito Federal. O Decreto em questão, regulamentava os
serviços sanitários e dava plenos poderes aos seus representantes para atuar
em instância de reprimenda e jurídica, quando a saúde pública estivesse em
risco, de acordo com os ideais higienistas. A base desse decreto era a Lei
Francesa de 1902, conhecida como “Lei Siegfried”, relacionada a proteção da
saúde pública. A primeira referência para intervenções higienistas no urbanismo
e na administração pública, que é encontrada na biblioteca particular de Oswaldo
Cruz, demonstrando seu conhecimento sobre a lei (COSTA; SANGLARD, 2006).

Tal na França, qual no Brasil, o pobre era alvo primário das ações de
higiene, passando sobretudo por suas moradias e a insalubridade (COSTA;
SANGLARD, 2006). No entanto, a observação dessas medidas sanitárias e o
contexto de formação da Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP), fundada em
1897, não eram unanimes, como também não eram ambientes pacíficos e
lineares. A Constituição de 1891 regulamentava que assuntos de saúde e
saneamento seriam de responsabilidade dos municípios e estados. Enquanto a
Lei nº 85 de 20 de setembro de 1892, no artigo 58 transfere para municipalidade
o serviço da Polícia Sanitária. Hochman (1998) destaca ainda que na Capital

34 Em sua Tese, defendida em 2020, Rafael da Rosa Rocha apresenta a trajetória de

alguns “curadores itinerantes” entre 1898 e 1905: Eduardo Silva, Faustino Ribeiro Junior e
Domingos Ruggiano e concorda com a ideia de que estes curandeiros, tal como vemos para
Avellar, “confundiam os sinais para as autoridades”, sendo brancos, letrados e praticando artes
curativas não africanas. No caso em que apresenta o processo de Eduardo Silva é feita a menção
ao professor Vicente Avellar como um dos presentes no momento do depoimento de Eduardo
ao 1º Delegado Auxiliar dr. Sá Vianna - “Eduardo estava entre amigos, defensores e
admiradores” (ROCHA, 2020, p. 90), qual deles seria Avellar?
90

esses serviços eram de responsabilidade do Distrito Federal. No entanto, logo


fica evidente a ausência de verba e estrutura para movimentar as ações
desejadas (CURY, 2012).

A nomeação de Oswaldo Cruz como Diretor da DGSP demonstra a


guinada que Rodrigues Alves estava dando na direção da Civilização, Pereira
Passos foi indicado como Prefeito do Rio de Janeiro e Oswaldo Cruz na dianteira
da Saúde Pública, eram a trindade da modernização e da civilização. No entanto,
fora de seus gabinetes ainda existia uma cidade pestilenta onde médicos,
curandeiros e charlatões trocavam farpas em jornais, disputavam clientela à
unha e matavam ou curavam a depender da sorte do sujeito.

2.3.2 Drogas – emplastos, elixires e milagres da cura.

Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara,


pendurou-se-me uma ideia no trapézio que eu tinha no cérebro.
Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as
mais arrojadas cabriolas de volatim, que é possível crer. Eu
deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto,
estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X:
decifra-me ou devoro te.
Essa ideia era nada menos que a invenção de um medicamento
sublime, um emplastro anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a
nossa melancólica humanidade. Na petição de privilégio que
então redigi, chamei a atenção do governo para esse resultado,
verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as
vantagens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um
produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém, que
estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me
influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais,
mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do
remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que
negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de
lágrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio,
porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis.
Assim, a minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma
virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e
lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: _ amor da
glória (MACHADO DE ASSIS, 1880, p. 12).
O Emplasto Brás Cubas aparece na obra machadiana Memórias
Póstumas de Brás Cubas, não diferente de tantas outras feitas por Machado à
sua época, estava ali uma crítica aos remédios milagrosos que “infestavam” os
91

jornais ao fim do século XIX e se estendendo por décadas do XX, a Belle Époque
do Rio de Janeiro poderia ser vista como um período de “hipocondríacos”, por
isso seria tão lucrativo um emplastro anti-hipocondríaco, ou seja, um remédio
para curar a necessidade de se curar, ou do medo constante de adoecer.
Machado está nos alertando mais, Brás Cubas não era médico, não era
farmacêutico, Brás Cubas era um advogado que não deu certo em nada, viveu
buscando sem encontrar, e morreu desejando ver seu nome nos jornais,
associado ao milagroso emplasto.

A hipocondria que alarmava Brás Cubas era a mesma que conferia aos
três cavaleiros da civilização (Rodrigues Alves, Pereira Passos e Oswaldo Cruz),
principalmente ao médico devoto de Pasteur, plenos poderes para agir na
segurança sanitária do Rio de Janeiro e consequentemente no Brasil. Todos
eram fruto do “Século dos Micróbios”35, e diante das teorias de cura, algumas se
sobrepujaram como científicas, outras amargaram a criminalidade e algumas
passeavam entre um lugar e outro.

Ao tratar de Nilo Cairo e os debates sobre homeopatia no século XX,


Renata Sigolo (2016) apresenta a controversa trajetória do médico paranaense,
formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, impedido de apresentar
a tese: Similia similimum curantur, onde defendia a teoria da Medicina
Homeopática em 1903. Com o impedimento, Cairo apresentou outra tese no ano
seguinte e tornou-se doutor. No entanto, o contratempo com a homeopatia pela
academia médica não o impediu de manter seu vínculo as teorias de
Hahnemann. Nilo Cairo torna-se redator dos Anais do Instituto Hahnemanniano
do Brasil, a principal instituição de homeopatia brasileira, além de responsável
pela Revista Homeopática do Paraná, que posteriormente se transformou em
Revista Homeopática Brasileira (SIGOLO, 2016).

Em sua tese, Sigolo (2016) demonstra como a Homeopatia, desde


Hahneman, enfrentou correntes mais tradicionais da medicina moderna por

35 Louis Pasteur foi responsável por difundir uma nova teoria médica que se opunha à

teoria das miasmas e à teoria dos humores. Pasteur em 1851, enquanto pesquisava bactérias
que causavam a fermentação de vinhos descobriu que elas não conseguiam mais produzir
fermentação após o aquecimento da bebida, este processo recebeu posteriormente o seu nome:
pasteurização. No Brasil, a nova teoria médica é observada nos periódicos como Brazil-médico,
órgão oficial da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, e possuía pesquisadores de prestígio
como Oswaldo Cruz e Carlos Chagas associados ao Instituto Pasteur.
92

discordar das práticas da alopatia. No Brasil, a Homeopatia chega com Benît


Mure em 1840 e encontra seus alicerces nas contradições já mencionadas da
medicina dita tradicional, mas também na filosofia Positivista, alinhamento que
fica latente na sua construção. Há ainda um caráter espiritualista que toma ao
entrar no Brasil, primeiro através do catolicismo, por terem sido padres os
primeiros homeopatas, mas posteriormente alinhando-se aos discursos
kardecistas de busca da cura espiritual (SIGOLO, 2016).

A associação do kardecismo e da homeopatia foi feita com base na


releitura dos conceitos de Hahnemann. Houve, por exemplo, a associação do
conceito de força vital36 com o de perispírito em Kardec, sendo este o corpo fluido
dos espíritos que em desequilíbrio moral causaria doenças no corpo físico. A
repressão do Código Penal de 1890 faz surgir um racha nesta próspera
associação. O Instituto Hahnemanniano do Brasil em 1900 passa por uma
reestruturação e em vistas do Código Penal, com o apoio dos seus teóricos mais
científicos como Nilo, o Instituto busca a dissociação de elementos mágico-
religiosos (SIGOLO, 2016).

A busca por essa dissociação dos elementos mágicos e religiosos, por


parte da autoridade máxima da Homeopatia no país, não impede que o uso da
teoria homeopata, ou mesmo do “selo científico”, continue a ser utilizado por
curandeiros, curadores e charlatões. E, é bom lembrar que não somente os
brancos, pois em alguns inquéritos policiais há presença das obras sobre
homeopatia em espaços onde as práticas são associadas mais ao africanismo e
ao indigenismo37. Isso demonstra a circulação das informações entre espaços

36 O discurso religioso está na origem do método de Hahneman, mesmo com a


racionalidade discursiva que lhe era atribuída, o que abriu espaço para as interpretações futuras.
Hahneman explicava a matéria como constituída por princípios ativos corpóreos e incorpóreos
(forças sutis, vitais, eflúvios e forças de atração) que nos processos químicos e fisiológicos
entram em interação. Esta interação se dá pelo movimento entre os corpos, no caso dos
princípios incorpóreos este movimento se dá, não pelo contato direto, mas por transferência à
distância. O vitalismo, principal conceito homeopático, se deu em 1810 na obra Organon da arte
de cura, onde o médico alemão demonstrava seu descontentamento com os efeitos colaterais
do uso de medicamentos alopáticos e tóxicos como arsênico e mercúrio. Desta forma, Hahneman
em testes feitos em si próprio descobre que quando diluídas, as substanciais perdem sua
toxidade, mas ao serem administradas com recorrência suficientes acabam por controlar os
efeitos das doenças (SIGOLO, 2016).
37 Em 1916, Manuel da Silva Teixeira foi processado nos artigos 156 e 157, entre as

acusações estava a prática de receitar remédios homeopáticos e curar pela imposição das mãos
na sua residência no bairro da Piedade. No Inquérito movido contra Bento José Pereira (1928),
entre as provas elencadas pela polícia, estava o livro “O Médico Homeopático em família”,
93

religiosos. No capítulo três desta Tese, veremos mais a fundo a trajetória de


Vicente Avellar pela cidade, suas peripécias e suas mudanças, partindo das
pistas que nos deixaram os periódicos e os processos envolvendo o professor.

CAPÍTULO 3 – AS “ASSOMBROSAS” PERIPÉCIAS DE VICENTE


AVELLAR

Ele foi doutor, ele foi doutor, ele me curou


Numa brincadeira que ele brincou, ele me curou
Eram três crianças, eu me lembro bem
No Terreiro em festa, a alegria vem
Vieram de um a um
Eram Cosme, Damião e Doum
(Ponto de Ibejada na Umbanda)

Naquela tarde de sábado, dia 18 de junho de 1904, os trabalhos de cura


estavam em pleno acontecimento no sobrado da Rua de São Cristóvão, 201.
Desde às 11 horas da manhã, o professor-curador atendia pessoas que vinham
de todas as partes da cidade do Rio de Janeiro apenas para receber imposição
de suas mãos santas. Buscavam uma palavra de auxílio em suas dores do corpo
e da alma, e claro, as receitas para os remédios homeopáticos que poderiam
comprar ali mesmo, na “Pharmácia União”, localizada no andar térreo do mesmo
prédio. Eram todos trabalhos de caridade, os que faziam ali. Assim afirmavam

enquanto suas práticas são descritas pelos policiais como africanistas nos autos, as demais
materialidades apresentadas como provas corroboram na descrição da polícia. Já no inquérito
contra Romulo de Carvalho Lavras (1929) foi apreendida como prova de crime uma caixa com
22 frascos de remédio homeopático, ao lado de 5 facas punhais, um cachimbo, 5 pedaços de giz
(pemba), uma lata contendo pólvora, cinco pacotes de chá Goyano, um charuto usado e um
cartaz de aviso.
94

as placas que ocupavam as paredes, juntamente com recortes de jornais e


fotografias de pacientes curados “apenas pela imposição de mãos”.

Avellar não costumava atender aos sábados, mas com a abertura do


Laboratório em sociedade com o farmacêutico Affonso Corrêa Bastos, a clientela
aumentou bastante, e a busca por suas curas “prodigiosas” também. Talvez
fossem os agradecimentos feitos semanalmente no Jornal do Brasil, ou o velho
boca a boca, mas agora era necessário também atender aos sábados. Era assim
a vida do “apóstolo de Deus”, não negaria sua missão. E naquele dia, Avellar
contava com a ajuda de seus companheiros de jornada espiritual: Frederico
Martins dos Santos, que estava no andar de baixo e Manuel Luiz Canoza, o
Secretário daquela santa Sociedade, precisavam cumprir com as demandas que
chegavam. Faltava apenas uma hora para o horário determinado ao fechamento,
logo encerraria os atendimentos.

Professor Avellar foi surpreendido em sua sala de atendimentos pela


chegada repentina de um pequeno grupo de pessoas encabeçados por um
senhor vestido distintamente. O uniforme bege do senhor denunciava o que se
tratava, Avellar conhecia bem aquele uniforme, era um dos subordinados da
Polícia Sanitária de Pereira Passos. Mais ora, menos ora, ele sabia, chegariam
até sua farmácia, mas se preveniu contra isso, não estava errado com o
Regulamento. Mas ali, na paz de sua Sociedade ele poderia ser mal interpretado.

O Doutor Sebastião Barroso, Inspetor Sanitário da Sétima Delegacia de


Saúde38, estava naquela tarde visitando a Pharmácia União, no número 191 da
Rua São Cristóvão, quando notou a grande movimentação de pessoas que
saiam do sobrado 201, e se dirigiam ao balcão da farmácia entregando um
pequeno papel, saindo todos com embrulhos discretos em mãos. Essa
movimentação chamou a atenção do Inspetor que logo indagou a senhora
Adelaide Drummond do que se tratava o frasco que ela estava carregando. Sem

38O Decreto n. 5.224 de 30 de maio de 1904 aprovou o Regulamento Processual da Justiça


Sanitária, com ele houve a criação das Delegacias de Saúde. Segundo Giumbelli (1997), a
função do Regulamento era centralizar em um único órgão o poder e as decisões do Juízo e
Feitos da Saúde Pública até 1911. Este decreto atribuía autonomia aos Inspetores Sanitários
para punir infrações com maior rapidez. Ainda segundo Giumbelli, o uso dado a esse poder, por
parte dos inspetores, foi o que de fato inscreveu determinadas práticas na ilegalidade, não o
Decreto por si (GIUMBELLI, 1997).
95

surpresas o Inspetor ouviu se tratar de remédios receitados pelo Professor


Vicente Avellar que atendia naquele sobrado.

Foi então, acompanhado de Luiz Rodrigues Figueiredo, vizinho naquela


mesma rua, e de Frederico Martins dos Santos que atendia no balcão da
farmácia, ver o tal professor. Ao subir as escadas foi recebido por outro senhor,
Manoel Luiz Canoza que o levou a uma segunda sala. Nas paredes muitos
cartazes com retratos de vários indivíduos e agradecimentos por curas
realizadas, havia um curandeiro ali, ele não teve dúvidas.

Logo o Doutor Barroso inquiriu o senhor sentado naquela sala de frente


ampla e bancos compridos, como em uma sala de aula. Estava dada uma
batalha que levaria mais de um ano para se resolver. De um lado o Estado,
representado pelo Inspetor Sanitário e médico Sebastião Barroso, de outro
Vicente Ferreira da Cunha Avellar, o professor Avellar e sua Sociedade
Scientífica de Estudos Philosóficos Jesus Nazareno.

3.1 Quem não é visto não é lembrado.


Avellar é, sem dúvidas, um grande fenômeno, se não pelas curas que
afirmava realizar, ou pelas muitas qualidades ofertadas como professor, sim, por
seu engajamento em ser visto e lembrado. Em um tempo em que as redes
sociais eram limitadas ao escasso espaço dos jornais e dos ambientes de
convívio na Cidade, Avellar fazia direitinho a lição de casa.

Filho de Bernardo Fernandes da Cunha Avelar, também professor, das


disciplinas escripturação mercantil e aritmética, desde 1857 na “corte”, o menino
Vicente cresceu vendo seu pai anunciar-se nos periódicos. Apesar dos louros
que contemplam o nome de Bernardo Avellar, patrono da cadeira de número 105
da Academia Nacional de Economia, o jovem Vicente viu seu pai entrar em
bancarrota em seus últimos anos de vida, tendo perdido suas economias em um
processo de penhora do Prédio Assobradado da Rua Getúlio, número 13 em
Todos os Santos, que havia comprado em leilão em 1882, mas sem conseguir
pagar a quinta alíquota da dívida de 3:095$062, o perdeu (Jornal do Commercio,
1882, ed. 135, p. 3).
96

Desde 1881, quando completou vinte e um anos, Vicente Avellar iniciou


sua carreira como professor nos jornais da corte. Anunciava-se nas páginas da
Gazeta de Notícias como professor de Português Clássico, Francês Teórico e
Prático e Inglês. As aulas eram oferecidas na mesma rua em que seu pai oferecia
aulas de “escripturação” no Jornal do Commercio. Haveria uma sociedade entre
pai e filho? Ao que tudo indica, sim. Pois, a partir de 1883, ano da morte de seu
pai, Bernardo, Vicente Avellar inicia também anúncios ocupando o espaço
deixado por seu pai no mercado de professores com aulas de “scripturação”.

Apesar dos sempre gratos alunos, que faziam questão de agradecer aos
préstimos do professor Avellar, sua carreira parece ter sido sempre de altos e
baixos. Com sucessivas mudanças de endereços e muitas entradas e saídas de
colégios pela cidade. Boa parte da trajetória de Avellar é possível de ser
resgatada pelas páginas dos jornais, onde fazia questão também de anunciar
seus feitos para além da sala de aula.

Assim vemos que entre 1881 e 1882, o professor Avellar oferecia aulas
de Caligrafia, português, francês e inglês, na Rua da Alfandega, número 213. No
entanto, já nos primeiros dias 1883, o professor está ocupando o número 174 da
Rua de São Pedro, passando a anunciar-se também na Rua Gonçalves Dias,
número 40, no mesmo ano. O ano de 1883 não deve ter sido fácil para o
professor, pois foi neste mesmo ano que seu pai faleceu. Já em 1884, retorna a
Rua São Pedro número 61. E, assim, segue fazendo nos anos posteriores, de
sobrado em sobrado pelas ruas do centro.

Em dezembro de 1882, vemos o que é o encerramento letivo do


“Externato Avellar”, nas páginas do periódico Gazeta de Notícias, lê-se:
97

Figura 5 - Externato Avellar


(1882)
Externato Avellar

Assisti ante-hontem n’este externato, sob a presidência


do honrado cidadão o Exm. Sr. Marechal do campo
Barros Falcão, á distribuição dos prêmios aos alunos do
mesmo externato; ao terminar o ato solene, o inteligente
menino Atahyde de Figueiredo recitou uma poesia
dedicada ao diretor: momentos depois o distinto aluno
Saint-Clair, acompanhado de alguns colegas ofereceu
ao ilustrado diretor o Illm. Sr. Vicente Avellar, como
prova de gratidão aos esforços empregados no corrente
ano letivo, uma caneta e pena de ouro, em seguida um
outro mimo ao digno professor J. Barbosa, pelos alunos
de matemática. Houve um profuso copo d’agua e uma
esplendida soirée que durou até o amanhecer. Um
admirador. (Grifo Nosso).
Fonte: Gazeta de Notícias, 1882, ed. 351, p. 2

Este é um tipo de nota que aparece muitas vezes na “carreira” do


professor Avellar, e em sua “carreira” como curador e ocultista. Sabia usar muito
bem, ao seu favor, sempre, as pessoas gratas por suas ações. Parecia mesmo
ser muito importante para Avellar que fosse sempre citado nas páginas dos
jornais, afinal, quem não é visto, não é lembrado, não é mesmo? A partir de
1887, é comum vermos felicitações por mais um ano de vida, no mês de abril,
naquela época com 28 anos. Bem comum também, a partir do mesmo ano
felicitações à sua esposa D. Mathilde de Avellar, na época com 27 anos, “virtuosa
esposa do ilustrado pedagogo Vicente Avellar”. Os acontecimentos familiares
vão todos parar nas páginas dos jornais, nascimento, batismo e aniversário de
cada um de seus quatro filhos. Podem, todos, ser resgatados, assim como a
formação de cada um e a triste morte de sua caçula e única filha mulher:
“Thildinha” em 1916, vítima da Gripe.

Mas, como já dissemos, a vida de Avellar, essa que tentamos resgatar


pelas páginas dos jornais, nos mostra como o moço foi versátil em seus vários
empreendimentos. Logo vamos ver que essa atitude, apesar de facilitar a vida
do historiador que deseja resgatar suas andanças pela cidade, dificulta e muito
quem quisesse entender seus verdadeiros interesses. Avellar parecia estar em
todo canto, em todo momento sempre cercado de muitas pessoas. Quando não
98

estava oferecendo algum curso ou aula, estava inaugurando algum novo Centro
Literário, Clube, Sociedade, são muitas instituições, por toda sua vida.

Tabela 1 - Instituições fundadas por Vicente Avellar


Ano Nome da Instituição Objetivos
1882 Externato Avellar Ensino de disciplinas variadas (Português,
Inglês, Francês, aritmética, scripturação, etc.)
1883 Centro Literário Propagar Instrução pela classe pobre; criar uma
Scientífico José de caixa emancipadora e envidar todos os
Alencar39 esforços possíveis para com sua força quebrar
os élos do cativeiro.
1886 Grêmio Literário Vicente Promover a literatura.
Avellar
1890 Collegio 15 de Ensino para meninas, sob direção de Mathilde
Novembro (esposa).
1894 Academia Livre de Ensino Preparatório e Superior.
Commercio
1895 Sport Santíssimo Clube de Corrida em Campo Grande
1895 Casa especial de Abriu em sua própria casa no Meier, um espaço
diversões para danças e cantos, buscando entretenimento
para a região.
1896 Empreza Brazileira Auxiliadora comercial, forense e doméstica.
1897 Club Caixeiral40 Agitar quanto possível a questão do
fechamento das portas das casas comerciais ao
escurecer, elevar o nível intelectual da grande
classe, formar uma biblioteca de todos os livros
e jornais comerciais existentes em todos os
países, defender os direitos do caixeiro
garantindo-lhe os ordenados quando
dispensado do seu emprego, criar um órgão
literário comercial, artístico e scientífico,
desenvolver todas as diversões licitas, tais
como a dança, a ginástica, a música, o assalto
d’armas, a bicyclette, etc.
1899 Escola Commercial para Ensino de escripturação para meninas e
o sexo feminino mulheres.
1900 Collégio Rio de Janeiro Ensino misto para meninos e meninas.

39 A Comissão do Centro ficou composta por: Damasceno Lucas como presidente; Rodolpho
Pontes como vice-presidente; Primeiro secretário Dias da Costa, Segundo secretário Luiz
Baptista, orador por parte dos sócios: Alexandre Stokler. Gazeta de Notícias, 1883, ed. 071, p.
2.
40 A diretoria é composta por: Vicente Avellar, Henrique Scott Junior, José A. de Azevedo

(caixeiro), Alfredo & C. (negociante), Antonio Lourenço Martins (caixeiro), João Cardoso Fontes
(guarda-livros), Sebastião Maia (caixeiro)
99

1900 Literário Artístico Espaço de composição artística e literária para


Vicente Avellar os Alunos do Collégio Rio de Janeiro.
1901 Sociedade de Uma sociedade beneficente das classes
Carpinteiros e Artes laboriosas, nascida na sede da Sociedade
Correlactivas41 Commemorativa 13 de Maio.
1902 Sociedade Spirita Jesus Instituição de promoção dos saberes
Nazareth Occultistas e atendimento para cura e
trabalhos.
1904 Sociedade Theatral Uma sociedade de fomento ao teatro e
Dramática Vicente apresentações, ligada ao espaço da Sociedade
Avellar42 Spirita Jesus Nazareth
1904 Pharmacia União Farmácia Homeopática.

E não era apenas no Rio de Janeiro que Avellar circulava. Em fevereiro


de 1889, anunciou-se na Gazeta de Notícias (1889, ed. 1337, p. 1): “O
PROFESSOR AVELLAR. Segue hoje para S. Paulo o distinto educador
fluminense Vicente Ferreira da Cunha Avellar, que vai residir n’aquela cidade,
onde, consta-nos se dedicará ao ensino das matérias com que tanta proficiência
aqui cultivou...”. Com desejos de boa sorte e muitos elogios, afirmam estar indo
o professor e sua família para São Paulo, residir e trabalhar.

No entanto, logo no mês seguinte, podemos ler na mesma Gazeta de


Notícias, o anúncio de seu retorno ao Rio de Janeiro, em uma estrutura de texto
muitíssimo parecida com o de ida diz: “O PROFESSOR AVELLAR participa aos
seus discípulos, amigos e aos que de seu préstimo precisarem, que quando
regressado de S. Paulo, onde foi conhecer o importante comércio e provar a
necessidade que há do conhecimento da escripturação mercantil, acha-se de
novo no seu externato na Rua dos Andradas, n. 39” (1889, ed. 1372, p. 1). Terá
sido um mal empreendimento ir para São Paulo?

Outro resgate de suas andanças pode ser feito em periódicos de Minas


Gerais, onde parece ter tido mais sucesso. Depois de um ano sabático, longe
dos jornais da capital, em 1893, Avellar aparece no Pharol (ed. 256, 03 de
dezembro de 1893, p. 3), afirmando que está se retirando da cidade de Juiz de

41 Comissão nomeada para elaborar o Estatuto: Professor Vicente Avellar, João Benevenuto e
Joaquim Jorge.
42 Primeira apresentação – peça em 4 atos O operário de Vicente Avellar. Diretoria: Presidente

Vicente Avellar Filho, vice-presidente: Guilherme Jacobs, secretário: Antonio José Mendes
Campos, tesoureiro: José Ferreira da Silva, procurador: Manuel Luiz Lacersa e cobrador: João
Linhares (Jornal do Brasil, ed. 7041, 1904, p. 5).
100

Fora com sua família, mas que deixa três profissionais da escripturação,
formados por ele “com grande satisfação”.

Foram mais de vinte anos anunciando-se e promovendo-se nos


periódicos da Capital. Não havia quem não conhecesse o Professor Vicente
Avellar, por suas aulas, por seus empreendimentos, por suas ideias
“revolucionárias”, era um cidadão “ilustrado”. Mas também não eram incomuns
seus problemas com a polícia. A “eventual” chegada do Inspetor Barroso, no
sobrado da Pharmacia União, nos move em direção às escolhas tomadas por
Avellar, seja diante de um momento de baixa profissional, ou mesmo por crer
genuinamente em seus poderes de cura.

3.2 Fazendo negócios e inimigos


Além de seus próprios empreendimentos, como verificamos, o professor
Avellar atuava em outras instituições de ensino, entre elas destaca-se o Lyceu
de Artes e Ofícios, onde aparece entre o corpo de professores nos anos de 1886
e 188943. Em 1891, temos notícias de um outro espaço em que também atuava
como professor, mas a notícia nos chega de maneira muito diferente. Uma
matéria do Diário de Notícias no dia 21 de abril dá nota de que o professor
Vicente Avellar foi impedido de entrar no Externato Hermes, onde dava aulas:

É DEMAIS!
O sr. Vicente Avellar, ilustrado e conhecido professor de escripturação,
quando se dirigia ontem às 5 horas da tarde, para o externato Hermes,
à Rua Sete de Setembro, n. 68, onde dá sua aula, foi-lhe vedada a
entrada e a seus discípulos, pelo diretor Manuel Affonso Pires, que
chegou a arranjar duas praças para estarem de sentinela à porta da
rua.
Aquele professor foi posto na rua como qualquer lacaio.
Parece-nos que a ação praticada pelo Sr. Pires excedeu a todos os
princípios de educação e bom senso (Diário de notícia, 21 de abril de
1891, ed. 2117, p. 1).

43Noronha Santos nos alerta que em 1893 o prédio do Liceu e Artes e Ofícios (na Rua da Guarda
Velha desde 1878) foi incendiado, passando por uma reconstrução, reinaugurando parte do
prédio apenas em 1916 (SANTOS, 1965, p. 141).
101

É impossível saber ao certo, o que motivou o Diretor Pires naquela tarde.


Sem dúvidas algo muito sério, para proibir a entrada de Avellar e de toda sua
turma. Talvez estivessem promovendo algum tipo de debate considerado
impróprio? Ou, fazendo reuniões com conteúdo que não incluía a escripturação
apenas, como saber? Temos somente indícios que outras fontes nos deixaram.

Ao que tudo indica, Avellar estava dando aula no Externato Hermes44


desde 1890, quando em dezembro uma coluna no Diário do Commercio afirma
que houve no dia 21 de dezembro uma solenidade pela formatura de alunos do
curso comercial, onde houve uma homenagem ao professor Vicente Avellar.
Logo no primeiro semestre de 1891, temos a notícia de sua expulsão do
Externato, e não há mais vestígios de Avellar nos periódicos até dezembro de
1893, quando ele reaparece em Minas Gerais, se despedindo das terras de Juiz
de Fora, afirmando que voltaria para o Rio de Janeiro, naquele mesmo dia.
Estaria ele em Minas Gerais desde os problemas no Externato?

Para além, o que sabemos é que Avellar esteve envolvido, pouco antes
da queda do Império, com a política da Freguesia de Sacramento, daquelas
mesmas ruas por onde tanto deambulava. Entre agosto de outubro de 1889,
Avellar ocupou o cargo de secretário de gabinete do Partido Liberal, no Segundo
Distrito da Freguesia do Sacramento. Era ele quem assinava as notas de
convocação dos “eleitores liberais” para reuniões que aconteciam na Rua São
Pedro, n. 278ª. A campanha estava sendo feita em apoio ao Barão do Paraná.
Em 25 de outubro de 1889, a Gazeta de Notícias escreve:

Ao sr. Vicente Avellar, professor de escripturação mercantil do Lyceu


de Artes e Ofícios, foram ante-ontem oferecidas, pelos alunos, uma rica
piteira de âmbar com o dístico Souvenir, gravado em ouro, e um
ramalhete de flores artificiais, por ter sido ele nomeado para o cargo
de 3º suplente do subdelegado do 2º distrito da freguesia do
Sacramento (Gazeta de Notícias, ed. 298, p. 1) (Grifo nosso).

44Externato Hermes – Os diretores até 1891 são M. P Moreira de Oliveira e Manoel Affonso Pires
(Jornal do Commercio, 1891, ed. 0057, p. 3), até maio daquele ano, ambos os nomes aparecem
como diretores, após novembro de 1891 apenas Manoel Affonso Pires aparece como Diretor do
Externato. Segundo Maia (2019, p. 78), o Externato Hermes era um colégio de relevância social
na Cidade do Rio de Janeiro. Com participação e promoção de competições (entre seus alunos,
meninos e meninas) em provas de Montanhismo, o Externato se destacava nos jornais, sendo
sempre homenageados por seu trabalho.
102

É importante mencionarmos a mudança no Sistema Político brasileiro,


que houve em 15 de novembro de 1889 com a Proclamação da República. Já
em 10 de setembro de 1890, vemos que Avellar segue envolvido com a política.
Em nota assinada pela “Classe Commercial” na Gazeta de Notícias, se
direcionam ao “Distinto Eleitorado” afirmando que é importante lembrar o nome
do professor Vicente Ferreira da Cunha Avellar, a fim de “sufragá-lo” nas eleições
para deputado que se aproximavam. As tais eleições, são para a constituinte e
aconteceram exatos cinco dias depois, Avellar não esteve entre os eleitos. Mas
a apresentação de seu nome como um possível candidato nos é muito
interessante, principalmente pelas plataformas que a nota menciona:

Figura 6 - As Próximas Eleições


(1890)

Sufraga-lo nas próximas eleições de deputados à constituinte, não é


mais do que um dever de gratidão aos serviços prestados por esse
preclaro cidadão não só à política, como ao comércio e ao magistério,
onde tanto se tem salientado, tornando-se credor da estima dos que o
conhecem, e apreciado muito embora contra a vontade e a expectativa
dos seus mais gratuitos e encarniçados zoilos! O professor Avellar é
um brasileiro que honra a pátria dotado de um talento admirável e de
uma atividade a toda prova, tem procurado por todos os meios
defender os direitos da classe comercial, e, não há muito tempo, em
folhetos que publicou provou evidentemente a necessidade e
vantagens do fechamento das portas aos domingos e dias santificados.
Finalmente, a sua posição deve-a exclusivamente a si, isto é ao seu
incessante trabalho!
Recomendando-o, pois ao brioso e independente eleitorado, cremos
ter cumprido nosso dever.
A classe commercial.
103

(Gazeta de Notícias, ed. 253, 1980, p. 3).

Portanto, sabemos que Avellar estava, naqueles anos que antecederam


a República e logo esta que se inicia, envolvido nas demandas do Partido Liberal.
Assim como esteve em 1883 envolvido com as causas abolicionistas, na
construção do Centro Literário Scientífico José de Alencar, que tinha por
objetivo promover educação aos pobres e arrecadando verba para uma “caixa
emancipadora”. Tão logo proclamada a República, Avellar se aventura
novamente na política, sendo indicado como candidato da “Classe Commercial”.
O professor Vicente Avellar, sem dúvidas fez inimigos importantes ao se pôr,
sempre, em evidência e se cercando de discursos antiescravagistas, em prol dos
pobres, em prol dos comerciantes e dos professores.

Diante de uma vida tão animada, era impossível não fazer desafetos,
ainda mais em um Rio de Janeiro efervescente, como aquele dos primeiros anos
da República. Onde havia grande movimentação de ideias e oposições, estava
lá o professor, tentava de tudo, engendrava planos mirabolantes, e não fazia a
menor questão de diminuir os riscos e inimizades que assumia pelo caminho.

Em 1896, por exemplo esteve envolvido em uma grande disputa pelo


“Fechamento das Portas” do Comércio na Cidade, uma luta dos empregados do
Comércio, e apoiado por Avellar. Podemos verificar em uma grande matéria na
Gazeta da Tarde que Avellar havia sido convidado como orador em uma reunião
no Club União Commercial, em que assinaram uma petição a ser encaminhada
ao Intendente Júlio Campo, onde pediam os empregados do comércio:

Os abaixo assignados, empregados do comércio plenamente


solidários com as deliberações tomadas no Club União Commercial,
por ocasião da reunião efetuado no dia 9 do corrente mês, desejosos
que a Idea que motivou tal reunião se propague e venha a ser realizada
em breve tempo, considerando também que o fechamento das portas
da casa comerciais desta praça nos dias úteis ás 6 horas da tarde e
nos domingos e feriados ao meio-dia, não importa prejuízo para os
negociantes, visto que já um grande número de casas das mais
importantes desta praça observam este preceito, compreendendo
ainda que o comércio assim como os empregados têm muito a lucrar
com a adopção desta medida, que faculta ao empregado a liberdade
aplicar ao tempo restante ao cumprimento dos seus deveres em
alguma coisa de utilidade social, como seja: a frequência aos cursos
noturnos, o estudo nos Lyceus, etc. Pelo que acima expomos e por
104

muitos outros motivos que seria importuno numerar aqui e que V. S.


facilmente compreenderá, confiados no interesse que tomará a bem
das nossas casas e nos vossos sentimentos altamente justiceiros,
vimos pedir que vos digneis aceitar a incumbência de ser nosso
protetor perante os pobres municipais, a fim de conseguirmos o que
tanto almejamos para cujo contamos com o valioso auxílio de V. S.
Rio de Janeiro, 16 de agosto de 1896. Assinado por 152 homens
(Gazeta de Notícias, ed. 228, 1896, p. 1).

Até o ano seguinte, a questão do Fechamento das Portas parece não ter
tido andamento. Eis que em agosto de 1897, Avellar se une a um grupo de
caixeiros, negociantes e guarda-livros para criar o Club Caixeiral (também
chamado de União Caixeiral). Segundo a Gazeta de Notícias, o professor abriu
sua própria casa para receber a reunião com grande número de pessoas, para
a instalação do Club (Gazeta de Notícias, ed. 235, 1897, p. 2). O objetivo da
União podia ser lido também nas páginas do periódico, além de “agitar quanto
possível a questão do fechamento das portas das casas comerciais”, pretendia
“elevar o nível intelectual da grande classe.

Alguns dias depois de fundado o Club Caixeiral, o Jornal do Commercio


traz uma nota em desagravo assinada por Joaquim Alvez Teixeira, onde afirma
haver uma disputa pelo protagonismo da luta do fechamento do comércio às seis
horas. Segundo o autor da nota, estava ali em defesa do Sr. Ramos de Oliveira,
senhor “bastante retraído para querer disputar a primazia na divulgação desta
ou daquela ideia. Segundo Alvez Teixeira, o moço tímido foi o “inventor” da ideia
do fechamento das portas, mas estava longe de querer o seu quinhão pela ideia,
deixando “todo esse quinhão a quem o deseja”. Ao que se pode resgatar da nota,
o Tal Sr. Ramos de Oliveira estava sendo associado ao “emérito professor
Avellar”, defender-se disso parecia ser uma questão de honra:

Concluindo, peço licença para dizer ainda a V. S. que presumo


inaceitável o conselho de união entre o Sr. Ramos de Oliveira, ou
qualquer outro, ao emérito Professor Avellar, por quem, se há ferida a
batalha, as posições já estão sendo disputadas, no dia do triunfo, pelo
qual muito sinceramente anseio, a glória, de certo só poderá ser
partilhada, ou, antes, resolvida a duelo de morte!
Joaquim Alvez Teixeira, Rua Torres Homem, n. 51 (Jornal do
Commercio, ed. 237, 1897, p. 5).
105

Fica claro que havia uma disputa sobre a causa, e que ser associado ao
grupo de Avellar era uma ofensa de honra. E mais, Joaquim Teixeira que fez
questão de pôr seu endereço na assinatura da nota, levantava uma ameaça ao
Professor Avellar, valeria tanto aquela causa? Ressaltamos, não são
encontrados os nomes citados na nota em nenhuma reunião ou grupo proposto
por Avellar, haveria então um grupo rival buscando também o fechamento do
comércio? Aqui nos interessa o aparecimento das disputas em que Avellar se
mete, e como ele é malvisto por alguns, mesmo que consiga reunir grande
número de pessoas entorno de suas lutas.

Em 1899, é possível resgatar uma nova contenda de Avellar. No dia nove


de maio sai uma nota no periódico O Fluminense: “O professor Avellar realizará
no dia 21 do corrente, no lyceu d’esta cidade a sua segunda conferência sobra
a utilidade da escripturação mercantil aplicada a todos os ramos da vida social e
com especialidade à mulher”. Lá vamos nós com o professor fazendo vez em
suas lutas, agora em favor do ensino profissional das mulheres, coisa que ele
voltará a defender outras vezes anos depois. Mas, seu protagonismo não passa
desapercebido, cinco dias depois uma resposta é escrita também no O
Fluminense, nota, dessa vez anônima:

CONFERÊNCIA. Li no Fluminense de 9 deste mês que o sr. Professor


Avellar virá no dia 31 realizar no Lyceo sua 2ª conferência sobre a
escripturação mercantil aplicada a todos os ramos da vida e com
especialidade à mulher. Aí anda malícia, patrão. Ou então a redação
da notícia não foi bem-feita. Verdades evidentes não carecem de
demonstração. Desde que um guarda-livros for casado com uma
guarda-lloras está claro que muito mais depressa poderão pôr uma
escripturação em dia, pois quando o marido estiver impedido de
trabalhar, trabalhará a mulher. Pois para fazer compreender isto é
necessário demonstrá-lo em uma conferência? O que é que o
professor Avellar virá dizer? Que é melhor que as mulheres trabalhem
em escriptas mercantis do que ande o por aí a dar à língua, a falar mal
de vida alheia? Que é melhor estudar a partida do que o ponto atrás?
O juros recíproco vale muito mais do enfiar a agulha? Que os números
vermelhos e o método hamburguez fazem diminuir as rugas e a
obesidade? Estou curioso de tudo isso e vou esperar o homem (O
Fluminense, ed. 3953, 1899, p. 1).

A crítica ao ensino feminino é veemente, sem pudores. O autor associa


as mulheres a valores negativos e levanta a dúvidas sobre o que queria o
106

professor Avellar com aquela conferência. Não sabemos quem escreveu a nota,
mas ele é logo respondido, pelo próprio Avellar. Em setembro do mesmo ano de
1899, lemos no periódico Cidade do Rio de Janeiro, que na Rua Chile, número
83, esteve o “infatigável” Professor Vicente Avellar inaugurando a “Escola
Commercial para o sexo feminino”. O evento que contou com a “presença de
muitos homens e cavalheiros” teve como orador oficial o Dr. João Severiano da
Fonseca Hermes45, que discursou sobre “as vantagens que há na instrução
feminina”. Os nomes de duas alunas são citados: Anna Costa Moreira, Olivia
Carneiro do Campos.

Em nenhum desses empreendimentos de Avellar temos a datação


específica de seu fim. Só vemos nas fontes o surgimento, inauguração e notícias
sobre encontros e reuniões para organização. Se eles vão se somando, se são
dissolvidos ao passo que o próximo nasce, ou se passam por mudanças nos
anos seguintes, não foi possível resgatar. Todos os empreendimentos de Avellar
parecem ser passageiros e até muito breves. Alguns não chegam nem bem a
inaugurar e já sofrem com alguma questão, como no caso de sua Casa de
Diversões, que o professor versátil, abriu em sua residência no Méier. O primeiro
momento que vemos Avellar atuando fora das ruas da Cidade Velha, no ano de
1895.

O que apresenta, a notícia do periódico Diário de Notícias de 14 de


setembro de 1895, é sobre a inauguração do dia seguinte, uma “casa especial
de diversões”, no Méier. A região do Méier estava em franca ocupação desde
1888 quando foi inaugurada a Estação homônima, saindo do Campo de
Sant’Ana até Maxambomba. Desde 1860, os trens ofereciam seus serviços aos
subúrbios, que cresciam em seus recursos (VELASCO, 2019). No entanto,
Avellar, ao tentar levar entretenimentos para aquela região ainda não favorecida
pelas “diversões familiares”, teve seu projeto impedido pelo delegado. No
mesmo dia da inauguração, quando se preparava para abrir as portas, chegou a

45Ninguém menos que o Primeiro homem chamado para compor o Gabinete de Deodoro,
Secretário Geral do governo em 1890, Deputado Federal (RJ) entre 1891-1893, sobrinho do
Marechal Deodoro da Fonseca (responsável pela Proclamação da República e Primeiro
Presidente Brasileiro) e irmão do oitavo Presidente da República Hermes da Fonseca (João
Severiano Hermes da Fonseca – CPDOC). Sobrenome recorrente inclusive, desde as querelas
no Externato Hermes.
107

intimação do delegado afirmando que estava impedido por lei de promover


“tocatas e cantatas”.

O Sr. Avellar ficou assombrado à vista de semelhante ordem e vai


puxar pelos seus direitos, fazendo ver aquela autoridade que não fere
a lei por ela invocada com o estabelecimento de tais diversões, o que
seria melhor do que seu zelo se manifestasse em cousa de outra
ordem, por exemplo estar mais à testa de sua circunscrição! Opção
que atualmente não tem feito, porque não morando dentro dela,
impossível se torna essa permanência, com grande prejuízo das
partes.
Segundo [ilegível] afirmam, o delegado de que [ilegível] mora em
Botafogo, isto é, a uma distância enorme da sede de sua jurisdição,
que há de necessariamente sofrer com isso.
Melhor seria, pois, que a sua solicitude se revelasse em outras coisas
de mais utilidade, deixando que os moradores da sua circunscrição se
divertissem como bem entenderem, desde que não ofendam a moral e
os bons costumes (Diário de Notícias, ed. 3695, 1895, p. 1).

Uma crítica séria ao delegado da região suburbana. Como poderia saber


sobre as coisas do Méier, se morava em Botafogo? Afirmam, deveria então
deixar a cargo dos moradores aquilo que os diverte, claro, sem ofender a “moral
e os bons costumes”. Na nota publicada anteriormente, anunciando o
empreendimento, porém, Avellar revela o que de fato estaria oferecendo em seu
espaço: danças, assaltos d’armas, e prestidigitação. Essa última informação é
muito importante para todo o contexto que estamos construindo. O Professor
Avellar não é um simples professor, iniciamos este capítulo falando de seu
processo em 1904, e desde então tentando entender sua caminhada, entre
professor, curador, cartomante e todas as suas múltiplas valências.

Assim, quando em 1898, Avellar anuncia a abertura de seu clube no


subúrbio, com espetáculos de “prestigitação”, uma questão interessante se
apresenta: do que Avellar estava falando? Para compreendermos melhor a
prestigitação, voltamos aos periódicos da época.

Sob o título “Cornucópia dos Salões” e uma ilustração de um chifre mítico


de onde jorram tesouros, podemos ver o anúncio de um livro que prometia como
conteúdo interessantes assuntos:
108

Figura 7 - Cornucópia dos Salões (1890)

CORNUCOPIA DOS SALÕES


INESGOTAVEL THESOURO DE
DIVERTIMENTOS DE SOCIEDADE
Livro indispensável a todos quantos desejam passar em plenas
alegrias.
MIL NOITES FESTIVAS
Conteúdo
Completa coleção de jogos de sociedade: perguntas enigmáticas e
charadas: cartomancia, meio fácil de adivinhar o futuro, prestidigitação
e sutilezar, jogos de cartas: Solo, Voltarete, Marimbo, Besigue,
Emprestimo, Diabrete, Quatro Reis, Tontinha, Predas, Loto, etc.
Manual de Dança Coutillon e Lyra das Salas (Jornal do Commercio,
ed. 00040, 1890, p. 5).
109

O conteúdo associado à prestigitação, inclui adivinhação do futuro,


cartomancia e jogos de cartas. Estaria nosso personagem pensando em algo
assim, em seu empreendimento do Méier? O Delegado da circunscrição
suburbana estava mesmo preocupado com as “tocatas e cantatas” quando
impediu a abertura do “Salão”? Ou fazia associação dos espetáculos
“assombrosos” envolvendo os jogos de salões? O que sabemos é que esses
espetáculos de prestigitação aconteciam livremente nos teatros da Cidade,
durante toda primeira década da República. Como vemos em muitos anúncios
de jornais.

Figura 8 - Espetáculo de Faure Nicolay (1890)

HOJE 17 de outubro HOJE


A’S 8 1/2 HORAS
Esplendido espectaculo variado
Composto de maravilhosas novidades, pelo afamado ilusionista e
doutor
FAURE NICOLAY
Que tem obtido completo succeso nos principais theatros do mundo
com o concurso as suas discipulas, a celebre e sympathica sibyla
ROSINA NICOLAY e a apreciada menina PAULA
O mais lindo, curioso e instructivo dos espetáculos.
110

PRIMEIRA PARTE – Ouvertura pela Orchestra. Uma hora de magia


elegante e do grande prestigitação sem apparato, scenas humorísticas
nada parecidas,
SEGUNDA PARTE – Symphonia pela Orchestra. Hypnotismo e
fascinação humana. Experiência de hypnotisação de extase sugestivo
e inscensibilidade, rigidez cataléptica, etc, etc. Mysteriosas
substituições pelas meninas Paula e Rosina. Prodigiosa desaparição
instantânea. Sublimes novidades.
TERCEIRA PARTE – Symphonia pela Orchestra. O magnifico
silforama universal. Viagem através do mundo das maravilhas.
Projecções elétricas do tamanho natura. Vistas da Italia, França,
Portugal, Brazil, Alemanha, Russia, Hespanha, Inglaterra Belgica
America, Suissa, AStria. Esecuias de Victor Hugo. A ultima exposição
de Paris, et., etc (Diário de Notícias, 1890, ed. 02289, p. 4.).

O “doutor” Faure Nicolay trazia para a noite da Cidade do Rio de Janeiro


o “sucesso” apresentado nos maiores teatros do mundo. Apresentava-se
acompanhado da esposa e da filha, eram uma “trupe” que viajava o mundo
mostrando “misteriosas” cenas. Havia de tudo em seu espetáculo: música,
hipnose, teatro, catalepsia, magias sem aparatos e projeções elétricas,
novidades importadas do velho continente. Um verdadeiro espetáculo de truques
de salão e ilusionismo. Importante destacar aqui o uso do termo “sibyla” para a
“simpática” Rosina Nicolay, seria ela uma cartomante ou advinha? Esse é um
termo que aparecerá novamente quando tratarmos de Madame Thebas.

Outro que fez muito sucesso ao passar pela noite da cidade é o “Professor
Roberth”, mais um europeu que trazia “um programa assombroso” de
prestidigitação. O professor, diziam, fazia jus ao título, pois era além de artista,
“homem da ciência” com trabalhos nas áreas de psicologia experimental e
matemática recreativa, além dos exercícios de memória.
111

Figura 9 - Espetáculo do Professor Roberth (1895)

ROBERTH
O 2º espectaculo dado pelo professor Roberth, ante-hontem, no Lyrico,
agradou ainda mais do que o primeiro, e isto quer dizer que despertou
enorme enthusiasmo.
Servio esta função para fortalecer o juízo que enunciamos a respeito
d’este ilustre artista e homem de sciencia na noticia que demos de sua
estéa: nos seus trabalhos sobre psychologia experimental e
mathematica recreativa, nos exercícios de memoria e prestidigitação é
notabilíssimo o professor Roberth, que reputamos celebridade
européa. Dá ele hoje a penúltima função, e escusa fazer notar que
organizou para esta noite um programma assombroso, cheio de
attractivos, surpresas e novidades (Jornal do Brasil, 1895, ed. 230, p.
5).

Tanto os espetáculos, quanto os livros, “manuais” de prestigitação


continuam aparecendo nos jornais por toda década de 1890. Como podemos ver
em outro impresso de 1898, onde anuncia-se “O Mágico Apparente” com a
revelação dos “pelotiqueiros”:

Figura 10 - Livro O Magico


Apparente
112

O MAGICO APPARENTE
Ou revelação dos segredos dos pelotiqueiros, contendo muitas e
engraçadas sortes recreativas de prestidigitação, passes, visões,
aparições e escamoteações de grandes efeitos e sensação.
Terceira edição, 1 vol. Broc...... 1$500
Eis um livro divertido. Com pouca despeza o leitor perspicaz poderá
fazer variadas sortes de prestidigitação que causam assombro e
espanto a quem não estiver iniado ao segredo de sua manipulação. É
um manual pratico escripto em linguagem ao alcance de todos.
79 RUA DO OUVIDOR 79 (Gazeta de Notícias, 1898, ed. 00255, p. 4).

É importante atentar para onde queremos chegar com essa pequena ida
aos espetáculos de ilusionismo, que eram sucesso no Rio de Janeiro daquela
época. Sem dúvidas Avellar esteve em muitos daqueles teatros, possivelmente
lera alguns daqueles manuais, afinal traziam informações que para ele estavam
em evidência. Quando se viu em uma região “carente” de entretenimento,
pensou em levar para aquelas pessoas, diversões que não “ofendiam a moral e
nem os bons costumes”. Já sabemos que o delegado não achou tão
interessante, impedindo o funcionamento do “Salão”. Não temos mais notícias
sobre a querela, que prometia Avellar não ficaria por menos, nada mais dizem
nas páginas dos jornais.

No entanto, o fato desse interesse de Avellar pelos espetáculos, tal como


a presença significativa da prestidigitação na cidade, nos fala sobre um Rio de
Janeiro imerso nos assuntos do ocultismo, das adivinhações e dos “professores”
cheios de poderes “assombrosos”. Havia demanda para a entrada de Avellar
neste mercado.

Mas, para continuarmos tratando dos “inimigos” que Avellar foi


conquistando pelo caminho, vamos voltar alguns anos, em um momento que fica
claro, que o professor tinha inimizades atentas à sua vida particular. Em uma
nota no Carbonario – Órgão do Povo, em 188646, um desses desafetos de Avellar
se pronuncia criticando a “honradez” do professor. Segundo a crítica, o moço
Avellar não tinha as condições indispensáveis a alguém que se propõe professor.
O escritor afirma que pode provar seu ponto de vista e explica que em outubro

46 Carbonário – Órgão do Povo, 1886, ed. 0025, p. 3.


113

de 1884, José G. de Avellar apresentou-se ao vigário de Santa Rita, pretendia


receber em matrimonio a D. Maria Etelvina. Por ele ser menor de idade, o vigário
exigiu uma licença do juiz. “Então o pai do noivo, falecido há muito, apareceu
talvez evocado por algum espírita, e veio na pessoa do Sr. Vicente autorizar o
Casamento do filho.” A nota segue afirmando que, Avellar assinou o nome do
pai morto como testemunha do casamento: “Profanação das cinzas do finado, e
estelionato perante as leis”. Assinando “A perseguição da família”, o autor ainda
joga aos alunos de Avellar, quão bom seriam eles, aprendendo aquelas lições
dadas pelo professor? E termina dizendo: “Para complementar a instrução o Sr.
Vicente deve ensinar a seus alunos aquela história dos 500$ do tempo de seu
pai”. De que 500$ estaria falando, o denunciante? Alguma dívida, alguma
falsificação? Era um recado ao jovem professor, alguém que não assinava, sabia
de outras histórias e poderia contar a qualquer momento.

Seríssimas acusações ao professor Avellar, estelionato era crime previsto


no Código Criminal do Império (art. 264). Não temos evidências de que o caso
seja real e que tenha virado um processo ou inquérito policial. Avellar iria ainda
encarar a polícia e a justiça algumas vezes, mas aquela questão de falsificar a
assinatura de seu pai não parece ter ido à diante. Uma pessoa próxima, o
suficiente para saber das nuances de um casamento, leva ao conhecimento,
principalmente dos interessados pelos serviços de professor, a falha de caráter
do moço Avellar, que estava iniciando sua carreira como professor de
escripturação no grande “Lyceu de Artes e Officios”. Uma tentativa de prejudicar
sua carreira? O periódico onde foi publicado nos dá uma deixa de quem buscam
atingir. O Carbonário é um jornal que visa falar com as classes baixas, com
aspirações libertárias, em franco diálogo com as políticas republicanas e
abolicionistas47. Ou seja, o mesmo grupo em que circula Avellar e público que
ele parece querer atrair com suas lutas e causas.

Vamos desta denúncia, diretamente ao que parece ser, efetivamente, o


primeiro problema de Avellar com a justiça. Quando em 1901, Avellar inicia o
ano letivo de seu novo empreendimento, O Collégio Rio de Janeiro 48, primeiro

47O Carbonário, 1881, edição 1, p. 1.


48Citado por Noronha Santos como referência em Ensino Particular na Freguesia do Engenho
Velho, especificamente na área do Andaraí Grande (SANTOS, Noronha. 1965, p. 39).
114

instalado na Rua São Leopoldo, depois transferido para Rua Haddock Lobo, foi
em abril acusado de agressão ao seu aluno Manoel Bitencourt49.

No mesmo mês e na mesma delegacia, da denúncia de agressão,


tomamos nota pelo jornal, que o delegado recebeu denúncia de um furto, sofrido
pela Baronesa de Amambahy, com mesmo acusado: Vicente Ferreira da Cunha
Avellar.50 A Baronesa de Amambahy, morava, também na Rua Haddock Lobo,
número 417, até o ano de 1926, ano de sua morte. Uma Baronesa, vizinha de
Avellar o acusava de furto. Diferente do primeiro, neste não sabemos o
encaminhamento do Inquérito, mas é possível imaginar que o professor não
chegou a ir à julgamento, pois nos processos seguintes nada é comentado sobre
essa passagem.

Figura 11 - Inquérito de furto (1901)

Na 9ª Pretoria - “Inquéritos – Acusados Antonio Luiz Parreira e outro. Ao


Dr. Promotor Adjunto. Acusado Antonio de Oliveira. Idem. Sobre furto sofrido
pela Baronesa de Amambahy. Idem Acusado Vicente Ferreira da Cunha Avellar.
Idem” (Jornal do Commercio, ed. 135, 1901, p. 3). Seria Avellar, professor de
alguém na casa da baronesa? Como poderia ele, estar em sua residência para
chegar a ser acusado de furto? Sabemos que Avellar seria preso em 1907 como
“cartomante”, será que a Baronesa era uma consulente sua em 1901, e por isso
teria entrada em sua residência? São todas indagações possíveis. O que
sabemos é que Avellar conquista mais uma inimizade, e que novamente o vemos
circulando entre as altas camadas, mesmo que saindo dela com uma acusação
grave.

49 Inquérito aberto na Delegacia da 9ª Circunscrição, no dia 27 de abril, com base no artigo 303
do Código Penal (agressão).
50 Jornal do Comercio, 16 de maio de 1901, ed. 135, p. 3.
115

Fica difícil saber qual dos dois casos aconteceu primeiro. Pois ao
reconstituir a linha do tempo, vemos que o recorte de jornal sobre o furto, foi
publicado no dia 16 de maio, mas nada foi mencionado de quando a queixa de
furto teria sido registrada. Já, no dia 27 de abril de 1901, Avellar foi acusado por
João José Bitencourt, de agredir seu filho Manoel Bitencourt. O menino era aluno
do Collégio Rio de Janeiro. A verdade é que naqueles dias Avellar ficou
conhecido na 9ª Pretoria.

3.2.1 – Ensino à Pau


Vamos nos debruçar com mais cuidado no processo de agressão ao
menino Manoel. Segundo depoimento do senhor João José Bittencourt, naquele
mesmo dia 27, pela manhã, seu filho Manoel Bitencourt de doze anos, chegou
em casa chorando e com marcas pelo corpo, afirmando ter sido agredido por seu
professor, Vicente Avellar, também Diretor do Collégio Rio de Janeiro. O
Delegado Armindo Vieira, encaminha então o menino ao corpo de delito com os
“doutores em medicina”: Manoel Thomaz Coelho e Sebastião Martins Villas Bôas
Cortes. Os médicos confirmam que havia marcas no menino, no dorso de sua
mão esquerda e no braço direito de forma arredondada, na região escapular
direita uma contusão leve, não havendo, porém, risco de mutilação, morte ou
deformidade como perguntava o delegado ao encaminhá-los o caso.

Além do pai, outras duas testemunhas são ouvidas e confirmam a versão


de João Bitencourt. No dia 30 de abril, é a vez do professor Vicente Avellar depor.

O professor não nega que tenha dado sim três batidas de palmatória na
mão do “endiabrado” Bitencourt. E explica que a pena foi aplicada nele e em
outro menino, de nome Ayres, pois os meninos estavam brigando naquela
manhã. Segundo Avellar, o menino Ayres recebeu pena maior de seis palmadas,
que foram em ambos “aplicadas levemente” e que não deu palmadas na parte
do dorso das mãos do menino e menos ainda em seus braços. Essas marcas
teriam sido causadas pela briga, então?

Voltemos à briga. Avellar explica que o motivo da pena de palmatória para


os dois, foi por estarem brigando, dá uma pena menor ao Bitencourt. E diz ainda
que a briga foi iniciada por Ayres, que partiu para cima de Bitencourt, pois o viu
116

“praticando atos imorais com outro menino”. Bittencourt depois de algum tempo,
já em sala de aula, sai sem ser notado e corre para casa onde faz queixa para o
pai sobre a agressão, mas ou não diz sobre a briga, ou se diz, seu pai ignora o
fato e segue acusando Avellar pelas marcas do corpo de seu filho.

O menino Manuel Bittencourt, um “menino endiabrado”, estava mesmo


tomando uma surra naquela manhã, do colega de classe, Ayres. Entre xingos e
socos, o Diretor do Collégio Rio de Janeiro chegou para apartar a briga e logo
questiona o que era aquela balburdia. A resposta vem de Ayres: “não é a primeira
vez que o pego este, nessas obscenidades com o fulano”. Não sabemos o nome
do terceiro envolvido, obviamente Avellar não ia pôr em risco a perda de outro
aluno. A pena que o diretor aplica ao “imoral” é uma pena menor que a dada ao
defensor da honra do terceiro menino. Talvez o diretor tenha considerado menor
a culpa do ato imoral ao ato de comprar briga. Ou ainda Bittencourt poderia já
estar machucado o suficiente por levar a pior no embate com Ayres. O que
importa é que mesmo tendo recebido uma pena menor, Bittencourt fez questão
de sair escondido da aula, para dar queixa do professor ao seu pai. Será que ele
estava na verdade tentando encobrir seu ato “imoral”?

Por fim, o delegado da 9ª delegacia encaminha o caso ao promotor


público que não leva o caso a diante, afirmando que não havia dolo previsto no
Código Penal, para agressão leve de pais a filhos ou de preceptores a seus
discípulos. Utiliza ainda o caso do diretor do Collégio Salesianno, investigado por
castigar seus alunos com palmatória, mas não acusado pelo Ministério Público
do Rio de Janeiro.

Podemos considerar que é a partir dessa problemática da agressão ao


menino Manoel Bitencourt que Avellar dá um giro de 180° em sua vida. E que,
se ele escapou de uma pena por agressão, provavelmente não escapou da crise
que a repercussão do caso o levou. Visto que a partir de 1902 não vemos mais
notícias do Collégio Rio de Janeiro, nem sabemos da presença de Avellar em
outros colégios. Mas é aí que o professor vai iniciar uma nova carreira, e essa
sim, o levaria à prisão em 1904.
117

3.3 Segredo da Vida, Mistério da Alma.


Antes de seguir em diante, vamos voltar um pouco no tempo, para um fato
que poderia passar desapercebido, mas que nos faz pensar, novamente, sobre
o círculo de convivência de Avellar, desde a década de 1880 e na “guinada” que
deu após a acusação de agressão ao aluno de seu Colégio. Um pequeno recorte
da Gazeta de Notícias nos dá uma pista muito interessante sobre o contato de
Avellar com o “espiritualismo”, para que a gente não ouse pensar que sua
guinada foi aleatória.

Temos, ao menos, uma pista de que, há cerca de vinte anos, Avellar teve
contato com um palestrante sobre o tema “Espiritualismo Moderno”, o Professor
Angelo Torteroli51. A palestra do professor Torteroli foi a segunda sobre o tema,
oferecida no espaço do Imperial Lyceu de Artes e Officios , como parte de uma
homenagem à morte de Luiz de Camões, uma “sessão fúnebre” aconteceria
posterior à palestra. Avellar era orador na ocasião, juntamente com Saturnino
Cardoso (Gazeta de Notícias, ed. 160, 1883, p. 2).

Provavelmente esse não foi o primeiro contato de Avellar com o


“Espiritualismo Moderno”, mas nos serve de parâmetro para pensar a
experiência de Avellar, principalmente a partir de 1902, quando ele vai iniciar sua
aposta na “profissão” de curador. Seguimos agora por essas veredas.

O movimento observado nos jornais inicia em fevereiro de 1902, quando


o jornal O Paiz afirma:

Recebemos anteontem a visita do professor Vicente Avellar, que


nos comunicou haver, em estudos de botânica a que com afinco
se dedica, descoberto um vegetal que produz a cura radical da
coqueluche, da asma e da bronquite, em qualquer de seus
períodos, como o provam diversas experiencias tem feito. O
professor Avellar preparou com essa planta um xarope que vai

51 Afonso Angelo Torteroli (1849 -1928), Espírita Italiano, defensor dos ensinamentos de Alan
Kardec no Brasil. Diretor da Sociedade Acadêmica Deus, Christo e Caridade, fundada no
Império. Diretor do O Renovador Órgão Spirita. Foi tradutor das obras de Kardec no Brasil. Sócio
Fundador da Federação Espírita Brasileira (FEB), organizou em 1881 o I Congresso Espírita
Brasileiro pelo Centro da União Espírita do Brasil. Era opositor de Bezerra de Menezes,
considerado Neo-routanista (místico), enquanto Torteroli se considerava um líder dos
“científicos”. Em 1894 reorganizou o Centro da União Espírita do Brasil, mudando seu nome
para Centro da União Espírita de Propaganda do Brasil, divergindo da FEB em seus princípios e
buscando demonstrar como a FEB estava desvirtuando os ensinamentos de Kardec com
“ilusórias teses católicas de J. B Roustaing” (VALLE, 2010).
118

submeter ao exame das autoridades sanitárias (O Paiz, ed.


6327, 1902, p.1).
.

Figura 12 - Um xarope para cura radical (1902)

Em maio de 1902, vemos o primeiro agradecimento ao professor Avellar


pela “cura alcançada”. No Jornal do Commercio, na mesma página, vemos o
agradecimento e um anúncio do “Grupo Spirita Jesus Nazareth”. Vamos ler os
dois em paralelo e notar um detalhe que faz tudo ganhar uma nota que chega a
ser cômica:

Figura 14 - Agradecimento ao Figura 13 - Grupo Spirita Jesus


professor Avellar Nazareth

Ao Professor Avellar Grupo Spirita Jesus Nazareth


Gratidão RUA DO SENADO N 29
Venho publicamente agradecer a cura Sessões nocturnas das 7 às 8 hrs nas
importante feita pela imposição de segundas e sextas-feiras; sessões
suas mãos em uma quebradura que particulares da 1 hora às 4 da tarde,
tinha meu filho. O professor Avellar é dias uteis; curas de todas as moléstias
digno de toda a admiração. pela imposição das mãos.
Deus lhe dê muitos anos de vida. O secretario do Grupo Eduardo de
Mme. Josephina. Queiroz.
Moradora à rua do Senado n. 29.
119

Notem, para nós que sabemos que o Grupo Jesus Nazareno e o Professor
Avellar “são a mesma pessoa”, é interessante ver que o endereço de Mme
Josephina e do Grupo são o mesmo. Ou seja, ou Josephina mentiu seu endereço
para não se comprometer ou, na verdade, o agradecimento e o anúncio partiram
de uma mesma pessoa: Vicente Avellar. A partir deste momento os anúncios e
os agradecimentos só aumentam. Avellar parecia mesmo estar fazendo sucesso
com a imposição de suas mãos curadoras.

Durante todo o ano de 1903 pode-se encontrar Avellar apresentando seu


“novo método de cura” nos jornais, e o lançamento de sua “valsa” A Fé. Jornal
apreendido no inquérito de 1904 como prova. No Jornal O Fluminense de
fevereiro de 1903, afirmam ter recebido junto a outras obras o exemplar de A Fé
“novo órgão dos dogmas do occultismo, dirigido pelo professor Vicente Avellar e
colaborado pelas professoras Julia Garcia Rosa e Augusta Petti, doutores
Perminio Carneiro Leão e João de Assis Leal e Felisberto Mignot”. Voltaremos
ao A Fé quando formos tratar das obras produzidas por Avellar. Seguimos
rastreando a mudança de profissão de professor à Curador, por enquanto.

No aniversário de Avellar em 1903, um grande evento é realizado em


comemoração da data, onde podemos ler os nomes de alguns que estão com
ele na construção do A Fé. Vemos como a influência do professor e de seus
companheiros é grande, não só pelo tamanho do festejo, mas pela mobilização,
até mesmo de uma banda policial, isso sem mencionar a nota consideravelmente
grande no Jornal do Brasil:

COMPRMENTOS. [...] foi anteontem alvo de uma manifestação,


por parte de seus amigos o professor sr. Vicente Avellar, por ser
dia de seu aniversário natalício. Às 6 horas da tarde partiram os
manifestantes do largo de S. Francisco de Paula, em bondes
especiais, em demanda da residência daquele professor, sendo
crescido o número de senhoras e senhoritas, indo também a
banda de música do 2º batalhão da brigada policial. Chegada à
residência do manifestado, onde já se achavam muitas pessoas,
usou da palavra a exma. professora d. Augusta Petit, que lhe fez
a entrega de uma linda corbeille de flores e de outros mimos. Em
seguida o menino Octavio Avellar entregou a seu pai, em seu
nome e no de seus irmãos, uma delicada lembrança,
descobrindo em seguida seu retrato. Todos os presentes foram
recebidos carinhosamente pelo professor Avellar e sua exma.
esposa, aos quais ofereceram deliciosa mesa de doces, sendo
então trocados vários brindes. O nosso companheiro, ali
presente recebeu inúmeras atenções do manifestado e da
120

comissão organizadora, composta das exmas. sras. Augusta


Petit, Anna Hamms e Julia Garcia da Rosa. Entre as senhoras e
senhoritas presentes, notavam-se as seguintes: Angelica
Machado, Anna Ribeiro, Rosalina Gonçalves Fialho, Augusta
Elisa do Valle (Jornal do Brasil, ed. 097, 1903, p. 3).

Avellar vai ficando cada vez mais ousado em suas afirmações de cura.
Sobre sua outra e mais antiga profissão nada se vê nos jornais, nem mesmo
seus anúncios de scripturação que por tanto tempo o acompanhou.

Curas garantidas pelo novo sistema do conhecido professor


Avellar, que tem salvo até hoje 1722 pessoas desenganadas;
processo garantido para a cura da tuberculose, consultas 8 ½ às
10 horas da manhã nas terças e sextas-feiras à Rua Senhor dos
passos n. 192ª (Jornal do Brasil, ed. 060, 1904, p. 02).
Em maio de 1904 Avellar dá então mais um passo na nova profissão, o
passo em falso que o levaria à prisão no mês seguinte:

Em presença de grande numero de pessoas, foi inaugurado


ante-hontem o Laboratorio Homeopatico dos Srs Avellar &
Bastos, á rua S. Christovam. Ao champagne, o professor Avellar
saudou as pessoas presentes, fazendo votos pela prosperidade
da mesma pharmacia, seguindo-se-lhe o pharmaceutico, Sr.
Bastos, que brindou á imprensa (Jornal do Brasil, 31 de maio de
1904, ed. 152, p. 5).
Sabemos que o professor Avellar é um empreendedor e desta vez ele se
une ao farmacêutico Affonso Corrêa Bastos, que seria o responsável pelo
Laboratório Homeopático Avellar & Bastos. Sabemos com o processo criminal
de Avellar que esse laboratório está diretamente atrelado aos atendimentos que
executa no espaço da Sociedade Scientífica de Estudos Filosóphicos Jesus
Nazareno, e às curas “prodigiosas” por imposição das mãos.

3.3.1 A Sociedade Scientífica de Estudos Filosóphicos Jesus Nazareno.

O que sabemos sobre a Sociedade dirigida por Avellar é fruto da


investigação policial que se deu em 1904. Através dos jornais temos acesso
apenas aos relatos de cura que operava o professor, passando por vários
endereços: Rua do Senado n. 29, Rua Senhor dos passos n. 192ª , até chegado
121

ao momento do flagrante do Inspetor de Justiça em sua sala, na Rua São


Cristóvão, 201.

É a partir da descrição do Inspetor de justiça e das “evidências” reunidas


pelo mesmo, que conseguimos reconstruir aquele espaço e buscar compreender
um pouco mais da experiência religiosa, “ocultista”, “científica e filosófica” de
Vicente Avellar. Vamos iniciar então pela descrição do Inspetor Barroso, o
depoimento das testemunhas e do próprio Avellar, depois passaremos aos
documentos produzidos por Avellar, o Regulamento de sua Sociedade, elencado
como evidência, o periódico A Fé, reunido também como evidência no Processo,
o Estatuto da Sociedade, apresentada pelos advogados de Avellar e por fim,
iremos à produção de 1909 do livreto “O Occultismo” e as curas
assombrosas produsidas pelo conhecido professor Vicente Avellar, que
como veremos, é uma espécie de resposta do professor ao caso de 1904.

Conforme seu depoimento ao subprocurador dos Feitos da Saúde


Pública, o Inspetor Sanitário Dr. Barroso, afirma que se dirigiu à farmácia da Rua
de São Cristóvão, 199, no dia 18 de junho às 3 horas da tarde e observou que
muitas pessoas saiam do sobrado de número 201, para a farmácia no térreo.

De pronto, o doutor Barroso interrogou a senhora Adelaide Drummond, na


presença das testemunhas Luiz Rodrigues de Figueredo e Frederico Martins dos
Santos. Adelaide declarou que acabara de se consultar com o “Professor Vicente
de Avellar”. Segundo ela, Avellar era morador do local e curava “por meio do
espiritismo e receitava também”.

A senhora Adelaide, foi entregando tudo ao doutor, mostrando o frasco


que trazia em suas mãos, afirmou que aquele era o remédio receitado pelo
professor Avellar e que adquiriu na farmácia do andar térreo. Com essas
informações Barroso subiu ao sobrado onde foi recebido por Vicente Avellar,
Manoel Luiz Canosa e Frederico Martins Santos (o mesmo que ele havia dito ter
testemunhado na farmácia).

Primeiro, chegando a uma antessala, Barroso, passa depois a uma sala


de frente ampla, onde bancos e cadeiras se enfileiravam paralelamente
alinhados e de frente para uma mesa colocada sobre um estrado. As paredes
deste espaço que na descrição de Barroso muito se assemelhava a uma sala de
122

aula, estavam repletas de quadros com imagens, retratos, cartazes com


agradecimentos de curas e o Estatuto de uma sociedade científica, todos
documentos recolhidos como evidências da denúncia que promoveu contra
Avellar, nos artigos 250 e 251 do Regulamento Sanitário, além dos artigos 156
e 157 do Código Penal. Ao fim deste depoimento, três testemunhas são
arroladas parar depoimentos: Luiz Rodrigues de Figueiredo. Frederico Martins
dos Santos e Adelaide Drummond (Inquérito 0666, doc. 04691).

“Achava-se este papel pregado à parede da sala do Ins. V. Avellar. Rio de


Janeiro 18 de julho de 1904. O Inspetor Sanitário Dr. Barroso. Testemunhas –
Luiz Roiz de Figueredo. Antonio Gomes.

Figura 15 - Prova no Processo de 1904

Sociedade Scientifica de Estudos Filosophicos


- Jesus Nazareno
Aviso -
As pessoas que desejarem consultar queriam entender-se na
sala da frente com [P.] Snr. secretario o qual dará as explicações
necessarias.
V. B. Só poderão entrar no consultorio, as pessoas que tiveram
consentimento previo do srn. Secretario.
Consultas todos os dias uteis das 12 horas as 4 horas da tarde.
123

Rio de Janeiro [8] de janeiro de 1904.


O Secretario
Manoel L. Canosa

(Inquérito 0666, doc. 04712).

Junto à fotografia de um homem uma breve explicação do quem era:


“Achava-se em tratamento desenganado por todos os médicos”. E a elaboração
da prova afirmava: “Achava-se esta fotografia com o cartão inferior e seus
dizeres na sala do prof. Vicente Avellar. Testemunhas Luiz Roiz de Figueiredo e
Antonio Gomes”.

Figura 16 - Fotografia de homem desconhecido (1904)

Sem fé não há salvação.


Deus não se submette à provas.
Quem não for crédulo não se consulte.
Quem não tiver paciência, só póde perder.
A Deus nada é impossível
Fóra da Caridade, não há salvação.
Aquele que procura enganar, sahirá enganado.
124

Deus póde, quer e vence tudo.


Avellar (Inquérito 0666, doc. 04722).

Dentre os documentos apresentados como prova, uma fotografia se


perpetua. Quase apagada pelo tempo a fotografia mostra um homem branco de
cabelos escuros e bigode farto. Em um papel que acompanhava a foto onde
pode ser lido: “Acha-se em tratamento desenganado por todos os médicos”, uma
prova cabal das atividades de Avellar. No Inquérito foi dito: “Achava-se esta
photografia com o cartão inferior e seus dizeres na sala do Prof. Vicente Avellar.
Rio de Janeiro 18 junho de 1904. O Inspector Sanitário Dr. Barroso.
Testemunhas - Luiz Roiz de Figueredo. Antonio Gomes” (Inquérito 0666, doc.
04706).

Figura 17 - Máximas (1904)

No Inquérito, Dr. Barroso afirma que o impresso estava pregado à parede


da sala do “D. Vicente Avellar” e tem por testemunhas, novamente Luiz Roiz de
Figueredo e Antonio Gomes. Todas as demais “provas” arroladas pelo Inspetor
Barroso são testemunhadas pelos mesmos senhores Luiz e Antonio.
125

Entendemos mais adiante no Inquérito quem é o senhor Luiz Roiz de Figueiredo,


quando este aparece encabeçando uma lista de moradores da Rua São
Cristóvão que testemunham afirmando serem verídicas as informações dadas
por Barroso:

Nós abaixo assignados, moradores á rua S. Christovão,


declaramos que todos os dias [ilegível] entrar no n° 201 da rua
S. Christovão, casa da residencia do professor Vicente Avellar,
grande numero de pessoas e sahirem pouco tempo depois; que
muitas d’estas pessoas, ao descerem o sobrado entram na
Pharmacia do andar terreo da mesma casa, n° 199, e d’ahi
sahem conduzindo frascos ou pequenos embrulhos; que
sabemos por seu publico e notorio que essas pessoas vão se
consultar com o professor V. Avellar sobre molestias em suas
pessoas, conhecidos ou parentes e a quem elle promette e
garante curar por meio de invocações espiritas ou
medicamentos de pharmacia.
Rio de Janeiro, 18 de junho de 1904.
Luiz Roiz de Figueredo
Antonio Paggi de Figueredo
Dr. [Orear] Publio de Mello
A saga de Dª Bernardina Rois de Azevedo Coutinho
Antonio Paggi de Figueredo
Negociante - Antonio da Silva Souza Pinto
Açougueiro - João Pereira da Silva
Emiranda - Arogo de José Cebanto, Narciso Alves Pinto Guedes
Padaria - Domingos dos Carlos
Declaramos que são verdadeiros as assinaturas supra. Ao
inspetores sanitarios De. Barroso.
Dr. Joaquim Franco. Barrozo Nunes (Inquérito 0666, doc.
04700).

Existia uma vizinhança muito disposta a contribuir na denúncia que


Barroso estava iniciando. Assim como outras testemunhas na ocasião. Aquelas
que são intimidas pelo Doutor Elizeu Gerson Tavares, Juiz dos Feitos da Saúde
Pública são: Adelaide Drummond, moradora da Rua Travessa Onze de
Setembro no Meyer, Luiz Rodrigues (Roiz) de Figueiredo e Frederico Martins
dos Santos e o próprio Vicente Avellar. No entanto, o oficial de Justiça Joaquim
do Nascimento Natal, afirma que não foi possível entregar as intimações da D.
126

Adelaide Drumond, nem a da testemunha Frederico Martins, pois nenhum dos


dois residiam de fato nos endereços que informaram ao Inspetor Barroso na
ocasião do fato. Apenas Luiz de Figueiredo e o réu Vicente Avellar foram
encontrados em seus endereços.

Vale ressaltar que Avellar nega, em juízo, o fato da acusação, ou seja,


que praticasse “medicina ilegal” e “espiritismo” naquele espaço visitado pelo Dr.
Barroso. Vamos observar durante todo o Processo a má administração do caso.
Havia muitos indícios levantados pelo Inspetor de Saúde, no entanto não houve
uma organização da acusação, como a defesa vai demonstrar, principalmente
quando recorre no Supremo Tribunal, depois da condenação de Avellar a 7
meses de prisão celular e pagamento de multa de quinhentos e oitenta e três mil
trezentos e trinta e três (583$333) réis, no dia 13 de julho de 1904.

4.3.1.1 – Regulamento
A organização da instituição de Avellar é notável, assim como a
incapacidade da defesa de transformar esses indícios em provas suficientes
para manter a pena em instancia superior. Veremos mais detidamente o
Regulamento da “Sociedade Scientífica de Estudos Philosóficos Jesus
Nazareno”, buscaremos compreender melhor as ideias de Avellar e seu grupo
em 1904 (Inquérito 0666, doc. 04717).

Figura 18 - Cabeçalho do Regulamento

Artigo 1°

Quem não tiver fé e paciencia não obtem coisa alguma porque


Deus não submete a provas nem imposições dos irmãos da
127

terra, com fé e paciencia tudo se obtem do pai piedoso, meus


caros irmãos quando nós vamos pedir a Deus um favor em
primeiro lugar pedimos perdão das nossas culpas para sermos
perdoados e podermos obtermos os nos desejos.

Antes de qualquer coisa, salta aos olhos os conceitos cristãos que


envolvem a experiência de Avellar. Nem me refiro ao nome de sua Sociedade,
pois sabemos que os nomes são colocados de maneira a despistar a própria
repressão policial. Mas ao lermos logo no primeiro Artigo do regulamento interno
da Sociedade verificamos os conceitos de culpa e perdão, paciência e fé, assim
como a total entrega dos desejos pessoais à Deus. É um Deus poderoso, que
não se submete a provas nem imposições.

Quando pensamos que Avellar estava ali tratando de curas, onde ele é a
ferramenta da cura, é interessante alertar que os milagres dependem da fé, da
paciência e do perdão de Deus para as culpas. E fica um alerta aos que quiserem
“provas”, Deus não aceita imposições.

Artigo 2°
Tudo e qualquer irmão que não se portar convinientemente no
recinto deste templo será pela 1° vez admoestado e na
reincidência será, se for socio ficará suspenso por um mez e se
o não for será convidado a retirar-se.

O controle do grupo parece ser fundamental para a manutenção daquela


Sociedade. Além de verificarmos que há uma diferença no tratamento de “sócios”
e “não-sócios”. Mais adiante o regulamento trata de forma mais específica o
comportamento esperado de seus frequentadores.

Artigo 3°
As consultas para os sócios são meio dia até 1 hora, depois
dessa hora não se aceita reclamação alguma e para os que
o não são da 1 as 4 horas da tarde.

É importante notar como o foco do atendimento parece mesmo estar em


quem não é associado, visto o tempo disposto entre atendimento de sócios e
128

não-sócios (potenciais sócios?). O alerta para que as reclamações feitas depois


do horário reservado aos sócios, não seriam aceitas, demonstra que havia
descontentamento com essa organização e que ao menos uma vez houve
reclamação por parte de algum sócio que não recebeu o atendimento que
gostaria.

Artigo 4°
As sessões de estudos praticos e de mediuns nas [ilegível] feiras
começando as 6 horas da tarde, sendo que aquelle que não
estiver no recinto até as 7 horas noite será vedada a entrada.

Havia um dia voltado para estudos práticos e de médiuns, infelizmente


não há mais pistas, no regulamento sobre o que estudavam, apenas que eram
realizados estudos divididos entre “práticos” e de “médiuns”, seria um estudo
teórico em oposição ao prático? Leituras de obras ocultistas ou espíritas? E a
prática, estaria ensinando aos seus sócios, como também operar curas pelas
mãos? Aqui não temos como responder estas questões, o que sabemos é que
há um grande rigor com esses “médiuns”, ou “sócios”, como já vimos desde o
primeiro artigo do regulamento, neste é reforçado através do compromisso com
o horário. O estudo se dava depois do horário comercial, e de atendimento dos
“não-sócios”, em um dia específico da semana, o que demonstra que os sócios
deveriam estar na sede da sociedade ao menos uma vez na semana e se
quisesse ser atendido deveria chegar no início da tarde, ficando até o início da
noite quando então se dariam os estudos. A organização da Sociedade é
criteriosa e estipula regras bem claras aos seus membros, determinando
também as penas, caso não fosse cumprido o estipulado.

Artigo 5°
E expressamente prohibido conversar durante as sessões e
tratar-se de assumptos estranhos a nossa afim de não perturbar
os nossos trabalhos.
129

Começamos a compreender melhor o tipo de comportamento ideal


durante as sessões. Não deveria haver conversas e nem tratar de assuntos
“estranhos” para não atrapalhar os trabalhos, logo não havia um incentivo na
construção de diálogos e uma séria reprimenda aos assuntos “estranhos”. Seria
uma preocupação com a organização de divisões dentro da Sociedade, ou o
receio de serem fomentados questionamentos às práticas ali desenvolvidas?

Artigo 6°
Não é permitido trazer crianças menores de 7 annos assitirem
as sessões de estudos praticos as Quarta feiras.

No artigo seis do Regulamento conseguimos resgatar que as sessões de


estudos práticos são nas quartas-feiras e que era proibida a participação de
crianças menores de 7 anos. Sete é um número muito específico, será por
alguma motivação espiritual, que essas crianças não podiam participar, ou é
mais uma forma de controle das sessões, para que não houvesse distrações?

Artigo 7°
Pedimos aos senhores assistentes que por occasião das
sessões conservarem-se em seus lugares, e os que estiverem
em pé não se collocarem na frente dos que estão sentados.

No artigo sétimo temos enfim a dimensão do Regulamento. Até aqui


parece ser dirigido prioritariamente aos sócios, mas trata também dos “senhores
assistentes”, que antes são citados como “não-sócios”, eles não deveriam se
deslocar durante as sessões, conservando-se em seus lugares, e os que
estiverem de pé não devem se pôr na frente dos sentados. Se considerarmos a
descrição do Inspetor Barroso para o Espaço, em uma sala ampla com vários
bancos enfileirados paralelamente, podemos pensar que o espaço contemplava
muitas pessoas sentadas, mas mesmo assim, existiam aquelas sessões em que
algumas pessoas ficavam de pé, o que nos faz pensar que a procura pelas curas
do professor Avellar eram mesmo numerosas.
130

Artigo 8°
As mensalidades dos senhores. socios serão pagas
semestralmente bem assim dar a suas verdadeiras residências,
e caso de mudanças deixarem n’esta secretaria a sua nova
residencia.

Há uma mensalidade que deve ser paga pelos sócios, não é mencionado
o valor, mas deve ser pago semestralmente. Muito interessante também é o
pedido pela informação da “verdadeira residência”, alguns sócios buscavam se
proteger dando uma “falsa residência” ou havia medo naqueles que
frequentavam a Sociedade? Reforçavam que o endereço deveria ser atualizado
em caso de mudanças. Qual seria o interesse em ter o controle destas
informações sobre seus sócios? Poder encontrá-los em caso de necessidade?

O Regulamento é assinado pelo “O Secretário” que sabemos por outras


documentações reunidas por Barroso que se trata de Manoel Luiz Canoza, que
estava presente e recebe o Doutor Barroso na ocasião de sua batida no Sobrado
201. Apesar de afirmar que foram encontrados “Estatutos” no ambiente, e
elencá-los entre as provas, não há um Estatuto entre os documentos do
Inquérito, somente o Regulamento como apresentamos. Os Estatutos são
apresentados à diante pelos advogados52 de defesa de Avellar, quando reúnem
provas de sua inocência.

4.3.1.2 – Estatutos da Sociedade Beneficiente Scientífica e Artística Jesus


Nazareno

Estatutos
da
Sociedade Beneficiente Scientífica e Artistica
Jesus Nazareno

52Sr. Frederico Augusto Borges, deputado pelo Ceará a partir de 1891 e Dr. Joaquim Eduardo
Avellar Brandão formado pela Universidade de São Paulo em 1884, com o sobrenome Avellar é
possível levantar a possibilidade de ser um familiar.
131

Sociedade fundada o anno p. passado sob os [ofícios] do


Professo Vicente Avellar, tem por fim o seguinte: Propagação da
doutrina de Jesus. O [?]lho-socorros beneficentes taes como
medicos, pharmacia [?]ta, advogado, mantendo aulas de linguas
e sciencia filhos dos associados e bem assim em curso especial
de declamação esgrima e musica. A sociedade é obrigada [?]ue
possa fundar uma caixa beneficiente para socorrer a [?]dez, a
viuvez e a orphamdade. Contando já em seu seio [?]2
associados de ambos os sexos.
A directoria compõe-se de 6 membros sendo 1 Presidente, 1
Tesoureiro, 1 Procurador, 2 Secretarios e 1 Bibliotecario, [?]anto
mantem em seu seio uma biblioteca de li[?]naes estrangeiros e
naionais.
Attribuições dos membros da directoria são as mesmas já [?]as
e estaluidas pelas co-irmañs.
Semanalmente haverá uma sessão pratica onde se fará a
doutrina de Jesus e annualmente haverá [eleição] para os
cargos da directoria. Estão funccionando com regularidade as
aulas de portugues e francez e bem assim as de[?] e espada nas
quaes estão matriculados 8 alunos.

Condições Especiaes
A sociedade compõe-se, de numero illimitado associados de
ambos os sexos sem excepção de os quaes serão acceitos
depois de approvados sociado pagará mensalidade de 2000
dois mil por trimestre adiantados gosando de todas as [?]gens
acima alludidas.
O associado que se atrasar 3 mezes sem pré[?] ficará suspenso
até ulterior, deliberação.
Ao dia 25 de Dezembro a cada anno proce[?] distribuição de
esmolas aos indigentes e de Jesus a pobreza envergonhada.
O associado que propuzer 20 socios quitos [?]to ao titulo de
benemerito e ficará ipso-factor[?].
As consultas são diarias das 11 da manhã a 1 da tarde excepto
aos domingos.
São inadmissiveis conversas sobre política o qu[?] soaes.

Estes estatutos foram lidos descutidos e approvados [?] de


Assembleia Geral aos 23 de Janeiro do anno de 1904.
Rio de Janeiro 23 de Janeiro de 1904.
A Directoria

F. da Cunha Avellar Presidente


132

Ferreira da Silva Vice-Presidente


Daniel G. Bastos Tesoureiro
Afonso Correa Bastos 1° Secretario
Manoel Luiz Camara 2° Secretario
Linhares Bibliotecario

Procurador
Antonio d’ Araujo Fontes

Membros do Conselho
hina Terra
Barros
[?]lia do Amaral
[?]hedes de Queiroz
[?]cisca Ramos
[?]ria Leopoldina de Faria Homem
[?]colina
[?]lina Maria d’ Oliveira
[?] de Faria Machado
[?]co da Silva Cardoso
Maria Elnia Hamm
[?]na Augusta Ramos da Fonseca

Socios Fundadores
Elza Augusta Ramos da Fonseca
Alfredo Ferreira Chaves
Clotilde Nob[u]
Maria Conceição de Mello
Olympia Catarina
Antonio de Araujo Fontes
Manoel da Costa Rios
Antonio Xavier
Francisco Puitino de Lemos
Thomaz de Freitas Canto de Mello
133

Thomaz da Rosa Dutra


Maria Santa
Domingos Bonifacio de Souza
Manoel Nicarcio Bizerra
Luiz Manoel Ferreira
João Bittencourt
José Firmino Lopes
Luciano Pereira d’ Almeida
Antonio Mendes d’ Almeida
Arth[ur] Jacone d Lima
Theresa Maria Christina
Julia Mendes
Antonio José Antunes Guimarães
Antonio Gomes d’ Almeida
Daniel Goncalves Bastos
Goncalo da Silva Ferreira
[?]lino da Silva Correia
[?]tonio Alves Machado
[?]te Guimarães
[?] Guimarães
[?]tho Gomes Valadão
[?]tino da Silva Campos
[?]uim Luiz Gonzaga
[?] Guimarães
[?] Corinha
[?] Cardoso
[?]din Ferreira da Silva
[?] Ramos
[?]laide da Conceição
[?]naltros Cruz
[?]ia Adelina de Sousa
[?]lima Placida Gomes
[?]tacio Belfort
[?]to Seixas
134

[?]da Silva
Faria Homem
[?]rolina de Faria Homem
[?]ia Vieira da Rosa
[?]ria José da Rosa
[?]lina Vlladão
Maria Carolina Valladão
Leonor Carolina Valladão
Amelia da Silva Montenegro
Francisco Ribeiro de Queiroz
Maria Barbosa Lopes
Maria Santos
Emilia Rosa d Oliveira
Virginia Lima
Candida Ramos
Julia Campos
Olympio Melita Ferreira Jemi

Professores em exercício
Romualdo de Alcantara - Portuguez e Franc
Vicente Avellar - Arithemetica e Inglês

Medicos em exercicio
Dr. Silva Brito - [Homeoparka]

Cirurgião Dentista
Francisco J. Ferreira Serpa Junior
A.F. de Sá Rego Advogado

Alunnos Matriculados nas aulas que já estão ju[?]


Vicente de Avellar Filho
Octavio Avellar
135

Horario das aulas


Portuguez e Francez - 2ª 5ª e Sabbados das 8 as 10 da manhã
Mathematica e Inglez - 2ª 4ª e Sextas das 12h as 2 da tarde
[?]mação e esgrima 3ª 5ª aos sabbados 8h as 10h da noite

Horario Medico
Das 11 as 3 horas da tarde
8h as 9h da manhã

Horario do Cirurgião dentista


Das 12 a 1 da tarde

Observação Final
O Presidente, Secretario, e Bibliotecario permaneceram
diariamente das 12h da tarde hora que finalizarão os traba[?]
sociedade.
[ilegível] 18 de Janeiro de 1904.
[ilegível] 1° Secretario

Muito diferente do Regulamento levado como prova no dia da batida, o


Estatuto apresentado pelo Advogado de defesa, parece ter sido produzido,
justamente para compor provas de que o espaço da “Sociedade Beneficiente
Scientífica e Artistica Jesus Nazareno”53 é um espaço de oferecimento de
benefícios variados aos “associados”. Logo de início especificam o objetivo da
Sociedade: “Propagação da doutrina de Jesus”, o que vem reforçar a ideia do
nome Jesus Nazareno como uma forma de “despistar” o que de fato acontece
naquele grupo, mesmo que as ideias sejam, mesmo, cristãs, o nome é
intencional.

Neste documento temos acesso a um valor pago, trimestralmente, para


ser associado, o que não garante que seja o real valor, visto que é um documento
com a intenção de favorecer a defesa. São oferecidos aos membros, aulas de
diversas disciplinas, atendimentos com um médico homeopata e um cirurgião

53 O nome foi modificado para tirar qualquer referência ao Espiritismo.


136

dentista, há ainda advogado à disposição dos membros e entre os cargos temos


a presença de um bibliotecário o que deixa a ideia de que há uma biblioteca à
disposição dos membros, uma grande pena não ter chegado a nós os títulos
disponíveis.

Chama muita atenção a lista que compõe os membros do conselho e os


fundadores, uma lista bem grande, mas ao olharmos os alunos matriculados nos
cursos oferecidos temos apenas dois nomes muito conhecidos: Vicente de
Avellar Filho e Otávio Avellar, filhos do acusado. Como, com uma lista de
membros tão prodigiosamente grande e com tantos benefícios, apenas os filhos
do Diretor ocupam as carteiras para aulas?

Por fim, a data de assinatura dos Estatutos diz ter sido em 18 de Janeiro
de 1904, no entanto, sabemos que desde maio de 1902 o “Grupo Spirita Jesus
Nazareth”, já estava atuando na Rua do Senado, n. 29, mas em outros moldes,
principalmente sem a presença do Laboratório, fundado em maio de 1904. Era
interessante, mostrar que era uma instituição recente, mas anterior ao Decreto
5.224 que aprovou o Regulamento Processual da Justiça Sanitária, justamente
a legislação que direcionou o Dr. Barroso até a Rua São Cristóvão naquela tarde
de sábado.

3.3.1.3 Listas de Apoio


Seguindo o material de defesa encontramos outras duas listas de nomes.
Na primeira é uma resposta à lista de vizinhos de Avellar que afirmavam ao Dr.
Barroso que o professor medicava e atendia com curas “todos os dias”. Oito
“negociantes estabelecidos” em São Cristóvão, assinam sem nenhuma
informação sobre seus negócios ou mesmo endereços:

[?] abaixo assignados, negociantes, estabelecidos [?] de São


Christovão quarteirão, entre Francisco [?]nio e Duque de Pax,
declaramos por esta e muitos amente, que conhecemos o Snr.
Professor Vicente Ferreira da Cunha Avellar, morador na
mesma, no predio n°201 ha quasi dois anos, como homem
cumpridor de seus deveres, e incapaz de ultrapassar, os limites
da moral, sobre qualquer ponto [?]sta.
137

Sabemos tambem, que é um cidadão prestimoso humanitario, e


bem assim, um exemplar chefe de familia, qualidades estas, que
muito o abonam, desafronta, de qualquer attentado, sabemos
mesmo Snr. nunca receitou.
Rio de Janeiro 23 de Junho de 1904
Affonso Corrêa Bastos
Manoel José Martins
Antonio Pedro
Ramon Perez
Jese Manoel Fonseca
A. S. Souza Pinto
Luiz Martins [P]osta Franco
Celestino Pontes Garcia

Rio de Janeiro 12 de Julho de 1904


Dr. Frederico A. Borges

A outra lista é mesmo um “abaixo-assinado” dos sócios da “Sociedade


Beneficentes e Scientifica Jesus Nazareno”, dizendo-se “feridos” pela violência
da autoridade sanitária do 7º distrito, que:

inapropriadamente arrancou quadros, inutilizou papeis,


quebrando cadeiras, ameaçando de prisão nosso presidente,
vamos levantar bem alto o nosso protesto diante de tamanha
selvageria praticada por essa atrabiliaria autoridade, que será
punida depois, de nos indenisados prejuizos causados pelo Juiz
competente.

Rio de Janeiro, 22 de Julho de 1904


Ricardo Joaquim Pinto
Joaquim de Souza [Vally]
Domingos M. de Oliveira [Lemitana].
Thomás da Rosa Dutra
Joaquim Luiz Gonzaga
Mario Villeta de Barros
Antonio Dantas Vieira
[Antonio] Mendes Campos
138

Calicote Guimarães
Athemar Alves da Silva
Alzira Guimaraes
Francisca Goulart
Luiza Alves da Silva
Manoel Dalnim de Saude
Alberto Lima
Vargeno [Lima]
Jacintho [Gome] Valladao
Alvaro Gomes Valladão
Albertina Coimbra
Guiomar Maria Guedes
Guimar Ferreira
Elvira Luiza da Conceição
João Martins de Queiroz
Francisca Ribeiro de Queiroz
Prachedes Maria de Queiroz
Izidora Maria da Conceição
Manoel Garcia Pereira Junior
Anna Hamm
Maria Santos
Julia Mendes
Manoel de Almeida Borges
Constancia Rodrigues
Amelia de Jesus [Vazén]
Cecilia Mendes
[Laurindo] Frederico Gomes
Thomas de Freitas Couto Mello
Amelia da Silva [Vellez]
Hespandria H. dos Santos
Alice Barro
Maria Candida
Josepha Monteiro dos Santos
Antonio da Costa Pinto
139

Amelia Correia Coelho


Jose Pereira Leite [Junior]
Affonso [Correia] Bastos
Manoel Luiz Canosa
Antonio de Araujo Fontes
Celina Coimbra
Helena Coimbra
Maria Coimbra
Maria Linhares Rodrigues
Mariano [Saus] Serantos

Rio de Janeiro 12 de julho de 1904


Dr. Frederico [ilegível] Borges

São ao todo cinquenta e dois membros que assinam o ressentido protesto


à violenta batida no espaço da “Sociedade Beneficente”. É interessante notar
que no dia 18 de junho Dr. Barroso faz a “batida” na Sociedade Scientífica
Filosóphica Jesus Nazareno, já nos dias 22 e 23, listas são organizadas para
contrapor as evidências levantadas pelo inspetor, listas que são utilizadas
apenas em 12 de julho quando o advogado apresenta o pedido de revisão do
processo. Há uma mobilização rápida, feita por um advogado renomado, afinal
era um deputado na Capital o Dr. Frederico Augusto Borges, mas nada disso
impediu o curso da condenação nas primeiras instancias.

3.3.1.4 Resultados do Inquérito de 1904

O Processo durou mais de um ano, Avellar foi condenado em 29 de junho


de 1904 pelo Juiz de Feitos da Saúde Pública ao pagamento de multa prevista
no “art. 250 e § único, art. 251 do Regulamento Sanitário vigente” no valor de
689 mil 433 reis, pagos cerca de um mês depois.
140

Em 17 de outubro a conclusão de sua condenação o encaminhava à Casa


de Detenção “afim de cumprir a pena a que foi condenado”: sete meses de prisão
celular. Avellar seria julgado novamente, em agosto de 1905 quando foi
absolvido pelo Supremo Tribunal Federal que considerou as provas
insuficientes, principalmente sobre as testemunhas que não compareceram para
depor. No entanto, entre a primeira condenação e expedição de prisão em
outubro 1904 e sua absolvição em agosto de 1905, Avellar já havia cumprido seu
tempo de pena. Como Gomes (2014) nos diz ao tratar do processo de Avellar e
sua análise penal da criminalização do Espiritismo, a “morosidade” da justiça é
notória, não apenas no caso de Avellar.

Mas vamos compreender um pouco melhor o que Avellar fazia enquanto


estava respondendo ao processo. Em 10 de julho quando seu advogado está
reunindo material para contrapor a acusação, Avellar põe no Jornal do Brasil o
seguinte comunicado:

O professor Avellar continúa como sempre á disposição dos


seus numerosos amigos e clientes para os misteres da vida
practica, consultas sobre toda e qualquer questão commercial,
magistral ou forense, no consultorio da Sociedade Beneficente
Jesus Nazareno, á rua de S. Christovam n. 201, sobrado, das
11 ás 4 da tarde: gratis aos pobres.

Não víamos anúncios onde tratava de assuntos comerciais desde


fevereiro de 1902, este anuncio aparece em hora oportuna, primeiro para dizer
aos seus clientes, que sabiam o real tipo de serviços que oferecia que ainda
estava na ativa, mas também produzi provas que lhe favorecessem em sua
defesa. Podemos ver como a proposta de atender os pobres de forma gratuita,
dialoga com os “Estatutos” apresentados pela defesa à justiça, além dos serviços
da “vida practica, questão commercial, magistral ou forense”, todos os serviços
que afirmam oferecer nos Estatutos, mas nada das “curas milagrosas” do
professor Avellar.

Em agosto, já condenado ao pagamento de multa pela Justiça Sanitária,


Vicente Avellar se envolve com uma luta, para ele muito particular: o movimento
“anti-vacina”. Vemos em 03 de agosto uma grande matéria no Jornal do Brasil
que coloca Avellar na primeira reunião feita pelo “Centro das Classes Operárias”,
141

juntamente com o Dr. Vicente de Souza, seu xará agitador. Nesta reunião uma
“comissão de acadêmicos” que “consideravam a imposição da Vaccinação
Obrigatória, que o Congresso Federal estava para tornar lei, contrária aos
rigorosos princípios da República”. Avellar aparece nesta reunião propondo a
“criação de uma liga contra a vacinação obrigatória”, proposta que foi retirada ao
final da reunião, pois a proposta colocada pelo outro Vicente foi mais
calorosamente aceita:

No intuito de esgotar completamente todos os recursos legaes


contra o monstruoso attentado á vida e á liberdade do cidadão,
convida-se ao povo e especialmente ao proletariado, sem
distincção de crenças ou de partidos, para ir em massa e muito
pacificamente ao palacio do Cattete, solicitar do sr. Presidente
da Republica o veto á lei que torna obrigatorio o emprego da
vaccina. Para este fim convida-se as pessoas que adherirem á
idéa a comparecer, segunda-feira, 8 do corrente, às 5 horas da
tarde, no largo de S. Francisco de Paula, afim de seguirem em
marcha civica para palacio do governo (Jornal do Brasil, ed. 216,
p. 2).

Sabemos bem que essa ida “Pacífica” de Vicente de Souza não resolveu
as questões da Vacinação Obrigatória e a Lei entrou em vigor, exaltando os
ânimos, progressivamente, até a criação da Liga Contra Vacinação Obrigatória
em 5 de novembro de 1904. Avellar que sugeriu sua criação meses antes, não
participou das agitações da “Revolta da Vacina”, pois ao que indicam às fontes
estava passando uma temporada na Casa de Detenção.

Nos jornais, o caso de Avellar com a Justiça dos Feitos da Saúde Pública,
só começa a aparecer em 24 de agosto, com uma nota na Gazeta de Justiça:

TRIBUNAES. Infração saultaria. O PROFESSOR VICENTE


AVELLAR. Não ha, suppomos, quem não conheça, pelo menos
de nome, este professor, não só pelas curas que se diz por elle
praticadas como pelo processo que contra elle foi instaurado
pela directoria da saude publica. O caso é que o Dr. Sebastião
Barroso, inspector sanitario, sciente de que o Sr. Vicente Avellar
curava por meio de espiritismo e exercia tambem a medicina,
dirigiu-se à residencia do professor Avellar, em S. Christovão, e
ali deparou com uma sala da frente, vasta, apparelhada do
bancos e cadeiras, parallellamente alinhadas e defrontando uma
mesa collada sobre um estrado. Tinha, dependurados na
parede, quadros de imagens, retratos, cartazes com
agradecimentos de curas feitas pelo professor Avellar e os
142

estatutos de uma sociedade scientifica "Estudos Philosophicos


Jesus Nazaremos".

É possível notar pela descrição dada pela matéria, que os jornalistas


tiveram acesso ao Inquérito do “Dr. Sebastião Barroso”, pois usam as mesmas
descrições para o espaço. Mas afirmam que Barroso foi ao lugar pois já sabia
que Vicente Avellar “curava por meio de espiritismo”, o que não é dito por
Barroso em nenhum momento do Inquérito, ele sempre afirma que estava ali
para inspecionar a Pharmácia União, e que a descoberta dos atendimentos de
Avellar no Sobrado, foram fruto de sua observação atenta.

A verdade é que não é difícil de imaginar, que de fato ele já soubesse dos
atendimentos de Avellar na Sociedade Scientífica Estudos Philosphicos Jesus
Nazareno, já que o professor nunca fez questão alguma de esconder seus
poderes. Qualquer um com acesso aos jornais, diariamente, na cidade do Rio de
Janeiro, conhecia, mesmo que de passagem, o nome de Vicente Avellar. E
desde 1902 era cotidianamente apresentado com seus dons de cura, fosse pelos
anúncios da Sociedade, ou pelos agradecimentos feitos por antigos pacientes
que se viam curados pelas obras do professor curador.

A matéria da Gazeta seguia descrevendo o processo de Avellar de forma


muito profunda, apresentando as contradições entre as provas e as dúvidas que
pairavam sobre os juízes. Apresentam o valor da multa e a pena de prisão pela
qual Avellar deveria cumprir em “prisão cellular”. Por fim, afirmam que o
advogado de Avellar o “deputado Dr. Frederico Borges” iria recorrer sobre os
resultados da condenação, o que já sabemos, ele fez, e resultou na absolvição
de Avellar dez meses depois de sua condenação, justamente por estarem as
provas de acusação, mal apresentadas:

Convidado o Sr. Avellar a prestar declarações negou que


exercesse medicina ou praticasse a magia, sciencias ocultas ou
espiritismo, affirmando somente que, como presidente da
sociedade referida, distribuia aos associados beneficencias cuja
natureza não soube explicar. Por esse motivo foi o professor
Avellar denunciado por ter infringido o 2º do art. 230 e
paragrapho unico do art. 250 do Regulamento Sanitario, bem
como arts. 156 e 137 do Codigo Penal. Na marcha do processo
foram inquiridas diversas testemunhas não só de accusação
como de defesa. Submettido a julgamento na junta sanitaria foi
o professor Avellar condemnado a sete mezes de prisão cellular
143

e multa de 583s333, sentença essa que foi confirmada hontem


pela Camara Criminal da Corte de Apellação. O julgamento
deste feito foi largamente discutido pelos juizes da camara, que
aproveitaram mais uma vez a occasião para apreciarem a forma
do processo adoptada pela Junta Sanitaria e a estabelecida pelo
nosso Codigo Penal. Assim é que o Sr. Miranda Ribeiro, relator
do feito, achou que o processo não apresentava as formas
substanciaes exigidas por lei. E por este motivo levantou a
preliminar para que o mesmo fosse anullado. Submettida á
votação, o Sr. Dias Limas concordou com a nullidade,
acrescentando ser o crime do que accusam o professor Avellar
commum de competencia da justiça publica, processado e
julgado pela Camara Criminal do Tribunal Civil e Criminal, pois é
elle prescripto pelo Codigo Penal. Não passando a preliminar e
não sendo acceita a prejudicial levantada pelo Sr. Dias Lima, a
camara julgou valido o processo e somente contra o voto do
relator, foi, como ja dissemos, confirmada a sentença. Apezar de
não pouco discutido o caso, pairavam no espirito dos juizes
duvidas sobre as respostas das seguintes questões: Qual o
crime praticado pelo réo? O da prática de sortilegio? O do
exercicio illegal da medicina? Oroa no tribunal, sustentando a
defesa do professor Avellar, o deputado Dr. Frederico Borges.
Vai ser requerida revisão do processo (Gazeta de Notícias, ed.
236, 1904, p.4 – grifo nosso.)

Exatamente um ano depois, no dia 24 de agosto de 1905, a Gazeta de


Notícias torna a falar do processo de Avellar, dando nota de sua absolvição no
STF, e ressaltam o “interessante caso, que foi advogado pelo Dr. Frederico
Borges”:
TRIBUNAES. Infracção sanitaria. E' conhecido nesta capital,
principalmente do bairro S. Christovão, o Sr. Vicente Ferreira de
Avellar, o professor Avellar, como o tratam. Por ser accusado de
exercer o officio de medicina sem ser formado, foi elle
processado e condemnado a sete mezes de prisão e na multa
de 500s, pelo juiz dos feitos da saude publica. A Côrte de
Apellação confirmou a sentença condemnatoria; e hontem o
Supremo Tribunal Federal, revendo o processo instaurado
contra o professor Avellar, absolveu este da accusação que lhe
era intentada, por deficiencia de prova. Mais uma vez tratamos
nesta secção do interessante caso, que foi advogado pelo Dr.
Frederico Borges (Gazeta de Notícias, ed. 236, 1905, p. 6).

A absolvição de Avellar é comentada também no A Notícia, afirmando,


também, da anterior condenação do professor Avellar e na revisão feita pelo STF
que anulou o processo por deficiência das provas:

O Sr. Vicente Ferreira de Avelar, conhecido mais pelo - professor


Avelar, foi processado e condemnado a sete mezes de prisão
cellular e na multa de 500S por exercer o officio de medicina,
144

sem ser formado. O Supremo Tribunal Federal fez hoje a revisão


do processo do professor Avellar. O Sr. Piza e Almeida, relator
do feito, annullava o processo por defficiencia de provas. Com
S. Ex. não concordaram os dois revisores. O procurador geral
da Republica discutia o caso, quando se retirou do tribunal o
nosso companheiro (A Notícia, ed. 203, 1905, p. 2).

3.3.1.5 – A Fé
Antes de seguirmos aos feitos de Avellar após sua absolvição no STF,
voltemos às provas levantadas pelo Doutor Barroso. Aqui nos interessa muito o
periódico A Fé que é anexado ao Inquérito. O Exemplar que vemos no Inquérito
é do Ano II de produção, tem data de 12 de março de 1904 e apresenta como
Redator Chefe o Professor Vicente Avellar com Colaboradores Diversos. A Fé –
Orgão Defensor os Dogmas do Occultismo.

Figura 19 - A Fé Orgão Defensor dos Dogmas do Occultismo

Em fevereiro de 1903 vemos no O Fluminense que um exemplar do A Fé


foi entregue ao jornal para divulgação do mesmo e notamos que não há
preocupação em esconder sobre o que se trata o A Fé, além de ficarmos
sabendo também o nome dos colaboradores de Avellar:

Imprensa. Recebemos e agradecemos: A Tribuna, jornal de


variedades, publicado em S. Paulo. Na sua primeira pagina traz
o retrato da cantora brasileira Nicia Silva. A Gazelinha, de Barra
Mansa, do Estado do Rio. O Beija-Flór, orgão da casa de
perfumarias do mesmo titulo, da Capital Federal. A Fé, novo
orgão dos dogmas do ocultismo, dirigido pelo professor
Vicente Avellar e collaborado pelas professoras Julia Garcia
Rosa e Augusta Petti, drs. Perminio Carneiro Leão e João de
Assis Leal e Felisberto Mignot (O Fluminense, ed. 5092, 1903,
p. 1 - Grifo Nosso).
145

Em outubro outra menção ao A Fé, agora no Correio da Manhã: “A FE'


valsa lindíssima - dedicada a sra. d. Hortencia dos Santos, pelo humanitario,
professor Avellar, vende-se á 2$, o exemplar, na Brasileira, Largo de S.
Francisco de Paula n. 24.”. Dito apenas como uma “Valsa dedicada à Hortencia
dos Santos”, interessante por vermos o local de venda do Exemplar, no Largo
de São Francisco, que também através dos jornais foi possível resgatar que no
sobrado à época, funcionava uma “Officina de Costura” liderada por uma “Mme
Anita”, e no térreo funcionava um grande estabelecimento comercial chamado -
A’ Brasileira, dirigido por Gaspar Pacheco & C., ao menos entre 1902 e 1904.

No Sumário da Edição de março de 1904 do A Fé, apresentavam:


Expediente - Artigo de fundo – Deus existe - Curas admiráveis – Poesia, A Fé –
Aniversário – Gabinete Exotérico – Noticiário – Anúncios. Logo de Início no
Expediente apresentam os “jornais que têm recebido”: Gazeta de S. João, O
Progresso, O Regenerador e ainda muitas cartas e anúncios de amigos e
confrades. Afirmam ainda no Expediente estarem satisfeitos com o trabalho que
estão fazendo: levando aos bons caminhos da verdade e do progresso, o
Levantamento da Doutrina Espírita, o Evangelho de Jesus, a Educação do
Caráter, Defesa dos direitos da doutrina espírita contra os defeitos e as mentiras
das demais doutrinas. No corpo do periódico vemos ênfase principalmente na
“Defesa contra os defeitos e as mentiras das demais doutrinas”.

Na sessão de título “Transcripção – Espiritismo VIII Deus Existe – é


assinada por Olegário [Ilegível], ocupa quase uma página inteira e nos deixa com
a sensação de que teria uma continuação. Durante o texto o autor se ocupa de
demonstrar a existência de Deus enquanto uma “Inteligência Suprema” que
“legisla”, põe “ordem” no mundo e criou o ser humano composto por um espírito
em um corpo material, e que esse espírito teria origem no “princípio inteligente
do Universo”. São interessantes os autores citados por Olegário, como
responsáveis por lançar “trevas” de “teorias egoísticas”: Max Stirner, Tucker
(Benjamin Turcker), “dos anarquistas” Kropotkin, Bakounin, “o pantheismo dos
Spinoza e Hegel”, “o sceticismo de Kant”, “os dogmas e a hipocrisia do papado”,
“ou a imanência dos Comte e Littré”. Durante o texto Olegário vai ainda citar
146

“Rogerio Bacon” para garantir que “Deus é a ultima ratio rerum” (é a ideia final
das coisas).

Ao fim de toda discussão sobre a essência de Deus e do espírito, proposta


por Olegario, vêm em título: “Curas Admiráveis”, uma breve apresentação dos
dons de cura do professor Avellar. Essa parte está envolvida em vermelho,
destaque feito, provavelmente pela parte acusadora no processo:

Figura 20 - Curas
Admiráveis

Feitas pelo Exímio e conhecido professor Vicente de Avellar no


antigo gabinete exotérico na Rua de S. Christovão, 201,
sobrado.
Attesto que tendo sofrido de [ilegível] de 1º grau e tendo
recorrido a diversos [ilegível] Associação dos Empregados do
Commercio do Rio de Janeiro, não obtive resultado algum
[ilegível] ao centro do professor Vicente Avellar onde [ilegível]
em seis dias.
Jacob João Chris[ilegível]
Rua Dona Cecília, 2 -A.

Attesto sofrendo a dois meses [ilegível] sulas nas pernas, fiquei


radicalmente [ilegível] quinze dias pelo professor Vicente
Avellar.
Rita Goulart de [Ilegível]
Rua Nova de S. Leopoldo, 38 – B.
147

(Processo 0666, doc. 04709).

Os relatos de cura seguem na página seguinte e, também, estão


envolvidos em destaque. Logo abaixo vemos uma poesia dedicada ao professor
Vicente Avellar, assinado por Antonio Quintiliano:

A FÉ
No patamar do Templo eil-a cahida...
Mal se contem de joelhos; pobresinha.
Orphã sem lar, sem pão e ali sosinha,
Implora aos fiéis, n’um doce olhar, vencida

Cheguei-me á ella e ouvi; uma esmolinha


em nome de Deus. Da Fé querida,
que os nossos corações enchem de vida...
---E d’ella a voz morria, e o pranto aos olhos vinha...

Não pude vel-a mais nessa agonia.


E uma saccóla de oiro, com ternura,
Nas mãos lhe puz, em nome de Maria.

Mostrou-me o Céo, bendisse os entes meus,


Na mesma ocasião que o Padre-Cura
A Ostia levantava, orando á Deus.

Antonio Quintiliano.
(Processo 0666, doc. 04710).

Seguindo ao poema uma pequena área de celebração – Aniversário –


onde nesta edição apenas parabenizava o “inteligente” Vicente Avellar Filho.
Depois passava ao “Gabinete Exoterico”:

Nosso respeitado e já conhecido gabinete consultão diariamente


infelizes em [ilegível] buscando alívio aos sofrimentos da alma,
está á frente como diretor o nosso presado chefe, professor
Avellar, que tem salvo, conforme de depreende dar atestados
infra, muita gente descrente da vida. Nosso chefe é o único que
trabalha com dedicação, escrúpulo e sinceridade, a par de uma
fé extraordinária , por isso os seus trabalhos oferecem
vantagem.
Não é um especulador, não tem fortuna, e o que pede é justo,
pede como qualquer espírito criterioso. Nos trabalhos de
concentração é limpo e diz com clareza os mystérios da vida, a
razão dos atrasos e dos sofrimentos. Afasta atuações, e quantos
não estão ganhando o pão do dia á custa dos seus trabalhos...
148

Não há remédios, mas cura com as mãos e com água de bica,


toda e qualquer enfermidade.
As sessões começam ás 11 e terminam ás 4 da tarde, todos os
dias úteis e nas quartas ás 6 horas da tarde, préga na presença
de um auditório lusidio e complexo, a doutrina de Jesus Christo.
João Linhares
(Processo 0666, doc. 04710).

A propaganda dos serviços de Avellar são o foco do periódico, como fica


perceptível na coluna assinada por João Linhares, o “Gabinete Exotérico”, que
parece ser mesmo um ambiente físico, possivelmente como chamavam a própria
sala no sobrado da Rua São Cristóvão, 201. Avellar é apresentado como o
“chefe”, sendo “o único que trabalha com dedicação, escrúpulo e sinceridade”.
Ainda ao tratar do “chefe” afirma que ele não possui fortuna, e o que cobra o
justo “como qualquer espírito criterioso”. Uma das características do trabalho que
chama atenção é ser “limpo”, “dizendo com clareza”. Dizem ainda que não há
uso de remédios e as curas são por meio da imposição de mãos e “água da
bica”. Vale ressaltar que esse volume é de março de 1904, e a Pharmacia União
é inaugurada apenas em maio.

Outro foco evidente da edição é falar mal de possíveis concorrências do


professor Avellar. Na Sessão “Noticiario” alguns desses “concorrentes” são
expostos de maneira altamente crítica. O linguajar utilizado em muito se parece
com o usado pelos jornais de grande circulação, quando estão falando de batidas
policiais à espaços de “macumbas” ou “espíritas”, chama atenção o uso
principalmente, de termos como “espelunca” e “incautos”. É interessante
também como parecem reticentes “às inovações” do espiritismo norte-
americano, não fica claro, porém qual o “tipo” de espiritismo que seguem os
autores do A Fé.

NOTICIARIO
A espelunca da rua do Senador Euzebio, que sobre a capa de
espiritismo explorava os incautos com a tal denominação de
Oriente Espírita do Brasil, foi cercado pela polícia e obrigado a
fechar as portas.
O tal psychologo da rua General Camara 317, teve uma boa
lição, querendo introduzir inovações a guiza de homem formado
149

em espiritismo, pela Escola Norte-Americana, não fugiu ao


escalpelo da crítica ridícula, sendo corrido da casa onde se havia
instalado. Porque razão não ficou na América do Norte?
Que volte para lá , pois aqui no Brazil não precisamos de
inovadores que se anunciam cinicamente espíritas.
Lá pelos lados do Becco Manoel de Carvalho existe também um
que de espírita nada tem, entretanto, vai impingindo as suas
novidades com bonecos em cima da mesa, amarrações de pulso
e cruzes na testa.
Que pandego!
Continua

A estrutura do A Fé é muito interessante, inicia com uma “doutrinação”,


sobre a existência de Deus e do Espírito, assim como Deus, enquanto uma
inteligência superior que gerencia o mundo, mas não apresenta seus dogmas de
forma clara, não diz em quem baseiam seu “espiritismo” ou o “ocultismo” que
praticam ali. Passam então ao espaço dos testemunhos de cura, muitas pessoas
dispostas a colocarem seus nome e endereços em um jornal de conteúdo
“espírita”, mesmo quando todos sabem da repressão que há. Na sessão de
aniversário novamente é ressaltado o foco para o sobrenome “Avellar”, é sempre
o centro das atenções. Depois o que vemos são “denuncias” e “notícias” sobre
espaços onde praticam “doutrinas defeituosas” ou “falsas” do espiritismo. Mas
afinal, qual a verdadeira doutrina? A praticada pelo “único”, o “chefe” o professor
Vicente Avellar, a “doutrina” ocultista de “Jesus Christo”?

Não pareciam temer a repressão, como Avellar nunca demonstrou temer


mesmo, sempre se anunciando às claras nos jornais. Uma lista com o nome de
Espíritas existentes no Rio de Janeiro, trazia nomes de destaque na sociedade,
iniciando por uma alta patente e terminando com deputado, um farmacêutico e
um cirurgião dentista:

General Euveston Quadros, Almirante Manhães Barreto, Dr.


Dias da Cruz, Faria Junior, Deputado Americo de Albuquerque,
Julio Carmo, José Ferreira da Silva, Dr. Maia Barreto, Dr.
Caetano da Silva Brito, Apolinário Ferreira da Costa, Jornalista
Felix Bocayuvas, Tenente-coronel Ricardo de Albuquerque, Dr.
Meireles Filho, Cósne Maia, Deputado Góes, Manoel da Silva,
Gaudencio, Pharmaceutico Theophilo de Andrade, Cirurgião
dentista Orlando Teixeira.
Continua
150

A última página do A Fé, traz anúncios de remédio, farmácias e de uma


papelaria. Os remédios são dois: “Xarope Peitoral Brazil – Prodigiosa descoberta
do Professor Vicente Avellar” e “Balsamo Jesus” – Importante descoberta do
Professor Vicente Avellar”. O Xarope Peitoral podia ser encontrado na Rua
Senhor dos Passos, 192 -A e na Rua São Cristóvão. O Balsamo Jesus, “superior
a todas as pomadas que por ahi se vende”, também podia ser encontrado na
Rua São Cristóvão, o que quer dizer que mesmo antes da Phamácia União,
Avellar já estava comercializando e produzindo, ao menos dois medicamentos,
um xarope e uma pomada. Na Rua Senhor dos Passos, 192-A, um anúncio da
mesma página nos diz ser a Pharmacia Senhor dos Passos. Uma outra
Pharmacia é anunciada, na Rua da Constituição, 18 – Pharmacia Cruzeiro do
Sul – Homeopathica.

Analisar fontes processuais é sempre um desafio, pois ao encararmos as


fontes, precisamos sempre ter em foco, o fato de como foram organizadas.
Portanto, ao lermos as documentações reunidas, tanto pela acusação, quanto
pela defesa é importante lembrarmos que elas foram intencionalmente
preparadas para, de um lado provar a “culpa” de Avellar, e de outro “inocentar”
o professor de suas acusações. É possível resgatar as pistas? Claro, mas são
fontes sempre difíceis. O Jornal A Fé, nesse sentido, é rico, por ter sido
produzido com a “chefia” de Avellar e circular entre seus fiéis “sócios”. Ali
verificamos que se trata de pessoas com nível de formação filosófica alto, mas
que estão muito dispostos à receber um tratamento “exotérico”, “limpo” e “claro”
ao tratar dos mistérios da vida. Podemos crer então que os clientes de Avellar,
não buscavam somente a cura que ele oferecia, mas também auxílio “espiritual”
para questões do cotidiano, e essa é a ponte que nos levará, logo em breve ao
segundo momento das “assombrosas” aventuras de Avellar, quando em 1907
ele é processado novamente.

3.3.2 O Occultismo
Antes, do Inquérito de 1907, vamos tratar de uma outra fonte, esta, não
relacionada em nenhum processo ou inquérito criminal. O professor Vicente
Avellar produziu muitas obras durante a vida. Tanto obras de cunho jornalístico,
quanto propagandístico. Uma em particular, nos interessa aqui, o livreto: “O
151

Occultismo” e as curas assombrosas produsidas pelo conhecido


Professor VICENTE AVELLAR. Como já fica evidente desde o título, o livro é
uma propaganda do trabalho de Avellar, como um “curador ocultista”. O livro, no
entanto, é lançado em 1909, ou seja, depois das duas passagens policiais que
analisamos nesta Tese. E por isso mesmo é rico em informações, de suas
experiências religiosas, de seus “empreendimentos” e de suas relações após as
querelas com a justiça.

Figura 21 - Capa do Livro "O Occultismo" de Vicente


Avellar (1909)

Partindo do princípio, a capa da obra de Avellar nos deixa duas


informações que não podem passar desapercebidas. Primeiro o símbolo da
Cruz, do Coração e da Ancora, três símbolos que interligados possuem uma
significância cristã, relacionado à “mística católica”, e em 1929 entronizada como
152

a Cruz de Camargue, que agrega em uma frase as três virtudes teologais 54: “A
fé está ancorada em meu coração”. A simbologia está relacionada ao
romantismo francês e à mística católica que envolve a França do século XIX 55,
valores caros ao nosso professor, como veremos.

Figura 22- Detalhe símbolo presente na capa do Livro "Occultismo" (1909)

Os três símbolos possuem significado antigo no cristianismo e pode ser


retomado em Hebreu 6:19 “Esperança que temos como âncora da alma, segura
e constante, e que entra nessa dentro do véu”. A ancora tem sido utilizada por
judeus desde o Império Selêucida em moedas. Dessa maneira, o símbolo é
comum aos cristãos antigos, inscrições em catacumbas do século I d.C, usavam
a âncora como símbolo, sendo um dos símbolos mais antigos do cristianismo.56
A cruz está, obviamente, ligada ao próprio Cristo e a fé cristã como fruto

54 Fé, Esperança e Caridade – o conceito de Virtudes Teologais é desenvolvido por Tomás de


Aquino na Suma Teológica I – onde primeiro apresenta a compreensão de virtude como ações
e hábitos aprendidos ou natos dos seres humanos, onde as virtudes teologais partem de Deus,
tem Deus como objeto e orientam para Deus, diferenciando-se assim das virtudes morais
(ROCHA, Sem Ano)
55 Barros (1999) em sua dissertação faz uma apurada pesquisa sobre as terminologias da

“mística” e “esoterismo”, buscando compreender a possibilidade de um cristianismo que reunisse


essas características.
56 Entre os símbolos de um cristianismo primitivo, a Ancora foi vista em alguns contextos, onde

a Igreja foi relacionado ao barco que reúne e transporta os fiéis, e a ancora como uma salvação
dos cristãos (DANIELOU, 1993, p. 60).
153

incorruptível da fé. O Coração em referência à alma e as profundezas da fé em


Cristo (DANIELOU, 1993).

Em 1926 o Marquês de Baroncelli (1895 -1943), forjou um símbolo para a


Igreja de Saintes Maries de la Mer em Camargue, cidade do Sul da França, que
possui desde a primeira metade do XIX, grande relação com os Ciganos e Santa
Sara Kali. 57 O símbolo conhecido como Cruz de Camargue é claramente uma
cruz estilizada dos três símbolos, e traça uma relação entre Avellar e os Ciganos,
o que é pertinente ao próximo processo que analisaremos, quando Avellar é
preso se anunciando como a cartomante “Madame de Tebas” nos jornais do Rio
de Janeiro.

Figura 23 - Fachada da Igreja das Saintes Maries de la


Mer

57 Em 1852 o jornalista J B. Laurens menciona a presença dos “Bohemios” em peregrinação no


mês de maio à Saintes-Maries-de-la-Mer. Antes disso nenhuma fonte menciona a presença dos
peregrinos entre outros numerosos que visitam a Igreja, o interesse pelos ciganos, a partir do
XIX é visto por Bordigoni (2002) como reflexo do interesse no controle desses grupos. Estudos
sobre ciganos são deficitários no Brasil e em outros países, por onde encontramos referências a
esses nômades, no entanto, como veremos mais a frente, há uma fetichização na figura da
cigana, como “poderosas profetizas”.
154

Por ora nos mantemos na obra de Avellar, pensando neste símbolo como
representante da produção de Avellar relacionada à um cristianismo místico ou
um ocultismo cristão, dos quais ele nos deixa algumas pistas.

Ainda na capa a breve citação do Soneto de Avers. A Poesia de Félix


Avers (1806-1850) é considerado o soneto mais famoso da Literatura Universal,
o mais reproduzido, traduzido e imitado. Apesar do autor ter produzido apenas
um livro de poesia (1833) com este soneto e viu sua poesia representada em
dezessete peças teatrais. Avers participava de uma sociedade francesa do
século XIX onde circulavam Vitor Hugo, Alexandre Dumas e Dumas Fill,
Delacroix, Louis Boulange entre outros grandes nomes da literatura do século
XIX58.

Segundo o livro “O Soneto de Avers” de Mello Nóbrega (1957) citado por


Vasco de Castro Lima (1987), a primeira tradução feita para o português foi em
1878, e a partir daí foi traduzido por 91 vezes até a publicação da segunda edição
de Mello Nóbrega (1957). Que ainda segundo o autor, nunca houve um tradutor
capaz de traduzir com o soneto à “altura do original”.

Não basta o conhecimento de dois idiomas, nem a técnica


poética, nem a paciência, nem a honestidade. Antes de tudo,
faz-se indispensável o entendimento sutil da peça original: o
tradutor deve encharcar-se de suas intenções, senti-la e vivê-la
para o milagre da recriação. Os dotes intelectuais apenas darão
corpo a essa verdadeira reencarnação literária. Poucas vezes,
entretanto, isso tem sido conseguido. Há, na poesia, um quê
sagrado e hermético, íntima e indissoluvelmente ligado à
expressão, mas independente de seus termos. Dir-se-ia a
própria alma do poema, a banhar e a animar o todo, escapando
à localização e à análise.

58No contexto da produção literária da França no último cartel do XIX, entre Românticos, destaca
o Decadentismo, onde apartir de um fenômeno histórico-político, partindo de um contexto
particular sociopolítico, símbolos e recordações da fase crepuscular de antigas civilizações
aparece nos quadros mentais da Europa do Iluminismo. A sensação de viverem em uma época
terminal, perpassa obras e artistas. Em sentido mais restrito o Decadentismo apresenta-se como
plano estético da literatura francesa a partir de meados do século XIX, uma reação irracionalista,
um retorno ao onirismo ao fantástico, à imaginação. Na espiritualidade levantam-se muitas
vertentes: catolicismo estético, rosa-crucianismo, budismo, ocultismo, magia, cabala, espiritismo,
teosofia, quiromancia, astrologia, todos apresentando-se como opositores de um positivismo e
cientificismo. DECADENTISMO. Disponível em:
<https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/decadentismo>.
155

Acrescentem-se a essa impossibilidade essencial as barreiras


psicológicas de cada língua (LIMA, 1987 apud NÓBREGA, 1957,
p. 195).
Comparando as traduções feitas do primeiro verso do poema, colocado
por Avellar em seu livro, verificamos:

“Mon ame a son secret, ma vie a son mystère” – Original em Francês.

“Guardo um mistério n'alma e na vida um segredo,” – Pedro Luiz (1880).

“Tenho um mistério n'alma e um segredo na vida:” – Lúcio de Mendonça


(1880).

“Um segredo cruel tenho nalma escondido:” – José Augusto de Carvalho


(1890).

“Minh’alma tem um segredo Minha vida um mysterio”. – Vicente Avellar


(1909)

“Guardo na alma um segredo, e na vida um mistério,” – Álvaro Reis


(1917).

É possível notar que Avellar não usou a tradução de nenhum autor de seu
tempo, assim como o autor datado de 1917, não teve acesso à tradução que
acreditamos ser do próprio professor Avellar, que já sabemos dominava o idioma
francês. É uma pena que o restante do poema não tenha sido publicado por ele,
apenas o primeiro verso. Vale a pena citar também, que a mesma inscrição
compõe a lápide do autor original, falecido em 1850 (NÓBREGA, 1957). Terá
sido escolhido pela fama, ou pelo conteúdo para compor a capa da publicação
de Avellar? É perfeitamente possível que pelos dois motivos. E justamente por
isso, apenas o primeiro verso compõe a citação. O poema romântico, apesar do
aspecto “hermético” não fala de questões do espírito, mas de um amor não
revelado, o que em nada, ou quase nada, dialoga com o livro de Avellar. Mas na
primeira frase a presença das palavras alma e mystério, dão o ar que o professor
busca em seu título, é do “occultismo” do professor Vicente Avellar que estamos
tratando aqui.
156

Com as “Maximas” que apresenta, Avellar vai nos lembrar de papéis


reunidos pela acusação em 1904. Em 1909 Avellar afirma:

Sem fé nada se consegue.


Os que sóbem de posição com orgulho, descem em à margem
de um abysmo.
A caridade é tudo.
O orgulhoso cedo ou tarde paga as consequencias.
A humildade é uma recommendação e vale mais um humilde do
que um presumpçoso.
Quem com Deus anda com Deus acaba.
Só soffre quem quer (AVELLAR, 1909, p. 2).
.

Iniciando quase com a mesma sentença das máximas encontradas pelo


Doutor Barroso em 1904: “Sem fé não há salvação”, nas Máximas de 1909
Avellar parece estar falando aos “orgulhosos”, como em 1904 estava claramente
se dirigindo aos clientes de “pouca fé”. Ao tratar da humildade Avellar
ironicamente não se lembra do título de seu próprio livreto que exalta suas
“assombrosas” qualidades de cura. Na verdade, ele deixa mais evidente para
quem está direcionando as críticas que tece, no corpo de seu texto.

Quando vemos o título “Occultismo” ficamos aguardando para que ele


defina as bases do “ocultismo” que prega, visto que desde o processo de 1904
este termo está circulando entre suas crenças, como vimos no jornal A Fé, sem
ser, porém, definido. Apesar de fazer muitas citações na obra de 1909, como
também havia no “A Fé”, Avellar não referência nenhum autor “clássico” do
ocultismo, como Eliphas Levi, ou Madame Blavatsky, ao contrário, ele parece
estar lançando sua leitura própria de um Occultismo-Espírita “Exotérico”:

O tangível obedece a um principio archaico ao qual se apega o


descrente, isto é, aquelle que perdeu por completo a confiança
em si, sugeito ao aphorismo de há muito condenado – ver para
crêr!
O intangível, substanciação impecável da verdade por ser luz
formadora dessa grandeza imensa que se chama – Natureza –
é o apanágio das almas grandes que acreditão em tudo sem –
ver – porque os efeitos emanados do Poder conhecido por
157

Osíris, Jeovah, Acaso, etc, etc, etc, em toda sua omniscipiencia


não se desmentem. O que está patente aos olhos de todos não
tem a importância que procuram dar, e o que fica ao nosso
alcance perde as vezes o brilho e o valor.
As descobertas embrionárias as quais devem trazer à luz o
resultado esperado, nem sempre provocam o entusiasmo e o
delírio das nações cultas.
O valor de tudo quanto está ante as nossas vistas sai justamente
do seio desse tesouro inesgotável de preciosidades que se
chama – Occultismo (AVELLAR, 1909, pp. 3 – 4).

Ao contrapor o “Tangível” do “Intangível”, Avellar se insere em uma


discussão “esotérica” do mundo. Um mundo em que o ceticismo da ciência
moderna inaugurou um mundo “desencantado”. Buscava maneiras de encarar
uma espiritualidade “natural”. As crenças “occultistas" de Avellar reúnem
pinceladas do Romantismo Francês com os pigmentos disponíveis em seu
158

tempo: esoterismos59, Cristianismo esotérico60, hermetismo61, filosofias


ocultas62, maçonaria63 e espiritismo64.

Avellar afirma que “O occultismo é repositório secreto de todas as


grandezas reais do nosso Pai misericordioso, estuda-lo com seriedade é
prepararmo-nos para o conhecimento geral do que há de bom e belo em toda
natureza”. A crença em uma “natureza viva”, assim como em um cosmos no
macro e no micro, aparece como referências de sua experiência. Entre outras
características Pierre Riffard (1996) apresenta o que se conhece por
“esoterismo”, no Ocidente, alinhado aos pensamentos de Avellar nesta
apresentação.

No mesmo ano do lançamento de livro “Occultismo” – foi lançada a


Fraternidade Rosacruz por Max Heindel na Califória (EUA), resumindo décadas

59 Barros (1999) ao tratar do Esoterismo em sociedades do século XVII ao XIX, afirma que o
esoterismo se trata de uma forma de pensamento onde a natureza delimita as bases que a
ilustram. Assim, o esoterismo evocaria uma ideia de secreto, de um espaço espiritual. Para
Faivre (1994) o esoterismo só poderia existir como sincretismo, em reunião das três religiões
Monoteístas, a alquimia, as artes mânticas, postas em circulação nos séculos XV ao XIX.
60 O Cristianismo esotérico aparece como uma incógnita para Barros (1999), ele questiona se há

possibilidade de existir um Cristianismo Esotérico. Levando em conta a definição do esoterismo


como um saber “secreto”, o autor afirma que idealizadores de doutrinas como Kardec e Levi,
estavam impregnados dos conceitos cristãos, enquanto Blavatsky criticou avidamente esse
“sincretismo”.
61 Textos sobre alquimia, geralmente traduzidos do árabe, eram encontrados na Europa

Ocidental, já no século XIII. Manuscritos de cabalistas judeus, também circulavam na península


Ibérica na mesma época, de forma discreta. No entanto, apenas, a partir da divulgação de uma
tradução do Corpus Hermeticum feito por Marsílio Ficino, a pedido de Cósimo de Médici, depois
da Queda de Constantinopla, desencadeou um movimento esotérico e grande interesse nos
saberes de Hemes Trismegistos, que seria contemporâneo de Moisés. Ficino criou uma
genealogia – Hermes – Orfeu – Aglofemo – Pitagoras -Filolau e Platão. Portanto o corpus
hermeticum seria a “Prisca Theologia”, e atravessaria todas as religiões. Hemes Trismegistos
seria uma amalgama de Hermes da mitologia grega e o deus Toth da mitologia Egípcia, o que
teria colocado o Egito em evidência como “raiz da civilização”.
62 Ao divergirem, magia e ciência, pelos usos diferentes que davam à matemática, os pitagóricos

e os cabalistas, surge uma polêmica e uma divisão. Enquanto cabalistas usavam da matemática
sem interesses em manipular o mundo físico, mas com a ideia de investigar os mundos “supra-
sensíveis”. Compreende-se então as filosóficas ocultas como o resultado dessa busca teórica de
compreensão do universo. Dividiam o Universo em três níveis: o primeiro, o inferior e elemental,
onde vivemos e é explorado pela filosofia natural, pela Medicina e pela magia natural; o segundo
é o astro planetário, celestial; o terceiro como mundo intelectual, explorado por cerimônias
religiosas e da magia cerimonial. Deus emanaria influências até nosso mundo, e o mago
pesquisaria estradas para a ascensão (BARROS, 1999).
63 Barros (1999) alerta para necessidade de estudos mais profundos sobre os paradoxos

impostos pela maçonaria no século XVIII, no entanto define a maçonaria como uma organização
que se inicia tal como guildas medievais e se aprimora com o tempo, sem deixa, porém escritos
sobre seus simbolismos e saberes.
64 O “germe” do espiritismo está diretamente ligado ao processo que Àries (2003) chama de

Angústia da Separação, iniciado posteriormente à Revolução Francesa (1789), como uma


possibilidade ao processo de individualização, desenvolvido com grande rapidez.
159

do esoterismo moderno a apologia Rosacruciana entendia a Ciência Moderna


como responsável por espalhar o ceticismo, o egoísmo e o materialismo no
mundo. Havia, pôr fim a tentativa de convencer aos cientistas modernos sobre
uma realidade por eles ignorada: a do mundo espiritual. Era comum inclusive a
chamada de cientistas para “provar” os assombrosos fenômenos que produziam.
É nesta relação de ciência-mundo espiritual que se inserem várias
manifestações (BARROS, 1999).

A Religião reinou suprema nas chamadas idades negras.


Durante esse tempo, ela escravizou a Ciência e a Arte, atandoas
de mãos e pés. Depois veio o período da Renascença, quando
a Arte floresceu em todos os seus domínios. Mas a Religião era
muito forte, pelo que a Arte era frequentemente prostituída a seu
serviço. Por último, chegou a vez da Ciência moderna, que com
mão de ferro, subjugou a Religião, [...]
Tal estado de coisas não pode continuar. Precisa haver uma
reação. Se não a anarquia dominará o Cosmos. Para evitar tal
calamidade, a Religião, a Ciência e a Arte devem reunir-se numa
expressão do Bem, do Verdadeiro e do Belo, mais elevada ainda
do que fora antes da separação. [...]
Quando os Grandes Guias da humanidade viram a tendência
para o ultramaterialismo que agora grassa no mundo ocidental,
tomaram certas medidas para enfrentá-lo e transmutá-lo. (...).
Portanto, medidas foram adotadas para espiritualizar a Ciência
e tornar científica a Religião (HEINDEL, 1909, p.455).

Avellar em seu livreto tece duras críticas aos médicos e cientistas


brasileiros que não reconhecem os prodígios do espiritismo “única ciência
perfeita”. Apenas “um aborto” poderia discordar de “celebridades da força de Sir
Wallace William Crooke, Cesar Lombroso, Sekiaparelli Carl du Prel, Cerosa
Richet, Paulo Gibier, Gladstone, Flamarion e outros” (AVELLAR, 1909, p. 3), que
estudaram e confirmaram os valores do espiritismo. Segue então com um elogio
ao espiritismo (sem em momento nenhum mencionar o nome de Kardec), até
chegar ao auge de seu texto, quando relata a “perseguição” do processo que
sofreu em 1904:

Com o aparecimento do Regulamento Sanitário de 8 de março


de 1904, insurgiram-se ameaçadoramente os inimigos da
doutrina de Jesus e os que mais se salientaram na luta desigual
160

do Mau contra o Bem foram esses 3 esculapios da Rua S.


Christovão, dos quais um já fez a viagem de além-túmulo e os
outros são tidos como beneméritos da Patria! Infelizes que não
trepidaram, quais titans em quebrar lanças contra um dos
apóstolos da religião de Christo! O espiritismo se acha em toda
a parte na Antiguidade e em todas as idades da Humanidade;
por toda parte se encontra seus traços nos escritos, nas crenças
e sobre os monumentos; é por isso que se ele descobre
horizontes novos para o futuro lança uma luz não menos viva
sobre os mistérios do passado.
A fé é tudo e a caridade é o caminho que nos conduz aos
páramos da salvação... (AVELLAR, 1909, p. 5).

Avellar cita o Regulamento Sanitário de 8 de março de 1904, o Decreto


de número 5.156 pelo qual foi processado em junho daquele ano. No entanto,
Avellar não faz menção ao Código Penal, legislação também utilizada para
incriminá-lo. Parece estar muito comprometido em pôr sobre o decreto
características malignas e corruptíveis: “a ciência que com mãos de ferro” imputa
uma “luta desigual”, como “inimigos da doutrina de Jesus”. É possível que ao
mencionar os três esculápios da Rua São Cristóvão, Avellar esteja falando de
três médico, visto que Esculápio é uma referência ao Deus Asclépio, deus da
medicina no panteão grego. Não é possível verificar quais são esses médicos,
pois nenhuma das pessoas que assinam as listas de vizinhos, promovida pela
acusação, se identifica como médico.

Ainda tratando dos “esculápios” é interessante perceber a referência que


ele faz aos titans, também figuras da mitologia Grega, para logo a seguir afirmar
que o Espiritismo é uma presença desde a Antiguidade entre os homens.

Ele como um dos “apóstolos da religião de Christo” afirma ter sofrido com
a violência desses “titans”, se coloca como “a maior vítima” tendo servido “de
experiência”. O fato de o Regulamento Sanitário ter entrado em vigor em março
daquele ano, parece ser um ponto importante para Avellar, que sabemos,
recebeu a visita do Inspetor Sanitário em junho. Ele realmente se apresenta
como uma grande vítima, que apesar das tentativas saiu com mais “força” de
todo a investida do “mau” contra si. Por fim reforça sua “missão” cristã, ao
perdoar seus agressores, tal como o “Christo”.
161

A maior vitima dos infratores da lei constitucional fui eu que servi


de experiencia e de alvo às suas investidas.
Tentaram matar-me e não puderam, quiseram reduzir-me à
miséria e não conseguiram, e então só lhes restava um meio
qual o de um processo adrêdeprepado que de nada lhes valeu
porque o triunfo não se fez esperar aumentado sempre cada vez
mais a força dos meus conhecimentos psichycos. Que Deus lhes
perdoe, é o que desejo a todos esses infelizes que não sabem o
que fazem (AVELLAR, 1909, pp. 5 – 6).

O professor vai abrindo caminho para o objetivo final de sua obra: revelar
suas “curas assombrosas”. Para isso segue apresentando os valores de sua
crença: a Fé, como “virtude tão poderosa que com ela tudo se obtém”. Ainda
demonstrando seus valores místicos afirma que não uma fé qualquer “quebrada
pelo orgulho, maior dos crimes, o maior dos pecados”. Mas uma fé resiliente,
uma fé que resiste, na vida, na luta e na esperança. São claramente valores que
Avellar já apresentava em seus documentos em 1904, quando afirma que a fé é
fundamental para o processo de cura de seus “pacientes”. A força de seus
conhecimentos psíquicos é “assombrosa”, mas é fundamental também, que se
deixe uma brecha para escapar aos casos em que não derem certo: falta de fé!

A luta tremenda e desigual que de há muito tem travado a


medicina oficial, ciosa de seus conhecimentos terapêuticos e
teratológicos contra os efeitos do ocultismo é a prova
característica da inépcia dos perversos charlatães que pululam
por toda parte desde a mais alta administração até a última
estratificação social.
O processo de curar pela imposição de mãos não é um mito,
mas um axioma comprovadamente autêntico pelas mais altas
mentalidades da América do Norte e da Europa: e os favorecidos
pela divindade não são criminosos, e sim, estes privilegiados,
longe da selvageria dos incongruentes apologistas da
esmeralda. Que crime há capaz de atingir a quem salva das
garras aduncas da morte aparente a humanidade? – Nenhum!
(AVELLAR, 1909, p. 7).

Ao associar os “apologistas da esmeralda”, outra analogia para medicina,


à selvageria, Avellar faz um movimento inverso ao que vemos em ações policiais
durante todo o período da repressão baseada no Código Penal de 1890, que
define “curandeiros”, “feiticeiros” e “espíritas” como selvagens e incivilizados.
Ainda os chama “charlatães”, outro adjetivo comumente utilizado, em processos
162

e periódicos, para tratar dos que curam com as mãos e meios espirituais. E
segue com pesadas críticas às leis e seus defensores. Por fim o golpe final na
própria formação dos médicos e cientistas: a compra de diplomas, uma denúncia
ao sistema de educação, que ele próprio, enquanto professor na sua origem, dá
peso.

A crítica ad-usum padrão dos pretensos apologistas do cárcere


nojento, que só sabem impor aos cidadãos, em pleno gozo de
seus legítimos direitos, leis inexequíveis, barbaras, anti-
patrióticas é um atentado. Curandeiros! ...vociferam os
sonhadores da rutilante e assustadora esmeralda!
Especuladores, blasfemam os peralvilhos e os acadêmicos!
Diplomas compram-se a quantos sedentos de interesse
pecuniário não cedem jamais, antes, irritam-se tanto mais,
quantos mais são os racíocinios que se lhes opõe a perversidade
demonstrando os erros. (AVELLAR, 1909, p. 7)

Orgulho é um pecado mortal na doutrina ocultista proposta por Avellar,


mas comparar-se ao “Christo” tudo bem, coisa que ele faz em vários momentos
de sua obra. Em específico, ao findar a discussão que inicia com sua própria
prisão em 1904, é simbólico, pois se coloca ao lado do Nazareno, por ter
“também” uma missão, e por não ter entre os homens de sua época, companhia
que compreenda suas ideias e ações. Além de humilde, cheio de fé, Avellar é
também um gênio incompreendido.

Christo nos tempos idos recebeu também sua missão


providencial. Todos os homens de seu tempo não estavam na
altura de conhecer seus trabalhos, as suas ações, as suas
ideias, contudo havia certa aptidão mais geral a se assimilar
porque começava-se a sentir algo de extraordinário na alma.
(AVELLAR, 1909, p. 7).
“Quem quiser rir-se dos fenômenos espíritas, faça como eu fiz – estude-
os primeiro e depois ria-se de mim” Citando a “máxima” de Gladstone, Avellar
passa ao fim último de sua obra: apresentar as pessoas curadas por ele.
Homens e mulheres curados de “syphilis, morphea, ecksemas, rheumatismos e
tuberculóse”, conta mais de 4625 pessoas que salvou da morte e “prova com
atestados”. Para além apresenta também uma série de “trabalhos benéficos”
para: “conseguir emprego, paz no lar, tranquilidade de espírito, conciliações,
afastar obsessores, combater o fetichismo e magia branca”. Passa a apresentar
uma série de “relatos” dos curados por ele onde enfatizam os poderes de Avellar,
163

sua generosidade, o fato de não terem alcançado cura na medicina tradicional,


a prontidão em que alcançaram a cura com apenas alguns atendimentos do
professor Avellar. Pessoas curadas por imposição de mãos, por água abençoada
e pelos poderes de cura do professor. (AVELLAR, 1909, p. 8 - 9).

Duas fotos são apresentadas como sendo do “sr. Custodio Ribeiro


Rabello – negociante”, segundo Avellar, tantas outras “photographias" não
podem ser apresentadas, pois forma tomadas no “assalto” pela autoridade
sanitária, tendo restado apenas as duas que apresenta: na primeira lê-se “o Sr.
Custodio Ribeiro Rabello, ante da cura” e na segunda “o Sr. Custodio[...], depois
da cura” (AVELLAR, 1909, pp. 10 -11).

Figura 24 - Fotografia do Sr. Custódio Ribeiro Figura 25 - Fotografia do Sr. Custório Ribeiro
Rabello, antes da cura (1909) Rabello, depois da cura (1909)

Lembremos que na junta de provas, no Inquérito Policial de 1904, havia


apenas uma fotografia. Um homem posando de perfil para o fotografo (FIGURA
12). A foto muito prejudicada pelo tempo não conservou as palavras escritas
abaixo da imagem, e a própria figura do homem retratado não nos deixa ter
certeza se é o mesmo do livreto, o Sr. Custódio. Apesar de manter características
semelhantes como os fartos bigodes encerados, pele de tom claro e o cabelo
curto e preto, não é possível afirmar ser o mesmo homem nos impressos de 1904
e no livreto de 1909.
164

Sendo ou não o mesmo senhor, podemos verificar em sua obra


“Occultismo” ao menos um dos “curados” por Avellar. Na foto antes da cura, o
rapaz aparece com os olhos semicerrados e cabelo raspado (FIGURA 25). É
interessante notar que ele possui uma grande falha no cabelo, como uma
entrada no couro cabeludo por cicatriz, que fica mais aparente na segunda foto,
onde seus cabelos estão maiores, menos na região da cicatriz, e quando já
apresenta uma feição com olhos “normalmente” abertos. Sua cura como nos diz
Avellar está relacionada mesmo “às vistas”. “Cansado de correr seca e meca [...]
e sem resultado não obstante ter-se sujeitado ao tratamento de alguns ocultistas
notáveis, conseguiu comigo em 15 dias abrir a vista esquerda” (AVELLAR, 1909,
p. 09).

Após apresentar uma sequência de relatos de cura, com nome e


endereço dos pacientes, Avellar passa a outra sessão de seu livro: Documentos
Importantes. Depois das críticas arraigadas aos médicos e aos cientistas, o
professor volta aos profissionais, mas dessa vez, apresentando “laudos” da
veracidade de suas curas. Avellar não poupa esforços para promover seus
“poderes”. São elencados: o Dr. Souza Lopez, “lente da faculdade de Medicina”,
o Dr. João José Dias de Faria, “distincto engenheiro”, o Dr Manoel da Costa
Bracante, “médico distincto”, e o Dr. Antonio da Silva Pereira Junior. Para cada
um desses nomes um breve relato da veracidade dos fatos de cura de Avellar:

O illmo. Sr. Dr. João José Dias de Farias, distincto Engenheiro,


escreveu o seguinte: o professor Avellar, cavalheiro distincto em
tudo, tem feito prodígios com seus trabalhos de occultismo, tanto
assim que com ele conseguiu obter uma concessão do Governo
da União que julgava irremediavelmente perdida. O que afirmo
e juro ser verdade (AVELLAR, 1909, p. 16).
João José, não apenas afirma que os trabalhos de ocultismo de Avellar
são “prodígios”, como também diz que ele obteve uma “concessão do Governo
da União”. Sabemos que tal “concessão” não existia naquele período. Era crime
as práticas de curandeirismo e de espiritismo, portanto era crime tudo aquilo que
Avellar tão abertamente anunciava em seu impresso. Por fim, era prova confessa
de crimes, tudo aquilo que Avellar revelava, mas o engenheiro João José
afirmava que houve uma “concessão” para o professor, por serem seus feitos
“prodigiosos”. A tal concessão, afirmada poderia ser, senão a absolvição
conseguida com recurso ao Supremo Tribunal Federal, depois de duas
165

condenações em instâncias inferiores. Como em outro momento do texto, Avellar


deixa crer que saiu fortalecido do processo que sofreu.

Na última parte desta publicação Avellar revela mais uma propriedade de


seus “dons”, além de curador ocultista, ele era também profeta: “As minhas
prophecias”. Segue com três afirmações:

“Vaticinei a perturbação da ordem que houve com a questão da


vaccinação obrigatoria” – da qual sabemos que ele esteve no meio dos debates
em agosto de 1904, tendo inclusive proposto a criação da Liga Contra a Vacina
(JORNAL DO BRASIL, ed. 216, 1904, p. 2).

“A morte de Vicente de Souza” – ele não explica quem é Vicente de


Souza, como se ficasse claro para seus leitores de quem ele estava falando - o
líder da “Centro das Classes Operárias” em 1904 e fomentador dos movimentos
contra a vacinação no mesmo ano. Vicente Avellar, conhecia seu xará Vicente
de Souza, estiveram disputando propostas para o movimento contra a vacinação
em ao menos uma ocasião.

“A grande enchente que inundou a cidade há 4 anos passados” –


enchentes no Rio de Janeiro eram constantes, e naqueles anos se
intensificavam pelas grandes obras que existiam. As enchentes eram motivo de
ironia, inclusive em charges, como na Revista O Malho nº 128 que satiriza a
impossibilidade de andar na cidade em dias de enchente (MAIA, 2013).

Figura 26 - Inundações no Rio de Janeiro - O Malho nº 128


166

Se Avellar era um curador tão bom quanto era profeta, havia algo de
errado com os milhares de depoimentos de cura que dizia ter. Porque, com essas
profecias que encerra o livro, são bem mixurucas. Talvez não tivesse escolhido
as melhores já que afirma ter: “outras muitas que dizem respeito a questões
particulares que não vem ao caso publicá-las”. Devia pensar ser melhor esperar
para publicar depois que acontecessem os fatos, com certeza ficava mais fácil
de “profetizar”.

Pelo que vemos, fazer profecias não era mesmo o forte de Avellar, ele era
um gênio da propaganda, isso sem dúvidas. Termina seu livro deixando aberto
um espaço para escrever o endereço onde poderia ser encontrado, o que sugere
que as mudanças continuavam a ser constantes. Todo seu livro nos levanta
muitas possibilidades de conhecer melhor a experiência religiosa que Avellar
pratica, prega e os serviços que vende.

Não era apenas a cura o negócio de Avellar, ele fazia também “trabalhos
benéfico”, magias ocultistas e profecias, mesmo que não fossem tão boas. A
publicação em 1909 do livro “O Occultismo e as curas assombrosas
produsidas pelo conhecido professor Vicente Avellar” é além de uma
“revelação” de seus dons e doutrina, uma propaganda de seus serviços, mas
sobretudo uma denúncia aos “charlatães da esmeralda”, ou seja, uma crítica aos
médicos que promoviam a repressão aos que, como Avellar, curavam por meios
espíritas. No entanto, apesar de falar abertamente do processo que sofre em
1904, não comenta em nenhum momento o outro problema que teve com a
polícia em 1907, será que considerava um desabono ser preso por cartomancia,
enquanto anunciava-se como mulher nos jornais, Mme. Thebas?
167

CAPÍTULO 4 – ENTRE PYTONISAS E CARTOMANTES,


MADAME THEBAS E VICENTE AVELLAR

Quem nesse mundo nunca ouviu dizer?


Quem nesse mundo nunca ouviu falar?
De uma cigana que mora naquela estrada
Ela tem sua morada sob o clarão do luar
Cigana da Estrada, moça poderosa
Me dê proteção e Axé, ciganinha formosa.
(Ponto de Pomba Gira Cigana – Umbanda).

Em 1907 , Vicente Ferreira da Cunha Avellar esteve envolvido em novos


problemas com a Polícia do Rio de Janeiro. Dessa vez o professor recebeu a
visita de um policial em seu escritório na Rua Senhor dos Passos, nº. 215, e por
achar que se tratava de um cliente, o relatou que praticava naquele escritório
seu ofício como “hábil curandeiro” e “a prática da cartomancia”.

O Inquérito Policial de 1907, fazia parte de uma ação da Terceira


Delegacia, uma espécie de “Ação” contra cartomantes da Cidade do Rio de
Janeiro. Tivemos acesso, durante a pesquisa para a Dissertação de Mestrado
(VELASCO, 2019) à seis inquéritos dentro deste contexto de “caçada às
cartomantes” promovida pela Terceira Delegacia, onde quatro investigações
foram iniciadas na Freguesia de Sacramento e duas na Freguesia de Santo
Antônio.

Na pesquisa da Dissertação não buscamos analisar profundamente as


experiências religiosas dos envolvidos nos inquéritos, mas compreender o perfil
dos “criminosos”, além de traçar as Geografias da Repressão. É nossa
oportunidade agora, de apresentar de forma mais profunda o que estamos
tratando enquanto “cartomantes” no contexto da repressão e para isso iniciamos
por nosso personagem central, o professor Vicente Avellar.

“Mme. Thebas - Agranda advinha de Paris, moradora à rua Rivoli


n° 23, tem aqui no Rio de Janeiro o seu legítimo representante
para todo e qualquer trabalho scientifico, por mais difficil que
seja, do meio dia as 2 horas; Avenida Passos n° 32, sobrado,
esquina da rua Senhor dos Passos.”
Annuncio dos jornais desta capital
168

Este anúncio é apresentado logo de início no Inquérito Policial de Avellar,


no alto da folha em destaque, o modelo se repete em todos os outros casos de
prisão de cartomantes daquela “caçada”. Madame Thebas apresenta um
“legítimo” representante no Rio de Janeiro, ninguém menos que Avellar. Este é
o Anúncio escolhido pela polícia para encabeçar o Inquérito, encontramos outros
com textos diferentes. Mas ainda sobre este, o fato de ser posto o endereço da
Rua Rivoli, nº 23 em Paris, demonstra que Avellar conhecia bem a figura da
Madame A. de Thèbes, pois de fato este era o endereço da famosa Pytonisa
francesa. É também para se destacar o uso da palavra “scientífico” para tratar
de “trabalhos” de magia, é um padrão Avellar de agir, como já vimos por sua
obra de 1909, ele considera o “occultismo” uma espécie de ciência, e novamente
aqui, deixa isso explícito.

Encontramos anúncios de pessoas se apresentando como “Mme Thebas”


desde 1905, quando a primeira referência é feita em um anúncio de “curas
garantidas” para “Impotência de ambos os sexos”. Neste recorte do Jornal do
Brasil, não vemos o endereço para consulta, mas sim uma caixa do correio, para
onde deveriam escrever pedindo informações com um selo de 200 réis.
Afirmavam ainda “960 attestados de curas radicaes” (Jornal do Brasil, 1905, ed.
242, p. 5).

Em 1906 os anúncios trazem um endereço onde a “Mme. Thebas”


realizava atendimento: Rua Santo Amaro, nº 1. Realizava ali “trabalhos pelo
systema dos faquires da India”. Esse mesmo texto aparecia nas páginas do
Jornal do Brasil por alguns meses, entre outros anúncios de cartomantes da
Cidade. Já em 17 de dezembro a “Mme. Thebas” faz questão de avisar às suas
“amigas e freguesas” que havia se mudado da Rua da Alfandega nº 161 para a
Rua Frei Caneca nº 34. Não há mais aparecimentos da Mme. Thebas na Rua
Santo Amaro apenas na Rua Frei Caneca até abril de 1907.

No dia 1 de maio de 1907 um novo anúncio de Mme. Thebas informava


uma nova mudança de endereço, agora para a rua Visconde do Rio Branco, nº
55, sobrado. Exatamente um mês depois, no dia 1 de junho uma polêmica
começa a tomar forma nas colunas de classificados do Jornal do Brasil:
169

Mme. THEBAS – Não confundir a celebridade sonnambula que


profetizou os acontecimentos do anno próximo passado e que
nunca sahiu de Paris atenta a sua avançada edade, com outra
qualquer que lhe tomou o nome para reclame. O único
representante da verdadeira Mme Thebas é na Avenida Passos
32, esquina da rua Senhor dos Passos (Jornal do Brasil, 1 de
junho de 1907, ed. 152, p. 6).

Mme. THEBAS previne a todas as pessoas de sua amizade que


não tem representante algum: este que no Rio o diz ser, já há
muito que está aqui e só agora é que se lembrou de aparecer.
Mme Thebas morou muito tempo na rua Frei Caneca n. 34.
Mudou-se de lá para a Avenida Passos n. 34. Mme Thebas
estudou para sciencias ocultas e não para professora (Jornal do
Brasil, 3 de junho de 1907, ed. 154, p. 11).

A “discussão” é estranhíssima, um representante da Mme. Thebas


afirmava que apenas ele representava a “verdadeira” Thebas no Rio de Janeiro,
visto que aquela era uma senhora de idade avançada e por isso nunca havia
saído de Paris. Ele, o representante, estava na Avenida Passos 32, esquina com
a Rua Senhor dos Passos, atendendo a quem se interessasse por seus serviços.
De outro lado uma Mme Thebas que dizia ter morado na rua Frei Caneca n. 34
por muito tempo, e que aquele que se dizia representante não tinha
representante nenhum em seu nome no Rio de Janeiro. Ela, a Mme Thebas,
estava disponível na Avenida Passos n. 34. “Mme Thebas estudou para
sciencias ocultas e não para professora”, possível referência à profissão original
de Avellar?

Os anúncios no mês de junho continuam aparecendo com o texto clássico


da Mme Thebas, e o endereço da Avenida Passos, nº 34, com entrada pela “Rua
da Alfandega”. Dentre os anúncios colocados pela Mme Thebas, desde 1905,
está o de “Callos”, oferecendo cura pelo método “húngaro”, este anúncio segue
acontecendo, entre outros relacionados à Mme Thebas com o endereço
mencionado.

Poderíamos levantar duas hipóteses sobre a questão: Primeira


possibilidade: existiam duas pessoas praticamente vizinhas, uma era a “Mme
Thebas”, que atendia na Avenida Passos, nº 34, com entrada pela rua da
170

Alfandega e a outra era o “representante da Mme Thebas” de Paris, que atendia


na Avenida Passos, nº 32, esquina da Rua Senhor dos Passos. Ou em uma
segunda hipótese: sempre foi o professor Avellar, ora se dizendo a Mme Thebas,
ora se dizendo representante da Mme Thebas francesa. Na necessidade de
levantar essas hipóteses, eu daria preferência por acreditar na segunda, visto
que as experiências anteriores de Avellar com os jornais, mostram que ele sabia
muito bem trabalhar com essa ferramenta e o que mais interessante para seus
negócios do que uma polêmica?

No entanto, a situação fica esclarecida no Inquérito que traz o anúncio” do


representante de Thebas na “Avenida Passos n° 32, sobrado, esquina da rua
Senhor dos Passos”, e afirma que “Vicente Avellar, brasileiro de 47 anos de
idade, com escritório à rua Senhor dos Passos, nº 34”, era o mesmo do
“Annuncio dos jornais desta capital”. Sempre foi o professor Avellar, e ele
responde ao inquérito de 1907, mas não para com seus anúncios, que seguem
sendo publicados, mesmo depois de lançada a “caçada às cartomantes”. Nos
anos posteriores, até 1911, vemos anúncios com relação à Mme Thebas, todos
muito parecidos com os feitos por Avellar, no entanto já não é possível afirmar
que fosse ele, visto que os endereços já não eram mais o da Senhor dos Passos,
e para esses anos não temos outras referências que tracem a trajetória do
professor pela Cidade.

No inquérito, afirmam que Avellar:

Julgando estar tratando com alguma victima da sua


especulação, declarou ao agente exercer a profissão de
curandeiro, ministrar [reucedios], receitar para a cura de
impotencia e outras molestias e que, para fazer acreditar na
efficacia de tuas curas, teu exposto em um escriptorio paisagem
de medicamentos (hervas do matto).
Que usa o nome supposto (nome de uma mulher) para atrahir à
sua casa bôa freguesia (Arquivo Nacional, CQ0230, 1907, p. 2).

Ou seja, Avellar considerava um bom negócio se anunciar com “nome de


uma mulher”. E mais, não qualquer mulher, soube escolher muito bem a mulher
por quem iria se passar: Madame Thebas não era qualquer uma, e estava em
evidência como a maior “Pytonisa” de sua época. Ser ela, ou representante dela
171

significava muito, naqueles tempos. O nome da Thebas aparecia nos jornais com
suas profecias e os resultados de suas previsões.

Há ainda uma outra questão implícita no próprio nome “Thebas”, enquanto


nome de uma cidade Egípcia e essa é uma questão que precisa também ser
pontuada. Desde o século XVIII, o Egito passou a ser considerado como “berço
da humanidade” (BARROS, 1999, p. 30).

Com os manifestos do hermetismo sendo popularizados, a chegada de


descobertas arqueológicas no século XIX, e a presença concreta de maçons e
seus símbolos pela cidade do Rio de Janeiro, não é de estranhar que faça
sucesso uma cartomante, ou uma ocultista, com o nome que remetesse ao Egito.
Nesses nomes das Madames, professores e Pytonisas, notamos como era dado
o uso de referências que chamavam mais atenção da clientela. Avellar utiliza
desta estratégia para escolher Madame Thebas, além da franca ascensão da
pitonisa francesa ao rol de grande adivinha, naqueles tempos sua fama ainda
não havia atingido o ápice e ainda dizia mais ao público geral, carioca, a
referência ao Egito, à mitologia grega e sua origem francesa.

ULTIMA CARTADA
ADEUS FUTURO
AS CARTOMANTES BALDAS AO NAIPE
NA POLÍCIA
TUDO EMBARALHADO
Zelosa (ilegível) polícia: a chefatura de polícia, pouco a pouco
vai fazendo desaparecer do solo carioca todos os elementos
considerados periclitantes pelas leis escritas do país.
Depois da campanha contra o “bicho”, o famigerado bicho que
viciou a população inteira, atirou-se a polícia à repressão do
lenocínio e de outras maleitas morais que infelicitam os
costumes da terra, seguindo-se como medidas sanatoria ou
sanitária, o despacho do pessoal perigoso, sobro água, livro do
circuito, vulgarmente denominado expulsão.
Não parou por ai o movimento profilático da chefatura: as leis
escritas condenam a cartomancia, a chiromancia, a
chirognomia, a graphomancia, o sybilismo, o occultismo, a
adivibala clássica o tenebrosa.
Ora, se as leis condenam todo esse acervo de adivinhações
kabalísticas, a chefatura resolveu fazer uma devassa completa
172

para chamar à fala todas as cartomantes, chiromantes,


adivinhas, ocultistas “et magna concomitante caterva”, para
instaurar os respectivos processos.
Os agentes puseram-se em campo, à procura das pessoas
incursas nessas excursões pelo futuro e a lista do pessoal
apresentada à polícia é de respeitável quantidade.
Nessa lista onomástica figuram em maioria sensível os nomes
femininos, dando a entender que os sexo fraco sempre foi forte
para essas coisas de sondar o além do porvenir.
Mas como nesse mundo, no (ilegível), possui uma infinidade de
surpresas, surgiu na lista apresentada o nome de Mme. Thébas,
xará da universal Mme. de Thébas, que de Paris envia ao mundo
em peso, ao mundo crédulo e pejado de abusões, as suas
impressões videntes e seus horóscopos tétricos: mas a Mme. de
Thébas de cá é bem diferente da Mme. Thébas de lá, até no
sexo, pois a polícia na sua pesquisa, descobriu que a nossa
Mme. de Thébas era realmente um thébas, como diz na gyria
carioca, um turuna nas adivinhações a que se entregava nas
horas vagas, deixadas pela sua profissão de professor...
E como essas coisas de prescrutar o incognicível possui algo de
poético e empolgante a pesquisa policial descobriu também no
rol extenso Mme. Sybila, que encobre o nome de uma poetisa.
Espanta-nos, porém, que toda essa plêiade de adivinhões não
adivinhasse que a polícia iria processá-los...
E apanharam assim a última cartada, embaralhados todos no
processo agora iniciado, sem esperança de um trunfo que lhes
salve a situação de dois de paus que estão metidos.
Com este movimento...era uma vez o futuro...desvendado pelas
cartas reveladoras e aleatórias, pelas linhas das munhecas e
das frontes, pelos signais gráficos dos impressionados por tudo,
enfim que a kabala pudesse alcançar como bussula guiadora
para descoberta do destino.
Adeus tristes emoções de espíritos doentios, de almas tímidas
que se atiravam à sondagem sybilina, em busca do que há de
vir, em busca do que deve acontecer: a ação austera da
autoridade policial não vos dará socego, não vos dará uma folga!
Irá mais longe ainda, principalmente agora neste mês corrente
que fervilham as sortes e os livros de oráculos e consultas para
as noites de S. João e S. Pedro...e ai de que só se lembrar de
consultar a clássica e avoenga clara de ovo posta em um copo
ao sereno na véspera de S. João: incido nas malhas guanticas
da lei austera, e será recolhido no mesmo processo geral das
adivinhações.
Adeus sonambulas patéticas e médiuns evidentes que viviam na
concentração mórbida das pesquisas de almas, de sentimentos
e de cousas futuras, também estão arrolhados, queremos dizer
arrolados pelo index inconfundível da grande argus policial.
173

E quantos homens cairão no pelago profundo da tristeza, vendo


o sumiço rápido da kabala com o seu cortejo mysterioso das
penetrantes indagações!
Um deles sabemos nós, era tão atirado a essas coisas de
alusões e cartadas que chegava ao auge da caceteação, falando
sempre a respeito do assunto que o empolgava ainda que não
houvesse propósito na palestra.
(ilegível) ele ontem, ao doutor Samuel (ilegível), com ar
penalizado, beiço caído de desalento, a murmurar lacrimejante:
- Foi-se o futuro, doutor!
E como o conhecido médico estranha-se a frase, ele
acrescentou mais lacrimejante ainda:
- O futuro...adeus, Pertente!
E eis aí como toda uma longa paciência empírica da humanidade
se desmorona ao sopro de uma voz policial, como um simples
castelo de cartas... (JORNAL DO BRASIL, 17 de Junho de 1907,
p. 3, ed. 168).

Havia, na cidade carioca, mais de uma interpretação ao nome “Thebas”.


Na reportagem que dá nota da prisão de Avellar, sem citar o nome do professor
Avellar, dizem que ele era “um thébas, como na gyria carioca”. Buscamos então
conhecer o significado da gíria e encontramos na Tese de Luis Sérgio Dias
(2000) um glossário de termos populares, comuns da “Turma da Lira” carioca,
com um sentido figurado para “golpista”:

TEBAS – Adestrado, valente, esperto. Alguns capadócios


escrevem thebas. Nascentes mantém os significados,
acentuando que o termo provém do tupi “teba”, que significa
ativo, valente, forte, desembaraçado, nada tendo que ver com a
cidade da Grécia (DIAS, 2000, p. 160).

Aquela reportagem dava ênfase ao fato de a lista de nome de pessoas


processadas pela polícia ser na maioria de mulheres, como podemos verificar
também com outros processo da mesma época da prisão de Avellar como
Madame Thébas. Iremos mais adiante tratar de outras mulheres e o fato destas
serem “maioria” entre cartomantes e quiromantes. No entanto, façamos aqui
uma pausa para tratar da Madame de Thébas, A. de Thèbes, francesa, para
depois voltamos ao Avellar e os resultados deste inquérito.
174

4.1 Anne Victorine Savigny – A. de Thèbes.


Não foi por acaso, mesmo, que Avellar assumiu o pseudônimo de
Madame Thébas. Como já ficou demonstrado, os ares de magia europeia,
portanto civilizada, inebriavam as mentes e as escolhas dos cariocas, desde o
século XIX. Buscar uma cartomante, ou um feiticeiro era corriqueiro para os
cariocas, como ainda é nos dias de hoje, no entanto ser associado à essas
pessoas era bem diferente. Ninguém queria ser encontrado saindo de algum
“antro” de um feiticeiro negro, ou de alguma feiticeira negra. Correndo o risco
ainda de ser preso e ir parar na delegacia, os jornais estavam sempre alertando
para esse perigo. Não que o perigo fosse menor ao procurar uma cartomante
“francesa”, ou um “professor” que botava cartas, mas dava a impressão de maior
segurança aos clientes, que no fim, viviam entre a “cruz e a caldeirinha”, sobre
o poder do feiticeiro ou da cartomante que consultava. Avellar ao se apresentar
como a própria Madame Thébas, se associava a grande Pitonysa daqueles
tempos, que tinha seu nome circulando em todo o mundo em seus almanaques
e profecias e isso sem dúvidas refletia nos ganhos que fazia com a cartomancia.

Anne Victorine Savigny, nasceu em 1843, em Ménilmontant, um bairro de


Paris. Pouco se sabe sobre a história de Anne Savigny, sua fama é mesmo
adquirida a partir da adoção do nome Madame de Thèbes já nos últimos anos
do século XIX, a fama da Madame era enorme em Paris, e ela frequentava os
grandes salões com seus amigos do teatro, sua primeira profissão é atriz, e das
artes como Alexandre Dumas Filho, responsável pela adoção do vulgo que
transformou Anne em uma lenda urbana: a Madame Thebas.

Na obra L’Enigme de La Main de 1900, A. de Thèbes oferece a obra ao


amigo Alexandre Dumas Fils que faleceu em 1895:

AO MEU QUERIDO E FALECIDO AMIGO


ALEXANDRE DUMAS FILHO
A você, ilustre amigo, dedico estas páginas, fruto de nossas
longas conversas sobre esta ciência da quiromancia que você
tanto amou e que chamou de "a Gramática do futuro".
Eu os dedico a você com profunda e eterna gratidão por todos
os conselhos e incentivos que você me deu, e porque fui
175

inspirada pela mesma fé que o fez escrever este belo


pensamento em seu prefácio de Os Mosqueteiros:
<<Aqueles que choramos não estão mais onde estavam, mas
ainda estão onde estamos.>>

A. De Tebas (THÈBES, 1900).65

Em uma coluna intitulada “Chiromancia”, no Jornal do Commercio de


189866, temos acesso a uma entrevista de Adolpho Brisson com Anne Savigny.
Nesta visita à quiromante Adolpho narra que “Mme. de Thèbes não reside como
outras mulheres que deitam cartas, em qualquer viela obscura, mas em uma das
belas avenidas que vão dar ao Arco do Triunfo”. E complementa que Madame
Thebas não trabalha como clandestina, ele afirma que Anne é “uma sybilla
aristocrática, a sybilla da alta”. Nosso narrador, faz uma consulta com A. de
Thèbes e aproveita para perguntar à sybilla sobre Dumas Filho, no que diz:

Pedi-lhe algumas lembranças sobre Dumas Filho, que no


princípio de sua carreira foi seu mestre e protetor. Ela consagra
à sua memória uma piedade filial. Desbarolles67, amigo de
ambos, foi que os apresentou, um ao outro. Mme. de Thèbes
tnhas um vago desejo de entrar para o Teatro. O autor da Denise
decidiu-a a escolher um caminho menos árduo. Elle tinha
aprendido a chiromancia com o cavalheiro d’Arpentigny: ela
tinha noções desta sciencia, ele aperfeiçoou-a e, quando
morreu Desbarolles, aconselhou-lhe que ficasse sendo sua
sucessora.
- Trabalhe durante um ano. Hei de submetê-la a uma prova. Se
sair vitoriosa encarrego-me de lhe garantir êxito.
Mme. de Thèbes enfronhou-se ao estudo dos caldeus e dos
egípcios. No dia aprazado, Alexandre Dumas cumpriu a
promessa: convidou para sua mesa doze physiologistas,
membros da Faculdade de Medicina e do Instituto. Depois da
sobremesa passaram um a um para uma pequena sala, onde os
esperava a adivinhadora. Esta não lhes sabia os nomes

65
A MON CHER ET REGRETTÉ AMI ALEXANDRE DUMAS FILS

A vous, ilustre Ami je dédie ces pages, fruit de nos lngus conversations sur cette Science de la chiromacie
que vou aimiez tant et que vous appeliez <<la Grammaire de l’avenir>>. Je vous les dédie avec une
profonde et éternelle reconnaissance pour tous les conseils et encouragements que vous m’avez donnés,
et aussi parce que se suis inspirée par la ^me foi qui vous a fait écrire cette belle pensée dans votre préface
des Mousquetaires: <<Ceux que nous pleurons ne sont plus là où ils étaiet, mais ils sont tojours là où nous
sommes.>> A. De Thèbes (Tradução nossa).
66CHIROMANCIA. Jornal do Commercio, 30 de maio de 1898, ed. 0149, p. 2.
67Pierre Adolphe Desbarolles (1801 - 1886) é considerado o pai da Quiromancia moderna, tendo
aperfeiçoado os métodos deixados por Arpentigny. Disponível em: < https://www.appl-
lachaise.net/desbarolles-adolphe-pierre-1801-1886/>.
176

(segundo me afirmou) e nunca lhes tinha visto as caras.


Suponho que saíram contentes com a sua conversação, porque
no dia seguinte Dumas publicava no Fígaro uma resenha
encomiástica daquela sessão. Mme. de Thèbes estava lançada.
Desde então nunca deixou de trabalhar (Jornal do Commercio,
ed. 149, p. 2 1898).

Essas informações dadas através de uma tradução em um jornal carioca,


de um encontro com a famosa sybilla, não é muito para termos certezas, mas
aqui é um campo que se abre. Não encontramos a matéria do Le Fígaro citada
pelo autor, o que ficará como proposta futura de pesquisa, confirmar as
informações sobre o início da trajetória de Madame de Thebas. No entanto, há
menção da mesma matéria em Davis (2018), que aprofunda a escala de
Madame de Thèbes ao seu posto de Sybilla. Ele afirma que, a partir de 1882,
Anne iniciou sua carreira no teatro com o nome Mademoiselle Dhalyle. Já a sua
carreira como “leitora de cartas”, teria iniciado em 1890 na Rua Laugier 46. E
sua amizade com Dumas filho teria sido iniciada através de um conhecido em
comum: Louis-Eugène Lambert. Davis (2018) diz que havia rumores de um
relacionamento sexual entre o autor e a cartomante, e que por interesses
comuns ela passou a frequentar a casa de Dumas. Anne aprofundou seus
estudos com o manual de quiromancia publicado por Desbarolles e viu um
espaço neste mercado entre as altas camadas, após a morte do célebre
quiromante.

A matéria do Le Fígaro68 relatou o jantar dado na residência de Dumas


para apresentar Anne Savary69 à alta sociedade e aos doutores membros da
Academia Francesa, promovendo uma “envolvente discussão” sobre a leitura de
mãos. Davis (2018) afirma que a partir disso, outros jornais faziam ironias com a
figura de Anne, mas que ela provou não ser “fogo de palha”. O nome Madame
de Thèbas foi sugerido por Dumas:

Foi Dumas quem sugeriu a Savary que ela adotasse o nome


profissional “Madame de Thebes” em referência a uma peça que
ele vinha trabalhando há anos, chamada La Routhe de Thèbes,
um drama psicológico centrado em uma mulher misteriosa. Ele
nunca terminou a peça, mas a criação de madame de Thèbes
foi concluída com grande efeito. Quando Dumas morreu em

68
Segundo Davis (2018, nota 43) a matéria é do dia 31 de março de 1893.
69
Davis utiliza esta forma de escrita do sobrenome de Anne Savigny.
177

1985, a Thèbe's estava bem estabelecida e nas próximas duas


décadas a elite da sociedade parisiense foi para seus
consultórios no número 29 da Avenue de Wagram70 (DAVIS,
2018, p. 29 – Tradução Nossa).

A amizade de Anne Savigny com Alexandre Dumas de fato existiu, isso


podemos observar com a dedicatória da obra de maior circulação de Madame
de Thèbes, o interesse do autor pelos assuntos místicos também fica latente com
a apresentação de Thèbes. No Brasil, Dumas Filho fazia muito sucesso e sua
peça “inacabada” La Routhe de Thèbes, foi aguardada por muito tempo e os
jornais acompanhavam seu progresso, demonstrando ansiedade por sua
publicação, que nunca veio. Dumas deixou a obra sem nunca ser publicada, a
morte súbita tirou a oportunidade de seu público de conhecer a peça que diziam
levou dez anos sendo escrita (A Notícia, ed. 122, 6 de dezembro de 1895).

Até hoje, um único livro, dá conta de traçar uma crítica ao La Routhe de


Thèbes, que tem seus manuscritos originais disponibilizados pelo arquivo
francês “Gallica”. O livro A Critical Edition of La Routhe De Thebes by Alexandre
Dumas Fils Edited and with na introduction by H. D. Lewis (1998), traz uma
análise sobre a produção de Dumas Filho e uma crítica mais profunda de sua
última peça, a protagonista da obra. Na segunda parte do livro há uma
transcrição da peça La Routhe de Thèbes em francês.

Este livro é muito raro, e foi difícil conseguirmos uma edição, mas ao final
do que acreditamos ser quase impossível para o doutorado, e já cogitávamos
deixar para outro momento, por um golpe de sorte e do destino conseguimos
uma edição “Discarted” da Universidade de Derby (Inglaterra). Com o que
sabemos através de Davis (2018), o nome de Thèbes teria sido sugerido por
Dumas em referência à obra.

Por isso consideramos o acréscimo desta fonte, para assim conhecermos


melhor a origem da Madame A. de Thèbes, a francesa. Assim, na obra

70
It was Dumas who suggested to Savary that she adopt the professional name ‘Madame de Thebes’ in
reference to a play he had been working for years called La Routhe de Thèbes, a psychological drama
centred on a mysterious Woman. He never finished the play but the creation of madame de Thèbes was
completed to great effect. By the times Dumas died in 1985, the Thèbe’s was well established and for next
two decades the elite of Parisian Society made their way to her Consulting rooms at 29 avenue de Wagram.
178

encontramos uma primeira parte com uma leitura do teatro francês do século
XIX, uma breve exposição da vida de Dumas e seus dramas de 1845 a 1887. A
segunda parte que a nós interessa mais se dedica ao La Routhe de Thèbes,
iniciando por uma discussão sobre Religião e Ciência, seguindo pelo papel das
mulheres na peça, uma apresentação dos temas principais do “romance”: amor,
casamento e adultério.

No capítulo 4 – La Routhe de Thèbes Religion and Science, fala sobre o


antagonismo dos temas Religião e Ciência e como estes temas eram caros aos
franceses do século XIX. No que tange a obra de Dumas, como esses temas a
tocam de forma particular. Com o declínio do interesse pela religião e a crescente
atração pela ciência, a adoção do Positivismo e a incredulidade encorajada pelos
trabalhos de Lamarck e Darwin, colocavam freios na interpretação literal da
bíblia, o que ainda era promovido pela igreja. No entanto, o declínio do
cristianismo levou muitas pessoas a buscar alternativas na espiritualidade e na
magia, como o próprio Dumas (LEWIS, 1998).

Lewis (1998) ao tratar das obras anteriores de Dumas, afirma que o autor
nunca teve a religião como um tema apropriado para ser tratado em suas peças,
por considerar o tema profundo demais para o teatro, mas por diversas vezes
apresentou sua posição fascinação à ciência, como em Le Docteur Servans
(1848), onde apresenta um capítulo sobre a espetacular (quase miraculosa)
capacidade da ciência de trazer alguém da morte, mesmo que brevemente. La
Routhe de Thèbes é segundo Lewis (1998) a única obra de Dumas que trata de
ciência e religião, e que é impossível saber ao certo sua razão, pois Dumas não
faz comentários diretos sobre suas razões, o crítico considera mais provável que
Dumas esteja reagindo aos debates de sua época.

Outra questão inédita na peça La Routhe de Thébes, quando comparada


com as demais obras de Dumas, é a importância dos personagens femininos,
que em suas demais peças assumiam uma importância secundária cujo papel
na sociedade era de subserviência (LEWIS, 1998). Já em sua última peça, o
personagem Geneviève, apresenta opiniões fortes e opositoras aos conceitos
masculinos, confronta com tons irônicos afirmações de outro personagem, o
Mathias, que diz que falta à mulher o intelecto, assim como discute com este a
definição de Alma. Por fim, outra personagem Miliane é ainda mais direta que
179

Geneviève e contrasta com a maioria das mulheres jovens de sua época, onde
o amor não tem importância principal em sua vida (LEWIS, 1992).

A escolha do título está ligada ao personagem de Miliane, que é


identificada à Esfinge tebana, da lenda de Édipo71 e que aparece ao personagem
“voz da razão” Mathias, exercendo encantos sobre o ilustre cientista Didier.
Lewis (1998) afirma que no século XX os dramaturgos franceses apresentam um
fascínio pelos mitos gregos, o que não foi o caso de Dumas.

No Brasil, há algumas menções à peça de Dumas, aguardavam com


ansiedade pela obra. Em 1891 o “O Paiz” afirma que a obra estava terminada e
que o dramaturgo faria em breve a leitura para os artistas. Afirmava mais, que
havia rumores de que a peça teria a ver com São Paulo (O Apóstolo) e que a
peça estava sendo anunciada por jornais como “O Caminho para Damasco”, mas
que Dumas havia desmentido que pudesse ter qualquer relação com o santo
(FIGURA 27). Ele estaria mais preocupado com as questões centrais das
décadas de 1880-1890, apresentando em sua obra o efeito que mulheres fortes
poderiam exercer em homens suscetíveis

Figura 27 - Jornal Brasileiro e o La Routhe de Thèbes

71 Portanto, na origem, o nome Thèbes estaria ligado à Tebas grega e não à Tebas egípcia. No
fim, ambas as figuras são do imaginário mítico e utilizadas como símbolos de sabedoria e magia.
Uma diferença básica entre as duas é que a Esfinge grega é representada por um corpo de leão
com a cabeça de uma mulher, sendo, portanto, feminina, enquanto a Esfinge egípcias é
masculina, representada pela cabeça de um faraó e o corpo de um leão. No Egito as esfinges
são responsáveis por “escoltar os mortos”, tendo relação com as práticas funerárias egípcias.
Para maiores debates sobre as figuras das Esfinges em sua representação simbólica grega ou
egípcia recomendamos a leitura do artigo “O SILÊNCIO DA ESFINGE: O ERRO DE ÉDIPO E A
REDESCOBERTA RESPOSTA AO ENIGMA” de Jane Connell (2013)
180

ARTE E ARTISTAS

Alexandre Dumas terminou uma nova peça – La route de


Thèbes.
Diz-se que o mestre fará a sua leitura aos artistas da Comedia
Franceza nesta quinzena de Setembr.
“A minha pela nada tem de comum com S. Paulo, disse Dumas
aludindo ao título que foi anunciado por vários jornaes: O
caminho de Damasco.”
Todo mundo sabe a discrição com que procede Dumas, quando
se trata de obter dele informações sobe alguma peça que tenha
em mãos.
Parece que se trata da Thebas de cem portas, cada uma das
quaes era guardada por uma esfinge.
A mulher, porém que a symboliza desempenha importante papel
na nova peça de Dumas: é esta a explicação aceitável do
mysterioso titulo.
( O Paiz, 20 de setembro de 1891, p.2 ed. 3433).

A sugestão do nome Madame de Thèbes à Anne Savigny, por parte de


Dumas Filho, pensando na construção de sua obra final La Routhe de Thèbes,
nos leva à sua convicção de que Anne representaria fielmente a personagem
Miliani, ou ainda, que estaria se inspirando em Anne para construir a
personagem. A trajetória de Anne reforça sua personalidade diferente do padrão
esperado da mulher francesa de seu tempo. Desde cedo ligada ao teatro, Anne
se envolve com um ambiente “perigoso” para mulheres72, apesar do título que
ostenta como Madame, não há registros de que tenha casado, e além dos boatos
de seu romance com o próprio Dumas, não há com ela outras figuras masculinas
durante sua vida, mostrando que não se importava, tal como Milani, com a
realização do amor romântico.

Agora que conhecemos um pouco melhor a figura de Anne Savigny e


como ela se tornou a Madame de Thèbes, vamos voltar ao sucesso que A. de
Thèbes fez na França, no Brasil e no mundo de seu tempo, qual sua projeção
diante de um mundo “racional” e dominado por homens. Neste mundo do

72Margareth Rago em sua obra Do Cabaré ao Lar (1985), vai apresentar o teatro, assim como
as fábricas como ambiente mal vista pelos homens que construíam o perfil da mulher ideal para
sociedade burguesa.
181

Positivismo, da ciência e da racionalidade, Madame de Thèbes alcançou


projeção social, e poder de influência, visto que em seu consultório entravam
muitos homens e mulheres das altas camadas e da política de países que
determinavam a ordem do mundo. Vamos primeiro compreender os valores que
norteavam seu trabalho, através do que temos disponível, suas entrevistas e
obras. Depois iremos buscar sua projeção no mundo através da ótica de duas
obras que exaltam seu nome.73

4.1.1 A. de Thèbes suas Obras e Profecias.


O primeiro livro publicado por A. de Thèbes foi o L’Énigme de La Main em
1900 em Paris. Tratava-se de um robusto manual de Quiromancia, apresentando
mais de duzentas páginas onde se dividiam oito capítulos. No entanto, a tradição
quiromântica na França é inaugurada por Casimir Stanisla Arpentigny (1798 –
1864) com a obra La science de la main, ou L'art de reconnaître les tendances
de l'intelligence d'après les formes de la main, publicada entre 1856 e 1865 com
oito edições.74 Seguido por Adolph Desbarolles (1801 -1886) que levou a
tradição da quiromancia à diante, seguindo a tradição e tomando o espaço
deixado Arpentigny, após sua morte. Com a obra Les Mystéres de la Main (1859)
resgatava para si os ensinamentos de Arpetigny. Madame A. de Thèbes, com a
história que já vimos de sua relação com Dumas Filho, em 1900 segue a tradição
dos dois homens que lhe antecederam e publica, também, o seu manual.

Com a obra de Arpentigny temos um manual de como identificar através


das mãos as tendências intelectuais e morais de uma pessoa. O título “La
Science” não é dado por qualquer motivo, há a crença de que através das mãos
é possível identificar características das pessoas, como a frenologia de Gall faria
para o crânio, ou a Fisionomia de Lavater faria para os traços fisionômicos
(ARPENTIGNY, 1856, p. 7). E por falar em frenologia, outra obra do sucesso no
século XIX foi escrita por Desbarolles “Revelations Complètes - Chiromancie,
Phrenologie, Graphologie Études Physiologiques Révélations du Passé e

73
O filme mudo de 1915 - Madame de Thèbes e o HQ “DAMPYR” número 12, o original em Italiano foi
publicado no ano de 2000, no Brasil chega em 2005. No caso da HQ há uma outra personagem que é
retratada sob o mesmo nome de Madame Thebas e de quem iremos tratar em sua especificidade -
Matylda Průšová – que assume a mesma alcunha de Anne Sabigny, já na década de 1930 e em Praga.
74 CS d' Arpentigny Disponível em: http://worldcat.org/identities/lccn-nr88004530/
182

Connaissance de l'avenir”, com a primeira edição em 1879, onde o tema da


frenologia reaparece, além do interessante fato de ter sido também dedicado a
Alexandre Dumas Filho:

MEU CARO ALEXANDRE.


Não sei se você pensa como eu - a causa está, sem dúvida, em
o exercício da minha profissão, — mas adquiri a convicção de
que, favorável ou não, estamos passando por uma direção, se
não imutável, pelo menos muito difícil de evitar.
Sem dúvida, os acontecimentos mais importantes nos parecem
relacionados com acaso - e minha vida é um exemplo contínuo
disso - mas para os homens no senso comum, o acaso é cego
e, consequentemente, absurdo, deve, portanto, acreditar em
influências superiores, em encontros fatais ou felizes,
evidentemente poupado pelo destino.
.Encontros fatais, até desastrosos, não mostraram fracasso na
época (onde, sem experiência, entrei no mundo, mas seu ilustre
pai e você com ele e depois dele, você tem sido uma boa
influência em todos os lugares e sempre.
Na Espanha, esqueci com alegria, perto de você, uma traição
infame, que, ao partir meu coração, destruiu minha saúde e, ao
voltar, foi com você, meu querido Alexandre, que encontrei
consolo e você é a você que ainda devo, se for preciso examinar
as consequências, esse rosto nobre e gracioso que, agora
removido pelo casamento, ainda encantou os olhos do velho,
ontem em casa.
Foi com você que minha nova carreira me foi revelada.
Foi você quem primeiro me encorajou, quando comecei a
perseverar nessa misteriosa ciência; é você quem me escreveu,
desta caneta, então famoso, ilustre hoje: "Quiromancia será a
gramática da organização humana. »
É você finalmente quem me ajudou generosamente, me apoiou
nesses tempos de misérias, privações e preocupações
passadas no exterior.
É, pois, a vós que dirijo a dedicatória deste livro como uma
cordial homenagem, como prova da minha gratidão, da minha
inalterável amizade e minha profunda estima.
Mesmo velho camarada, hoje como sempre um admirador
sincero,
An. DESBARROLES.75

75
MON CHER ALEXANDRE.

Je ne sais si vous pensez comme moi. — la cause en est sans doute dans l'exercice de ma profession, —
maisj'ai acquis la conviction que, favorable ou non, nous subissons une.directionsinon immuable, du
moins bien difficile 'a éviter.

Sans doute les événements lesplus importants nous semblent amehésparle hasard — et ma vie en est un
exemple continuel— mais pour les hommes de bon sens le hasard est aveugle, et absurde par conséquent
faut donc croire à des influences supérieures, à des rencontresfatales, ou heureuses, évidemment
ménagées.par la destinée.
183

O que é possível compreender nas relações, tanto das obras quanto dos
autores que se dedicavam à Quiromancia, por ordem de autoria Arpentigny,
Desbaroles e Madame de Thèbes é que Alexandre Dumas Filho exerceu grande
influência sobre os dois últimos, e que provavelmente foi aluno do primeiro. É
possível notar na leitura atenta das obras que enquanto em Arpentigny há uma
evidente crença na ciência enquanto saber inquestionável e superior a qualquer
superstição, e por isso mesmo está o tempo todo relacionando sua científica
leitura dos sinais das mãos, ao mais antigos como Platão, Aristoteles e
Ptolomeu, assim como criticando aos “quiromantes”, à quem atribui o fardo de
terem deturpado informações, legando a Quiromancia à um espaço de
descrença mesmo aos mais crentes (ARPENTIGNY, 1856, p. 78). Arpentigny
era exemplo, bastante clássico, de um homem de seu tempo, o homem da
ciência pura e inquestionável, mesmo que no fundo de suas crenças, houvessem
inúmeras relações com os temas místicos, esses eram “negados” em nome da
construção de um pensamento lógico.

Em Desbaroles, mesmo que “quirologia” ainda estivesse mais presente


que a “quiromancia”, já encontramos mudanças no paradigma da função da
Quiromancia, não mais uma técnica para ler apenas os sinais de inteligência e

Les rencontres fatales, funestes même, ne montpas manqué au moment (où, sans
expérience,j'entrais dans le monde, mais votre illustre père et vous avec lui et.après lui, vous avez, étema
bonne influencepartoutet toujours.

En Espagne,j'oubliaisjoyeusement, près de vous, une trahison infâme, qui en me brisant le cozur


avait détruit ma santé, et au retour, c'est chiei vous, mon'cher Alexandre, que j'ai trouvé la consolation et
te bonheur, et; -c'est à vous queje dois encore, s'ilfaut examiner ks conséquences, cettenoble et gracieuse
figure qui, maintenantenlevée par le mariage, charmait encore hier au logis les yeux duvieillard.

C'est chez vous que m'a été révélée ma carrière nouvelle.

C'est vous qui le premier m'avez encouragé, à mon début, à persévérer dans celle science mystérieuse;
c'est vous qui m'avez écrit, de celte plume, alors célèbre, illustre aujourd'hui: «La Chiromancie sera la
grammaire de l'organisationhumaine. »

C'est vous enfin qui m'avez généreusement aidé, soutenu dans ces lémjis

de misères, deprivations et d'inquiétudespassés à l'étranger.

Aussi c'est à vous quej'adresse la dédicace de ce livre comme um hommage cordial, comme un
lémoignaqe de ma gratitude, de mon inaltérable amitié et de ma nrofonde estime.

Voire vieux camarade, aujourd'huicomme toujours voire admirateur sincère,

An. DESBARROLLES.
184

de moral dos homens, mas também para acessar seu destino. Fica evidente na
produção de Desbaroles a aproximação que ele faz da ciência e do “mistério”,
do espiritual, sem, no entanto, abraçar este último, ainda dá maior ênfase ao
cérebro e à razão:

Da frenologia, épica do crânio que contém o cérebro “todas as


ciências sujeitas à influência cerebral, como a fisionomia, a
quiromancia, a quironomia e a grafomancia (adivinhação do
escrito), revelam por certos sinais fáceis de ler para qualquer
homem que esteja disposto a se dar ao trabalho de ver: o
caráter, as aptidões, os instintos e as paixões dos homens, e
provando um pelo outro, eles afirmam, por. sua própria
harmonia, que todo o organismo humano está sujeito à influência
de uma única direção:
O cérebro!
Como toda a criação está sujeita a uma única direção:
Deus.76 (DESBAROLES, 1874, p. 7).

Madame de Thèbes, mesmo tendo bebido nas mesmas águas de


Desbaroles, vai aprofundar suas observações no campo místico, espírita e
astrológico, deixando um pouco de lado as considerações dos “cientistas”, para
quem deixa evidente sua antipatia e descrença no seu absoluto poder. Não
deixa, porém, de afirmar que a Quiromancia é uma “ciência exata”. A construção
narrativa que A. de Thèbes faz, parte sempre do pressuposto que a Quiromancia,
e veremos adiante os sonhos também, devem ser apresentadas primeiramente
em suas qualidades científicas, observáveis através da investigação. E posterior,
segue às nuances “insondáveis” dos objetos. Das mais interessantes posturas
de Madame de Thèbes em sua narrativa estão os questionamentos que faz,
sempre buscando contribuir para a construção que está fazendo, de uma lógica,
considerada inacessível às mulheres de sua época, A. de Thèbes talvez fosse
mesmo a “esfinge tebana” de sua época:

Você tem certeza de que Deus falou com Abraão, que Moisés o
viu face a face no Sinai e recebeu dele as Tábuas da Lei? Que

76
A partir de fa phrénologie, èpiàe du crâne qui contient le cerveau «toutes les sciences soumises à
l'influence cérébrale, pomme la physiq'gnomônie, la chiromancie, la chirognomonie et la graphomancie
(divination par l'écriture), révèlent par de certains signes faciles à lire pour tout homme qui veut bien se
'donner la peine de voir : le caractère, les aptitudes, les instincts et.les passions des hommes, et en se
prouvant l'une par l'autre, elles affirment, par. leur harmonie même, que tout l'organisme humain est
soumis à l'influence d'une direction unique : Le cerveau! Comme toute la création est soumise à une
direction unique : Dieul.
185

Jesus é seu filho sem intervenção de homem algum, que voltou


da morte para passar mais quarenta dias na terra? Onde está a
evidência?
Certos homens sinceros nos disseram que era assim, e dessas
coisas irracionais e anormais, aqueles que acreditaram fizeram
dogmas em nome dos quais a humanidade superior é
apaixonada, lutando, sofrendo, esperando, afirmando.
Há pessoas que tiveram suas entranhas arrancadas,
queimadas, entregues às feras, para provar essa verdade que
nada prova. Há outros que mataram seus companheiros aos
milhares pela mesma manifestação. O empirismo, portanto, nos
domina por todos os lados. Apodera-se de nós no momento em
que viemos ao mundo, sem que aqueles que nos puseram lá
saibam, nem imediatamente nem depois, como e sobretudo por
que nos puseram ali, e esse empirismo nem sequer nos
abandona à morte, pois alguns nos prometem o imortalidade da
alma, enquanto os outros apenas nos garantem o nada e nem o
cerne disso ou daquilo traz a ciência para sustentar o dizer.
Consequentemente, se temos apenas que censurar a
Quiromancia por não ser explicável, ela pode nos responder que
tem isso em comum com uma série de coisas das quais nosso
corpo e nossa alma tiram proveito físico e moral diariamente.
Não sejamos tão absolutos em nossas afirmações, diante de
fenômenos misteriosos em suas causas, pois são evidentes por
seus resultados77 (DE THÈBES, 1900, pp. 7 – 8).
Ou seja, A. de Thèbes não se importava com a comprovação de que a
Quiromancia era uma ciência, diferente de seus antecessores que gastavam
muita tinta para isso. Para ela, bastava crer que era uma ciência exata, então ela
seria, sem necessidade de comprovações teóricas, a prática mostraria o que é
necessário. E ousando, comparava a Quiromancia à outras crenças da mitologia

77
Êtes-vous sur que Dieu a parle à Abraham, que Moises l’a vu face à face sur de Sinai, et a reçu de lui les
Tables de La Loi? Que Jesus est son fils sans l’intervention d’aucun homme, qu’il est revenu de la mort por
passer encore quarante jours sur la terre? Où sont les preuves?

Certains hommes sincéres nous ont dit que cela était ainsi, et de ces choses irrationnelles et anormales,
céus qui croyaient ont fait des dogmes au nom desquels l’humanité supérieure se passionne, lutte,
souffre, espére, afirme.

Il y a des gens qui se sont fair arracher les entralles, brùler, livrer aux bètes, pour prover cette cérité que
rien ne prouve. Il y em a d’autres qui ont tué leurs semblables par milliers pour a meme demonstration.
L’emirismo nous domine donc de tous les cótes. Il nous saisit au momenta u nous sommes vênus au onde,
sans que ceux qui nous y mettent sachent, ni tout de suíte ni plus tard, comment et surtout pourquoi ils
nous y ont mis, et cet empirisme ne nous abandone meme pas à la mort puisque le uns nous prometttent
l’imortalité de l’alme, tandis que les autres ne nous garantissent que le neant et que, ni cruxci ci ni céux-
la, n’apportent Scientifique à ‘appui de ler dire. Par conséquent, si nous n’avons à reprocher à la
Chiromancie que de ne pas etre explicable, ele peut nous repondre qu’elle a cela de commun avec nombre
de choses dont notre corps et notre âme font tous le jours leus profit physique et moral. Ne soyons pas si
absolus dans nos affirmations, devant les phénomènes mystérieux dans leurs causes, puisqu’ils sont
evidentes par leus résultats.
186

judaico-cristã, onde nada se poderia comprovar nada, mas que nem por isso
deixaram de serem vistas como verdades absolutas, pelos séculos.

Na obra L’Enigme du Rêve (1908), A. de Thèbes vai reforçar suas ideias


de um desprezo à outras “lendas antigas”, vistas como superstições. Novamente
a profetiza vai ousar afirmando que tudo é superstição: a felicidade, as
distinções, posições sociais, títulos, o conceito de homem e tudo que era
considerado verdade em seu tempo, para ela poderia tornar-se superstição mil
anos à frente. Ela evoca a necessidade de ouvir as vozes do passado, buscando
compreender os mistérios:

Temos o grande defeito de negligenciar, de desprezar as lendas


antigas, as superstições, que, de geração em geração, os povos
transmitem uns aos outros. No fundo, no fundo, há algo sagrado,
talvez uma parte da primeira verdade, uma parte do segredo da
origem do homem. Superstição, logo se diz. Mas tudo aqui
embaixo é superstição, Nossa felicidade pelo dinheiro,
superstição; nossas distinções de fortuna, posição, títulos,
superstição; nossa ideia de homem e sociedade, superstição. As
verdades presentes serão daqui a mil anos ou antes, erro e
superstição. E, sabendo disso, não acho tão fácil como alguns
eruditos podem imaginar, voltar-se para o passado, ouvir suas
vozes e procurar entender por que e como tantos sábios
falecidos estavam relatando para aprofundar mistérios que hoje
são desprezados. . Esses mistérios eram, para eles, as
principais ciências que possuíam. Magos e adivinhos
explicavam os sonhos. Vamos tentar descobrir o que eles podem
me dizer. Nossa ciência moderna, tão facilmente satisfeita
consigo mesma, contenta-se com o sorriso de desdém ou com
a negação da ignorância. Certo ou errado, peço-lhe que me
perdoe por não a ter acreditado infalível, e por me aventurar na
terra dos sonhos para tentar reconhecer este terreno misterioso
e estabelecer um primeiro cuidado menos fantasioso do que
aqueles desenhados em tantos ingênuos Chave dos Sonhos78
(DE THÈBES, 1908, p. 2 – 3).

78
Nous avons le grand tort de négliger, de dédaigner les legendes millenaires, les superstitions, que, de
genération em génération, les peuples se transmettent. Au fond, tout au fond, il y a quelque chose de
sacré, peul-ètre une parl de la verité premiére, une part du secret de l’origine de l’homme. Superstition,
c’est bientôt dit. Mais tout ici-bas est superstition, Notre bonheut par l’argent, superstition; nos
distinctions de fortune de rang, de titres, superstition; notre idée de l’homme et de la soci`té, superstition.
Les vérités presentes seront dans millle ans ou avant, erreur et superstition. Et, sachant cela, je ne trouve
pas si sol que certains sabants brevetés pourraient l’imaginer, de me tourner vers le passé, d’écouter as
voix et de chercher à comprendre pourquoi et comment tant de sages disparus faisaient état
d’approfpndir des mystères qui, aujourd’hui, sont dédaignés. Ces mystères étaient, pour eux, les
principales sciences à posséder. Les mages, les devins expliquaient les songes. Essayons de sovoir ce qu’ils
pouvaient em dire. Notre Science moderne, si aisément satisfaite d’elle-memê, se contente du sourire du
dédain ou de la négation de l’ignorance. Qu’elle ait tort ou raison, j ela supplie de me pardonner de ne
pas la croire infaillible, et de m’être aventurée au pays des rêves pour tenter de reconnaitre ce mystérieux
187

4.1.1.1 Relatos e Profecias


Cartomante no início da vida pública, abraçou a Quiromancia como forma
de ler o destino, como vimos por influência de Dumas Filho, mas Madame de
Thèbes ficou famosa mesmo foi a partir dos Almanaques “proféticos” que
publicava, todos os anos no dia 25 de dezembro. O primeiro: Almanache de
Madame de Thèbes pour 1905: Conseils pour ètre heureux, seguiram sendo
publicados anualmente, até 191779, infelizmente foi impossível resgatar um
exemplar desses publicados, apenas algumas referências feitas em jornais às
profecias mais populares.

No entanto, há muitas citações de profecias de Madame de Thébas que


chegaram até nós, seja pelos jornais, seja por livros biográficos de seus
consulentes que narram suas impressões da Madame francesa. Das maiores e
mais famosa profecias, está, sem dúvidas, a que trata da Primeira Guerra
Mundial. Mas outras, como o alerta dado a Edith Rosenbaum (posteriormente
Russell), repórter de moda do Women’s Wear Daily de Nova Iorque, também se
destaca. Em entrevistas dadas à jornalistas a repórter de moda, narrou seu
encontro com Madame de Thèbes no dia 09 de abril de 1912, um dia antes de
embarcar no Titanic, e teria recebido uma profecia de que viveria em breve uma
“experiência terrível”, onde perderia amigos e coisas materiais, mas que viveria
ainda por muitos anos (WILSON, 2013, p. 22). Não são poucos os relatos das
profecias de Thébas também nos jornais brasileiros.

Encontramos em 1905 uma reportagem que tomava metade da primeira


página no jornal Correio do Brazil, assinada pelo Jornal do Commércio, onde lia-
se o título “O ENTERRO DE SYVETON – predicções de mme. de Thébes”. Em
suma a reportagem trazia um recorte de outra reportagem, essa de um jornal
francês, que não dizem qual. A Reportagem francesa foi publicada dois dias
depois da morte de Gabriel Syveton80. Madame de Thébas é exaltada como

terrain et d’em établier une première care um peu moins fantaisiste que celles dessinées dans tant de
naives Cefs des Songes.
79 É necessário nos lembrar aqui, que Madame A. de Thèbes faleceu em 1916. Ou seja, antes

de falecer a Madame deixou ainda o conteúdo para mais uma Almanaque. Estes almanaques
tiveram grande circulação no mundo todo, e foi reproduzido em vários momentos pelos jornais
brasileiros e cariocas, que traduziam parte de suas previsões para o ano.
80 Gabriel Syveton era historiador e político francês, eleito deputado em 1902. Morreu em 8 de

janeiro de 1905 em sua casa, sufocado por gás. A polícia determinou que ele havia se suicidado,
no entanto figuras políticas da direita nacionalista afirmavam que Syveton havia sido
188

tendo alertado o então político francês para uma “morte brusca”, isso segundo a
reportagem havia sido poucos meses antes. O responsável pelo relato, procura
então a profetiza em sua casa na Wagram afirma que a casa não era nada
extravagante, “na ante-camara” do salão não há coisas extranhas, nem
alambiques mysteriosos. É uma habitação de burguesa, honesta de gestos
elegantes”. Ao descrever a Madame, o repórter afirma: “correctamente vestida
de luto, não tinha nenhuma serpente a assoviar por entre seus belos cabelos”. A
madame conta então como foi a consulta de Sylveton, dezoito meses antes dos
acontecimentos, e afirma que não pôde ver na ocasião, de fato como seria a
morte do político, mas que lhe afirmou que seria “um fim brusco, nem uma hora
ficará doente, como não morrerá na sua cama” (Correio do Brazil, 18 de janeiro,
1905, pp. 1 – 2).

Veremos então no periódico “Arealense”81 de 1909. O artigo que não é


assinado e faz menção a uma visita ao escritório da “Sibyla” em Paris. Assim
como muitos outros repórteres que buscavam entrevistar Mme. de Thébas a todo
novo ano, este que traz aos moradores do interior do Rio de Janeiro suas
perspectivas, sobre a profetiza, faz questão de narrar a visita em detalhes.

Com a Sibyla: o que será o anno de 1909. Madame de Thebas,


como outrora famosa mademoseile Lenormand, cultiva a
chiromancia e goza de uma fama mundial. Muitos se negam a
crer em suas previsões, mas unicamente écho dos que a
procuram e indagam de suas opiniões e prognósticos, atesta,
pelo menos, uma curiosidade inquieta que, de pronto pode se
converter em fé. Os jornais naturalmente têm, mandado, neste
fim de ano, os seus mais hábeis repórteres a madame de
Thébas, e dão aos seus leitores um resumo da conversação
com os augúrios da prophetiza, os quais o público poderia
conhecer pelo Almanack por ella publicado. Como certos
meteorologos anunciam as grandes tempestades ou os
movimentos sísmicos, ela anuncia dramas de família, e as
revelações políticas, prevê a temperatura em poucas palavras,
prevê quase tudo.
Seria dizer muito se dissemos que tudo que ela prevê acontece,
e é preciso para reconhecer a exatidão de suas profecias

assassinado. Syveton havia denunciado na Câmara um esquema envolvendo o Ministro da


Guerra e a Grande Loja do Oriente, onde os maçons reuniam informações sobre militares
contrários ao governo e entregavam essas fichas aos seus superiores maçons (SCHMIGALLE,
2005).
81 Segundo Matos (2013, pp. 12 - 13), o jornal Arealense, criado em 1901, Eduardo Meirelles

Sobrinho e Luiz Bravo, e trazia o desejo de aglutinar cultural e socialmente a população do sétimo
distrito de Paraíba do Sul (RJ), pequena localidade entre Petrópolis e outro distrito do Paraíba
do Sul, Entre-Rios.
189

interpretar depois segundo o acontecimentos passados, as suas


palavras rodeadas de vagos mistérios, porém não lhe faltam a
argucia, observação, inteligência e ciência phychologica. Não
me atreveria dizer que ela lê nos astros ou nos pós mágicos,
porém sei que decifra maravilhosamente bem os corações
humanos (AREALENSE, ed. 389, 18 de março de 1909, pp. 1 -
2).

A reportagem menciona vários famosos que tinham estima pela madame


e seus dons, outros que passaram pelas mãos de Madame de Thébas, todos
tendo seus vaticínios realizados, inclusive Syveton:

Alexandre Dumas professava-lhe grande estima e Zola


mostrava não desprezar seus conselhos "você não morrerá em
sua casa" - e acertou. Havia dito antes ao General Boulanger:
"tereis uma morte trágica, ferido por um tiro". E ao Marquez de
Moré: "Tereis muito longe daqui uma bonita morte violenta".
Enfim sabe-se que ela disse a Syveton: "Tendes signal de uma
morte brusca, dramática, sensacional que impressionará o
mundo" (AREALENSE, ed. 389, 18 de março de 1909, pp. 1 - 2).
A precisão dos oráculos da “pitonysa” é evocada, além da qualidade em
ser modesta, por não exigir de ninguém a fé cega em suas profecias. Ou seja,
quem quer que fosse escrevendo, estava fazendo um grande elogio à Madame
de Thébas. Além disso ressalta aspectos importantes de sua residência que
afirma ter visitado. No entanto é possível notar que quem quer que fosse
escrevendo a reportagem, teve acesso ao relato do jornalista francês, sobre a
morte de Syveton, pois utiliza as mesmas ideias para construir o cenário da casa
da Pytonisa. Mas, alguém que parte do Rio de Janeiro para Paris, leva consigo
suas bagagens e leva também seus preconceitos, sem deixar de fora na
narrativa que constrói aos seus conterrâneos símbolos que lhe faça sentido.
Quando afirma que no salão de Madame de Thébas não havia animais
embalsamados, ou aparatos fantásticos, mas que era tudo “da mais honrosa
burguesia”. Afinal, no Rio de Janeiro, não havia espaços “elegantes” se
dedicando aos vaticínios da sorte?

Tudo isso não prova grande coisa, e se pode dizer que os céticos
são aqueles que não veem nem ouvem, porque não querem ver
nem ouvir.
É curioso, pelo menos e a própria Madame de Thébas não exige
uma fé cega em seus vaticínios, tem tanta modéstia quanto
clarividência. Para saber o que nos sucederá no ano de 1909 fui
visitá-la a sua habitação, discreta e com todo o conforto possível,
190

nada tem de estravagante ou desordenado. No vestibulo no


salão não se vê aparatos fantásticos, nem animais
embalsamados, nem retortas. Tudo é burguês, da mais honrosa
burguesia, elegante e moderada , de modo que no momento que
Madame de Thébas aparece à porta de sua sala e convida uma
pessoa a passar ao seu gabinete, não se sente decepção ao vê-
la com um simples traje preto e sem serpente alguma que silve
em sua cabeleira (AREALENSE, ed. 389, 18 de março de 1909,
pp. 1 - 2).

O repórter diz ter tido a chance de ouvir da própria madame de Thébas,


sua preferência pela astrologia dentre todas as “sciencias”. Assim como, as
previsões para o ano de 1909, que segundo a astróloga traria a influência do
planeta Marte.

-A astrologia, disse-me Madame de Thébas, é a minha sciencia


predilecta, e o estudo de influência dos astros que é segundo o
meu entender a verdadeira fonte do conhecimento. Vivemos sob
a ação das correntes magnéticas e os actos humanos são
regidos pelas influências astrais. Isto é pra mim um princípio...
Eu soube então que em breve a influência de Marte se vai fazer
notar (AREALENSE, ed. 389, 18 de março de 1909, pp. 1 - 2).

Ele faz questão de citar as palavras ditas pela profetisa, para que
nenhuma detalhe se perdesse de seus simbolismos e metáforas. E nada de bom
era visto para o ano de 1909, onde uma passagem de Mercúrio para Marte, traria
“terríveis acontecimentos”.

Porém quero dar a palavra a prophetiza, não se deve modificar


nem desenvolver cousa alguma de suas violentas metaphoras e
de seus nebulosos simbolismos. Eis aqui reproduzidas com
rigorosa exatidão, as suas previsões: - Depois de Mercurio virá
a influência do planeta Marte. Depois das Intrigas os resultados.
Digo que por conseguinte, que 1909 será um ano vermelho. "Em
todas as partes onde o homem se eleva a um grau maior de
civilização, mais sensível as radiações astraes, mais
impressionável, mais acessível as influências que o perdem
depois de lhe haver servido, nunca terão sido maiores os perigos
de guerra e tudo anuncia que não se livrará das sugestões de
furor. "Eu não creio que depois de haver maduramente refletido
que o perigo seja maior quando se principia a sentir a influência
de Marte, a menos que o fogo irrompa subtamente, é de crer que
a terrível tensão se dê de agosto de 1909 a fevereiro de 1910.
Si nessa data a Europa não estiver inteiramente abalada pelas
convulsões da guerra e o resto do mundo não estiver
profundamente perturbado uma "era nova" começará em uma
calma relativa e Mercúrio terá sobrepujado a Marte durante pelo
menos um novo ciclo de anos. Entendo por "era nova" a
191

modificação profunda das condições econômicas e sociais de


todos os povos (AREALENSE, ed. 389, 18 de março de 1909,
pp. 1 - 2).

Nas palavras de A. de Thébas, lia-se a sorte do mundo inteiro, país a país,


continente a continente, sorte de assassinatos, disputas, colônias se revoltando,
perigo e guerra:

- "O destino nos procederá com golpes theatrais. A França


saberá opor-se as surpresas da sorte... as tempestades
marítimas terão por ela, suas vizinhas consequências sem
precedentes. Que o fogo irrompa ou não nela ou em torno dela
é certo que irrompera em suas longínquas possessões coloniais
especialmente asiáticas. "Demais o perigo deve abrasar a
Europa provirá de uma questão colonial e africana. Teremos
mais tréguas em outros lugares do que em Marcos. Em resumo
perguntei, não espera a guerra, a conflagração dos povos? -Sim,
é dominante do ano a iminência do perigo de guerra e a
possibilidade de escapar-lhe por muito tempo, se dobrarmos o
cabo de 21 de março. Mme. de Thebas via tudo sombrio.
Descobria só em toda parte acontecimentos sombrios
(AREALENSE, ed. 389, 18 de março de 1909, pp. 1 - 2).

Questões climáticas eram importantes de serem pautadas, também em


suas previsões, o ano de 1909 não seria favorável nem nisso. Assim como,
afirmava que o fogo e a água seriam flagelos. Dias terríveis, mas “uma cidade
entre muitas” sofreria maiores desgraças e “parecerá merecida”.

Por exemplo enquanto a temperatura me assustou. -Teremos


um tempo brutal, uma espécie de exasperação climática,
desprovida de termos médios e, passando de um extremo ao
outro. Mau ano para várias regiões e uma quantidade de flagelos
desolando as terras cansadas. Vários inimigos parasitários,
farão estragos sérios, e o meio dia se agitará. Por outro lado, o
meio dia sofrerá as provas da água e do fogo, do fogo!... que ano
de incêndios! Quantas noites sangrentas! Uma cidade entre
muitas outras será a principal vítima e sua desgraça parecerá
merecida: o mundo inteiro lamentará (AREALENSE, ed. 389, 18
de março de 1909, pp. 1 - 2).

E nada parecia mesmo escapar dos tristes dias de Marte, nem os amores,
nem as mulheres, nem as amizades, nem os negócios, nem mesmo o teatro.
Tudo está fadado, naquele ano, a perecer de grandes escândalos, vinganças,
violência, tudo terrível!
192

Enquanto as histórias de amor, serão terríveis, Mme. de Thebas


prediz escândalos, como nunca se viram. As mulheres se
entregarão a excessos até agora desconhecidos. "O drama
maior e o escândalo provirão do ódio entre mulheres...os
rancores femininos produzirão o seu completo efeito. Cuidado
com as falsidades, as vinganças e as intrigas! As combinações
de amor e de negócios se azedarão de pronto e terminarão mal.
Sensato será quem as souber evitar. Eis aqui o que diz respeito
a sociedade parisiense...e as demais. Enquanto ao Theatro...
anno de lutas para o theatro e as artes. Sim, haverá lutas nos
teatros si houver concorrência. De outro lado nenhuma obra de
grande mérito e algumas ruidosas caídas (AREALENSE, ed.
389, 18 de março de 1909, pp. 1 - 2).

Já para as Cortes estrangeiras, a Madame ressalta as transformações na


Alemanha: “Si já houve tormentos que surpreendesse aos homens, os que
esperam a Alemanha lhes causarão estupefação”. Assim como para as disputas
na Prússia, a possibilidade de a Áustria tornar-se uma “grande potência”: O
sucessor de Francisco José se viver, reconstituirá o seu império pelo amor e pela
vontade”. Na Inglaterra previa grandes mudanças e luto: “aquele que acreditar
ter não terá por que não poderá e renunciará”, as palavras de Madame de
Thébas sempre cheias de lacunas, como boas profecias devem ser, vinham
trazendo o futuro do mundo para o ano de 1909:

Enquanto as côrtes estrangeiras, a Alemanha pode esperar


profundas transformações. Si já ouve tormentos que
surpreendesse aos homens, os que esperam a Alemanha lhes
causarão estupefação. A luta na família imperial está iminente e
as dificuldades cresceram com a Prússia, inquieta entre eslavos
e os latinos que a Áustria cercará. A Áustria eis ai a grande
potência futura e uma grande obra que começa. A influência de
uma mulher com dotes admiráveis e também desconhecida do
público é considerável, Os tempos chegaram. O sucessor de
Francisco José se viver, reconstituirá o seu império pelo amor e
pela vontade. Na Inglaterra, câmbios enormes e pesado luto,
aquele que acreditar ter não terá por que não poderá e
renunciará. Na América a calma se restabelece e surgem novos
cataclismas. Na Rússia há probabilidade de que o governo seja
mantido e fortalecido. Na Espanha, um porvir magnífico se abre
aos jovens soberanos, Na Itália dobra luto em Roma: agitação
enorme entorno de S. Pedro e da Consulta. Muitos cairão: não
será a maior aquela que cuja queda causar maior ruido e tiver
maior consequência para a paz do mundo. Madame de Thebas
me disse muitas coisas. Predisse cataclismas, dramas,
revoluções, tudo negro, E a culpa toda é de Marte cuja secção
brutal deplora: é um cego e um furioso. É uma fera!
(AREALENSE, ed. 389, 18 de março de 1909, pp. 1 - 2).
193

Não há dúvidas de que Madame de Thébas era uma mulher muito bem-
informada das situações políticas e sociais pelo mundo, suas profecias de 1909
refletem isso. E de sua fama, a profecia que ganhou maior destaque na história
foi aquela que fez no Almanaque de dezembro de 1913, para o ano de 1914,
onde previa guerra. Mas como vimos, já em 1909 as previsões da Madame eram
de guerra, disputas, fogo. O deus Marte já estava agindo nas influências bélicas
há tempos, segundo ela. De fato, o início da Primeira Guerra Mundial em 1914
deu vazão às profecias e inúmeras crenças de que havia uma disputa no campo
espiritual, do bem contra o mal e de que a razão pura estava levando a “frieza”
ao espírito dos homens (RUICKBIE, 2018; DAVIS, 2018).

As previsões de madame de Thèbes, a francesa, foram marcantes e


deixaram o nome da pitonisa registrado em muitas vidas. Suas obras
inauguraram um pensamento magístico que buscava um balanço entre a total
racionalização da magia e a fantasia mística. A. de Thèbes ainda precisa ser
mais bem estudada, em suas obras e na repercussão de seu nome, coisa que
com certeza deve extrapolar esta Tese.

4.1.2 Madame de Thébas e seus desdobramentos


Madame de Thèbes não viu o fim da guerra que previu o início. Sua morte
em 1916 de tuberculose aos 71 anos (DAVIS, 2018), no entendo, foi confundida
com a morte de outra Madame, que assumiu seu pseudónimo “Thébas”, em
1937. Essa outra Madame de Thébas não era francesa e sim Boêmia. Atendia
com leitura de cartas na Golden Lane em Praga e em 1937. A Thébas boêmia
fez uma previsão sobre Hitler no momento de sua franca ascensão. Disse ela,
que o então líder Nazista morreria em breve. Isso à colocou no caminho da
Gestapo, o que obviamente não era algo interessante para ninguém quando o
Nazismo se fortalecia na Europa. Sua morte foi logo providenciada pela polícia
secreta alemã. No entanto, a notícia que saiu em 10 de dezembro de 1937 no
New York Times, traz a foto de Anne Victorine, como a Madame de Thébas em
questão. Não era Anne Victonine a morta naquela dezembro, e sim Matylda
Průšová, a Thébas de Praga que se tornou praticamente uma lenda urbana,
onde sua imagem e história se misturam com a de Anne. Madame de Thèbes
deu origem à muitas histórias, mitos e desdobramentos, aqui conseguimos
194

resgatar três obras inspiradas em Anne Victorine Savigny, um filme, uma opereta
da qual infelizmente não temos grande informações, e um HQ.

4.1.2.1 O Filme Madame de Thèbes

Antes de sua morte, A. de Thèbes teve seu pseudônimo usado como título
de um filme mudo sueco, escrito por Martin Jørgensen e Louis Levy e dirigido
por Mauritz Stiller82. A película original de 68 minutos estreou em 2 de agosto de
1915 na Suécia. Este é o primeiro filme de Mauritz Stiller e foi considerado
perdido por décadas, quando foi reencontrado na França em 2004. Enviado para
Suécia foi restaurado e sua versão restaurada com 50 minutos foi lançada em 3
de abril de 2007, com um prólogo e três partes.

A história é uma crítica às regras de uma ordem social rígida e


compartimentada. No Prólogo Ayla (personagem de Ragna Wettergreen), uma
jovem cigana grávida de um não cigano, foi amaldiçoada por seu pai o “Kings
Gipsy”, a nunca saberia como é o amor materno pois perderia seu filho, e a
expulsa de sua comunidade (Figura 28) Na sequência, a Condesa Julie (Marta

82MADAME Thébas. Mauritz Stiller. Produção: B. Svenska Biografteatern. YouTube, (1915)


2017. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=gzVW7PYX96A&t=1445s>. Visto em
01. 06. 2020.
195

Halldén) que está com o filho recém-nascido doente, recebe uma


correspondência de seu marido Robert, felicitando pelo nascimento do filho e
dizendo que continuaria lutando contra o inimigo Von Volmar. Ayla carregando o
julgo da maldição de seu pai, resolve abandonar seu bebê e chega ao jardim da
casa da Condessa Julie. Deixa a criança no gramado e corre, mas um guarda a
intercepta e retorna com ela, onde havia deixado o filho que nesta altura já havia
sido encontrado com Julie (Figura 29). A condessa recebe em sua casa a cigana
com o filho, em sequência o seu bebê que estava doente morre (Figura 30) e
Ayla vai embora deixando um bilhete com seu filho abandonado: “Por favor cuide
de meu filho, ele nunca verá sua mãe” (Figura 31). Julie encontra o “filho da
cigana” e seu bilhete e se alegra por ter encontrado a solução para o problema
de seu filho morto. Coloca então o “filho da cigana” no lugar de seu herdeiro
(Figura 32), e leva o filho morto para o lago, onde não sabia, mas a cigana
espreitava observando a casa. Quando Ayla vê um bebê morto se aproxima e a
condessa lhe diz que ficaria com seu filho, pois seu bebê estava morto. Julie
entrega um colar com uma foto sua à Ayla como recordação de seu filho (Figura
33).

Figura 28 - Cena da Maldição do Rei Cigano


196

Figura 29 - O Guarda, Ayla com o filho nos braços e a Condessa Julie

Figura 30 - Codessa Julie constatando a morte de seu filho.


197

Figura 31 - Ayla escrevendo o bilhete de abandono de seu filho

Figura 32 - Condessa Julie e o "Filho da Cigana".


198

Figura 33 - Julie dá um colar com sua foto para a cigana Ayla.

A Parte um do filme inicia trinta e cinco anos depois, com a condessa Julie
doente esperando seu filho, o então já sucessor do pai, Conde Robert (Nicolai
Johannsen). Antes de morrer a condessa lhe entrega uma carta onde conta a
história de seu nascimento e lhe informa que a cigana que é sua mãe tem um
colar com uma foto de Julie (Figura 34). Seu empregado na sequência entra na
sala e lê a carta e se mostra interessado, mas Robert não lhe diz nada e esconde
a carta.

Figura 34 - Conde Robert e a carta secreta de sua origem.


199

Então, na casa do Barão Von Volmar, inimigo do Conde Robert (o pai),


vê-se Von Volmar (Albin Lavén) lendo um jornal onde dizem (Figura 35): “Crise
Ministerial. O Conde Robert pode ser eleito ministro de relações exteriores,
mesmo com a oposição de Volmar. A advinha Madame de Thèbes será
consultada sobre o assunto, visto seu entendimento sobre temas políticos”
(MADAME THÉBAS, 1915, 12 min). Na cena seguinte vemos o empregado do
Conde Robert falando com Volmar ao telefone e dizendo que tem algo para ele,
é a carta sobre a origem de Robert que o empregado rouba para Von Volmar.
(Figura 36).

Figura 35 - Jornal que Von Volmar lê.

Figura 36 - Empregado ligando ao Barão


200

Figura 37 - Empregado do Conde Robert falando com Von Volmar.

Logo vemos Von Volmar indo ao gabinete de Madame Thébas para saber
de sua sorte, como faziam muitos aristocratas e políticos, pela fama que tinha a
madame e suas previsões (Figura 38). Thébas ao analisar a mão do Barão lhe
diz que vê a esperança de uma grande vitória política e assina A. de Thèbes
(Figura 39). No Parlamento, Volmar apresenta a predição de A. de Thèbes como
uma prova de seu valor, e é recebido com grande alegria por seus partidários. A
profecia de Thèbes é evidentemente muito considerada por aqueles homens
poderosos, suficiente para garantir a vantagem do Barão e acender a discórdia
entre os partidários de Conde Robert (Figura 40), que pedem que alguém
detenha a mulher.

Figura 38 - Barão no Gabinte de Thèbes

Figura 39 - Barão Volmar se consulta com a Madame de Thébas.


201

Figura 40 - A profecia de Volmar.

Figura 41 - As reações da profecia feita por Madame Thébas no Parlamento.

A Segunda Parte inicia com o “comércio sujo”, onde vemos o empregado


de Conde Robert vendendo a carta da condessa Julie ao Barão Von Volmar que
202

vê vantagens em saber que seu opositor é na verdade filho de uma cigana. Na


sequência Volmar telefona para Madame Thébas e lhe conta as novidades sobre
seu opositor, sem imaginar que a Madame era a mãe Cigana de Robert (Figura
42). Madame Thébas decide então, ir até o Conde Robert, seu filho, para alertá-
lo da arma que seu oponente possui, mas ao chegar ao jardim de entrada da
casa do conde, a Madame vê seu pai, novamente proferindo a maldição que fez
no dia em que à expulsou de sua comunidade (Figura 43), por isso resolve então
ir embora e entregar seu medalhão à quem pensa ser filha do Barão Volmar,
mulher que viu beijando Robert (ela havia sido salvado a moça de um assalto
pelo Conde, e foi até a casa deste avisá-lo, também, sobre o que lhe faria o
Barão).

Ao final da segunda parte, vemos o conde no escritório de Madame de


Thébas, logo depois dela preparar seu medalhão para ser entregue “à senhorita
Volmar”, dizendo que confiava nela para guardar aquele medalhão, que logo ela
saberia a importância. Conde Robert ouve sua profecia, que em suas mãos
também havia esperança de vitória, e nega acreditar, apenas se a profetiza
soubesse lhe dizer quem é sua mãe (Figura 44). Madame de Thébas lhe diz que
ele é filho do destino e que sua mãe está condenada a negá-lo, que ele deveria
deixar de pensar nisso e pensar na amada que o esperava.

Figura 42 - Madame de Thébas recebendo a notícia de seu filho "Conde” Robert"


203

Figura 43 - Madame Thébas e o fantasma do Rei Cigano.

Figura 44 - Mãe e Filho

A terceira parte inicia, novamente com Von Volmar lendo um jornal, onde
está a notícia de que Madame Thébas foi presa na noite anterior. E logo entra
sua filha com a carta que Madame Thébas lhe enviou, sem saber do que se
204

tratava, entrega junto com o colar da Condessa Julie. Von Volmar se alegra e
mostra a carta da Condessa à sua filha, afirmando que agora tinha todas as
provas de que Robert era um simples aventureiro (Figura 45).

Com a saída de Volmar para o Parlamento, Louise Volmar (Karin


Molander) se vê aflita com a questão, querendo ajudar seu amado Robert (figura
46). No Parlamento Von Volmar segue com sua ideia de apresentar as provas
de que Robert é filho de uma cigana e por isso não está habilitado a disputar o
ministério, enquanto Louise Volmar vai à prisão falar com Madame Thébas sobre
como poderiam ajudar ao Conde Robert (Figura 47). As duas trocam de lugar,
Madame Thébas sai da prisão e segue para o Parlamento, onde da bancada vê
Conde Robert ser empossado como Ministro das Relações Exteriores. E logo em
seguida o ataque de Von Volmar que diz que Robert não poderia ser Ministro
pois era “Filho de uma Cigana, Madame de Thébas” (Figura 48).

Do alto da bancada Madame Thébas grita que não é a mãe de Robert e


desmaia. Acudida por Volmar é levada para uma sala reservada, Madame
Thébas lhe entrega uma carta escrita por sua filha que diz que tomaria veneno
caso levasse à diante os planos de prejudicar Robert (Figura 49). Volmar pede
perdão a Robert que vai a prisão buscar Louise. Ao retornar, fica sozinho com
Madame Thébas que lhe entrega a carta que havia sido roubada dele e diz que
não responderá mais nada (Figura 50). Ao dizer isso madame Thébas cai morta
e de seu bolso cai o cordão da Condessa Julie, prova que de fato era a mãe de
Robert, que o negou até o fim, completando a maldição rogada pelo Rei Cigano.

Figura 45 - Volmar e sua filha, com as provas.


205

Figura 46 - Louise Volmar aflita por seu amado Conde Robert.

Figura 47 - Louise Volmar e Madame Thébas.

Figura 48 - Agitação no parlamento com a origem de Robert.


206

Figura 49 - Volmar e Madame de Thébas.

Figura 50 - Madame Thébas negando seu filho Robert pela última vez.
207

Segundo Rieffel (2017), a película além de demonstrar o poder da


clarividente Madame de Thébas, que tinha políticos em suas mãos, faz uma
crítica à sociedade aristocrática que mesmo tendo na cigana uma ferramenta
para uso do poder, impõe um lugar aquém por sua origem. O que sabemos da
história de Anne, a A. de Thébes, inspiração do filme, é que ela não teve filhos,
e que não era de origem cigana, mas possuía grandes poderes sobre políticos
de sua época. A problematização da hierarquia social e do preconceito com
ciganos dá senso político ao filme, servindo também a nós, para pensar sobre a
relação que tem o poder e a razão com a crença, mesmo que velada, no destino
e nos poderes ocultos.

4.1.2.2 Opereta Madame de Thèbes


Durante as pesquisas sobre os desdobramentos da “quase mítica”
Madame de Thèbes, resgamos, com auxílio do Projeto Teatro Musicado de São
Paulo de 1914 a 193483, a exibição da Opereta Madame de Thèbes, em vários

83 Uma base de dados financiada pela FAPESP e CAPES que reúne todos os espetáculos
teatrais exibidos em São Paulo entre os anos de 1914 e 1934. Disponível em:
<https://teatromusicadosp.com.br/pesquisar-espetaculos>.
208

teatros de São Paulo, de 1920 a 1934, com 92 exibições. A partir desses


registros, passamos a buscar mais informações sobre a Opereta.

Opereta, segundo Neves (2018) é um gênero de teatro musicado, de


origem francesa que chegou ao Brasil no final do século XIX e imbuído de
polêmica fez sucesso nas terras tupiniquins. Ainda segundo Neves, os estudos
que a antecederam definem a opereta como “um gênero popular, cômico, de
grande espetáculo, que intercala cenas cantadas com cenas faladas”, mas
afirma que essa definição não é aprofundada (NEVES, 2018, p. 42).

No caso que aqui nos interessa, a Opereta Madame de Thèbes, de autoria


do Carlo Lombardo, italiano, comediante, compositor e libretista, assina texto e
música da opereta, que segundo os jornais da época fez grande sucesso em
São Paulo.

Infelizmente não foi possível resgatar o livreto da opereta, e nem maiores


informações sobre seu roteiro, apenas o áudio dos três atos cantados da peça84,
e a imagem do vinil de registro da obra (Figura 51). Ficando a dúvida ao final,
sobre a forma como era abordada a “Madame de Thèbes” na opereta. Mesmo
que saibamos que o gênero retratava comumente comédias, era uma releitura
da história da Madame A. de Thèbes, falava sobre a guerra, ou suas profecias?
Isso ficará para pesquisas futuras responderem. É interessante, porém, verificar
que a opereta de origem italiana, teve mais de noventa apresentações em treze
anos na cidade de São Paulo, encontramos registros também de apresentações
no Rio de Janeiro85 e em Curitiba86, mas não chegaram ao sucesso que foi em
São Paulo.

84 Opereta Madame de Thèbes – Acto 1 . Disponível em:


<http://www.canzoneitaliana.it/madame-di-thebes.html>. Acto 2 (Duetto dele Campane)
Disponível em: <http://www.canzoneitaliana.it/duetto-delle-campane.html>. Acto 3 (Spesso a
cuori e picche). Disponível em: <http://www.canzoneitaliana.it/spesso-a-cuori-e-picche.html>.
85 O Jornal Correio da Manhã apresenta a propaganda da Opereta “Madame de Thebas” em
1920, 1921, 1923 e em 1928, curtas temporadas em teatros da cidade.
86 Para o ano de 1927, encontramos a programação de espetáculos e Madame de Thèbes foi

apresentada pela Companhia Clara Weiss no Teatro Palácio em 13 de novembro.


209
Figura 51 - Vinil da Opereta Madame de Thèbes.

Em1921, podemos ver uma breve nota no Correio Paulistano, sobre a


apresentação de Madame de Thèbes no Casino Antarctica, apresentado pela
Companhia Clara Weiss.

Figura 52 - Companhia Clara Weiss

Fonte: Teatro Musicado SP.


210

CASINO

É esta noite que se realiza no Casino Antarctica a estreia da


Companhia Italiana de Operetas Clara Weiss, cujos
espectaculos serão a preços populares.
Como tems noticiado, a apresentação popular companhia de
operetas se dará com interessante trabalho do maestro
Lombardo “Madame de Thebes”, que a mesma “troupe” nos fez
conhecer em sua ultima temporada nesta capital (Correio
Paulistano, 9 de março de 1921, p. 3, ed. 20721).

Ainda no Correio Paulistano, em maio de 1927 podemos ler um pouco


sobre a impressão do público à apresentação da Companhia Clara Weiss, que
fazia o papel de protagonista, além do nome dos demais artistas que
participavam da encenação:

Cassino – Festival de Clara Weiss – “Madame de Thèbes”.


Com a Apresentação da interessante opereta de Lombardo,
“Madame de Thebes”, a graciosa e querida atriz Clara Weiss,
realizou hontem o seu festival artístico.
Apesar do mau tempo, o “Cassino” esteve completamente cheio.
A opereta, levada à cena pela primeira vez na actual temporada,
é das mais queridas do nosso público.
O desempenho que lhe deu a Companhia Clara Weiss agradou
francamente pois a numerosa assistência foi prodiga em
aplausos e pedidos de bis.
Clara Weiss esteve inteiramente à vontade no papel de
protagonista.
Siddivó Salvador aplicou os seus melhores recursos (ilegível) e
conseguiu trazer a plateia em hilaridade.
Gargano, Innocenzi, M. Siddivó, Fronzi, Finero, antini, Piloni,
Appezato, os demais artistas contribuíram eficazmente para o
bom êxito do espetáculo.
Cores, Orchestra e ballados a contento.
Clara Weiss foi chamada a scena várias vezes e foi muito
aplaudida.
211

Terminou o bello espetáculo com interessante acto variado que


foi bastante apreciado (Correio Paulistano, 25.06. 1927, p. 5,
ed. 22963).

O sucesso, em São Paulo, de uma opereta italiana, que inclusive fez


apresentações com preços populares, possivelmente teve origem na
comunidade imigrante italiana no Estado, que segundo Alvim (1986) e Trento
(1989) chegava, em 1920, à 70% dos imigrantes italianos do Brasil. E como
veremos a seguir, Carlo Lombardo não foi o único italiano à inspirar-se em
Madame de Thèbes.

4.1.2.3 HQ DAMPHYR
Analisando a produção artística, entorno da figura de Madame Thebas,
dos dias mais atuais, encontramos a HQ de nome “DAMPYR” criada pelo Italiano
Sergio Bonneli nos anos 2000. Onde uma Madame de Thèbe aparece como
personagem. Essa Thébas de Bonneli (Figura 53) está entrelaçada à história
popular da região de Praga na República Checa, onde o turismo da rua Golden
Lane fatura com a lenda de um cartomante. Magdalena Prusova ou Matylda
Průšová, teria sido uma cartomante e astróloga que morava na Golden Lane,
número 04, a mesma rua onde viveram os “Alquimistas” de Rodolfo II de
Habsburgo, rei da Bohemia e da Hungria, imperador do Sacro Império
Romano Germânico, no século XVII (DAUXOIS, 1999).
212

Figura 53 - Madame de Thèbe HQ DAMPHYR

Fonte: HQ DAMPYR, nº12, p. 33.

Sobre Matylda Průšová, a Madame Thébas de Praga, poucas


referências confiáveis, as informações que temos se envolvem
drasticamente com a ficção criada por Bonneli em sua HQ, mas Dauxois
(1999), afirma que houve uma Madame de Thébas em Praga e que ela
predisse a queda de Hitler. No HQ de Bonneli, a Madame de Thebas,
Magdalena, foi morta pela Gestapo, justamente por seu vaticínio. O turismo
local “vende” a história de Matylda/ Magdalena como “Madame de Thebas”
sem referenciar a Madame de Thebas francesa, A. de Thèbes, mas como
vimos na ocasião da Thèbas de Praga, onde a foto da Thèbas francesa foi
colocada no New York Times, essa confusão entre as duas é mesmo muito
antiga.

Toda a apresentação traçada por nós até aqui sobre Madame de


Thébas busca compreender melhor essa personagem histórica, quase
mítica, que nosso objeto de pesquisa escolheu abraçar como pseudônimo
para seus ganhos como cartomante no Rio de Janeiro. O fato de um homem
ser cartomante por si só já chamava atenção na época, mas escolher um
nome de mulher para isso, colocou Avellar, novamente em um rol de
destaque. Mas ao conhecermos um pouco mais sobre a proprietária original
do nome Madame de Thébas, conseguimos compreender também o porquê
213

da escolha. Madame de Thébas era um nome forte, uma mulher e uma


pitonisa famosa que ultrapassou os limites de uma vida, e conseguiu morrer
duas vezes, ou três, se considerarmos Avellar como uma terceira “Madame
de Thébas”. O mercado da cartomancia no Rio de Janeiro era concorrido, a
polícia e suas batidas nos permitiram conhecer um pouco melhor esse
mercado, através de muitas camadas de preconceito e violências.

Agora que já compreendemos melhor a figura da Madame de Thèbes,


voltemos ao Rio de Janeiro em 1907, para verificarmos outras batidas
policiais, feitas na mesma época em que Avellar foi pego como a madame.
Buscaremos apresentar, brevemente, também outras cartomantes que
foram encontradas pela polícia nos anos que se seguiram, deixando assim
uma possibilidade para pesquisas futuras.

4. 2 Cartomantes no Rio de Janeiro

Ao tratarmos das cartomantes no Rio de Janeiro entre os anos de 1890 e


1942, tal como dos espiritas, curandeiros, “feiticeiros” de todos os tipos, estamos
falando de um tipo de gente, vista como criminosa, pelas autoridades. E dessa
maneira, é através dos processos criminais, inquéritos policiais e recortes de
jornais que conseguimos rastrear informações dessas pessoas e suas práticas.
Para a construção desta Tese, os processos que consultamos aqui como fontes
foram recolhidas durante a pesquisa do Mestrado no acervo vastíssimo do
Arquivo Nacional.

Entre o período de pesquisa do Mestrado (1917-2019) e da construção


desta Tese (2019 – 2023), muitas coisas mudaram na prática do fazer a História,
para a temática que nos dedicamos, o que precisa ser mais bem compreendido.
214

Em 2016 quando construíamos o projeto que seria posteriormente avaliado pelo


Programa de História Comparada da UFRJ, nossa ideia era estudar as peças do
famigerado “Museu de Magia Negra”, tombadas pelo SPHAN em 1937 e sob a
guarda do Museu da Polícia Civil, na época. No entanto, as peças em questão
não eram vistas há mais de dez ano, nem mesmo pelos técnicos do IPHAN, o
máximo que conseguimos na época foi o Processo de Tombamento do “Museu
de Magia Negra”. A pesquisa que então pensamos inicialmente não se mostrou
viável, e já que não era possível ter acesso às peças, fomos aos processos e
inquéritos que originaram o tal Museu.

Para os personagens desta Tese, em suas crenças e práticas religiosas,


não há acaso. Todo acontecimento pode ser previsto e a sincronicidade dos fatos
se explica pela entidade suprema que coordena a vida: o Destino. Seguindo a
ideia da sincronicidade não podemos deixar de notar que no mesmo momento
em que estávamos buscando saber mais sobre o Museu da Magia Negra, junto
ao IPHAN, foi iniciado um movimento, Civil-religioso, para a “Libertação do
Sagrado”. Este Movimento que contou com a organização de religiosos afro-
brasileiros, e o apoio do gabinete de Flávio Serafini, então Deputado Estadual
pelo PSOL/RJ, buscava “Libertar” peças sagradas que foram presas, durante os
anos de vigor do Código Penal de 1890, pela Polícia do Rio de Janeiro, e que
compunham o dito Museu de Magia Negra.

Destino, sincronicidade, Lei de Afinidade, o Sagrado, quem pode dizer? O


que importa é que em 2020, ano em que já estávamos dedicados à pesquisa
desta Tese, depois de uma árdua batalha na justiça, envolvendo interesses
públicos e pessoais e muito racismo religioso, os Religiosos saíram vitoriosos e
conseguiram, enfim, “libertar” as peças do “Museu de Magia Negra” e
renomeadas, já em nova organização no Museu da República o Acervo Nosso
Sagrado.87 Em meio a uma pandemia que assolava o mundo, religiosos e
pesquisadores do tema comemoravam uma conquista de décadas, o agora
Acervo Nosso Sagrado estava “livre” e bem abrigado em um museu que contava

87Todo o processo de transferência para o Museu da República desta coleção, foi acompanhado
e analisado pelo amigo e Historiador Luiz Gustavo Alves, e pode ser muito mais profundamente
compreendida em sua dissertação: “Liberte Nosso Sagrado” as disputas de uma reparação
histórica (2021).
215

com a direção de Mario Chagas, museólogo comprometido com a causa religiosa


que envolvia aquelas peças.

Em novo golpe do destino, ainda em 2020 fui convidada88 a participar de


um grupo de pesquisadores chamado “Egbé”. O nome dizia muito daquelas
pessoas, comprometidas com uma nova leitura dos fenômenos históricos,
sociais e políticos que envolvem as práticas religiosas “espiritualistas”, reunia um
número considerável de pesquisadores de várias partes do Brasil. Ali encontrei
nomes já conhecidos e novos nomes que se tornaram amigos e parceiros. No
início de 2021, uma nova etapa das pesquisas envolvendo o contexto da
repressão a religiosos foi inaugurada. Com o fomento da empresa Quiprocó
Filmes, foi organizada uma junta de pesquisadores para trabalhar diretamente
com o Acervo Nosso Sagrado no Museu da República.

Pela primeira vez em um século, historiadores, museólogos e


pesquisadores interessados na temática poderiam ter acesso direto ao Acervo.
Novamente um movimento de ajuda mútua se organizou e foram reunidos
processos, inquéritos, recortes de jornais e colocados à disposição deste
movimento89. Citando então a fala do historiador Dr. Eduardo Possidônio: A partir
do Acervo Nosso Sagrado é impossível falar em religiosidade no Rio de Janeiro,
sem buscar essas referências.

E aqui estamos nós, recorrendo, não somente aos processos e inquéritos


que tínhamos antes de todo este trabalho do destino, mas também às fontes e
trabalhos que tivemos acesso com o grupo Egbé (processos e inquéritos
levantados por outros historiadores e um acervo vastíssimo da pesquisa
realizada pela grande professora Yvonne Maggie, que se encontra totalmente
digitalizado no CPDOC). Assim, apresentaremos aqui o contexto da “profissão”
de cartomante no Rio de Janeiro, sem deixar de notar as questões de gênero

88 Obrigada Caio Moraes, pelo convite e por fazer um excelente trabalho coordenando e
organizando esses pesquisadores que como eu, não estavam mais sozinhos pesquisando
“macumbeiros” pelo Brasil.
89 Não podemos deixar de citar o trabalho espetacular que o Historiador Eduardo Possidônio vem

realizando diante de tantas dificuldades que foram também se impondo, porque obviamente nem
tudo são flores, mas o trabalho de pesquisa, rastreio e cruzamento de informações, feito por
Possidônio, construiu uma galeria de consulta aos processos, recortes de jornais, através de
planilhas, que é gentilmente cedida aos pesquisadores que delas precisarem.
216

que envolviam esta prática e seu diálogo com nosso personagem Vicente Avellar
no contexto da repressão que estudamos nesta Tese.

No período de vigência do Código Penal de 1890, temos, até o momento,


o conhecimento de 33 ocorrências policiais envolvendo “cartomancia” em
diversos contextos. Na tabela 1 apresentamos o nome, ano, gênero, tipo de
prática relacionada no Processo ou Inquérito Policial, a referência de onde essa
fonte foi retirada e observações quando possível. As categorias de práticas
variam entre: cartomante; afro-carioca cartomante; cartomante leitura de mão e
curandeiro cartomante. A partir desta tabela podemos observar algumas
questões pertinentes, primeiro a presença significativa de mulheres entre os
envolvidos com cartomancia e segundo, a quantidade de nomes “estrangeiros”.
217

Tabela 2 - Registros de Cartomantes (CP 1890)

Nome Gênero Ano Prática Referência AN Observação

Zebinda Costa Braga 1895 Cartomante


Fem. ACERVO YM - CPDOC SEM MAIS

BR RJANRIO
Marcella Maria de Oliveira Fem. 1898 Cartomante Habeas Corpus
BV.0.HCO.0458

Afro-carioca
Manoel Gomes Masc. 1904 ACERVO YM - CPDOC SEM MAIS
Cartomante

Joana da Rosa
Fem. 1904 Cartomante ACERVO YM - CPDOC SEM MAIS
Rosalina de Maria

Curandeiro BR RJANRIO
Vicente Ferreira Avelar Masc. 1907 Inquérito
Cartomante CQ.0230

BR RJANRIO
Laura Fernandes Fem. 1907 Cartomante Inquérito
CQ.0269

Curandeira BR RJANRIO
Maria de Carvalho Faria Fem. 1907 Inquérito
Cartomante CQ.0274

BR RJANRIO
Antonia Sampaio Fem. 1907 Cartomante Inquérito
CQ.0275

BR RJANRIO
Luiza Bigamo Fem. 1907 Cartomante Inquérito
Maço 2536 N 299
218

Inquérito
João Pinto Mas. 1912 Cartomante BR RJANRIO CS.0.PCR.701
Processo

Inquérito
João Pinto da Silva Mas. 1919 Cartomante BR RJANRIO CS.0.PCR.1666
Processo

Maria da Conceição Fem. 1927 Cartomante ACERVO YM - CPDOC SEM MAIS

Inquérito
Alice Abdo Fem. 1927 Cartomante BR RJANRIO CS.0.PCR.4567
Processo

Julieta do Patrocínio Cartomante Inquérito


Fem. 1927 BR RJANRIO CS.0.PCR.4612
Vasconcelos Afro-carioca

Francisco José Moreira Cartomante Inquérito


Masc. 1927 BR RJANRIO CS.0.IQP.4802
(Chico Padre) Afro-carioca

Maria da Silva Teixeira Fem. 1928 Cartomante BR RJANRIO CS.0.IQP.4802 Inquérito

BR RJANRIO
Manoel Mendes da Câmara Masc. 1928 Cartomante Habeas Corpus
CS.0.HCO.6164

Inquérito
Eduardo Pinto Masc. 1929 Cartomante BR RJANRIO CS.0.PCR.4983
Processo

Conceição Sugranez Martinez Fem. 1930 Cartomante ACERVO YM - CPDOC SEM MAIS
219

Carmen Armindo Fem. 1931 Cartomante ACERVO YM - CPDOC SEM MAIS

Virginia Pires Fem. 1931 Cartomante ACERVO YM - CPDOC SEM MAIS

Luiza Belém Fem. 1931 Cartomante ACERVO YM - CPDOC SEM MAIS

BR RJANRIO
Helena Wilson Fem. 1934 Cartomante Inquérito
CS.0.IQP.7536

Badia João Masc. 1936 Cartomante ACERVO YM - CPDOC SEM MAIS

Adelíce Duarte Fem. 1937 Cartomante ACERVO YM - CPDOC SEM MAIS

Telka Abussumara Fem. 1937 Cartomante ACERVO YM - CPDOC SEM MAIS

BR RJANRIO
Tristana Gutierrez Fem. 1937 Cartomante Inquérito
CS.0.IQP.8091

BR RJANRIO
Catharina Smith Fem. 1937 Cartomante Habeas Corpus
CS.0.HCO.8133

BR RJANRIO
Amalia Augusta Gonçalves Fem. 1939 Cartomante Inquérito
CS.0.IQP.8633
220

BR RJANRIO
Durvalina de Oliveira Pereira Fem. 1939 Cartomante Inquérito
CS.0.IQP.9399

Izabel Coelho Fem. 1940 Cartomante ACERVO YM - CPDOC SEM MAIS

Cartomante
Olga Nicolette Fem. 1940 ACERVO YM - CPDOC SEM MAIS
Leitura de mãos

Nair de Assis Andrade BR RJANRIO


Fem. 1940 Cartomante Inquérito
Monteiro CS.0.IQP.8811

Fonte: Tabela Acervo Nosso Sagrado.


221

4.2.1 – As Esfinges e seus enigmas


A Esfinge que pairava ao pórtico de Tebas e foi, segundo o mito, derrotada
por Édipo, lançava enigmas aos jovens homens que a desafiavam. No Rio de
Janeiro, as cartomantes eram procuradas por homens e mulheres que
desejavam ter solucionados os seus enigmas, mas o quanto eram satisfeitos
seus desejos de clareza e definição do futuro, não há como saber. Vamos
recuperando apenas partes do enigma que eram as próprias cartomantes. Em
sua maioria mulheres, apresentavam-se sem medo nos jornais da cidade,
mesmo que isso pudesse garantir uma batida policial a qualquer momento, mais
enigmas.

A obra Machadiana “A Cartomante”, apresenta o “sintoma” de um


problema, que era a polícia da Capital quem enfrentava, desde aqueles anos
(1869 é quando data o enredo do drama): a oposição da razão e da emoção,
onde se aproveitavam as “sibilas” da “ingenuidade” e do “desespero” para ganhar
seu sustento. Machado de Assis apresenta a cartomante como uma mulher
italiana, morena e magra, com “grandes olhos sonsos e agudos”. A previsão que
a Cartomante fizera para Camilo, na ocasião da trama, demonstrou-se
completamente errada ao final, quando morto por Vilela, encontra Rita, “dama
formosa e tonta, sua amada proibida, no mundo dos mortos. Rita que antes
também havia encontrado a paz de espírito através daquelas cartas, era casada
com o amigo de infância do amado Camilo. Vilela, o traído resolveu toda a
questão de amor e ódio com dois tiros em cada amante. E a cartomante que
nada viu, ficou comendo passas com a nota de dez Réis que Camilo lhe deu em
gratidão.

“Há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia”, poderia
ser Hamlet ou Rita ou Vicente Avellar ou Madame de Thébas ou qualquer cliente
ou esfinge cartomante do Rio de Janeiro. A busca por desbravar os mistérios do
destino e do amor, levava há muitos a subirem ladeiras do Morro do Castelo ou
entrar em sobrados de “paredes sombrias” e “ar de pobreza”. Com o Código
Penal de 1890 a cartomancia passou a ser considerada crime: usar de
“cartomancias para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de
moléstias curáveis ou incuráveis, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade
pública”´(CP, 1890, art. 157).
222

O que observamos no vasto mundo de processos e inquéritos policiais


que este Código Penal deu origem é que havia um amplo mercado de
cartomancia na cidade, mulheres e homens que “deitavam” cartas para ler a
sorte e o destino de quem os procurava. No entanto, entre as pesquisas que
utilizam esses mesmos processos como fontes, ainda não deram o devido valor
às cartomantes, onde podemos observar um nicho da sociedade carioca que os
historiadores têm dificuldades em acessar, sobretudo: as mulheres.

Apesar dos mais de trinta processos que temos hoje disponível para
análise, onde é possível resgatar histórias e personagens certamente, tão ricos
quanto o que pretendemos desbravar nesta Tese, vamos apresentar sete que
estão englobados entre 1904 e 1907, este último ano, o ano da Caçada às
Cartomantes, feita pela polícia, onde foi preso “a Madame Thébas” carioca,
Vicente Avellar. Vamos então compreender melhor os personagens que
aparecem neste contexto.

4.2.1.1 Manoel Gomes90


Português da Ilha de São Vicente (Cabo Verde), o homem com mais de
50 anos, mas sem saber ao certo sua idade, filho de Antonio Gomes e Maria da
Luz da Conceição, recebeu a visita da polícia em sua casa na Rua Venâncio
Ribeiro, número 2, casinha no Bairro de Engenho de Dentro. Segundo o
depoimento do Inspetor de Polícia Francisco de Paula e Silva, 43 anos,
acompanhado do Inspetor João Gomes Gouvêa Júnior, ao passarem na Rua
Venâncio Ribeiro, viu um grande grupamento de pessoas em frente à casa
número dois. Ao entrarem na residência, encontraram Manoel Gomes
“praticando espiritismo, magia e seus sortilégios achando-se presente e
sujeitando-se a todos os sentimentos que lhes incutiam o acusado presente mais
de vinte pessoas entre homens e mulheres”.

90 Agradeço aos companheiros do Grupo Egbé, em especial a Eduardo Possidônio pela


elaboração das tabelas com transcrição dos processos e inquéritos levantados no Arquivo
Nacional e no Arquivo do CPDOC das fontes utilizadas pela professora Yvonne Maggie.
223

O policiais educados “pediram licença” e só depois deram voz de prisão à


Manoel no artigo 157 do Código Penal. Passaram então a vistoriar a casa e
encontraram uma lista significativa de objetos:

Diversas imagens; diversos pratos com amendoins e pipocas de


milho em frente as imagens de Santo Onofre e São Cosmo;
grande quantidade de figas de madeira de guiné, buzios e favas
de Santo Ignácio; duas figuras de madeira representando
Satanáz em cruzes também de madeira escura e um crucifixo
de metal branco em cruz de madeira pintada de preto, tendo as
extremidades pequenas [tornos?] de osso; em um quarto duas
galinhas pretas, diversos cascos de boi, rabos de arraia e
diversas pelles de cobras diferentes, em um outro quarto chifres
diferentes e grandes quantidades de hervas desconhecidas e
duas pelles de cabrito, um par de meias de algodão brancas
amarradas em três nós e bem lenços tudo servido, encontrado
mais um baralho de cartas, e um bode preto de grande chifres
(NA 6ª Vara, Caixa 1817, p. 3 – 4).

Manoel foi identificado pelos policiais como “curandeiro”, assim afirma o


Inspetor João Gomes ter ouvido do próprio acusado: “que há muito tempo exerce
a profissão de curandeiro, e isso por meio de ervas e água e sempre para fazer
o bem e não mal, que é a sua casa é sempre frequentada por gente muito boa e
de dinheiro”. Os objetos encontrados na residência, em muito se referem às
práticas afro-brasileiras: “animais, peles, cascos, ossos, ervas, búzios e pipocas
em frente a uma imagem de São Onofre”. No entanto, a presença de um baralho
de cartas lhe dá uma “classificação” a mais: cartomancia.

Era bem possível que o baralho de cartas encontrado fosse mesmo para
consultas, ou não, poderia ser apenas um baralho comum. Como não há
descrição do tipo de baralho encontrado, apenas aceitamos a informação da
polícia e entendemos que era um baralho utilizado para leitura da sorte,
juntamente com os búzios. Essa relação de práticas afro-brasileiras e
cartomancia não é algo raro de se ver, apesar de ter a cartomancia quase
sempre relacionada à magia europeia, a prática dos sortilégios no Rio de Janeiro
não descartava nada.

Sabemos que Zebinda Costa Braga, presa em 1895, era preta baiana e
costureira, que foi presa por prática de cartomancia aos 38 anos na Rua Senador
Pompeu, número 266, onde encontraram um baralho de cartas. Através do
224

testemunho de duas clientes sua Maria Blum (Russa, costureira, 30 anos) e


Maria Hortência (Brasileira, casada, doméstica e grávida de 8 meses), Zebinda
colocava cartas pela quantia de 2 mil Réis e estava naquele dia em sua casa
para consultá-la. O processo de Zebinda é dado como improcedente naquela
ocasião, no entanto em 1904 João do Rio afirma na coluna “Os Feiticeiros” do
Jornal Gazeta de Notícias (Edição 0080, 20 de março de 1904) traz uma imagem
da mulher (Figura 54) e afirma que Zebinda é cartomante e “faz[ia] Candomblé”:

Zebinda
É uma negra baixa, gorda e dada a festas. Morou um tempo na
rua do Senador Pompeu. Seu pai é o tio Antônio, empregado do
Banco Alemão, também feiticeiro célebre.
Zebinda está agora na travessa das Partilhas. Só tem um prazer
na vida: dar festas, danças, fazer candomblés. Gasta todo
dinheiro que ganha – e ganha muito – nas festas e proteção
anormal que dá a certas amigas.
Esta negra é cartomante e não faz nada sem despachos ou
ebós, pede 20$000 por cada um e arranjou um feitiço: o rabo de
boi, preparado com rezas para mistérios do amor...

Figura 54 - Zebinda "Yaô" e Cartomante

Com a referência ao processo de Zebinda tornamos a ver o uso das cartas


por “feiticeiros” afro-brasileiros o que demonstra que a prática nunca foi exclusiva
dos feiticeiros e cartomantes “europeus”. Se Manoel Gomes era mesmo
cartomante não tem como termos certeza, já que no processo nada é
mencionado pelas testemunhas sobre o uso das cartas para ver a sorte,
deixando o Caboverdiano mais ligado às práticas de curandeirismo que da
225

cartomancia. Avellar, no entanto, é o melhor exemplo de que as práticas


poderiam dialogar e serem exercidas pelo mesmo “curandeiro-cartomante”.

4.2.1.2 Joana da Rosa e Rosalina de Maria


Joana e Rosalina eram Russas, uma com 22 e a outra com 21 anos, foram
presas em flagrante na Rua do Catete, número 88-A. Segundo o português de
18 anos, José Pereira Duarte, morador daquele endereço, as mulheres foram
acusadas por “estarem fazendo sorte mediante dinheiro” e que arrecadaram a
quantia de seis mil Réis “de alguns incautos”. Ao que parece pelos depoimentos,
as mulheres não moravam naquele endereço, estavam ali para praticar a
cartomancia, mas foram denunciadas por moradores. Joana afirma não saber o
nome da Rua onde moravam e Rosalina nada diz de sua moradia.

Joaquim Custódio de 29 anos, brasileiro e guarda civil é responsável por


dar voz de prisão para as mulheres e afirma que moradores às acusaram de
estarem “praticando sortilégios mediante dinheiro”. Já, José Francisco Pereira
de 41 anos, enquanto achava-se naquele endereço viu serem presas as duas
mulheres que ali estavam “praticando sortilégios e esmolando”.

Joana da Rosa, a russa, dizia ser casada e ter 22 anos de idade, não nega
a prática da cartomancia, coisa mais comum entre os acusados no artigo 157.
Pelo contrário a moça afirma viver da cartomancia e que já estava no Brasil há
muito tempo fazendo esta “indústria”. Afirma ter vivido muito tempo em São
Paulo e na Cidade de Santos e vindo de lá para o Rio de Janeiro. Já Rosalina
de Maria, de 21 anos, casada e russa, afirma ser companheira de Joana com
quem faz a vida da mesma forma, pondo cartas.

Ambas são processadas na Comarca Criminal pelo artigo 157, mas o


processo é arquivado em janeiro de 1905 por ordem do Promotor Sampaio
Viana. No momento da prisão havia sido pedida uma fiança de sessenta mil réis,
mas não há menção de pagamento, o que nos faz crer que as russas ficaram
cerca de um mês na casa de detenção, que era o caminho para aqueles que não
tinham condições de arcar com a fiança pedida.
226

4.2.1.3 Laura Fernandez


Laura Fernandes, foi presa pelo movimento feito pela Delegacia de Polícia
do Terceiro Distrito, aquele que viemos nomeando de Caçada às Cartomantes,
desde nossa dissertação de Mestrado, e que é descrita pelo Jornal do Brasil de
17 de junho de 1907 como a “Última Cartada” da polícia carioca. Laura recebeu
a visita de um agente no dia 30 de maio de 1907, dizendo-se interessado em seu
anúncio no jornal, que segue no alto da página inicial do inquérito policial:
“‘Cartomante habilitada, dizendo com clareza os atrasos da vida comercial ou
particular, aconselha para melhor futuro, na rua da Alfandega 161, sobrado.’
(Anúncio dos jornais desta Capital)” (NA. CQ. 0269, p.1).

A mulher espanhola de 40 anos mais ou menos, afirmava ser casada e


residente na Rua da Alfandega número 161. Afirmou ao agente, sem saber com
quem falava, e por afirmar este que buscava saber sobre seus negócios da
profissão de cartomante, que efetivamente trata da cartomancia, mas que seus
anúncios nos jornais eram mais para atrair os homens para sua casa, porque
seu verdadeiro meio de vida era a prostituição e que por este meio fazia jus às
suas despesas.

Tal como vemos nos outros processos disponíveis do mesmo contexto de


caçada às cartomantes, os policiais chegavam à residência das cartomantes,
levados por anúncios nos jornais e apresentavam-se como possíveis clientes
que estavam ali buscando seus serviços de cartomantes, conseguindo dessa
forma a confissão dos acusados. Com Laura Fernandes não foi diferente, no
entanto, sua confissão ia além, a cartomancia era forma de mascarar sua
verdadeira profissão.

No Inquérito, vemos o depoimento de testemunhas com datação posterior


da “visita” do policial à Laura, três declarações de homens e de uma mulher,
onde vemos que o escrivão repete termos utilizados no anúncio de Laura nos
jornais e de sua própria “confissão” ao agente policial. A primeira testemunha é
Antônio Cunha, brasileiro, 25 anos, solteiro, empregado público, morador da rua
do Riachuelo 215, presta depoimento no dia 28 de agosto de 1907 e afirma que:

Foi atraído por um anúncio que viu nos jornais desta Capital,
dirigiu-se a Rua da Alfandega, 161, residência da espanhola
Laura Fernandes e ali encontrando-se com esta procurou
227

consultá-la e ela respondera-lhe que de fato praticava a


cartomancia para a cura de moléstias curáveis e incuráveis, mas
que sua verdadeira profissão era o caftismo, recebendo em sua
casa homens e mulheres que ali vem satisfazer gozos.

No mesmo dia prestou declaração José Augusto de Gouvêa, brasileiro,


32 anos, casado, empregado público, morador na Rua Pernambuco, número 23
na Estação de Engenho de Dentro. José afirmou que sabia, através da própria
Laura Fernandes, que:

a acusada exerce a profissão de cartomante e o caftismo. Que


ela se anuncia cartomante e de fato exerce essa profissão para
cura de moléstias, mas que faz dela um meio de atrair homens
e mulheres à sua casa para a prostituição exigindo ela
pagamento de homens e mulheres que usam sua casa para a
satisfação de gozos, desejos e paixão.

Ainda no dia 28 de agosto, prestou declaração também Joaquim Alves


Pereira, brasileiro, 33 anos, solteiro, empregado público, morador na Rua Matriz
do Engenho Novo, número 33. Afirmou ele:

conhecer Laura Fernandes e que ela pratica a cartomancia


dizendo ser capaz de pôr esse meio curar quaisquer moléstias
curáveis e incuráveis e assim se anuncia francamente nos
jornais da cidade. Diz além disso ela é também caftina pois
presta sua casa para o encontro de homens e mulheres que ali
vão satisfazer gozos.

Por último, temos a declaração dada no dia vinte e dois de dezembro por
Nathália Varela Coelho, natural da República Ocidental do Uruguay, com 32
anos, afirmava ser casada e doméstica, moradora na Rua da Alfandega 161.
Nathália em sua declaração dizia ter cedido, “por favor” à Laura Fernandes, um
quarto de sua residência à mais ou menos seis meses e que esta não fazia
moradia ali e sim em Niterói. Laura, segundo Nathália, vinha “as vezes” até o
sobrado, para pôr cartas para homens e mulheres que a procuravam. Segundo
Nathália:

Laura fazia cartomancia pelas formas propondo-se dizer com


clareza os atrasos da vida comercial e particular por meio das
cartas. Dizendo a declarante que chegou a pouco tempo de
228

Montevidéu e ignora as leis do País e cedeu sua casa a Laura


Fernandes de boa fé.

A distância no tempo entre as declarações prestadas pelos homens e a


prestada por Nathália chama a atenção. Os policiais não fazem questão de dizer
como chegam aos homens, nem como eles conhecem Laura, nem se foram
clientes de suas cartas e de seus outros serviços. E Nathália é a única que nada
comenta sobre a “prostituição” feita em sua residência, já que segundo ela, Laura
não morava lá, apenas ia “as vezes” pôr cartas para alguém. Ter cedido um
quarto de sua residência para Laura “por favor” parece estranho para qualquer
um que pense na problemática da moradia na cidade, um aluguel na Rua da
Alfandega poderia gerar renda para Nathália que se dizia doméstica. No entanto,
seu silêncio para o fato de Laura receber homens e mulheres na casa como
“cafetina” pode nos indicar que na verdade, Nathália era a cafetina em questão,
e estava ali depois de muito ser procurada pela polícia, a fim de “despistar” os
agentes para algo que poderia atrapalhar os seus negócios.

O processo de Laura segue e nada mais é dito sobre as informações


dadas por ela e por outras três testemunhas, de que sua verdadeira fonte de
renda era a prostituição. Condenada à reclusão por seis meses em 08 de junho
de 1905, nada mais sabemos sobre a espanhola.

4.2.1.4 Maria de Carvalho Faria


O inquérito de Madame Pereira, como Maria de Carvalho Faria, de mais
ou menos 30 anos, brasileira, casada com João Gualberto de Pereira Faria,
assinava nos anúncios de jornais, segue o mesmo formato dos demais Inquéritos
daquele ano de 1907. E quando observamos comparativamente os inquéritos,
podemos perceber então, quem são os homens que servem de testemunhas,
elencadas. Os três nomes presentes no Inquérito de Laura Fernandes,
aparecem também no de Madame Pereira: Joaquim Alves Pereira, José Augusto
de Gouvêa, Antônio Cunha, prestam suas declarações no dia 28 de agosto de
1907, todos informam ser “empregados público”, mas é fácil concluir que são
agentes policiais, já que novamente estão participando do Inquérito policial,
afirmavam saber que Maria de Carvalho Faria era “cartomante”. Não há outros
229

depoimentos além dos três homens em questão, e Maria é condenada em 8 de


junho de 1908 há seis meses de prisão celular.

4.2.1.5 Antonia de Sampaio


Seguindo o mesmo padrão de Inquérito dos anteriores, no dia 30 de maio
de 1907 é aberta a investigação contra Antonia de Sampaio, brasileira de 45
anos, viúva de cor branca, moradora em um cômodo à rua General Camara n.
200, “declarou ser costureira, mas viver também da cartomancia”. O anúncio
apresentado no alto da página inicial do inquérito revela informações
interessantes:

Alta Cartomancia – senhora possuidora dos maiores


conhecimentos de ocultismo, dizendo com clareza os atrasos da
vida, perita na descoberta de qualquer mistério e realização de
prognósticos auxiliada pelo talismã da sorte, trabalho único
garantido, dá consultas menores de mil réis à pessoas que não
possam dispor de mais, pelo novo Sistema Lenormand, das 10
horas em diante, na Rua General Camara n. 200, sobrado
(anuncio publicado nos jornais desta capital).

Pela primeira vez vemos referência direta ao “Sistema Lenormand”,


atribuir-se o título de Alta Cartomancia, podia ser um diferenciador justamente
pela utilização das cartas deste sistema. O fato de ter um valor mais baixo para
consultas menores àqueles que não podiam pagar a consulta maior também é
um diferencial para qual não encontramos outras referências.

O Inquérito de Antonia, diferente dos outros dois já descritos, não possui


o mesmo fim. As declarações são dadas, novamente pelos senhores Joaquim
Alves Pereira, José Augusto de Gouvêa, Antônio Cunha que afirmam saber que
Antonia é cartomante:

Pratica[ando] a cartomancia e seus sortilegios para despertar


ódio, paixão ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis e
incuráveis e praticando todos os artificios para fascinar e
subjulgar a credulidade pública. Sabe a acusada, além de sua
profissão de cartomante prática também o lenocínio, prestando
a sua casa a prática da prostituição, onde se encontram homens
e mulheres dos quais ela acusada serve de (ilegíve), exercendo
230

desse modo o papel de aborteira (Declaração de Joaquim Alves


Pereira, pp. 3 – 4).

No entanto as declarações não são suficientes para formar acusação de


Antonia, e seu inquérito é arquivado em 8 de junho de 1908. O formato do
Inquérito sendo o mesmo dos demais nos alertou para o fato deste ser o único
em que aparece a cor da acusada: branca.

4.2.1.6 Luiza Bigamo


O Inquérito de Luiza Bigamo, espanhola de 41 anos, residente na rua do
Riachuelo, n. 27, segue padrão parecido com os anteriores, mas tem início em
26 de julho de 1907, e não conta com declaração dos “servidores públicos” que
apareceram em todos os inquéritos daquele mês de maio. No Inquérito de Luiza
há também a declaração direta da própria, coisa que não aconteceu nos
anteriores.

É o mesmo Inspetor que faz a investigação nos casos de maio, mas neste,
os testemunhos são mais variados. Logo na página inicial vemos datilografado
o resumo da acusação: “Da sindicância que mandei proceder ao seu respeito,
estou informado ser Mme. Luiza, cartomante e prostituta, publicando o anúncio
acima para mais atrair a expectativa de clientes”. O anúncio dizia: “Cartomante
– Mme Luiza, espanhola, boa tiradora de cartas, dá consultas só a senhoras das
7 horas da manhã às 9 horas da noite, preço 2$ na rua Riachuelo, n. 27 (AN,
maço 2536, nº 299, p. 1).

Em seu depoimento Luiza afirmou ser verdade que “bota cartas”, mas que
só fazia isto pois é doente e não pode trabalhar. Já Alberto Casemiro Botelho,
no dia sei de agosto de 1907, declarou ser brasileiro, ter vinte e quatro anos,
solteiro e residir na mesma casa que Luiza na Rua Riachuelo, n. 27 e que sabe
que ela vive de Cartomancia. Maria de Oliveira Sacchi, trinta anos, casada e
residente na mesma casa que Luiza, sabe que ela vive de cartomante e tem visto
muitas pessoas entrarem no quarto dela, o que fizeram lá não sabia dizer. Ao
que parecia todos os moradores da casa de cômodos sabiam que Luiza vivia de
“cartomancia” e a polícia pega o depoimento de seis moradores do sobrado,
231

todos afirmando saber da profissão de Luiza. No entanto, mesmo com todos os


depoimentos o Inquérito é arquivado por falta de provas suficientes em 10 de
setembro de 1907.

4.2.1.7 Vicente Ferreira Avellar


Voltamos então para ele, o professo Vicente Ferreira da Cunha Avellar,
agora para saber mais detalhes de seu Inquérito policial de 1907 anunciando-se
nos jornais como “Madame Thébas”, cartomante, voltamos ao nosso tébas. O
inquérito segue o padrão da Caçada às Cartomantes iniciada em maio daquele
ano. Na primeira página um anúncio de cartomancia inicia o documento, seguido
pelo resumo da investigação, onde o inspetor afirma:

Julgando estar tratando com alguma vítima de sua especulação,


declarasse ao agente exercer a profissão de curandeiro,
ministrar remédios, receitar para cura de impotência e outras
moléstias e que para fazer acreditar na eficácia de suas curas
tem exposto em seu escritório paisagem de medicamentos
(ervas do mato).
Que usa nome suposto (nome de uma mulher) para atrair a sua
casa boa freguesia (AN, CQ 0230, p. 1).

Antônio Cunha, Joaquim Alves Pereira e José Augusto de Gouvêa,


mesmos “servidores público” declarantes nos inquéritos de Antonia Sampaio,
Maria de Carvalho Faria e Laura Fernandes retornam aqui no Inquérito de
Avellar. Os três afirmam saber que Vicente Avellar pratica curandeirismo e
cartomancia, prometendo cura de todos os males por diversos meios. As
acusações. no entanto, são arquivadas em 8 de junho de 1908, tal como das
mulheres que já vimos. Sabemos, porém que Avellar foi preso na ocasião e
quando liberado houve o arquivamento de seu processo, se ele tivesse sido
condenado, o tempo de prisão já teria sido cumprido, garantindo de qualquer
forma sua liberação. O mesmo podemos concluir para às demais cartomantes
que tiveram seus processos arquivados somente em junho de 1908.

Os sete Inquéritos que apresentamos aqui, relacionados a cartomancia


nos revelam um campo para maiores investigações sobre as cartomantes no Rio
de Janeiro. A relação da cartomancia e das mulheres, além da observação da
prática de cartomancia associada à prostituição também, são objetos instigantes
232

para pesquisas futuras que dialogam com o que foi apresentado nesta tese e o
contexto da repressão, mas extrapolam seguindo pelas linhas das experiências
religiosas. A presença inegável de estrangeiros e estrangeiras pondo cartas é
também outro fator que deve estimular novas investigações para colorir ainda
mais o cenário das experiências religiosas no Rio de Janeiro.

Avellar era personagem atuante em uma cidade que fervilhava no


caldeirão das experiências e da resistência. As páginas dos jornais aparecem
como ambiente de disputa, negociação e denúncia. Avellar soube usar a seu
favor tudo que tinha ao seu alcance, assim como muitos outros faziam.

Cobras e lagartos
RUA S. JOSÉ, 9 -1
Chamamos atenção da polícia para a celebérrima cartomante Rachel,
a qual vive de adivinhar o futuro, extorquindo aos incautos quantias a
pretexto de lhes dizer o que lhes há de acontecer.
A casa desta mulher serve mais para pouco de entrevistas a mulheres
casadas, e outras muitas coisinhas que a polícia deve esmerilhar. A
mesma com um tipo a que estabeleceu à custa do produto da sua
indústria. S. Ex. o Sr. Chefe de polícia deve sindicar desse negócio, e
acabar de vez para sempre com o charlatanismo que infesta e explora
o povo incauto.
O Juca Rosa (O CARBONÁRIO, 1882, ed. 148, p. 3).

A assinatura dessa denúncia-pedido à polícia é de ninguém menos que


Juca Rosa. Dificilmente seria o mesmo Juca Rosa que Sampaio (2000), nos
revela o processo de prisão em 1872. O Carbonário, jornal em questão aparece
como sendo um dos mais conservadores e apelativos na prisão das cartomantes,
feiticeiras e espíritas no fim do século XIX no Rio de Janeiro (DEL PRIORE,
2014). Possivelmente, no caso da denúncia da “Cartomante Rachel”, figurinha
fácil nas páginas de anúncios dos jornais como Jornal do Commercio e Diário do
Rio de Janeiro, a assinatura de Juca Rosa, servia apenas para chamar mais a
atenção do leitor e assim das autoridades.
O assunto era recorrente nas páginas dos jornais, de tempos em tempos
as denúncias apareciam, as críticas e provocações aos que acreditavam nos
“vaticínios” das mulheres que anunciavam seus serviços naquelas mesmas
páginas. Os jornais estavam impregnados da crença nas profecias, e dos
embates entre aqueles que defendiam um maior controle, e mesmo a
233

criminalização efetiva dessas práticas (Figura 55), e os que mantinham


semanalmente seus pequenos anúncios, que certamente resultava em clientela.

Figura 55 - Denúncia Cartomante no Beco do Cotovelo.

Continuam a serem agarradas e incomodadas as pessoas que


passam pelo Beco do Cotovelo, por um homem mangas de
camisas, a fim de levar a um cartomante; é preciso que a
autoridade acabe com este escândalo abuso, pois nem todos
que passam n’este beco vão para tirar cartas.
Um madeireiro (GAZETA DE NOTÍCIAS, 5 de maio de 1882, ed. 123,
p. 3).

A concorrência nos jornais era grande como observamos, e esses


profissionais tinham outros modos de divulgar seus trabalhos, a denúncia do
“madeireiro” na Gazeta de Notícias mostra isso. Desde os anos 50 do século XIX
os periódicos trazem chamadas com anúncios de cartomantes, sonambulas,
quiromantes, profetisas, que leem a sorte das mais variadas formas. Sempre
enfatizando que seus métodos vinham da Europa.
É interessante notar, porém, que os anúncios, dos serviços de
cartomancia, só começam a aparecer nos jornais cariocas a partir da edição das
Cartas de Lenormand, editada em 1856 pela H. Laemmert & C. Terá sido algum
tipo de “febre” das cartomantes? Reflexo da edição das cartas no Brasil? Ou
como indaga Del Priore (2000), foram as “ciganas coloridas” que no Campo da
Aclamação ofereciam seus serviços, as responsáveis por introduzir a técnica da
cartomancia no Rio de Janeiro? Leriam as mesmas 36 lâminas do Baralho de
Lenormand, ou algum outro tipo de cartas? São algumas perguntas que não
serão respondidas ainda nesta Tese, mas colocamos aqui como provocação
para pesquisadores que virão.
234

Vicente Avellar, a nossa Madame Thebas, foi preso em 1907 por se


anunciar nos jornais da Cidade, como representante da Cartomante francesa.
Aos policiais afirmou se anunciar como mulher para atrair melhor clientela. Era
uma estratégia de diferenciar seu público, ele sabia quem era a Madame Thebas,
e sabia que se anunciando como tal se diferenciava da maioria que estava no
“mercado” das cartas e profecias.
Analisando os jornais, vemos que antes de Avellar, nenhum outro teve a
coragem, ou a ousadia de se intitular a própria Madame Thebas. Avellar vai além
das expectativas em um contexto que parecia desfavorável para ele, desde sua
mudança profissional, de professor à cartomante. Certamente, havia perdido
clientela desde que fora preso em 1904, apesar de afirmar em seu livro de 1909
que havia saído fortalecido daquele processo, mas ao se anunciar como Thebas
demonstra que havia uma necessidade de trazer mais valor aos seus serviços,
e quem melhor para isso senão a própria Pytonisa da moda francesa.
Tal como Avellar nos anos de sua primeira prisão, outros “professores e
professoras” apareciam ora ou outra, desde os anos 70 do XIX, anunciando
serviços de cartomancia e quiromancia nos jornais. O “Professor Mágico Bonnici,
em 1872, anunciava “Magnetismo sem sonambulismo e cartomante, etc, etc, etc”
(Figura 56), o que são muitos eteceteras para um anúncio tão pequeno. O
Sonambulismo aparecia na época como uma das categorias de “atendimento”,
assim como o “magnetismo”, ele oferecia o último, sem o sonambulismo, parecia
um avanço de “técnica”. Mas sobretudo, o fato de anunciar-se como professor :
Figura 56 - Professor Magico Salvador Bonnici91

Outra que na mesma época se anunciava como professora era Thereza


Meraldi, em anúncios que por sinal eram de nenhuma modéstia sobre seus
feitos. Tal como observamos com Avellar, a falta de modéstia é estratégia nesse
marketing “sagrado” (Figura 57). Ela diferente de Bonnici, afirmava ser

91 Fonte: Diário de Notícias, 11 de junho, 1872, p. 4.


235

“sonambula magnetizadora”. E afirmava ainda ter aprendido através da técnica


do fundador do magnetismo “Sr. Mesmer”92:

Figura 57 A Grande Adivinha Professora Thereza93

Fonte: Jornal da Tarde, 16 de março de 1878, p. 4. Ed. 0059.

Os títulos nesse ramo são importantes, Mademoiselles, Professores,


Madames, os colocavam em alta instancia social. Seus sobrenomes, mesmo que
não fossem os sobrenomes verdadeiros, davam a impressão de serem
estrangeiros, e principalmente, não negros. Os anúncios revelavam o que
queriam enfatizar, eram da “alta sociedade”, com instrução. Falavam para os
“cultos”, brancos, de alta classe e que buscavam a magia longe da “barbárie”
dos africanos. Estavam sem dúvidas disputando um mercado, e já durante a

92 Sem dúvidas, era do médico alemão Franz Mesmer (1734 – 1815), que Thereza se referia.
Mesmer defendeu sua tese de doutorado em Viena, sobre a influência dos planetas no corpo
humano, levantando a teoria de que haveria um fluido que se expandia por todos os indivíduos
e que poderia ser manipulada para operar a cura. Fonte bibliográfica inválida especificada..
93 “GRANDE ADIVINHA DO UNIVERSO. Acaba de chegar do Sul a muito conhecida professora

de várias sciências. Thereza Meraldi. Sonambula Magnetizadora pelos estudos do Dr. Mesmer,
fundador do magnetismo; a maior cartomante d’este século pelos estudos da astrologia e como
tal conhecida em todo mundo. Adivinha todo o passado, presente e futuro com a legítima
cartomancia, única professora que a tem. Esta afamada professora tem a honra de oferecer as
suas salas de consultas a todas as pessoas que a desejarem consultar. A professora fala vários
idiomas acha-se residindo à rua da Carioca n. 128, sobrado”.
236

vigência do Código Penal de 1890, isso definiu, também, o perfil da repressão,


quando, além do mercado, eles tentariam também escapar à Lei.
237

Conclusão

Para chegar aqui


Atravessei um mar de fogo
Pisei no fogo
O fogo não me queimou.
Pisei na pedra a pedra balanceou
(Ponto de Exu – Umbanda)

Chegar ao final da escrita de uma pesquisa como esta, talvez seja mais
difícil do que a iniciar. Os quatro ano de pesquisa da tese, somam-se aos 2 anos
de pesquisa para dissertação, que se somam à trajetória desde primeira
graduação em Química, talvez, mesmo, ao amor pela ciência construído no
Curso Técnico e primeira projeto de Iniciação científica que participei. A pesquisa
e a ciência sempre foram paixões inebriantes. Ao lado da ciência sempre esteve
uma outra e mais antiga paixão: o mundo “oculto”, a espiritualidade, as
experiências religiosas não cristãs.

Nunca fui uma historiadora das mais empenhadas em manter a


“neutralidade” diante dos meus objetos, neutro para mim é pH e eu saí da
Química há mais de dez anos quando encontrei a História. Tenho paixões
intensas por meus objetos de pesquisa e talvez esse tenha sido o combustível
para chegar aqui.

Logo no primeiro período da faculdade de História (2011) eu sabia qual


seria o objeto de minha monografia e contei com a orientação da grande mestra
Claudia Dantas para desenvolver em projeto de Iniciação Científica uma
pesquisa já alinhada às experiências religiosas subalternas e ao método
comparativo, quando investiguei simbolismos “sincretizados” pelo cristianismo
das práticas ancestrais “pagãs”. Aquele era o ponta pé para chegar aqui.

Muitos mares de fogo foram atravessados desde o momento em que uma


profecia foi feita para mim – um dia você vai ser doutora – nunca imaginei que
se concretizaria. Talvez tenha sido mais uma profecia autorrealizável, mas não
conseguimos mesmo compreender a dimensão do tempo e do destino. Estamos
aqui, apesar de todas as pedras gigantes que se impuseram no caminho, apesar
de uma pandemia mundial, apesar de toda a loucura que vivemos no Brasil na
esfera polícia desde 2016 (Foi Golpe!). E hoje, nós mais uma pedrinha miúda
vamos compondo o grande lajedo que é a sociedade brasileira.
238

Um fator definidor para esta pesquisa existir é a criação religiosa que tive,
é da mente e das crenças de uma mulher macumbeira que saiu esta Tese. Uma
mulher que nasceu em uma família macumbeira e de origem cigana,
miscigenada e moradora do subúrbio carioca. É a partir deste lugar que
construímos os olhares que escreveram a trajetória de Vicente Avellar. O
professor Vicente Avellar e a Madame A. de Thébas foram excelentes
companheiros de caminhada nessa estrada que Exu abriu quando profetizou
este doutorado, e agora encerra esta Tese, sem findar o caminho, pois, Exu é a
esfera que não tem fim e Olonã – senhor de todos os caminhos.

Vicente Ferreira da Cunha Avellar é um homem de muitas facetas e


apesar de ter sido muito citado, nos últimos anos, em pesquisas que resgataram
sua persona “curador”, buscamos o observar de forma mais profunda neste
trabalhado. Procuramos compreender o professor Avellar e suas experiências
religiosas nas mudanças e variações que sofreram ao longo do tempo,
principalmente nos momentos de suas duas prisões (1904 e 1907).

Pretendíamos, comparar e analisar os dois momentos de prisão de


Vicente Ferreira Avellar, considerando as mudanças no contexto da repressão e
da sociedade, mas principalmente as mudanças na experiência religiosa de
Avellar, tal como suas ações de resistência e manutenção de suas práticas. E
desta forma, o que pudemos observar é que Avellar passa por muitas mudanças
em sua trajetória, desde o inquérito policial de 1902 quando agride um aluno de
seu colégio. No entanto, desde a década de 1880, Avellar está envolvido em
questões sociais, participando de palestras e produzindo conteúdos para o que
viria a ser sua primeira mudança brusca ao que tange sua experiência religiosa.

Ao sofrer a denúncia por ter agredido o aluno de seu Collégio em 1902,


Avellar assume seu papel de “curador” e continua utilizando a estratégia que
tinha antes como professor, para fazer circular na cidade seus dons, os jornais.
Anuncia e publica as conquistas que tem sempre que possível, buscando o
destaque sobre outros curadores da cidade, não podemos esquecer o contexto
de repressão que viviam aqueles homens e mulheres. Avellar como um homem
branco que circula em meios letrados consegue escapar por muito tempo às
batidas policiais. No entanto, em 1904 quando se acirra a repressão por conta
239

das mudanças no contexto da saúde pública no Rio de Janeiro, Avellar serve de


“experiência”, como ele próprio compreende que foi seu caso.

O Processo que temos acesso, o que constitui-se de inquérito policial,


pedido de habeas corpus e revisão de processo, podemos acompanhar toda a
trajetória de uma prisão envolvendo a prática de “espiritismo” e “curandeirismo”
em 1904. O caso de Avellar aparece como um jogo de xadrez, onde a
materialidade reunida no momento do flagrante, assim como o depoimento de
testemunhas, listas de “abaixo-assinados” eram utilizados como estratégia, tanto
pela acusação, quanto pela defesa. Avellar assume em 1909 ter saído vencedor
do processo e fortalecido.

No entanto, o que vemos em sua trajetória nos fez repensar este


posicionamento como mais uma estratégia no seu apurado senso de
propaganda. Pois em 1904 quando foi preso Avellar tinha ao seu dispor uma
“Sociedade Científica” de propaganda ocultista, onde mais de cinquenta pessoas
assumem fazer parte de seu movimento enquanto culpam a polícia de ferirem
seu direito a liberdade. Nos três anos que se seguiram ao processo de 1907 o
que vemos é um Avellar que se encontrava abatido pela prisão de 1904, já não
possuía nem o espaço como professor, nem o corpo da Sociedade Científica
que lhe oferecesse alguma proteção. Era o professor Avellar e o personagem
que criou para si, roubando a identidade de uma mulher afamada mundialmente
por seus dons e influência polícia Madame de Thébas.

Em 1907, a prisão de Avellar estava envolvida em contexto


completamente diferente da prisão de 1904. Aquela estratégia que tanto valeu a
Avellar, e depois a nós mesmos no fazer da pesquisa, os jornais, mostrou-se
como vilã e levou a polícia até a porta de seu escritório. Quanta demora,
inclusive. Foram anos se anunciando, a si próprio e aos seus dons de cura e
profecia, além de trabalhos para amor, dinheiro, paz e harmonia. A polícia em
1907 arma uma caça às cartomantes que estavam “infestando” as ruas da
cidade, no entanto estas que sempre estiveram por ali, demoraram mais que
outros tantos estabelecimentos para receber a visita da polícia. Seus nomes
estrangeiros, seus moldes europeus deram para esses profissionais algum
tempo de vantagem, frente aos espaços africanistas.
240

A prisão de 1904 torna-se um troféu para Avellar, já a de 1907 nunca é


mencionada por ele. Havia alguma vergonha em ser preso por cartomancia que
não havia em ser preso por curandeirismo. O professor que continua circulando
na cidade entre grupos de destaque, é exposto por vezes nos jornais, tendo sua
credibilidade posta a prova, como em 1919 pelo caso em que Avellar estava
questionando a moralidade do futebol94, e Forward se recente e resolver falar
algumas verdades ao professor:

Uma campanha contra o foot-ball. O homem da estátua.


Múltiplos são os "trucs" usados pelas velhas aves de rapina que,
ostensivamente, vivem a abusar da liberalidade do nosso
regimen. Não raro os jornaes noticiam prisões de audaciosos
chantagistas menos felizes que vão ajustar contas com a polícia.
Outros há, porém, felizardos, que gozam á tripa forra o fruto da
malandragem immunda, illaqueando aqui e ali a boa-fé dos
incautos que lhes caem nas garras; e assim, nessa occasião,
vão-se arrastando em eterna farandulagem, nesse brouhaha
mundano, livres das vistas da autoridade policial... Nesse
número (e é esse motivo da minha chronica), está um conhecido
galfalo, abundantemente adiposo, curioso typo de explorador,
que vive sempre esbofado por trabalho imaginario e que poreja,
que tresanda a "cavação", denominado "professor" Vicente
Avellar. Este nome muito conhecido da nossa população é o do
mesmo indivíduo que se propoz a mandar erigir um monumento
a Oswaldo Cruz; delineados os seus planos, poz mãos á obra.
E então, haveis de ter visto, leitores, este avantajado cidadão
muito bem-falante, muito pernostico, a angariar donativos para
uma herma que seria erguida em homenagem ao querido
mestre. Terminada a colheita, o esperto "professor" meditou,
meditou e concluiu que seria melhor homenagem seu "trabalho"
e assim resolveu a questão em seu benefício, isto é, gastou todo
o producto da "cavação". Agora apparece esse mesmo
cavalheiro no scenario politico. A missão que traz, entretanto, é
espinhosa e interessante; avalie os leitores que o "professor"
Avellar está incumbido de segundo diz, dar combate a duas
temiveis pragas: o alcoolismo e o foot-ball. No primeiro caso
muito louvavel o seu gesto se não fosse dicto pelo espirito da
exploração. Sim, dizemos espirito da exploração, porque de
outra maneira não pode ser taxado o procedimento de quem,
percorrendo as escolas municipaes, extorque indecorosamente
a titulo de contribuição para uma suposta Liga contra o
alcoolismo e o foot-ball, 5$ e 10$, das professoras, indefesas
senhoras que, apanhadas de surpresa, não podem repellir o
ataque de um typo manhoso. E deste facto ha provas
incontestes. Quanto ao segundo caso, porém, perguntamos:
Que proveito pretenderá tirar de esse individuo de tão
desastrada campanha? Acreditamos que elle, em consciencia,
não encontre nenhum inconveniente na pratica do foot-ball. Vai
nisso, apenas, a influencia da exploraçã. Desta feita foi infeliz o

94 Todas essas discussões podem ser resgatadas nos periódicos da época.


241

chantagista: escolheu um ponto fraco de apoio. Fraco e


antipathico. Um conselho damos ao homem da estatua de
Oswaldo Cruz: que se recolha á vida privada, e vá gastando o
dinheiro que arrancou das professoras. Do contrario estaremos
de apito á boca para chamar a policia. FORWARD (O PAIZ, ed.
12810, 06 de novembro de 1919, p. 8).

Ou seja, sua circulação pela cidade e pelos grupos sociais depois de 1907
é quase como uma pessoa comum. Avellar torna-se professor novamente,
recebe prêmios, escreve livros, participa de palestras e investigações espíritas
(em núcleos kardecistas), participa de disputas sociais liderando grupos de
inquilinos95 contra abusos dos proprietários e morre em 1928 no Hospital
Hahnemanniano, onde Oswaldo Avellar, seu filho mais velho, era médico. No
final de sua história conseguimos resgatar que o curador fez escola e conseguiu
ter ao menos um filho que seguiu seus passos de curador, mas médico e
homeopata.

Referências

Fontes

Processos e Inquéritos

95
Jornal do Brasil, ed. 067, 09 de março de 1921, p. 10.
242

Arquivo Nacional. T7.0622 – Vicente Ferreira da Cunha Avellar (Art. 303).


Arquivo Nacional. BVO. RMI.0666 - Vicente Ferreira da Cunha Avellar
Arquivo Nacional. CQ 0 IQP 230 - Vicente Avellar.
Arquivo Nacional. CQ 0 IQP 274 - Maria Carvalho Faria.
Arquivo Nacional. CQ 0 IQP 275 - Antônia Sampaio.
Arquivo Nacional. CQ 0 IQP 269 - Laura Fernandes.
Arquivo Nacional. CS 0 IQP 120 - Maria Luiza Bigano.
Arquivo Nacional. CS 0 IQP 130 - Dolores de Castro.
Arquivo Nacional. CS 0 PCR 160 - Fausto Rodrigues Duarte (Dr. Fausto).

Periódicos

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Gazeta de Noticias, ed. 330, 28 de novembro de 1881, p. 3.

Gazeta de Noticias, ed. 337, 5 de dezembro de 1881, p. 3.

Gazeta de notícias, ed. 0019, 19 de janeiro de 1882, p. 3.

Gazeta de Noticias, ed. 0022, 22 de janeiro de 1882, p. 4.

Gazeta de Notícias, 04 de fevereiro de 1882, p. 3.

Gazeta de Noticias, ed. 123, 05 de maio de 1882, p. 5.

Jornal do Comercio, ed. 133, 14 de maio de 1882, p. 8.

Gazeta de Notícias, ed. 133, 15 de maio de 1882, p. 4.

Gazeta de Notícias, ed. 334, 1 de dezembro de 1882, p. 4.

Gazeta de noticias, ed. 006, 06 de janeiro de 1883, p. 6.

Gazeta de Noticias, ed. 187, 7 de julho de 1883, p. 2.

Jornal do Comercio, ed. 243, 1 de setembro de 1883, p. 8.

Jornal do Comercio, ed. 286, 14 de setembro de 1883, p. 7.

Diario do Brazil, 0008, 10 de janeiro de 1884, p. 3.

Gazeta de Notícias, ed. 0052, 21 de fevereiro de 1884, p. 4.


243

Gazeta de Notícias, ed. 339, 4 de dezembro de 1884, p. 3.

Gazeta de Notícias, ed. 164, 13 de junho de 1885, p.3.

Jornal do Comercio, ed. 162, 12 de junho de 1886, p. 7.

Gazeta de Noticias, ed. 185, 4 de julho de 1886, p. 5.

Gazeta de Noticias, ed. 37, 6 de fevereiro de 1887, p. 5.


Minas Geraes: Orgam oficial dos poderes do Estado (Ouro Preto), ed. 219,
18 de agosto de 1887, p. 7.
Gazeta da Tarde, ed. 268, 05 de dezembro de 1887, p. 2.
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(Quinzenal).
Gazeta de Notícias, ed. 168, 17 de junho de 1888, p.5.

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Gazeta de Notícias, ed. 129, 09 de maio de 1890, p.1.

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Jornal do Comercio, ed. 271, 29 de setembro de 1901, p. 10

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Jornal do Brasil, ed. 362, 28 de dezembro de 1905, p. 4.

Gazeta de Notícias, ed. 15, 15 de Janeiro de 1906, p. 2.

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