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EDITORIAL
Presidente
Waldeci Barros
Leandro Almeida
Conselho Editorial
Goiânia – Go
Kelps, 2021
Copyright © 2021 by Marcelo Mariano
Editora Kelps
mcdigues@hotmail.com
Ebook (epub)
ISBN:978-65-5859-273-0
DIREITOS RESERVADOS
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
2021
Para meus pais, Ricardo e Cida,
Litto Nebbia
SUMÁRIO
Nota do autor
Prefácio
Introdução
O que é o islã?
Conclusão
Agradecimentos
Nota do autor
Além desse contato humano próximo com países da região, a evolução histórica
brasileira, especialmente após o fim da Segunda Guerra Mundial e durante a
Guerra Fria, espelhou agendas político-econômicas que eram caras aos países
que se desvencilhavam dos arranjos do imperialismo franco-britânico. A luta
pelo petróleo, os debates acerca dos caminhos do desenvolvimento nacional, a
necessidade de capital estrangeiro para os projetos destinados a aumentar a
produção nacional, dentre tantos outros temas, provocaram cá e lá
transformações políticas e a aproximação bilateral e em fóruns multilaterais. Em
certos momentos da vida republicana, quer democrática, quer não, esses foram
bem-aproveitados. Em outros, por escolhas políticas e/ou por condições
externas, foram subutilizados ou mesmo renegados.
Essas iniciativas ganharam novas tonalidades nos últimos anos, em que outros
fatores relacionados com mudanças demográficas e políticas no Brasil
incentivaram medidas mais ou menos acertadas de uma nova calibragem das
relações com alguns países da região, como a pressão da aproximação
neopentecostal com o Estado de Israel.
É por essas razões que esta obra se torna fundamental. Os processos que
envolvem as relações internacionais fundamentam-se no conhecimento do outro.
Essa produção precisa ser consciente, honesta e fundamentada na pesquisa
científica para que se transmitam e que se criem laços benéficos para as partes
em contato. De fato, há uma debilidade na produção bibliográfica em língua
portuguesa sobre o Oriente Médio, uma região tão plural quanto rica em todos os
seus aspectos. Essa lacuna pode ser notada caso se vasculhe as referências
citadas nos trabalhos escritos no Brasil sobre a região em geral: quase todas as
referências estão em língua inglesa e os autores e autoras são estrangeiros.
Não se espera que nenhuma obra sobre a região dê conta de todos os aspectos. É
por isso que a abordagem em forma de perguntas centrais facilita a leitura do
trabalho. Ao longo do texto, o leitor e leitora compreenderão os fenômenos
históricos relacionados à formação das fronteiras entre os Estados da região, as
diferenças e a pluralidade religiosa do Oriente Médio, os principais conflitos que
se desenvolveram em alguns daqueles países nas últimas décadas, dentre outras
temáticas. Ao final da leitura, é impossível que se continue repetindo
preconceitos e visões estereotipadas sobre os fenômenos da região.
Meus melhores amigos turcos aprenderam a falar alemão muito bem, mas
acabaram não ficando na Alemanha e voltaram à Turquia. Eu fui visitá-los em
Istambul. À época, tinha apenas 18 anos e ainda não havia conhecido um país
com uma cultura tão “diferente” da brasileira ou de outros países que
frequentemente temos contato. Foi um caminho sem volta, e minha vida mudou
para sempre.
Jovem, eu ainda não entendia muito bem por que uma mulher muçulmana cobria
a cabeça. Não eram todas, claro. Minhas amigas turcas não são muito religiosas.
Com elas, aprendi sobre Mustafa Kemal Atatürk, ou “pai dos turcos”, o líder
turco – nascido onde hoje é a Grécia – responsável por liderar o país após o fim
do Império Otomano e separar a religião do Estado, entre outras modernizações.⁴
Nessa mesma viagem, além de ter que comentar sobre o jogador de futebol
brasileiro Alex toda vez que dizia a alguém que sou do Brasil – confesso que
nunca vi uma idolatria igual –, conheci turcas cristãs ortodoxas, que exibiam
orgulhosamente colares com uma cruz em um país majoritariamente
muçulmano. Foi então que aprendi sobre o passado da região, quando Istambul
se chamava Constantinopla, e era a capital do Império Bizantino – infelizmente,
coisas que dificilmente aprendemos nas aulas de história “mundial” nas escolas
brasileiras.
Pouco mais de um ano depois, fiz um trabalho voluntário na Índia, país com uma
expressiva minoria muçulmana e um passado islâmico riquíssimo – o Taj Mahal,
por exemplo, foi construído a mando de um imperador muçulmano.⁵ Era janeiro
de 2015, e eu morava com voluntários de diferentes países, entre eles Egito,
Tunísia e Líbano, de quem era mais próximo, além dos brasileiros.
Janeiro de 2015, para quem não se lembra, foi a data do ataque terrorista,
reivindicado pela Al Qaeda, contra o jornal satírico francês Charlie Hebdo, que
matou 12 pessoas e feriu outras 11. Para mim, uma das piores coisas da internet
são os comentários de notícias. Naquele tempo, eu ainda não achava isso, e fui
ler o que usuários de redes sociais pensavam sobre o atentado.
Mesmo assim, as dificuldades foram, e ainda são, enormes. Sei que tive o
privilégio de conhecer, ainda jovem, tanta coisa in loco. Por isso, decidi escrever
este livro para tentar ajudar quem não teve as mesmas oportunidades e
provavelmente passa por mais dificuldades que eu. O Oriente Médio é
fascinante, e espero consiguir despertar o mesmo interesse no leitor e na leitora.
Que fique claro: não quero, aqui, me portar como o detentor de todo o
conhecimento sobre a região – estou muito longe disso. Minha intenção é que
este livro seja uma introdução – uma primeira leitura ou porta de entrada – para
estudantes e demais interessados.
4 Saiba quem foi Ataturk. Folha de S. Paulo, 20 jul. 1998. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft20079802.htm>. Acesso em: 09
dez. 2020.
Quando estive em Istambul, a cidade tinha dois aeroportos – hoje, são três. Um
na Ásia e outro na Europa. Eu pousei no do lado asiático. Desatento, imaginei
que a volta seria pelo mesmo. Quando cheguei lá, porém, fui informado que o
voo sairia do outro aeroporto. Estava na Ásia e precisava ir à Europa em menos
de uma hora de carro. Não daria tempo – Istambul é uma cidade enorme – e tive
que comprar outra passagem, mas a boa notícia foi que ganhei mais um dia na
Turquia.
Alguns desses países estão no Norte da África. São países como Argélia, Tunísia
e Líbia, que compartilham certos elementos culturais com Síria, Jordânia e
Árabia Saudita, para citar três exemplos, como o idioma árabe – apesar das
diferenças entre dialetos – e a religião – são majoritariamente muçulmanos.
Em linhas gerais, considero como Oriente Médio tudo aquilo que está entre
Marrocos e Paquistão, inclusive países africanos que não estão no Norte da
África, como Somália e Djibouti, e deixo de fora as nações do Cáucaso –
Armênia, Geórgia e Azerbaijão. Como não estamos falando de um continente, é
possível que se encontre outras classificações. Esta é uma definição minha,
bastante ampla, baseada em aspectos culturais, políticos e econômicos. Algumas
escolhas podem ser polêmicas, como o próprio Paquistão, cuja dinâmica de
segurança muitas vezes está ligada à Índia, mas, em outras, ao restante do
Oriente Médio.
Em destaque, países considerados parte do Oriente Médio
Todos esses países são citados, com menor ou maior frequência, ao longo deste
livro. Muitos deles, aliás, já estiveram, em diferentes momentos da história,
dentro de uma mesma soberania, ou seja, foram, juntos, um só país. Um exemplo
é o califado Omíada, que durou do ano 661 até 750, com capital em Damasco.
Na primeira cena do filme Beirute, que se passa durante a guerra civil libanesa
(1975-1990), um personagem diz a outro que “essas pessoas moram juntas, bem
próximas, há 20 séculos”, em uma referência às diferentes culturas da região,
representadas, no diálogo em questão, por muçulmanos, cristãos e judeus. “Dois
mil anos de retaliação, lutas sangrentas, revanche e assassinato”, acrescenta.
O problema é que esse tipo de divisão costuma criar fronteiras artificiais, que
colocam grupos distintos dentro de um mesmo país sem qualquer tipo de
unidade nacional. O Iraque, por exemplo, é uma junção de três ex-províncias do
Império Otomano: uma ao norte, de maioria religiosa muçulmana sunita e de
maioria étnica curda; outra ao centro, de maioria religiosa muçulmana sunita e
de maioria étnica árabe; e uma terceira ao sul, de maioria religiosa muçulmana
xiita e de maioria étnica árabe.
O país Iraque, como conhecemos hoje, simplesmente não existia antes do acordo
Sykes-Picot – o que existia era uma referência à região dessas três províncias
como al-‘Iraq por causa dos rios Tigres e Eufrates, mas eram três províncias
diferentes.¹³ Um cidadão de Basra, no sul, tinha pouco em comum com um
cidadão de Mossul, no norte. Por causa da caneta de França e Reino Unido,
contudo, passaram a ser iraquianos.
Nem todos os povos conseguiram um país para chamar de seu. Os judeus, que,
nessa época, já habitavam regiões da Palestina e sonhavam com um Estado,
obtiveram êxito algumas décadas mais tarde. Já os curdos, no entanto, seguem
em busca deste objetivo. Nos próximos capítulos, voltaremos a esses assuntos –
Israel, Palestina, curdos –, além do próprio acordo Sykes-Picot, quando formos
falar sobre o Estado Islâmico, uma vez que este grupo terrorista já se referiu
diretamente a ele.
Feita a contextualização sobre o que é o Oriente Médio, onde ele está e como se
deu a sua recente formação territorial, partimos agora para um tema que, na
minha visão, é um dos que mais geram dúvidas e incompreensão nos brasileiros:
o islã.
6 KHANNA, Parag. The Future Is Asian. New York: Simon & Schuster, 2019.
7 KOPPES, Clayton R. Captain Mahan, General Gordon, and the origins of the
term ‘Middle East’. Middle Eastern Studies, p. 95-98, 1976.
10 FREITAS, Ana. 10 palavras portuguesas de origem árabe que vão fazer você
se surpreender. Revista da Babbel, 12 jan. 2018. Disponível em:
<https://pt.babbel.com/pt/magazine/10-palavras-em-portugues-que-vieram-da-
lingua-arabe>. Acesso em: 12 dez. 2021.
11 BLAKEMORE, Erin. Why the Ottoman Empire rose and fell. National
Geographic, 06 dez. 2019. Disponível em:
<https://www.nationalgeographic.com/history/reference/modern-history/why-
ottoman-empire-rose-fell/ >. Acesso em: 12 dez. 2021.
“Islã não promove violência nem paz”, responde Aslan. Segundo ele, islã (e não
islamismo, que diz respeito a um movimento político bem mais recente que a
religião em si, apesar de alguns dicionários em português colocarem ambas as
palavras como sinônimos)¹ é uma religião “como qualquer outra”, e a questão
de violência ou paz depende dos próprios fiéis. “Se você for uma pessoa
violenta”, prossegue o teólogo, “seu islã, seu judaísmo, seu cristianismo ou seu
hinduísmo será violento”.
Nessa mesma entrevista, Aslan alerta para o fato de evitar generalizações sobre o
islã, como se os muçulmanos de Indonésia, Paquistão, Arábia Saudita e Turquia,
entre outros países, fossem todos iguais. É o que vou tentar fazer a seguir. Antes,
um pouco de história.
Durante os três primeiros anos de revelações do anjo Gabriel, Maomé não havia
tornado públicas as mensagens que recebia – as únicas pessoas que sabiam eram
aquelas mais próximas a ele. Os primeiros covertidos ao islã foram sua primeira
esposa, Khadija; um escravo alforriado que ele adotou como filho, Zaid; seu
primo Ali; e um amigo, chamado Abu Bakr – guardem estes dois últimos nomes,
que desempenharam importantes funções para entendermos o islã atualmente e
dos quais voltaremos a falar em breve.
A fuga de Maomé para Medina, que durou pouco menos de duas semanas, é
conhecida como Hégira (Hi’jra, em árabe, que significa “emigração”). É o que
marca o início do calendário islâmico – e não o ano em que Maomé nasceu.
Diferentemente de Meca, o profeta teve bastante sucesso em Medina. Apesar de
também enfrentar oposição, conseguiu converter mais pessoas e virou até chefe
de Estado – um líder religioso e, ao mesmo tempo, político.
(ii) Salat: é a reza cinco vezes por dia virado para Meca. Nos primórdios do islã,
ainda durante a vida de Maomé, os muçulmanos deveriam se virar para
Jerusalém – medida adotada pelo profeta para conseguir atrair e converter
judeus.¹ Sempre anunciadas pelas mesquitas, as rezas têm horários específicos,
que vão do nascer do sol até depois do pôr do sol, e variam de cidade para cidade
– justamente por causa da posição do sol. Graças à modernidade, os horários
podem ser consultados em aplicativos para celulares.
(iv) Sawn: é o jejum, do nascer ao pôr do sol, durante o mês sagrado do ramadã
– não só de comida e bebida, mas também de relações sexuais, fumo e até
mesmo xingamentos. Naturalmente, o horário comercial em países de maioria
muçulmana é alterado. Passei parte de um ramadã no Marrocos, e é uma
experiência única sentir a vibração das ruas à noite, após a quebra do jejum.
Como o islã segue o calendário lunar, a data muda a cada ano, com diferenças de
poucos dias em relação ao ano anterior. Nos últimos tempos, cada vez mais
muçulmanos passaram a morar em regiões próximas ao polo, como no norte de
Noruega e Finlândia, onde, no verão, é possível ter dias com sol durante 24
horas ou quase isso. Em alguns desses casos, para evitar que os fiéis fiquem
tanto tempo sem comer e beber, pode-se ter como referência o horário de Meca.
Mulheres grávidas e lactantes, crianças, idosos, doentes e quem estiver em
viagem estão isentos do jejum. Em uma tarde de verão ensolarada do ramadã que
passei no Marrocos, estava indo de Casablanca a Marrakech em um trem lotado,
que quebrou no meio do caminho. Rapidamente, funcionários e passageiros se
organizaram para garantir água e alimentos aos idosos e demais isentos do jejum.
Não sou muçulmano, mas, por respeito, fiquei sem beber e comer na frente dos
outros, apesar do calor de 40 graus.
(v) Hajj: é a peregrinação à Meca, que todo muçulmano deve fazer pelo menos
uma vez na vida. Assim como na doação de 2,5% da riqueza aos mais pobres, o
hajj só é obrigatório para aqueles com condições financeiras, além de físicas, de
fazer a viagem.
Lembram de Abu Bakr e Ali, dois dos primeiros convertidos ao islã? Após a
morte de Maomé, foram eles que disputaram a sucessão como líder da religião e,
assim, nasceu a tão famosa divisão entre sunitas e xiitas, liderados por Abu Bakr
e Ali, respectivamente.
Há, ainda, uma terceira divisão do islã, que não é nem sunita nem xiita: o
ibadismo, uma corrente muito pequena, majoritária apenas em Omã, no Golfo
Pérsico, e em algumas regiões específicas de países africanos, como Argélia,
Tunísia, Líbia e a ilha de Zanzibar, na Tanzânia. Para os ibaditas, a descendência
do sucessor de Maomé não importa, podendo ser ou não alguém da família do
profeta. Segundo esta vertente, “todo muçulmano crente e com uma educação
teológica é um candidato potencial ao cargo”.²
Mais tarde, o islã chegou à Índia e outras regiões da Ásia, como a Indonésia –
neste caso, as rotas comerciais desempanharam um importante papel na
propagação da fé islâmica. Com os otomanos, conquistou outra parte do
continente europeu, os Bálcãs, e quase tomou Viena. Em outras palavras, uma
religião verdadeiramente global, que, recentemente, também se espalhou em
razão dos fluxos migratórios.
Fonte: PewResearchCenter²¹
De acordo com dados de 2015, há, no mundo, quase 1,8 bilhão de muçulmanos,
o que faz do islã a segunda religião com o maior número de fiéis. Perde apenas
para cristianismo, este com quase 2,3 bilhões. O único país que aparece entre os
dez com maiores populações tanto de muçulmanos quanto de cristãos é a
Nigéria, com mais de 86 milhões de seguidores do cristianismo, ocupando a
sexta posição deste ranking, atrás de Estados Unidos, Brasil, México, Rússia e
Filipinas.
Fonte: PewResearchCenter
A Índia será o país com o maior número de muçulmanos, mesmo este grupo
religioso sendo minoria no país, que é majoritamente hindu. Com exceção do
Paquistão, as cinco maiores populações islâmicas seguirão em países fora do
Oriente Médio. E o islã terá quase 3 bilhões de seguidores – ainda atrás do
cristianismo, apesar de reduzida a diferença entre ambas as religiões na
comparação com 2015.
Nos Estados Unidos, este número fica em 3,45 milhões, segundo dados²³ de
2017. Na América Latina e no Caribe, a população muçulmana de todos os
países somados não passa de 840 mil – especificamente no Brasil, conforme o
censo de 2010, os muçulmanos são pouco mais de 35 mil.²⁴ Trata-se da região
com a menor quantidade de seguidores do islã, enquanto Ásia, Oriente Médio e
África subsaariana, nesta ordem, estão na liderança, à frente de Europa e
América do Norte.²⁵
Como vimos, boa parte dos adeptos do islã não está no Oriente Médio. Isso nos
leva a um outro tema, que costuma gerar confusões: muçulmano e árabe são
coisas diferentes. Muçulmano nada mais é do que alguém que segue a religião
islâmica, ao passo que árabe diz respeito à etnia, conceito ligado a um maior
conjunto de aspectos culturais – frequentemente de difícil compreensão por
muitos brasileiros, dada a nossa miscigenação.
Para deixar mais claro, “um grupo étnico é uma comunidade humana definida
por afinidades linguísticas, culturais e semelhanças genéticas”.² Os muçulmanos
da Indonésia, por exemplo, não são etnicamente árabes. Apesar de a religião ser
a mesma de muitas pessoas do Oriente Médio, a cultura, de uma forma mais
geral, é diferente, assim como a genética e o idioma materno – o árabe não é
língua oficial no país.
Entre os dez países com as maiores populações muçulmanas, somente três são
majoritamente árabes: Egito, Argélia e Iraque, que ocupam a sexta, a nona e
décima posições, respectivamente – em 2060, serão apenas dois. Todos os outros
sete – Índia, Paquistão, Bangladesh, Nigéria, Irã e Turquia, além da já citada
Indonésia –, o que inclui os cinco primeiros, não são países árabes.
Portanto, dos países que fazem parte do Oriente Médio, segundo o mapa
utilizado no primeiro capítulo, alguns não são árabes – entre parênteses, a etnia
majortirária de cada um deles: Afegnistão (pashtuns), Djibouti (somalis), Irã
(persas), Israel (judeus), Mauritânia (haratinos ou mouros negros), Paquistão
(punjabis), Somália (somalis) e Turquia (turcos). E há, ainda, etnias que não
compõem a maioria em nenhum país, como os curdos, dos quais falaremos no
oitavo capítulo.
Existe até uma organização internacional árabe, a Liga Árabe, com sede no
Egito, que engloba todos os países do Oriente Médio etnicamente de maioria
árabe ou que têm algum elemento árabe presente na sociedade, como o idioma.
Da Mauritânia a Omã, incluindo Somália e Djibouti, com exceção da Síria, que
está suspensa. Irã e Turquia, por exemplo, não fazem parte – afinal, não são
árabes. O único membro da Liga Árabe de fora da região é Comores, um país
isular localizado no leste da África – entre Moçambique, Tanzânia e Madagascar
–, que tem o árabe como uma de suas três línguas oficiais.
Dessa forma, conclui-se que, no Oriente Médio, assim como é possível haver
muçulmanos que não são árabes – como o presidente do Irã, Hassan Rouhani,
um muçulmano xiita etnicamente persa –, há árabes que não são muçulmanos.
Por exemplo, o presidente do Líbano, Michel Aoun, é árabe e, ao mesmo tempo,
cristão maronita. Mais uma vez, fica clara a dificuldade de generalizar todos os
povos desta região.
Infelizmente, no entanto, é algo que ainda acontece, inclusive entre pessoas bem-
informadas ou, no mínimo, que deveriam ser bem-assessoradas, como políticos.
Em 2017, o ex-presidente americano Donald Trump formulou uma política
migratória que barrava a entrada de cidadãos de diversos países, como Síria,
Iêmen, Irã e Líbia, entre outros. Sem entrar no mérito sobre a efetividade e
aplicabilidade desta política, que tinha como objetivo evitar o ingresso de
terroristas de orientação islâmica nos EUA, pode-se dizer que ela falha ao
generalizar.
A Síria, por exemplo, tem 10% de sua população composta por cristãos – aliás,
em Damasco, a capital do país, há três patriarcados cristãos e foi nesta cidade
que o apóstolo São Paulo se converteu ao cristianismo. Mesmo não sendo
muçulmanos, esses cristãos, possivelmente árabes, ficaram impedidos de entrar
nos Estados Unidos²⁸ por causa de uma generalização, que misturou religião e
nacionalidade.
No Brasil, também temos um exemplo de uma mistura, desta vez entre religião e
etnia, na esfera política. Em 2018, a então senadora Gleisi Hoffman gravou um
vídeo para a emissora Al Jazeera, do Catar, pedindo apoio de países árabes ao
ex-presidente Lula, que estava preso em Curitiba. O vídeo causou polêmica nas
redes sociais e entre outros parlamentares.
A ex-senadora Ana Amélia foi uma das que respondeu. Ela disse esperar que
“essa convocação ao apoio dos países do mundo árabe não tenha sido também
um pedido para que o exército islâmico venha ao Brasil”,² relacionando
diretamente “mundo árabe” e “exército islâmico” – isso sem contar que não
existe um “exército islâmico”, o que provavelmente era uma referência ao grupo
terrorista Estado Islâmico.
Aqui, a finalidade não é discutir quem tem razão ou não em relação ao vídeo em
si. Entretanto, do ponto de vista étnico-religioso, é fato que a fala da ex-senadora
Ana Amélia, que, em 2019, passou a chefiar a Secretaria Extraordinária de
Relações Federativas e Internacionais do Rio Grande do Sul, contém um erro
crasso.
A de biquíni pensa sobre a de niqab: “Tudo coberto, menos os olhos. Que cultura
cruel e dominada pelos homens!”. Por sua vez, a de niqab pensa sobre a de
biquíni: “Tudo descoberto, menos os olhos. Que cultura cruel e dominada pelos
homens!”.
A questão das mulheres no islã é talvez uma das mais incompreendidas por não
muçulmanos, e é com uma breve reflexão sobre isso que encerro este capítulo.
Será que as mulheres muçulmanas, geralmente marcadas no imaginário coletivo
pelo uso do véu, precisam de salvação?³
Quem tem o poder de responder essa pergunta são elas próprias. Sem dúvidas,
sociedades de países majoritariamente muçulmanos são, em geral, machistas,
com claras violações aos direitos das mulheres. Porém, convenhamos,
sociedades ocidentais também são – e muito –, mas de formas diferentes.
Escrevo estas palavras exatamente um dia depois de um deputado estadual por
São Paulo, conforme mostram imagens, apalpar os seios de uma colega
parlamentar em pleno ambiente de trabalho, e em um país onde uma mulher
morre a cada sete horas, em média, simplesmente por ser mulher.³¹
Na minha viagem à Índia, morei com uma egípcia que cobria o cabelo. Meses
depois, ela resolveu parar de usar o veú – disse que sua promessa estava
cumprida. Ela decidiu usá-lo porque quis e parou também porque quis – sua mãe
nem sequer usava. Aliás, há feministas muçulmanas que fazem questão de usar o
véu e lutam pelo direito de a mulher poder escolher livremente se quer usá-lo ou
não.
14 CNN. Reza Aslan: Bill Maher ‘not very sophisticated’. YouTube, 30 out.
2014. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?
v=2pjxPR36qFU&t=3s>. Acesso em: 14 dez. 2020.
15 WARREN, Larson. Review of Reza Aslan’s Zealot: The Life and Times of
Jesus of Nazareth. Columbia International University. Disponível em:
<https://www.ciu.edu/content/review-reza-aslan%E2%80%99s-zealot-life-and-
times-jesus-nazareth>. Acesso em: 14 dez. 2020.
21 DIAMANT, Jeff. The countries with the 10 largest Christian populations and
the 10 largest Muslim populations. PewResearchCenter, 01 abr. 2019.
Disponível em: <https://www.pewresearch.org/fact-tank/2019/04/01/the-
countries-with-the-10-largest-christian-populations-and-the-10-largest-muslim-
populations/>. Acesso em: 16 dez. 2020.
26 SANTOS, Diego Junior da Silva et al. Raça versus etnia: diferenciar para
melhor aplicar. Maringá: Dental Press J. Orthod., 2010.
28 REUTERS STAFF. Under Trump travel ban, Syrian Christians still see no
light. Reuters, 29 jan. 2017. Disponível em:
<https://br.reuters.com/article/idUSKBN15D0UN>. Acesso em: 17 dez. 2020.
34 LIVNI, Ephrat. Saudi Arabia’s abortion laws are more forgiving than
Alabama’s. Quartz, 25 mai. 2019. Disponível em:
<https://qz.com/1628427/saudi-arabias-abortion-laws-are-more-forgiving-than-
alabamas/> Acesso em: 18 dez. 2020.
35 DALIA, G. Meet The Nine Muslim Women Who Have Ruled Nations.
Egyptian Streets, 09 jun. 2015. Disponível em:
<https://egyptianstreets.com/2015/06/09/meet-the-nine-muslim-women-who-
have-ruled-nations/>. Acesso em: 19 dez. 2020.
Como o 11 de setembro impactou a região?
São raros os momentos que marcam uma geração a ponto de quase todo mundo
se lembrar do que estava fazendo quando ficou sabendo dos ataques terroristas
de 11 de setembro de 2001. Algumas pessoas podem até não ter lembranças, mas
ainda veem e leem frequentemente no noticiário consequências daquele dia.
Aliás, vale citar a edição do Jornal Nacional sobre o atentado, cuja íntegra está
disponível em um canal no YouTube.³ “Uma terça-feira que vai marcar a
história da humanidade”, profetizou o apresentador William Bonner. Mas é um
outro trecho que realmente quero destacar.
Sim, o principal telejornal do país, que foi ao ar algumas horas depois dos
ataques, com tempo mais do que suficiente para revisar este tipo de informação,
cometeu um erro desses logo na abertura. O erro maior, para deixar claro, não foi
necessariamente de Fátima Bernardes, que apenas leu o teleprompter, mas, sim,
de quem escreveu o texto e dos responsáveis pela edição.
Mas houve mais dois aviões. Às 9h37, um deles colidiu com o Pentágono, a sede
do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, localizado na Virgína, bem
próximo à capital americana, Washington, D.C. E o outro caiu em uma zona
rural na Pensilvânia, após passageiros lutarem contra os terroristas. Acredita-se
que o alvo seria o Capitólio ou a Casa Branca, respectivamente as sedes dos
poderes Legislativo e Executivo do país.
Para a maioria das pessoas, então, duas torres caíram naquela trágica terça-feira
em Nova Iorque. A verdade, porém, é que foram três. Aqui, faço questão de
deixar uma coisa clara. Vou entrar em um assunto, apesar de importante,
surpreendentemente muito pouco comentado, que, com frequência, é ligado a
teorias da conspiração. Mas não sou da turma conspiracionista, e vou me ater
mais aos fatos do que às suposições. O que não poderia fazer era deixar de falar
sobre isso.
Vamos lá: o World Trade Center era um complexo de sete edifícios, dos quais
dois – justamente as torres gêmeas – foram atingidos por aviões. Entretanto, um
outro edifício, conhecido pela sigla WTC7, também caiu, mesmo sem ter sido
atingido por um avião. Ele tinha 170 metros de altura, 47 andares e 81 colunas.
Estaria entre os dez prédios mais altos do Brasil. Não era, portanto, um prédio
qualquer e, por isso, seria impossível ignorar a sua queda.
Em 2008, sete anos depois dos ataques, o govero americano finalmente deu sua
versão oficial por meio do Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia (Nist, na
sigla em inglês). Segundo o Nist, fogo destruiu a coluna 79 do edifício, o que
teria sido suficiente para ocasionar a queda.
O que, afinal, funcionava dentro do WTC7? Esta é uma pergunta cuja resposta
alimenta teorias da conspiração. Não é o que quero. Minha intenção é apenas
deixar registrado dois fatos inegáveis. Primeiro, o prédio caiu. E, segundo, em
um de seus 47 andares, funcionava um escritório da CIA – conspiracionistas
alegam queima de arquivo.
A primeira é chamada pelo historiador suíço de Lihop, sigla em inglês para Let it
happen on purpose (deixe acontecer de propósito). De acordo com esta versão, o
responsável foi, de fato, Bin Laden, mas o então presidente americano, George
W. Bush, sabia e deixou que os ataques acontecessem.
Tanto a negação quanto a confissão foram feitas por meio de fitas enviadas à Al
Jazeera. A maioria das informações sobre Osama bin Laden e a Al Qaeda às
quais o mundo tinha acesso veio da emissora do Catar, muitas vezes associada,
de forma equivocada, ao terrorismo.
Nascida da vontade do então emir do Catar, Hamad bin Khalifa Al Thani – que
sinalizava intenções liberalizantes e democráticas para o país, insuficientes se
analisarmos a situação mais de duas décadas depois –, a Al Jazeera tem uma
linha editorial clara: independência para criticar qualquer governo no Oriente
Médio, com exceção do próprio Catar, cujo governo a financiou desde o início.
Para Azzam, “os muçulmanos tinham tanto uma obrigação individual, quanto
comunitária, de expulsar exércitos conquistadores ou de ocupação de suas terras
sagradas” – como palestino, falava com Israel em mente. Ele “tornou a
campanha antissoviética explicitamente a prioridade para todos os muçulmanos
crentes, não apenas afegãos”.⁴⁵ Nascia, assim, o jihadismo do qual tanto ouvimos
falar nos dias de hoje.
Quando, então, a Al Qaeda, que contou com apoio americano no início de suas
atividades, se rebelou contra os Estados Unidos? Foi especialmente a partir da
Guerra do Golfo, em 1991, ano em que Iraque invadiu o Kuwait. Para a análise
sobre a Al Qaeda e o 11 de setembro, o importante em relação a este conflito é
saber que os americanos usaram a Arábia Saudita como base para suas operações
militares contra o Iraque.
Nos anos seguintes, a Al Qaeda passou a ter os Estados Unidos como alvo. Em
1993, realizou um atentado no subsolo do próprio World Trade Center, deixando
seis mortos e mais de mil feridos – o objetivo, que não deu certo, era derrubar as
torres gêmeas. Em 1998, o grupo atacou as embaixadas americanas no Quênia e
na Tanzânia e, em 2000, um navio americano no Iêmen. Um ano antes, em 1999,
o governo americano classificou a Al Qaeda oficialmente como organização
terrorista. E não é necessário repetir o que ocorreu em 2001. Mais tarde, outros
lugares, como Bali, Madri e Londres, também foram alvo de ataques da Al
Qaeda.
Pouco mais de 52 anos depois da criação da Otan, o art. 5 foi acionado pela
primeira vez, em 12 de setembro de 2001. Com a invasão do Afeganistão, onde
se pensava que Osama bin Laden estava escondido, os Estados Unidos
iniciavam, respaldados por seus aliados ocidentais, a chamada Guerra ao Terror.
E o recado também foi dado àqueles de fora da Otan: “Todas as nações, em todas
as regiões”, disse o então presidente americano, George W. Bush, “agora têm
uma decisão a tomar: ou vocês estão conosco ou estão com os terroristas”.
A Operação Liberdade Duradoura, nome dado à ação militar dos Estados Unidos
no Afeganistão, se encerrou oficialmente em 2014, com o ex-presidente Barack
Obama. Tropas americanas, no entanto, continuaram estacionadas no país, sob
uma outra operação que trocou de nome, a Operação Sentinela da Liberdade,
mas que, como se nota, manteve o conceito de levar liberdade a outros lugares.
Menos de uma semana após os ataques, Bush visitou uma mesquita e disse que o
“islã é paz” e “a face do terror não é a verdadeira fé do islã”. Mesmo assim, boa
parte do mundo passou a associar a religião ao terrorismo. Será que isso faz
sentido? Tentarei responder no próximo capítulo.
38 CHACRA, Guga. A torre do WTC que desmoronou sem ser atingida por um
avião no 11 de Setembro. O Estado de S. Paulo, 06 set. 2011. Disponível em:
<https://internacional.estadao.com.br/blogs/gustavo-chacra/a-torre-do-wtc-que-
desmoronou-sem-ser-atingida-por-um-aviao-no-11-de-setembro/>. Acesso em:
21 dez. 2020.
49 CARTER, Shan; COX, Amanda. One 9/11 Tally: $3.3 Trillion. The New
York Times, 08 set. 2011. Disponível em:
<https://archive.nytimes.com/www.nytimes.com/interactive/2011/09/08/us/sept-
11-reckoning/cost-graphic.html>. Acesso em: 25 dez. 2020.
50 Conheça os números da Guerra do Afeganistão. O Globo, 28 jan. 2019.
Disponível em: <https://oglobo.globo.com/mundo/conheca-os-numeros-da-
guerra-do-afeganistao-23408187>. Acesso em 25 dez. 2020.
A pergunta que nos guiará ao longo deste capítulo poderia ser outra. “O que é
terrorismo?” seria uma excelente opção, por exemplo. Escolhi falar
especificamente sobre árabes e muçulmanos porque estes estão mais
relacionados ao Oriente Médio, mas, para início de conversa, precisamos definir
o que é terrorismo – ou pelo menos tentar.
Digo tentar porque não é uma tarefa tão simples assim. O conceito de terrorismo
é disputado, ou seja, não há um consenso internacional acerca das palavras que
deveriam ser empregadas para definir tal prática, apesar da existência de
inúmeros esforços, como convenções e resoluções de organismos internacionais,
para debater o tema.
Isso acontece porque terrorismo é uma definição política. Logo, cada país ou
organização tem o seu próprio conceito, conforme seus interesses políticos, sem
um consenso entre todas as partes. Dito isto, o que é terrorismo para os Estados
Unidos pode não ser para o Brasil. Cito um exemplo prático: o governo
americano classifica o Hezbollah, do Líbano, como um grupo terrorista. Já o
governo brasileiro, não.
Para deixar a situação mais complexa, o grupo libanês, que tem um braço
armado, também tem um braço político, e faz parte da coalizão que governa o
Líbano – é aliado do presidente, o cristão Michel Aoun. Na prática, estaríamos
dizendo que o governo libanês tem membros terroristas, o que poderia causar
tensões diplomáticas. E nunca é demais lembrar que não temos o mesmo poder
que os Estados Unidos para nos aventurarmos em questões que não nos dizem
respeito. (Vale mencionar a postura da União Europeia, que separa os dois
braços do Hezbollah, o armado e político, e classifica apenas o primeiro como
terrorista, apesar de, na prática, o grupo ser um só, com o mesmo líder)⁵³
Mas, então, se o Hezbollah, para alguns, não é terrorista, o que ele seria? É aqui
que entra a questão dos grupos insurgentes, cujo conceito, assim como no caso
do terrorismo, é contestado. Uso a definição de Paulo Henrique Faria Nunes,
professor de Direito Internacional da PUC Goiás: “Grupo armado e organizado
que se insurge contra a autoridade de um Estado soberano em função de
reivindicações de caráter político, sobretudo o clamor de uma população por
independência ou pelo acesso e/ou respeito a direitos fundamentais”. Insurgentes
também podem ser chamados de rebeldes, guerrilheiros, paramilitares e
revolucionários, entre outros termos.
Ou seja, grupos insurgentes também podem ser terroristas – e essa é uma das
razões pelas quais muitas vezes é difícil distinguir um tipo de grupo do outro.
Peço, por fim, que fiquem atentos à questão sobre controle terroritorial, pois será
muito improtante no sétimo capítulo, quando o assunto for o Estado Islâmico.
A primeira onda é conhecida como anarquista, e vai de 1880 aos anos 1920.
Responsável por desenvolver as estratégias básicas do terrorismo, como
assassinatos e assaltos a bancos, esteve concentrada na Europa e surgiu a partir
de fracassos de reformas políticas. O grupo anarquista russo Narodnaya Volya é
um exemplo desta onda.
Em seguida, vem a onda anticolonial, dos anos 1920 aos 1960. Com militares
como alvo, os grupos deste período tinham como alvo o imperialismo europeu.
Um exemplo é o já citado Irgun, adepto ao nacionalismo judaico. Com a criação
do Estado de Israel, em 1948, a maioria de seus membros abandonou as armas e
alguns estiveram na origem do que hoje é o Likud, o partido de Benjamin
Netanyahu, primeiro-ministro de Israel desde 2009 – com uma passagem mais
rápida pelo mesmo cargo no final dos anos 1990.
Por fim, a última parte da divisão diz respeito à onda reliogosa, com início no
final dos anos 1970 – como vimos, a invasão soviética do Afeganistão, que deu
origem aos mujahidins e à Al Qaeda, foi em 1979 –, presente até a atualidade.
Apesar de o número de mortes aumentar – e os suicídios a bomba passarem a
fazer parte das estratégias dos atentados –, diminuiu a quantidade de grupos, em
comparação com as ondas anteriores, de acordo com Rapoport.
A onda religiosa tem o islã como centro das atenções, mas não de forma
exclusiva. Fundando em 1987, o Exército de Resistência do Senhor é um grupo
cristão, de Uganda, na África, e poderia perfeitamente ser incluído nesta divisão,
mesmo que tenha características de insurgência.
Então quer dizer que o islã nasceu no século 7 e o uso desta religião por parte de
alguns para justificar ataques terroristas tem menos de 50 anos? Na verdade, as
raízes deste movimento são de um pouco antes, mas, ainda assim, relativamente
recentes para a história.
Também nascido no Egito, Qutb foi morar nos Estados Unidos a partir de 1948,
a serviço do Ministério da Educação de seu país, com a missão de conhecer o
sistema de educação americano. Foram dois anos e meio vivendo em diferentes
lugares, como Nova Iorque, Califórnia e Colorado.
Qutb não gostou nada do que viu nos Estados Unidos, principalmente do estilo
de vida americano, ou american way of life, que considerava uma decadência,
com foco mais no material do que no espiritual. Ele foi para os EUA como um
muçulmano conservador, e voltou de lá como um radical. Aderiu à Irmandade
Muçulmana, tornando-se seu principal ideólogo, e ficou preso por mais de dez
anos por ter participado da tentativa de assassinato de Nasser.
O tempo na cadeia serviu para Qutb terminar de produzir uma dezena de livros.
Mas o que está escrito em sua obra, de 30 volumes, chamada À Sombra do
Alcorão? Em linhas gerais, um ódio ao Ocidente. A ideia era que todo o mundo
fosse convertido à sua interpretação do islã. Quem se opusesse, deveria ser
combatido.
E quem leu a obra de Sayyd Qutb? Osama bin Laden. Ele, inclusive, chegou a
ter aulas com Mohamed Qutb, irmão do principal ideólogo da Irmandade
Muçulmana. Mohamed foi para a Arábia Saudita, país natal de Bin Laden, nos
anos 1950, junto com outros membros do grupo, que fugiram da perseguição de
Nasser no Egito e encontraram refúgio com os wahhabitas/salafistas.
Mentor de Bin Laden, Abdullah Azzam também se inspirou em Qutb para
desenvolver o conceito de jihad. E o egípcio Ayman al-Zawahiri liderou a Al
Jihad, ou Jihad Islâmica Egípcia, uma ramificação da Irmandade Muçulmana
que mais tarde se fundiu com a Al Qaeda. Desde a morte de Bin Laden, o líder
da Al Qaeda, como vimos no capítulo anterior, é justamente al-Zawahiri. (A
título de curiosidade, deixo registrado que um dos 52 irmãos de Bin Laden mora
no interior da Bahia) ¹
Peço para que voltem alguns parágrafos e releiam a parte que trata do que está
escrito na obra de Qutb. Quando digo “a ideia era que todo o mundo fosse
convertido à sua interpretação do islã”, incluo muçulmanos que seguem outras
correntes. Por exemplo, Qutb não considerava os iranianos, majoritariamente
xiitas, como verdadeiros muçulmanos.
Quanto aos árabes, que também incluí na pergunta – porque, a essa altura, já
podemos distinguir claramente a diferença entre religião e etnia –, não há
justificativa alguma que nos permita apontá-los como sendo todos terroristas. O
problema da radicalização no Oriente Médio, que existe e precisa ser
devidamente enfrentado, está mais associado a questões religiosas do que
étnicas. Os afegãos, etnicamente de maioria pashtun, que fizeram parte da Al
Qaeda na luta contra a invasão soviética, não são árabes, apesar de ter havido
muitos árabes, oriundos de outros países da região, neste grupo terrorista.
Não, seria outro equívoco. De novo, é preciso deixar clara a dificuldade para se
definir terrorismo. Se levarmos em conta a classificação dos Estados Unidos, as
Farc, da Colômbia, são um grupo terrorista. E a comunidade muçulmana
colombiana, em torno de somente 10 mil praticantes, ³ é absolutamente
inexpressiva. Também citei o caso do Exército de Resistência do Senhor, de
Uganda, um grupo cristão frequentemente considerado terrorista.
58 WAHID, Abdurrahman. Right Islam vs. Wrong Islam: Muslims and Non-
Muslims Must Unite to Defeat the Wahhabi Ideology. IN: PERRY, Marvin;
NEGRIN, Howard E. The Theory and Practice of Islamic Terrorism. New York:
Palgrave Macmillan, 2008.
59 MENDE, Claudia; GÄNSLER, Katrin. De seita local a movimento global – o
Wahhabismo da Arábia Saudita. Deutsche Welle, 08 de fev. 2014. Disponível
em: <http://www.dw.com/pt-002/de-seita-local-a-movimento-global-o-
wahhabismo-da-ar%C3%A1bia-saudita/a-17411655>. Acesso em: 30 dez. 2020.
62 HIRSI ALI, Ayaan. Herege: Por que o islã precisa de uma reforma imediata.
São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
O célebre poeta chileno Pablo Neruda certa vez disse: “Poderão cortar todas as
flores, mas não poderão deter a primavera”. Na política, analistas chamam de
primavera movimentos de grande transformação na sociedade – uma alusão ao
fato de que a primavera vem depois do inverno e marca o começo de um novo
ciclo, uma renovação. Foi assim, por exemplo, com a Primavera de Praga, em
1968, no auge da Guerra Fria, quando Alexander Dubček chegou ao poder na
então Tchecoslováquia, de influência soviética, e buscou implementar reformas
com o objetivo de garantir mais liberdades individuais. ⁴
Inconformado, Bouazizi foi até a polícia, mas não conseguiu retomar seu
carrinho. Pediu para conversar com autoridades superiores, também sem
sucesso. Por volta das 13 horas, em um ato de desespero, ateou fogo em seu
próprio corpo, e morreu no final daquela tarde. Ele não imaginava o que
ocorreria nos próximos dias a partir de sua decisão extrema: a flor que Bouazizi
plantou dava início à Primavera Árabe.
Quanto ao tapa, a mulher em questão, Fedia Hamdi, à época com 46 anos, nega
o fato. Mas ela chegou a ficar presa por 111 dias, até que um tribunal a declarou
inocente – apenas uma testemunha alegou ter visto o tapa, enquanto outras
quatros afirmaram que não houve qualquer tipo de contato físico. ⁵ Hamdi disse
ter se sentido como um bode expiatório de Zine El Abidine Ben Ali, que
assumiu o poder na Tunísia em 1987 e, segundo ela, buscava um culpado para o
que ocorreu em Sidi Bouzid.
Menos de um mês depois, já em janeiro de 2011, Ben Ali não resistiu aos
protestos, que se seguiram à morte de Mohamed Bouazizi, e foi obrigado a
deixar o país – fugiu para a Arábia Saudita. Para a população, ele era o culpado
não só pelo ato de desespero de Bouazizi, mas por todos os problemas que a
Tunísia enfrentava. E a insatisfação popular contra autoritários no poder se
espalhou por diversos países do Oriente Médio, principalmente Egito, Líbia,
Iêmen e Síria, mas em menor escala em muitos outros.
Essa insatisfação popular não veio do nada. De acordo com Moisés Naím,
economista e escritor venezuelano – mas que nasceu na Líbia –, “não é por acaso
que a Primavera Árabe começou na Tunísia, o país do norte da África com o
melhor desempenho econômico e o mais bem-sucedido em fazer seus pobres
ascender para a classe média”.
Para ele, o crescimento da expectativa de vida na região a partir dos anos 1980
contribuiu para motivar os protestos. Naím chama de “bolsão de juventude” o
grupo “composto por milhares de pessoas com menos de trinta anos, instruídas e
saudáveis, com uma longa vida pela frente, mas que não dispõem de emprego
nem de boas perspectivas”. Na sua avalição, este bolsão “é uma fonte importante
de instabilidade política, do mesmo modo que o crescimento de uma classe
média que é, por natureza, mais politicamente inquieta”.
Já li e ouvi mais de uma vez que Israel é a única democracia do Oriente Médio.
Na verdade, Israel pode ser considerado o país mais democrático da região,
apesar de, claro, também ter seus problemas – como qualquer outra democracia.
Porém, não é a única. Costuma-se pensar no Oriente Médio como um apanhado
de ditaduras. São muitas, de fato. Mas o Líbano, por exemplo, não tem ditador. E
há regimes híbridos, como o Kuwait, que tem eleições pelo menos para o
Legislativo. Assim como em praticamente qualquer outro assunto relacionado ao
Oriente Médio, não dá para generalizar – espero que, a essa altura, isso já esteja
claro.
Antes de mais nada, gostaria de deixar claro que sou contra a ideia de que a
democracia, cujas noções foram criadas no Ocidente, deveria ser levada ao
Oriente Médio e aceita por todos os países por supostamente ser a melhor
alternativa para eles. Como brasileiro, sempre defenderei as instituições
democráticas em meu país, mesmo que o Brasil não seja considerado um país
ocidental por todos. Como um interessado pelo Oriente Médio, me contento a
estudar as escolhas tomadas pelos povos que lá vivem.
Dos principais países envolvidos na Primavera Árabe, Síria e Iêmen caíram sete
posições cada. Já Egito e Líbia ficaram 23 e 33 lugares abaixo, respectivamente.
O único caso considerado de sucesso foi justamente onde tudo começou, a
Tunísia, que subiu 38 posições. Houve eleições livres, mas, atualmente, o país
enfrenta graves problemas, como economia em queda e desemprego em alta, e
está “à beira de uma explosão social”.⁷¹ Se olharmos o copo meio cheio,
poderíamos dizer que, com mais democracia, fica mais difícil mascarar certas
estatísticas.
Não é o foco deste livro, mas imagino que alguns leitores e leitoras possam ter
tido curiosidade para saber quais países são os mais e menos democráticos. Os
cinco primeiros: Noruega, Islândia, Suécia, Nova Zelândia e Canadá. E os cinco
últimos: Coreia do Norte, República Democrática do Congo, República Centro-
Africana, Síria e Chade. Os Estados Unidos, na 25ª posição, são considerados
uma democracia imperfeita.
O que, afinal, aconteceu nesses países? Comecemos pelo Egito, até então
governado por Hosni Mubarak desde 1981. Os protestos que tomaram conta da
Tunísia e derrubaram Ben Ali se espalharam pela região e animaram egípcios
insatisfeitos com o governo.
Isso só ajuda a ilustrar os rumos que o Egito tomou com Sisi, com falta de
transparência, diminuição das liberdades e perseguição a opositores. A
Primavera Árabe, que anunciava ventos democráticos, falhou no país. Em 2017,
estive no Egito por quase dois meses e pude ver de perto a frustração que tomou
conta de muitas pessoas, especialmente da juventude.
Claro que meu relato não tem qualquer valor científico, mas confesso que fiquei
surpreso. Perguntei para praticamente todo egípcio e egípcia que conhecia,
geralmente jovens – que ajudaram a lotar a Praça Tahrir nas manifestações de
2011 –, se eles preferiam Sisi, Morsi ou Mubarak. A esmagadora maioria
respondeu Mubarak, contra quem tanto protestaram para tirar do poder anos
antes.
Kadafi chegou ao poder na Líbia por meio de um golpe, em 1969, que derrubou
a monarquia no país. À época, tinha apenas 27 anos. Durante seus mais de 40
anos de governo, obteve conquistas importantes em relação ao Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH), o maior de toda a África. E ele quis se
apresentar não só como um líder árabe, mas também de todo o continente
africano – uma mescla entre pan-arabismo e pan-africanismo. Além disso, nutria
um forte sentimento antiocidental.
Era uma clara tentativa de deslegitimar a oposição, mas, em parte, Kadafi tinha
razão, já que, com o vácuo de poder, grupos extremistas realmente ganharam
espaço na Líbia. E traficantes, sem a devida fiscalização do Estado, passaram a
controlar rota marítimas que levam refugiados – e não necessariamente jihadistas
– de diversos países africanos para a Europa, acirrando os sentimentos anti-
imigração de grupos nacionalistas europeus e enfraquecendo os partidos
políticos tradiconais.
Hoje, não dá para apontar claramente quem governa toda a Líbia. Na prática, há
dois governos. Um está sediado na capital, Trípoli. O outro, no leste do país – e
tudo isso em meio a grupos armados ativos. O de Trípoli é reconhecido pela
ONU e apoiado por Itália, Catar e, principalmente, Turquia. Por sua vez, o outro
governo tem o respaldo de Egito, França, Emirados Árabes Unidos e,
principalmente, Rússia.⁷⁴
O leitor e a leitora podem ter estranhado o destaque maior para Turquia e Rússia.
Mas o fato é que, com a ineficácia das potências ocidentais, cuja intervenção não
trouxe soluções, esses dois países são os que realmente dão as cartas na Líbia na
atualidade. Na política internacional, não há vácuo, especialmente em um país
com posição geográfica estratégica e rico em recursos naturais.
O Iêmen, um dos países mais pobres do Oriente Médio e sem muitos recursos
naturais, também se envolveu em um conflito armado, muitas vezes esquecido
pela comunidade internacional, após os protestos da Primavera Árabe e mais um
ditador deposto.
Unificado desde 1990, o Iêmen atual é uma junção de dois países: o Iêmen do
Norte, de características mais tribais, e o Iêmen do Sul, uma ex-colônia britânica
que se aliou à União Soviética durante a Guerra Fria. Hoje, apesar de
tecnicamente unificado em uma só soberania, o país está bastante divido.
No seu lugar, assumiu o vice, Abd Rabbuh Mansur al-Hadi. Mas os ânimos não
se acalmaram e, em 2015, Hadi foi derrubado pelos houthis, um movimento
político armado que segue o zaidismo, uma dissidência do islã xiita. Ou houthis
tomaram a capital, Sanaá, onde estabeleceram seu próprio governo. Enquanto
isso, Hadi fugiu para Áden, no sul do país, onde estabeleceu um outro governo.
E o Brasil, por incrível que pareça, pode ter contribuído para o agravamento da
situação. De acordo com a ONG Human Rights Watch,⁷⁵ a Arábia Saudita
bombardeou civis no Iêmen com foguetes de fabrição brasileira, contendo
munições cluster – ou armas de fragmentação –, que são banidas
internacionalmente.
73 WINTOUR, Patrick. Gaddafi warned Blair his ousting would ‘open door’ to
jihadis. The Guardian, 07 jan. 2016. Disponível em:
<https://www.theguardian.com/world/2016/jan/07/gaddafi-warned-blair-of-
threat-from-opening-door-to-al-qaida>. Acesso em: 05 jan. 2020.
Quando olhamos para a Síria hoje, é difícil imaginar que, em um passado não tão
distante, tais palavras poderiam ser usadas para descrever o país. Poucos meses
depois, com a escalada da violência, a Vogue tirou o texto de seu site, sem dar
satisfações ao público. Mas, de fato, antes da guerra, a Síria tinha certa
estabilidade, e era um destino comum para ocidentais com interesse em aprender
a falar árabe.
Mas o sucessor de Hafez não era para ser Bashar, e sim seu irmão mais velho,
Bassel, preparado para o cargo desde pequeno. Porém, em 1994, Bassel morreu
em um acidente de carro, e Bashar, até então pouco conhecido, passou a ser o
mais cotado.
Este tópico por si só pode não explicar todo o conflito sírio, mas ajuda a
entender algumas de suas dinâmicas e as relações de potências regionais e
internacionais. Vozes influentes, porém, dão maior importância à questão
energética. É o caso do advogado e ativista ambiental Robert F. Kennedy Jr. –
sobrinho do ex-presidente americano John F. Kennedy – que, em 2016, escreveu
um artigo⁷ detalhando sua visão sobre o assunto – em resumo, de que a guerra
da Síria seria um conflito principalmente por recursos naturais.
O Catar divide com o Irã uma das maiores jazidas de gás do mundo. Está
localizada exatamente na fronteira marítima dos dois países e ambos têm direito
de explorá-la de seu respectivo lado. E os iranianos também elaboraram um
projeto para levar gás a Europa, este passando por Iraque, Síria e Líbano,
chegando ao velho continente por meio do Mar Mediterrâneo.
O gasoduto do Irã, por sua vez, tinha o apoio da Rússia, que não queria perder
sua influência. Ao final, nenhum dos projetos saiu do papel, mas é interessante
observar como o único ponto de convergência entre eles era a Síria.
Em linha pontilhada, o projeto de gasoduto do Catar e, em linha reta, o do Irã
As relações entre Síria e Rússia são antigas. Desde a época de Hafez al-Assad,
ainda durante a Guerra Fria, o governo sírio era aliado dos soviéticos, e manteve
boas relações com os russos após o colapso da União Soviética. Aliás, a única
base militar da Rússia no Mar Mediterrâneo está localizada justamente no litoral
sírio.
Além disso, o governo russo busca se posicionar como defensor dos cristãos no
Oriente Médio. Como vimos anteriormente, 10% da população síria é cristã.
Para a Rússia, Assad é uma garantia de proteção aos cristãos, que, a propósito,
costumam apoiar o regime sírio pelo mesmo motivo, especialmente
considerando que alguns dos principais grupos de oposição na atualidade
seguem uma vertente extremista do islã.
Assad não é religioso, mas sua origem é alauíta, uma dissidência do xiismo. Na
Síria, os alauítas são minoria, e estão concentrados principalmente na costa do
Mar Mediterrâneo. Esta é uma região que, desde o início da guerra, esteve
majoritariamente ao lado do governo.
A origem religiosa de Assad é um dos motivos que explicam o apoio que ele
recebe do Irã. O mesmo se aplica ao grupo libanês Hezbollah, cujo braço armado
está ao lado do governo sírio. Tanto um quanto o outro são xiitas. Mas a religião,
claro, não é a única justificativa. Para os iranianos, ter influência na Síria
significa estar mais perto das fronteiras de Israel.
Por ser de uma minoria, Assad precisa balancear bem o poder para agradar aos
demais. Sua esposa, Asma, e sua vice-presidente, Najah al-Attar, tendem a ser
vistas como representantes dos sunitas em cargos de destaque. Mesmo assim, a
Arábia Saudita, principal rival do Irã na região e de maioria sunita, preferiria ver
Assad fora do poder.
Foi mais ou menos nesse cenário social, étnico, religioso e geopolítico que os
protestos da Primavera Árabe chegaram à Síria, no início de março de 2011,
mais especificamente a Daraa, uma cidade no sul do país, quase na fronteira com
a Jordânia.
A informação foi confirmada por Michel Aoun, político libanês que veio a
assumir a Presidência do Líbano anos mais tarde. Segundo ele, Assad prometeu
reformas democráticas. “Ele [Assad] me disse que faria reformas”, afirmou
Aoun ao jornalista Lourival Sant’Anna, “porque a estrutura do Estado não pode
responder às aspirações do povo sírio e à situação interna”.
No entanto, o tom do discurso de Assad, que acabou ocorrendo no dia 30, foi
diferente. Ainda de acordo com o jornalista brasileiro, indícios apontam para
pressões de pessoas próximas ao regime, que tinham medo de ser punidas por
seus crimes em caso de concessões. Até mesmo Maher, irmão de Bashar, o teria
ameaçado com uma pistola.
Reparem como todos os países que mais recebem refugiados, com exceção da
Alemanha, fazem fronteira com os principais países de origem. Ainda segundo o
Acnur, 73% dos refugiados estão em países vizinhos. Isso quer dizer que a crise
de refugiados está muito mais concentrada na região dos próprios conflitos do
que em lugares mais distantes, como a Europa, apesar de a repercussão midiática
frequentemente dar a entender o contrário.
A mensagem é clara: armas alimentam guerras, que, por sua vez, produzem
refugiados. Segundo relatório do Stockholm International Peace Research
Institute (Sipri),⁸⁵ a Alemanha é o quarto país que mais exporta armas. Os
principais destinos das armas alemãs – Coreia do Sul, Grécia e Argélia – não têm
necessariamente algo a ver com os conflitos no Oriente Médio responsáveis
pelas recentes crises de refugiados. Mas outras potências ocidentais, como
Estados Unidos, França e Reino Unido, vendem armas para países direta ou
indiretamente envolvidos nessas guerras, conforme mostram as tabelas adiante.
Fonte: Sipri
Fonte: Sipri
A título de curiosidade, o Brasil é 24º país que mais vende armas, tendo
Afeganistão, Indonésia e Líbano como os principais clientes. E o 34º que mais
compra, sendo França, Estados Unidos e Reino Unido os principais países de
origem.
O outro momento em que o relatório cita a Síria é quando fala da Turquia e dos
curdos, mas isso isso é assunto para o oitavo capítulo. O governo turco, aliás,
tem um papel fundamental na crise dos refugiados não só por receber a maior
quantidade, mas também do ponto de vista logístico, uma vez que o país está no
caminho para a Europa – e usa desse fato como barganha em negociações com a
União Europeia.
Por isso, a Alemanha aposta em mão de obra estrangeira. Apesar de grupos anti-
imigração acharem o contrário, muitos refugiados são qualificados, o que pode
representar uma boa injeção na economia.⁸⁷ E, também contrariando esses
grupos, eles não fizeram com que o índice de criminalidade aumentasse,
segundo a Bundeskriminalamt, o órgão alemão mais similar ao americano FBI
(Federal Bureau of Investigation).⁸⁸
Em 2018, conheci Maya Gandhour, uma refugiada síria, à época com dez anos,
que fugiu da Síria com sua família rumo a Goiânia. Ela já falava português
fluentemente, além de árabe, inglês e espanhol, e ainda queria aprender italiano,
francês e alemão. “Poderia ser política”, me disse a jovem refugiada síria, “mas
meu sonho é ser médica para poder salvar vidas em todo o mundo e, por isso,
tenho que aprender tantas línguas”.⁸
Maya também contou que bombas caíram bem perto de onde estava – duas vezes
próximo ao carro de seu pai e outra em frente à sua escola. Além disso, em 2012,
junto com outros três parentes, esteve cara a cara com membros do Estado
Islâmico. Felizmente para eles, não aconteceu nada de pior. Mas, sem dúvidas,
este grupo terrorista, mesmo sumido do noticiário nos últimos tempos, é um dos
principais responsáveis pelas recentes crises de refugiados. E é sobre ele que
falaremos a seguir. (Os dois próximos capítulos, de certa forma, continuam a
explicar a guerra da Síria)
77 FISHER, Max. The Only Remaining Online Copy of Vogue’s Asma al-Assad
Profile. The Atlantic, 03 jan. 2012. Disponível em:
<https://www.theatlantic.com/international/archive/2012/01/the-only-remaining-
online-copy-of-vogues-asma-al-assad-profile/250753/>. Acesso em: 14 jan.
2021.
79 KENNEDY JR., Why the Arabs Don’t Want Us in Syria. Politico Magazine,
22 fev. 2016. Disponível em:
<https://www.politico.com/magazine/story/2016/02/rfk-jr-why-arabs-dont-trust-
america-213601>. Acesso em: 16 jan. 2021.
83 FATHALLA, Amira. Por que países ricos do Golfo não abrem portas para
refugiados sírios? BBC News Brasil, 07 set. 2015. Disponível em:
<https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/09/150903_refugiados_sirios_hb>.
Acesso em: 22 jan. 2021.
85 Trends in International Armas Tranfers, 2019. SIPRI Fact Sheet, mar. 2020.
Disponível em: <https://www.sipri.org/sites/default/files/2020-
03/fs_2003_at_2019.pdf>. Acesso em: 23 jan. 2021.
88 Report: refugees have not increased crime rate in Germany. Deutsche Welle,
13 nov. 2015. Disponível em: <http://www.dw.com/en/report-refugees-have-not-
increased-crime-rate-in-germany/a-18848890>. Acesso em: 23 jan. 2021.
Retratado em um recente filme que leva o seu nome, Sérgio Vieira de Mello foi
possivelmente o mais conhecido diplomata brasileiro. Nascido no Rio de Janeiro
e filho de uma professora e de um embaixador – a vocação para a diplomacia
estava no sangue –, mudou-se para a Europa nos anos 1960 participou das
manifestações de maio de 1968, em Paris.
Tinha tudo para suceder o ganês Kofi Annan e ser o secretário-geral das Nações
Unidas – o cargo mais alto da organização. Contra sua vontade, porém, foi
enviado ao Iraque durante a invasão americana. E de lá nunca mais voltou. No
dia 19 de agosto de 2003, um atentado na sede da ONU em Bagdá matou Sérgio
e outras 21 pessoas. O grupo terrorista Jama’at Tawhid al-Jihad assumiu a
responsabilidade. Anos mais tarde, este mesmo grupo veio a ser o que o mundo
conhece como Estado Islâmico.
Até então, al-Zarqawi não tinha uma “mentalidade islâmica”, como ele mesmo
reconheceu. Mas, nesses cursos religiosos, teve contato com o
salafismo/wahhabismo, umas das vertentes mais fundamentalistas do islã, e se
transformou – até se arrependeu de uma tatuagem que fez aos 16 anos. ¹
Em 1999, ano em que foi solto, voltou ao Afeganistão e teve um encontro pouco
proveitoso com Bin Laden – o saudita suspeitou que ele pudesse ser um espião
da Jordânia. Mas, já no ano seguinte, al-Zarqawi passou a ser o responsável por
administrar um campo de treinamento em Herat, terceira maior cidade do
Afeganistão.
Logo acima da entrada deste campo, havia uma bandeira com os seguintes
dizeres: “Tawhid al-Jihad”, que significa monoteísmo e jihad e deu nome à
célula que ele fundou mais tarde e orquestrou o atentado responsável por matar
Sérgio Vieira de Mello em 2003 – o ataque tinha o brasileiro como alvo direto
porque adeptos da jihad culpam Sérgio por dividir a Indonésia, o país com o
maior número de muçulmanos, durante o trabalho que realizou no Timor-Leste.
Al-Masri também foi morto pelas forças americanas, mas, de novo, suas ideias
não morreram com ele. Não se acaba com o terrorismo simplesmente matando o
líder de um grupo terrorista – é necessário mudar a mente das pessoas. Como?
Não existe solução fácil e não esperem de mim trazer a resposta mais adequada
para esta questão. No entanto, parece ser fato que é preciso mais do que
simplesmente eliminar os principais envolvidos.
A segunda letra S da sigla Isis também pode significar Sham, termo, em árabe,
para Levante, “a área geográfica que abrange algo como a Síria e o Líbano
modernos e, possivelmente, a Cisjordânia e a Jordânia”. Sendo assim, em inglês,
pode-se encontrar também a sigla Isil, com L de Levante. Além disso, outro
termo bastante usando é Daesh, ou Da’esh, equivalente em árabe a al-Dawla al-
Islamiyya fi-l’Iraq wa al-Sham. Acredita-se que “oponentes do grupo que são
falantes do árabe preferem o acrônimo ‘Da’esh’, porque o som da palavra
lembra termos de significados diversos, como ‘pisotear’”. ³
Contudo, há, além desses três elementos, a necessidade de que um Estado seja
reconhecido pela comunidade internacional. “A soberania”, ainda segundo o
professor, “se manifesta internamente a partir do momento em que a estrutura
política demonstra capacidade de imposição sobre todos que se encontram no
território”. Mas há um porém: “Esse poder só será pleno caso consiga ser
reconhecido pelos demais estados. Sem reconhecimento, portanto, não há
manifestação externa de soberania”.
O Estado Islâmico, portanto, é ou não um Estado? Claro que não. Afinal, que
outro país reconheceria sua independência? Seria um atestado explícito de apoio
ao terrorismo. Ainda assim, vale analisarmos o grupo terrorista dentro do
contexto dos elementos fundamentais de um Estado. Primeiro, a população.
Parte considerável desta população era constituída por estrangeiros, ou seja, nem
sírios nem iraquianos. Pessoas de outros países da região, majoritariamente
islâmicos, e até mesmo de fora da região, mas filhos ou netos de muçulmanos.
Russos de áreas do país, como a Chechênia, onde há uma grande população
islâmica. E também pessoas da Europa Ocidental e da América do Norte, sem
qualquer ligação com o islã ou o Oriente Médio, que foram convertidas e
atraídas pela propaganda do Estado Islâmico. Aliás, o retorno desses
combatentes a seus países de origem é um enorme desafio para os respectivos
governos.
Fonte: Statista ⁷
Algumas cenas da série No Man’s Land tentam retratar uma repartição pública
do autoproclamado califado em Raqqa, cidade na Síria que foi a capital do grupo
terrorista, não muito diferente das demais repartições públicas que conhecemos.
Isso nos leva a um outro elemento essencial para um Estado: o governo.
No seu auge, o topo da estrutura política do Estado Islâmico era formado por
dois “vice-califas” auxiliando o autoproclamado califa Abu Bakr al-Baghdadi:
Abu Muslim al-Turkmani e Abu Ali al-Anbari, responsáveis pela supervisão das
operações no Iraque e na Síria, respectivamente.¹
Imagem: João Victor Luzio com base no Institute for the Study of War¹ ²
Para concluir este capítulo, uma breve análise sobre o Estado Islâmico do ponto
de vista religioso. Com o objetivo de deslegitimar o grupo terrorista e afirmar
que ele não representa o islã, muitos formadores de opinião dizem que, além de
não ser um Estado, ele não é islâmico. A intenção é nobre, mas eu discordo do
argumento – e agora explico por quê.
95 CANEVER, Guilherme. Uma viagem pelos países que não existem. Curitiba:
Pulp Edições, 2018.
98 PERPER, Rosie. ISIS made millions from taxes that it then used to run
garbage collections and even a DMV. Business Insider, 06 abr. 2018. Disponível
em: <ISIS made millions from taxes that it then used to run garbage collections
and even a DMV>. Acesso em: 27 jan. 2021.
100 BARRETT, Richard. The Islamic State. New York: The Soufan Group,
2014.
101 IS ‘caliphate’ defeated but jihadist group remains a threat. BBC News, 23
mar. 2019. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/world-middle-east-
45547595>. Acesso em: 28 jan. 2021.
102 CAFARELLA, Jennifer; WALLACE, Brandon; FORREST, Caitlin;
Baghdadi Leaves Behind a Global ISIS Threat. ISW, 27 out. 2019. Disponível
em: <http://www.iswresearch.org/2019/10/baghdadi-leaves-behind-global-
isis.html>. Acesso em: 28 jan. 2021.
De fato, Asia era muito bonita. Alguns, entretando, a achavam mais parecida
com Julia Roberts. Outros, com Penélope Cruz, como consta em um texto do
jornal português Diário de Notícias.¹ ⁴ Porém, mais bonita ainda era a sua luta,
que ganhou bem menos atenção do que as analogias com atrizes famosas.
Quem conhece a capital paulista, logo entende que aquela é uma região do
Iraque com marcas de luxo. Pronto, objetivo concluído – e Sérgio ainda fez
questão de dizer “mal comparando” ao alertar que a Oscar Freire não passou por
uma guerra.
No caso de Asia, e da questão curda de uma forma geral, a situação é muito mais
complexa – e limitar o debate à beleza feminina não ajuda a entender quem são
os curdos e o que eles querem. Ao contrário, reforça estereótipos machistas de
mulheres bonitas com fardamentos militares em uma guerra.
“Queremos dar a mulheres o lugar que merecem na sociedade e que elas sejam
donas de seus próprios destinos”, prossegue Kannani. “Vivyan [nome de
combate adotado por Asia] morreu por esses ideais. Nos meios de comunicação,
ninguém falava dos ideais pelos quais ela morreu, nem o que Vivyan fez pelas
mulheres no Curdistão sírio nos últimos quatro anos.”
Como grupo étnico, não são religiosamente homogêneos. Lembram que etnia e
religião são duas coisas diferentes? Os curdos são majoritariamente muçulmanos
sunitas, mas há xiitas, como os que vivem no Irã. Há, ainda, os yazidis, que são
etnicamente curdos e seguem uma outra religião, dos quais voltaremos a tratar
mais adiante. E há até mesmo curdos judeus.
O tratado de Sévres, em 1920, previa uma região curda com fronteiras definidas.
Contudo, a proposta foi rejeitada pelos turcos. Mais tarde, a área conhecida
como Curdistão passou a integrar partes dos atuais Iraque e da Síria, além da
Turquia (herdeira do Império Otomano) e do Irã (herdeiro do Império Persa).
Aliás, ainda no contexto pós-invasão dos Estados Unidos, foi instituído um novo
sistema político de representação étnica e religiosa, conhecido como Muhasasa.
De acordo com esse sistema, o presidente deve ser curdo, enquanto o cargo de
primeiro-ministro tem que se ocupado por um muçulmano xiita, e o de
presidente do Parlamento, por sua vez, por um muçulmano sunita.
No Líbano, existe algo similar. Lá, o presidente deve ser cristão maronita. O
primeiro-ministro, muçulmano sunita. E o presidente do Parlamento, muçulmano
xiita. Além disso, há representação de minorias nas cadeiras do Legislativo. E
tanto o Iraque quanto o Líbano são repúblicas parlamentaristas. Logo, quem
governa, de fato, é o primeiro-ministro.
Um outro povo que bagunça a cabeça de quem vê o Oriente Médio como uma
região só de muçulmanos ou árabes são os yazidis. Etnicamente, eles são curdos.
Do ponto de vista religioso, seguem uma religião sincrética fundada no século 11
e derivada do zoroastrismo, uma crença persa ancestral. Os yazidis conservam
elementos tanto do cristianismo quanto do islã, embora sua crença não seja
considerada abraâmica.
Nos últimos anos, a situação foi tão dramática que ganhou manchetes em todo o
mundo. Em 2014, durante uma ofensiva a Sinjar, o Estado Islâmico sequestrou
milhares de yazidis, enquanto cerca de 40 mil conseguiram fugir e se tornaram
refugiados.
O grupo terrorista não tolera visões de mundo distintas da sua e persegue os que
pensam diferente. Em geral, quem mais sofre são os próprios muçulmanos –
tanto sunitas que não seguem o wahhabismo quanto xiitas. No Iraque e na Síria,
as minorias cristãs também foram perseguidas.
Em 2018, Nadia Murad, então com 25 anos, venceu, ao lado do congolês Denis
Mukwege, o Prêmio Nobel da Paz. Ela é yazidi e foi uma das tantas mulheres
sequestradas e violentadas pelo Estado Islâmico. Depois desta terrível
experiência, passou a ser ativista contra o tráfico sexual e o uso do estupro como
arma de guerra, razão pela qual recebeu a premiação.
Mas Istambul está a quase 1.200 quilômetros de Alepo, no norte da Síria (usada
aqui apenas como referência para o exemplo). Amã, na Jordânia, Beirute, no
Líbano, e até mesmo Damasco, na Síria, e Bagdá, no Iraque, são apenas algumas
cidades importantes da região com distância menor do que Istambul. Por que,
então, os jihadistas escolhiam a Turquia?
Porque chegar ao Estado Islâmico pela Turquia era um caminho muito mais
fácil. O governo turco, a propósito, é acusado de facilitar o trânsito de terroristas.
Ou, na melhor das hipóteses, fazer vista grossa a essa situação. A razão é
simples. Tanto o governo turco quanto o Estado Islâmico têm um inimigo em
comum: os curdos. Portanto, para o primeiro, era vantajoso deixar o fluxo seguir
normalmente em direção ao segundo.
O governo turco também fez, e ainda faz, intervenções por conta própria no
norte da Síria, em territórios de forte presença curda, inclusive dando suporte a
grupos considerados extremistas. Aliás, no capítulo sobre o conflito sírio, foi
mencionado um relatório sobre vendas de armas no mundo. A Síria foi citada
duas vezes. A primeira, como mostrado, diz respeito à Rússia. E a segunda,
como prometido, será abordada agora porque trata justamente dos curdos.
Diz o documento: “De 1995 a 1999, a Turquia foi o terceiro maior importador de
armas do mundo. De 2005 a 2009, foi o nono maior e, de 2015 a 2019, ficou em
15º lugar. Entre 2015 e 2019, as importações de armas da Turquia foram 48%
menores do que no período entre 2010 e 2014, apesar de seu exército estar
lutando contra rebeldes curdos e envolvido nos conflitos na Líbia e na Síria. A
diminuição foi em parte devido a atrasos na produção em submarinos da
Alemanha. [...] Além disso, vários países europeus restringiram suas vendas de
armas à Turquia em 2019 por causa de suas ações contra grupos curdos na Síria”
(tradução livre).
Os problemas entre Turquia e curdos não são de agora. Nos anos 1920 e 1930 –
a partir de quando as fronteiras atuais da região começaram a ser definidas –, os
curdos em solo turco tiveram o idioma, nomes e roupas típicas proibidos, além
de terem sido deslocados à força, em razão de suas reivindicações.
Nem mesmo de curdos eram chamados, mas, sim, de “turcos das montanhas”.
Hoje, repesentam de 15% a 20% da população da Turquia, que tem pouco mais
de 80 milhões de habitantes.
O PKK, citado anteriormente, foi fundado em 1978 por Abdullah Öcalan com a
pauta de um Estado independente para os curdos. Pouco tempo depois, o partido
aderiu à luta armada. Os embates resultaram em dezenas de milhares de pessoas
mortas e outras tantas obrigadas a fugir. Öcalan foi capturado em 1999,
condenado à prisão perpétua e posto em uma cadeia localizada em uma ilha.
Três dias depois do anúncio de Trump, a Turquia começou uma ofensiva contra
os curdos, uma vez que não havia mais soldados americanos no meio do
caminho como obstáculo. Em outras palavras, uma política externa isolacionista
sem o devido planejamento pode ser tão desastrosa quanto uma política externa
intervencionista.
104 DN. “Angelina Jolie curda” morreu a lutar contra Estado Islâmico. Diário de
Notícias, 07 set. 2016. Disponível em: <https://www.dn.pt/mundo/angelina-
joliecurda-morreu-a-lutar-contra-estado-islamico-5377472.html>. Acesso em: 04
fev. 2021.
105 TV FOLHA. Diário de Bagdá: A Oscar Freire local. YouTube, 17 mar. 2013.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=PmHcs70_iN0>. Acesso
em: 04 fev. 2021.
106 GOL, Jiyar. A combatente curda morta em combate cuja luta contra o
Estado Islâmico foi minimizada por conta de sua beleza. BBC News Brasil, 13
set. 2016. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-
37349289 >. Acesso em: 04 fev. 2021.
108 ÖZOĞLU, Hakan. Lessons From the Idea, and Rejection, of Kurdistan. The
New York Times, 05 jul. 2014. Disponível em:
<https://www.nytimes.com/roomfordebate/2014/07/03/where-do-borders-need-
to-be-redrawn/lessons-from-the-idea-and-rejection-of-kurdistan>. Acesso em: 05
fev. 2021.
111 SHEPPARD, David; REED, John; RAVAL, Anjli. Israel turns to Kurds for
three-quarters of its oil supplies. Financial Times, 23 ago. 2015. Disponível em:
<https://www.ft.com/content/150f00cc-472c-11e5-af2f-4d6e0e5eda22>. Acesso
em: 06 fev. 2021.
112 FIRSHT, Naomi. Kurdish parliament creates department for Jews. The
Jewish Chronicle, 22 out. 2015. Disponível em:
<https://www.thejc.com/news/world/kurdish-parliament-creates-department-for-
jews-1.60772>. Acesso em: 06 fev. 2021.
113 JALABI, Raya. Who are the Yazidis and why is Isis hunting them? The
Guardian, 11 de ago. 2014. Disponível em:
<https://www.theguardian.com/world/2014/aug/07/who-yazidi-isis-iraq-religion-
ethnicity-mountains>. Acesso em: 07 fev. 2021.
Indiretamente, esta também foi a razão pela qual a Al Jazeera ganhou força. A
emissora do Catar aproveitou a ruptura do contrato entre a Orbit Radio and
Television Service, baseada em Roma, na Itália – mas de capital saudita –, e o
braço televisivo da BBC em árabe. A ruptura se deu a partir de discordâncias
sobre independência editorial – o estopim teria sido a exibição de um
documentário que aborda justamente a morte da princesa Misha’al bint Fahd al
Saud.¹¹⁷
Em janeiro de 2021, enquanto este livro estava sendo escrito, Arábia Saudita e
Catar retomaram as relações diplomáticas, três anos e meio desde a ruptura. A Al
Jazeera, claro, não fechou. Ainda não estão claras quais foram as concessões do
Catar, se é que houve alguma. Mas o que o Irã tem a ver com isso?
Mais tarde, Abd al-Aziz Al Saud, popularmente conhecido como Ibn Saud,
expandiu as conquistas territorias até conseguir unificá-las. O processo de
unificação, que durou 30 anos, deu origem, em 1932, ao terceiro Estado saudita,
ou Reino da Arábia Saudita, examente o país que conhecemos hoje.
Entre os territórios conquistados por Ibn Saud, estavam Meca e Medina. Por essa
cidades estarem localizadas em seu terroritório, a Arábia Saudita muitas vezes é
vista como uma referência para o islã. Isso é especialmente problemático
quando, no senso comum, leis sauditas se confundem com a religião.
Até pouco tempo atrás, as mulheres não podiam dirigir na Arábia Saudita. O
atual príncipe herdeiro do país, Mohamed bin Salman, também conhecido pela
sigla MBS, foi o responsável pela mudança na legislação – não necessariamente
porque é um defensor dos direitos das mulheres, mas, sim, porque queria inseri-
las no mercado de trabalho para movimentar a economia.
A Arábia Saudita apenas controla duas cidades sagradas – por uma coincidência
histórica –, mas não dita as regras da religião. Não é, nem de longe, o
equivalente ao Vaticano para o catolicismo. Na época de Maomé, nem sequer
existia carro. Não há motivo, então, para que uma lei saudita como essa seja
vista como uma lei islâmica, ainda mais levando em conta que esta não é a regra
nos demais países de maioria muçulmana.
Se antes a Arábia Saudita não despertava muito interesse estrangeiro, com a
descoberta de petróleo, no final dos anos 1930, a situação muda. Em 1944, é
inaugurada a Arabian American Oil Company (Aramco). Hoje conhecida como
Saudi Aramco, a empresa iniciou suas operações em parceria com os Estados
Unidos e foi oficialmente nacionalizada em 1980.¹¹
Por muito tempo, a Arábia Saudita foi o maior produtor de petróleo do mundo.
Recentemente, contudo, os Estados Unidos tomaram o primeiro lugar, o que, de
certa forma, reduz a dependência americana no petróleo do Oriente Médio e
pode eventualmente mudar o jogo geopolítico da região a longo prazo.
Mesmo assim, o petróleo ainda é importante para manter a Arábia Saudita rica e
poderosa. Aliás, em 2019, a Aramco, uma companhia estatal de petróleo, chegou
a ocupar o posto de empresa com maior valor de mercado do mundo, em um
ranking recheado de companhias dos ramos tecnológico e financeiro.¹² (Em
2020, a Aramco foi ultrapassada pela Apple)
Mas a Arábia Saudita já percebeu que não dá para ter um economia dependente
do petróleo, que, além de finito, pode ser substituído por fontes mais
sustentáveis. A exemplo de outros países do Golfo, como Emirados Árabes
Unidos e Catar, tem promovido políticas com a intenção de diversificar suas
atividades – a decisão de deixar as mulheres dirigirem faz parte desta estratégia.
Nos últimos anos, o governo saudita até mesmo abriu o país um pouco mais para
o turismo.
A relação entre os dois países foi inaugurada em meados dos anos 1940, em um
encontro entre Ibn Saud, o fundador da Arábia Saudita, e o então presidente dos
Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt. Mesmo com o 11 de setembro – 15 dos
19 terroristas envolvidos no ataque eram sauditas –, não houve alteração nessa
aliança.
Hoje, é difícil imaginar, mas os Estados Unidos também já foram aliados do Irã.
A história deste país, considerado o herdeiro do Império Persa, é milenar.
Infelizmente, não há condições de abordar tudo aqui. Para entender as questões
mais atuais, o ponto de partida será o final de 1925, quando Reza Xá Pahlavi, ou
simplesmente Reza Xá, assumiu o trono do que ainda era chamado de Pérsia.
Oficialmente, a Pérsia só virou Irã em 1935 por meio de um decreto de Reza Xá.
Ao pé da letra, o termo Irã quer dizer “terra dos arianos”. Sim, os arianos tem
origem nesta região, diferentemente da narrativa nazista.¹²¹ Etnicamente, os
iranianos não são árabes, mas, sim, persas. Do ponto de vista religioso, a maioria
é xiita – para explicar o porquê, é preciso fazer um pequeno parêntese na
história.
Em 1501, Ismael I inaugurou a dinastia Safávida, que durou até 1722. Uma de
suas ações mais importantes, que se faz presente até hoje, foi a conversão da
Pérsia, à época habitada majoritariamente por sunitas, ao xiismo – não foi algo
simples, e houve perseguições.
Engana-se quem pensa que a motivação era religiosa. Por trás da atitude de
Ismael I, estava a política, mais especificamente o Império Otomano. Como os
rivais otomanos eram sunitas, o objetivo era diferenciar e unificar os persas por
meio do xiismo.¹²²
De volta ao século 20, Reza Xá buscou modernizar o Irã. Uma das medidas foi
justamente afastar a religião do Estado e tornar a sociedade mais secular. Ele era
autoritário – silenciava e reprimia duramente a oposição. O modus operandi
seguiu com seu filho, Mohamed Reza Xá, que assumiu o poder em 1941.¹²³
Tudo mudou a partir de 1979. No final deste ano, a União Soviética invadiu o
Afeganistão, cujas consequências já foram abordadas nos capítulos anteriores.
Antes, houve outros acontecimentos importantes no Oriente Médio.
Quando voltou ao Irã, Khomeini foi recebido por uma multidão no aeroporto.
Meses depois, tornou-se oficialmente o líder supremo do país. Morto em 1989,
foi substituído por Ali Khamenei, que segue no poder até o momento. Com a
Revolução Islâmica, o governo iraniano se transformou em uma teocracia rival
de países como Estados Unidos, Israel e Arábia Saudita, o que naturalmente
alterou a dinâmica geopolítica da região.
Apesar de ser uma ditadura, o Irã tem eleições com algum grau de liberdade
entre os partidos que são autorizados a disputar. O líder supremo tem o direito de
vetar candidaturas. Logo, ninguém espera candidatos que sejam contrários ao
regime. Os que são autorizados podem até ter pautas diferentes – por exemplo,
apoiar ou não o acordo nuclear –, mas estarão sempre subordinados ao aiatolá.
Nesse conflito, o Iraque teve apoio dos Estados Unidos, já que, do outro lado,
estava o agora rival Irã. Na primeira Guerra do Golfo (1990-1991) – aquela que
marcou o início das hostilidades da Al Qaeda em relação aos EUA, lembram? –,
os governos americano e iraquiano já estavam em lados opostos. Pouco mais de
uma década depois, os Estados Unidos invadiram o Iraque e derrubaram
Saddam.
Sei que, no primeiro capítulo, exclui o Cáucaso do que considero como Oriente
Médio. Entretanto, os recentes embates entre Azerbaijão e Armênia, no final de
2020, ajudam a ilustrar como a religião não explica tudo. Irã e Azerbajião são
ambos de maioria xiita, mas o governo iraniano apoiou a Armênia, de maioria
cristã, ao passo que o Azerbaijão recebeu apoio da Turquia, de maioria sunita.
Antes de 1979, quando o Irã ainda era aliado dos Estados Unidos, os dois países
também tinham parcerias no setor nuclear, hoje o principal assunto na pauta
entre eles – mas, agora, por serem adversários.
Mas as tentativas para solucionar a questão nuclear por vias diplomáticas não
pararam. Em 2013, Irã e Estados Unidos começaram a negociar secretamente.
Os encontros tiveram lugar em Omã, um dos países mais diplomáticos do
Oriente Médio. Em 2015, finalmente foi assinado o Plano de Ação Conjunto
Global (JCPOA, na sigla em inglês).
O JCPOA, assinado entre Irã, Estados Unidos, Reino Unido, França, Rússia,
China e Alemanha, além da União Europeia, estabeleceu “parâmetros detalhados
para o controle externo do programa nuclear iraniano em troca da normalização
das relações comerciais e diplomáticas do país”¹³⁴. Em outras palavras, o Irã
aceitou condições impostas pelas grandes potências para frear seu programa
nuclear em troca da retirada de sanções, responsáveis por grandes consequências
negativas para a economia do país.
Contudo, não se volta ao JCPOA tão facilmente por meio de um decreto, como
foi o caso do Acordo de Paris. É preciso negociar com os iranianos. No
momento em que escrevo estas palavras, em fevereiro de 2021, o assunto está
quente, e o que for dito agora pode ficar velho rápido. O Irã passa por eleições
em junho e, se não houver uma decisão até lá, os rumos das negociações podem
mudar, dependendo de quem vencer. A linha mais moderada, atualmente no
poder, está mais aberta ao diálogo. A linha mais dura, que busca retomar poder,
tende a dificultar.
Nos últimos meses de seu mandato, Trump liderou uma outra importante
iniciativa em relação ao Oriente Médio que diz muito não só sobre a “Guerra
Fria” entre Arábia Saudita e Irã, mas também sobre o conflito entre Israel e
Palestina, que será explicado no próximo capítulo.
117 SEIB, Philip. Hegemonic No More: Western Media, the Rise of Al-Jazeera,
and the Influence of Diverse Voices. Oxford: International Studies Review, 2005.
118 About Saudi Arabia. The Embassy of the Kingdom of Saudi Arabia.
Washington, D.C. Disponível em: <https://www.saudiembassy.net/history>.
Acesso em: 13 fev. 2021.
119 MARTIN, Will. From an unexplored desert to a near $2 trillion IPO: The
86-year history of Saudi Aramco in pictures. Business Insider, 11 dez. 2019.
Disponível em: <https://www.businessinsider.com/the-history-of-saudi-aramco-
timeline-2017-11 >. Acesso em: 13 fev. 2021.
120 Aramco se torna empresa com maior valor de mercado do mundo; veja
ranking. G1, 11 dez. 2019. Disponível em: <
https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/12/11/aramco-se-torna-empresa-
com-maior-valor-de-mercado-do-mundo-veja-ranking.ghtml>. Acesso em: 13
fev, 2021.
122 SMYTH, Gareth. Removal of the heart: how Islam became a matter of state
in Iran. The Guardian, 29 set. 2016. Disponível em:
<https://www.theguardian.com/world/2016/sep/29/iran-shia-islam-matter-of-
state>. Acesso em: 14 fev. 2021.
123 LEVY, Janey. Iran and the Shia. The Rosen Publishing Group; Nova York,
2013.
125 ZISSER, Eyal. Israel and the Arab World – Renewal of the Alliance of the
Periphery. Atenas: Athens Journal of Mediterranean Studies, 2019.
126 SCHWARZ, Jon. One Map That Explains the Dangerous Saudi-Iranian
Conflict. The Intercept, jan 06 2016. Disponível em:
<https://theintercept.com/2016/01/06/one-map-that-explains-the-dangerous-
saudi-iranian-conflict/>.. Acesso em: 15 fev. 2021.
131 LIMA, José Antonio. Conflito entre Arábia Saudita e Irã vai muito além da
questão religiosa, analisa José Antonio Lima. Poder360, 22 set. 2019. Disponível
em: <https://www.poder360.com.br/opiniao/internacional/conflito-entre-arabia-
saudita-e-ira-vai-muito-alem-da-questao-religiosa-analisa-jose-antonio-lima/ >.
Acesso em: 16 fev. 2021.
135 AHRENS, Jan Martínez. Trump rompe pacto nuclear com o Irã e reimpõe
sanções. El País, 09 mai. 2018. Disponível em: <>. Acesso em: 18 fev. 2021.
O conflito entre Israel e Palestina tem solução?
Nos casos de Emirados Árabes Unidos e Bahrein, o interesse tem a ver com o
Irã, inimigo em comum de ambos os países e de Israel. Em outras palavras, o
inimigo do meu inimigo é meu amigo. Para a Arábia Saudita, ainda parece estar
cedo para oficializar relações com os israelenses, mas o governo saudita com
certeza deu o aval a seus aliados do Golfo.
Além disso, todo mundo sabe que o príncipe herdeiro da Arábia Saudita,
Mohamed bin Salman – ou MBS –, e o primeiro-ministro de Israel, Benjamin
Netanyahu – que segue no cargo pelo menos até o momento em que escrevo
estas palavras, antes de novas eleições já agendadas –, mantêm conversas nos
bastidores. Em novembro de 2020, os dois se encontraram em segredo. A
revelação do encontro só foi possível devido ao rastreamento de voo. Afinal, não
é todo dia que um avião anteriormente utilizado por Netanyahu sai de Israel
rumo a uma cidade da Arábia Saudita onde está MBS.¹³
Nos anos 1970, como visto no capítulo anterior, o governo saudita liderou uma
ação da Opep para aumentar o preço do petróleo em resposta à aliança entre
Israel e Estados Unidos na guerra do Yom Kippur contra países árabes. Hoje,
alguns países árabes e Israel estão do mesmo lado. Isso mostra como a
prioridade, para esses países, mudou. Agora, o foco está no Irã. Enquanto isso, o
conflito israelo-palestino segue sem ser resolvido. Mesmo assim, é um dos
assuntos mais importantes, e complexos, do Oriente Médio. Há solução?
A Declaração Balfour, como ficou conhecida, foi a primeira vez que uma grande
potência demonstrou apoio ao sionismo, um movimento que “partia do princípio
de que os judeus são um povo e não apenas uma comunidade religiosa e de que
as repetidas perseguições, pressões e desvantagens sofridas por esse povo
poderiam ser evitadas com a fundação de um Estado judeu”.¹³⁸
Em 1931, 82% da população da Palestina era árabe. Até 1946, esse número caiu
para 67%. Enquanto isso, os judeus, em 1931, representavam 16% da população
e, em 1946, praticamente dobraram de proporção, atingindo 31%. Isso mostra
como a migração judaica para a Palestina, que enfrentou resistência dos árabes,
aumentou ao longo dos anos, inclusive durante o holocausto (1941-1946).¹³
Ora, ações equivocadas há por toda parte. Debatê-las, sem preconceitos, faz
parte do jogo democrático – e Israel é uma democracia, embora imperfeita.
Aliás, é assim que se evolui. Em resumo, penso que o antissemitismo deve ser
sempre condenado e nunca usado como justificativa para deslegitimar qualquer
crítica a Israel. Afinal, é perfeitamente possível defender a existência do país e,
ao mesmo tempo, reconhecer que há erros em determinadas políticas, sem que
isso signifique um ataque aos judeus.
Poucos meses depois, Jair Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil. E uma de
suas principais vontades em política externa era transferir a embaixada brasileira
em Israel de Tel Aviv para Jerusalém. Agradaria o eleitorado conservador
evangélico devido a questões religiosas. O setor agropecuário, que tem negócios
com países árabes, pressionou. No fim, a mudança não ocorreu.
Desde 1947, ano da Resolução 181 da Assembleia Geral da ONU – que deveria
ter servido como uma referência do ponto de vista do direito internacional –,
esse e outros assuntos sobre Israel e Palestina não foram resolvidos. Apesar de
serem minoria, os judeus, conforme a resolução, ficaram com a maior parte do
território palestino. Os árabes não aceitaram e, assim, teve início o primeiro de
muitos conflitos armados entre os dois lados.
Ao todo, a revolta durou quase seis anos. Só terminou em 1993, com a assinatura
com os Acordos de Oslo.¹⁴⁷ O então primeiro-ministro de Israel, Yitzhak Rabin,
e o ex-líder da Organização para a Libertatação da Palestina (OLP), Yasser
Arafat, concordaram em um série de questões. Entre elas, a retirada gradual de
tropas israelenses da Faixa de Gaza e da Cisjordânia e o direito de os palestinos
se autogovernarem.
A ocupação israelense na região sul do Líbano durou até 2000. Neste ano,
ocorreu o que provavelmente pode ser considerada a única derrota de Israel para
algum grupo da região. No caso, o Hezbollah, que, com sua força maior do que o
próprio exército libanês, contribuiu para a retirada das tropas israelenses.
O Fatah é um partido político fundado em 1959 por Yasser Arafat, com uma
orientação nacionalista e laica, ou seja, sem influência religiosa. Já o Hamas,
criado em 1987, é um grupo com um braço político e outro armado.
Fundamentalista islâmico, tem origem na Irmandade Muçulmana.
Israel tem uma participação na rivalidade entre esses dois grupos palestinos. Na
criação do Hamas, o governo israelense tolerou e até apoiou algumas de suas
atividades porque, à época, o principal inimigo era o Fatah. Por isso, o Hamas,
atualmente considerado uma ameaça maior – como provam as operações de
Israel na Faixa de Gaza em 2008, 2012 e 2014 –, era visto como uma alternativa
para limitar a atuação do Fatah.¹⁴
2006 foi também o ano da última eleição presidencial nos territórios palestinos.
Ambos os grupos não conseguiram organizar uma nova votação até que, em
fevereiro de 2021 – mais uma vez algo importante que acontece enquanto este
livro é escrito –, concordaram com um pleito legislativo no dia 22 de maio, e
outro presidencial no dia 31 de julho.¹⁵
Ainda há muita cautela antes de considerar este fato um sucesso. Não se tem
certeza se as eleições vão realmente ocorrer – talvez quando o leitor e a leitora
lerem estas palavras isso já esteja resolvido. Uma nova votação pode dar mais
legitimidade a um dos grupos para falar em nome de todos os palestinos. De
qualquer forma, a questão palestina parece longe de ser resolvida.
O conflito entre Israel e Palestina é mais entre povos ou nações do que entre
religiões. Claro que o fator religioso tem peso – a ideologia do Hamas, por
exemplo, não deixa mentir. Contudo, reduzir a questão a um embate de
muçulmanos contra judeus é errado e não ajuda a explicar a situação.
O escritor israelense Amós Oz, que foi um ativista pela paz e defensor da
solução de dois Estados, diz que “os palestinos estão na Palestina porque a
Palestina é a única pátria e a única terra do povo palestino. Ao mesmo tempo,
“os judeus israelenses estão em Israel porque não existe outro país no mundo
onde os judeus, como um povo, uma nação, jamais poderiam chamar de lar”.¹⁵²
Para ele, trata-se de um conflito “entre o certo e o certo”, já que ambos os lados,
na sua visão, têm o direito de reivindicar o que reivindicam. Mais do que isso,
segundo Oz, “o conflito israelo-palestino acontece entre duas vítimas do mesmo
opressor”, em uma referência à Europa, “que colonizou o mundo árabe, o
explorou, o humilhou, tripudiou sobre sua cultura, o controlou e usou como um
playground imperialista [e] discriminou os judeus, os perseguiu, os atormentou e
por fim os assassinou em massa num crime de genocídio sem precedentes”.
O escritor afirma, ainda, que “dois filhos do mesmo pai cruel não
necessariamente amam um ao outro”. Pelo contrário, “eles enxergam um ao
outro na imagem exata do pai cruel”. Em outras palavras, alguns israelenses
veem nos palestinos o antissemitismo, enquanto alguns palestinos, por sua vez,
veem nos israelenses o colonizador.
Tendo a ser otimista – e gostaria de encerrar este livro de outra forma –, mas,
diante do atual cenário, e com as atuais lideranças políticas, sinceramente não
enxergo uma solução a curto prazo para o conflito entre Israel e Palestina.
136 HOLMES, Oliver. Netanyahu holds secret meeting with Saudi crown prince.
The Guardian, 23 nov. 2020. Disponível em:
<https://www.theguardian.com/world/2020/nov/23/benjamin-netanyahu-secret-
meeting-saudi-crown-prince-mohammed-bin-salman>. Acesso em: 19 fev. 2021.
137 The Balfour Declaration. Israel Ministry of Foreign Affairs. Disponível em:
<https://mfa.gov.il/mfa/foreignpolicy/peace/guide/pages/the%20balfour%20declaration.aspx>
Acesso em: 20 fev. 2021.
140 ARAUJO, Luiz Antônio. Governo Bolsonaro: Quem foi Oswaldo Aranha,
brasileiro citado pelo presidente em seu discurso de chegada a Israel. BBC News
Brasil, 31 mar. 2019. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-
47759934>. Acesso em: 20 fev. 2021.
142 BRIK, Daniela. Neturei Karta, judeus que apoiam os inimigos de Israel.
Exame, 31 dez. 2012. Disponível em: <https://exame.com/mundo/neturei-karta-
judeus-ultra-ortodoxos-que-apoiam-os-inimigos-de-israel/>. Acesso em: 20 fev.
2021.
146 Israel’s borders explained in maps. BBC News, 15 set. 2020. Disponível em:
<https://www.bbc.com/news/world-middle-east-54116567>. Acesso em: 23 fev.
2021.
149 THAROOR, Ishaan. How Israel helped create Hamas. The Washington Post,
30 jul. 2014. Disponível em:
<https://www.washingtonpost.com/news/worldviews/wp/2014/07/30/how-israel-
helped-create-hamas/>. Acesso em: 27 fev. 2021.
152 OZ, Amós. Como curar um fanático: Israel e Palestina: entre o certo e o
certo. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
Conclusão
Para deixar o cenário teoricamente mais instável, imagine que o líder deste país,
no poder há quase 50 anos, morre e deixa um envelope que indica seu sucessor,
já que não teve filhos e, portanto, ninguém poderia dizer ao certo quem tomaria
conta do governo.¹⁵⁴
A quarta moeda mais forte do mundo é de um outro país do Oriente Médio, mas
que não está localizado na rica região do Golfo e, vez ou outra, também é
comparado à Suíça.¹⁵⁸ É a Jordânia, que está longe de não ter problemas sociais e
tem um passado recente de conflitos. Mesmo assim, atualmente, consegue se
manter relativamente estável, embora faça fronteira com Israel, Palestina e Síria
– hoje, poucas regiões no mundo são mais tensas do que essa.
O democrata, entretanto, também já mostrou que não será tão diferente do que
tem sido a regra nos Estados Unidos. Com pouco mais de um mês no cargo,
Biden realizou seu primeiro bombarderio, que matou 17 pessoas e fez dele o
sétimo presidente americano consecutivo a atacar o Oriente Médio. Os alvos
foram instalações de milícias pró-Irã no leste da Síria. A ação, vista como ilegal
por muitos parlamentares do próprio Partido Democrata por violar a soberania
síria e não ter respaldo do Congresso, foi considerada uma resposta aos recentes
ataques dessas milícias contra os EUA no Iraque.
Foi também enquanto escrevia este livro que vários países iniciaram suas
campanhas de vacinação contra a Covid-19. Ao final de fevereiro de 2021, dos
dez países que, proporcionalmente, mais tinham vacinado suas populações, cinco
são do Oriente Médio – Israel (1º), Emirados Árabes Unidos (2º), Bahrein (7º),
Turquia (9º) e Marrocos (10º). Mas não seria esta uma região atrasada?
Completam a lista três países da Europa (Reino Unido, em 3º; Sérvia, em 5º; e
Dinamarca, em 8º), além de dois do continente americano (Estados Unidos, em
4º; e Chile, em 6º).¹⁵
Com a China, que já tem uma base militar no Djibouti, a situação é diferente.
Apesar de ser um país economicamente aberto – processo que se iniciou no final
dos anos 1970 por meio de Deng Xiaoping –, é uma ditadura do ponto de vista
político. Liberdade, direitos humanos e democracia não entram na pauta das
conversas com aliados. O negócio da China é outro.
Mas não aguardem, pelo menos a curto prazo, grandes mudanças nas notícias
sobre o Oriente Médio. Os temas tratados nos dez capítulos deste livro, de uma
forma ou de outra, ainda devem se fazer presentes. Espero que, após esta leitura,
seja um pouco mais fácil de entendê-los.
153 Strait of Hormuz: Assessing the threat to oil flows through the Strait. Robert
Strauss Center for International Security and Law. Disponível em:
<https://www.strausscenter.org/strait-of-hormuz-oil-in-the-persian-gulf/>.
Acesso: 02 mar. 2021.
154 Sultão de Omã morre sem deixar herdeiro ou sucessor para o trono. R7, 11
jan. 2020. Disponível em: <https://noticias.r7.com/internacional/sultao-de-oma-
morre-sem-deixar-herdeiro-ou-sucessor-para-o-trono-11012020>. Acesso em: 02
mar. 2021.
156 Oman: the Switzerland of the Middle East. Harvard Internartional Review,
09 jan. 2020. Disponível em: <https://hir.harvard.edu/oman-the-switzerland-of-
the-middle-east/>. Acesso em: 02 mar. 2021.
157 2020 Edition: Top 10 Countries with the Highest Currency Value in the
World. BookMyForex.com, 02 dez. 2020. Disponível em:
<https://www.bookmyforex.com/blog/highest-currency-in-the-world/>. Acesso
em: 02 mar. 2021.
159 COVID-19 vaccine doses administered per 100 people. Our World in Data.
Disponível em: <https://ourworldindata.org/grapher /covid-vaccination-doses -
per-capita?tab=chart&stackMode= absolute&time=2020-12-13..2021-02-
28®ion=World >. Acesso em: 02 mar. 2021.
Agradecimentos
Este livro jamais seria possível sem todo o suporte que meus pais, Ricardo e
Cida, deram a mim desde criança, com incentivos à educação, leitura e cultura.
Também agradeço às minhas três irmãs, Camila, Carina e Carol, por sempre
apoiarem meus projetos.
Agradeço às pessoas que cruzaram meu caminho nas viagens que fiz ao Oriente
Médio. Não cito todas nominalmente para não correr o risco de deixar alguém de
fora, mas saibam que vocês contribuíram para que minhas experiências nos
países da região tenham sido marcantes.
Também agradeço ao jornalista Euler Belém, meu ex-chefe, que, com seu rigor e
paciência, me ajudou a desenvolver a escrita.
E agradeço, por fim, à Editora Kelps por me dar a oportunidade de publicar meu
primeiro livro.