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Marcelo Mariano

INTRODUÇÃO AO ORIENTE MÉDIO

Um guia em dez perguntas sobre uma das regiões mais importantes e


complexas do mundo

Goiânia – Go

Kelps, 2021
Copyright © 2021 by Marcelo Mariano

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DARTONY DIOCEN T. SANTOS - CRB-1 (1ª Região) 3294

M333 | Mariano, Marcelo

Introdução ao Oriente Médio. - Marcelo Mariano - Goiânia / Kelps, 2021.

Ebook (epub)

ISBN:978-65-5859-273-0

1. Islã. Arábia - Irã. 3. Palestina. 4. História. I. Título.


CDU:94(1-11)

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qualquer meio, sem a autorização prévia e por escrito dos autores. A violação
dos Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do
Código Penal.

Impresso no Brasil

Printed in Brazil

2021
Para meus pais, Ricardo e Cida,

e minhas irmãs, Camila, Carina e Carol


“Se a história é escrita pelos vencedores, isso quer dizer que há uma outra
história”

Litto Nebbia
SUMÁRIO

Nota do autor

Prefácio

Introdução

Onde está o Oriente Médio?

O que é o islã?

Como o 11 de setembro impactou a região?

Todos os árabes e muçulmanos são terroristas?

A Primavera Árabe deu certo?

Por que a Síria entrou em guerra?

O Estado Islâmico acabou?

Quem são os curdos?

Qual é o problema entre Arábia Saudita e Irã?

O conflito entre Israel e Palestina tem solução?

Conclusão

Agradecimentos
Nota do autor

Ao longo deste livro, o leitor e a leitora encontrarão inúmeras palavras de origem


árabe, muitas das quais não possuem consenso em relação à transliteração
adequada. Optou-se pelo uso daquelas já consagradas em português, como
Kadafi e Mohamed – a não ser, neste segundo caso, para se referir ao profeta do
islã, sempre chamado de Maomé.
Prefácio

Por Danillo Alarcon¹

O Brasil independente tem uma longa tradição de aproximação e contato com o


Oriente Médio. Desde os tempos imperiais, criou-se um fluxo migratório de
judeus e árabes que saíam de suas terras natais dominada ou pelo Império
Otomano ou enfraquecida pela disputa com as potências europeias, e que
aportaram no Brasil entre o último quartil do século XIX e as primeiras décadas
do século XX. Da mesma forma, judeus marroquinos – no final do século XIX –
e europeus – especialmente nos anos 1920 e 1930 – saíram de suas terras e se
estabeleceram em colônias agrícolas e depois em grandes cidades brasileiras.

Essa diáspora ajudou a internalizar a ocupação do território nacional, tanto com


a mão de obra quanto com os produtos comercializados pelos mascates, e a
formar redes de contato com o que viriam a ser os Estados independentes do
Líbano, Síria e Israel (para citar apenas algumas das localidades de onde saíram
os imigrantes). O fenômeno migratório nem sempre era bem-vindo pelas elites
nacionais e, algumas vezes, medidas com forte teor xenofóbico atrapalhavam a
vida das comunidades aqui no Brasil. A despeito dessas condições, os migrantes
fincaram-se e compuseram de maneira sólida o tecido social nacional.

Além desse contato humano próximo com países da região, a evolução histórica
brasileira, especialmente após o fim da Segunda Guerra Mundial e durante a
Guerra Fria, espelhou agendas político-econômicas que eram caras aos países
que se desvencilhavam dos arranjos do imperialismo franco-britânico. A luta
pelo petróleo, os debates acerca dos caminhos do desenvolvimento nacional, a
necessidade de capital estrangeiro para os projetos destinados a aumentar a
produção nacional, dentre tantos outros temas, provocaram cá e lá
transformações políticas e a aproximação bilateral e em fóruns multilaterais. Em
certos momentos da vida republicana, quer democrática, quer não, esses foram
bem-aproveitados. Em outros, por escolhas políticas e/ou por condições
externas, foram subutilizados ou mesmo renegados.

No limiar do século XXI, e com as transformações geopolíticas globais, o


interesse no Oriente Médio voltou a se manifestar. Foi nesse contexto que a
diplomacia brasileira se esforçou para lançar iniciativas como a Cúpula América
do Sul-Países Árabes (ASPA) e em que houve inúmeras visitas mútuas de
autoridades políticas dos países árabes do Oriente Médio, bem como do Irã, da
Turquia e de Israel. O turismo entre as partes também aumentou. De
fundamental importância foram os novos fluxos comerciais criados com a
exportação de carnes halal ou kosher, respeitando os preceitos islâmicos e
judaicos, respectivamente.

Essas iniciativas ganharam novas tonalidades nos últimos anos, em que outros
fatores relacionados com mudanças demográficas e políticas no Brasil
incentivaram medidas mais ou menos acertadas de uma nova calibragem das
relações com alguns países da região, como a pressão da aproximação
neopentecostal com o Estado de Israel.

É por essas razões que esta obra se torna fundamental. Os processos que
envolvem as relações internacionais fundamentam-se no conhecimento do outro.
Essa produção precisa ser consciente, honesta e fundamentada na pesquisa
científica para que se transmitam e que se criem laços benéficos para as partes
em contato. De fato, há uma debilidade na produção bibliográfica em língua
portuguesa sobre o Oriente Médio, uma região tão plural quanto rica em todos os
seus aspectos. Essa lacuna pode ser notada caso se vasculhe as referências
citadas nos trabalhos escritos no Brasil sobre a região em geral: quase todas as
referências estão em língua inglesa e os autores e autoras são estrangeiros.

Não se espera que nenhuma obra sobre a região dê conta de todos os aspectos. É
por isso que a abordagem em forma de perguntas centrais facilita a leitura do
trabalho. Ao longo do texto, o leitor e leitora compreenderão os fenômenos
históricos relacionados à formação das fronteiras entre os Estados da região, as
diferenças e a pluralidade religiosa do Oriente Médio, os principais conflitos que
se desenvolveram em alguns daqueles países nas últimas décadas, dentre outras
temáticas. Ao final da leitura, é impossível que se continue repetindo
preconceitos e visões estereotipadas sobre os fenômenos da região.

Que o livro inspire o respeito e a responsabilidade com a história de povos que


têm contribuído para a humanidade – e para o Brasil – de maneira firme e
decisiva.

1 Professor de Relações Internacionais da PUC Goiás, doutor em História pela


Universidade Federal de Goiás (UFG) e pesquisador com foco em Oriente
Médio.
Introdução

Diferentemente de muitos brasileiros, não tenho ligação sanguínea com o


Oriente Médio. Meu interesse pela região surgiu sem querer. Quando morei na
Alemanha, em 2013, conheci alguns turcos. A Turquia é um dos principais
países de origem de imigrantes em solo alemão, um movimento que se iniciou
em 1961, no contexto de pós-Segunda Guerra Mundial, quando foi assinado um
acordo que incentivava a ida de trabalhadores turcos à então Alemanha
Ocidental, onde faltava mão de obra.²

Gerações se passaram e, como em praticamente qualquer comunidade


estrangeira na Europa, ainda há questões de integração a serem resolvidas.
Atualmente, no entanto, imigrantes turcos e seus descendentes ocupam postos de
destaque em diversos setores da Alemanha – de jogadores de futebol na seleção
nacional, como İlkay Gündoğan e Mesut Özil, a cientistas sendo protagonistas
na produção de vacina contra a Covid-19.³

Meus melhores amigos turcos aprenderam a falar alemão muito bem, mas
acabaram não ficando na Alemanha e voltaram à Turquia. Eu fui visitá-los em
Istambul. À época, tinha apenas 18 anos e ainda não havia conhecido um país
com uma cultura tão “diferente” da brasileira ou de outros países que
frequentemente temos contato. Foi um caminho sem volta, e minha vida mudou
para sempre.

Jovem, eu ainda não entendia muito bem por que uma mulher muçulmana cobria
a cabeça. Não eram todas, claro. Minhas amigas turcas não são muito religiosas.
Com elas, aprendi sobre Mustafa Kemal Atatürk, ou “pai dos turcos”, o líder
turco – nascido onde hoje é a Grécia – responsável por liderar o país após o fim
do Império Otomano e separar a religião do Estado, entre outras modernizações.⁴

Nessa mesma viagem, além de ter que comentar sobre o jogador de futebol
brasileiro Alex toda vez que dizia a alguém que sou do Brasil – confesso que
nunca vi uma idolatria igual –, conheci turcas cristãs ortodoxas, que exibiam
orgulhosamente colares com uma cruz em um país majoritariamente
muçulmano. Foi então que aprendi sobre o passado da região, quando Istambul
se chamava Constantinopla, e era a capital do Império Bizantino – infelizmente,
coisas que dificilmente aprendemos nas aulas de história “mundial” nas escolas
brasileiras.

Pouco mais de um ano depois, fiz um trabalho voluntário na Índia, país com uma
expressiva minoria muçulmana e um passado islâmico riquíssimo – o Taj Mahal,
por exemplo, foi construído a mando de um imperador muçulmano.⁵ Era janeiro
de 2015, e eu morava com voluntários de diferentes países, entre eles Egito,
Tunísia e Líbano, de quem era mais próximo, além dos brasileiros.

Janeiro de 2015, para quem não se lembra, foi a data do ataque terrorista,
reivindicado pela Al Qaeda, contra o jornal satírico francês Charlie Hebdo, que
matou 12 pessoas e feriu outras 11. Para mim, uma das piores coisas da internet
são os comentários de notícias. Naquele tempo, eu ainda não achava isso, e fui
ler o que usuários de redes sociais pensavam sobre o atentado.

Os comentários, em regra generalizações xenofóbicas, não tinham nada a ver


com o que eu presenciava na minha experiência morando com muçulmanos. Até
então, não conversava com eles sobre religião, mas resolvi perguntar, e aprendi
bastante sobre islã, terrorismo e todos os demais temas complexos envolvidos. A
minha sorte é que meus amigos tinham conhecimento e paciência para me
ensinar, e a partir daí, já com alguma base, pude me aprofundar nos assuntos de
meu interesse.

Eu era estudante de Relações Internacionais, e direcionar meus estudos para o


Oriente Médio foi algo mais do que natural. Além de tudo isso, estávamos em
pleno auge da guerra na Síria. Queria me manter atualizado o máximo possível,
entender o Estado Islâmico e os objetivos de outros atores envolvidos no
conflito, como Hezbollah, curdos, Turquia, Irã, Rússia e Estados Unidos.

Encontrar informações na imprensa internacional foi fácil – minha relação com o


jornalismo começou aí. Havia bastante informação, mas o problema era filtrar e
dar sentindo a tudo isso. Esse, na verdade, é um grande problema do momento
em que vivemos: muita informação pode acabar não resultando em compreensão
mais fácil, tendo, assim, o efeito adverso de deixar algo complexo ainda mais
difícil.

Em resumo, faltava um guia. Como disse anteriormente, tive a sorte de conhecer


lugares e pessoas que me ajudaram a ter mais contexto sobre o Oriente Médio
para, então, dar um ponto de partida em tópicos mais específicos. E em todos os
países da região que visitei – Turquia, Emirados Árabes Unidos, Marrocos,
Argélia, Tunísia, Egito, Jodânia e Líbano –, busquei me envolver ao máximo
com as pessoas e cultura locais.

Mesmo assim, as dificuldades foram, e ainda são, enormes. Sei que tive o
privilégio de conhecer, ainda jovem, tanta coisa in loco. Por isso, decidi escrever
este livro para tentar ajudar quem não teve as mesmas oportunidades e
provavelmente passa por mais dificuldades que eu. O Oriente Médio é
fascinante, e espero consiguir despertar o mesmo interesse no leitor e na leitora.

Que fique claro: não quero, aqui, me portar como o detentor de todo o
conhecimento sobre a região – estou muito longe disso. Minha intenção é que
este livro seja uma introdução – uma primeira leitura ou porta de entrada – para
estudantes e demais interessados.

Proponho-me a explicar o Oriente Médio a partir de dez perguntas. Qualquer


imprecisão, claro, é de minha inteira responsabilidade. Obviamente, deixarei
muitas questões sem respostas. Alguns temas, como a emissora Al Jazeera, o
Líbano e a Turquia, mereciam capítulos exclusivos, mas serão abordados em
diferentes momentos deste livro – justamente porque são importantes e estão
ligados a diversos tópicos ao mesmo tempo. E a relação do Brasil com a região
foi tratada de forma exclusiva no prefácio do professor Danillo Alarcon, um
estudioso do assunto, que fez um resumo essencial.

Antes da primeira pergunta, gostaria de dizer que é muito desafiador começar a


escrever um guia sobre o Oriente Médio em 2020, um século desde a
Conferência de San Remo, que definiu boa parte das fronteiras modernas na
região. E mais desafiador ainda é terminar de escrevê-lo em 2021, 20 anos
depois de o mundo assistir ao vivo aos atentados de 11 de setembro de 2001, que
mudaram a história. E dez anos após os protestos da Primavera Árabe – iniciados
no final de 2010 –, que, de certa forma, também mudaram a história, apesar de
terem ficado abaixo da expectativa.
Enfim, foi no Oriente Médio que nasceram as três grandes religiões monoteístas
e por onde passaram as principais rotas comerciais, sem as quais nossas vidas
hoje seriam completamente diferentes. E foi de lá também que saíram inúmeras
descobertas sobre astronomia e matemática, como a álgebra (al-jabr), que tanto
contribuíram para o desenvolvimento do Ocidente. Mas, afinal, onde fica esta
região da qual estamos falando?

2 PREVEZANOS, Klaudia. 1961: Acordo para levar mão de obra turca à


Alemanha. Deutsche Welle, 30 out. 2016. Disponível em:
<https://www.dw.com/pt-br/1961-acordo-para-levar-m%C3%A3o-de-obra-turca-
%C3%A0-alemanha/a-15483900>. Acesso em: 09 dez. 2020.

3 Vacina contra covid-19: os filhos de imigrantes turcos que criaram na


Alemanha a vacina pioneira da Pfizer/BioNTech. BBC News Brasil, 10 nov.
2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-
54889486>. Acesso em: 09 dez. 2020.

4 Saiba quem foi Ataturk. Folha de S. Paulo, 20 jul. 1998. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft20079802.htm>. Acesso em: 09
dez. 2020.

5 COSTA, Florência. Os indianos. São Paulo: Contexto, 2012.


Onde está o Oriente Médio?

A geografia nos permite determinar onde começam e terminam os continentes.


Istambul, por exemplo, é cortada pelo estreio de Bósforo, uma pequena faixa de
água que separa a Europa da Ásia, extremamente importante por sua localização
estratégica – é a ligação entre navios russos e o Mar Mediterrâneo.

Para quem gosta de natação, há uma prova em que os competidores largam na


Ásia e chegam na Europa. Quem conseguir completar os 6,5km a nado e cruzar
o estreito de Bósforo, ganha um certificado de nadador intercontinental. Para
quem não gosta de natação, compensa tomar um café da manhã em um
restaurante na Europa com vista para a Ásia ou vice-versa.

Quando estive em Istambul, a cidade tinha dois aeroportos – hoje, são três. Um
na Ásia e outro na Europa. Eu pousei no do lado asiático. Desatento, imaginei
que a volta seria pelo mesmo. Quando cheguei lá, porém, fui informado que o
voo sairia do outro aeroporto. Estava na Ásia e precisava ir à Europa em menos
de uma hora de carro. Não daria tempo – Istambul é uma cidade enorme – e tive
que comprar outra passagem, mas a boa notícia foi que ganhei mais um dia na
Turquia.

A travessia intercontinental do estreito de Bósforo, o café da manhã em um


continente com vista para outro e a minha confusão nos aeroportos: tudo isso
acontece ou aconteceu sem tirar os pés do que hoje chamamos de Oriente Médio.
Sim, um pequeno pedaço desta região está na Europa. Outro pedaço mais
signiticativo, na África. E a maior parte, na Ásia.

O Oriente Médio, portanto, não é um continente. Por isso, é difícil dizer


exatamente onde começa e termina. Trata-se de uma região, com diferenças
notórias entre as demais partes de Europa, África e Ásia, e cuja definição é
política e cultural e depende de quem tem o poder de defini-la.
Explico: em um de seus livros , o cientista político indiano Parag Khanna chama
o que conhecemos por Oriente Médio de Southwest Asia (Sudoeste Asiático).
Quando ele, um indiano que mora em Singapura, olha o mapa-múndi, a Arábia
Saudita e o Irã estão a oeste, ou seja, no Ocidente. Dessa forma, não faria sentido
usar o termo Oriente Médio.

A primeira menção ao termo Oriente Médio que se tem notícia é de 1900.⁷ E o


responsável por iso foi o general britânico Thomas Edward Gordon, que
escreveu um texto intitulado The Problems of the Middle East (Os problemas do
Oriente Médio), referindo-se especificamente à Pérsia (atual Irã) e ao
Afeganistão.

Os únicos momentos em que Gordon escreveu as palavras Oriente Médio foram


no título e na primeira frase do texto, que traduzo a seguir: “Pode-se supor que a
parte mais sensível da nossa [do Reino Unido] política externa no Oriente Médio
é a preservação da independência e integridade da Pérsia e do Afeganistão”. O
general britânico não define exatamente a região, deixando de indicar onde ela
começa e termina.

Em 1902, foi a vez de o estrategista americano Alfred Mahan escrever sobre o


Oriente Médio, em seu texto The Persian Gulf and International Relations (O
Golfo Pérsico e Relações Internacionais). Se ele sabia da existência do texto de
Gordon? “O Oriente Médio, se eu puder usar um termo que nunca vi [...]”,
afirma o estrategista. Dado o contexto da época, em que as informações não
circulavam tão rapidamente como nos dias atuais, é perfeitamente razoável supor
que Mahan pensava estar usando um termo novo. E é fato que seu texto teve
muito mais popularidade que o do general britânico.

Lugar de importantes guerras no final do século 20 e início do 21, o Golfo


Pérsico, ora chamado de Golfo Arábico ou simplesmente Golfo, é rodeado por
Irã, Iraque, Kuwait, Arábia Saudita, Bahrein, Catar, Emirados Árabes Unidos e
Omã. É lá também que se concentram grandes jazidas de petróleo e gás natural,
principal motivo de interesse das grandes potências, mas que, sozinhas, não
explicam todas as dinâmicas geopolíticas da região.

O termo Oriente Médio, hoje amplamente aceito, surgiu da necessidade de


definir o que estava, do ponto de vista europeu, entre os chamados Far East
(Extremo Oriente), representado pela China, e Near East (Oriente Próximo),
representado pela Ásia Menor (atual Turquia). A princípio, a Turquia, da qual
falamos anteriormente, não estava no Oriente Médio, mas, ao logo dos anos, o
conceito se desenvolveu e, atualmente, inclui muitos outros países.

Alguns desses países estão no Norte da África. São países como Argélia, Tunísia
e Líbia, que compartilham certos elementos culturais com Síria, Jordânia e
Árabia Saudita, para citar três exemplos, como o idioma árabe – apesar das
diferenças entre dialetos – e a religião – são majoritariamente muçulmanos.

Isso leveu à criação de um novo termo, usado especialmente no meio acadêmico


e por formuladores de política externa: Mena, sigla em inglês para Middle East
and North Africa (Oriente Médio e Norte da África). A professora e historiadora
Monique Sochaczewski, possivelmente a maior especialista brasileira em
Império Otomano, não deixa dúvidas: “Quando falamos em Oriente Médio, no
meu entendimento, tratamos na realidade do que em inglês chama-se de MENA
Region: a região que engloba o Oriente Médio e o Norte da África”.⁸

A proposito, Monique costuma alertar, em seus cursos do Grupo de Estudos e


Pesquisa sobre o Oriente Médio (Gepom), para o fato de que, em um futuro não
tão distante, com a consolidação da ascensão chinesa, talvez se torne mais
comum ler Sudoeste Asiático ou Ásia Ocidental para se referir ao Oriente
Médio. Se quem teve o poder de cunhar um termo para definir a região no século
passado foram as potências ocidentais, nada impede que isso mude à medida que
as forças da política internacional se alterem.

Em linhas gerais, considero como Oriente Médio tudo aquilo que está entre
Marrocos e Paquistão, inclusive países africanos que não estão no Norte da
África, como Somália e Djibouti, e deixo de fora as nações do Cáucaso –
Armênia, Geórgia e Azerbaijão. Como não estamos falando de um continente, é
possível que se encontre outras classificações. Esta é uma definição minha,
bastante ampla, baseada em aspectos culturais, políticos e econômicos. Algumas
escolhas podem ser polêmicas, como o próprio Paquistão, cuja dinâmica de
segurança muitas vezes está ligada à Índia, mas, em outras, ao restante do
Oriente Médio.
Em destaque, países considerados parte do Oriente Médio

Imagem: João Victor Luzio com base em elaboração do autor

Todos esses países são citados, com menor ou maior frequência, ao longo deste
livro. Muitos deles, aliás, já estiveram, em diferentes momentos da história,
dentro de uma mesma soberania, ou seja, foram, juntos, um só país. Um exemplo
é o califado Omíada, que durou do ano 661 até 750, com capital em Damasco.

A extensão territorial que o califado Omíada chegou a ter é de impressionar.


Extrapolou as fronteiras do que chamamos de Oriente Médio atualmente.
Dominou boa parte da Ásia Central, onde hoje se encontram ex-repúblicas
soviéticas, como Uzbequistão, Quirguistão e Tajiquistão, literalmente na
fronteira com a China.

Do outro lado do mundo, o mesmo califado Omíada conquistou a Península


Ibérica, isto é, Portugal e Espanha, região chamada pelos consquistadores de Al-
Andalus. A título de curiosidade, inúmeras palavras da língua portuguesa têm
origem árabe: arroz (ar-ruzz), azuleijo (al-zuleij) e açúcar (as-sukar), entre
outras.¹ E em Córdoba, no sul da Espanha, existe até uma mesquita-catedral,
com uma arquitetura extraordinária.

No meio do caminho entre Portugal e Tajiquistão, estão justamente quase todos


os países que compõem o Oriente Médio nos dias de hoje. Mas é um outro
império que faz mais sentido para nós ao analisarmos a região no século 21: o
Império Otomano, que se estendeu de 1299 a 1922, com diferentes capitais ao
longo do tempo, sendo a mais famosa Istambul, chamada de Constantinopla até a
derrota bizantina para os otomanos em 1453 – coincidentemente, em 29 de maio,
no mesmo dia em que nasci.

Não vou me alongar em relação à história otomana – também pulo períodos


ainda mais antigos do Oriente Médio, como Mesopotâmia e Fenícia. Porque meu
objetivo, aqui, é falar mais sobre os desdobramentos a partir do fim do Império
Otomano, que, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), se aliou aos
Impérios Centrais, Alemanha e Áustria-Hungria – o lado perdedor do conflito.

Com a derrota, o Império Otomano se desfacelou e deu origem à Turquia


moderna, sob a liderança de Mustafa Kemal Atatürk, citado na introdução.
Enquanto isso, parte considerável dos demais territórios antes dominados pelos
otomanos caíram nas mãos de França e Reino Unido, dois dos principais
vencedores da Primeira Guerra Mundial.
Em destaque, a maior extensão territorial atingida pelo Império Otomano (1683)

Imagem: João Victor Luzio com base na National Geographic¹¹

Na primeira cena do filme Beirute, que se passa durante a guerra civil libanesa
(1975-1990), um personagem diz a outro que “essas pessoas moram juntas, bem
próximas, há 20 séculos”, em uma referência às diferentes culturas da região,
representadas, no diálogo em questão, por muçulmanos, cristãos e judeus. “Dois
mil anos de retaliação, lutas sangrentas, revanche e assassinato”, acrescenta.

Trata-se de uma tentativa de explicar o Oriente Médio, e o Líbano de uma forma


mais específica, em menos de um minuto, o que gera riscos de simplificação e,
neste caso, erros históricos – os muçulmanos existem há bem menos de dois mil
anos. Claro, é apenas um filme, que tem licença poética, poderia-se argumentar.
Mas este tipo de conversa, com uma ou outra palavra de diferença, ocorre com
certa frequência.

O jornalista e professor José Antonio Lima, um dos principais pesquisadores


brasileiros sobre Oriente Médio na atualidade, gosta de citar este trecho de
Beirute em sala de aula – já ouvi em pelo menos três oportunidades. Claro que
houve problemas nos últimos 20 séculos, como em qualquer outro lugar do
mundo – em alguns, até mais do que na região da qual estamos falando –, mas o
ponto, aqui, é o seguinte: os problemas do Oriente Médio nos dias de hoje, em
sua maioria, têm origem a partir do fim do Império Otomano e o subsequente
controle da região por parte de britânicos e franceses. Para a história, é algo
recente, de um século atrás.

Em 1916, ainda durante a Primeira Guerra Mundial, França e Reino Unido


assinaram um acordo conhecido como Sykes-Picot, que leva os sobrenomes dos
principais negociadores de cada lado, Mark Sykes e François Picot. Tal acordo
traçou linhas para dividir o território que vai do Mar Mediterâneo ao Golfo
Pérsico em Zona Azul, de controle francês; Zona Vermelha, de controle briânico;
Zona A, sob influência francesa; Zona B, sob influência britânica; e Zona
Internacional. Todos os países que se encontraram nessa região tiveram suas
fronteras atuais determinadas por Sykes e Picot, confirmadas, em 1920, pela
Conferência de San Remo, com poucas alterações – a Palestina, por exemplo,
passou a estar sob controle britânico.
As diferentes zonas de controle e influência determinadas pelo acordo Sykes-
Picot

Imagem: João Victor Luzio com base em Feldberg (2008)¹²

O problema é que esse tipo de divisão costuma criar fronteiras artificiais, que
colocam grupos distintos dentro de um mesmo país sem qualquer tipo de
unidade nacional. O Iraque, por exemplo, é uma junção de três ex-províncias do
Império Otomano: uma ao norte, de maioria religiosa muçulmana sunita e de
maioria étnica curda; outra ao centro, de maioria religiosa muçulmana sunita e
de maioria étnica árabe; e uma terceira ao sul, de maioria religiosa muçulmana
xiita e de maioria étnica árabe.

O país Iraque, como conhecemos hoje, simplesmente não existia antes do acordo
Sykes-Picot – o que existia era uma referência à região dessas três províncias
como al-‘Iraq por causa dos rios Tigres e Eufrates, mas eram três províncias
diferentes.¹³ Um cidadão de Basra, no sul, tinha pouco em comum com um
cidadão de Mossul, no norte. Por causa da caneta de França e Reino Unido,
contudo, passaram a ser iraquianos.

Situações semelhantes – uma mescla de falta de conhecimento da realidade local


com o objetivo de preservar interesses coloniais – ocorreram em outros países.
Juntaram cristãos maronitas, muçulmanos sunitas e muçulmanos xiitas – além de
minorias, como os druzos – no que hoje é o Líbano, um território com área de
10.400km², menos da metade de Sergipe, o menor estado brasileiro.

Nem todos os povos conseguiram um país para chamar de seu. Os judeus, que,
nessa época, já habitavam regiões da Palestina e sonhavam com um Estado,
obtiveram êxito algumas décadas mais tarde. Já os curdos, no entanto, seguem
em busca deste objetivo. Nos próximos capítulos, voltaremos a esses assuntos –
Israel, Palestina, curdos –, além do próprio acordo Sykes-Picot, quando formos
falar sobre o Estado Islâmico, uma vez que este grupo terrorista já se referiu
diretamente a ele.

Feita a contextualização sobre o que é o Oriente Médio, onde ele está e como se
deu a sua recente formação territorial, partimos agora para um tema que, na
minha visão, é um dos que mais geram dúvidas e incompreensão nos brasileiros:
o islã.

6 KHANNA, Parag. The Future Is Asian. New York: Simon & Schuster, 2019.

7 KOPPES, Clayton R. Captain Mahan, General Gordon, and the origins of the
term ‘Middle East’. Middle Eastern Studies, p. 95-98, 1976.

8 SOCHACZEWSKI, Monique. Trópicos Orientais/Orientes Tropicais:


Reflexões sobre o Brasil e o Oriente Médio. Rio de Janeiro: Talu Cultural, 2019.

9 Umayyad Caliphate. Oxford Islamic Studies Online. Disponível em:


<http://www.oxfordislamicstudies.com/article/opr/t125/e2421# >. Acesso em: 12
dez. 2020.

10 FREITAS, Ana. 10 palavras portuguesas de origem árabe que vão fazer você
se surpreender. Revista da Babbel, 12 jan. 2018. Disponível em:
<https://pt.babbel.com/pt/magazine/10-palavras-em-portugues-que-vieram-da-
lingua-arabe>. Acesso em: 12 dez. 2021.

11 BLAKEMORE, Erin. Why the Ottoman Empire rose and fell. National
Geographic, 06 dez. 2019. Disponível em:
<https://www.nationalgeographic.com/history/reference/modern-history/why-
ottoman-empire-rose-fell/ >. Acesso em: 12 dez. 2021.

12 FELDBERG, Samuel. Acordo Sykes-Picot (1916). História da paz, 2008.

13 TRIPP, Charles. The Ottoman provinces of Baghdad, Basra and Mosul. A


History of Iraq, 2007.
O que é o islã?

Em uma entrevista à CNN americana em outubro de 2014, disponível no


YouTube,¹⁴ o teólogo Reza Aslan é perguntado se o islã é uma religião que
promove violência. Nascido no Irã, ele foi para os Estados Unidos após a
Revolução Islâmica de 1979, que instaurou o regime dos aiatolás. Lá, converteu-
se ao cristianismo e, anos mais tarde, voltou a ser muçulmano.¹⁵ Possui
experiência com religiões, no plural, tanto do ponto de vista pessoal quanto
acadêmico – tem PhD com tese sobre jihadismo e escreveu um aclamado livro
sobre a vida de Jesus.

“Islã não promove violência nem paz”, responde Aslan. Segundo ele, islã (e não
islamismo, que diz respeito a um movimento político bem mais recente que a
religião em si, apesar de alguns dicionários em português colocarem ambas as
palavras como sinônimos)¹ é uma religião “como qualquer outra”, e a questão
de violência ou paz depende dos próprios fiéis. “Se você for uma pessoa
violenta”, prossegue o teólogo, “seu islã, seu judaísmo, seu cristianismo ou seu
hinduísmo será violento”.

Para provar seu ponto, Aslan cita o exemplo de monges budistas,


frequentemente associados à paz, que decapitam mulheres e crianças em
Mianmar. Neste país, há uma crescente tensão étnica, e o caso dos rohingyas – a
etnia alvo dos monges budistas extremistas em questão –, que não são
reconhecidos como cidadãos pelo Estado, é uma tragédia que dificilmente ganha
a atenção necessária da comunidade internacional.

E vejam só: os rohingyas, inclusive essas mulheres e crianças decapitadas, são


todos muçulmanos. Mas, então, o budismo promove violência? “Claro que não”,
afirma categoricamente o teólogo. “Pessoas são violentas ou pacíficas”, enfatiza
ele.

Nessa mesma entrevista, Aslan alerta para o fato de evitar generalizações sobre o
islã, como se os muçulmanos de Indonésia, Paquistão, Arábia Saudita e Turquia,
entre outros países, fossem todos iguais. É o que vou tentar fazer a seguir. Antes,
um pouco de história.

Maomé, nome em português para Mohamed, cujo significado em árabe quer


dizer “louvado”, nasceu no ano 570, em Meca. Um belo dia, quando já tinha 40
anos, ele estava em um de seus retiros nas montanhas em volta da cidade e teve
uma visão: era o anjo Gabriel.¹⁷ Sim, o mesmo Gabriel que aparece no judaísmo
e no cristianismo, que, junto com o islã, formam as três grandes religiões
monoteístas, com origem em Abraão e crença em um só Deus – o mesmo, sendo
Allah apenas a palavra em árabe para Deus, e não uma entidade diferente. A
propósito, judaísmo, cristianismo e islã são mais parecidos entre si do que muita
gente imagina.

Durante os três primeiros anos de revelações do anjo Gabriel, Maomé não havia
tornado públicas as mensagens que recebia – as únicas pessoas que sabiam eram
aquelas mais próximas a ele. Os primeiros covertidos ao islã foram sua primeira
esposa, Khadija; um escravo alforriado que ele adotou como filho, Zaid; seu
primo Ali; e um amigo, chamado Abu Bakr – guardem estes dois últimos nomes,
que desempenharam importantes funções para entendermos o islã atualmente e
dos quais voltaremos a falar em breve.

O anjo Gabriel, então, disse a Maomé: “Ó tu, enrolado ao manto, levanta-te e


prega!” (Sura 74, 1-2), frase presente no Alcorão, o livro sagrado do islã.
Naquela época, Meca era uma cidade politeísta, com crença em vários deuses.
Por isso, a maioria dos cidadãos não encararou a pregação de Maomé com bons
olhos. Em 622, doze anos depois das primeiras revelações, ele teve que fugir,
junto com alguns seguidores que aceitaram a conversão.

A fuga de Maomé para Medina, que durou pouco menos de duas semanas, é
conhecida como Hégira (Hi’jra, em árabe, que significa “emigração”). É o que
marca o início do calendário islâmico – e não o ano em que Maomé nasceu.
Diferentemente de Meca, o profeta teve bastante sucesso em Medina. Apesar de
também enfrentar oposição, conseguiu converter mais pessoas e virou até chefe
de Estado – um líder religioso e, ao mesmo tempo, político.

Em 632, com 62 anos, Maomé morre. Antes de falarmos sobre os rumos da


religião após a morte de seu profeta, convém dizer que a religião, a grosso modo,
se resume a cinco pilares.¹⁸ São eles:
(i) Shahada: é o reconhecimento da existência de um só Deus e que Maomé é
seu profeta. Literalmente, as palavras “islã” e “muçulmano” significam,
respectivamente, “submissão a Deus” e “aquele que se submete a Deus”. (O islã
reconhece Jesus como profeta do mesmo Deus que Maomé – e até há um
capítulo no Alcorão dedicado exclusivamente à Maria –, mas não como a
encarnação de Deus. Além disso, Maomé é o último dos profetas, não podendo
haver outro depois dele)

(ii) Salat: é a reza cinco vezes por dia virado para Meca. Nos primórdios do islã,
ainda durante a vida de Maomé, os muçulmanos deveriam se virar para
Jerusalém – medida adotada pelo profeta para conseguir atrair e converter
judeus.¹ Sempre anunciadas pelas mesquitas, as rezas têm horários específicos,
que vão do nascer do sol até depois do pôr do sol, e variam de cidade para cidade
– justamente por causa da posição do sol. Graças à modernidade, os horários
podem ser consultados em aplicativos para celulares.

(iii) Zakat: é a doação de 2,5% da riqueza aos mais necessitados, obrigatória


somente para aqueles que têm condições financeiras para tal. É o equivalente ao
dízimo.

(iv) Sawn: é o jejum, do nascer ao pôr do sol, durante o mês sagrado do ramadã
– não só de comida e bebida, mas também de relações sexuais, fumo e até
mesmo xingamentos. Naturalmente, o horário comercial em países de maioria
muçulmana é alterado. Passei parte de um ramadã no Marrocos, e é uma
experiência única sentir a vibração das ruas à noite, após a quebra do jejum.
Como o islã segue o calendário lunar, a data muda a cada ano, com diferenças de
poucos dias em relação ao ano anterior. Nos últimos tempos, cada vez mais
muçulmanos passaram a morar em regiões próximas ao polo, como no norte de
Noruega e Finlândia, onde, no verão, é possível ter dias com sol durante 24
horas ou quase isso. Em alguns desses casos, para evitar que os fiéis fiquem
tanto tempo sem comer e beber, pode-se ter como referência o horário de Meca.
Mulheres grávidas e lactantes, crianças, idosos, doentes e quem estiver em
viagem estão isentos do jejum. Em uma tarde de verão ensolarada do ramadã que
passei no Marrocos, estava indo de Casablanca a Marrakech em um trem lotado,
que quebrou no meio do caminho. Rapidamente, funcionários e passageiros se
organizaram para garantir água e alimentos aos idosos e demais isentos do jejum.
Não sou muçulmano, mas, por respeito, fiquei sem beber e comer na frente dos
outros, apesar do calor de 40 graus.
(v) Hajj: é a peregrinação à Meca, que todo muçulmano deve fazer pelo menos
uma vez na vida. Assim como na doação de 2,5% da riqueza aos mais pobres, o
hajj só é obrigatório para aqueles com condições financeiras, além de físicas, de
fazer a viagem.

Se alguém segue estes cinco pilares, pode ser considerado um muçulmano


praticante. Mas convenhamos que segui-los à risca todos os dias não é um tarefa
simples. Quando as mesquitas anunciam as rezas, por exemplo, muitos param o
que estão fazendo e começam a rezar – no meio da rua, se for preciso. Muitos
outros, porém, não dão bola – algo que já presenciei inúmeras vezes.

Além disso, conheço muçulmanos que simplesmente não praticam o jejum


durante o mês do ramadã. Essas pessoas são o que podemos chamar de
muçulmanos não praticantes, assim como, no Brasil, há católicos não praticantes
– nasceram e cresceram em um ambiente religioso, mas não são religiosos, e não
fazem a quaresma. Digo isso porque já conversei com vários brasileiros que têm
a impressão de que todos os muçulmanos são religiosos fervorosos. Contudo, é
perfeitamente possível que uma pessoa seja culturalmente muçulmana, mesmo
não praticando a religião no dia a dia.

Lembram de Abu Bakr e Ali, dois dos primeiros convertidos ao islã? Após a
morte de Maomé, foram eles que disputaram a sucessão como líder da religião e,
assim, nasceu a tão famosa divisão entre sunitas e xiitas, liderados por Abu Bakr
e Ali, respectivamente.

A discordância começou em relação à morte de Maomé em si. Para os xiitas,


Maomé morreu nos braços de Ali, a quem teria apontado como sucessor. De
acordo com os sunitas, o profeta não chegou a apontar um sucessor e morreu nos
aposentos de Aisha, sua terceira esposa e filha de Abu Bakr, que teria sido o
responsável por anunciar a morte aos fiéis.

Em resumo, os sunitas acreditavam que o sucessor deveria ser alguém próximo


de Maomé, um de seus principais companheiros. Os xiitas, por outro lado,
acreditavam que o sucessor deveria ser alguém da família de Maomé, do mesmo
sangue do profeta.

Essa é a origem da divisão, que já estava consolidada um mês após a morte de


Maomé. Mas há, claro, várias diferenças de tradições que se estabeleceram ao
longo da história. Por exemplo, para os xiitas, Najaf e Karbala (atual Iraque) são
duas cidades sagradas e também destinos de peregrinações, além de Meca.

Dentro de cada uma dessas duas grandes divisões do islã, há ramificações, ou


seja, os sunitas de um país não necessariamente têm os mesmos costumes e
crenças dos sunitas de outro país. E é absolutamente equivocado considerar os
xiitas como radicais, mesmo que alguns dicionários o façam, e os sunitas como
moderados. Há ramificações mais moderadas ou mais radicais dentro de ambas
as correntes.

Aliás, a vertente mais extremista do islã atualmente é o wahhabismo, base


ideológica de diversos grupos terroristas, como Estado Islâmico, Al Qaeda e
Boko Haram, o que veremos com mais detalhes nos próximos capítulos. O
wahhabismo é uma vertente do sunismo e luta não só contra os xiitas, mas
também contra outros sunitas não wahhabitas – e naturalmente seguidores de
outras religiões.

Há, ainda, uma terceira divisão do islã, que não é nem sunita nem xiita: o
ibadismo, uma corrente muito pequena, majoritária apenas em Omã, no Golfo
Pérsico, e em algumas regiões específicas de países africanos, como Argélia,
Tunísia, Líbia e a ilha de Zanzibar, na Tanzânia. Para os ibaditas, a descendência
do sucessor de Maomé não importa, podendo ser ou não alguém da família do
profeta. Segundo esta vertente, “todo muçulmano crente e com uma educação
teológica é um candidato potencial ao cargo”.²

Os sunitas representam aproximadamente 90% dos muçulmanos. Os xiitas, em


torno de 10%, enquanto os ibaditas não chegam a 1%. Há países de maioria
xiita, como Irã, Iraque, Bahrein e Azerbaijão. E há países com expressivas
minorias xiitas, levando em conta todas as ramificações e dissidências do
xiismo, como Síria, Iêmen, Líbano, Kuwait, Afeganistão e até mesmo Arábia
Saudita. Os demais países do mundo islâmico, que veremos a seguir, são
principalmente sunitas.

O islã se expandiu muito rapidamente por meio da conquista de territórios e


conversão dos habitantes que neles habitavam. Quem não se convertia, teve sua
liberdade religiosa garantida, mas pagava mais impostos e tinha menos
privilégios que os muçulmanos.
Em um primeiro momento, entre os séculos 7 e 11, a expansão se deu para o
restante do Oriente Médio e o Norte da África, além da Península Ibérica, na
Europa. O califado Omíada, mencionado no capítulo anterior, é a maior
expressão deste período.

Mais tarde, o islã chegou à Índia e outras regiões da Ásia, como a Indonésia –
neste caso, as rotas comerciais desempanharam um importante papel na
propagação da fé islâmica. Com os otomanos, conquistou outra parte do
continente europeu, os Bálcãs, e quase tomou Viena. Em outras palavras, uma
religião verdadeiramente global, que, recentemente, também se espalhou em
razão dos fluxos migratórios.

Hoje, praticamentos todos os países do que chamamos de Oriente Médio são de


maioria islâmica – daí a importância de entender o islã –, com a exceção de
Israel. E essas expansões do passado resultaram em países fora da região que
também são majoritariamente muçulmanos. Aliás, ao contrário do que muita
gente pode imaginar, os países com as maiores populações de muçulmanos não
estão no Oriente Médio.

País População de muçulmanos % da população do país % de toda a população muç


Indonésia 219.960.000 87,1 12,6
Índia 194.810.000 14,9 11,1
Paquistão 184.000.000 96,4 10,5
Bangladesh 144.020.000 90,6 8,2
Nigéria 90.020.000 50 5,1
Egito 83.870.000 95,1 4,8
Irã 77.650.000 99,5 4,4
Turquia 75.460.000 98 4,3
Argélia 37.210.000 97,9 2,1
Iraque 36.200.000 99 2,1
Dez países com as maiores populações muçulmanas (2015)

Fonte: PewResearchCenter²¹

De acordo com dados de 2015, há, no mundo, quase 1,8 bilhão de muçulmanos,
o que faz do islã a segunda religião com o maior número de fiéis. Perde apenas
para cristianismo, este com quase 2,3 bilhões. O único país que aparece entre os
dez com maiores populações tanto de muçulmanos quanto de cristãos é a
Nigéria, com mais de 86 milhões de seguidores do cristianismo, ocupando a
sexta posição deste ranking, atrás de Estados Unidos, Brasil, México, Rússia e
Filipinas.

Os números são altíssimos, e isso só faz reforçar a ideia de que é impossível


generalizar 1,8 bilhão de pessoas. O terrorismo de orientação islâmica e a
violência em nome do islã são temas delicados, que, sem dúvidas, precisam ser
abordados, o que faremos no quarto capítulo, mas sem generalizações..

As projeções para o ano 2060 indicam números ainda mais expressivos. Os


países que compõem o top 10 quase não se alteram – somente a Argélia dá lugar
ao Afeganistão –, mas a troca de posições entre eles indica algumas tendências
interessantes.

País População de muçulmanos % da população do país % de toda a população mu


Índia 333.090.000 19,4 11,1
Paquistão 283.650.000 96,5 9,5
Nigéria 283.160.000 60,5 9,5
Indonésia 253.450.000 86,1 8,5
Bangladesh 181.800.000 91,9 6,1
Egito 124.380.000 96,6 4,2
Iraque 94.000.000 99,3 3,1
Turquia 88.410.000 97,9 3,0
Irã 82.980.000 99,7 2,8
Afeganistão 81.870.000 99,7 2,7
Projeção dos dez países com as maiores populações muçulmanas (2060)

Fonte: PewResearchCenter

A Índia será o país com o maior número de muçulmanos, mesmo este grupo
religioso sendo minoria no país, que é majoritamente hindu. Com exceção do
Paquistão, as cinco maiores populações islâmicas seguirão em países fora do
Oriente Médio. E o islã terá quase 3 bilhões de seguidores – ainda atrás do
cristianismo, apesar de reduzida a diferença entre ambas as religiões na
comparação com 2015.

Na Europa, um levantamento²² de 2015, que leva em consideração apenas


membros da União Europeia – antes da saída do Reino Unido –, mostra que os
dez países com mais muçulmanos, em números absolutos, são Alemanha (4,76
milhões), França (4,71 milhões), Reino Unido (2,96 milhões), Itália (2,2
milhões), Bulgária (1,02 milhão), Países Baixos (1 milhão), Espanha (980 mil),
Bélgica (630 mil), Grécia (610 mil) e Áustria (450 mil).

Nos Estados Unidos, este número fica em 3,45 milhões, segundo dados²³ de
2017. Na América Latina e no Caribe, a população muçulmana de todos os
países somados não passa de 840 mil – especificamente no Brasil, conforme o
censo de 2010, os muçulmanos são pouco mais de 35 mil.²⁴ Trata-se da região
com a menor quantidade de seguidores do islã, enquanto Ásia, Oriente Médio e
África subsaariana, nesta ordem, estão na liderança, à frente de Europa e
América do Norte.²⁵

Como vimos, boa parte dos adeptos do islã não está no Oriente Médio. Isso nos
leva a um outro tema, que costuma gerar confusões: muçulmano e árabe são
coisas diferentes. Muçulmano nada mais é do que alguém que segue a religião
islâmica, ao passo que árabe diz respeito à etnia, conceito ligado a um maior
conjunto de aspectos culturais – frequentemente de difícil compreensão por
muitos brasileiros, dada a nossa miscigenação.

Para deixar mais claro, “um grupo étnico é uma comunidade humana definida
por afinidades linguísticas, culturais e semelhanças genéticas”.² Os muçulmanos
da Indonésia, por exemplo, não são etnicamente árabes. Apesar de a religião ser
a mesma de muitas pessoas do Oriente Médio, a cultura, de uma forma mais
geral, é diferente, assim como a genética e o idioma materno – o árabe não é
língua oficial no país.

Entre os dez países com as maiores populações muçulmanas, somente três são
majoritamente árabes: Egito, Argélia e Iraque, que ocupam a sexta, a nona e
décima posições, respectivamente – em 2060, serão apenas dois. Todos os outros
sete – Índia, Paquistão, Bangladesh, Nigéria, Irã e Turquia, além da já citada
Indonésia –, o que inclui os cinco primeiros, não são países árabes.

Sobre a Argélia, vale um adendo. De acordo com The World Factbook,²⁷ um


almanaque sobre todos os países do mundo publicado pela Agência Central de
Inteligência dos Estados Unidos (CIA, na sigla em inglês), “quase todos os
argelinos são originalmente bérberes, e não árabes”. Contudo, o grupo étnico
apontado como majoritário no país, representando 99% da população, é chamado
de “árabe-bérbere”, uma vez que muitos cidadãos incorporaram elementos de
ambas as etnias. Ainda segundo a publicação, uma minoria, de 15% – incluída
nos 99% –, se identifica apenas como bérbere (ou imazighen, como muitos
preferem ser chamados), e vive principalmente na região montahosa da Cabília,
a leste da capital, Algiers.

Portanto, dos países que fazem parte do Oriente Médio, segundo o mapa
utilizado no primeiro capítulo, alguns não são árabes – entre parênteses, a etnia
majortirária de cada um deles: Afegnistão (pashtuns), Djibouti (somalis), Irã
(persas), Israel (judeus), Mauritânia (haratinos ou mouros negros), Paquistão
(punjabis), Somália (somalis) e Turquia (turcos). E há, ainda, etnias que não
compõem a maioria em nenhum país, como os curdos, dos quais falaremos no
oitavo capítulo.

A questão “árabe-bérbere” se repete em alguns países, como Líbia, Marrocos e


Saara Ocidental – que não é reconhecido oficialmente como país independente.
Em outros, como Djibouti, Mauritânia e Somália, árabe é idioma oficial – com
variações locais de dialetos –, apesar de a etnia dominante ser diferente. No
Sudão, o grupo majoritário é chamado de “árabes sudaneses”, que têm algumas
características distintas dos árabes, digamos, mais tradicionais.

Existe até uma organização internacional árabe, a Liga Árabe, com sede no
Egito, que engloba todos os países do Oriente Médio etnicamente de maioria
árabe ou que têm algum elemento árabe presente na sociedade, como o idioma.
Da Mauritânia a Omã, incluindo Somália e Djibouti, com exceção da Síria, que
está suspensa. Irã e Turquia, por exemplo, não fazem parte – afinal, não são
árabes. O único membro da Liga Árabe de fora da região é Comores, um país
isular localizado no leste da África – entre Moçambique, Tanzânia e Madagascar
–, que tem o árabe como uma de suas três línguas oficiais.

Todos os países da Liga Árabe são também majoritariamente muçulmanos. Mas


é uma outra organização internacional, a Organização para a Cooperação
Islâmica, sediada na Arábia Saudita, que tem mais a ver com a religião. Inclui
não só os países do Oriente Médio, mas também outros africanos e asiáticos e
até mesmo dois sul-americanos, Guiana e Suriname, e um europeu, a Albânia –
partes de Azerbaijão e Cazaquistão, que fazem parte da Organização para a
Cooperação Islâmica, também estão geograficamente na Europa, assim como a
Turquia. Alguns membros, mesmo não tendo maioria muçulmana, têm
expressivas minorias de seguidores do islã.

Dessa forma, conclui-se que, no Oriente Médio, assim como é possível haver
muçulmanos que não são árabes – como o presidente do Irã, Hassan Rouhani,
um muçulmano xiita etnicamente persa –, há árabes que não são muçulmanos.
Por exemplo, o presidente do Líbano, Michel Aoun, é árabe e, ao mesmo tempo,
cristão maronita. Mais uma vez, fica clara a dificuldade de generalizar todos os
povos desta região.

Infelizmente, no entanto, é algo que ainda acontece, inclusive entre pessoas bem-
informadas ou, no mínimo, que deveriam ser bem-assessoradas, como políticos.
Em 2017, o ex-presidente americano Donald Trump formulou uma política
migratória que barrava a entrada de cidadãos de diversos países, como Síria,
Iêmen, Irã e Líbia, entre outros. Sem entrar no mérito sobre a efetividade e
aplicabilidade desta política, que tinha como objetivo evitar o ingresso de
terroristas de orientação islâmica nos EUA, pode-se dizer que ela falha ao
generalizar.

A Síria, por exemplo, tem 10% de sua população composta por cristãos – aliás,
em Damasco, a capital do país, há três patriarcados cristãos e foi nesta cidade
que o apóstolo São Paulo se converteu ao cristianismo. Mesmo não sendo
muçulmanos, esses cristãos, possivelmente árabes, ficaram impedidos de entrar
nos Estados Unidos²⁸ por causa de uma generalização, que misturou religião e
nacionalidade.

No Brasil, também temos um exemplo de uma mistura, desta vez entre religião e
etnia, na esfera política. Em 2018, a então senadora Gleisi Hoffman gravou um
vídeo para a emissora Al Jazeera, do Catar, pedindo apoio de países árabes ao
ex-presidente Lula, que estava preso em Curitiba. O vídeo causou polêmica nas
redes sociais e entre outros parlamentares.

A ex-senadora Ana Amélia foi uma das que respondeu. Ela disse esperar que
“essa convocação ao apoio dos países do mundo árabe não tenha sido também
um pedido para que o exército islâmico venha ao Brasil”,² relacionando
diretamente “mundo árabe” e “exército islâmico” – isso sem contar que não
existe um “exército islâmico”, o que provavelmente era uma referência ao grupo
terrorista Estado Islâmico.

Aqui, a finalidade não é discutir quem tem razão ou não em relação ao vídeo em
si. Entretanto, do ponto de vista étnico-religioso, é fato que a fala da ex-senadora
Ana Amélia, que, em 2019, passou a chefiar a Secretaria Extraordinária de
Relações Federativas e Internacionais do Rio Grande do Sul, contém um erro
crasso.

No campo do entretenimento, vale citar o “Big Brother árabe”, oficialmente


chamado de “Big Brother: The Boss”, um reality show, de 2004, que contou com
participantes de diferentes países, como Arábia Saudita, Bahrein, Egito, Iraque,
Jordânia, Líbano e Síria, entre outros – todos eles de maioria árabe. Entretanto, o
programa durou apenas 11 dias. O que pesou para seu cancelamento foi a
religião: houve um grande rechaço de telespectadores e políticos desses países –
majoritariamente muçulmanos – porque, segundo muitos, algumas liberdades
praticadas não estavam de acordo com o islã.

Uma charge bastante difundida na internet mostra duas mulheres, uma de


biquíni, salto alto e óculos escuros e a outra de de niqab – vestimenta muitas
vezes confudida com a burca –, com praticamente todo o corpo coberto, que se
cruzam na rua e expressam pensamentos quase idênticos.

A de biquíni pensa sobre a de niqab: “Tudo coberto, menos os olhos. Que cultura
cruel e dominada pelos homens!”. Por sua vez, a de niqab pensa sobre a de
biquíni: “Tudo descoberto, menos os olhos. Que cultura cruel e dominada pelos
homens!”.

A questão das mulheres no islã é talvez uma das mais incompreendidas por não
muçulmanos, e é com uma breve reflexão sobre isso que encerro este capítulo.
Será que as mulheres muçulmanas, geralmente marcadas no imaginário coletivo
pelo uso do véu, precisam de salvação?³

Quem tem o poder de responder essa pergunta são elas próprias. Sem dúvidas,
sociedades de países majoritariamente muçulmanos são, em geral, machistas,
com claras violações aos direitos das mulheres. Porém, convenhamos,
sociedades ocidentais também são – e muito –, mas de formas diferentes.
Escrevo estas palavras exatamente um dia depois de um deputado estadual por
São Paulo, conforme mostram imagens, apalpar os seios de uma colega
parlamentar em pleno ambiente de trabalho, e em um país onde uma mulher
morre a cada sete horas, em média, simplesmente por ser mulher.³¹

Sendo assim, faço uso de um conceito antropológico, o relativismo cultural, que


pode contribuir com essa discussão. A ideia geral do relativismo cultural é a de
que devemos olhar as diferentes culturas sem preconceitos, julgamentos ou
intenção de modificá-las, restando a missão de apenas tentar entendê-las.

O véu, a propósito, não é exclusividade do islã, e já existia como um costume na


região muito antes de Maomé, que o “pegou emprestado”. No século 13 antes de
Cristo, de acordo com registros antigos, os assírios foram os primeiros a
determinarem que mulheres, as casadas, deveriam cobrir o cabelo.³² Outras
culturas, como romanos, gregos, bizantinos e até mesmo judeus e cristãos,
mantiveram a tradição ou pelo menos parte dela – busquem no Google imagens
de Maria, mãe de Jesus, e vejam se ela não usa um véu na cabeça.

Voltemos, então, à entrevista do teólogo Reza Aslan à CNN. É claro que, em


diversos países majoritariamente muçulmanos, há leis que ferem gravemente os
direitos das mulheres – e a imposição do véu é uma delas. Mas as leis de Arábia
Saudita e Irã, por exemplo, são diferentes das leis de Tunísia e Líbano – e muitos
outros.

Em Beirute, a capital libanesa conhecida por sua vida noturna agitada, as


mulheres não são obrigadas a cobrirem o cabelo. Ainda assim, é possível ver
algumas que o fazem por vontade própria, sem que ninguém as obrigue – as
obrigações geralmente acontecem em famílias mais conservadoras e rurais.

Na minha viagem à Índia, morei com uma egípcia que cobria o cabelo. Meses
depois, ela resolveu parar de usar o veú – disse que sua promessa estava
cumprida. Ela decidiu usá-lo porque quis e parou também porque quis – sua mãe
nem sequer usava. Aliás, há feministas muçulmanas que fazem questão de usar o
véu e lutam pelo direito de a mulher poder escolher livremente se quer usá-lo ou
não.

Na Tunísia, o aborto é legalizado desde 1965. Não tenho a intenção de discutir o


direito ao aborto em si, mas a lei tunisiana sobre o assunto é mais antiga, por
exemplo, que a dos Estados Unidos, onde a prática foi permitida pela Suprema
Corte em 1973. O islã, a propósito, tende a ser mais liberal em relação ao
aborto.³³ Arábia Saudita, Argélia, Bahrein, Catar, Emirados Árabes Unidos,
Jordânia, Kuwait, Marrocos e Turquia, além da Tunísia, têm leis mais flexíveis
que alguns lugares nos EUA.³⁴

Além disso, mulheres já ocuparam cargos de presidente ou primeira-ministra em


inúmeros países de maioria muçulmana, como Bangladesh, Indonésia, Paquistão,
Quirguistão, Senegal e Turquia, entre outros.³⁵ O que não quer dizer
necessariamente que, nesses países, elas sejam 100% livres. Meu objetivo, aqui,
é apenas mostrar que o mundo não é tão simples assim. Portanto, como
provocação, vale perguntar: quantas mulheres já foram presidente dos Estados
Unidos?

Falando em Estados Unidos e islã, o assunto do próximo capítulo é o que muitos


consideram como o principal evento político do século 21, responsável por
chamar ainda mais a atenção do Ocidente para esta religião e gerar conflitos no
Oriente Médio que duram até hoje. Estou falando, claro, dos ataques terroristas
de 11 de setembro de 2001.

14 CNN. Reza Aslan: Bill Maher ‘not very sophisticated’. YouTube, 30 out.
2014. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?
v=2pjxPR36qFU&t=3s>. Acesso em: 14 dez. 2020.

15 WARREN, Larson. Review of Reza Aslan’s Zealot: The Life and Times of
Jesus of Nazareth. Columbia International University. Disponível em:
<https://www.ciu.edu/content/review-reza-aslan%E2%80%99s-zealot-life-and-
times-jesus-nazareth>. Acesso em: 14 dez. 2020.

16 KUŞ, Atilla. É Islam ou islamismo? CartaCapital, 18 ago. 2020. Disponível


em: <https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/e-islam-ou-
islamismo/> Acesso em: 14 dez. 2020.

17 KAMEL, Ali. Sobre o Islã: a afinidade entre muçulmanos, judeus e cristãos e


as origens do terrorismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.

18 DEMANT, Peter. O mundo muçulmano. São Paulo: Contexto, 2018.

19 TEIXEIRA, Duda. 100 dúvidas universais: do blog da Veja.com. eBook


Kindle, 2018.

20 Liderança no Islão ibadita. Islam in Oman. Disponível em:


<http://www.islam-in-oman.com/pt/ibadismo/islao-historia-sunita-xiita-
movimentoibadita-ibadismo/islamico-democracia-eleicao-ima.html>. Acesso
em: 15 dez. 2020.

21 DIAMANT, Jeff. The countries with the 10 largest Christian populations and
the 10 largest Muslim populations. PewResearchCenter, 01 abr. 2019.
Disponível em: <https://www.pewresearch.org/fact-tank/2019/04/01/the-
countries-with-the-10-largest-christian-populations-and-the-10-largest-muslim-
populations/>. Acesso em: 16 dez. 2020.

22 MCCARTHY, Niall. Europes’s largest Muslim populations. Statista, 25 mar.


2015. Disponível em: <https://www.statista.com/chart/3338/europes-largest-
muslim-populations/>. Acesso em: 16 dez. 2020.

23 MOHAMED, Besheer. New estimates show U.S. Muslim population


continues to grow. PewResearchCenter, 03 jan. 2018. Disponível em:
<https://www.pewresearch.org/fact-tank/2018/01/03/new-estimates-show-u-s-
muslim-population-continues-to-grow/>. Acesso em: 16 dez. 2020.

24 ROCHA, Alexandre. População muçulmana cresce 29% no Brasil. Agência


de Notícias Brasil-Árabe, 03 out. 2012. Disponível em:
<https://anba.com.br/populacao-muculmana-cresce-29-no-brasil/>. Acesso em:
16 dez. 2020.
25 DESILVER, Drew. World’s Muslim population more widespread than you
might think. PewResearchCenter, 31 jan. 2017. Disponível em:
<https://www.pewresearch.org/fact-tank/2017/01/31/worlds-muslim-population-
more-widespread-than-you-might-think/>. Acesso em: 16 dez. 2020.

26 SANTOS, Diego Junior da Silva et al. Raça versus etnia: diferenciar para
melhor aplicar. Maringá: Dental Press J. Orthod., 2010.

27 ALGERIA. The World Factbook. Disponível em:


<https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/geos/ag.html>.
Acesso em: 17 dez. 2020.

28 REUTERS STAFF. Under Trump travel ban, Syrian Christians still see no
light. Reuters, 29 jan. 2017. Disponível em:
<https://br.reuters.com/article/idUSKBN15D0UN>. Acesso em: 17 dez. 2020.

29 CHAPOLA, Ricardo. O vídeo do PT à Al Jazeera, as reações de rivais e uma


análise de discurso. Nexo Jornal, 19 abr. 2018. Disponível em:
<https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/04/19/O-v%C3%ADdeo-do-PT-
%C3%A0-Al-Jazeera-as-rea%C3%A7%C3%B5es-de-rivais-e-uma-
an%C3%A1lise-de-discurso >. Acesso em: 17 dez. 2020.

30 ABU-LUGHOD, Lila. As mulheres muçulmanas precisam realmente de


salvação? reflexões antropológicas sobre o relativismo cultural e seus outros.
Florianópolis: Rev. Estud. Fem., 2012

31 VELASCO, Clara; CAESER, Gabriela; REIS, Thiago. Mesmo com queda


recorde de mortes de mulheres, Brasil tem alta no número de feminicídios em
2019. G1, 05 mar. 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/monitor-da-
violencia/noticia/2020/03/05/mesmo-com-queda-recorde-de-mortes-de-
mulheres-brasil-tem-alta-no-numero-de-feminicidios-em-2019.ghtml >. Acesso
em: 18 dez. 2020.

32 CHADE, Jamil; MANUS, Ruth. 10 histórias para tentar entender um mundo


caótico: Felicidade, corrupção, saúde, violência, meio ambiente, desigualdades,
amor, racismo e tantos outros temas que assombram um planeta em
transformação. Rio de Janeiro: Sextante, 2020.

33 Representante muçulmano apresenta posicionamento do islamismo em


relação ao aborto. Supremo Tribunal Federal, 06 ago. 2018. Disponível em:
<http://noticias.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?
idConteudo=385932> Acesso em: 18 dez. 2020.

34 LIVNI, Ephrat. Saudi Arabia’s abortion laws are more forgiving than
Alabama’s. Quartz, 25 mai. 2019. Disponível em:
<https://qz.com/1628427/saudi-arabias-abortion-laws-are-more-forgiving-than-
alabamas/> Acesso em: 18 dez. 2020.

35 DALIA, G. Meet The Nine Muslim Women Who Have Ruled Nations.
Egyptian Streets, 09 jun. 2015. Disponível em:
<https://egyptianstreets.com/2015/06/09/meet-the-nine-muslim-women-who-
have-ruled-nations/>. Acesso em: 19 dez. 2020.
Como o 11 de setembro impactou a região?

São raros os momentos que marcam uma geração a ponto de quase todo mundo
se lembrar do que estava fazendo quando ficou sabendo dos ataques terroristas
de 11 de setembro de 2001. Algumas pessoas podem até não ter lembranças, mas
ainda veem e leem frequentemente no noticiário consequências daquele dia.

Aliás, vale citar a edição do Jornal Nacional sobre o atentado, cuja íntegra está
disponível em um canal no YouTube.³ “Uma terça-feira que vai marcar a
história da humanidade”, profetizou o apresentador William Bonner. Mas é um
outro trecho que realmente quero destacar.

“Na madrugada, no mundo árabe, explosões: mísseis riscam o ceú de Cabul, a


capital do Afeganistão”, anunciou a então apresentadora Fátima Bernardes. A
essa altura, o leitor e a leitora mais atentos já identificaram o erro: o Afeganistão,
etnicamente de maioria pashtun, não faz parte do mundo árabe.

Sim, o principal telejornal do país, que foi ao ar algumas horas depois dos
ataques, com tempo mais do que suficiente para revisar este tipo de informação,
cometeu um erro desses logo na abertura. O erro maior, para deixar claro, não foi
necessariamente de Fátima Bernardes, que apenas leu o teleprompter, mas, sim,
de quem escreveu o texto e dos responsáveis pela edição.

E o Afeganistão, para provar o argumento de que as consequências do 11 de


setembro continuam presentes, ainda está em guerra.

Para a maioria das pessoas, o 11 de setembro foi um ataque às torres gêmeas do


World Trade Center, em Nova Iorque, o coração financeiro dos Estados Unidos.
O primeiro voo saiu de Boston, com destino a Los Angeles, às oito da manhã, no
horário local, mudou de rota e, às 8h46, chocou-se com uma das torres. Às 9h02,
outro voo com saída de Boston atingiu a segunda torre. Por causa da primeira
colisão, a cobertura da imprensa já havia começado, e o mundo assistiu ao vivo à
continuação do ataque.

Mas houve mais dois aviões. Às 9h37, um deles colidiu com o Pentágono, a sede
do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, localizado na Virgína, bem
próximo à capital americana, Washington, D.C. E o outro caiu em uma zona
rural na Pensilvânia, após passageiros lutarem contra os terroristas. Acredita-se
que o alvo seria o Capitólio ou a Casa Branca, respectivamente as sedes dos
poderes Legislativo e Executivo do país.

Foram, ao todo, 19 terroristas envolvidos nos sequestros dos quatro aviões: 15 da


Arábia Saudita, dois dos Emirados Árabes Unidos, um do Egito e também um do
Líbano, responsáveis por quase três mil mortes.

Para a maioria das pessoas, então, duas torres caíram naquela trágica terça-feira
em Nova Iorque. A verdade, porém, é que foram três. Aqui, faço questão de
deixar uma coisa clara. Vou entrar em um assunto, apesar de importante,
surpreendentemente muito pouco comentado, que, com frequência, é ligado a
teorias da conspiração. Mas não sou da turma conspiracionista, e vou me ater
mais aos fatos do que às suposições. O que não poderia fazer era deixar de falar
sobre isso.

Meus comentários a seguir são baseados, em grande parte, nos trabalhos do


historiador suíço Daniele Ganser.³⁷ Não tenho conhecimento de outra pessoa que
fale mais do que ele sobre a terceira torre que caiu em 11 de setembro de 2001.
Na grande imprensa brasileira, é raro encontrar publicações a respeito do
assunto. Uma exceção é um texto³⁸ do jornalista Guga Chacra, correspondente
em Nova Iorque e especialista em Oriente Médio, em seu antigo blog no jornal
O Estado de S. Paulo. A jornalista Paula Schmitt, ex-correspondente do SBT e
da Radio France no Oriente Médio, recentemente também abordou a queda da
terceira torre em sua coluna³ no jornal Poder360.

Vamos lá: o World Trade Center era um complexo de sete edifícios, dos quais
dois – justamente as torres gêmeas – foram atingidos por aviões. Entretanto, um
outro edifício, conhecido pela sigla WTC7, também caiu, mesmo sem ter sido
atingido por um avião. Ele tinha 170 metros de altura, 47 andares e 81 colunas.
Estaria entre os dez prédios mais altos do Brasil. Não era, portanto, um prédio
qualquer e, por isso, seria impossível ignorar a sua queda.

Mas foi exatamente o que aconteceu no relatório da Comissão Nacional sobre os


Ataques Terroristas nos Estados Unidos, criada pelo Congresso americano e
composta por representantes tanto democratas quanto republicanos. Em um
documento de quase 600 páginas,⁴ publicado em julho de 2004, não há uma
menção sequer ao WTC7.

Em 2008, sete anos depois dos ataques, o govero americano finalmente deu sua
versão oficial por meio do Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia (Nist, na
sigla em inglês). Segundo o Nist, fogo destruiu a coluna 79 do edifício, o que
teria sido suficiente para ocasionar a queda.

Contudo, especialistas de um grupo independente, chamado Arquitetos e


Engenheiros pela Verdade do 11 de setembro (Architects & Engineers for 9/11
Truth), contestam a versão. Para eles, fogo não derrubaria um prédio deste porte,
que só poderia ter caído simetricamente, conforme deixam claros vídeos do
momento, se todas as 81 colunas desaparecessem ao mesmo tempo, ou seja, uma
implosão.

O que, afinal, funcionava dentro do WTC7? Esta é uma pergunta cuja resposta
alimenta teorias da conspiração. Não é o que quero. Minha intenção é apenas
deixar registrado dois fatos inegáveis. Primeiro, o prédio caiu. E, segundo, em
um de seus 47 andares, funcionava um escritório da CIA – conspiracionistas
alegam queima de arquivo.

Há outros fatos que contribuem para as teorias. A jornalista Jane Standley, da


BBC, informava ao vivo que o WTC7 havia desmoronado. Mas, enquanto ela
anunciava a queda, o prédio seguia de pé na imagem ao fundo. Assim como
Fátima Bernardes no caso do Afeganistão no mundo árabe, o erro não foi de
Standley, que apenas repassava informações durante uma cobertura tensa como
aquela. A jornalista, contudo, sofreu pressões e acabou encerrando sua carreira.
E a BBC alegou que se baseou em uma informação da agência de notícias
Reuters, que, depois, admitiu o erro.

De acordo com a versão oficial do governo americano, os Estados Unidos foram


surpreendidos com os ataques do grupo terrorista Al Qaeda, comandada pelo
saudita Osama bin Laden. Com base nos fatos que dão munição às teorias da
conspiração – mas não deixam de ser fatos –, Daniele Ganser argumenta que há
outras duas versões possíveis.

A primeira é chamada pelo historiador suíço de Lihop, sigla em inglês para Let it
happen on purpose (deixe acontecer de propósito). De acordo com esta versão, o
responsável foi, de fato, Bin Laden, mas o então presidente americano, George
W. Bush, sabia e deixou que os ataques acontecessem.

A outra versão é chamada de Mihop – Make it happen on purpose (Faça


acontecer de propósito). Em outras palavras, Bin Laden não teve nada a ver com
o 11 de setembro, e quem cometeu os ataques foi o próprio governo Bush – uma
operação false flag. De acordo com Ganser, não há como determinar, devido à
ausência, segundo ele, de dados suficientes e convincentes, qual das versões – a
oficial, Lihop e Mihop – é a correta, mas uma coisa é certa: é impossível que
elas coexistam.

Parece, de fato, bastante conspiracionista, eu admito. Mas espero que, apesar


disso, o leitor e a leitora entendam a importância de abordar esse assunto, sem
me considerarem um apoiador de teorias da conspiração.

E o que disse a Al Qaeda sobre o atentado? Em um primeiro momento, Bin


Laden negou a autoria dos ataques. O terrorista só foi admitir sua participação no
11 de setembro três anos depois, em 2004, às vésperas das eleições presidenciais
americanas que reelegeram Bush.

Tanto a negação quanto a confissão foram feitas por meio de fitas enviadas à Al
Jazeera. A maioria das informações sobre Osama bin Laden e a Al Qaeda às
quais o mundo tinha acesso veio da emissora do Catar, muitas vezes associada,
de forma equivocada, ao terrorismo.

Com o 11 de setembro, além de divulgar com exclusividade as fitas do terrorista,


a Al Jazzera se tornou, definitivamente, a “principal fonte de informação dos
mundos árabe e islâmico”,⁴¹ segundo avaliação a própria emissora. Por ser o
mais relevante veículo jornalístico do Oriente Médio, convém explicar
brevemente o que é a Al Jazeera – até porque voltaremos a falar dela em outros
momentos deste livro.

O nome Al Jazeera quer dizer “península”, o que, também segundo o próprio


meio de comunicação, pode ter três significados. Primeiro, a Península Arábica.
Segundo, o Catar, sede da emissora, que é um país peninsular dentro da
Península Arábica. Por último, o jornalismo da Al Jazeera – “uma ilha do
jornalismo profissional” no Oriente Médio.
A Al Jazeera foi ao ar pela primeira vez em 1º de novembro de 1996. E o
jornalismo na região realmente pode ser dividido em antes e depois da estreia da
emissora, que passou a abordar temas considerados tabus, como sexo, poligamia
e corrupção.

Nascida da vontade do então emir do Catar, Hamad bin Khalifa Al Thani – que
sinalizava intenções liberalizantes e democráticas para o país, insuficientes se
analisarmos a situação mais de duas décadas depois –, a Al Jazeera tem uma
linha editorial clara: independência para criticar qualquer governo no Oriente
Médio, com exceção do próprio Catar, cujo governo a financiou desde o início.

Atualmente, a emissora está consolidada em diferentes formatos – televisão e


site, principalmente – e com conteúdos disponíveis não só em árabe, mas
também em inglês. A Al Jazeera é, acima de tudo, uma ferramenta de soft
power⁴² do Catar, ou seja, de projeção de poder, sem usar vias militares e
econômicas, deste pequeno, rico e ambicioso país do Golfo Pérsico. A propósito,
situação semelhante ocorre em outras áreas além do jornalismo, como no
esporte: o Catar, sede da Copa do Mundo de 2022, é também o dono do clube de
futebol francês Paris Saint-Germain.

O 11 de setembro é considerado uma virada na história da Al Jazeera. Foi a


partir daí que ela passou a ganhar notoriedade. De acordo com Mohamed el-
Nawawy e Adel Iskandar, dois estudiosos que escreveram em conjunto um dos
principais livros sobre emissora, “a transmissão das fitas de Osama bin Laden
[...] foi o carro-chefe da Al Jazeera no cenário internacional”, assim como foi a
Guerra do Golfo, em 1991, para a CNN⁴³.

No entanto, foram também as fitas de Bin Laden que provocaram a falsa


associação entre Al Jazeera e terrorismo. Esses mesmos estudiosos argumentam
que, se as fitas tivessem sido enviadas a qualquer outro veículo, como a CNN –
que, inclusive, as retransmitiu enquanto durou uma parceria de poucos meses
com a Al Jazeera –, o tratamento jornalístico teria sido o mesmo. Querendo ou
não, estamos falando de um furo de repercussão mundial.

Bin Laden, que tinha muçulmanos como público-alvo, só enviou as fitas à Al


Jazeera porque sabia de sua grande audiência no Oriente Médio. E aquele era um
tempo em que os terroristas ainda precisavam do jornalismo para se comunicar,
diferentemente de hoje, com os advento das mídias digitais.
Dessa forma, há, do ponto de vista jornalístico, uma grande diferença entrar
transmitir as fitas de Osama bin Laden e apoiar a Al Qaeda. Mas, afinal, o que é
e como surgiu este grupo terrorista? É justamente sobre isso que falaremos a
seguir.

Para entendermos a Al Qaeda, precisamos voltar a 1979, ano em que a União


Soviética invadiu o Afeganistão. Hoje independentes, Turcomenistão,
Uzbequistão e Tajiquistão são ex-repúblicas soviéticas, localizadas exatamente
na fronteira com o Afeganistão. Em um contexto de Guerra Fria, os soviéticos
buscavam expandir sua influência na região.

Na luta contra a União Soviética, estavam os mujahidins, ou guerreiros santos.


Eram militantes islâmicos não só afegãos, mas também oriundos de diversos
países do Oriente Médio. O palestino Abdullah Azzam foi um de seus principais
líderes. Ele ficou particularmente conhecido por ser o formulador da jihad em
seu sentido terrorista – literalmente, a palavra jihad significa lutar ou esforçar-
se.⁴⁴

Para Azzam, “os muçulmanos tinham tanto uma obrigação individual, quanto
comunitária, de expulsar exércitos conquistadores ou de ocupação de suas terras
sagradas” – como palestino, falava com Israel em mente. Ele “tornou a
campanha antissoviética explicitamente a prioridade para todos os muçulmanos
crentes, não apenas afegãos”.⁴⁵ Nascia, assim, o jihadismo do qual tanto ouvimos
falar nos dias de hoje.

Azzam era o mentor de Osama bin Laden, e ambos estiveram entre os


fundadores da Al Qaeda (a base, em árabe), um grupo de mujahidins que surgiu
para lutar contra a invasão soviética do Afeganistão. Azzam morreu em 1989, no
Paquistão. Bin Laden, então, assumiu a liderança da organização. Desde que o
mais conhecido dos terroristas morreu, em 2011, também no Paquistão, o posto é
ocupado pelo egípcio Ayman al-Zawahiri, outro mujahidin que esteve na luta
contra a União Soviética em solo afegão.

Como determina a lógica dos conflitos durante a Guerra Fria, se os soviéticos


estavam de um lado, os americanos estavam do outro – cada um apoiando
grupos locais que atendiam aos seus respectivos interesses, sem necessariamente
entrar em confronto direto. No Afeganistão, os Estados Unidos apoiaram a Al
Qaeda, oficialmente fundada com este nome em 1988, mas cujos membros já
estavam em combate desde antes.

Tanto o democrata Jimmy Carter quanto o republicano Ronald Reagen, ambos


ex-presidentes americanos ao longo da invasão soviética – que durou até 1989 –,
apoiaram os mujahidins. Reagan, por exemplo, assinou o National Secutiry
Decision Directive 166, em 1985, permitindo auxílio “por todos os meios
disponíveis”. E o Pentágono, a CIA, o Congresso e instituições privadas
americanas pressionavam por um maior envolvimento dos Estados Unidos no
Afeganistão.⁴

Quando, então, a Al Qaeda, que contou com apoio americano no início de suas
atividades, se rebelou contra os Estados Unidos? Foi especialmente a partir da
Guerra do Golfo, em 1991, ano em que Iraque invadiu o Kuwait. Para a análise
sobre a Al Qaeda e o 11 de setembro, o importante em relação a este conflito é
saber que os americanos usaram a Arábia Saudita como base para suas operações
militares contra o Iraque.

Provavelmente inspirado pelas ideias de Azzam – de que muçulmanos devem


lutar contra exércitos estrangeiros em terras sagradas –, Bin Laden não aceitou
ver tropas americanas na Arábia Saudita, onde nasceu e se localizam Meca e
Medina, lutando contra um país de maioria muçulmana.

Nos anos seguintes, a Al Qaeda passou a ter os Estados Unidos como alvo. Em
1993, realizou um atentado no subsolo do próprio World Trade Center, deixando
seis mortos e mais de mil feridos – o objetivo, que não deu certo, era derrubar as
torres gêmeas. Em 1998, o grupo atacou as embaixadas americanas no Quênia e
na Tanzânia e, em 2000, um navio americano no Iêmen. Um ano antes, em 1999,
o governo americano classificou a Al Qaeda oficialmente como organização
terrorista. E não é necessário repetir o que ocorreu em 2001. Mais tarde, outros
lugares, como Bali, Madri e Londres, também foram alvo de ataques da Al
Qaeda.

Os Estados Unidos, ao longo da década de 1980, mal sabiam o monstro que


estavam criando, que, como veremos no sétimo capítulo, deu origem ao Estado
Islâmico a partir de outra postura arriscada de política externa: a invasão
americana do Iraque, em 2003, uma das respostas de Bush ao 11 de setembro. A
outra resposta veio antes, logo após o atentado, em outubro de 2001: a invasão
americana do Afeganistão – mais uma vez invadido por uma grande potência.
A Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) é uma aliança militar
formada por Estados Unidos, Canadá e diversos países europeus. Criada em
1949, no contexto da Guerra Fria, nasceu com o objetivo de conter a expansão
da União Soviética. O art. 5º da Otan resume a sua lógica: “As Partes concordam
em que um ataque armado contra uma ou várias delas na Europa ou na América
do Norte será considerado um ataque a todas”.⁴⁷

Pouco mais de 52 anos depois da criação da Otan, o art. 5 foi acionado pela
primeira vez, em 12 de setembro de 2001. Com a invasão do Afeganistão, onde
se pensava que Osama bin Laden estava escondido, os Estados Unidos
iniciavam, respaldados por seus aliados ocidentais, a chamada Guerra ao Terror.
E o recado também foi dado àqueles de fora da Otan: “Todas as nações, em todas
as regiões”, disse o então presidente americano, George W. Bush, “agora têm
uma decisão a tomar: ou vocês estão conosco ou estão com os terroristas”.

À época, a Al Jazeera era a única emissora funcionando no Afeganistão, e os


veículos ocidentais não tinham alternativa a não ser retransmitir as imagens do
meio de comunicação árabe com tradução simultânea. O escritório da Al Jazeera
na capital afegã, Cabul, chegou a ser bombardeado. E um de seus funcionários, o
operador de câmera sudanês Sami Al Hajj – atualmente diretor do Centro de
Liberdades Públicas e Direitos Humanos da emissora –, foi preso
arbitrariamente.

A Operação Liberdade Duradoura, nome dado à ação militar dos Estados Unidos
no Afeganistão, se encerrou oficialmente em 2014, com o ex-presidente Barack
Obama. Tropas americanas, no entanto, continuaram estacionadas no país, sob
uma outra operação que trocou de nome, a Operação Sentinela da Liberdade,
mas que, como se nota, manteve o conceito de levar liberdade a outros lugares.

De duradouro mesmo só o caos que se instalou no Afeganistão. E de liberdade


nem se fala. Para os Estados Unidos, a guerra, tida como a mais longa da história
do país, também teve suas consequências: quase 1 trilhão de dólares aos cofres
públicos.⁴⁸ Repetindo: 1 trilhão de dólares. E esta é uma estimativa otimista,
considerando que há números que chegam a mais de 3 trilhões de dólares –
enquanto isso, a Al Qaeda precisou de aproximadamente 500 mil dólares para
realizar os ataques de 11 de setembro⁴ . Há, ainda, o custo humanitário: 2.216
soldados americanos mortos e mais de 20 mil feridos – do lado afegão, foram 45
mil soldados mortos, além de mais de 100 mil civis.⁵

O Talibã, que governava o Afeganistão em 2001, foi retirado do poder –


enquanto Bin Laden, como vimos, só foi encontrado em 2011, no vizinho
Paquistão. Contudo, o grupo fundamentalista religioso ainda hoje exerce
influência no país – está ativo em 70% do território –, contribuindo para as
tensões e conflitos armados entre os diferentes lados da guerra.

Aliás, em 2020, os Estados Unidos de Donald Trump assinaram, com mediação


do Catar, um acordo⁵¹ com o Talibã, prevendo a redução da violência no
Afeganistão e a retirada de todas as tropas americanas e da Otan do país. No
momento em que escrevo, nem todos os detalhes estão esclarecidos, apesar de as
intenções parecerem boas. De qualquer forma, não consigo vislumbrar a paz
afegã a curto prazo – até porque já existem outros atores envolvidos no conflito,
como o Estado Islâmico, e o fundamentalismo religioso não acaba com uma
canetada.

Ainda dentro da dinâmica da chamada Guerra ao Terror, os Estados Unidos


invadiram o Iraque em 2003. Desta vez, porém, com pouco respaldo
internacional – apenas o Reino Unido, entre os países de peso, e sem autorização
do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), ou seja,
uma guerra ilegal, do ponto de vista do direito internacional.

As acusações do governo americano eram de que o Iraque tinha ligações com a


Al Qaeda e dispunha de armas de destruição em massa. Posteriormente, ambas
se provaram falsas, apesar de o grupo terrorista, de fato, ter um célula em
atividade no país – guardem esta informação para o capítulo sobre o Estado
Islâmico –, mas sem vinculação com o governo iraquiano.

À época das acusações, existia praticamente um consenso na sociedade e política


americanas de que os Estados Unidos deveriam invadir o Iraque – republicanos e
democratas apoiaram a guerra. Hoje, o quase consenso é o inverso: a intervenção
foi um desastre – assim como no Afeganistão, sob os aspectos tanto financeiro
quanto humanitário.

E a guerra também foi de informação. Enquanto a CNN descrevia as forças de


coalizão, a Al Jazeera dizia ser forças invasoras. A emissora do Catar fazia
questão de chamar a guerra no Iraque de guerra contra o Iraque. E a linha
editorial, digamos, antiamericana rendeu mais um bombardeio a um escritório do
veículo e dezenas de funcionários presos de forma arbitrária – 21 só no primeiro
ano do conflito.

Por outro lado, políticos ocidentais reconheceram a importância da Al Jazeera e


passaram a dar entrevistas à emissora, com o objetivo de antingir um público
local e, assim, tentar mudar a opinião pública. O ex-primeiro-ministro britânico
Tony Blair e Condoleezza Rice, conselheira de Segurança Nacional do ex-
presidente americano Bush, foram alguns dos nomes que apareceram em
programas.

Atualmente, o Iraque está longe de ser uma democracia, como prometeram os


Estados Unidos sem perguntar aos iraquianos, e segue enfrentando problemas –
a recente luta contra o Estado Islâmico talvez seja o maior deles nos últimos
tempos. Em outras palavras, resquícios do 11 de setembro deixaram feridas e
continuam presentes.

Menos de uma semana após os ataques, Bush visitou uma mesquita e disse que o
“islã é paz” e “a face do terror não é a verdadeira fé do islã”. Mesmo assim, boa
parte do mundo passou a associar a religião ao terrorismo. Será que isso faz
sentido? Tentarei responder no próximo capítulo.

36 evaldopalestra. Íntegra do Jornal Nacional 11/09/2001. YouTube. Disponível


em: <https://www.youtube.com/watch?v=hTdwZOLIXxE&t=1s>. Acesso em:
20 dez. 2020.

37 Daniele Ganser. Disponível em: <https://www.danieleganser.ch/>. Acesso


em: 21 dez. 2020.

38 CHACRA, Guga. A torre do WTC que desmoronou sem ser atingida por um
avião no 11 de Setembro. O Estado de S. Paulo, 06 set. 2011. Disponível em:
<https://internacional.estadao.com.br/blogs/gustavo-chacra/a-torre-do-wtc-que-
desmoronou-sem-ser-atingida-por-um-aviao-no-11-de-setembro/>. Acesso em:
21 dez. 2020.

39 SCHMITT, Paula. O 11 de setembro e a fé que move as versões oficiais, por


Paula Schmitt. Poder360, 17 set. 2020. Disponível em:
<https://www.poder360.com.br/opiniao/internacional/o-11-de-setembro-e-a-fe-
que-move-as-versoes-oficiais-por-paula-schmitt/>. Acesso em: 21 dez. 2020.

40 The 9/11 Comission Report. Disponível em: https://www.9-


11commission.gov/report/911Report.pdf. Acesso em: 21 dez. 2020.

41 Our story is telling. Al Jazeera Media Network. Disponível em:


<https://network.aljazeera.net/about-us/timeline>. Acesso em: 21 dez. 2020.

42 NYE, Joseph S. Soft Power. Foreign Policy, 1990.

43 EL-NAWAWY, Mohammed; ISKANDAR, Adel. Al-Jazeera: the story of the


network that is rattling governments and redefining modern journalism.
Cambridge: Westview Press, 2003.

44 Jihad. Oxford Islamic Studies Online. Disponível em: <


http://www.oxfordislamicstudies.com/article/opr/t125/e1199>. Acesso em: 23
dez. 2020.

45 WEISS, Michael; HASSAN, Hassan. Estado Islâmico: desvendando o


exército do terror. São Paulo: Seoman, 2015.

46 ALARCON, Danillo. Os meandros da política externa dos Estados Unidos


para o Afeganistão: o 11 de setembro e a Operação Liberdade Duradoura.
Brasília: UnB, 2012.

47 NORTH ATLANTIC TREATY ORGANIZATION. Tratado do Atlântico


Norte. Washington, D.C., 04 abr. 1949. Disponível em:
<https://www.nato.int/cps/su/natohq/official_texts_17120.htm?
selectedLocale=pt>. Acesso em: 25 dez. 2020.

48 CHADE, Jamil. Máquina de guerra. UOL, 08 jan. 2020. Disponível em:


<https://noticias.uol.com.br/reportagens-especiais/em-20-anos-guerras-custaram-
us-6-tri-aos-eua-quantia-poderia-eliminar-fome-ou-reverter-
aquecimento/#cover>. Acesso em: 25 dez. 2020.

49 CARTER, Shan; COX, Amanda. One 9/11 Tally: $3.3 Trillion. The New
York Times, 08 set. 2011. Disponível em:
<https://archive.nytimes.com/www.nytimes.com/interactive/2011/09/08/us/sept-
11-reckoning/cost-graphic.html>. Acesso em: 25 dez. 2020.
50 Conheça os números da Guerra do Afeganistão. O Globo, 28 jan. 2019.
Disponível em: <https://oglobo.globo.com/mundo/conheca-os-numeros-da-
guerra-do-afeganistao-23408187>. Acesso em 25 dez. 2020.

51 Conflito no Afeganistão: EUA e Taliban assinam acordo para encerrar guerra


de 18 anos. BBC News Brasil, 29 fev. 2020. Disponível em:
<https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51683929>. Acesso em: 25 dez.
2020.
Todos os árabes e muçulmanos são terroristas?

A pergunta que nos guiará ao longo deste capítulo poderia ser outra. “O que é
terrorismo?” seria uma excelente opção, por exemplo. Escolhi falar
especificamente sobre árabes e muçulmanos porque estes estão mais
relacionados ao Oriente Médio, mas, para início de conversa, precisamos definir
o que é terrorismo – ou pelo menos tentar.

Digo tentar porque não é uma tarefa tão simples assim. O conceito de terrorismo
é disputado, ou seja, não há um consenso internacional acerca das palavras que
deveriam ser empregadas para definir tal prática, apesar da existência de
inúmeros esforços, como convenções e resoluções de organismos internacionais,
para debater o tema.

Isso acontece porque terrorismo é uma definição política. Logo, cada país ou
organização tem o seu próprio conceito, conforme seus interesses políticos, sem
um consenso entre todas as partes. Dito isto, o que é terrorismo para os Estados
Unidos pode não ser para o Brasil. Cito um exemplo prático: o governo
americano classifica o Hezbollah, do Líbano, como um grupo terrorista. Já o
governo brasileiro, não.

Em 2019, o então presidente argentino Mauricio Macri também reconheceu o


Hezbollah como um grupo terrorista. Em 1994, a Associação Mutual Israelita
Argentina (Amia), em Buenos Aires, foi alvo de um atentado, do qual o
Hezbollah é um dos principais suspeitos. Portanto, para a Argentina, faz sentido
discutir o real caráter do grupo xiita libanês.

Para os Estados Unidos, de certa forma, também. Afinal, estamos falando da


maior potência mundial, com um enorme poder militar e interesses e aliados
estratégicos no Oriente Médio, como Israel – principal adversário do Hezbollah
–, além de inimigos, como o Irã – principal apoiador do Hezbollah. Aliás, uma
lista de todos os grupos terroristas reconhecidos pelo governo americano, com a
data de cada reconhecimento, bem como os critérios adotados e as
consequências que isso traz, está facilmente disponível no site do Departamento
de Estado dos EUA.⁵²

Assim, podemos concluir que, para americanos e argentinos, o debate sobre as


relações do Hezbollah com o terrorismo está de acordo com os interesses
políticos de seus respectivos governos. E para o Brasil? Na esteira do
reconhecimento de Macri, o presidente Jair Bolsonaro sinalizou que poderia
fazer o mesmo, em um ato de alinhamento aos governos da época nos Estados
Unidos, na Argentina e em Israel, mas o assunto é polêmico.

Mesmo havendo suspeitas de financiadores do Hezbollah em Foz do Iguaçu – na


tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai –, nunca fomos alvo de
qualquer ação direta do grupo libanês. Se o reconhecermos como terrorista,
poderíamos passar a ser – e não necessariamente em solo brasileiro, uma vez que
o Brasil tinha, até o final de 2020, soldados na Força Interina das Nações Unidas
no Líbano (Unifil, na sigla em inglês). E nunca é demais lembrar que o
Hezbollah é o grupo mais forte do país – mais até do que o próprio exército
libanês.

Além disso, o Brasil é tradicionalmente pacífico e não tem interesses específicos


no Oriente Médio a ponto de justificar o reconhecimento, alguns poderiam
argumentar para, em seguida, questionar: o governo brasileiro pode até
concordar que o Hezbollah seja terrorista, mas, na prática, isso traz mais
prejuízos ou benefícios?

Para deixar a situação mais complexa, o grupo libanês, que tem um braço
armado, também tem um braço político, e faz parte da coalizão que governa o
Líbano – é aliado do presidente, o cristão Michel Aoun. Na prática, estaríamos
dizendo que o governo libanês tem membros terroristas, o que poderia causar
tensões diplomáticas. E nunca é demais lembrar que não temos o mesmo poder
que os Estados Unidos para nos aventurarmos em questões que não nos dizem
respeito. (Vale mencionar a postura da União Europeia, que separa os dois
braços do Hezbollah, o armado e político, e classifica apenas o primeiro como
terrorista, apesar de, na prática, o grupo ser um só, com o mesmo líder)⁵³

O art. 4º da Constituição Federal⁵⁴ diz que o repúdio ao terrorismo está entre os


princípios pelos quais relações internacionais do Brasil devem ser regidas, mas
não traz uma definição clara do que seria terrorismo. Esse mesmo artigo também
lista como princípios a não intervenção, a defesa da paz e a solução pacífica dos
conflitos. E a interpretação desses princípios, claro, não é a mesma para todo
mundo.

Em resumo, a lição que fica disso tudo é a seguinte: se perguntarem se um grupo


é terrorista ou não, a resposta é depende – de quem responder.

Mas, então, se o Hezbollah, para alguns, não é terrorista, o que ele seria? É aqui
que entra a questão dos grupos insurgentes, cujo conceito, assim como no caso
do terrorismo, é contestado. Uso a definição de Paulo Henrique Faria Nunes,
professor de Direito Internacional da PUC Goiás: “Grupo armado e organizado
que se insurge contra a autoridade de um Estado soberano em função de
reivindicações de caráter político, sobretudo o clamor de uma população por
independência ou pelo acesso e/ou respeito a direitos fundamentais”. Insurgentes
também podem ser chamados de rebeldes, guerrilheiros, paramilitares e
revolucionários, entre outros termos.

O professor Paulo Henrique Faria Nunes também arrisca explicar o terrorismo.


Segundo ele, “o terrorismo é um instrumento destinado a desestabilizar uma
sociedade por meio do pânico, ou terror, generalizado” e “terroristas não são
meros vândalos com capacidade de destruição [porque] seus atentados são
levados a cabo em um contexto de luta política, ainda que nem sempre os fins
justifiquem os meios”.⁵⁵

Entendemos, então, que a motivação política é um elemento compartilhado tanto


pelo terrorismo quanto pela insurgência. A partir de agora é que as diferenças
entre eles começam a ficar mais claras. “O maior problema, o que realmente
torna o terror algo muito mais grave do que a insurgência e a beligerância”,
afirma o professor, “é o direcionamento da violência a pessoas que não se
envolvem de modo direto no conflito entre o poder constituído e os rebeldes”.
Em outras palavras, para o terrorismo, os civis também são alvos – e
frequentemente considerados cúmplices de governos por meio do voto.

Independentemente de conceitos, a classificação de um grupo como terrorista ou


insurgente continuará seguindo critérios políticos. Isso porque quem for
classificar poderá usar as diferentes definições disponíveis a seu favor,
encaixando-as em seus respectivos interesses.

Por exemplo, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) são


terroristas? Depende. O Irgun Tzvai Leumi, de Israel – cujo significado é
Organização Militar Nacional na Terra de Israel –, foi um grupo terrorista?
Também depende. Reparem que citei dois grupos que não são árabes nem
muçulmanos – há vários outros –, e dos quais voltaremos a falar em instantes.

Por ora, vamos concluir o tópico sobre insurgência, apresentando mais


diferenças em relação ao terrorismo – porque a questão dos civis não é a única –,
ainda de acordo com o professor Paulo Henrique Faria Nunes.

Sobre o terrorismo: “Organizações terroristas atuam usualmente por meio de


células descentralizadas; direcionam suas ações majoritariamente a alvos civis;
nem sempre conquistam ou buscam apoio da população das áreas onde atuam e
não visam abertamente ocupação territorial”.

E sobre a insurgência: “Grupos insurgentes, por sua vez, apresentam uma


estrutura complexa e hierarquizada; seu modus operandi pode incluir táticas de
guerrilha, assassinatos seletivos, sequestro e, eventualmente, o terrorismo; seus
alvos são majoritariamente militares, autoridades governamentais e
infraestrutura; buscam apoio da população; e lutam para assegurar controle
territorial”.

Ou seja, grupos insurgentes também podem ser terroristas – e essa é uma das
razões pelas quais muitas vezes é difícil distinguir um tipo de grupo do outro.
Peço, por fim, que fiquem atentos à questão sobre controle terroritorial, pois será
muito improtante no sétimo capítulo, quando o assunto for o Estado Islâmico.

Agora, o assunto continua sendo o terrorismo e suas classificações. Desta vez,


com base nos estudos do cientista político americano David C. Rapoport,⁵ um
dos principais especialistas sobre o tema. Ele divide o terrorismo em quatro
ondas, que resumirei a seguir.

Rapoport, inclusive, considera como terroristas organizações eventualmente


classificadas como insurgentes – eu disse que não há consenso, não disse? Mas,
para esta análise, o mais relevante da divisão é entender como o terrorismo
evoluiu ao longo da história até chegarmos aos dias de hoje.

A primeira onda é conhecida como anarquista, e vai de 1880 aos anos 1920.
Responsável por desenvolver as estratégias básicas do terrorismo, como
assassinatos e assaltos a bancos, esteve concentrada na Europa e surgiu a partir
de fracassos de reformas políticas. O grupo anarquista russo Narodnaya Volya é
um exemplo desta onda.

Em seguida, vem a onda anticolonial, dos anos 1920 aos 1960. Com militares
como alvo, os grupos deste período tinham como alvo o imperialismo europeu.
Um exemplo é o já citado Irgun, adepto ao nacionalismo judaico. Com a criação
do Estado de Israel, em 1948, a maioria de seus membros abandonou as armas e
alguns estiveram na origem do que hoje é o Likud, o partido de Benjamin
Netanyahu, primeiro-ministro de Israel desde 2009 – com uma passagem mais
rápida pelo mesmo cargo no final dos anos 1990.

A terceira onda é a marxista, também chamada de nova esquerda, entre os anos


1960 e 1980. As organizações desta época realizavam sequestros e assassinatos,
como foco em membros de governos, e se inspiraram no sucesso dos
vietcongues, no Vietnã. Destaca-se, deste período, o fato de haver uma crescente
cooperação internacional por meio de financiamentos e treinamentos. As Farc,
também já mencionadas, se incluem nesta onda.

Ainda em relação à nova esquerda, vale citar um caso europeu: o Exército


Republicano Irlandês (Ira) – presente em mais de uma das quatro ondas –, que
lutou contra o Reino Unido na República da Irlanda, já com elementos religiosos
em mente. Assim como ocorreu com o Irgun, integrantes do Ira deixaram as
armas de lado e entraram para a política. Morto em 2017, Martin McGuinness
chegou a ser vice-primeiro-ministro da Irlanda do Norte. Durante participação
em um programa da Al Jazeera,⁵⁷ ele negou veementemente que, no passado,
tenha sido um terrorista – um termo mais apropriado, segundo muitos que negam
o rótulo do terrorismo, seria freedom fighter (lutador pela liberdade, em tradução
livre), algo muito próximo justamente da noção de insurgente.

Por fim, a última parte da divisão diz respeito à onda reliogosa, com início no
final dos anos 1970 – como vimos, a invasão soviética do Afeganistão, que deu
origem aos mujahidins e à Al Qaeda, foi em 1979 –, presente até a atualidade.
Apesar de o número de mortes aumentar – e os suicídios a bomba passarem a
fazer parte das estratégias dos atentados –, diminuiu a quantidade de grupos, em
comparação com as ondas anteriores, de acordo com Rapoport.

A onda religiosa tem o islã como centro das atenções, mas não de forma
exclusiva. Fundando em 1987, o Exército de Resistência do Senhor é um grupo
cristão, de Uganda, na África, e poderia perfeitamente ser incluído nesta divisão,
mesmo que tenha características de insurgência.

Então quer dizer que o islã nasceu no século 7 e o uso desta religião por parte de
alguns para justificar ataques terroristas tem menos de 50 anos? Na verdade, as
raízes deste movimento são de um pouco antes, mas, ainda assim, relativamente
recentes para a história.

No capítulo dedicado especificamente ao islã, citei o wahhabismo, uma vertente


do sunismo, como a ideologia mais extremista desta religião. Abdurrahman
Wahid, ex-presidente da Indonésia, o país com a maior quantidade de
muçulmanos do mundo, chegou a chamar esta corrente, praticada por uma
minoria, de “islã errado”.⁵⁸

Mas como surgiu o wahhabismo? Ainda durante o Império Otomano, o líder


religioso Mohamed ibn al-Wahhab’Abd fez uma aliança com o militar Mohamed
ibn Saud, criando, em 1744, o Emirado de Diriyah. Como veremos no nono
capítulo, esta aliança foi essencial para a disseminação do wahhabismo (de
“Wahhab”) e criação da Arábia Saudita (de “Saud”) quase dois séculos mais
tarde.

Em resumo, o wahhabismo lutava contra um “islã liberal” dos otomanos,


defendendo a volta a um “estado puro”, ou “islã sem aduterações”, dos tempos
de Maomé.⁵ Vez ou outra, o wahhabismo, do qual voltaremos a falar para
explicar o Estado Islâmico, também é chamado de salafismo.

Fazemos, então, um pulo na história e chegamos ao ano de 1928, quando Hassan


al-Banna, que bebeu na fonte wahhabita/salafista, fundou a Irmandade
Muçulmana no Egito – o começo do que se chama de islã político. Al-Banna
teve contato desde cedo com ensinamentos religiosos. Porém, vivia em uma
sociedade mais secularizada e influenciada pela atuação laica de Mustafa Kemal
Atatürk na Turquia. Ele queria, portanto, islamizar o Egito, mas sua influência
não ficou só na religião.

Mais do que um movimento religioso, a Irmandade Muçulmana, que surgiu no


contexto da ocupação britânica do Egito, é um movimento político, social,
econômico, científico e cultural, segundo seu próprio fundador. A Irmandade
Muçulmana é, enfim, tudo – o que rapidamente atraiu o apoio das camadas mais
pobres do país. Em 1945, tornou-se violenta e realizou assassinatos políticos
contra a monarquia egípcia. Três anos depois, foi colocada na clandestinadade e,
em 1949, al-Banna foi morto por agentes secretos.

A Irmandade Muçulmana voltou a operar normalmente como um partido


político, após uma aliança pragmática com os militares – ambos ajudaram a
derrubar a monarquia. Mas as diferenças entre eles logo ficaram claras,
especialmente sob o comando do coronel Gamal Abdel Nasser, o líder egípcio de
pensamento nacionalista e laico que a Irmandade Muçulmana tentou assassinar
depois de ter voltado à clandestinidade.

Contudo, o movimento fundado por al-Banna continuava forte, preenchendo o


vácuo deixado pelo Estado egípcio em diversos setores do país, como saúde e
educação. E a Irmandade Muçulmana começa um novo capítulo de sua história
com o surgimento de Sayyid Qutb, que ainda hoje influencia terroristas, muitas
vezes mais reconhecido como o rosto do grupo do que seu próprio fundador.

Também nascido no Egito, Qutb foi morar nos Estados Unidos a partir de 1948,
a serviço do Ministério da Educação de seu país, com a missão de conhecer o
sistema de educação americano. Foram dois anos e meio vivendo em diferentes
lugares, como Nova Iorque, Califórnia e Colorado.

Qutb não gostou nada do que viu nos Estados Unidos, principalmente do estilo
de vida americano, ou american way of life, que considerava uma decadência,
com foco mais no material do que no espiritual. Ele foi para os EUA como um
muçulmano conservador, e voltou de lá como um radical. Aderiu à Irmandade
Muçulmana, tornando-se seu principal ideólogo, e ficou preso por mais de dez
anos por ter participado da tentativa de assassinato de Nasser.

O tempo na cadeia serviu para Qutb terminar de produzir uma dezena de livros.
Mas o que está escrito em sua obra, de 30 volumes, chamada À Sombra do
Alcorão? Em linhas gerais, um ódio ao Ocidente. A ideia era que todo o mundo
fosse convertido à sua interpretação do islã. Quem se opusesse, deveria ser
combatido.

E quem leu a obra de Sayyd Qutb? Osama bin Laden. Ele, inclusive, chegou a
ter aulas com Mohamed Qutb, irmão do principal ideólogo da Irmandade
Muçulmana. Mohamed foi para a Arábia Saudita, país natal de Bin Laden, nos
anos 1950, junto com outros membros do grupo, que fugiram da perseguição de
Nasser no Egito e encontraram refúgio com os wahhabitas/salafistas.
Mentor de Bin Laden, Abdullah Azzam também se inspirou em Qutb para
desenvolver o conceito de jihad. E o egípcio Ayman al-Zawahiri liderou a Al
Jihad, ou Jihad Islâmica Egípcia, uma ramificação da Irmandade Muçulmana
que mais tarde se fundiu com a Al Qaeda. Desde a morte de Bin Laden, o líder
da Al Qaeda, como vimos no capítulo anterior, é justamente al-Zawahiri. (A
título de curiosidade, deixo registrado que um dos 52 irmãos de Bin Laden mora
no interior da Bahia) ¹

Peço para que voltem alguns parágrafos e releiam a parte que trata do que está
escrito na obra de Qutb. Quando digo “a ideia era que todo o mundo fosse
convertido à sua interpretação do islã”, incluo muçulmanos que seguem outras
correntes. Por exemplo, Qutb não considerava os iranianos, majoritariamente
xiitas, como verdadeiros muçulmanos.

O que descrevi nos parágrafos anteriores diz respeito à radicalização dentro do


sunismo. Considero a mais relevante por ter influenciado os principais grupos
terroristas dos últimos anos. Mas há também uma radicalização dentro do xiismo
– o Hezbollah, que muitos consideram terrorista, é xiita –, o que tem tudo a ver
com o Irã e a revolução que lá aconteceu em 1979. E aqui vai mais um pedido:
aguentem firme até o nono capítulo, quando falaremos especificamente sobre a
disputa entre Arábia Saudita e Irã.

Neste momento, o que também considero importante é entender que a


interpretação do islã por parte de Qutb é minoritária no mundo muçulmano. Até
mesmo críticos do islã reconhecem isso. Nascida na Somália, Ayaan Hirsi Ali,
que abandonou a religião após uma terrível experiência pessoal e defende uma
reforma islâmica, cita uma estimativa de 3% de radicais entre toda a população
muçulmana, o que representaria mais de 50 milhões de pessoas – um número
longe de ser pequeno. Ela diz acreditar que esta porcentagem seja
“significativamente maior”, mas afirma que os não violentos são “sem dúvida a
maioria em todo o mundo muçulmano”. ²

Logo, para responder a pergunta deste capítulo de forma clara, é um equívoco


dizer que todos os muçulmanos são terroristas. A esmagadora maioria não é, e
inclusive condena os radicais, mas a minoria é barulhenta, e suas ações
naturalmente chamam muito mais atenção. Em 2016, o muçulmano de origem
paquistanesa Sadiq Khan, completamente ciente da separação entre religião e
Estado, foi eleito prefeito de Londres, uma das principais metrópoles ocidentais.
Obviamente, ele teve mais votos de não muçulmanos do que de muçulmanos. No
mesmo ano, contudo, os atentados em Bruxelas, na Bélgica, e Nice, na França,
ganharam mais destaque, infelizmente.

Quanto aos árabes, que também incluí na pergunta – porque, a essa altura, já
podemos distinguir claramente a diferença entre religião e etnia –, não há
justificativa alguma que nos permita apontá-los como sendo todos terroristas. O
problema da radicalização no Oriente Médio, que existe e precisa ser
devidamente enfrentado, está mais associado a questões religiosas do que
étnicas. Os afegãos, etnicamente de maioria pashtun, que fizeram parte da Al
Qaeda na luta contra a invasão soviética, não são árabes, apesar de ter havido
muitos árabes, oriundos de outros países da região, neste grupo terrorista.

O leitor e a leitora, então, poderiam se perguntar: “Ok, entendemos que não há


uma ligação clara entre etnia e terrorismo e que nem todos os muçulmanos são
terroristas, mas poderíamos afirmar que todos os terroristas são muçulmanos?”

Não, seria outro equívoco. De novo, é preciso deixar clara a dificuldade para se
definir terrorismo. Se levarmos em conta a classificação dos Estados Unidos, as
Farc, da Colômbia, são um grupo terrorista. E a comunidade muçulmana
colombiana, em torno de somente 10 mil praticantes, ³ é absolutamente
inexpressiva. Também citei o caso do Exército de Resistência do Senhor, de
Uganda, um grupo cristão frequentemente considerado terrorista.

E há inúmeros outros exemplos, na história e na atualidade, de grupos ou


indivíduos que agem como lobos solitários, que não têm nada a ver com o islã, e
podem se encaixar em uma ou outra classificação de terrorismo, como o
supremacista branco australiano que matou dezenas de muçulmanos em
Christchurch, na Nova Zelândia, em março de 2019. A questão é que, como
mostra a divisão de Rapoport, estamos vivendo a onda do terrorismo religioso,
com o islã como principal ator e, por isso, em maior evidência, ainda mais em
um mundo cada vez mais globalizado e com mais informação circulando.

Ao longo dos anos, a Irmandade Muçulmana deu origem a ramificações mais


radicais não só no Egito, mas também em outros países do Oriente Médio. O
Hamas, que, atualmente, controla a Faixa de Gaza, é um exemplo disso. Mas o
grupo também se espalhou pela região por meio de partidos políticos
convencionais, de viés conservador, como a Frente de Ação Islâmica, tolerada na
Jordânia até 2020, quando a Justiça do país alegou irregularidades jurídicas e
fechou esta que era uma das principais vozes de oposição ao governo local.

No Egito, a Irmandade Muçulmana, como partido político, chegou ao poder


democraticamente, em 2012, após os protestos da Primavera Árabe, que
culminaram na queda de Hosni Mubarak e em eleições livres. No entanto, sofreu
um golpe de Estado e, hoje, é perseguida pelo governo de Abdel Fattah al-Sisi. A
constante repressão a opositores e a Primavera Árabe deixaram em evidência
mais uma questão para o debete recente no Oriente Médio: o da democracia.

52 US DEPARTMENT OF STATE. Foreign Terrorist Organizations. Disponível


em: < https://www.state.gov/foreign-terrorist-organizations/ >. Acesso em: 26
dez. 2020.

53 REUTERS STAFF. Factbox: Heavily-armed Hezbollah is Lebanon’s most


powerful group. Reuters, 17 ago. 2020. Disponível em:
<https://www.reuters.com/article/us-lebanon-tribunal-hariri-hezbollah-fac-
idUSKCN25D1N3>. Acesso em: 26 dez. 2020.

54 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em:
26 dez. 2020.

55 NUNES, Paulo Henrique Faria. Direito internacional público: introdução


crítica. Curitiba: Juruá, 2015.

56 RAPOPORT, David C. The Four Waves of Modern Terrorism. Washington,


D.C.: Georgetown University Press, 2004.

57 AL JAZEERA ENGLISH. Terrorists or Freedom fighters? | Head to Head.


YouTube, 16 mai. 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?
v=PldJpINaTS0&t=298s>. Acesso em: 28 dez. 2020.

58 WAHID, Abdurrahman. Right Islam vs. Wrong Islam: Muslims and Non-
Muslims Must Unite to Defeat the Wahhabi Ideology. IN: PERRY, Marvin;
NEGRIN, Howard E. The Theory and Practice of Islamic Terrorism. New York:
Palgrave Macmillan, 2008.
59 MENDE, Claudia; GÄNSLER, Katrin. De seita local a movimento global – o
Wahhabismo da Arábia Saudita. Deutsche Welle, 08 de fev. 2014. Disponível
em: <http://www.dw.com/pt-002/de-seita-local-a-movimento-global-o-
wahhabismo-da-ar%C3%A1bia-saudita/a-17411655>. Acesso em: 30 dez. 2020.

60 LIMA, José Antonio Geraldes Graziani Vieira de. Irmandade Muçulmana: da


fundação à derrubada de Mubarak. Fortaleza: Tensões Mundiais, 2018.

61 RIBEIRO, Luiz. Família Bin Laden toca a vida no Brasil. Correio


Braziliense, 29 ago. 2010. Disponível em:
<https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2010/08/29/internas_economia,
de-bin-laden-toca-a-vida-no-brasil.shtml>. Acesso em: 30 dez. 2020.

62 HIRSI ALI, Ayaan. Herege: Por que o islã precisa de uma reforma imediata.
São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

63 El Islam en Colombia. Universidad del Rosario. Disponível em:


<https://www.urosario.edu.co/Universidad-Ciencia-Desarrollo/ur/Fasciculos-
Anteriores/Tomo-III-2008/Fasciculo-8/ur/El-Islam-en-Colombia/>. Acesso em:
31 dez. 2020.
A Primavera Árabe deu certo?

O célebre poeta chileno Pablo Neruda certa vez disse: “Poderão cortar todas as
flores, mas não poderão deter a primavera”. Na política, analistas chamam de
primavera movimentos de grande transformação na sociedade – uma alusão ao
fato de que a primavera vem depois do inverno e marca o começo de um novo
ciclo, uma renovação. Foi assim, por exemplo, com a Primavera de Praga, em
1968, no auge da Guerra Fria, quando Alexander Dubček chegou ao poder na
então Tchecoslováquia, de influência soviética, e buscou implementar reformas
com o objetivo de garantir mais liberdades individuais. ⁴

Em 17 de dezembro de 2010, o comerciante tunisiano Mohamed Bouazizi, de 26


anos, plantou uma flor no deserto do Oriente Médio. Pouco antes do meio-dia,
autoridades de Sidi Bouzid, uma cidade de aproximadamente 50 mil habitantes,
localizada no centro da Tunísia, confiscaram o carrinho de frutas e vegetais de
Bouazizi sob a alegação de que ele não tinha autorização para comercializar seus
produtos.

Inconformado, Bouazizi foi até a polícia, mas não conseguiu retomar seu
carrinho. Pediu para conversar com autoridades superiores, também sem
sucesso. Por volta das 13 horas, em um ato de desespero, ateou fogo em seu
próprio corpo, e morreu no final daquela tarde. Ele não imaginava o que
ocorreria nos próximos dias a partir de sua decisão extrema: a flor que Bouazizi
plantou dava início à Primavera Árabe.

Há controversas em relação à real motivação de Bouazizi para se autoimolar.


Sem perspectivas de trabalho e sobrevivência com o confisco do carrinho? As
autoridades teriam pedido propina e ele se indignou com a corrupção? Um tapa
que uma das autoridades, uma mulher, teria dado em seu rosto e, assim, ferido
sua honra? Ou um pouco de tudo isso junto?

Quanto ao tapa, a mulher em questão, Fedia Hamdi, à época com 46 anos, nega
o fato. Mas ela chegou a ficar presa por 111 dias, até que um tribunal a declarou
inocente – apenas uma testemunha alegou ter visto o tapa, enquanto outras
quatros afirmaram que não houve qualquer tipo de contato físico. ⁵ Hamdi disse
ter se sentido como um bode expiatório de Zine El Abidine Ben Ali, que
assumiu o poder na Tunísia em 1987 e, segundo ela, buscava um culpado para o
que ocorreu em Sidi Bouzid.

Menos de um mês depois, já em janeiro de 2011, Ben Ali não resistiu aos
protestos, que se seguiram à morte de Mohamed Bouazizi, e foi obrigado a
deixar o país – fugiu para a Arábia Saudita. Para a população, ele era o culpado
não só pelo ato de desespero de Bouazizi, mas por todos os problemas que a
Tunísia enfrentava. E a insatisfação popular contra autoritários no poder se
espalhou por diversos países do Oriente Médio, principalmente Egito, Líbia,
Iêmen e Síria, mas em menor escala em muitos outros.

Essa insatisfação popular não veio do nada. De acordo com Moisés Naím,
economista e escritor venezuelano – mas que nasceu na Líbia –, “não é por acaso
que a Primavera Árabe começou na Tunísia, o país do norte da África com o
melhor desempenho econômico e o mais bem-sucedido em fazer seus pobres
ascender para a classe média”.

Para ele, o crescimento da expectativa de vida na região a partir dos anos 1980
contribuiu para motivar os protestos. Naím chama de “bolsão de juventude” o
grupo “composto por milhares de pessoas com menos de trinta anos, instruídas e
saudáveis, com uma longa vida pela frente, mas que não dispõem de emprego
nem de boas perspectivas”. Na sua avalição, este bolsão “é uma fonte importante
de instabilidade política, do mesmo modo que o crescimento de uma classe
média que é, por natureza, mais politicamente inquieta”.

Assim como ocorreu no 11 de setembro, a Primavera Árabe foi decisiva para a


Al Jazeera e, consequentemente, o Catar. Em 2012, a Royal Television Society,
do Reino Unido, chegou a premiar a emissora como o “canal de notícias do ano”
– um reconhecimento internacional, mas, como veremos, a cobertura não pegou
tão bem entre alguns governos do Oriente Médio.

De fato, a cobertura da Al Jazeera foi incisiva, com um viés pró-manifestantes, o


que naturalmente desagradou diversos governos e resultou em novas
perseguições. No Egito, o principal local de concentração dos protestos foi a
Praça Tahrir, no centro do Cairo. Lá, foi instalado um telão sintonizado 24 horas
na Al Jazeera. O governo egípcio, contudo, bloqueou o satélite de transmissão,
cancelou a licença da emissora e prendeu vários de seus jornalistas.

Na Síria, na Líbia e no Iêmen, os ataques se repetiram: perseguições, credenciais


canceladas e jornalistas presos ou mortos. O Oriente Médio, a propósito, é a
região mais difícil e perigosa para jornalistas trabalharem, de acordo com um
levantamento ⁷ da organização não governamental Repórteres Sem Fronteiras,
que mede a liberdade de imprensa pelo mundo.

Um estudo ⁸ de Maximilian Felsch, professor do departamento de Ciência


Política da Haigazian University, no Líbano, aponta que os ataques sofridos pela
Al Jazeera não foram os únicos pontos negativos em relação à sua atuação na
Primavera Árabe. O primeiro ponto diz respeito a um fenômeno maior da
comunicação nos últimos tempos: o crescimento das redes sociais, que tiraram
influência dos veículos de imprensa tradicionais. Na Primavera Árabe, inclusive,
o Facebook e o Twitter foram fundamentais para a organização de protestos. A
audiência da Al Jazeera cresceu – e isso foi positivo –, mas teria sido muito
maior sem redes sociais.

O outro ponto trata mais da cobertura jornalística em si. Como vimos, a Al


Jazeera tomou lado – o da política externa do Catar. Mas esse lado, na maioria
dos casos, não saiu vitorioso. Na Síria, Bashar al-Assad continua no governo e a
guerra ainda não acabou. A Líbia derrubou Muamar Kadafi, mas está
mergulhada em um conflito provavelmente até mais complexo do que o sírio. O
Iêmen passa por situação semelhante. E o Egito, que teve eleições democráticas
– o presidente eleito, Mohamed Morsi, ligado à Irmandade Muçulmana, foi
apoiado pelo Catar –, sofreu um golpe de Estado e segue comandado por um
governo autoritário. (As questões específicas de cada um desses países serão
discutidas em instantes)

Ainda segundo Maximilian Felsch, a Al Jazeera pode promover o isolamento do


Catar ao reproduzir as críticas do país a outros governos da região. E isso teria
consequências para seu soft power, que depende muito de credibilidade? É
possível que sim.

Outro estudo – de Paul Michael Brannagan, da Manchester Metropolitan


University, e Richard Giulianotti, da Loughborough University, que analisam
justamente o caso do Catar – desenvolveu o termo soft disempowerment para
explicar quando o soft power, recentemente tão popular como recurso de política
externa, traz consequências negativas: “Quando houver uma tentativa de
acumular soft power”, afirmam os estudiosos, “sempre haverá a possibilidade de
soft disempowerment”, que se refere “àquelas ocasiões em que você pode
incomodar, ofender ou alienar outras pessoas, levando a uma perda de
atratividade ou influência”.

Voltaremos à questão da relação entre Al Jazeera e isolamento regional no


capítulo que trata de Arábia Saudita e Irã – o Catar está localizado exatamente
entre ambos. Feito o parêntese sobre a emissora mais importante do Oriente
Médio, seguiremos falando sobre a Primavera Árabe, desta vez abordando a
questão da democracia de uma forma mais específica.

Já li e ouvi mais de uma vez que Israel é a única democracia do Oriente Médio.
Na verdade, Israel pode ser considerado o país mais democrático da região,
apesar de, claro, também ter seus problemas – como qualquer outra democracia.
Porém, não é a única. Costuma-se pensar no Oriente Médio como um apanhado
de ditaduras. São muitas, de fato. Mas o Líbano, por exemplo, não tem ditador. E
há regimes híbridos, como o Kuwait, que tem eleições pelo menos para o
Legislativo. Assim como em praticamente qualquer outro assunto relacionado ao
Oriente Médio, não dá para generalizar – espero que, a essa altura, isso já esteja
claro.

Antes de mais nada, gostaria de deixar claro que sou contra a ideia de que a
democracia, cujas noções foram criadas no Ocidente, deveria ser levada ao
Oriente Médio e aceita por todos os países por supostamente ser a melhor
alternativa para eles. Como brasileiro, sempre defenderei as instituições
democráticas em meu país, mesmo que o Brasil não seja considerado um país
ocidental por todos. Como um interessado pelo Oriente Médio, me contento a
estudar as escolhas tomadas pelos povos que lá vivem.

Trago a seguir as posições dos países da região no Índice de Democracia, de


2020, elaborado pela The Economist Intelligence Unit, um braço da revista
britânica The Economist, que leva em consideração elementos como
funcionamento do governo, processo eleitoral, liberdades civis e participação
política. Para efeito de compração, trago também as posições de 2011, ápice dos
protestos da Primavera Árabe.
Os dois últimos parágrafos podem parecer contraditórios. Afinal, critico a ideia
de suposta superioridade do mais democrático Ocidente e, ao mesmo tempo,
trago dados de uma instituição ocidental, que estuda países de diferentes regiões.
Reconheço a contradição, mas é a melhor alternativa que tenho para fazer este
tipo de análise – e faço questão de deixar clara esta ressalva.

País Posição (2020) Posição (2011) Variação


Israel 28 36 +8
Tunísia 54 92 +38
Marrocos 96 119 +23
Turquia 104 88 -16
Paquistão 105 105 0
Líbano 108 94 -14
Mauritânia 112 109 -3
Palestina 113 99 -14
Kuwait 114 122 +8
Argélia 115 130 +15
Jordânia 118 118 0
Iraque 119 112 -7
Catar 126 138 +12
Omã 136 134 -2
Egito 138 115 -23
Afeganistão 139 152 +13
Djibouti 144 147 +3
Emirados Árabes Unidos 145 149 +4
Sudão 149 153 +4
Bahrein 150 144 -6
Irã 152 159 +7
Arábia Saudita 156 161 +5
Iêmen 157 150 -7
Líbia 158 125 -33
Síria 164 157 -7
Democracia nos países do Oriente Médio

Fonte: Índice de Democracia (The Economist Intelligence Unit)⁷

Dos principais países envolvidos na Primavera Árabe, Síria e Iêmen caíram sete
posições cada. Já Egito e Líbia ficaram 23 e 33 lugares abaixo, respectivamente.
O único caso considerado de sucesso foi justamente onde tudo começou, a
Tunísia, que subiu 38 posições. Houve eleições livres, mas, atualmente, o país
enfrenta graves problemas, como economia em queda e desemprego em alta, e
está “à beira de uma explosão social”.⁷¹ Se olharmos o copo meio cheio,
poderíamos dizer que, com mais democracia, fica mais difícil mascarar certas
estatísticas.

A propósito, o Brasil, no ranking de 2020, está na 49ª posição, apenas cinco à


frente da Tunísia – em 2011, estávamos na 45ª e, portanto, caímos quatro. Em
outras palavras, somos tão democráticos quanto um país do Oriente Médio que,
uma década atrás, era uma ditadura.

Não é o foco deste livro, mas imagino que alguns leitores e leitoras possam ter
tido curiosidade para saber quais países são os mais e menos democráticos. Os
cinco primeiros: Noruega, Islândia, Suécia, Nova Zelândia e Canadá. E os cinco
últimos: Coreia do Norte, República Democrática do Congo, República Centro-
Africana, Síria e Chade. Os Estados Unidos, na 25ª posição, são considerados
uma democracia imperfeita.

Este Índice de Democracia classfica os países em quatro categorias: democracia


plena (da 1ª à 23ª posição), democracia imperfeita (da 24ª à 75ª), regime híbrido
(da 76ª à 110ª) e, por fim, regime autoritário (da 111ª à 167ª). No Oriente Médio,
nenhum país é uma democracia plena – nem mesmo Israel. Dois são
considerados democracias imperfeitas. Quatro, regimes híbridos. E o restante –
19 –, regimes autoritários. Não há dados disponíveis sobre Somália e Saara
Ocidental, que, na prática, está sob controle do Marrocos.

É interessante observar a Turquia, que não é árabe, mas, em 2011, era


considerada, para diversos manifestantes em países árabes, um exemplo, na
própria região, de país a ser seguido. De lá para cá, no entanto, o governo turco
deu uma guinada autoritária – e religiosa –, como mostra a variação negativa no
ranking. Só caiu menos posições que Líbia e Egito.

O que, afinal, aconteceu nesses países? Comecemos pelo Egito, até então
governado por Hosni Mubarak desde 1981. Os protestos que tomaram conta da
Tunísia e derrubaram Ben Ali se espalharam pela região e animaram egípcios
insatisfeitos com o governo.

A partir de janeiro de 2011, os manifestantes, reunidos na Praça Tahrir – que,


literalmente, significa “libertação” –, demandavam a queda imediata do regime.
Mubarak ameaçou fazer concessões e não dava sinais de que deixaria o poder.
Mas, em 11 de fevereiro, após 18 dias de protestos, não aguentou a pressão e
renunciou.

O poder foi transferido para um conselho de militares, que, meses depois,


convocou eleições presidenciais. Em junho de 2012, Mohamed Morsi foi o
primeiro presidente eleito democraticamente na história do Egito.

Durante os 30 anos de Mubarak no poder, a Irmandade Muçulmana foi o único


grupo tido de oposição viável ao governo. Com seu trabalho social de base, era
também o grupo mais bem-estruturado quando as eleições foram organizadas.
Portanto, a vitória Morsi, pertencente a um partido ligado à Irmandade
Muçulmana, não foi uma surpresa.

A democracia egípcia, contudo, não chegou a completar um ano. Em meados de


2013, as Forças Armadas deram um golpe de Estado para tirar Morsi do poder.
Ele foi acusado de incitar a violência no país, colaborar com governos
estrangeiros e prejudicar a segurança nacional, entre outras denúncias. Morsi
negou e disse que era um perseguido político, mas foi preso e, com o novo
governo, a Irmandade Muçulmana voltou a ser proibida no Egito.

O movimento das Forças Armadas que derrubou o primeiro presidente


democraticamente eleito no país foi liderado por Abdel Fattah al-Sisi, justamente
o ministro da Defesa durante o governo Morsi. Sisi tomou posse oficialmente em
junho de 2014. Entre o golpe e a posse, o Egito foi comandado pelo jurista Adly
Mansour, indicado pelos militares.
Em 2018, Sisi foi reeleito com 97,08% dos votos, em uma eleição mais do que
contestada. O segundo colocado? O jogador de futebol Mohamed Salah, atacante
do Liverpool e da seleção egípcia. Calma, eu explico: inconformados com a falta
de lisura no processo eleitoral, mais de um milhão de eleitores riscaram o nome
de Sisi e Moussa Mostafa Moussa – um fantoche e único candidato permitido a
“disputar” – e escreveram o nome de Salah. Os votos no astro do futebol,
declarados inválidos, foram maiores que os de Moussa.⁷²

Isso só ajuda a ilustrar os rumos que o Egito tomou com Sisi, com falta de
transparência, diminuição das liberdades e perseguição a opositores. A
Primavera Árabe, que anunciava ventos democráticos, falhou no país. Em 2017,
estive no Egito por quase dois meses e pude ver de perto a frustração que tomou
conta de muitas pessoas, especialmente da juventude.

Claro que meu relato não tem qualquer valor científico, mas confesso que fiquei
surpreso. Perguntei para praticamente todo egípcio e egípcia que conhecia,
geralmente jovens – que ajudaram a lotar a Praça Tahrir nas manifestações de
2011 –, se eles preferiam Sisi, Morsi ou Mubarak. A esmagadora maioria
respondeu Mubarak, contra quem tanto protestaram para tirar do poder anos
antes.

Em locais turísticos, como Dahab, Luxor e Aswan, repeti a pergunta – em uma


ocasião, dada a minha insistência, um rapaz pensou que eu era espião do
governo. E resposta também foi a mesma. A justificativa? Com Mubarak,
segundo eles, o país era mais estável, a economia estava melhor e havia mais
turistas. O regime era autoritário, é verdade. Mas, comparado com os dias de
hoje, o Egito está menos democrático, como vimos anteriormente.

A Líbia é outro país que derrubou um ditador durante a Primavera Árabe e,


atualmente, está em uma situação ainda pior do ponto de vista democrático.
Aliás, Líbia e Egito já formaram, ao lado da Síria, um mesmo país, pelo menos
na teoria: a Federação das Repúblicas Árabes, entre 1972 e 1977, um projeto
liderado pelo líbio Muamar Kadafi, que se inspirou no nacionalismo árabe do
egípcio Gamal Abdel Nasser.

Kadafi chegou ao poder na Líbia por meio de um golpe, em 1969, que derrubou
a monarquia no país. À época, tinha apenas 27 anos. Durante seus mais de 40
anos de governo, obteve conquistas importantes em relação ao Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH), o maior de toda a África. E ele quis se
apresentar não só como um líder árabe, mas também de todo o continente
africano – uma mescla entre pan-arabismo e pan-africanismo. Além disso, nutria
um forte sentimento antiocidental.

Em 2011, oposicionistas líbios, estimulados pelos protestos da Primavera Árabe,


que já tinham derrubado ditadores na Tunísia e no Egito, também começaram a
protestar contra Kadafi. Mas, na Líbia, a queda do regime demorou mais do que
em seus vizinhos. Foram oito meses desde o início das manifestações, em
fevereiro, até a morte do líder líbio, em outubro.

Diferentemente de Ben Ali, na Tunísia, e Mubarak, no Egito, que conseguiram


fugir, Kadafi foi encurralado nas tubulações de esgoto de Sirte e linchado por
oposicionistas. Posteriormente, seu corpo ficou exposto à visitação em uma
câmara fria por alguns dias.

Com a queda do regime, a Líbia até mudou de bandeira, retomando a utilizada


durante a monarquia, com listras vermelha, preta e verde e, ao centro, uma lua
crescente e uma estrela, símbolos do islã. Com Kadafi, a bandeira líbia era
inteira verde, sem nenhum outro detalhe. Verde também remete ao islã, sendo a
principal cor desta religião. E verde também é o nome de um livro escrito por
Kadafi, chamado exatamente Livro Verde – possivelmente uma inspiração no
Livro Vermelho, de Mao Tsé-Tung –, em que ele expõe seus principais
pensamentos políticos.

No caso da Líbia, a luta de oposicionistas locais contra o regime contou com


uma forte participação estrangeira. A França, de Nicolas Sarkozy, e os Estados
Unidos, de Barack Obama – com Hillary Clinton na secretaria de Estado –,
foram as potências mais interessadas na queda de Kadafi. A intervenção,
oficialmente, teve início no final de março, mas não sob a liderança de um ou
outro país em específico, e sim da Otan, a aliança militar ocidental criada
durante a Guerra Fria para conter a expansção soviética.

Em uma coversa telefônica⁷³ com Tony Blair, ex-primeiro-ministro britânico –


revelada no contexto de uma investigação sobre a intervenção ocidental –,
Kadafi disse que, se ele saísse do poder, jihadistas controlariam o Mar
Mediterrâneo e, assim, poderiam atacar a Europa – Líbia e Itália são
geograficamente próximas. O líder líbio costumava rotular oposicionistas
armados como membros da Al Qaeda, que, de fato, apoiou a sua queda.

Era uma clara tentativa de deslegitimar a oposição, mas, em parte, Kadafi tinha
razão, já que, com o vácuo de poder, grupos extremistas realmente ganharam
espaço na Líbia. E traficantes, sem a devida fiscalização do Estado, passaram a
controlar rota marítimas que levam refugiados – e não necessariamente jihadistas
– de diversos países africanos para a Europa, acirrando os sentimentos anti-
imigração de grupos nacionalistas europeus e enfraquecendo os partidos
políticos tradiconais.

Hoje, não dá para apontar claramente quem governa toda a Líbia. Na prática, há
dois governos. Um está sediado na capital, Trípoli. O outro, no leste do país – e
tudo isso em meio a grupos armados ativos. O de Trípoli é reconhecido pela
ONU e apoiado por Itália, Catar e, principalmente, Turquia. Por sua vez, o outro
governo tem o respaldo de Egito, França, Emirados Árabes Unidos e,
principalmente, Rússia.⁷⁴

O leitor e a leitora podem ter estranhado o destaque maior para Turquia e Rússia.
Mas o fato é que, com a ineficácia das potências ocidentais, cuja intervenção não
trouxe soluções, esses dois países são os que realmente dão as cartas na Líbia na
atualidade. Na política internacional, não há vácuo, especialmente em um país
com posição geográfica estratégica e rico em recursos naturais.

O Iêmen, um dos países mais pobres do Oriente Médio e sem muitos recursos
naturais, também se envolveu em um conflito armado, muitas vezes esquecido
pela comunidade internacional, após os protestos da Primavera Árabe e mais um
ditador deposto.

Unificado desde 1990, o Iêmen atual é uma junção de dois países: o Iêmen do
Norte, de características mais tribais, e o Iêmen do Sul, uma ex-colônia britânica
que se aliou à União Soviética durante a Guerra Fria. Hoje, apesar de
tecnicamente unificado em uma só soberania, o país está bastante divido.

Em 1978, Ali Abdullah Saleh chegou ao poder no Iêmen do Norte e lá


permaneceu após a unificação de 1990. Saleh só deixou de governar em 2012,
após os protestos da Primavera Árabe atingirem o país no ano anterior. A queda
do regime se deu de forma diferente do que ocorreu na Tunísia, no Egito e na
Líbia: pressionado, Saleh concordou com um plano de transição, que previa
imunidade para ele e sua família, e aceitou deixar o cargo, após quase 33 anos.

No seu lugar, assumiu o vice, Abd Rabbuh Mansur al-Hadi. Mas os ânimos não
se acalmaram e, em 2015, Hadi foi derrubado pelos houthis, um movimento
político armado que segue o zaidismo, uma dissidência do islã xiita. Ou houthis
tomaram a capital, Sanaá, onde estabeleceram seu próprio governo. Enquanto
isso, Hadi fugiu para Áden, no sul do país, onde estabeleceu um outro governo.

Assim como na Líbia, o Iêmen tem, na prática, dois governos. O governo de


Áden é apoiado pela Arábia Saudita e pelos Estados Unidos (Joe Biden retirou o
apoio em fevereiro de 2021). E o governo dos houthis, pelo Irã. Sauditas e
iranianos travam uma espécie de Guerra Fria no Iêmen, com cada lado apoiando
grupos de seus interesses.

Frequentemente, a Arábia Saudita, que faz fronteira com o norte do Iêmen,


bombardeia territórios controlados pelos houthis – inclusive hospitais, escolas,
casamentos e funerais –, além de realizar bloqueios por ar, terra e mar, o que
agrava a crise humanitária no país, com casos crescentes de cólera e malária. Os
houthis respondem, e já assumiram a autoria de ataques na própria Arábia
Saudita, que miraram locais como refinarias de petróleo e aeroportos.

Para piorar o cenário de guerra civil – em um país com a segunda maior


quantidade de armas por habitante, atrás apenas dos Estados Unidos –, a
instabilidade resultou no crescimento de grupos terroristas, como a Al Qaeda e o
Estado Islâmico, que possuem operações no território iemenita. Aliás, a célula
mais forte da Al Qaeda, atualmente, está justamente no Iêmen.

A complexidade do conflito é ilustrada pelas alianças de Saleh, que, enquanto


esteve no poder, foi aliado da Arábia Saudita e inimigo dos houthis. Contudo, em
2015, ele apoiou a ofensiva dos houthis contra seu ex-vice para tomar Sanaá.
Mais tarde, se reaproximou dos sauditas e deu as costas ao movimento político
armado, que não aceitou e matou Saleh em 2017.

E o Brasil, por incrível que pareça, pode ter contribuído para o agravamento da
situação. De acordo com a ONG Human Rights Watch,⁷⁵ a Arábia Saudita
bombardeou civis no Iêmen com foguetes de fabrição brasileira, contendo
munições cluster – ou armas de fragmentação –, que são banidas
internacionalmente.

Presidente do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Peter Maurer esteve no


país em 2015, ainda no início da fase mais grave do conflito, e resumiu o que
viu: “O Iêmen, depois de cinco meses, se parece com a Síria depois de cinco
anos”.⁷ A guerra na Síria, a propósito, também tem suas raízes na Primavera
Árabe – sem, no entanto, queda do regime. Em razão do grande envolvimento
internacional, da repercussão gerada e das consequências, este conflito merece
um capítulo separado.

64 MARQUES, Teresa Cristina Schneider; OLIVEIRA, Antônio Eduardo Alves


de. De Praga ao mundo árabe: uma análise comparada de primaveras políticas.
Porto Alegre: Conjuntura Austral, 2013.

65 DAY, Elizabeth. Fedia Hamdi’s slap which sparked a revolution ‘didn’t


happen’. The Guardian, 23 abr. 2011. Disponível em:
<https://www.theguardian.com/world/2011/apr/23/fedia-hamdi-slap-revolution-
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66 NAÍM, Moisés. O fim do poder: como os novos e múltiplos poderes estão


mudando o mundo e abalando os modelos tradicionais na política, nos negócios,
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67 2020 World Press Freedom Index: “Entering a decisive decade for


journalism, exacerbated by coronavirus”. Reporters Without Borders. Disponível
em: <https://rsf.org/en/2020-world-press-freedom-index-entering-decisive-
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68 FELSCH, Maximilian. Qatar’s rising international influence: a case of soft


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<https://www.eiu.com/n/campaigns/democracy-index-2020/>. Acesso em: 07
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<https://www.rfi.fr/br/mundo/20201217-ber%C3%A7o-da-primavera-
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Acesso em: 03 jan. 2021.

72 Egypt’s election produces surprise runner-up: Mohamed Salah. The New


Arab, 03 abr. 2018. Disponível em:
<https://english.alaraby.co.uk/english/news/2018/4/3/egypts-election-produces-
surprise-runner-up-mohamed-salah>. Acesso em: 04 jan. 2021.

73 WINTOUR, Patrick. Gaddafi warned Blair his ousting would ‘open door’ to
jihadis. The Guardian, 07 jan. 2016. Disponível em:
<https://www.theguardian.com/world/2016/jan/07/gaddafi-warned-blair-of-
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74 ROBINSON, Kali. Who’s Who in Libya’s War? Council on Foreign


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75 Iêmen: Munições Cluster Fabricadas no Brasil Ferem Civis. Human Rights


Watch, 23 dez. 2016. Disponível em:
<https://www.hrw.org/pt/news/2016/12/23/298122>. Acesso em: 06 jan. 2021.

76 KEATEN, Jamey. AP interview: Red Cross chief decries Yemen violence.


Associated Press, 19 ago. 2015. Disponível em:
<https://apnews.com/article/fc74fd271fba4858a42e757955deeb9a>. Acesso em:
06 jan. 2021.
Por que a Síria entrou em guerra?

Em fevereiro de 2011, quando a Primavera Árabe já tinha começado, a


conceituada revista de moda feminina Vogue publicou um texto, intitulado A
Rose in the Desert (Uma rosa no deserto), sobre a primeira-dama da Síria, Asma
al-Assad. Nascida e criada na Inglaterra – mas filha de pais sírios –, ela estudou
no King’s College e trabalhou no mercado financeiro, especificamente no
Deutsche Bank e no JP Morgan. De origem muçulmana sunita, Asma não cobre
o cabelo, e suas roupas estão bem mais próximas de um estilo ocidental do que
os costumes do Oriente Médio.

O texto da Vogue, contudo, não tratava apenas sobre moda. Segundo a


publicação, feita provavelmente no pior timing possível, a “Síria é conhecida
como o país mais seguro do Oriente Médio [...]. É um país secular onde as
mulheres ganham tanto quanto os homens e o véu muçulmano é proibido nas
universidades, um lugar sem bombardeios, distúrbios ou sequestros”.⁷⁷

Quando olhamos para a Síria hoje, é difícil imaginar que, em um passado não tão
distante, tais palavras poderiam ser usadas para descrever o país. Poucos meses
depois, com a escalada da violência, a Vogue tirou o texto de seu site, sem dar
satisfações ao público. Mas, de fato, antes da guerra, a Síria tinha certa
estabilidade, e era um destino comum para ocidentais com interesse em aprender
a falar árabe.

Marido de Asma, Bashar al-Assad chegou ao poder em 2000, após a morte de


seu pai, Hafez, que comandava o país desde o início dos anos 1970. De certa
forma, Hafez deu estabilidade política à Síria, que, antes dele, via governantes
caírem com pouquíssimos anos de mandato por meio de golpes sucessivos. A
proposíto, um desses governantes, Adib Shishakli⁷⁸, fugiu para o Brasil e foi
morar em Ceres, no interior de Goiás, onde acabou sendo morto em 1964 por um
druzo residente no Distrito Federal.

Mas o sucessor de Hafez não era para ser Bashar, e sim seu irmão mais velho,
Bassel, preparado para o cargo desde pequeno. Porém, em 1994, Bassel morreu
em um acidente de carro, e Bashar, até então pouco conhecido, passou a ser o
mais cotado.

À época, Bashar morava em Londres, onde buscou dar continuidade à sua


carreira como oftalmologista e conheceu Asma – assim como a esposa, ele tem
um estilo mais próximo ao Ocidente, e prefere terno e gravata no lugar de fardas
militares ou roupas típicas da região. Com a morte do irmão mais velho, voltou
para a Síria. Mesmo sem traquejo para a política, deixou a medicina de lado e se
preparou, ao longo dos seis anos seguintes, para a sucessão de seu pai.

Dificilmente Bashar al-Assad imaginava que enfrentaria uma guerra, que já se


faz presente em metade de todo o tempo que está no poder. E dificilmente estava
preparado para um conflito dessas proporções. Mas, se compararmos com os
principais governos alvos dos protestos da Primavera Árabe, foi o que se saiu
melhor – a um enorme custo humanitário, no entanto. Contrariando as análises
da maioria dos especialistas, Assad não caiu. Como tudo começou e por que a
situação na Síria foi diferente?

Oficialmente, a guerra começou em 2011, como consequência dos protestos da


Primavera Árabe. No entanto, vale a pena voltarmos a 2009, quando o regime
sírio recusou um projeto de gasoduto do Catar, que passaria pela Síria com
destino à Europa.

Este tópico por si só pode não explicar todo o conflito sírio, mas ajuda a
entender algumas de suas dinâmicas e as relações de potências regionais e
internacionais. Vozes influentes, porém, dão maior importância à questão
energética. É o caso do advogado e ativista ambiental Robert F. Kennedy Jr. –
sobrinho do ex-presidente americano John F. Kennedy – que, em 2016, escreveu
um artigo⁷ detalhando sua visão sobre o assunto – em resumo, de que a guerra
da Síria seria um conflito principalmente por recursos naturais.

O projeto do Catar previa a passagem do gasoduto por Arábia Saudita, Jordânia,


Síria e Turquia, antes de chegar ao continente europeu. Teria o apoio das
monarquias sunitas do Golfo, dos Estados Unidos e da própria Europa, altamente
dependente do gás russo. Era uma oportunidade de justamente reduzir a
dependência da Rússia.

O Catar divide com o Irã uma das maiores jazidas de gás do mundo. Está
localizada exatamente na fronteira marítima dos dois países e ambos têm direito
de explorá-la de seu respectivo lado. E os iranianos também elaboraram um
projeto para levar gás a Europa, este passando por Iraque, Síria e Líbano,
chegando ao velho continente por meio do Mar Mediterrâneo.

O gasoduto do Irã, por sua vez, tinha o apoio da Rússia, que não queria perder
sua influência. Ao final, nenhum dos projetos saiu do papel, mas é interessante
observar como o único ponto de convergência entre eles era a Síria.
Em linha pontilhada, o projeto de gasoduto do Catar e, em linha reta, o do Irã

Imagem: João Victor Luzio com base em elaboração do autor

Com o rechaço de Assad ao projeto do Catar em 2009 – certamente influenciado


pelos russos –, ficaram claros os dois principais grupos de interesse que se
formaram em torno do país. De um lado, o governo sírio, a Rússia e o Irã. Do
outro, a oposição a Assad, com apoio das monarquias sunitas do Golfo e das
potências ocidentais. A mesma lógica se viu presente anos mais tarde, quando a
guerra de fato começou.

As relações entre Síria e Rússia são antigas. Desde a época de Hafez al-Assad,
ainda durante a Guerra Fria, o governo sírio era aliado dos soviéticos, e manteve
boas relações com os russos após o colapso da União Soviética. Aliás, a única
base militar da Rússia no Mar Mediterrâneo está localizada justamente no litoral
sírio.

Além disso, o governo russo busca se posicionar como defensor dos cristãos no
Oriente Médio. Como vimos anteriormente, 10% da população síria é cristã.
Para a Rússia, Assad é uma garantia de proteção aos cristãos, que, a propósito,
costumam apoiar o regime sírio pelo mesmo motivo, especialmente
considerando que alguns dos principais grupos de oposição na atualidade
seguem uma vertente extremista do islã.

Assad não é religioso, mas sua origem é alauíta, uma dissidência do xiismo. Na
Síria, os alauítas são minoria, e estão concentrados principalmente na costa do
Mar Mediterrâneo. Esta é uma região que, desde o início da guerra, esteve
majoritariamente ao lado do governo.

A origem religiosa de Assad é um dos motivos que explicam o apoio que ele
recebe do Irã. O mesmo se aplica ao grupo libanês Hezbollah, cujo braço armado
está ao lado do governo sírio. Tanto um quanto o outro são xiitas. Mas a religião,
claro, não é a única justificativa. Para os iranianos, ter influência na Síria
significa estar mais perto das fronteiras de Israel.
Por ser de uma minoria, Assad precisa balancear bem o poder para agradar aos
demais. Sua esposa, Asma, e sua vice-presidente, Najah al-Attar, tendem a ser
vistas como representantes dos sunitas em cargos de destaque. Mesmo assim, a
Arábia Saudita, principal rival do Irã na região e de maioria sunita, preferiria ver
Assad fora do poder.

Quem não costuma ter a mesma representatividade são os curdos. Baseados no


norte da Síria, mais especificamente na fronteira com a Turquia, formam a mais
relevante minoria étnica do país, que leva o árabe até mesmo em seu nome
oficial (República Árabe da Síria). Mas, no caso sírio, a luta dos curdos é mais
por sobrevivência do que especificamente contra o governo, como veremos no
oitavo capítulo.

O Ocidente, principalmente os Estados Unidos, priorizam seus maiores aliados


no Oriente Médio, como sauditas e israelenses. E, por Assad já ter o apoio da
Rússia, a tendência é ficar do lado oposto. Aliás, americanos comprovadamente
já financiavam grupos de oposição ao governo sírio desde antes do conflito,
conforme revelam documentos⁸ divulgados pelo WikiLeaks.

Foi mais ou menos nesse cenário social, étnico, religioso e geopolítico que os
protestos da Primavera Árabe chegaram à Síria, no início de março de 2011,
mais especificamente a Daraa, uma cidade no sul do país, quase na fronteira com
a Jordânia.

Alguns estudantes, adolescentes, picharam o muro de uma escola com palavras


contra Assad: “O povo quer derrubar o regime!”. Acredita-se que esses jovens
sequer tinham noção do significado dessas palavras e estavam apenas
reproduzindo uma frase, vista pela TV, usada por manifestantes em outros
países.

Mas o governo sírio não gostou. Os serviços de segurança prenderam


aproximadamente 15 garotos, todos eles com menos de 15 anos. A repressão não
pegou bem. Houve protestos, que se espalharam para outras cidades. E houve
mortes. Aliás, os funerais dos manifestantes mortos também se tornaram
manifestações.

De acordo com relatos⁸¹ do jornalista brasileiro Lourival Sant’Anna, que cobriu


a guerra da Síria in loco, Assad pretendia fazer concessões. Ele havia marcado
um discurso no Parlamento sírio para o dia 15 de março de 2011 com essa
intenção.

A informação foi confirmada por Michel Aoun, político libanês que veio a
assumir a Presidência do Líbano anos mais tarde. Segundo ele, Assad prometeu
reformas democráticas. “Ele [Assad] me disse que faria reformas”, afirmou
Aoun ao jornalista Lourival Sant’Anna, “porque a estrutura do Estado não pode
responder às aspirações do povo sírio e à situação interna”.

No entanto, o tom do discurso de Assad, que acabou ocorrendo no dia 30, foi
diferente. Ainda de acordo com o jornalista brasileiro, indícios apontam para
pressões de pessoas próximas ao regime, que tinham medo de ser punidas por
seus crimes em caso de concessões. Até mesmo Maher, irmão de Bashar, o teria
ameaçado com uma pistola.

Em seu discurso, Assad disse que os protestos eram consequência de uma


“conspiração externa”. E mais: os manifestantes mortos em Daraa, nas suas
próprias palavras, foram “sacrificados em nome da estabilidade nacional”. O
discurso não intimidou a população. Pelo contrário, provocou ainda mais
protestos. A essa altura, o texto da Vogue sobre Asma al-Assad e a suposta
estabilidade da Síria, publicado um mês antes, já estava velho.

Assad talvez preferisse ter seguido a carreira de oftalmologista em Londres ou


até mesmo na Síria. No início dos protestos da Primavera Árabe, pode até ser
que ele tinha intenções de fazer algumas reformas democráticas.
Independentemente de levar jeito ou não para ditador, a verdade é que está à
frente de um regime autoritário.

Lembram que Kadafi, na Líbia, tentava deslegitimar a oposição dizendo que


eram membros da Al Qaeda? Assad, na Síria, seguiu mais ou menos a mesma
linha, mas foi um pouco além, e colocou em prática uma estratégia polêmica:
ainda em 2011, anistiou diversos presos, muitos deles extremistas, que, com o
tempo, se infiltraram na oposição.

Dessa forma, a repressão aos protestos, inicialmente pacíficos, deu combustível


para a oposição, que logo pegou em armas e, com a chegada de militantes
extremistas, se radicalizou. Hoje, a oposição moderada na luta contra Assad
praticamente não existe – a estratégia para deslegitimá-la deu certo.
Enquanto isso, acontecia também uma guerra midiática. O leitor e a leitora
provavelmente devem ter lido ou ouvido sobre grupos rebeldes na Síria. Em
geral, é assim que os principais veículos da imprensa ocidental se referiam – e
alguns ainda se referem – à oposição síria. Por outro lado, veículos de países
mais alinhados a Assad, como a Rússia, chamavam e seguem chamando os
rebeldes de terroristas.

No capítulo quatro, explicamos os interesses que envolvem um lado chamar


inimigos de terroristas ou não. A situação da Síria é mais um exemplo na prática
de como isso ocorre. Mas é preciso deixar claro que, hoje, os grupos armados
são, de fato, extremistas. Estamos falando de grupos como Jaysh al-Islam e
Hay’at Tahrir al-Sham, este último anteriormente chamado de Frente Al Nusra,
nada mais do que o braço da Al Qaeda na Síria.

As potências ocidentais frequentemente se aliam a ditaduras, inclusive no


Oriente Médio. Logo, o fato de apoiarem a queda de Assad não está
necessariamente ligado à valorização de princípios democráticos – sinceramente,
é o que menos conta. E a radicalização da oposição chegou a tal ponto que,
agora, para alguns, é preferível manter Assad no poder, que tem um corpo
diplomático – chanceler e embaixador na ONU, por exemplo –, com quem pelo
menos é possível ter diálogo, do que dar espaço para grupos extremistas.

De um lado, portanto, temos um ditadura, acusada por organismos internacionais


de afetuar ataques químicos contra a população civil – nem todas as acusações,
porém, se provaram verdadeiras. Do outro lado, grupos terroristas de orientação
wahhabita, que perseguem e matam qualquer um que não siga suas orientações
extremistas – a oposição ainda controla algumas poucas cidades, como Idlib.
Diante deste cenário, era impossível que não houvesse uma crise de refugiados.

De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados


(Acnur),⁸² o mundo tem 79,5 milhões de pessoas forçadas a se deslocar – mais
do que toda a população da França ou do Reino Unido. Esse número inclui
pessoas com status de refugiados já reconhecido, bem como aquelas que
aguardam reconhecimento e os deslocados internos, ou seja, dentro de seus
próprios países.

A Síria é o principal país de origem dos refugiados, com 6,6 milhões. Em


seguida, aparecem Venezuela (3,7 milhões), Afeganistão (2,7 milhões), Sudão do
Sul (2,2 milhões) e Mianmar (1,1 milhão). E qual é o país que mais recebe
refugiados? A Turquia, com 3,6 milhões. Colômbia (1,8 milhão), Paquistão (1,4
milhão), Uganda (1,4 milhão) e Alemanha (1,1 milhão) completam a lista dos
cinco primeiros.

Reparem como todos os países que mais recebem refugiados, com exceção da
Alemanha, fazem fronteira com os principais países de origem. Ainda segundo o
Acnur, 73% dos refugiados estão em países vizinhos. Isso quer dizer que a crise
de refugiados está muito mais concentrada na região dos próprios conflitos do
que em lugares mais distantes, como a Europa, apesar de a repercussão midiática
frequentemente dar a entender o contrário.

No caso específico da Síria, conforme aponta uma reportagem da BBC,⁸³ citando


dados da Anistia Internacional, 95% dos refugiados estão em apenas cinco países
do Oriente Médio: Turquia, Líbano, Jordânia, Iraque e Egito. Proporcionalmente,
o caso libanês é de impressionar. Com uma população de menos de 7 milhões, o
país, mesmo em crise econômica, acolheu 1,1 milhão de refugiados sírios – isso
sem contar as centenas de milhares de refugiados palestinos que já viviam lá
anteriormente.

Chama a atenção o fato de as monarquias do Golfo – os países mais ricos da


região e culturalmente mais próximos do que os europeus –, como Arábia
Saudita, Catar e Emirados Árabes Unidos, não acolherem refugiados sírios. De
acordo com a reportagem da BBC, “o papel que alguns desses países tiveram na
Guerra da Síria”, financiando grupos de oposição, é um dos argumentos que
explicam a falta de acolhida.

Como a Alemanha é um exceção, convém explicar alguns detalhes, que ajudam


a entender um pouco mais sobre o contexto dos refugiados. Uma foto postada no
Pinterest⁸⁴ mostra um cartaz pregado em um poste em frente ao icônico Portão
de Brandenburgo, em Berlim, com os seguintes dizeres: “Quem exporta um
número incrível de armas, não pode se surpreender que haja um número incrível
de refugiados” (Wer unglaublich viele Waffen exportiert, darf sich nicht
wundern, dass es unglaublich viele Flüchtlinge gibt).

A mensagem é clara: armas alimentam guerras, que, por sua vez, produzem
refugiados. Segundo relatório do Stockholm International Peace Research
Institute (Sipri),⁸⁵ a Alemanha é o quarto país que mais exporta armas. Os
principais destinos das armas alemãs – Coreia do Sul, Grécia e Argélia – não têm
necessariamente algo a ver com os conflitos no Oriente Médio responsáveis
pelas recentes crises de refugiados. Mas outras potências ocidentais, como
Estados Unidos, França e Reino Unido, vendem armas para países direta ou
indiretamente envolvidos nessas guerras, conforme mostram as tabelas adiante.

País de origem Principais países de destino


Estados Unidos Arábia Saudita, Austrália e Emirados Árabes Unidos
Rússia Índia, China e Argélia
França Egito, Catar e Índia
Alemanha Coreia do Sul, Grécia e Argélia
China Paquistão, Bangladesh e Argélia
Os cinco países que mais exportam armas e seus principais destinos

Fonte: Sipri

País importador Principais países de origem


Arábia Saudita Estados Unidos, Reino Unido e França
Índia Rússia, Israel e França
Egito França, Rússia e Estados Unidos
Austrália Estados Unidos, Espanha e França
China Rússia, França e Ucrânia
Os cinco países que mais compram armas e seus principais vendedores

Fonte: Sipri

A título de curiosidade, o Brasil é 24º país que mais vende armas, tendo
Afeganistão, Indonésia e Líbano como os principais clientes. E o 34º que mais
compra, sendo França, Estados Unidos e Reino Unido os principais países de
origem.

O relatório do Sipri cita a Síria em dois momentos. Primeiro, quando fala da


Rússia: “Embora a Rússia tenha apoiado o governo sírio no conflito desde 2015,
a venda de armas russas para a Síria caiu 87% entre 2010 e 2014 e entre 2015 e
2019. E foi responsável por apenas 3,9% das exportações de armas russas para o
Oriente Médio e 0,7% do total das exportações de armas russas entre 2015 e
2019” (tradução livre). A propósito, é consenso entre analistas que o apoio
militar da Rússia a Assad ajudou a mantê-lo no poder.

O outro momento em que o relatório cita a Síria é quando fala da Turquia e dos
curdos, mas isso isso é assunto para o oitavo capítulo. O governo turco, aliás,
tem um papel fundamental na crise dos refugiados não só por receber a maior
quantidade, mas também do ponto de vista logístico, uma vez que o país está no
caminho para a Europa – e usa desse fato como barganha em negociações com a
União Europeia.

De volta à Alemanha, parte da solidariedade tem justificativa na necessidade.


Todo ano, nascem 670 mil pessoas no país, mas morrem 870 mil. Os menores de
25 anos são 22% da população. E os menores de 15, 13%. Enquanto isso,
projeções indicam que, em 2060, dois terços dos alemães deverão ter mais de 65
anos. Há demanda por 140 mil engenheiros e programadores de informática. Em
2040, se o ritmo permanecer o mesmo, o país pode precisar de 3,9 milhões de
trabalhadores de todos os setores.⁸

Por isso, a Alemanha aposta em mão de obra estrangeira. Apesar de grupos anti-
imigração acharem o contrário, muitos refugiados são qualificados, o que pode
representar uma boa injeção na economia.⁸⁷ E, também contrariando esses
grupos, eles não fizeram com que o índice de criminalidade aumentasse,
segundo a Bundeskriminalamt, o órgão alemão mais similar ao americano FBI
(Federal Bureau of Investigation).⁸⁸

No segundo semestre de 2015, em pleno auge da crise migratória, fui para


Munique e esperei pela chegada de refugiados na estação de trem da cidade.
Queria conversar com eles e entender suas histórias. Aproximei-me de um grupo
de paquistaneses. Ao me apresentar como jornalista, um dos refugiados disse
que também era jornalista e me mostrou seu crachá. Nós tínhamos formações
parecidas e ele poderia perfeitamente estar fazendo o mesmo que eu, mas a sua
ida para a Alemanha foi por sobrevivência.

Em 2018, conheci Maya Gandhour, uma refugiada síria, à época com dez anos,
que fugiu da Síria com sua família rumo a Goiânia. Ela já falava português
fluentemente, além de árabe, inglês e espanhol, e ainda queria aprender italiano,
francês e alemão. “Poderia ser política”, me disse a jovem refugiada síria, “mas
meu sonho é ser médica para poder salvar vidas em todo o mundo e, por isso,
tenho que aprender tantas línguas”.⁸

Maya também contou que bombas caíram bem perto de onde estava – duas vezes
próximo ao carro de seu pai e outra em frente à sua escola. Além disso, em 2012,
junto com outros três parentes, esteve cara a cara com membros do Estado
Islâmico. Felizmente para eles, não aconteceu nada de pior. Mas, sem dúvidas,
este grupo terrorista, mesmo sumido do noticiário nos últimos tempos, é um dos
principais responsáveis pelas recentes crises de refugiados. E é sobre ele que
falaremos a seguir. (Os dois próximos capítulos, de certa forma, continuam a
explicar a guerra da Síria)

77 FISHER, Max. The Only Remaining Online Copy of Vogue’s Asma al-Assad
Profile. The Atlantic, 03 jan. 2012. Disponível em:
<https://www.theatlantic.com/international/archive/2012/01/the-only-remaining-
online-copy-of-vogues-asma-al-assad-profile/250753/>. Acesso em: 14 jan.
2021.

78 ALVES, Renato. Conheça a história do morador do DF que assassinou ex-


ditador sírio. Correio Braziliense, 05 ago. 2018. Disponível em:
<https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2018/08/05/interna_cidadesdf,699
morador-do-df-que-assassinou-um-ditador-sirio-mohamed-chichakli.shtml>.
Acesso em: 14 jan. 2021.

79 KENNEDY JR., Why the Arabs Don’t Want Us in Syria. Politico Magazine,
22 fev. 2016. Disponível em:
<https://www.politico.com/magazine/story/2016/02/rfk-jr-why-arabs-dont-trust-
america-213601>. Acesso em: 16 jan. 2021.

80 WHITLOCK, Craig. U.S. secretly backed Syrian opposition groups, cables


released by WikiLeaks show. The Washington Post, 17 abr. 2011. Disponível
em: <https://www.washingtonpost.com/world/us-secretly-backed-syrian-
opposition-groups-cables-released-by-wikileaks-
show/2011/04/14/AF1p9hwD_story.html>. Acesso em: 19 jan. 2021.

81 SANT’ANNA, Lourival. Minha guerra contra o medo: o que o risco da morte


ensina sobre a vida. Amazon, 2019.

82 Dados sobre Refúgio. Acnur Brasil, 18 jun. 2020. Disponível em:


<https://www.acnur.org/portugues/dados-sobre-refugio/>. Acesso em: 22 jan.
2021.

83 FATHALLA, Amira. Por que países ricos do Golfo não abrem portas para
refugiados sírios? BBC News Brasil, 07 set. 2015. Disponível em:
<https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/09/150903_refugiados_sirios_hb>.
Acesso em: 22 jan. 2021.

84 Disponível em: <https://br.pinterest.com/pin/833588212253178913/?


amp_client_id=CLIENT_ID(_)&mweb_unauth_id=
{{default.session}}&from_amp_pin_page=true>. Acesso em: 23 jan. 2021.

85 Trends in International Armas Tranfers, 2019. SIPRI Fact Sheet, mar. 2020.
Disponível em: <https://www.sipri.org/sites/default/files/2020-
03/fs_2003_at_2019.pdf>. Acesso em: 23 jan. 2021.

86 FIGUEIRA, Ricardo. Alemanha: A necessidade por detrás da solidariedade.


Euronews, 07 set. 2015. Disponível em:
<http://pt.euronews.com/2015/09/07/alemanha-a-necessidade-por-detras-da-
solidariedade> Acesso em: 23 jan. 2021.

87 CASSIDY, John. The economics of Syrian Refugees. The New Yorker, 18


nov. 2015. Disponível em: <https://www.newyorker.com/news/john-cassidy/the-
economics-of-syrian-refugees>. Acesso em: 23 jan. 2021.

88 Report: refugees have not increased crime rate in Germany. Deutsche Welle,
13 nov. 2015. Disponível em: <http://www.dw.com/en/report-refugees-have-not-
increased-crime-rate-in-germany/a-18848890>. Acesso em: 23 jan. 2021.

89 MARIANO, Marcelo. Família de refugiados sírios em Goiânia conta histórias


da guerra. Jornal Opção, 22 abr. 2018. Disponível em:
<https://www.jornalopcao.com.br/reportagens/familia-de-refugiados-sirios-em-
goiania-conta-historias-da-guerra-123225/ >. Acesso em: 23 jan. 2021.
O Estado Islâmico acabou?

Retratado em um recente filme que leva o seu nome, Sérgio Vieira de Mello foi
possivelmente o mais conhecido diplomata brasileiro. Nascido no Rio de Janeiro
e filho de uma professora e de um embaixador – a vocação para a diplomacia
estava no sangue –, mudou-se para a Europa nos anos 1960 participou das
manifestações de maio de 1968, em Paris.

Pouco tempo depois, começou a trabalhar na ONU, mais especificamente no


Acnur, a agência especializada em refugiados. Ao todo, foram 34 anos de
dedicação às Nações Unidas. Idealista, era reconhecido pela capacidade de
negociação e especialmente por preferir realizar trabalhos de campo no lugar de
despachar de um escritório com ar-condicionado em alguma cidade com alta
qualidade de vida.

Representou a ONU em diversos países, como Bangladesh, Chipre,


Moçambique, Líbano, Camboja, Bósnia e Kosovo, entre outros. Mas seu
trabalho de maior destaque foi no Timor-Leste, entre 1999 e 2002, onde ajudou a
reconstruir o país praticamente do zero, após mais de 20 anos de ocupação da
Indonésia.

Tinha tudo para suceder o ganês Kofi Annan e ser o secretário-geral das Nações
Unidas – o cargo mais alto da organização. Contra sua vontade, porém, foi
enviado ao Iraque durante a invasão americana. E de lá nunca mais voltou. No
dia 19 de agosto de 2003, um atentado na sede da ONU em Bagdá matou Sérgio
e outras 21 pessoas. O grupo terrorista Jama’at Tawhid al-Jihad assumiu a
responsabilidade. Anos mais tarde, este mesmo grupo veio a ser o que o mundo
conhece como Estado Islâmico.

Para entendermos o Estado Islâmico, precisamos falar sobre o jordaniano Abu


Musab al-Zarqawi. Semianalfabeto e com uma juventude problemática –
passagem pela prisão por abuso sexual e posse de drogas –, foi matriculado em
cursos religiosos de uma mesquita em Amã, capital da Jordânia, por sua mãe,
preocupada com a vida que o filho estava levando.

Até então, al-Zarqawi não tinha uma “mentalidade islâmica”, como ele mesmo
reconheceu. Mas, nesses cursos religiosos, teve contato com o
salafismo/wahhabismo, umas das vertentes mais fundamentalistas do islã, e se
transformou – até se arrependeu de uma tatuagem que fez aos 16 anos. ¹

Nos últimos meses da invasão soviética do Afeganistão, o jordaniano


desembarcou em Peshawar, no Paquistão, quase na fronteira afegã. Ele cruzou
para o país vizinho, onde parmaneceu mesmo após a retirada das tropas da União
Soviética. Lá, participou de treinamentos e ajudou a formar dois dos
idealizadores dos ataques de 11 de setembro, Ramzi Yousef e Khalid Sheikh
Mohammed. ²

Em 1992, al-Zarqawi voltou à Jordânia e foi prontamente posto sob vigilância do


serviço de inteligência do país, que estava preocupado com a repatriação de
pessoas vindas do Afegenistão. Abu Muhammad al-Maqdisi, um jordaniano-
palestino que ele conheceu em solo afegão, fundou sua própria célula jihadista, a
Bayt al-Iman, e o recrutou. Al-Zarqawi ficou responsável por esconder
armamentos contrabandeados. A inteligência jordaniana já rastreava os
movimentos de ambos, quando, em 1994, foram presos. Na prisão, al-Zarqawi se
radicalizou ainda mais.

Em 1999, ano em que foi solto, voltou ao Afeganistão e teve um encontro pouco
proveitoso com Bin Laden – o saudita suspeitou que ele pudesse ser um espião
da Jordânia. Mas, já no ano seguinte, al-Zarqawi passou a ser o responsável por
administrar um campo de treinamento em Herat, terceira maior cidade do
Afeganistão.

Logo acima da entrada deste campo, havia uma bandeira com os seguintes
dizeres: “Tawhid al-Jihad”, que significa monoteísmo e jihad e deu nome à
célula que ele fundou mais tarde e orquestrou o atentado responsável por matar
Sérgio Vieira de Mello em 2003 – o ataque tinha o brasileiro como alvo direto
porque adeptos da jihad culpam Sérgio por dividir a Indonésia, o país com o
maior número de muçulmanos, durante o trabalho que realizou no Timor-Leste.

A invasão americana do Iraque deixou o país desestabilizado, que, dessa forma,


se transformou em um terreno fértil para grupos extremistas devido ao vácuo de
poder. Em 2004, al-Zarqawi oficialmente declarou lealdade a Bin Laden. Com
isso, o grupo terrorista Jama’at Tawid al-Jihad mudou o nome para Tanzim
Qaedat al-Jihad fi Bilad al-Rafidayn, cujo significado é “Al Qaeda na terra dos
dois rios”, em referência aos rios Tigres e Eufrates. Em outras palavras, a célula
da Al Qaeda no Iraque.

Em 2006, al-Zarqawi foi morto em um bombardeio dos Estados Unidos, mas


suas ideias não morreram com ele. A Al Qaeda no Iraque seguiu sob a liderança
do egípcio Ayyub al-Masri, que, em outubro do mesmo ano, anunciou que a
célula passava a fazer parte de um “mosaico de movimentos de resistência
islâmica nativos”, ou Estado Islâmico do Iraque.

Al-Masri também foi morto pelas forças americanas, mas, de novo, suas ideias
não morreram com ele. Não se acaba com o terrorismo simplesmente matando o
líder de um grupo terrorista – é necessário mudar a mente das pessoas. Como?
Não existe solução fácil e não esperem de mim trazer a resposta mais adequada
para esta questão. No entanto, parece ser fato que é preciso mais do que
simplesmente eliminar os principais envolvidos.

Quando um líder terrorista morre, outro assume o lugar e, às vezes, com


ambições maiores. Abu Bakr al-Baghdadi, que tomou o posto de Al-Masri após
sua morte, é uma prova disso. Com a Síria abalada pelos protestos da Primavera
Árabe, ele expandiu as fronteiras de seu grupo: o Estado Islâmico do Iraque
agora era o Estado Islâmico do Iraque e da Síria (Isis, na sigla em inglês).

Em 28 de junho de 2014, exatamente no primeiro dia do mês sagrado do


Ramadã, al-Baghdadi proclamou, do púlpito da Grande Mesquita de al-Nuri, em
Mossul, no Iraque, a instituição de um califado. A essa altura, o grupo já estava
bastante atuante na Síria, inclusive controlando territórios.

“Corram, ó muçulmanos, para o seu Estado. Sim, é o seu Estado. Corram,


porque a Síria não é para os sírios, e o Iraque não é para os iraquianos.” Com
essas palavras, al-Baghdadi evidenciava, no seu entendimento, que as fronteiras
desenhadas pelo acordo Sykes-Picot, como vimos no primeiro capítulo, não
faziam mais sentido. A luta contra este acordo ficou ainda mais nítida quando
jihadistas postaram um vídeo na internet com o título “O fim do Sykes-Picot”
(The End of Sykes-Picot).
Nascido no Iraque, o autoproclamado califa estava, naquele instante, abdicando
de sua cidadania em prol da existência de um único Estado: o Islâmico. E dividia
o mundo em dois: o “campo dos muçulmanos e dos mujahidins por toda parte” e
o “campo dos judeus, dos Cruzados e seus aliados”.

Agora, o Estado Islâmico do Iraque e da Síria passava a se chamar apenas


Estado Islâmico, deixando clara a mensagem de que o grupo não atuaria somente
naquela região, mas, sim, em todo o mundo. O movimento jihadista de al-
Zarqawi, então, havia se tornado um autoproclamado Estado com reivindicações
territoriais e presença global.

A segunda letra S da sigla Isis também pode significar Sham, termo, em árabe,
para Levante, “a área geográfica que abrange algo como a Síria e o Líbano
modernos e, possivelmente, a Cisjordânia e a Jordânia”. Sendo assim, em inglês,
pode-se encontrar também a sigla Isil, com L de Levante. Além disso, outro
termo bastante usando é Daesh, ou Da’esh, equivalente em árabe a al-Dawla al-
Islamiyya fi-l’Iraq wa al-Sham. Acredita-se que “oponentes do grupo que são
falantes do árabe preferem o acrônimo ‘Da’esh’, porque o som da palavra
lembra termos de significados diversos, como ‘pisotear’”. ³

Pessoalmente, prefiro chamar apenas de Estado Islâmico por acreditar ser de


melhor compreensão. Mas, afinal, este grupo terrorista é, de fato, um Estado? E
islâmico? É o que tentarei responder adiante, começando pelo aspecto estatal.

Nas relações internacionais, é comum ter como referência a Paz de Vestifália


como ponto de partida para a criação do Estado moderno, embora haja críticas,
que, por exemplo, consideram esta uma visão eurocentrista da história. Fato é
que com a assinatura dos tratados de Münster e Osnabrück encerrado a Guerra
dos 30 Anos (1618-1648) – diversos conflitos entre territórios localizados
basicamente na região que hoje é a Alemanha –, elementos como soberania e
independência foram reconhecidos mutualmente. ⁴

De lá para cá, o conceito se desenvolveu. Hoje, em resumo, são considerados


três elementos fundamentais para a existência de um Estado: população, governo
e território. Recorro, mais uma vez, ao professor Paulo Henrique Faria Nunes,
citado no capítulo sobre terrorismo: “O Estado é uma sociedade política
soberana. Consequentemente, trata-se de um aglomerado de pessoas, disperso
sobre um território, submetido a uma estrutura governamental que exerce um
poder soberano”.

Contudo, há, além desses três elementos, a necessidade de que um Estado seja
reconhecido pela comunidade internacional. “A soberania”, ainda segundo o
professor, “se manifesta internamente a partir do momento em que a estrutura
política demonstra capacidade de imposição sobre todos que se encontram no
território”. Mas há um porém: “Esse poder só será pleno caso consiga ser
reconhecido pelos demais estados. Sem reconhecimento, portanto, não há
manifestação externa de soberania”.

O escritor brasileiro Guilherme Canever tem um trabalho de dar inveja: ele


escreve livros sobre os lugares para os quais viaja. O tema de um desses livros é
sobre os “países que não existem”. ⁵ Claro, é uma provocação. Porque, de uma
forma ou de outra, eles existem. Os países abordados por Guilherme são aqueles
que até conseguem ter alguns dos elementos para ser um Estado, mas não os três.
E, quando eventualmente conseguem os três, não são amplamente reconhecidos
internacionalmente.

Transnístria, Ossétia do Sul, Somalilândia, Saara Ocidental – já mencionado


neste livro – e Palestina – que ainda será mencionada com mais detalhes – são
alguns dos países visitados por Guilherme. Mas vamos pegar um exemplo
europeu: o Kosovo. Tem população, território e governo. Para alguns países, é
independente. Para outros, no entanto, faz parte da Sérvia.

No momento em que escrevo estas palavras, o último país a ter sua


independência amplamente reconhecida foi o Sudão do Sul, em 2011. E o
próximo talvez seja Bougainville, uma ilha da Oceania que busca independência
de Papua Nova Guiné.

O Estado Islâmico, portanto, é ou não um Estado? Claro que não. Afinal, que
outro país reconheceria sua independência? Seria um atestado explícito de apoio
ao terrorismo. Ainda assim, vale analisarmos o grupo terrorista dentro do
contexto dos elementos fundamentais de um Estado. Primeiro, a população.

O jornal americano The Wall Street Journal, em um vídeo de 2014 publicado em


seu canal no YouTube, estima que, àquela altura, oito milhões de pessoas
viviam sob o comando do Estado Islâmico. Para efeito de comparação, este
número é similar à população da Suíça e superior à de Goiás.

Parte considerável desta população era constituída por estrangeiros, ou seja, nem
sírios nem iraquianos. Pessoas de outros países da região, majoritariamente
islâmicos, e até mesmo de fora da região, mas filhos ou netos de muçulmanos.
Russos de áreas do país, como a Chechênia, onde há uma grande população
islâmica. E também pessoas da Europa Ocidental e da América do Norte, sem
qualquer ligação com o islã ou o Oriente Médio, que foram convertidas e
atraídas pela propaganda do Estado Islâmico. Aliás, o retorno desses
combatentes a seus países de origem é um enorme desafio para os respectivos
governos.

A presença de estrangeiros, a propósito, fez muitos analistas questionarem se a


guerra da Síria era, de fato, civil, uma vez que vários combatentes não eram
sírios – um dos argumentos também utilizados pelo regime de Assad.

País Quantidade de combatentes


Rússia 3.417
Arábia Saudita 3.244
Jordânia 3.000
Tunísia 2.926
França 1.910
Marrocos 1.623
Turquia 1.500
Alemanha 915
Reino Unido 850
Bélgica 478
Suécia 300
Estados Unidos 129
Combatentes estrangeiros no Estado Islâmico entre 2016 e 2017

Fonte: Statista ⁷

Como vimos anteriormente, o grupo terrorista foi um dos principais responsáveis


pelo grande fluxo de refugiados, que saíram de suas cidades e foram para outros
lugares dentro da própria Síria e do Iraque ou buscaram refúgio em outros
países. São pessoas que não concordavam com o estilo de vida radical imposto
pelo autoproclamado califado e, claro, tinham condições de fugir. Os que
ficaram não necessariamente apoiam o Estado Islâmico. Muitos deles
simplesmente não tinham condições, físicas ou financeiras, de sair de casa. E
outros tantos resolveram ficar para enfrentar os jihadistas na esperança de que a
situação logo melhorasse.

De qualquer maneira, oito milhões de pessoas – número que, com os refugiados,


poderia ser maior – é uma quantidade expressiva. E a população, um dos
elementos fundamentais para que um Estado exista, foi essencial para que o
grupo terrorista obtivesse dinheiro suficiente para bancar suas ações. Isso porque
uma das mais importantes fontes de receita do Estado Islâmico era a cobrança de
impostos.

O jihadistas cobravam taxas da população em troca de serviços básicos, como


água, eletricidade e coleta de lixo. Em alguns casos, quando, por exemplo,
alguém apresentava resistência à cobrança, havia extorsões. Estimativas indicam
que o grupo terrorista chegou a arrecadar centenas de milhões de dólares dessa
forma. Uma reportagem do Business Insider, ⁸ site de notícias americano
especializado em negócios, diz que o Estado Islâmico desenvolveu “setores de
renda diversificados e sistemas sociais fortes”. Em outras palavras, funcionava,
na prática, como se realmente fosse um país.

Outra notável fonte de receita do Estado Islâmico era a venda de petróleo no


mercado clandestino. Com a consquista de territórios, o grupo terrorista passava
também a controlar campos petrolíferos. Mas quem comprava este importante
recurso natural? Difícil dizer. Até o presente momento, não há evidências
concretas. A Rússia, no entanto, acusou a Turquia e disse que tinha provas,
nunca apresentadas, de que o presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan, e sua
família obtiveram benefícios nesse mercado.

Independetemente de quem comprava, é fato que, para manter de pé não só o


sistema de venda de petróleo, mas também o de arrecadação de impostos, o
Estado Islâmico precisava de trabalhadores especializados, ou “funcionários
públicos”, e hierarquia, com chefes e subordinados.

Algumas cenas da série No Man’s Land tentam retratar uma repartição pública
do autoproclamado califado em Raqqa, cidade na Síria que foi a capital do grupo
terrorista, não muito diferente das demais repartições públicas que conhecemos.
Isso nos leva a um outro elemento essencial para um Estado: o governo.

No seu auge, o topo da estrutura política do Estado Islâmico era formado por
dois “vice-califas” auxiliando o autoproclamado califa Abu Bakr al-Baghdadi:
Abu Muslim al-Turkmani e Abu Ali al-Anbari, responsáveis pela supervisão das
operações no Iraque e na Síria, respectivamente.¹

Destacam-se ainda dois outros órgãos do “governo” do Estado Islâmico: o


Conselho da Shura e o Conselho da Sharia. O primeiro era responsável por
transmitir as diretrizes de al-Baghdadi e garantir que elas estavam sendo postas
em prática, enquanto o segundo era composto por seis membros e tido copo o
corpo administrativo mais poderoso do Estado Islâmico, cujas obrigações eram
escolher um califa, assegurar a disciplina e sentenciar penalidades contra
apóstatas.

Abaixo destes conselhos, estavam outros que poderiam ser equiparados a


ministérios. São eles: Provincial, Militar, Segurança e Inteligência, Relações
Religiosas, Finanças e Mídia – este último responsável, por exemplo, pela
estratégia eficiente do grupo terrorista em atrair combatentes de outros países
por meio de ações em mídias digitais. Portanto, uma burocracia estatal bem-
definida. O que era de se esperar, uma vez que o grupo terrorista, sem
organização, não conseguiria governar a população presente em seu território, o
últimos dos três elementos de um Estado.

Recapitulando: O Estado Islâmico começou como um grupo terrorista, liderado


por al-Zarqawi, que, no ano seguinte à invasão americana do Iraque, declarou
lealdade à Al Qaeda e passou a ser o chefe de sua célula neste país. Mais tarde,
depois da Primavera Árabe, expandiu suas operações para a Síria e conquistou
territórios.

Aqui, é importante retomarmos um tema discutido no capítulo sobre terrorismo:


uma das diferenças entre um grupo terrorista e um grupo insurgente é que o
primeiro costuma atuar por meio de células descentralizadas, enquanto o
segundo tem como objetivo o controle territorial. O Estado Islâmico,
inegavelmente, é um grupo terrorista, mas adotou uma estratégia diferente ao
controlar territórios e governá-los de fato, ou seja, operar como um outro Estado
qualquer.

O Estado Islâmico, então, reuniu os três elementos fundamentais para constituir


um Estado. Obviamente, no entanto, não obteve reconhecimento da comunidade
internacional e, por isso, não deve ser considerado como um ente estatal.

A primeira vista, a extensão territorial controlada pelo Estado Islâmico no Iraque


e na Síria pode assustar. Apesar de nesse espaço haver importantes cidades,
como a iraquiana Mossul, uma outra parte considerável é composta por deserto.
Mesmo assim, continua sendo expressiva, especialmente tendo em vista a
“inovação” no contexto de atuação de um grupo terrorista tradicional.

Naturalmente, surgiram coalizões de diferentes forças contra o o grupo terrorista


com o objetivo de retomar os territórios sob controle jihadista. Na Síria, uma
coalizão foi a do governo de Assad, com apoio de Rússia, Irã e Hezbollah. E
uma outra dos curdos, liderados pelos Estados Unidos e o Ocidente de uma
forma geral. Demais grupos terroristas, rivais do Estado Islâmico, também
lutaram contra o autoproclamado califado.

No Iraque, a situação era diferente daquela encontrada na Síria. Basicamente, a


coalizão era uma só, respaldada internacionalmente por países considerados
adversários. Embora estivessem em lados opostos na Síria, Estados Unidos e Irã,
por exemplo, integraram a mesma coalizão em solo iraquiano.

Com o tempo, o território controlado pelo Estado Islâmico passou a diminuir


devido à atuação das diferentes coalizões. De janeiro de 2015 a março de 2019, o
grupo perdeu o controle de praticamente todos os seus postos. Dessa forma,
também perdeu receita e, consequentemente, capacidade de realizar atentados,
como os de Paris.
Diminuição do território controlado pelo Estado Islâmico ao longo do tempo

Imagem: João Victor Luzio com base na BBC News¹ ¹

Em 2019, já bastante enfraquecido, o Estado Islâmico perdeu seu líder, al-


Baghdadi, cuja morte havia sido declarada algumas vezes no passado, mas sem a
devida confirmação. No seu lugar, assumiu o iraquiano Abu Ibrahim al-Hashimi
al-Qurashi, de quem pouco se ouve falar, uma vez que o grupo não assusta mais
como nos anos anteriores.

Porem – e aí vem a resposta para a pergunta deste capítulo –, o Estado Islâmico


não acabou. Enquanto “Estado” – com população, governo e território –, talvez
sim. Mas ele continua existindo, agora mais em conformidade com as
características convencionais de um grupo terrorista, isto é, operando em células
clandestinas.

O Estado Islâmico, portanto, mudou. Não tem os mesmos recursos da época em


que conseguia realizar diversos ataques na Europa, por exemplo, mas mantém
operações, e causa terror, em inúmeros outros lugares, inclusive fora do Oriente
Médio.
Em destaque, países com alguma células ou grupos leais ao Estado Islâmico

Imagem: João Victor Luzio com base no Institute for the Study of War¹ ²

Para concluir este capítulo, uma breve análise sobre o Estado Islâmico do ponto
de vista religioso. Com o objetivo de deslegitimar o grupo terrorista e afirmar
que ele não representa o islã, muitos formadores de opinião dizem que, além de
não ser um Estado, ele não é islâmico. A intenção é nobre, mas eu discordo do
argumento – e agora explico por quê.

O Estado Islâmico segue uma corrente específica dentro do islã: o wahhabismo,


cuja origem já foi explicada no quarto capítulo. Trata-se de uma vertente bem-
definida, com história e pensamento conhecidos, ou seja, ela existe. E, se é o que
o Estado Islâmico segue, na minha visão, ele pode ser considerado islâmico,
mesmo que seja a versão mais extremista do islã.

Mas é importante voltar a tocar em um ponto crucial: o wahhabismo é


minoritário. Logo, embora considere o Estado Islâmico um grupo extremista
islâmico, ele está longe de representar a religião como um todo. O
autoproclamado califado chegou a ter 31 mil combatentes.¹ ³ O islã, como
vimos, tem quase 2 bilhões de seguidores. Não há como comparar.

Acredito que só enfrentando o problema de frente – e o extremismo religioso é


um problema –, em vez de escondê-lo embaixo do tapete, é que será possível
derrotá-lo. Por isso, prefiro chamar as coisas do que eles realmente são.

E na linha de frente, na Síria e no Iraque, quem enfrentou o Estado Islâmico


muito bem, apesar das inúmeras dificuldades, foram os curdos – o assunto do
próximo capítulo.

90 AMENDOLA, Beatriz. Quem foi Sérgio Vieira de Mello, o brasileiro


interpretado por Wagner Moura. UOL, 16 abr. 2020. Disponível em:
<https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2020/04/16/quem-foi-
sergio-vieira-de-mello-o-brasileiro-interpretado-por-wagner-moura.htm >.
Acesso em: 24 jan. 2021.
91 WARRICK, Joby. Black Flags: the rise of ISIS. New York: Doubleday, 2015.

92 WEISS, Michael; HASSAN, Hassan. Estado Islâmico: desvendando o


exército do terror. São Paulo: Seoman, 2015.

93 WOOD, Graeme. A guerra dos fins dos tempos: O Estado Islâmico e o


mundo que ele quer. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

94 SILVA, Victor Teixeira Barreto da. Paz de Vestfália: Um estudo sobre a


origem do Direito Internacional. Niterói: Universidade Federal Fluminense,
2012.

95 CANEVER, Guilherme. Uma viagem pelos países que não existem. Curitiba:
Pulp Edições, 2018.

96 WALL STREET JOURNAL. The Islamic State: How Its Leadership Is


Organized. YouTube, 08 set. 2014. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=1HzMucorCwo>. Acesso em: 27 jan. 2021.

97 MCCARTHY, Niall. Scores Of ISIS Foreign Fighters Have Returned Home.


Statista, 25 out. 2017. Disponível em:
<https://www.statista.com/chart/11613/scores-of-isis-foreign-fighters-have-
returned-home/ >. Acesso em: 27 jan. 2021.

98 PERPER, Rosie. ISIS made millions from taxes that it then used to run
garbage collections and even a DMV. Business Insider, 06 abr. 2018. Disponível
em: <ISIS made millions from taxes that it then used to run garbage collections
and even a DMV>. Acesso em: 27 jan. 2021.

99 TSVETKOVA, Maria; KELLY, Lidia. Russia says it has proof Turkey


involved in Islamic State oil trade. Reuters, 02 dez. 2015. Disponível em:
<https://www.reuters.com/article/us-mideast-crisis-russia-turkey-
idUSKBN0TL19S20151202>. Acesso em: 27 jan. 2021.

100 BARRETT, Richard. The Islamic State. New York: The Soufan Group,
2014.

101 IS ‘caliphate’ defeated but jihadist group remains a threat. BBC News, 23
mar. 2019. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/world-middle-east-
45547595>. Acesso em: 28 jan. 2021.
102 CAFARELLA, Jennifer; WALLACE, Brandon; FORREST, Caitlin;
Baghdadi Leaves Behind a Global ISIS Threat. ISW, 27 out. 2019. Disponível
em: <http://www.iswresearch.org/2019/10/baghdadi-leaves-behind-global-
isis.html>. Acesso em: 28 jan. 2021.

103 LOCATELLI, Omar. ISIS and management of savagery. Buenos Aires:


Revista Visión Conjunta, 2015.
Quem são os curdos?

No final de agosto de 2016, quando o Estado Islâmico ainda controlava grandes


territórios, a morte de uma soldada curda em confronto contra o grupo terrorista
chamou a atenção dos principais veículos da imprensa internacional. O destaque
dado a ela não era diretamente em razão de sua luta, mas, sim, de sua beleza.
Asia Ramazan Antar, de 19 anos, foi chamada, inúmeras vezes, inclusive nos
títulos das reportagens, de “Angelia Jolie curda”.

De fato, Asia era muito bonita. Alguns, entretando, a achavam mais parecida
com Julia Roberts. Outros, com Penélope Cruz, como consta em um texto do
jornal português Diário de Notícias.¹ ⁴ Porém, mais bonita ainda era a sua luta,
que ganhou bem menos atenção do que as analogias com atrizes famosas.

No jornalismo internacional, é comum fazer comparações para que leitores,


ouvintes ou telespectadores tenham mais facilidade em compreender o assunto
tratado. Sérgio Dávila, atual diretor de Redação da Folha de S. Paulo, foi o único
repórter brasileiro, ao lado do fotógrafo Juca Varella, a cobrir in loco a invasão
americana do Iraque em 2003. Dez anos depois, os dois voltaram ao país e, em
um vídeo gravado para o canal do jornal no YouTube,¹ ⁵ Sérgio compara uma rua
de Bagdá com a Oscar Freire, em São Paulo.

Quem conhece a capital paulista, logo entende que aquela é uma região do
Iraque com marcas de luxo. Pronto, objetivo concluído – e Sérgio ainda fez
questão de dizer “mal comparando” ao alertar que a Oscar Freire não passou por
uma guerra.

No caso de Asia, e da questão curda de uma forma geral, a situação é muito mais
complexa – e limitar o debate à beleza feminina não ajuda a entender quem são
os curdos e o que eles querem. Ao contrário, reforça estereótipos machistas de
mulheres bonitas com fardamentos militares em uma guerra.

Uma reportagem da BBC¹ aborda esse assunto, citando Choman Kannani, um


cobatente curdo resposável pela reconstrução de Kobabi, cidade no norte da Síria
recuperada pelas forças curdas após destruição do Estado Islâmico. Segundo ele,
“toda a filosofia das Unidades Curdas de Proteção à Mulher [ou Unidades de
Proteção das Mulheres, conhecidas pela sigla em curdo YPJ] é lutar contra o
sexismo e evitar o uso da mulher como objeto sexual”.

A mulher, no contexto do povo curdo, costuma exercer funções diferentes do que


sociedades mais machistas esperaram de uma figura feminina, frequentemente
associada a trabalhos domésticos e ao cuidado com a família. O papel da mulher
na sociedade curda, com uma liderança maior, é também bastante diferente da
imagem que o Ocidente tem do Oriente Médio.

“Queremos dar a mulheres o lugar que merecem na sociedade e que elas sejam
donas de seus próprios destinos”, prossegue Kannani. “Vivyan [nome de
combate adotado por Asia] morreu por esses ideais. Nos meios de comunicação,
ninguém falava dos ideais pelos quais ela morreu, nem o que Vivyan fez pelas
mulheres no Curdistão sírio nos últimos quatro anos.”

Há, no mundo, cerca de 30 milhões de curdos, uma quantidade impossível de


generalizar – há mulheres que ainda sofrem com o machismo e há curdos que
não votam nos partidos que defendem sua causa. Eles não são árabes, têm um
outro idioma e formam o maior grupo étnico sem um Estado para chamar de seu.
Aqui, já temos dois pontos para tratar. Primeiro, a etnia. E, segundo, o aspecto
estatal.

Como grupo étnico, não são religiosamente homogêneos. Lembram que etnia e
religião são duas coisas diferentes? Os curdos são majoritariamente muçulmanos
sunitas, mas há xiitas, como os que vivem no Irã. Há, ainda, os yazidis, que são
etnicamente curdos e seguem uma outra religião, dos quais voltaremos a tratar
mais adiante. E há até mesmo curdos judeus.

Já que estamos falando de etnia – “uma comunidade humana definida por


afinidades linguísticas, culturais e semelhanças genéticas”, conforme
conceituamos no segundo capítulo –, nada mais justo do que citarmos um site
especializado em genética e análise de ancestralidade por DNA: “A origem do
povo curdo é controversa. No entanto, as primeiras indicações podem ser
encontradas no roteiro cuneiforme da época assíria. Existem ligação étnicas com
os Medes, um antigo grupo iraniano que viveu no sudoeste da Ásia [outra forma
de se referir ao Oriente Médio] há mais de 2.700 anos”.¹ ⁷

Do ponto de vista estatal, ou de organização política, os curdos sempre viveram


com relativa autonomia, apesar de não terem um Estado próprio. A partir de
1639, grande parte do território habitado por eles passou a integrar o Império
Otamano, após um acordo com o Império Persa.

Como explicamos anteriormente, o Império Otomano saiu derrotado da Primeira


Guerra Mundial. Com isso, seu território foi dividido, dando origem a outras
nações, como Turquia, Síria, Líbano e Iraque. Esses novos países ficaram, em
sua maioria, sob domínio de potências europeias, que prometeram um Estado
para os curdos.

O tratado de Sévres, em 1920, previa uma região curda com fronteiras definidas.
Contudo, a proposta foi rejeitada pelos turcos. Mais tarde, a área conhecida
como Curdistão passou a integrar partes dos atuais Iraque e da Síria, além da
Turquia (herdeira do Império Otomano) e do Irã (herdeiro do Império Persa).

Hoje, os curdos estão localizados principalmente nesses quatro países. Há uma


quantidade muito pequena de curdos em outros países da região, como a
Armênia. E há os curdos na diáspora, vivendo em países como a Alemanha, por
exemplo.

Ao longo dos anos, eles sofreram diferentes perseguições culturais, como


proibição do idioma curdo, e até mesmo massacres, como a Operação Anfal,
comandada por Saddam Hussein, que vitimou dezenas de milhares de civis. E
seguem sem um país próprio.
Regiões curdas entre Turquia, Síria, Iraque, Irã e Armênia

Imagem: João Victor Luzio com base no New York Times¹ ⁸

Atualmente, é no Iraque que os curdos talvez estejam mais próximos de uma


independência – ou menos distantes. O Curdistão Iraquiano, como é chamado, é
uma região autonônoma, devidamente reconhecida pelo artigo 117 da
Constituição do Iraque,¹ que entrou em vigor em 2005 – ou seja, após a invasão
americana. E o artigo 4 do mesmo documento reconhece a língua curda como
idioma oficial do país, ao lado do árabe.

Aliás, ainda no contexto pós-invasão dos Estados Unidos, foi instituído um novo
sistema político de representação étnica e religiosa, conhecido como Muhasasa.
De acordo com esse sistema, o presidente deve ser curdo, enquanto o cargo de
primeiro-ministro tem que se ocupado por um muçulmano xiita, e o de
presidente do Parlamento, por sua vez, por um muçulmano sunita.

No Líbano, existe algo similar. Lá, o presidente deve ser cristão maronita. O
primeiro-ministro, muçulmano sunita. E o presidente do Parlamento, muçulmano
xiita. Além disso, há representação de minorias nas cadeiras do Legislativo. E
tanto o Iraque quanto o Líbano são repúblicas parlamentaristas. Logo, quem
governa, de fato, é o primeiro-ministro.

Na região do Curdistão Iraquiano, são os curdos que realmente estão no poder,


independentemente de o primeiro-ministro do Iraque não ser curdo. O poder é
tanto que até mesmo as fronteiras são controladas sem interferência do governo
central iraquiano. Por exemplo, brasileiros precisam de visto para ir ao Iraque –
a cidades como Bagdá, no centro, e Basra, no sul. Mas, para ir ao Curdistão
Iraquiano, localizado ao norte, não há necessidade. Os apresentadores da série
Que Mundo é Esse?, em sua primeira temporada, constataram isso na prática ao
cruzarem a fronteira terrestre entre esta região e a Turquia.

Em 2017, o Curdistão Iraquiano realizou um plebiscito com o objetivo de


consquistar independência total. A maioria esmagadora votou a favor: 93%.
Entretanto, não passou de mais um referendo de uma região separatista que não
chegou ao resultado esperado, haja vista que o governo iraquiano não
reconheceu a legalidade da votação.
Mas, se o Curdistão Iraquiano é de maioria curda e tem um governo próprio com
alguma autonomia, por que o governo central simplesmente não aceita sua
independência? Os recursos naturais são uma das razões. Afinal, estamos
falando de uma região rica em petróleo. Na visão do governo em Bagdá, que não
quer perder as receitas deste mercado, a independência poderia causar
instabilidade.¹¹

Se fosse independente, o Curdistão Iraquiano teria um problema logístico: seria


um dos únicos países do Oriente Médio, ao lado Afeganistão, sem saída para o
mar. Dessa forma, dependeria de seus vizinhos para escoar as exportações, entre
elas as de petróleo. O problema é que esses vizinhos – Síria, Irã e Turquia – não
seriam tão amigáveis, uma vez que temeriam movimentos de independência
curda dentro de seus próprios territórios.

O único país do Oriente Médio a apoiar abertamente o plebiscito de


independência foi Israel. O governo israelense tem seus motivos geopolíticos –
adoraria ter um aliado na fronteira com o Irã –, mas também econômicos. Um
dado importante: três quartos do petróleo importado por Israel vem justamente
do Curdistão Iraquiano¹¹¹ – por meio de um gasoduto que passa pela Turquia
rumo ao Mar Mediterrâneo.

Além disso, o governo do Curdistão Iraquiano anunciou, em 2015, a criação de


um departamento para cuidar das relações judaicas com o objetivo de reconstruir
sinagogas e restabelecer laços entre judeus. Há cerca de 300 mil curdos judeus –
pessoas etnicamente curdas, mas religiosamente judias –, sendo que a grande
maioria vive em Israel.¹¹²

Um outro povo que bagunça a cabeça de quem vê o Oriente Médio como uma
região só de muçulmanos ou árabes são os yazidis. Etnicamente, eles são curdos.
Do ponto de vista religioso, seguem uma religião sincrética fundada no século 11
e derivada do zoroastrismo, uma crença persa ancestral. Os yazidis conservam
elementos tanto do cristianismo quanto do islã, embora sua crença não seja
considerada abraâmica.

Há aproximadamente cerca de 700 mil yazidis, concentrados especialmente na


região de Sinjar, uma cidade no norte do Iraque. Historicamente, este povo
sofreu inúmeras perseguições, opressões e ameaças de extermínio. Mesmo
assim, a fé se manteve viva.¹¹³

Nos últimos anos, a situação foi tão dramática que ganhou manchetes em todo o
mundo. Em 2014, durante uma ofensiva a Sinjar, o Estado Islâmico sequestrou
milhares de yazidis, enquanto cerca de 40 mil conseguiram fugir e se tornaram
refugiados.

O grupo terrorista não tolera visões de mundo distintas da sua e persegue os que
pensam diferente. Em geral, quem mais sofre são os próprios muçulmanos –
tanto sunitas que não seguem o wahhabismo quanto xiitas. No Iraque e na Síria,
as minorias cristãs também foram perseguidas.

No caso dos yazidis, os homens capturados foram assassinados ou forçados a se


converter ao islã pregado pelo Estado Islâmico. As mulheres mais jovens e
crianças sofreram estupro, tortura, se tornaram escravas sexuais e foram
transformadas em moeda de troca.¹¹⁴

Em 2018, Nadia Murad, então com 25 anos, venceu, ao lado do congolês Denis
Mukwege, o Prêmio Nobel da Paz. Ela é yazidi e foi uma das tantas mulheres
sequestradas e violentadas pelo Estado Islâmico. Depois desta terrível
experiência, passou a ser ativista contra o tráfico sexual e o uso do estupro como
arma de guerra, razão pela qual recebeu a premiação.

Em 2015, o Curdistão Iraquiano anunciou a retomada de Sinjar e a expulsão do


Estado Islâmico da cidade. Apoiada por bombardeios aéreos da coalizão
internacional, a batalha foi liderada, por terra, pelos Peshmerga, o exércio
paramilitar dos curdos no Iraque. Os Peshmerga também estiveram envolvidos
na liberação de Mosul, uma das mais importantes cidades do norte iraquiano, em
2017.

Na Síria, os curdos são, do ponto de vista militar, representados principalmente


por uma outra organização: as Unidades de Proteção Popular (YPG, na sigla em
curdo). As YPJ, das mulheres, mencionadas no início deste capítulo, são uma
brigada ligada às YPG. Acredita-se, aliás, que terroristas do Estado Islâmico têm
medo de serem mortos por mulheres porque, dessa forma, não iriam ao paraíso.

Em território sírio, as YPG integraram a coalizão responsável por derrotar o


autoproclamado califado em Raqqa, a capital do grupo terrorista, em 2017, ao
lado de outros grupos locais, como as Forças Democráticas da Síria, que também
contam com curdos em suas fileiras, e de potências ocidentais. Os curdos são um
dos grupos que mais sofreram nas mãos do autoproclamado califado e, ao
mesmo tempo, um dos que mais o combateram.

Juntos, as YPG e o Partido da União Democrática (PYD, na sigla em curdo) são


considerados o braço sírio do Partido dos Trabalhores do Curdistão (PKK, na
sigla em curdo), um partido político da Turquia. O govero turco classifica o PKK
como uma organização terrorista. Como o quarto capítulo deixou claro, a
classificação de um grupo como terrorista atende a critérios mais políticos do
que técnicos. Para o governo turco, é politicamente interessante classificar o
PKK como tal. E a Turquia, especialmente devido à questão curda, está bastante
envolvida na guerra da Síria.

No auge do Estado Islâmico, tornou-se comum ver na imprensa internacional


notícias sobre jovens de países ocidentais, como França, Reino Unido e Estados
Unidos, que desembarcaram em Istambul e seguiram rumo aos territórios
controlados pelo Estado Islâmico na Síria e no Iraque para se juntarem ao
autoproclamado califado.

Mas Istambul está a quase 1.200 quilômetros de Alepo, no norte da Síria (usada
aqui apenas como referência para o exemplo). Amã, na Jordânia, Beirute, no
Líbano, e até mesmo Damasco, na Síria, e Bagdá, no Iraque, são apenas algumas
cidades importantes da região com distância menor do que Istambul. Por que,
então, os jihadistas escolhiam a Turquia?

Porque chegar ao Estado Islâmico pela Turquia era um caminho muito mais
fácil. O governo turco, a propósito, é acusado de facilitar o trânsito de terroristas.
Ou, na melhor das hipóteses, fazer vista grossa a essa situação. A razão é
simples. Tanto o governo turco quanto o Estado Islâmico têm um inimigo em
comum: os curdos. Portanto, para o primeiro, era vantajoso deixar o fluxo seguir
normalmente em direção ao segundo.

O governo turco também fez, e ainda faz, intervenções por conta própria no
norte da Síria, em territórios de forte presença curda, inclusive dando suporte a
grupos considerados extremistas. Aliás, no capítulo sobre o conflito sírio, foi
mencionado um relatório sobre vendas de armas no mundo. A Síria foi citada
duas vezes. A primeira, como mostrado, diz respeito à Rússia. E a segunda,
como prometido, será abordada agora porque trata justamente dos curdos.
Diz o documento: “De 1995 a 1999, a Turquia foi o terceiro maior importador de
armas do mundo. De 2005 a 2009, foi o nono maior e, de 2015 a 2019, ficou em
15º lugar. Entre 2015 e 2019, as importações de armas da Turquia foram 48%
menores do que no período entre 2010 e 2014, apesar de seu exército estar
lutando contra rebeldes curdos e envolvido nos conflitos na Líbia e na Síria. A
diminuição foi em parte devido a atrasos na produção em submarinos da
Alemanha. [...] Além disso, vários países europeus restringiram suas vendas de
armas à Turquia em 2019 por causa de suas ações contra grupos curdos na Síria”
(tradução livre).

Com a ameaça de Estado Islâmico e Turquia, os curdos não tinham a queda de


Assad como prioridade, embora fossem apoiados pelas potências ocidentais. Na
Síria, os grupos curdos lutam menos contra o governo e mais por sua própria
sobrevivência.

Os problemas entre Turquia e curdos não são de agora. Nos anos 1920 e 1930 –
a partir de quando as fronteiras atuais da região começaram a ser definidas –, os
curdos em solo turco tiveram o idioma, nomes e roupas típicas proibidos, além
de terem sido deslocados à força, em razão de suas reivindicações.

Nem mesmo de curdos eram chamados, mas, sim, de “turcos das montanhas”.
Hoje, repesentam de 15% a 20% da população da Turquia, que tem pouco mais
de 80 milhões de habitantes.

O PKK, citado anteriormente, foi fundado em 1978 por Abdullah Öcalan com a
pauta de um Estado independente para os curdos. Pouco tempo depois, o partido
aderiu à luta armada. Os embates resultaram em dezenas de milhares de pessoas
mortas e outras tantas obrigadas a fugir. Öcalan foi capturado em 1999,
condenado à prisão perpétua e posto em uma cadeia localizada em uma ilha.

Da prisão, ele “revisa criticamente a teoria marxista e incorpora às suas reflexões


os debates sobre ecologia social e municipalismo libertário”. Öcalan passa a
estudar a fundo a geografia da região e, anos depois, em 2005, apresenta o
conceito de Confederalismo Democrático, “o sistema democrático de um povo
sem Estado” espalhado por diferentes países.¹¹⁵

Em outras palavras, o Confederalismo Democrático é a forma, na visão de


Öcalan, segundo a qual o povo curdo deve se organizar, mesmo não tendo um
país próprio. Por meio de um trabalho de base e princípios como
autodeterminação dos povos, governança coletiva e autonomia das comunidades,
apresenta-se como uma alternativa ao Estado-nação (ou antinacionalismo) e uma
ruptura com o sexismo e o patriarcado – daí a maior relevância da participação
feminina.

Na Síria, as ideias do Confederalismo Democrático são bastante presentes em


Rojava, a região no norte do país de maioria curda, onde a brigada feminina YPJ
tem suas operações. Há autonomia política concedida pelo Estado sírio, mas uma
independência de verdade não parece tão perto.

Na verdade, dar autonomia para os curdos é uma estratégia do governo sírio, ou


seja, um jeito de provocar a Turquia, localizada do outro lado da fronteira. O
xadrez geopolítico do Oriente Médio, de fato, é complexo e envolve diversas
variáveis.

Falando em geopolítica, em 2019, o ex-presidente dos Estados Unidos Donald


Trump anunciou a retirada de tropas americanas da fronteira entre Síria e
Turquia. Cumprindo uma promessa de campanha, o republicano disse que era
hora de os EUA saírem de guerras sem fim.

No entanto, até mesmo críticos da política externa intervencionista dos Estados


Unidos – isto é, contra a presença americana em conflitos armados – não
aprovaram a decisão por inteiro. As tropas retiradas eram justamente as que
davam apoio às forças curdas, que, sem elas, se viram abandonadas.

Três dias depois do anúncio de Trump, a Turquia começou uma ofensiva contra
os curdos, uma vez que não havia mais soldados americanos no meio do
caminho como obstáculo. Em outras palavras, uma política externa isolacionista
sem o devido planejamento pode ser tão desastrosa quanto uma política externa
intervencionista.

Os Estados Unidos, de uma forma ou de outra, tem um pé em praticamente todas


as questões no Oriente Médio. No momento, os curdos não parecem ser uma
grande prioridade. Por outro lado, um dos pontos mais importantes – e delicados
– tanto para potências de fora da região quanto para o próprio Oriente Médio é a
rivalidade entre Arábia Saudita e Irã, que será discutida no próximo capítulo.

104 DN. “Angelina Jolie curda” morreu a lutar contra Estado Islâmico. Diário de
Notícias, 07 set. 2016. Disponível em: <https://www.dn.pt/mundo/angelina-
joliecurda-morreu-a-lutar-contra-estado-islamico-5377472.html>. Acesso em: 04
fev. 2021.

105 TV FOLHA. Diário de Bagdá: A Oscar Freire local. YouTube, 17 mar. 2013.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=PmHcs70_iN0>. Acesso
em: 04 fev. 2021.

106 GOL, Jiyar. A combatente curda morta em combate cuja luta contra o
Estado Islâmico foi minimizada por conta de sua beleza. BBC News Brasil, 13
set. 2016. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-
37349289 >. Acesso em: 04 fev. 2021.

107 Povo antigo Curdos – Ancestralidade e origem. iGENEA. Disponível em:


<https://www.igenea.com/pt/povos-indigenas/curdos >. Acesso em: 04 fev.
2021.

108 ÖZOĞLU, Hakan. Lessons From the Idea, and Rejection, of Kurdistan. The
New York Times, 05 jul. 2014. Disponível em:
<https://www.nytimes.com/roomfordebate/2014/07/03/where-do-borders-need-
to-be-redrawn/lessons-from-the-idea-and-rejection-of-kurdistan>. Acesso em: 05
fev. 2021.

109 Iraq’s Constitution of 2005. Constitute Project, 2005. Disponível em:


<https://www.constituteproject.org/constitution/Iraq_2005.pdf?lang=en>.
Acesso em: 06 fev. 2021.

110 RASCOUET, Angelina; AL ANSARY, Khalid. How Iraq’s Kurdish


Independence Referendum Could Impact Oil Markets. Bloomberg, 20 set. 2017.
Disponível em: <https://www.bloomberg.com/news/articles/2017-09-20/iraq-s-
kurds-seek-independence-what-impact-for-oil-markets>. Acesso em: 06 fev.
2021.

111 SHEPPARD, David; REED, John; RAVAL, Anjli. Israel turns to Kurds for
three-quarters of its oil supplies. Financial Times, 23 ago. 2015. Disponível em:
<https://www.ft.com/content/150f00cc-472c-11e5-af2f-4d6e0e5eda22>. Acesso
em: 06 fev. 2021.

112 FIRSHT, Naomi. Kurdish parliament creates department for Jews. The
Jewish Chronicle, 22 out. 2015. Disponível em:
<https://www.thejc.com/news/world/kurdish-parliament-creates-department-for-
jews-1.60772>. Acesso em: 06 fev. 2021.

113 JALABI, Raya. Who are the Yazidis and why is Isis hunting them? The
Guardian, 11 de ago. 2014. Disponível em:
<https://www.theguardian.com/world/2014/aug/07/who-yazidi-isis-iraq-religion-
ethnicity-mountains>. Acesso em: 07 fev. 2021.

114 PENACHIONI, Júlia Battistuzzi. Estado Islâmico, imigração e o fenômeno


das escravas sexuais. São Paulo: Ponto e Vírgula, 2015.

115 RIBEIRO, Maria Florencia Guarche. A trajetória do movimento de mulheres


no noroeste do

Curdistão: a institucionalização do Confederalismo Democrático e da Jineologî


(1978-2018). Porto Alegre: UFRGS, 2019.
Qual é o problema entre Arábia Saudita e Irã?

Em 1977, a princesa saudita Misha’al bint Fahd al Saud, de 19 anos, foi


capturada, junto com seu amante, enquanto tentava fugir. Ela foi acusada de
adultério e ambos acabaram executados. Acredita-se que esta foi a razão pela
qual a Arábia Saudita passou a adotar uma lei, bastante rígida, que proíbe
mulheres de saírem do país sem um “guardião” masculino.¹¹

Indiretamente, esta também foi a razão pela qual a Al Jazeera ganhou força. A
emissora do Catar aproveitou a ruptura do contrato entre a Orbit Radio and
Television Service, baseada em Roma, na Itália – mas de capital saudita –, e o
braço televisivo da BBC em árabe. A ruptura se deu a partir de discordâncias
sobre independência editorial – o estopim teria sido a exibição de um
documentário que aborda justamente a morte da princesa Misha’al bint Fahd al
Saud.¹¹⁷

A Al Jazeera, então, herdou não só grande parte da equipe de jornalistas


experientes do serviço da BBC em árabe, mas também o modelo de uma
emissora pública com independência editorial – ou pelo menos tentou, já que, na
prática, dificilmente há críticas ao Catar.

Em relação aos outros países do Oriente Médio, como vimos anteriormente, a Al


Jazeera, de fato, tem independência para criticar. E isso incomoda. No caso da
Arábia Saudita, incomodou tanto ao ponto de, em 2017, o governo saudita ter
liderado um grupo de outros países, como Emirados Árabes Unidos e Egito, que
rompeu relações diplomáticas com o Catar. Entre as demandas para o
restabelecimento da normalidade, estava o fechamento da Al Jazeera.

Em janeiro de 2021, enquanto este livro estava sendo escrito, Arábia Saudita e
Catar retomaram as relações diplomáticas, três anos e meio desde a ruptura. A Al
Jazeera, claro, não fechou. Ainda não estão claras quais foram as concessões do
Catar, se é que houve alguma. Mas o que o Irã tem a ver com isso?

A agência oficial de notícias do Catar, que não é a Al Jazeera, divulgou um


relatório em que o emir Tamim bin Hamad Al Thani criticava o aumento de um
sentimento anti-iraniano na região. O governo do Catar alegou que a divulgação
se deu em razão de um ataque hacker, mas, para a Arábia Saudita, que lidera o
sentimento anti-iraniano, a desculpa não colou. E esse foi o gatilho para a
ruptura de relações diplomáticas – houve outras motivações, como a acusação de
o Catar supostamente apoiar o terrorismo por meio de seu relacionamento com a
Irmandade Muçulmana.

Localizado exatamente entre Arábia Saudita e Irã – um Estado-tampão, ou seja,


entre dois países hostis –, o Catar busca ter uma política externa mais
independente. Tal postura nunca agradou aos sauditas, que veem a região do
Golfo como sua área de influência natural. Mas o fato é que o Catar não pode se
dar ao luxo de ser hostil ao Irã.

Lembram da enorme jazida de gás, mencionada no capítulo sobre a Síria, que


Catar e Irã dividem? Por questões estratégicas, portanto, ambos precisam
dialogar. Enquanto isso, a única fronteira terrestre do Catar é com a Arábia
Saudita. Além do fator econômico que isso envolve – logisticamente importante
para o fluxo de importação e exportação –, os dois países têm mais
características religiosas e culturais em comum.

A política externa independente do pequeno e rico Catar, dessa forma, se


justifica. Entretanto, trata-se de uma exceção no Oriente Médio. A regra,
especialmente entre países pequenos, é ter grupos se alinhando à Arábia Saudita
ou ao Irã, que, juntos, protagonizam a mais importante rivalidade na região
atualmente – algo que, como veremos, vai além de sunitas contra xiitas.

Ao longo deste livro, a Arábia Saudita foi mencionada diversas vezes. E o


wahhabismo, a ideologia por trás da origem do país, também. Para entendermos
a história saudita, é preciso voltar a abordá-lo.

A aliança religiosa e militar entre Mohamed ibn al-Wahhab’Abd e Mohamed ibn


Saud é o início do que se considera como o primeiro Estado saudita, com a
criação, em 1744, do Emirado de Diriyah. Enquanto al-Wahhab buscava
disseminar sua visão do islã – o wahhabismo –, Saud tinha como objetivo ganhar
legimitidade nos territórios que controlova.

A guerra otomano-saudita (1811-1818), por vezes também chamada de guerra


otomano-wahhabi, destruiu o Emirado de Diriyah, 74 anos após sua criação. O
Império Otomano foi o vencedor deste conflito, mas, em geral, a região da atual
Arábia Saudita costumava despertar pouco interesse das forças imperialistas –
tanto local, como os próprios otomanos, quanto de outras regiões, como os
britânicos.

Pouco tempo depois do fim do Emirado de Diriyah, já em 1824, os


sauditas/wahhabitas conseguiriam instaurar o Emirado de Najd, tido como o
segundo Estado saudita. À época, ainda não englobava Meca e Medina, duas das
três cidades sagradas do islã – a terceira é Jerusalém.¹¹⁸

Mais tarde, Abd al-Aziz Al Saud, popularmente conhecido como Ibn Saud,
expandiu as conquistas territorias até conseguir unificá-las. O processo de
unificação, que durou 30 anos, deu origem, em 1932, ao terceiro Estado saudita,
ou Reino da Arábia Saudita, examente o país que conhecemos hoje.

Entre os territórios conquistados por Ibn Saud, estavam Meca e Medina. Por essa
cidades estarem localizadas em seu terroritório, a Arábia Saudita muitas vezes é
vista como uma referência para o islã. Isso é especialmente problemático
quando, no senso comum, leis sauditas se confundem com a religião.

Até pouco tempo atrás, as mulheres não podiam dirigir na Arábia Saudita. O
atual príncipe herdeiro do país, Mohamed bin Salman, também conhecido pela
sigla MBS, foi o responsável pela mudança na legislação – não necessariamente
porque é um defensor dos direitos das mulheres, mas, sim, porque queria inseri-
las no mercado de trabalho para movimentar a economia.

Como vimos no segundo capítulo, a fuga de Maomé de Meca para Medina,


conhecida como Hégira e reponsável por marcar o início do calendário islâmico,
aconteceu em 622. Há, portanto, um intervalo de 1.310 anos entre a fundação do
islã e a criação do Estado saudita moderno.

A Arábia Saudita apenas controla duas cidades sagradas – por uma coincidência
histórica –, mas não dita as regras da religião. Não é, nem de longe, o
equivalente ao Vaticano para o catolicismo. Na época de Maomé, nem sequer
existia carro. Não há motivo, então, para que uma lei saudita como essa seja
vista como uma lei islâmica, ainda mais levando em conta que esta não é a regra
nos demais países de maioria muçulmana.
Se antes a Arábia Saudita não despertava muito interesse estrangeiro, com a
descoberta de petróleo, no final dos anos 1930, a situação muda. Em 1944, é
inaugurada a Arabian American Oil Company (Aramco). Hoje conhecida como
Saudi Aramco, a empresa iniciou suas operações em parceria com os Estados
Unidos e foi oficialmente nacionalizada em 1980.¹¹

A decisão de nacionalizar a Aramco surgiu na esteira da guerra do Yom Kippur,


conflito armado entre países árabes e Israel, que recebeu apoio dos Estados
Unidos. Contrariada com a aliança entre israelenses e americanos, a Arábia
Saudita, com o objetivo de demonstrar liderança na região, articulou uma ação
da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) para aumentar de
propósito o preço do petróleo, atingindo em cheio a economia de países
ocidentais dependentes da improtação deste recurso natural.

Por muito tempo, a Arábia Saudita foi o maior produtor de petróleo do mundo.
Recentemente, contudo, os Estados Unidos tomaram o primeiro lugar, o que, de
certa forma, reduz a dependência americana no petróleo do Oriente Médio e
pode eventualmente mudar o jogo geopolítico da região a longo prazo.

Mesmo assim, o petróleo ainda é importante para manter a Arábia Saudita rica e
poderosa. Aliás, em 2019, a Aramco, uma companhia estatal de petróleo, chegou
a ocupar o posto de empresa com maior valor de mercado do mundo, em um
ranking recheado de companhias dos ramos tecnológico e financeiro.¹² (Em
2020, a Aramco foi ultrapassada pela Apple)

Mas a Arábia Saudita já percebeu que não dá para ter um economia dependente
do petróleo, que, além de finito, pode ser substituído por fontes mais
sustentáveis. A exemplo de outros países do Golfo, como Emirados Árabes
Unidos e Catar, tem promovido políticas com a intenção de diversificar suas
atividades – a decisão de deixar as mulheres dirigirem faz parte desta estratégia.
Nos últimos anos, o governo saudita até mesmo abriu o país um pouco mais para
o turismo.

Apesar do atrito durante a guerra do Yom Kippur, as relações entre Arábia


Saudita e Estados Unidos sempre se mantiveram no mais alto nível. Para os
americanos, a Arábia Saudita é, depois de Israel, o grande aliado no Oriente
Médio. Para os sauditas, os Estados Unidos são fundamentais para a garantia de
sua segurança.

A relação entre os dois países foi inaugurada em meados dos anos 1940, em um
encontro entre Ibn Saud, o fundador da Arábia Saudita, e o então presidente dos
Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt. Mesmo com o 11 de setembro – 15 dos
19 terroristas envolvidos no ataque eram sauditas –, não houve alteração nessa
aliança.

Há quem defenda a ideia de um choque de civilizações entre islã e o mundo


ocidental, ou seja, que as civilizações islâmicas e ocidentais não são
compatíveis. De fato, são diferentes, mas o forte vínculo entre Estados Unidos,
um dos principais países ocidentais, e Arábia Saudita, um dos principais países
islâmicos, prova que é possível haver diálogo – isso sem contar o já citado Sadiq
Khan, um muçulmano de origem paquistanesa que é prefeito de Londres, e
inúmeros outros exemplos de harmonia.

Hoje, é difícil imaginar, mas os Estados Unidos também já foram aliados do Irã.
A história deste país, considerado o herdeiro do Império Persa, é milenar.
Infelizmente, não há condições de abordar tudo aqui. Para entender as questões
mais atuais, o ponto de partida será o final de 1925, quando Reza Xá Pahlavi, ou
simplesmente Reza Xá, assumiu o trono do que ainda era chamado de Pérsia.

Oficialmente, a Pérsia só virou Irã em 1935 por meio de um decreto de Reza Xá.
Ao pé da letra, o termo Irã quer dizer “terra dos arianos”. Sim, os arianos tem
origem nesta região, diferentemente da narrativa nazista.¹²¹ Etnicamente, os
iranianos não são árabes, mas, sim, persas. Do ponto de vista religioso, a maioria
é xiita – para explicar o porquê, é preciso fazer um pequeno parêntese na
história.

Em 1501, Ismael I inaugurou a dinastia Safávida, que durou até 1722. Uma de
suas ações mais importantes, que se faz presente até hoje, foi a conversão da
Pérsia, à época habitada majoritariamente por sunitas, ao xiismo – não foi algo
simples, e houve perseguições.

Engana-se quem pensa que a motivação era religiosa. Por trás da atitude de
Ismael I, estava a política, mais especificamente o Império Otomano. Como os
rivais otomanos eram sunitas, o objetivo era diferenciar e unificar os persas por
meio do xiismo.¹²²
De volta ao século 20, Reza Xá buscou modernizar o Irã. Uma das medidas foi
justamente afastar a religião do Estado e tornar a sociedade mais secular. Ele era
autoritário – silenciava e reprimia duramente a oposição. O modus operandi
seguiu com seu filho, Mohamed Reza Xá, que assumiu o poder em 1941.¹²³

Mas líderes opositores, como Mohamed Mossadegh, eram resistentes. Mossadeh


liderou um movimento popular a favor da nacionalização da Anglo-Iranian Oil
Company, uma empresa britânica responsável pela exploração de petróleo no Irã.
Mais tarde, a companhia passou a se chamar British Petroleum, atualmente uma
das maiores do ramo.

Eleito “Homem do Ano” pela revista Time em 1951, Mossadegh conseguiu o


feito de conquistar democraticamente o cargo de primeiro-ministro do Irã.
Contrariados com os rumos que ele deu ao petróleo iraniano, Estados Unidos e
Reino Unido orquestraram um golpe de Estado em 1953 por meio da CIA e do
MI6, suas respectivas agências de inteligência.

Sem Mossadegh, a nacionalização do petróleo foi revertida, com metade das


receitas ficando com o Irã, enquanto a outra metade era dividida entre 17
empresas, majoritariamente americanas e britânicas. Estabeleceu-se, então, “uma
ditadura, com apoio militar, financeiro e de pessoal dos Estados Unidos”.¹²⁴

À época, o governo israelense desenvolveu uma estratégia, chamada Doutrina da


Periferia,¹²⁵ contra o nacionalismo árabe. Em outras palavras, uma aliança entre
Israel, Turquia e Irã, alguns dos principais países não árabes da região. O Irã,
portanto, era aliado não só dos americanos, mas também dos israelenses, uma
situação bem diferente dos dias de hoje.

Tudo mudou a partir de 1979. No final deste ano, a União Soviética invadiu o
Afeganistão, cujas consequências já foram abordadas nos capítulos anteriores.
Antes, houve outros acontecimentos importantes no Oriente Médio.

No final de novembro, uma revolta de xiitas em Qatif, no leste da Arábia


Saudita, resultou em dezenas de mortos. A propósito, as maiores reservas de
petróleo saudita, apesar de se tratar de um país majoritamente sunita, estão
localizadas em uma região habitada principalmente por xiitas.¹²

Também na Arábia Saudita, mais ou menos no mesmo período da revolta em


Qatif, um grupo armado de cerca de 500 pessoas, adotando um tom messiânico,
invadiu a Grande Mesquita de Meca e acusou a família real saudita de
profanação. Ao longo de duas semanas, pessoas foram feitas reféns e cetenas
morreram até que o governo da Arábia Saudita, com ajuda da França,
conseguisse retomar o controle da mesquita.

E, no início de 1979, ocorreu, no Irã, o que mudou os rumos do país: a


Revolução Islâmica. Em setembro do ano anterior, especialistas da CIA
afirmaram, em um relatório, “que, apesar do seu governo autocrático, o Xá
presidia uma dinastia estável que duraria, pelo menos, mais uma década”. Não
passou de quatro meses.¹²⁷

Exilado desde 1964, Ruhollah Khomeini liderou a oposição religiosa e


aproveitou o crescente descontentamento da população devido à desigualde e
reforma agrária. Ele comandou a Revolução Islâmica, que depôs o Xá e
instaurou o regime dos aiatolás. E o Estado retomou o controle do petróleo.

Quando voltou ao Irã, Khomeini foi recebido por uma multidão no aeroporto.
Meses depois, tornou-se oficialmente o líder supremo do país. Morto em 1989,
foi substituído por Ali Khamenei, que segue no poder até o momento. Com a
Revolução Islâmica, o governo iraniano se transformou em uma teocracia rival
de países como Estados Unidos, Israel e Arábia Saudita, o que naturalmente
alterou a dinâmica geopolítica da região.

Apesar de ser uma ditadura, o Irã tem eleições com algum grau de liberdade
entre os partidos que são autorizados a disputar. O líder supremo tem o direito de
vetar candidaturas. Logo, ninguém espera candidatos que sejam contrários ao
regime. Os que são autorizados podem até ter pautas diferentes – por exemplo,
apoiar ou não o acordo nuclear –, mas estarão sempre subordinados ao aiatolá.

A Revovução Islâmica fez Saddam Hussein temer algo semelhante no Iraque,


que, como vimos, tem uma população xiita concentrada no sul do país, em uma
região de fronteira com o Irã. Com medo de uma expansão da influência
iraniana, o governo iraquiano deu o pontapé inicial da guerra Irã-Iraque, que
começou em 1980 e durou até 1988, sem um vencedor claro diante das enormes
baixas de ambos os lados.

Nesse conflito, o Iraque teve apoio dos Estados Unidos, já que, do outro lado,
estava o agora rival Irã. Na primeira Guerra do Golfo (1990-1991) – aquela que
marcou o início das hostilidades da Al Qaeda em relação aos EUA, lembram? –,
os governos americano e iraquiano já estavam em lados opostos. Pouco mais de
uma década depois, os Estados Unidos invadiram o Iraque e derrubaram
Saddam.

A teoria dos complexos de segurança, elaborada pelo britânico Barry Buzan e o


dinamarquês Ole Waever, é uma das principais referências nos estudos sobre
relações internacionais. O complexo de segurança do Oriente Médio é divido em
três subcomplexos, sendo um deles o do Golfo, que, com a desestabilização do
Iraque ao longo dos anos, sofreu uma ruptura.

No subcomplexo de segurança do Golfo, a estrutura de rivalidade era triangular,


com Arábia Saudita, Irã e Iraque concentrando as forças. A queda de Saddam
apenas confirmou a mudança geopolítica da região. A partir de então, os dois
polos passaram a ser os sauditas, de um lado, e os iranianos, do outro.¹²⁸

A queda de Saddam também acelerou o processo de projeção da influência


iraniana no Oriente Médio. Outro fator que contribuiu foi a invasão americana
do Afeganistão. O Irã, então, se viu exatamente entre dois países invadidos pelos
Estados Unidos e logo pensou que seria o próximo.

Os houthis, no Iêmen, e o Hezbollah, no Líbano, além do apoio ao governo sírio


e a grupos xiitas no Iraque, são alguns dos exemplos dessa política externa do
Irã. E quem classifica o Hezbollah ou os houthis como terroristas, pode também
afirmar que o governo iraniano apoia o terrorismo. Quem não classifica, claro,
diz o contrário.

Criada em 1979 pelo aiatolá Khomeini, a Guarda Revolucionária do Irã funciona


como um “Exército paralelo”, que “conquistou um formidável poder econômico
e político que o converteu em um verdadeiro Estado dentro do Estado e na ponta
de lança da política do Irã na região”.¹² A projeção internacional é realizada
especialmente por meio da sua Força Quds – cujo significado é Força de
Jerusalém –, comandada até o início de 2020 por Qasem Soleimani, morto em
um bombardeio dos Estados Unidos.

Enquanto isso, a Arábia Saudita naturalmente rivaliza. Trata-se, em outras


palavras, de uma Guerra Fria local. Iranianos e sauditas não se enfrentam
diretamente, mas têm interesses diferentes em diversos países da região. No caso
do Líbano, para ilustrar, a Arábia Saudita chegou a deter, em 2017, o primeiro-
ministro libanês, Saad Hariri – que, aliás, nasceu em solo saudita –, forçando-o a
renunciar, dias após ter se reunido com lideranças do Hezbollah.¹³
A questão religiosa, de sunitas e xiitas, é importante para entender a rivalidade
entre Arábia Saudita e Irã, “mas trata-se menos de uma causa e mais de uma
consequência”. Sauditas e iranianos “mobilizam as identidades sunita e xiita
para tentar avançar seus interesses em meio a um processo de reconfiguração da
segurança no Oriente Médio”.¹³¹ A disputa é, acima de tudo, geopolítica, com
cada lado buscando se consolidar como a maior potência da região.

Sei que, no primeiro capítulo, exclui o Cáucaso do que considero como Oriente
Médio. Entretanto, os recentes embates entre Azerbaijão e Armênia, no final de
2020, ajudam a ilustrar como a religião não explica tudo. Irã e Azerbajião são
ambos de maioria xiita, mas o governo iraniano apoiou a Armênia, de maioria
cristã, ao passo que o Azerbaijão recebeu apoio da Turquia, de maioria sunita.

Antes de 1979, quando o Irã ainda era aliado dos Estados Unidos, os dois países
também tinham parcerias no setor nuclear, hoje o principal assunto na pauta
entre eles – mas, agora, por serem adversários.

As primeiras conversas começaram em 1957, ano em que foi assinado um


acordo que permitia investimento americano na indústria nuclear iraniana. Nos
anos seguintes, “os Estados Unidos forneceram combustível nuclear e
equipamentos que o Irã usou para iniciar suas pesquisas”. Países europeus, como
França e Alemanha, também estiveram envolvidos em parcerias na década de
1970.¹³²

Nos anos anteriores à Revolução Islâmica, as potências ocidentais já


suspeitavam das ambições do Irã em enriquecer urânio não só para fins pacíficos
– geração de energia, por exemplo –, mas também para construir uma bomba
nuclear, o que levou ao cancelamento de algumas parcerias.

Com o novo governo iraniano em 1979, partiu do próprio Irã a iniciativa de


cancelar todos os contratos. Pouco tempo depois, o programa nuclear foi
reativado e, ao longo dos anos 1990, acordos com China e Rússia o mantiveram
em funcionamento.

No início do século 21, surgem revelações de pesquisas e enriquecimento de


urânio em instalações secretas. Com isso, questionamentos sobre a real intenção
do Irã em desenvolver seu programa nuclear resultaram nas primeiras sanções,
impostas pela ONU, em 2006.
Posteriormente, houve mais sanções. Estados Unidos, França e Rússia, por meio
do Grupo de Viena, tentaram negociar um acordo com o Irã. Não foi para frente.
Pouco tempo depois, em maio de 2010, o Brasil e a Turquia divulgaram a
Declaração de Teerã, que obteve o apoio do governo iraniano.

No entanto, a iniciativa de Brasil e Turquia não foi aceita pelas grandes


potências. Os dois países buscaram preencher um vácuo na política internacional
para se colocarem como negociadores legítimos, mas foram criticados por uma
suposta ingenuidade. O Irã, segundo os críticos, queria apenas ganhar tempo
para evitar novas sanções.¹³³

Logo, este acordo, entre países do Sul Global – ou seja, em desenvolvimento –,


também não foi para frente. E novos embargos foram impostos, como a da União
Europeia, em 2012, que proibia contratos com o Irã na área petrolífera.

Mas as tentativas para solucionar a questão nuclear por vias diplomáticas não
pararam. Em 2013, Irã e Estados Unidos começaram a negociar secretamente.
Os encontros tiveram lugar em Omã, um dos países mais diplomáticos do
Oriente Médio. Em 2015, finalmente foi assinado o Plano de Ação Conjunto
Global (JCPOA, na sigla em inglês).

O JCPOA, assinado entre Irã, Estados Unidos, Reino Unido, França, Rússia,
China e Alemanha, além da União Europeia, estabeleceu “parâmetros detalhados
para o controle externo do programa nuclear iraniano em troca da normalização
das relações comerciais e diplomáticas do país”¹³⁴. Em outras palavras, o Irã
aceitou condições impostas pelas grandes potências para frear seu programa
nuclear em troca da retirada de sanções, responsáveis por grandes consequências
negativas para a economia do país.

O acordo foi assinado ainda durante o governo de Barack Obama. Em 2018, já


com Donald Trump, os Estados Unidos se retiraram do JCPOA e reativaram, de
forma unilateral, as sanções contra o Irã – que, por isso, deixou de seguir alguns
dos parâmetros anteriormente estabelecidos. “O acordo”, afirmou o então
presidente americano, “se baseava numa gigantesca ficção: que um regime
assassino desejava só um programa nuclear pacífico”.¹³⁵ Os demais signatários
não concordaram com a retirada dos EUA.

A decisão de Trump ilustra uma postura de política externa mais isolacionista do


que o comum nos Estados Unidos. O novo governo americano, de Joe Biden,
tem um comportamento diferente, e quer dar mais atenção às questões
multilaterais. No primeiro dia como presidente, por exemplo, ele voltou ao
Acordo de Paris, um tratado ambiental assinado por todos os países do mundo do
qual os EUA se retiraram também durante a gestão anterior.

Contudo, não se volta ao JCPOA tão facilmente por meio de um decreto, como
foi o caso do Acordo de Paris. É preciso negociar com os iranianos. No
momento em que escrevo estas palavras, em fevereiro de 2021, o assunto está
quente, e o que for dito agora pode ficar velho rápido. O Irã passa por eleições
em junho e, se não houver uma decisão até lá, os rumos das negociações podem
mudar, dependendo de quem vencer. A linha mais moderada, atualmente no
poder, está mais aberta ao diálogo. A linha mais dura, que busca retomar poder,
tende a dificultar.

Nos últimos meses de seu mandato, Trump liderou uma outra importante
iniciativa em relação ao Oriente Médio que diz muito não só sobre a “Guerra
Fria” entre Arábia Saudita e Irã, mas também sobre o conflito entre Israel e
Palestina, que será explicado no próximo capítulo.

116 YOUSSEF, Katia. ‘Death of a Princess’: Adultery and execution in Saudi


Arabia. The New Arab, 04 fev. 2019. Disponível em:
<https://english.alaraby.co.uk/english/indepth/2019/2/3/death-of-a-princess-
adultery-and-execution-in-riyadh>. Acesso em: 12 fev. 2021.

117 SEIB, Philip. Hegemonic No More: Western Media, the Rise of Al-Jazeera,
and the Influence of Diverse Voices. Oxford: International Studies Review, 2005.

118 About Saudi Arabia. The Embassy of the Kingdom of Saudi Arabia.
Washington, D.C. Disponível em: <https://www.saudiembassy.net/history>.
Acesso em: 13 fev. 2021.

119 MARTIN, Will. From an unexplored desert to a near $2 trillion IPO: The
86-year history of Saudi Aramco in pictures. Business Insider, 11 dez. 2019.
Disponível em: <https://www.businessinsider.com/the-history-of-saudi-aramco-
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120 Aramco se torna empresa com maior valor de mercado do mundo; veja
ranking. G1, 11 dez. 2019. Disponível em: <
https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/12/11/aramco-se-torna-empresa-
com-maior-valor-de-mercado-do-mundo-veja-ranking.ghtml>. Acesso em: 13
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121 GUIMARÃES, Márcio Renato. O Termo Ariano e a narrativa Indo-


Europeia. Cascavel: Línguas & Letras, 2018.

122 SMYTH, Gareth. Removal of the heart: how Islam became a matter of state
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<https://www.theguardian.com/world/2016/sep/29/iran-shia-islam-matter-of-
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123 LEVY, Janey. Iran and the Shia. The Rosen Publishing Group; Nova York,
2013.

124 LATSCHAN, Thomas. Há 60 anos, golpe derrubava premiê iraniano


Mohamed Mossadegh. Deutsche Welle, 19 ago. 2013. Disponível em:
<https://www.dw.com/pt-br/h%C3%A1-60-anos-golpe-derrubava-
premi%C3%AA-iraniano-mohamed-mossadegh/a-17023074>., Acesso em: 15
fev. 2021.

125 ZISSER, Eyal. Israel and the Arab World – Renewal of the Alliance of the
Periphery. Atenas: Athens Journal of Mediterranean Studies, 2019.

126 SCHWARZ, Jon. One Map That Explains the Dangerous Saudi-Iranian
Conflict. The Intercept, jan 06 2016. Disponível em:
<https://theintercept.com/2016/01/06/one-map-that-explains-the-dangerous-
saudi-iranian-conflict/>.. Acesso em: 15 fev. 2021.

127 COGGIOLA, Osvaldo. Trinta anos da Revolução Islâmica. Disponível em:


<https://www.researchgate.net/profile/Osvaldo_Coggiola/publication/287205583_TRINTA_A
Acesso em: 16 fev. 2021.

128 LIMA, Murillo Silva de. Subcomplexo regional de segurança do Golfo


Pérsico: uma mudança de polaridade? Conjuntura Global, 2016.

129 ESPINOSA, Ángeles. A Guarda Revolucionária do Irã, muito mais que um


corpo de elite. El País, 13 abr. 2019. Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/12/internacional/1555086967_463588.html
>. Acesso em: 16 fev. 2021.

130 CHACRA, Guga. Exclusivo: premier do Líbano foi forçado a renunciar e é


refém da Arábia Saudita. O Globo, 14 nov. 2017. Disponível em:
<https://oglobo.globo.com/mundo/exclusivo-premier-do-libano-foi-forcado-
renunciar-e-refem-da-arabia-saudita-22068650 >. Acesso em: 16 fev. 2021.

131 LIMA, José Antonio. Conflito entre Arábia Saudita e Irã vai muito além da
questão religiosa, analisa José Antonio Lima. Poder360, 22 set. 2019. Disponível
em: <https://www.poder360.com.br/opiniao/internacional/conflito-entre-arabia-
saudita-e-ira-vai-muito-alem-da-questao-religiosa-analisa-jose-antonio-lima/ >.
Acesso em: 16 fev. 2021.

132 BRUNO, Greg. Iran’s Nuclear Program. Council on Foreign Relations, 10


mar. 2010. Disponível em: <https://www.cfr.org/backgrounder/irans-nuclear-
program>. Acesso em: 16 fev. 2021.

133 MACEDO, Maria Clara Guerra Gomes Pereira. Declaração de Teerã: a


iniciativa turco-brasileira

para a questão nuclear iraniana. Brasília: UnB, 2014.

134 TOURINHO, Marcos. O acordo nuclear com o Irã: o papel e as


contribuições das sanções internacionais. Política externa, 2015

135 AHRENS, Jan Martínez. Trump rompe pacto nuclear com o Irã e reimpõe
sanções. El País, 09 mai. 2018. Disponível em: <>. Acesso em: 18 fev. 2021.
O conflito entre Israel e Palestina tem solução?

Em setembro de 2020, Israel assinou acordos com Emirados Árabes Unidos e


Bahrein. Não se trata necessariamente de acordos de paz, mas, sim, de uma
oficialização de relações diplomáticas, o que não deixa de ser importante. Esses
países nunca estiveram em guerra e, aliás, já tinham canais de diálogo abertos
nos bastidores. A situação, portanto, é diferente de quando Israel assinou
acordos, esses sim de paz, com Egito, em 1979, e Jordânia, em 1994, dois países
fronteiriços com os quais houve conflito armado.

Mais tarde, Sudão e Marrocos também oficializaram suas relações diplomáticas


com Israel. Em todos os casos, os Estados Unidos, ainda durante o mandato de
Donald Trump, foram os principais mediadores das negociações entre os
governos israelense e desses países árabes, que têm diferentes interesses
envolvidos.

O Marrocos, por exemplo, teve, em troca, sua soberania em relação ao Saara


Ocidental reconhecida pelos Estados Unidos. Já o Sudão, por sua vez, teve seu
nome retirado da lista de países que apoiam o terrorismo. Nos 1990, o governo
sudanês chegou a dar abrigo para membros da Al Qaeda, inclusive o próprio
Osama bin Laden.

Em 2019, houve mudança no comando do país por meio de um golpe militar.


Omar al-Bashir deixou o poder depois de quase 30 anos, e o novo governo
queria uma rápida melhora na economia. Estar fora da lista de apoaidores do
terrorismo significa ter sanções retiradas, ou seja, possibilita a entrada de
investimento estrangeiro.

Nos casos de Emirados Árabes Unidos e Bahrein, o interesse tem a ver com o
Irã, inimigo em comum de ambos os países e de Israel. Em outras palavras, o
inimigo do meu inimigo é meu amigo. Para a Arábia Saudita, ainda parece estar
cedo para oficializar relações com os israelenses, mas o governo saudita com
certeza deu o aval a seus aliados do Golfo.
Além disso, todo mundo sabe que o príncipe herdeiro da Arábia Saudita,
Mohamed bin Salman – ou MBS –, e o primeiro-ministro de Israel, Benjamin
Netanyahu – que segue no cargo pelo menos até o momento em que escrevo
estas palavras, antes de novas eleições já agendadas –, mantêm conversas nos
bastidores. Em novembro de 2020, os dois se encontraram em segredo. A
revelação do encontro só foi possível devido ao rastreamento de voo. Afinal, não
é todo dia que um avião anteriormente utilizado por Netanyahu sai de Israel
rumo a uma cidade da Arábia Saudita onde está MBS.¹³

Nos anos 1970, como visto no capítulo anterior, o governo saudita liderou uma
ação da Opep para aumentar o preço do petróleo em resposta à aliança entre
Israel e Estados Unidos na guerra do Yom Kippur contra países árabes. Hoje,
alguns países árabes e Israel estão do mesmo lado. Isso mostra como a
prioridade, para esses países, mudou. Agora, o foco está no Irã. Enquanto isso, o
conflito israelo-palestino segue sem ser resolvido. Mesmo assim, é um dos
assuntos mais importantes, e complexos, do Oriente Médio. Há solução?

Em 1917, o então secretário de Relações Exteriores do Reino Unido, Althur


James Balfour, enviou uma carta ao Lorde Rotschild com os seguintes dizeres:
“Tenho um grande prazer em poder comunicar-lhe, em nome do governo de Sua
Majestade, a seguinte declaração de simpatia ao movimento judaico-sionista
[...]: ‘O governo de Sua Majestade vê com bons olhos a construção de uma
pátria para os judeus na Palestina, e fará seus maiores esforços para facilitar a
realização deste objetivo’” (tradução livre).¹³⁷

A Declaração Balfour, como ficou conhecida, foi a primeira vez que uma grande
potência demonstrou apoio ao sionismo, um movimento que “partia do princípio
de que os judeus são um povo e não apenas uma comunidade religiosa e de que
as repetidas perseguições, pressões e desvantagens sofridas por esse povo
poderiam ser evitadas com a fundação de um Estado judeu”.¹³⁸

O Reino Unido, que só obteve controle da Palestina a partir da década de 1920 –


depois da Declaração Balfour –, tinha interesse político ao corroborar com o
sionismo: queria o apoio dos judeus contra o Império Otomano durante a
Primeira Guerra Mundial.

A Organização Sionista Mundial foi fundada por Theodor Herzel em 1897.


Historicamente, os judeus foram perseguidos em diferentes momentos, como
durante a Inquisição na Espanha a partir do século 15 ou os pogroms na Rússia
no século 1, além, é claro, do holocausto. A propósito, muitos judeus que
fugiram da Espanha foram para o Império Otomano, de maioria muçulmana,
onde viviam em condições melhores.

O Estado judeu não precisava ser necessariamente na Palestina, que, à época da


Declaração Balfour, ainda era uma província otomana. Houve ideias de criá-lo
em Uganda, na África, e até mesmo na Argentina. A Palestina, contudo, tinha
um apelo tanto reliogoso quanto histórico por ser a terra de origem dos judeus.
Alguns, inclusive, moravam lá nesse período.

Em 1931, 82% da população da Palestina era árabe. Até 1946, esse número caiu
para 67%. Enquanto isso, os judeus, em 1931, representavam 16% da população
e, em 1946, praticamente dobraram de proporção, atingindo 31%. Isso mostra
como a migração judaica para a Palestina, que enfrentou resistência dos árabes,
aumentou ao longo dos anos, inclusive durante o holocausto (1941-1946).¹³

Oficialmente, o Estado de Israel só foi criado em 1948, após a Assembleia Geral


da ONU aprovar, em reunião presidida pelo diplomata brasileiro Oswaldo
Aranha, o Plano de Partilha da Palestina. Antes de tratarmos deste episódio e
suas consequências, vale a pena, em razão do contexto pós-holocausto, abordar
brevemente a questão do antissemitismo e a diferença em relação ao
antissionismo.

O termo semita abrange vários povos, até mesmo os árabes, mas o


antissemitismo ganhou um significado que diz respeito especificamente aos
judeus. Ser antissemita, como foi Hitler, é o mesmo que ser contra os judeus. É,
portanto, um preconceito, que deve ser combatido em todas as suas formas.

O sionismo, como vimos, está mais ligado a uma questão política. Ao pé da


letra, ser antissionista é o mesmo que ser contra a existência do Estado de Israel.
São dois conceitos, apesar de diferentes, que se misturam com frequência.

É bem verdade que muitos antissemistas utilizam o antissionismo como pretexto.


Em outras palavras, dizem ser contra o Estado de Israel, mas, na prática, são
contra os judeus – algo extremamente condenável. Em uma lógica inversa, o
próprio Oswaldo Aranha, por incrível que pareça, é acusado de ser
antissemita.¹⁴

Hoje, sendo bem realista, é praticamente impossível o Estado de Israel sumir do


mapa. Mesmo assim, o país, como qualquer outro, é passível de crítica. E aqui
surge outro problema – em uma escala menor do que o preconceito contra
judeus. Alguns defensores de Israel não toleram críticas e logo as classificam
como antissemitismo.¹⁴¹

Ora, ações equivocadas há por toda parte. Debatê-las, sem preconceitos, faz
parte do jogo democrático – e Israel é uma democracia, embora imperfeita.
Aliás, é assim que se evolui. Em resumo, penso que o antissemitismo deve ser
sempre condenado e nunca usado como justificativa para deslegitimar qualquer
crítica a Israel. Afinal, é perfeitamente possível defender a existência do país e,
ao mesmo tempo, reconhecer que há erros em determinadas políticas, sem que
isso signifique um ataque aos judeus.

Para deixar a situação ainda mais confusa, existe um grupo de judeus


ultraortodoxos, chamado Neturei Karta, que apoia a causa palestina e é contra a
existência do Estado de Israel. Seus membros são judeus antissionistas. Há uma
motivação religiosa por trás de um posicionamento como esse. Na visão deles,
“os judeus estão proibidos de ter um Estado próprio até que não aconteça o
advento do messias”.¹⁴²

A Resolução 181 da Assembleia Geral da ONU¹⁴³, que aprovou o Plano de


Partilha da Palestina em 1947, previa a criação de dois países: Israel, para os
judeus, e Palestina, para os árabes. A iniciativa surge em um contexto de pós-
Segunda Guerra Mundial. Logo, posterior ao holocausto, o que contribuiu para a
opinião pública ser favorável à criação de um Estado judeu.

De acordo com a resolução, Jerusalém deveria assumir um caráter de regime


internacional especial – corpus separatum – e ser administrada não por Israel ou
Palestina, mas, sim, pela própria ONU. O status de Jerusalém, cidade sagrada
para judeus, muçulmanos e cristãos, é um tema que voltou a ganhar grande
repercussão recentemente.

No final de 2017, o então presidente americano, Donald Trump, reconheceu


Jerusalém como capital de Israel e, mais tarde, transferiu a embaixada dos
Estados Unidos, anteriormente em Tel Aviv, para lá. Um movimento que foi
seguido por pouquíssimos países, mas que era impossível passar desapercebido
em razão da importância dos EUA.

Ainda em 2017, segundo o jornalista brasileiro Jamil Chade¹⁴⁴, Trump tentou


convencer o Brasil, sob a gestão do ex-presidente Michel Temer, a fazer o
mesmo. Não deu certo. Em janeiro de 2018, eu entrevistei o embaixador de
Israel no Brasil, Yossi Shelley, sobre o assunto. Ele me disse que ficaria feliz “se
o Brasil reconhece Jerusalém como a capital de Israel”, mas que mudar esse
posicionamento não era a sua missão. “Nao cabe a mim recomendar o que deve
ser feito.”¹⁴⁵

Poucos meses depois, Jair Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil. E uma de
suas principais vontades em política externa era transferir a embaixada brasileira
em Israel de Tel Aviv para Jerusalém. Agradaria o eleitorado conservador
evangélico devido a questões religiosas. O setor agropecuário, que tem negócios
com países árabes, pressionou. No fim, a mudança não ocorreu.

A questão não é simples. Israel reivindica Jerusalém como sua capital


indivisível, enquanto a Palestina reivindica a parte oriental da cidade. A
comunidade internacional, em geral, considera Tel Aviv como a capital
israelense e Ramallah como a capital palestina.

Desde 1947, ano da Resolução 181 da Assembleia Geral da ONU – que deveria
ter servido como uma referência do ponto de vista do direito internacional –,
esse e outros assuntos sobre Israel e Palestina não foram resolvidos. Apesar de
serem minoria, os judeus, conforme a resolução, ficaram com a maior parte do
território palestino. Os árabes não aceitaram e, assim, teve início o primeiro de
muitos conflitos armados entre os dois lados.

O Reino Unido se retirou da Palestina em maio de 1948. No dia 14 deste mês,


David Ben-Gurion declarou a independência de Israel. No dia seguinte, países
árabes, como Egito, Jordânia, Síria e Líbano, atacaram. O conflito durou pouco
menos de um ano, e o exército israelense foi declarado vencedor.

Como consequência, o Egito anexou a Faixa de Gaza. E a Jordânia ficou com a


Cisjordânia. O Estado palestino, que, segundo a resolução da ONU, deveria
incluir estes dois territórios, não existiu na prática. Para a Palestina, esta guerra é
considerada uma “catástrofe” (nakba).
Cerca de 700 mil refugiados palestinos precisaram deixar suas casas – hoje, são
mais de 5 milhões. Ao longo dos anos, passaram a afetar diretamente a política
dos países que o receberam, como Jordânia e Líbano. A guerra civil libanesa
(1975-1990), por exemplo, tem como uma de suas causas os refugiados
palestinos – em sua maioria, muçulmanos sunitas –, que alteraram a demografia
de um país dividido religiosamente.

Enquanto isso, o Estado de Israel ficava cada vez mais consolidado. As


instituições políticas se fortaleceram e, com a chegada de judeus de outros
países, inclusive dos árabes – etnicamente árabes, mas que seguem o judaísmo –,
a população dobrou em poucos anos.

As feridas, contudo, não se fecharam. Em 1967, devido às crescentes tensões,


tem início um novo confltio, também conhecido como Guerra dos Seis Dias.
Israel venceu de forma acachapante, e anexou a Faixa de Gaza e a Cirjordânia,
além das Colinas de Golã, na Síria, e a Península do Sinai, no Egito, uma região
que, apesar de majoritariamente desértica, tem uma localização geográfica
estratégica por causa do canal de Suez.

Em 1973, começou a guerra do Yom Kippur, mencionada anteriormente em


razão de suas consequências para o mercado de petróleo. O Yom Kippur é um
dos feriados mais importantes para os judeus. O conflito leva este nome porque
ocorreu durante sua celebração, mas também é chamado de guerra do Ramadã
ou guerra de outubro. No início, as forças árabes pegaram Israel de surpresa. O
exército israelense logo contra-atacou e venceu mais uma guerra, esta com
menos de três semanas de duração.

Em 1979, após negociações intermediadas pelos Estados Unidos, Israel e Egito


assinaram um acordo de paz. Até então, não havia qualquer tipo de
reconhecimento da existência do Estado de Israel por parte de algum país árabe.
Com o acordo, o Egito, que voltou a controlar a Península do Sinai em 1982,
passou a ser o primeiro.
Evolução territorial desde o Plano de Partilha da ONU até o acordo entre Israel e
Egito

Imagem: João Victor Luzio com base na BBC News¹⁴

Em 1987, uma revolta contra a ocupação de Israel se iniciou na Faixa de Gaza e


rapidamente chegou à Cisjordânia. Chamaram a atenção de todo o mundo as
imagens de palestinos jogando pedras contra militares israelenses. A primeira
intifada, como a revolta ficou conhecida, resultou em milhares de mortes, a
grande maioria do lado palestino.

Ao todo, a revolta durou quase seis anos. Só terminou em 1993, com a assinatura
com os Acordos de Oslo.¹⁴⁷ O então primeiro-ministro de Israel, Yitzhak Rabin,
e o ex-líder da Organização para a Libertatação da Palestina (OLP), Yasser
Arafat, concordaram em um série de questões. Entre elas, a retirada gradual de
tropas israelenses da Faixa de Gaza e da Cisjordânia e o direito de os palestinos
se autogovernarem.

Além disso, Israel e OLP se reconheceram mutualmente. Arafat, então, assumiu


a Presdiência da Autoridade Palestina em 1994, mesmo ano em que os governos
israelense e jordaniano celebraram um tratado de paz. No ano seguinte, foi
assinado o Oslo II, um novo acordo que dava continuidade às tratativas e
possibilitou, por exemplo, a realização de eleições legislativas.

Os Acordos de Oslo, no início, animaram quem acreditava na paz. No entanto,


eles não vingaram. No final de 1995, Yigal Amir, um extremista judeu que se
opunha às negociações, assassinou Yitzhak Rabin. Ele alegou motivações
religiosas e disse ter matado o primeiro-ministro israelense “pela glória de
Deus”.¹⁴⁸ Se este foi um ato terrorista ou não, depende, claro, de quem responde.

Alguns dos termos estabelecidos pelos Acordos de Oslo, como a retirada de


tropas israelentes, não foram colocados em prática por inteiro ao longo dos anos.
E em 2000, uma visita, tida como provocativa, de Ariel Sharon, então líder do
partido Likud, à Esplanada das Mesquitas foi o estopim para o início da segunda
intifada. Sharon afirmou que o local, sagrado para muçulmanos e judeus,
permaneceria sob controle israelense. A segunda intifada acabou em 2005,
superando o número de mortes da primeira.

Além das intificadas e dos outros conflitos mencionados, convém destacar a


participação de Israel nas guerras do Líbano. Anos antes dos Acordos de Oslo, a
Organização para a Libertação da Palestina tinha sua sede na Jordânia. No início
da década de 1970, contudo, houve embates, em um episódio conhecido como
Setembro Negro, entre o exército jordaniano e a OLP, que transferiu sua base
para o Líbano, onde seus militantes se somaram aos milhares de refugiados
palestinos que já estavam lá.

Como vimos anteriormente, a presença de palestinos, majoritariamente


muçulmanos sunitas, em território libanês ajudou a agravar as tensões entre os
diferentes grupos religiosos do país, o que resultou em uma guerra civil. Em
1982, quando o exército israelense invade e ocupa parte do Líbano, Israel tem o
apoio do Exército do Sul do Líbano, um grupo paramilar composto por cristãos
maronitas, que se opõe aos palestinos e também ao Hezbollah.

A ocupação israelense na região sul do Líbano durou até 2000. Neste ano,
ocorreu o que provavelmente pode ser considerada a única derrota de Israel para
algum grupo da região. No caso, o Hezbollah, que, com sua força maior do que o
próprio exército libanês, contribuiu para a retirada das tropas israelenses.

Em 2006, Israel e Hezbollah voltaram a se enfrentar em um novo conflito, após


o grupo libanês sequestrar dois soldados israelenses. As baixas do lado do
Líbano foram bem maiories do que de Israel, e as tensões só diminuiram depois
de mais de um mês por meio de um cessar-fogo.

Para Israel, o Hezbollah é uma extensão do Irã, ou seja, é como se houvesse


fronteira terrestre entre israelenses e iranianos, que, de fato, veem o grupo
libanês como essencial para a sua política externa na região. Nos últimos anos,
houve momentos em que as tensões entre ambos voltaram a crescer. Não ocorreu
um novo conflito armado, mas a possibilidade de uma outra guerra sempre é
levada em consideração.

A Cisjordânia e a Faixa de Gaza, dois territórios que, juntos, deveriam formar o


Estado palestino, estão divididos também do ponto de vista político. Isso porque
quem controla o Cisjordânia é o Fatah, enquanto o Hamas está no comando da
Faixa de Gaza. E Fatah e Hamas são inimigos entre si. Quem, de fato, representa
os palestinos?

O Fatah é um partido político fundado em 1959 por Yasser Arafat, com uma
orientação nacionalista e laica, ou seja, sem influência religiosa. Já o Hamas,
criado em 1987, é um grupo com um braço político e outro armado.
Fundamentalista islâmico, tem origem na Irmandade Muçulmana.

Israel tem uma participação na rivalidade entre esses dois grupos palestinos. Na
criação do Hamas, o governo israelense tolerou e até apoiou algumas de suas
atividades porque, à época, o principal inimigo era o Fatah. Por isso, o Hamas,
atualmente considerado uma ameaça maior – como provam as operações de
Israel na Faixa de Gaza em 2008, 2012 e 2014 –, era visto como uma alternativa
para limitar a atuação do Fatah.¹⁴

Em 2006, o Hamas venceu as eleições legislativas na Palestina. A partir daí, as


diferenças com o Fatah ficaram ainda mais evidentes. No ano seguinte, a Faixa
de Gaza passou a estar sob o domínio do Hamas. E a Cisjordânia continuou nas
mãos do Fatah.

2006 foi também o ano da última eleição presidencial nos territórios palestinos.
Ambos os grupos não conseguiram organizar uma nova votação até que, em
fevereiro de 2021 – mais uma vez algo importante que acontece enquanto este
livro é escrito –, concordaram com um pleito legislativo no dia 22 de maio, e
outro presidencial no dia 31 de julho.¹⁵

Ainda há muita cautela antes de considerar este fato um sucesso. Não se tem
certeza se as eleições vão realmente ocorrer – talvez quando o leitor e a leitora
lerem estas palavras isso já esteja resolvido. Uma nova votação pode dar mais
legitimidade a um dos grupos para falar em nome de todos os palestinos. De
qualquer forma, a questão palestina parece longe de ser resolvida.

Os refugiados palestinos poderão voltar para suas casas? Os palestinos que


moram em Israel terão os mesmos direitos dos israelenses? O muro entre Israel e
Cisjordânia deixará de existir? O bloqueio de Israel e Egito por água, terra e ar
contra Faixa de Gaza acabará? Todos os palestinos aceitarão a existência do
Estado de Israel? Ambos os lados sentarão para negociar em condições justas?
Quem falará em nome dos palestinos? E como ficará Jerusalém? Essas são
apenas algumas perguntas importantes sem respostas.

A solução de um só Estado é pouco provável. Neste caso, existiria um único


país, onde israelenses e palestinos viveriam juntos, com os mesmos direitos e
deveres, incluindo o de eleger representantes políticos. A solução de dois
Estados, praticamente um consenso na comunidade internacional, também
parece distante. Para tal, as perguntas do parágrafo anterior precisariam ser
respondidas da forma mais clara possível.

Além disso, atualmente, há os assentamentos israelenses na Cisjordânia, que, na


prática, tornam os territórios palestinos menores. A Palestina não controla todo o
seu “Estado”. A imagem a seguir ajuda a ilustrar como a Cisjordânia está
dividida, e deixa claro que a existência de um Estado palestino como proposto
no passado não é muito factível nos dias de hoje.
Assentamentos israelenses na Cisjordânia

Imagem: João Victor Luzio com base na Vox¹⁵¹

O conflito entre Israel e Palestina é mais entre povos ou nações do que entre
religiões. Claro que o fator religioso tem peso – a ideologia do Hamas, por
exemplo, não deixa mentir. Contudo, reduzir a questão a um embate de
muçulmanos contra judeus é errado e não ajuda a explicar a situação.

Vera Baboun e Janet Mikhail, ex-prefeitas de Belém e Ramallah,


respectivamente, são cristãs palestinas. Suha Arafat, viúva de Yasser Arafat, e
Luttif Afif, líder do ataque contra a delegação israelense nas Olimpíadas de
Munique, em 1972, são palestinos de origem cristã. Aliás, Luttif Afif também
era conhecido como Issa (Jesus em árabe). A população cristã da Palestina, e de
outros países da região, é frequentemente ignorada pelos cristãos do Ocidente.

O escritor israelense Amós Oz, que foi um ativista pela paz e defensor da
solução de dois Estados, diz que “os palestinos estão na Palestina porque a
Palestina é a única pátria e a única terra do povo palestino. Ao mesmo tempo,
“os judeus israelenses estão em Israel porque não existe outro país no mundo
onde os judeus, como um povo, uma nação, jamais poderiam chamar de lar”.¹⁵²

Para ele, trata-se de um conflito “entre o certo e o certo”, já que ambos os lados,
na sua visão, têm o direito de reivindicar o que reivindicam. Mais do que isso,
segundo Oz, “o conflito israelo-palestino acontece entre duas vítimas do mesmo
opressor”, em uma referência à Europa, “que colonizou o mundo árabe, o
explorou, o humilhou, tripudiou sobre sua cultura, o controlou e usou como um
playground imperialista [e] discriminou os judeus, os perseguiu, os atormentou e
por fim os assassinou em massa num crime de genocídio sem precedentes”.

O escritor afirma, ainda, que “dois filhos do mesmo pai cruel não
necessariamente amam um ao outro”. Pelo contrário, “eles enxergam um ao
outro na imagem exata do pai cruel”. Em outras palavras, alguns israelenses
veem nos palestinos o antissemitismo, enquanto alguns palestinos, por sua vez,
veem nos israelenses o colonizador.

Tendo a ser otimista – e gostaria de encerrar este livro de outra forma –, mas,
diante do atual cenário, e com as atuais lideranças políticas, sinceramente não
enxergo uma solução a curto prazo para o conflito entre Israel e Palestina.

136 HOLMES, Oliver. Netanyahu holds secret meeting with Saudi crown prince.
The Guardian, 23 nov. 2020. Disponível em:
<https://www.theguardian.com/world/2020/nov/23/benjamin-netanyahu-secret-
meeting-saudi-crown-prince-mohammed-bin-salman>. Acesso em: 19 fev. 2021.

137 The Balfour Declaration. Israel Ministry of Foreign Affairs. Disponível em:
<https://mfa.gov.il/mfa/foreignpolicy/peace/guide/pages/the%20balfour%20declaration.aspx>
Acesso em: 20 fev. 2021.

138 PHILIPP, Peter. 1917: Apoio britânico ao movimento sionista. Deutsche


Welle, 02 nov. 2020. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/1917-apoio-
brit%C3%A2nico-ao-movimento-sionista/a-365813>. Acesso em: 20 fev. 2021.

139 MCCARTHY, Justin. The Population of Palestine: Population History and


Statistics of the Late Ottoman Period and the Mandate. Nova York: Columbia
University Press, 1990.

140 ARAUJO, Luiz Antônio. Governo Bolsonaro: Quem foi Oswaldo Aranha,
brasileiro citado pelo presidente em seu discurso de chegada a Israel. BBC News
Brasil, 31 mar. 2019. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-
47759934>. Acesso em: 20 fev. 2021.

141 Netanyahu acusa TPI de antissemitismo após abertura de investigação por


crimes de guerra (VÍDEO). Sputnik Brasil, 03 mar. 2021. Disponível em:
<https://br.sputniknews.com/oriente_medio_africa/2021030317060444-
netanyahu-acusa-tpi-de-antissemitismo-apos-abertura-de-investigacao-por-
crimes-de-guerra-video/>. Acesso em: 06 mar. 2021.

142 BRIK, Daniela. Neturei Karta, judeus que apoiam os inimigos de Israel.
Exame, 31 dez. 2012. Disponível em: <https://exame.com/mundo/neturei-karta-
judeus-ultra-ortodoxos-que-apoiam-os-inimigos-de-israel/>. Acesso em: 20 fev.
2021.

143 RESOLUTION ADOPTED ON THE REPORT OF THE AD HOC


COMMITTEE ON THE PALESTINIAN QUESTION. United Nations.
Disponível em: <https://undocs.org/en/A/RES/181(II)>. Acesso em: 21 fev.
2021.

144 Disponível em:


<https://twitter.com/JamilChade/status/939814716691636224> Acesso em: 21
fev. 2021.

145 MARIANO, Marcelo. “Ficaríamos felizes se o Brasil reconhecesse


Jerusalém como a capital de Israel”, diz embaixador. Jornal Opção, 24 jan. 2018.
Disponível em: <https://www.jornalopcao.com.br/ultimas-noticias/ficariamos-
felizes-se-o-brasil-reconhecesse-jerusalem-como-capital-de-israel-diz-
embaixador-115459/>. Acesso em: 21 fev. 2021.

146 Israel’s borders explained in maps. BBC News, 15 set. 2020. Disponível em:
<https://www.bbc.com/news/world-middle-east-54116567>. Acesso em: 23 fev.
2021.

147 AGUIAR, Paula Hohgrawe de. Os acordos de Oslo (1993) : consequência e


causa das intifadas. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
2011.

148 JUERGENSMEYER, Mark. The Worldwide Rise of Religious Nationalism.


Journal of International Affairs, 1996.

149 THAROOR, Ishaan. How Israel helped create Hamas. The Washington Post,
30 jul. 2014. Disponível em:
<https://www.washingtonpost.com/news/worldviews/wp/2014/07/30/how-israel-
helped-create-hamas/>. Acesso em: 27 fev. 2021.

150 Palestinian factions agree on ‘mechanisms’ for long-delayed polls. Al


Jazeera, 09 fev. 2021. Disponível em:
<https://www.aljazeera.com/news/2021/2/9/palestinian-factions-agree-on-long-
delayed-elections>. Acesso em: 27 fev. 2021.

151 Disponível em: <https://www.researchgate.net/figure/Map-showing-the-


growth-of-the-Israeli-settlements-in-the-Occupied-West-Bank-
after_fig2_344474119>. Acesso em: 06 abr. 2021.

152 OZ, Amós. Como curar um fanático: Israel e Palestina: entre o certo e o
certo. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
Conclusão

É possível ter estabilidade no Oriente Médio? Depois de dez capítulos sobre


guerras, crises e afins, a resposta mais comum talvez seja não. De fato, trata-se
de uma região delicada, com um elevado grau de tensões. Sauditas e iranianos,
turcos e curdos, israelenses e palestinos e por aí vai.

Nesse contexto, imagine um país na fronteira com o Iêmen, localizado entre


Arábia Saudita e Irã, mais precisamente na entrada para o Golfo Pérsico, uma
das regiões mais ricas em petróleo do mundo, de onde este recurso natural sai
para abastecer China, Japão e Índia, mas também Europa Ocidental e América
do Norte.¹⁵³

Para deixar o cenário teoricamente mais instável, imagine que o líder deste país,
no poder há quase 50 anos, morre e deixa um envelope que indica seu sucessor,
já que não teve filhos e, portanto, ninguém poderia dizer ao certo quem tomaria
conta do governo.¹⁵⁴

Agora pare de imaginar. Esse país é real: Omã, definido em um episódio do


Globo Repórter como “o oásis da paz”.¹⁵⁵ Afinal, existe um país no Oriente
Médio sem guerras, ataques terroristas e crises políticas? Quem são as pessoas
que moram lá? Como elas vivem? O que comem? (Spoiler: as paisagens são de
cair o queixo, assim como diversos outros destinos turísticos da região)

A estabilidade de Omã se soma ao perfil diplomático do país, que busca se


manter neutro nas principais polêmicas do Oriente Médio e, mais do que isso, se
propõe e liderar negociações entre inimigos. Foi lá, por exemplo, onde
começaram, em 2013, as conversas secretas entre Estados Unidos e Irã sobre o
acordo nuclear. Por essa e por outras, Omã já foi chamado, inúmeras vezes, de a
“Suíça do Oriente Médio”, inclusive em um artigo da revista Harvard
International Review.¹⁵

Para padrões ocidentais, Omã não é necessariamente a Meca das liberdades


individuais, apesar de seguir o ibadismo, considerado uma das correntes mais
liberais do islã, que se contrapõe tanto ao sunismo quanto ao xiismo. Mas impor
padrões ocidentais, aqui, não importa muito. A vida em Omã com certeza é
melhor do que no Iraque pós-invasão americana. E Mascate, a capital do país,
ainda preserva muitas características próprias, sem os arranha-céus de Dubai ou
Nova York.

A moeda oficial de Omã, o rial omani, é a terceira mais forte do mundo. A


primeira e a segunda posições também são ocupadas por países do Oriente
Médio – Kuwait e Bahrein, respectivamente. O rial omani está à frente da libra
britânica (5ª), do euro (7ª), do dólar americano (10º) e, vejam só, do franco suíço
(9º).¹⁵⁷ Não creio que seria exagero inverter a comparação e chamar a Suíça de
“Omã da Europa”.

A quarta moeda mais forte do mundo é de um outro país do Oriente Médio, mas
que não está localizado na rica região do Golfo e, vez ou outra, também é
comparado à Suíça.¹⁵⁸ É a Jordânia, que está longe de não ter problemas sociais e
tem um passado recente de conflitos. Mesmo assim, atualmente, consegue se
manter relativamente estável, embora faça fronteira com Israel, Palestina e Síria
– hoje, poucas regiões no mundo são mais tensas do que essa.

Ainda sobre estabilidade, a Primavera Árabe, apesar de ter frustrado muitas


expectativas, mostrou que regimes autoritários não são invencíveis e estão
sujeitos a mudanças. Entendeu o recado quem quis. Após o ápice dos protestos
no início da década passada, outros governos caíram anos depois – na Argélia e
no Sudão, ambos em 2019.

Ao longo dos dez capítulos, insisti na ideia de que é impossível generalizar o


Oriente Médio, como se só houvesse ditaduras sanguinárias e todos fossem
muçulmanos e extremistas religiosos, entre outras generalizações. Na conclusão,
reforço o argumento: não é uma região que só vive em meio ao caos.

E importante: quando, eventualmente, se instaurar um novo caos, é preciso ter


calma para entender a situação. Em 2020, logo após a explosão do porto em
Beirute, análises apressadas já diziam se tratar de um ataque terrorista e
culpavam o Hezbollah ou Israel. Dado o histórico do Líbano, é natural que haja
esse tipo de suspeita, mas suspeita é diferente de certeza absoluta.

Começei a escrever este livro no início de dezembro de 2020. Durante os três


meses que se seguiram, o Oriente Médio, como é de costume, não saiu do
noticiário. Em fevereiro de 2021, no mesmo mês que os Emirados Árabes
Unidos enviaram uma sonda para Marte – um feito gigantesco –, foi revelado o
caso do primeiro-ministro e emir de Dubai, Mohamed bin Rashid al-Maktoum,
que mantém sua própria filha, a princesa Latifa, em cativeiro desde 2018. Isso
mostra como a região está em constante movimento – para o bem e para o mal. E
olha que citei apenas um país.

Nesse mesmo período, os Estados Unidos trocaram de presidente. Em pouco


tempo de mandato, Joe Biden já mostrou que tem posturas diferentes de seu
antecessor, Donald Trump, em relação ao Oriente Médio. Para citar três
exemplos, Biden quer voltar ao acordo nuclear iraniano, tem a intenção, pelo
menos no discurso, de endurecer o tom com o príncipe herdeiro e líder de facto
da Arábia Saudita, Mohamed bin Salman, e reverteu uma decisão de Trump que
classificava os houthis, do Iêmen, como grupo terrorista.

O democrata, entretanto, também já mostrou que não será tão diferente do que
tem sido a regra nos Estados Unidos. Com pouco mais de um mês no cargo,
Biden realizou seu primeiro bombarderio, que matou 17 pessoas e fez dele o
sétimo presidente americano consecutivo a atacar o Oriente Médio. Os alvos
foram instalações de milícias pró-Irã no leste da Síria. A ação, vista como ilegal
por muitos parlamentares do próprio Partido Democrata por violar a soberania
síria e não ter respaldo do Congresso, foi considerada uma resposta aos recentes
ataques dessas milícias contra os EUA no Iraque.

Foi também enquanto escrevia este livro que vários países iniciaram suas
campanhas de vacinação contra a Covid-19. Ao final de fevereiro de 2021, dos
dez países que, proporcionalmente, mais tinham vacinado suas populações, cinco
são do Oriente Médio – Israel (1º), Emirados Árabes Unidos (2º), Bahrein (7º),
Turquia (9º) e Marrocos (10º). Mas não seria esta uma região atrasada?
Completam a lista três países da Europa (Reino Unido, em 3º; Sérvia, em 5º; e
Dinamarca, em 8º), além de dois do continente americano (Estados Unidos, em
4º; e Chile, em 6º).¹⁵

Em um mundo que sinaliza uma tendência de diminuição da hegemonia


americana e ascensão da China, como fica o Oriente Médio, que, eventualmente,
pode vir a ser chamado de Sudoeste Asiático ou Ásia Ocidental? Os Estados
Unidos são pragmáticos e buscam alianças que satisfaçam seus interesses,
independentemente de o aliado ser uma ditadura ou democracia. Mas, no
discurso, frequentemente aparecem a defesa da liberdade, dos direitos humanos e
de valores democráticos.

Com a China, que já tem uma base militar no Djibouti, a situação é diferente.
Apesar de ser um país economicamente aberto – processo que se iniciou no final
dos anos 1970 por meio de Deng Xiaoping –, é uma ditadura do ponto de vista
político. Liberdade, direitos humanos e democracia não entram na pauta das
conversas com aliados. O negócio da China é outro.

Para os governos do Oriente Médio, qual discurso é mais atraente? A resposta


para esta pergunta pode definir os rumos geopolíticos da região nos próximos
anos. Aliás, região esta que é logisticamente essencial para a Nova Rota da Seda,
a estratégia chinesa de investimento em infraestrutura em praticamente todos os
cantos do mundo.

Mas não aguardem, pelo menos a curto prazo, grandes mudanças nas notícias
sobre o Oriente Médio. Os temas tratados nos dez capítulos deste livro, de uma
forma ou de outra, ainda devem se fazer presentes. Espero que, após esta leitura,
seja um pouco mais fácil de entendê-los.

153 Strait of Hormuz: Assessing the threat to oil flows through the Strait. Robert
Strauss Center for International Security and Law. Disponível em:
<https://www.strausscenter.org/strait-of-hormuz-oil-in-the-persian-gulf/>.
Acesso: 02 mar. 2021.

154 Sultão de Omã morre sem deixar herdeiro ou sucessor para o trono. R7, 11
jan. 2020. Disponível em: <https://noticias.r7.com/internacional/sultao-de-oma-
morre-sem-deixar-herdeiro-ou-sucessor-para-o-trono-11012020>. Acesso em: 02
mar. 2021.

155 Omã, o oásis da paz. Memória Globo. Disponível em:


<https://memoriaglobo.globo.com/jornalismo/jornalismo-e-telejornais/globo-
reporter/programas/oma-o-oasis-da-paz/>. Acesso em: 02 mar. 2021.

156 Oman: the Switzerland of the Middle East. Harvard Internartional Review,
09 jan. 2020. Disponível em: <https://hir.harvard.edu/oman-the-switzerland-of-
the-middle-east/>. Acesso em: 02 mar. 2021.
157 2020 Edition: Top 10 Countries with the Highest Currency Value in the
World. BookMyForex.com, 02 dez. 2020. Disponível em:
<https://www.bookmyforex.com/blog/highest-currency-in-the-world/>. Acesso
em: 02 mar. 2021.

158 GREENWOOD, Gemma. Jordan reinforces its ‘Switzerland of the Middle


East’ status to UK Market. Travel Daily, 03 nov. 2015. Disponível em:
<https://www.traveldailymedia.com/jordan-reinforces-its-switzerland-of-the-
middle-east-status-to-uk-market/>. Acesso em: 02 mar. 2021.

159 COVID-19 vaccine doses administered per 100 people. Our World in Data.
Disponível em: <https://ourworldindata.org/grapher /covid-vaccination-doses -
per-capita?tab=chart&stackMode= absolute&time=2020-12-13..2021-02-
28&region=World >. Acesso em: 02 mar. 2021.
Agradecimentos

Este livro jamais seria possível sem todo o suporte que meus pais, Ricardo e
Cida, deram a mim desde criança, com incentivos à educação, leitura e cultura.
Também agradeço às minhas três irmãs, Camila, Carina e Carol, por sempre
apoiarem meus projetos.

Em nome de todos os professores que já tive, agradeço ao Danillo Alarcon, que


foi meu orientador na graduação e escreve, para minha imensa honra, o prefácio
deste livro.

Em nome de todos os meus amigos e amigas, agradeço ao Jouberth Godoy,


especialista em África, que, assim como meu pai, revisou estas páginas e fez
comentários essenciais. E também ao João Victor Luzio, um craque do desenho,
que editou as imagens e mapas.

Agradeço às pessoas que cruzaram meu caminho nas viagens que fiz ao Oriente
Médio. Não cito todas nominalmente para não correr o risco de deixar alguém de
fora, mas saibam que vocês contribuíram para que minhas experiências nos
países da região tenham sido marcantes.

Também agradeço ao jornalista Euler Belém, meu ex-chefe, que, com seu rigor e
paciência, me ajudou a desenvolver a escrita.

E agradeço, por fim, à Editora Kelps por me dar a oportunidade de publicar meu
primeiro livro.

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