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FERNANDO BAPTISTA © 2017 NATIONAL GEOGRAPHIC / COURTESY OF NATIONAL GEOGRAPHIC MAGAZINE VERSÃO AMPLIADA

Pegadas
DA NOSSA fé
Apontamentos sobre a Terra Santa,
por Jesús Gil e Eduardo Gil
TRADUÇÃO DA 4.ª EDIÇÃO ESPANHOLA
2
Pegadas da nossa fé

Estes apontamentos foram editados para uso privado e com fins didáticos.
Não têm finalidades comerciais. É proibida a sua divulgação pública, total
ou parcial, sem autorização expressa dos titulares do copyright.
O livro em formato eletrónico, traduzido em várias línguas ocidentais,
pode descarregar-se gratuitamente em: www.saxum.org
1.ª edição portuguesa, traduzida da 4.ª edição espanhola: Dezembro de 2019.
É reservada a propriedade artística e literária
© 2016 by Saxum International Foundation.
© 2016 by Jesús Gil & Eduardo Gil.
Os autores utilizaram como fontes principais:
– Sagrada Biblia, 5 vols., Pamplona, Eunsa, 1997-2004;
– Florentino Díez, Guía de Tierra Santa, Madrid, Verbo Divino, 1990;
– Terra Sancta: Guardians of Salvation’s Sources, documentário
produzido por Antoniano Production (www.antoniano.it);
– www.custodia.org;
– www.biblewalks.com;
– www.seetheholyland.net;
– Gran Enciclopedia Rialp, 24 vols., Madrid, Rialp, 1971-1976;
– Enciclopedia universal ilustrada hispano-americana, 70 vols.,
Madrid-Barcelona-Bilbao, Hijos de J. Espasa, 1924.
Tradução
© 2019 by Saxum International Foundation.
Textos bíblicos
© Secretariado Nacional de Liturgia – Conferência Episcopal Portuguesa.
Ilustração da capa
Capela do túmulo de Jesus, na Basílica do Santo Sepulcro (Jerusalém).
Fernando G. Baptista. Copyright © 2017 National Geographic.
Courtesy of National Geographic Magazine.
Ilustrações das páginas 60, 64, 65, 72 e 252-253
Fernando G. Baptista; Patricia Healy; Don Belt; Jane Vessels; Kathy Maher; Jerome Cookson.
Copyright © 2008 National Geographic. Courtesy of National Geographic Magazine.
Ilustrações das páginas 275, 278-287, 300 e 314-315
Fernando G. Baptista e Matthew W. Chwastyk, NGM Staff; Lawson Parker; Victoria Sgarro;
Rocío Espin; Adrienne Tong. Copyright © 2017 National Geographic. Courtesy of National
Geographic Magazine.
Para as outras fotografias e ilustrações
© Os seus autores (os créditos figuram junto das imagens).
Desenho e composição: Jesús Gil.
ISBN: 9788894217575

Saxum International Foundation, com sede em Roma, tem como missão principal ajudar pessoas
de todo o mundo a terem o seu encontro pessoal com Deus através do contacto com a Terra Santa.
S. Josemaria que, juntamente com o Beato Álvaro, é o inspirador do projeto Saxum, desejou visitar
esta terra para seguir os passos de Jesus: «Rezar, ajoelhar-se e beijar o chão que pisou Jesus». Por
isso, sempre aconselhou a leitura do Evangelho, imaginando ser uma personagem mais da narração.
Saxum ajuda os peregrinos da Terra Santa a aprofundarem nas raízes da sua fé, e fomenta o diálogo
entre pessoas de diferentes religiões, culturas e pensamentos. O Saxum Visitor Center é uma das ati-
vidades de relevo da Fundação. Está situado nos arredores de Jerusalém e deseja ajudar os visitantes a
aprofundarem na dimensão espiritual, histórica e cultural da sua peregrinação.
Ícone de Maria e Jesus na Igreja
da Natividade, em Belém.
A
Tiro N Í C I
4 F E Cesareia A caminho
SÍRIA
Pegadas da nossa fé de Filipe
de Damasco

GA
EUROPA
ÁSIA LÍBANO

B
UL

A
Sumário
is

ANÍ
ÁFRICA
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V
E I A
AMÉRICA

TIDE

N É
Ptolemaida L
(Acre) I Cafarnaum

I A
Tabgha

L
Genesaré Mar da

G A
Galileia
Apresentação.................................................................................................. 9 Séforis Caná
Tiberíades
Monte
Carmelo Nazaré AURANÍTIDE
1 Nazaré: Basílica da Anunciação....................................................... 12 E S
Monte
D R E L O N Tabor
Em Nazaré é venerada a estância onde a Santíssima Virgem recebeu o Gadara
Naim
anúncio do Anjo Gabriel. O Bem-aventurado Álvaro del Portillo cele- D E
Mar Cesareia C Á
brou a Santa Missa nessa gruta. P
Mediterrâneo Marítima
Citópolis
O
2 Ain Karim: a pátria do Precursor.................................................... 24

L
IA
A tradição situa a casa de Zacarias e de Isabel em Ain Karim, uma

E
S A M A R
povoação localizada a seis quilómetros da Cidade Velha. Gerasa

Jordão
Sebaste Monte
3 Belém: Basílica da Natividade.......................................................... 38 Siquém
Ebal

I A
O Nosso Salvador veio ao mundo na aldeia de Belém. A gruta onde Sicar
Monte
nasceu fica na cripta da Basílica da Natividade. Antipatris Gerizim

R E
Jope
4 Belém: Campo dos Pastores................................................................ 50 (Tel Aviv) Efraim
O lugar onde os anjos anunciaram o nascimento de Jesus aos pastores Lida

P E
é recordado num santuário a três quilómetros de Belém. A Filadélfia
I (Amã)
Jâmnia Jericó
5 O Templo de Jerusalém........................................................................... 58 Emaús

E
Qasr Al-Maghtas
Depois do nascimento de Jesus, chegado o tempo da purificação de Jerusalém

D
el-Yahud
Nossa Senhora, o Menino é apresentado no Templo. Ain Karim Betânia
JORDÂNIA

U
Monte
Nebo
6 Com a Família de Nazaré........................................................................ 74 Ascalão Belém

J
Em Nazaré, na cripta da Igreja de S. José, conservam-se os restos da
casa onde a Sagrada Família terá vivido. Maqueronte
Gaza
7 Do outro lado do Jordão......................................................................... 84 Hebron
Ma
Mar
ar
a
A tradição situa o local do batismo de Jesus a nove quilómetros ao norte Mort
Mo
Mo
ort
rto

A
do Mar Morto, na margem oriental do rio Jordão, perto do caminho A caminho

I
do Egito

E
que existia entre o Monte Nebo e Jericó. Massada

M
U
8 Bodas em Caná da Galileia................................................................... 96 Bersebá

ID
N A B A T E I A

B
O Senhor fez o seu primeiro milagre em Caná, pequena vila perto de

A
Nazaré: a pedido de Nossa Senhora, converteu a água em vinho. ISRAEL

O
M
9 Cafarnaum: a cidade de Jesus............................................................ 106
Esta pequena povoação à beira do Mar de Genesaré, que Jesus esco-
ILUSTRAÇÃO: J. GIL

lheu para residir estavelmente, foi o centro do seu ministério público Mapa da Terra Santa como a
na Galileia. conheceu Nosso Senhor, com as
E D O M fronteiras atuais sobrepostas.
10 Tabgha: Igreja das Bem-aventuranças........................................ 120
Um santuário, localizado numa encosta que domina o Mar da Galileia,
recorda o lugar onde Jesus pronunciou o Sermão da Montanha.
EGITO
0 km 30

0 mi 20
6
Pegadas da nossa fé Sumário 7

11 Tabgha: Igreja da Multiplicação....................................................... 134 15 Betânia: Santuário da Ressurreição de Lázaro.................... 182


Em Tabgha é venerada a rocha sobre a qual o Senhor colocou os cinco Quando Jesus ia a Jerusalém, frequentemente hospedava-se na casa de
pães e os dois peixes com os quais deu de comer a uma multidão. Marta, Maria e Lázaro, em Betânia. Pode visitar-se ali o túmulo onde
enterraram aquele amigo do Senhor, antes de o ressuscitar.
12 Junto da piscina de Betesda................................................................ 146
Em Jerusalém conservam-se os restos da piscina de Betesda, onde Je- 16 Jerusalém: ao ver a cidade, chorou sobre ela........................ 196
sus curou o paralítico. Na mesma zona se ergue a Igreja de Santa Ana, Na vertente ocidental do Monte das Oliveiras, o Santuário de Domi-
venerada como o lugar da Natividade de Nossa Senhora. nus Flevit, recorda as lágrimas de Jesus por Jerusalém, na sua entrada
messiânica, poucos dias antes da sua Paixão.
13 Monte Tabor: Basílica da Transfiguração................................. 160
A tradição indica o Monte Tabor, no meio da planície de Esdrelon, 17 Jerusalém: na intimidade do Cenáculo...................................... 206
como o lugar onde se transfigurou o Senhor. De acordo com antigas tradições, a sala da Última Ceia estava no ex-
tremo sul-ocidental da Cidade Velha, sobre uma colina que começou
14 Jerusalém: a gruta do Pai-Nosso..................................................... 172 a chamar-se Sião desde a época cristã.
No ano 326, Santa Helena fez construir uma basílica sobre a gruta
venerada como o lugar onde Jesus ensinou o Pai-Nosso.

Porta de
Damasco

Porta de
Porta Herodes
de Jafa Basílica
do Santo
Sepulcro

Basílica da
Dormição Cidadela Betesda
Igreja de
Santa Ana
Cúpula da
Rocha Porta
Monte do dos Leões
templo
Porta
Cenáculo de Sião Túmulo de
Santa Maria Gruta da
Mesquita Traição
de Al-Aqsa Getsémani

S. Pedro in Basílica
Gallicantu Cédron da Agonia Mosteiro
russo de Maria
Hinom ou
Madalena
Geena Siloé
Santuário do
Dominus Flevit
Lugar da
Ascensão

Perspetiva da Cidade Velha de Convento do


Jerusalém e seus arredores, Pater Noster
publicada em 1928.
Monte das
© THE NATIONAL LIBRARY OF ISRAEL, JERUSALÉM
Oliveiras
8 9
Pegadas da nossa fé

18 Getsémani: oração e agonia de Jesus.......................................... 222


A tradição transmitiu a localização de Getsémani no Monte das Oli-
veiras, do outro lado da torrente de Cédron.
19 S. Pedro in Gallicantu............................................................................... 238
A Igreja de S. Pedro in Gallicantu eleva-se perto do Cenáculo, onde
algumas tradições localizam a casa do Sumo Sacerdote.
Apresentação
20 Jerusalém: Via Dolorosa........................................................................ 252
Este itinerário, com catorze estações, recorda o caminho que Jesus per-
correu, carregado com a Cruz, do pretório até ao Calvário, e dali, desde
que foi crucificado até ser colocado no Sepulcro.
21 Jerusalém: o Calvário............................................................................... 272

«R
As últimas cinco estações da Via Dolorosa, incluídas as correspondentes
ao Gólgota, ficam no interior da Basílica do Santo Sepulcro. ecordando o Verbo de Deus que Se
22 Jerusalém: o Santo Sepulcro.............................................................. 302 faz carne no seio de Maria de Na-
O túmulo onde foi depositado o Corpo de Jesus, e de onde ressuscitou zaré, o nosso coração volta-se ago-
ao terceiro dia, ocupa o lugar principal da Basílica do Santo Sepulcro. ra para aquela Terra onde se cumpriu o misté-
23 Uma povoação chamada Emaús....................................................... 324 rio da nossa redenção e donde a Palavra de Deus
O Senhor ressuscitado apareceu no domingo a dois discípulos no ca- se difundiu até aos confins do mundo. De fac-
minho de Emaús. Poderiam corresponder a esta aldeia vários lugares to, por obra do Espírito Santo, o Verbo encarnou
da Terra Santa. num momento concreto e num lugar determi-
24 Tabgha: Igreja do Primado................................................................... 338 nado, numa orla de terra situada nos confins do
O lugar onde Jesus ressuscitado apareceu aos discípulos é venerado Império Romano. Por isso, quanto mais contem-
num ponto à beira do Mar da Galileia, onde se deu a segunda pesca plamos a universalidade e a unicidade da pessoa
milagrosa e onde S. Pedro foi confirmado no primado da Igreja. de Cristo, tanto mais olhamos agradecidos para
25 O lugar da Ascensão................................................................................... 348 aquela Terra onde Jesus nasceu, viveu e Se entre-
A tradição situa a Ascensão, em harmonia com os relatos evangélicos, gou a Si mesmo por todos nós. As pedras sobre as
no cimo do Monte das Oliveiras, no caminho para Betfagé. quais caminhou o nosso Redentor permanecem
26 Alegram-se os Anjos pela sua Assunção................................... 360 para nós carregadas de recordações e continuam
O mistério da Assunção de Nossa Senhora é recordado em duas igrejas a “bradar” a Boa Nova. Por isso, os Padres sino-
de Jerusalém: a Basílica da Dormição, no Monte Sião, e o Túmulo de dais lembraram a expressão feliz dada à Terra
Maria, em Getsémani.
Santa: “o quinto Evangelho” (...).
27 Monte Carmelo: Santuário de Stella Maris............................. 372
»A Terra Santa continua ainda hoje a ser meta
O Bem-aventurado Álvaro del Portillo começou a sua peregrinação a
Terra Santa, em 1994, neste santuário situado sobre a cidade de Haifa, de peregrinação do povo cristão, vivida como ges-
ligado ao profeta Elias e ao nascimento da Ordem do Carmo. to de oração e de penitência, como o era já na
Anexos................................................................................................................. 384
antiguidade, segundo o testemunho de autores
como S. Jerónimo. Quanto mais voltamos o olhar e o coração para
Índices.................................................................................................................. 390 a Jerusalém terrena, tanto mais se inflama em nós o desejo da Je-
rusalém celeste, verdadeira meta de toda a peregrinação, e a paixão
10
Pegadas da nossa fé Apresentação 11

Animava-nos o desejo de meter-nos mais no Evangelho, como

ALFRED DRIESSEN
sempre nos aconselhou S. Josemaria, para participarmos pessoal-
mente em cada cena, de modo a ouvirmos eficazmente a Palavra
de Deus na nossa própria vida. Por isso, além de aproveitar os re-
centes dados das investigações históricas e arqueológicas que fos-
sem úteis para esse fim, procuramos, sobretudo, ir pela mão de
quem nos poderia guiar melhor: os Santos Padres, que nos trans-
mitiram a Tradição; o Magistério e a Liturgia da Igreja; e os ensi-
namentos do Fundador do Opus Dei, em cuja riqueza ajudaram-
-nos a aprofundar os seus sucessores, o Beato Álvaro del Portillo 3
e D. Javier Echevarría 4.
S. Josemaria desejou ir em peregrinação à Terra Santa e sonhou
com o desenvolvimento de diferentes iniciativas apostólicas em
benefício da Igreja. No entanto, por diversas circunstâncias, não
conseguiu cumprir os seus desejos. O Bem-aventurado Álvaro, que
sempre secundou em tudo o Fundador da Obra, tornou realidade
aquele antigo desejo, percorrendo os Santos Lugares de 14 a 22 de
Na abside da Gruta da Natividade, em Belém, o lugar do
nascimento de Cristo está assinalado por uma estrela de prata. março de 1994. Na madrugada do dia 23, poucas horas depois do
seu regresso a Roma, Deus chamou-o à sua presença. Tinha cele-
brado a Santa Missa por última vez na Igreja do Cenáculo. Tendo
de que o nome de Jesus – o único em que se encontra a salvação – em conta o significado daquela viagem para os fiéis do Opus Dei,
seja reconhecido por todos (cf. At 4, 12)» 1. os seus cooperadores e para os devotos do Beato Álvaro, na versão
Estas palavras da Exortação apostólica Verbum Domini são mui- ampliada deste livro narram-se várias referências ao que aconteceu
to adequadas para apresentar os motivos porque decidimos escre- naqueles dias, que foram omitidas na versão normal. n
ver uma série de artigos em que fomos percorrendo os Santos Lu-
gares, para celebrar o Ano da fé que o Papa Bento XVI iniciou a 11
de outubro de 2012 e o Papa Francisco encerrou a 23 de novembro
de 2103. Os textos originais apareceram ao longo desses dois anos
– intitulados Pegadas da nossa fé – em Crónica, publicação mensal
dirigida aos fiéis da Prelatura do Opus Dei 2. Apresentam-se ago-
3. Para saber mais sobre D. Álvaro del Portillo, o mais próximo colaborador de
ra recompilados sob o patrocínio da Fundação Saxum, com algu- S. Josemaria e o seu primeiro sucessor, beatificado a 27 de setembro de 2014 em
mas adaptações e com mais dois capítulos acrescentados: um deles Madrid, veja-se: http://opusdei.org/pt-pt/section/b-alvaro-del-portillo/
4. Tendo estes apontamentos um carácter familiar e sendo dirigidos principalmente aos
sobre o lugar do batismo de Jesus no rio Jordão, e o outro sobre a fiéis e cooperadores do Opus Dei, nos vários artigos – especialmente na versão
piscina de Betesda. ampliada – pode haver referências ocasionais a S. Josemaria como nosso Padre ou
nosso Fundador, e ao Beato Álvaro del Portillo como o Beato Álvaro, o Bem-aventurado
Álvaro, ou – falando D. Javier Echevarría – como o Padre. Algumas das palavras dos
três citados estão tiradas de publicações que se conservam no Arquivo Geral da
1. Bento XVI, Exortação apostólica pós-sinodal Verbum Domini, n. 89. Prelatura (AGP); as citações de S. Josemaria identificam-se pelo seu grafismo no tipo
2. Acerca do Opus Dei, ver: http://opusdei.org Bodoni cursivo.
12 Pegadas
DA NOSSA fé 1 13

Nazaré

ISRAELI MINISTRY OF TOURISM


Basílica da H á dois mil anos, quando Roma brilhava no seu esplendor,
existiam nas costas do Mediterrâneo, muitas outras ci-
dades que, mesmo longe de possuírem a importância da

Anunciação capital do Império, gozavam de prosperidade e, em alguns casos,


tinham protagonizado páginas gloriosas: Atenas, Corinto, Éfeso,
Siracusa, Alexandria, Cartago... e na antiga Palestina, a venerável
cidade santa de Jerusalém e as florescentes Cesareia e Jericó.
14
Pegadas da nossa fé Nazaré Basílica da Anunciação 15

Em contraste com estas cidades, Nazaré era uma aldeia desco-


nhecida para a maior parte dos habitantes do mundo: um punhado 0m 500

de casas pobres, parcialmente escavadas na rocha, que se aglutina-

in
0 ft 1000
Sa
bi
vam na ladeira de alguns promontórios, na Baixa Galileia. Nazaré Área povoada tal como

Ne
a conheceu Jesus
nem sequer tinha excessiva importância no âmbito mais reduzido

de
e
nt A caminho do
Mo
da sua região. Em duas horas de caminho a pé, chegava-se a Séfo-
Fonte Monte Tabor,
A caminho Tiberíades e Mar
de Haifa da Galileia
ris, onde se concentrava quase toda a atividade comercial da zona;
esta localidade contava com edifícios de arquitetura cuidada; os Sinagoga
(Igreja dos
Nazaré
Oficina de José
seus habitantes falavam grego e estavam em contacto com o mun- greco-católicos)
(Igreja de S. José)

do intelectual greco-latino. Em contrapartida, em Nazaré viviam


Casa de Nossa Senhora
algumas, poucas famílias, que só falavam o aramaico. Os seus habi- A caminho
da planície (Basílica da Anunciação)
de Esdrelon
tantes seriam aproximadamente uma centena. A maior parte deles A caminho do
Monte do Precipício
dedicava-se à agricultura e à criação de gado. Aí não faltava, porém,
algum artesão, como José, que, com o seu engenho e esforço, pres-
tava um bom serviço, realizando trabalhos de carpinteiro e ferreiro.
Naquela aldeia, num recanto perdido da povoação, onde nin- Igreja de
S. José
guém que projetasse uma grande empresa humana teria ido pro- (1914)

curar quem a levasse para a frente, encontrava-se a criatura mais


Convento
extraordinária que jamais tinha existido, com uma vida absoluta- franciscano
mente normal e simples, cheia de naturalidade 1.

ILUSTRAÇÕES: J. GIL
Ave Maria No sexto mês, o Anjo Gabriel foi enviado por Basílica da
Anunciação
Deus a uma cidade da Galileia chamada Nazaré, a uma Virgem (1969)
desposada com um homem chamado José, que era descendente Entrada
de David. O nome da Virgem era Maria 2. Lucas introduz com sim-
plicidade o momento grandioso, em que começou a nossa reden-
ção. Conhecemos muito bem como prossegue o relato: o anúncio
do Anjo, a perturbação de Maria, o diálogo cheio de humildade e
a resposta final da Virgem Maria: Ecce ancilla Domini; fiat mihi se- Baptistério

r
e átrio

pe ja
rio
su gre
cundum verbum tuum 3.

ta
ip
Cr
A Gruta
1. Inspiramo-nos na pregação do P. Francisco Varo Pineda, parcialmente recolhida numa de Nossa
entrada do seu blog: http://www.primeroscristianos.com/un-dia-en-la-vida-de-la- Senhora está
virgen/; retiro espiritual, pro manuscripto. Os estudiosos descobriram restos de Entrada na cripta, onde
numerosas habitações que costumavam podem ver-se
2. Lc 1, 26-27. ter uma parte escavada na rocha. Essa zona os restos das quatro
3. Lc 1, 38. utilizava-se como armazém, adega ou oficina. basílicas anteriores.
16
Pegadas da nossa fé Nazaré Basílica da Anunciação 17

LEOBARD HINFELAAR

J. GIL
A Santa Casa de Loreto.
Em cima, com destaque a
vermelho, a inscrição XE
MAPIA (Ave Maria),
encontrada em Nazaré.

Cripta da Basílica da Anunciação


As investigações arqueológicas realizadas em Nazaré em meados do século XX
confirmaram a existência de culto cristiano em volta da gruta, desde os primeiros De acordo com uma antiga tradição, recolhida por vários Padres
séculos. Além disso, descobriram os restos de três igrejas, visíveis na cripta da basílica
atual, que foram construídas antes da deslocação da Santa Casa para Itália. da Igreja, no século II viviam ainda em Nazaré alguns parentes de
Jesus, que conservavam o quarto onde a Virgem Santíssima rece-
Lugar que terá ocupado
a Santa Casa de Loreto Basílica dos Cruzados beu o anúncio do Anjo e a casa onde, mais tarde, viveu a Sagrada
(séc. XII)
Famílias. Também se mantinha a memória da fonte onde a nossa
Mãe, como as outras mulheres daquela povoação, iam buscar água.
Mosaico Há testemunhos escritos de peregrinos que visitaram Nazaré du-
anterior ao
século V
Gruta rante o século IV para ver essa casa, e confirmaram que já então era
um lugar de culto cristão, onde havia um altar.
No século V, edificou-se uma igreja de estilo bizantino, que se
Porta
Janela
encontrava em ruínas quando aí chegaram os Cruzados, no sécu-
lo XI. O cavaleiro normando Tancredo, Príncipe da Galileia, man-
dou construir uma basílica sobre uma gruta, mas o novo edifício
foi, uma vez mais, arruinado, durante a invasão do sultão Bibars,
0m 10 em 1263.
0 ft 30
Em 1620, um emir autorizou os padres franciscanos a compra-
rem as ruínas da basílica e da gruta. Em 1730, os franciscanos ob-
ILUSTRAÇÃO: J. GIL

Igreja pré-bizantina Igreja bizantina


(séc. II-III) (séc. V) tiveram licença do sultão otomano para construir uma nova igreja
nesse lugar. A estrutura foi engrandecida em 1877 e completamente
18
Pegadas da nossa fé Nazaré Basílica da Anunciação 19

DANIEL WEBER / FLICKR

GABINETE DE IMPRENSA DO OPUS DEI

LEOBARD HINFELAAR
Sob a cúpula, abre-se um espaço para a cripta e a
Gruta da Anunciação. À esquerda, o Beato Álvaro
contempla a Gruta, a partir da nave da basílica.

tradas nas paredes da Casa que se conserva em Loreto são do mes-


mo estilo e correspondem a uma época idêntica à dos encontrados
em Nazaré. Estes dados, somados aos que nos dão as fontes escri-
tas e outros restos arqueológicos, explicam porque é perfeitamen-
te plausível que, tanto na basílica de Nazaré como no Santuário
Fachada principal da Basílica da Anunciação. de Loreto, os peregrinos possam contemplar o lugar físico em que
aconteceu a Encarnação do Verbo, considerando com emoção e
agradecimento: Hic Verbum caro factum est.
demolida em 1955, a fim de permitir a construção da basílica atual,
que é o maior santuário cristão no Médio Oriente.
Antes de começar a edificação da nova basílica, o Studium Bi-
Tu me receberás Era natural que essa emoção interior,
blicum Franciscanum realizou uma investigação arqueológica do contida, mas ao mesmo tempo impossível de ocultar, comovesse o
lugar: encontraram um edifício dedicado ao culto com numerosas Beato Álvaro del Portillo em 15 de Março de 1994, quando foi rezar
inscrições (grafitos) cristãs. Entre elas, destaca-se uma inscrição em e celebrar a Santa Missa na Basílica da Anunciação, de Nazaré. D.
grego, XE MAPIA (Ave Maria), e outra em que se menciona «o lugar Javier Echevarría recordava, dias depois, que o Beato Álvaro estava
santo de M». Tanto o edifício primitivo como as inscrições são an- contentíssimo por poder, então e aí, «contemplar muito de perto os
teriores ao século III, com bastante probabilidade de pertencerem lugares onde esteve Cristo, onde viveu Cristo, o seu grande amor» 4.
aos finais do século I ou princípios do século II. Em Nazaré, o Bem-aventurado Álvaro foi primeiro rezar numa
Estas descobertas completaram-se depois com os estudos efe- igreja onde se conserva um poço, cuja antiguidade parece remon-
tuados na Santa Casa de Loreto, entre 1962 e 1965, que mostraram tar aos tempos da vida terrena de Maria. Aí considerou novamente
a sua coincidência com as proporções que deveria ter um edifício
encostado à gruta de Nazaré; por outro lado, as inscrições encon- 4. Javier Echevarría, Palavras recolhidas em Crónica, 1994, p. 279 (AGP, biblioteca, P01).
20
Pegadas da nossa fé Nazaré Basílica da Anunciação 21

uma ideia que, com frequência, era tema da sua oração: como Nos-

GABINETE DE IMPRENSA DO OPUS DEI


sa Senhora, «sendo a criatura mais excelsa, com todas as perfeições
sobrenaturais que possam imaginar-se, teve de cumprir todos os
pormenores que lhe correspondiam como esposa e mãe de família.
Obrigações correntes, que são próprias de pessoas normais – como
nós –, que levaria a cabo com verdadeira delicadeza, com carinho
sincero, pensando que com aquilo que parecia muito vulgar, esta-
va a honrar a Deus e ajudar as pessoas que dependiam do seu tra-
balho e do seu serviço» 5.
Depois, foram até à Igreja de S. José, onde se venera a casa da
Sagrada Família, na qual decorreu a vida oculta de Jesus. Aí, o Bea-
to Álvaro «recordou os ensinamentos que nos deu o nosso Fun-
dador sobre S. José. O nosso Padre chamava-lhe o bien plantado
(o elegante), porque soube cumprir a sua missão com verdadeiro
garbo, com verdadeiro empenho, não isento de dificuldades nem
de dores; não teve dúvidas, mas sim ansiedade, ao ver que se es-
tavam a realizar tão perto dele mistérios que não compreendia» 6.
Daí, encaminharam-se para a Basílica da Anunciação. E o Bea-
to Álvaro ficou comovido ao ler a inscrição na parte inferior do al-
tar: Verbum caro hic factum est. Lembrava D. Javier Echevarría que,
perante aquelas palavras, «voltaram a reviver os desejos e os amo-
res que o nosso Padre teve no dia 15 de Agosto de 1951, quando foi
Durante a Santa Missa, que o Beato Álvaro
consagrar a Obra ao Coração Dulcíssimo de Maria, na Santa Casa
celebrou na Gruta da Anunciação.
de Loreto, que a tradição chama Casa de Nossa Senhora. Ali, so-
bre o altar, está escrito: Hic Verbum caro factum est» 7.
Nesses momentos, a basílica estava fechada ao público, e, como deixar estas recordações da sua passagem pela terra, da sua vinda
sempre, o Beato Álvaro pôde celebrar o Santo sacrifício muito re- ao mundo. Aqui parece que é mais fácil falar com Deus, conside-
colhido. Na homilia falou do sentido cristão do sofrimento. Esta- rar com alegria o Amor que o Senhor nos tem, e é um privilégio
va presente um fiel supranumerário da Obra, ao qual os médicos especial celebrar aqui a Santa Missa.
tinham diagnosticado um cancro com muito mau prognóstico, e »Nesta gruta, aí em baixo, onde está assinalado, o Verbo se fez
que faleceu muito pouco tempo depois: carne, o Deus todo-poderoso, infinitamente grande, toma a carne
— «Sempre e em todo o momento, é um grande privilégio ce- humana. Onde? Num lar cheio de pobreza. E onde nasceu tam-
lebrar ou assistir à santa Missa. Mas o Senhor é tão bom que quis bém? Noutra gruta, que agora, com a passagem dos anos, está mui-
tos metros abaixo da terra. Aí esteve o Senhor. Aí nasceu o Senhor.
Para quê? Para nos dar a vida a nós. Ele fez-se mortal, vivendo des-
5. Ibid.
6. Ibid., p. 282.
sa maneira – e depois, morrendo como morreu –, para que nós pu-
7. Ibid. déssemos viver.
22
Pegadas da nossa fé Nazaré Basílica da Anunciação 23

»Permite o Senhor que passemos dores, sofrimentos e penas. »É o momento de também nós nos examinarmos, vendo como
Mas são carícias que nos aproximam mais d’Ele. Hoje, ao contem- andamos de amor a Deus. Vejamos se podemos dar mais alguma
plar aquela cena maravilhosa narrada pelos Evangelhos, penso com coisa ao Senhor, que tem direito a pedi-lo e no-lo pede, dando-nos
mais facilidade que o Senhor, quando permite que soframos, trans- sempre a graça para corresponder. É tão fácil! E assim poderemos
mite-nos depois mais o seu Amor, para que nos pareçamos mais dizer ao Senhor, quando chegar o momento: Senhor fiz tudo o que
com Ele. estava ao meu alcance, tudo o que podia. E Tu receber-me-ás, Se-
»Estamos reunidos para assistir ao Santo Sacrifício da Missa, nhor, quando chegar o momento, como recebeste o filho pródigo
alguns sacerdotes e alguns leigos do Opus Dei e dizemos-Lhe: Se- daquele bom pai.
nhor, obrigado por seres tão bom! Obrigado, porque Te dignaste »Que nós não sejamos filhos pródigos; que sejamos fiéis, sem-
vir ao mundo, tomando carne daquela Donzela maravilhosa, que pre, até à morte, que virá quando Deus quiser. Que Deus vos
era a Virgem Maria! Para que nós fôssemos santos, para que apren- abençoe!
dêssemos a lutar e para que soubéssemos dizer-Te: Senhor, quero o »Vamos rezar uma Ave-maria a Nossa Senhora» 8.
que Tu queres, quero porque Tu o queres, quero quando quiseres!
»Meus filhos, vamos pedir por toda a Obra. Eu uno-me tam-
bém às intenções particulares de cada um de vós. Sempre fiéis Oito dias mais tarde, o Senhor quis levar
»O Senhor é muito bom. O Senhor leva-nos por caminhos que consigo o Beato Álvaro, que até ao último momento manteve essa
nós não podemos entender, mas tudo o que nos envia ou permite paz inefável que possuem os que vivem totalmente nas mãos de
que nos aconteça é sempre para o nosso bem e para o bem das pes- Deus. O seu funeral celebrou-se na basílica romana de Santo Eu-
soas que nos amam e as que nós amamos. génio, no dia 25 de Março, solenidade da Encarnação do Senhor.
»Eu peço, como é natural, em primeiro lugar, pela Obra, por to- «Que presente tínhamos – foi referido em Crónica – a renovação
dos os membros do Opus Dei espalhados pelo mundo. Por muitos do Sacrifício do Altar que o Padre fez na Basílica da Anunciação,
que sofrem, por muitos que têm lutas interiores e estão necessitados em Nazaré, só há dez dias!». E como estavam vivas em todos nós
da ajuda do Senhor. Nós podemos facilitar essa ajuda recorrendo essas palavras que pronunciou o Beato Álvaro no final da sua ho-
ao Senhor por meio da Santíssima Virgem Maria. Jesus não pode milia!: «Sejamos fiéis, sempre, até à morte, que virá quando Deus
negar nada à sua Mãe. O melhor dos filhos, como vai dizer que não quiser». Como um eco desse conselho, no frontal do sacrário que
a Maria, a melhor das mães? O Senhor ouve Maria, que, além dis- os fiéis da Obra ofereceram ao Prelado em 2007, celebrando os
so, é nossa Mãe, porque Jesus Cristo no-la deixou como herança seus setenta e cinco anos, e que era destinado à Casa de retiros
antes de morrer. Maria é nossa Mãe e ouve-nos a todo o momento. de Saxum, pôs-se a inscrição: Semper fidelis, que resume a vida do
»Estai sempre cheios de alegria, cheios de paz, porque temos Beato Álvaro e que nos indica como devemos conduzir a nossa em
um Deus no Céu capaz de fazer maravilhas e uma Mãe no Céu que todos os instantes. n
recebeu todo o amor que pode albergar uma Mãe.
»Vamos rezar, em primeiro lugar, pelo Santo Padre e pela Igreja
universal, pela Igreja Católica. Especialmente pelo Papa, que está
muito necessitado de orações. Tem muitos inimigos, mas o Senhor
enche-o de paz e de alegria. Não pensa nisso: pensa em que falta
amor de Deus. Meus filhos: falta amor de Deus! 8. Beato Álvaro del Portillo, Homilia, 15-III-1994, recolhida em Crónica, 1994,
p. 283-285 (AGP, biblioteca, P01).
24 Pegadas
DA NOSSA fé 2 25

Al Qubeibeh

Ain Karim:
Abu Gosh

A caminho
de Jericó

Cidade

A pátria do Precursor
Velha Betfagé
Betânia
Jerusalém

ILUSTRAÇÃO: J. GIL.
Ain
Karim

Campo dos

A
Pastores
Basílica da
Natividade
in Karim é uma pequena aldeia situada a cerca de seis qui- Belém Bet Sahur
lómetros a oeste da Cidade Velha, nos arredores da atual 0 km 5

Jerusalém. Os seus edifícios de pedra clara agrupam-se nas 0 mi 3

encostas de umas colinas arborizadas, onde os bosques de pinhei-


ros e ciprestes alternam com culturas de vinhas e oliveiras, dispos-
tas em socalcos. Parece que, na época do Senhor, era uma cidade riais; e a de S. João Batista, considerada o local do seu nascimento,
reservada aos sacerdotes e levitas; a proximidade do Templo faci- que fica no centro da cidade. Pertencem as duas, desde o século
litava as deslocações para cumprir o turno de serviço, que muda- XVII, à Custódia da Terra Santa.
va cada seis meses. De acordo com antigas tradições, era nesta lo-
calidade que se encontrava a casa de Zacarias e Isabel: para aqui Igreja da Visitação
se teria encaminhado a Virgem Maria quando, após ter recebido Maria entrou em casa de Zacarias
o anúncio do Anjo Gabriel em Nazaré, se levantou e foi à pressa e saudou Isabel. Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, o me-
às montanhas, a uma cidade de Judá 1; e três meses depois, quan- nino exultou-lhe no seio. Isabel ficou cheia do Espírito Santo e
do chegou para Isabel o tempo de dar à luz 2, aqui teria nascido S. exclamou em alta voz:
João Batista. — Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu
Atualmente, a recordação destes acontecimentos narrados por S. ventre. Donde me é dado que venha ter comigo a Mãe do meu
Lucas conserva-se em duas igrejas: a da Visitação, que se encontra Senhor? Na verdade, logo que chegou aos meus ouvidos a voz da
num ponto mais alto, saindo da povoação para Sul, para além de tua saudação, o menino exultou de alegria no meu seio. Bem-a-
uma fonte que abastece os seus habitantes desde tempos imemo- venturada aquela que acreditou no cumprimento de tudo quanto
lhe foi dito da parte do Senhor 3.
1. Lc 1, 39.
2. Lc 1, 57. 3. Lc 1, 40-45.
26
Pegadas da nossa fé Ain Karim A pátria do Precursor 27

NICOLA E PINA / PANORAMIO

Vista da aldeia, em que se destaca a Igreja de S. João Baptista,


a partir da encosta que leva ao Santuário da Visitação.

Chega-se à Igreja da Visitação por uma subida escalonada, com


vista para Ain Karim e arredores. No final da encosta, o recinto está
delimitado por um artístico gradeamento, que dá acesso a um pá-
tio alongado: à esquerda, numa parede do santuário, um mosaico
representa a Virgem Maria na viagem de Nazaré, montada num
burro e rodeada de anjos; à direita, junto à porta, um grupo escul-

ALFONSO PUERTAS
tórico mostra a saudação das duas mulheres; atrás, a parede está
coberta pelo Magnificat, o hino que Maria proclamou, escrito em Santuário da Visitação.
numerosas línguas:
28
Pegadas da nossa fé Ain Karim A pátria do Precursor 29

ISRAELI MINISTRY OF TOURISM

ALFONSO PUERTAS
O Santuário da Visitação, em Ain Karim. No pátio, um pórtico cobre a
entrada da cripta; por trás das esculturas que lembram o encontro de
Nossa Senhora e Santa Isabel, a oração do Magnificat pode ler-se em
mais de cinquenta línguas. À direita, a nave da igreja.
A minha alma glorifica ao Senhor
e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador.
Porque pôs os olhos na humildade da sua serva:
de hoje em diante me chamarão bem-aventurada
todas as gerações.
O Todo-Poderoso fez em mim maravilhas:
Santo é o seu nome.
A sua misericórdia se estende de geração em geração
sobre aqueles que O temem.
Manifestou o poder do seu braço e dispersou os soberbos.
Derrubou os poderosos de seus tronos
e exaltou os humildes.
Aos famintos encheu de bens
e aos ricos despediu de mãos vazias.
Acolheu a Israel, seu servo,
lembrado da sua misericórdia,
como tinha prometido a nossos pais,
ALFONSO PUERTAS

a Abraão e à sua descendência para sempre 4.

4. Lc 1, 46-55.
30
Pegadas da nossa fé Ain Karim A pátria do Precursor 31

Na cripta, uma abside

ALFONSO PUERTAS

ALFRED DRIESSEN
alberga o altar, outra, em
forma de túnel abobadado,
tem no final um poço com
uma pequena fonte. Num
nicho, conserva-se uma
rocha onde, segundo
antigas tradições, Santa
Isabel escondeu o seu filho.

Caná; a Santíssima Virgem, nosso refúgio, acolhendo os fiéis sob o


As escavações arqueológicas mostraram que o culto cristão nes- seu manto; a proclamação da sua maternidade divina, no Concílio
se lugar remonta ao período bizantino; por sua vez, parece que até de Éfeso; a defesa da Imaculada Conceição, pelo Beato Duns Sco-
à chegada dos Cruzados, se recordava aqui um acontecimento pos- to; e a intercessão em auxílio dos cristãos, na batalha de Lepanto.
terior à Visitação, relatado pelo Proto-Evangelho de São Tiago, es-
crito apócrifo do século II: a fuga de Santa Isabel com o filho, para
salvá-lo da matança das crianças ordenada por Herodes em Belém Igreja de S. João Batista Chegou a altura de Isabel
e nos seus arredores 5. A memória desta tradição conserva-se na
ser mãe e deu à luz um filho. Os seus vizinhos e parentes soube-
cripta da igreja, a que se acede a partir do pátio. Trata-se de uma
ram que o Senhor lhe tinha feito tão grande benefício e congratu-
capela retangular, com uma antiga gruta adaptada ao culto, que
laram-se com ela. Oito dias depois, vieram circuncidar o menino
está coberta por uma abóbada de pedra e tem no fundo um poço,
e queriam dar-lhe o nome do pai, Zacarias. Mas a mãe interveio
alimentado por uma fonte. À direita da galeria, num nicho, guar-
e disse:
da-se uma rocha venerada como o esconderijo de S. João Batista.
— Não, ele vai chamar-se João.
A Igreja da Visitação, terminada em 1940, ergue-se sobre a crip-
ta, no mesmo espaço que ocupou a igreja construída pelos Cruza- Disseram-lhe:
dos no século XII. A entrada habitual faz-se através de uma escada- — Não há ninguém da tua família que tenha esse nome.
ria exterior, que começa no pátio e passa por uma zona ajardinada. Perguntaram então ao pai, por meio de sinais, como queria
No interior, os motivos pictóricos mostram a exaltação de Nos- que o menino se chamasse. O pai pediu uma tábua e escreveu: «O
sa Senhora ao longo dos séculos: Maria Mediadora, nas bodas de seu nome é João». Todos ficaram admirados 6.

5. Mt 2, 16. 6. Lc 1, 57-63.
32
Pegadas da nossa fé Ain Karim A pátria do Precursor 33

ISRAELI MINISTRY OF TOURISM

ALFONSO PUERTAS
À esquerda, vista aérea do Santuário de S. João Baptista. Está
A Igreja de S. João Batista está construída no local que a tradi- construído sobre a casa onde, segundo a tradição, viviam Zacarias
ção identifica como sendo a casa de Zacarias e Isabel e, portanto, e Isabel. As escavações demonstraram que a vivenda se converteu
onde teria nascido o Precursor. Tal como no Santuário da Visita- num lugar de culto e de sepultura de cristãos até ao século IV.
ção, as paredes do recinto estão cobertas por um hino que aqui foi
entoado pela primeira vez, o Benedictus, escrito em várias línguas: E tu, menino, serás chamado profeta do Altíssimo,
Bendito o Senhor Deus de Israel porque irás à sua frente a preparar os seus caminhos,
que visitou e redimiu o seu povo para dar a conhecer ao seu povo a salvação
e nos deu um Salvador poderoso pela remissão dos seus pecados,
na casa de David, seu servo, graças ao coração misericordioso do nosso Deus,
conforme prometeu pela boca dos seus santos, que das alturas nos visita como sol nascente,
os profetas dos tempos antigos, para iluminar os que jazem nas trevas
para nos libertar dos nossos inimigos e na sombra da morte
e das mãos daqueles que nos odeiam, e dirigir os nossos passos
para mostrar a sua misericórdia a favor dos nossos pais, no caminho da paz 7.
recordando a sua sagrada aliança O atual santuário manteve a estrutura da construção dos Cru-
e o juramento que fizera a Abraão, nosso pai, zados do século XII, que por sua vez, deve ter respeitado outra an-
que nos havia de conceder esta graça: terior, de origem bizantina. Os restauros realizados entre os sé-
de O servirmos um dia, sem temor, culos XVII e XX, além de consolidarem o edifício, serviram para
livres das mãos dos nossos inimigos, enriquecê-lo e efetuar valiosos estudos arqueológicos. Trata-se de
em santidade e justiça, na sua presença,
todos os dias da nossa vida. 7. Lc 1, 68-79.
34
Pegadas da nossa fé Ain Karim A pátria do Precursor 35

O interior da Igreja de

FOTOS: ALFONSO PUERTAS


S. João Baptista está
ornamentado com
azulejos de Manises
(Espanha), colocados
no século XIX. Ao
fundo da nave norte,
uma gruta escavada
na rocha conserva a
memória do
nascimento do
Precursor.

retiros. Embora esse lugar não tenha dado certo, a procura estava
bem direcionada, porque anos depois foi encontrado o terreno de
Saxum a poucos quilómetros de distância, em direção ao noroeste.
Na tarde daquele 20 de março, o Beato Álvaro foi à Igreja da
Visitação, onde um franciscano deu-lhe as boas-vindas. Depois de
passar pela cripta, subiu até à igreja para fazer oração, seguindo o
texto de S. Lucas que narra o encontro entre Nossa Senhora e Santa
uma igreja de três naves e cúpula sobre o cruzeiro, com uma gru- Isabel. No final, o Beato Álvaro segurou o braço de um fiel da Obra
ta escavada na abside do lado norte. Fazia parte, sem dúvida, de e brincou com ele, porque tinha dito que a escada para a basílica ti-
uma habitação hebraica do século I: segundo a tradição, a casa de nha uns quinze degraus, mas o Beato Álvaro contou quarenta e oito.
Zacarias; sob o altar, uma inscrição em latim indica que ali nasceu
S. João Baptista: Hic Præcursor Domini natus est.
Mistério de alegria «A atmosfera que invade o episódio
evangélico da Visitação é a alegria: o mistério da Visitação é um
O Beato Álvaro em Ain Karim Durante a sua pere- mistério de alegria. João Batista exulta de alegria no seio de Santa
grinação à Terra Santa, o Beato Álvaro foi a Ain Karim, em 20 de Isabel; e esta, cheia de alegria pelo dom da maternidade, prorrom-
Março de 1994. De manhã, de carro, tinham ido ver várias casas e pe em bênçãos ao Senhor; Maria eleva o Magnificat, hino repleto
terrenos que poderiam ser usados para futuros centros da Obra em da alegria messiânica. Mas qual é a misteriosa fonte escondida
Jerusalém. O percurso incluiu esta cidade na periferia, onde mos- de tal alegria? É Jesus, que Maria já concebeu por obra do Espíri-
traram ao Beato Álvaro alguns terrenos para uma possível casa de to Santo, e que já começa a derrotar aquilo que é a raiz do medo,
36
Pegadas da nossa fé Ain Karim A pátria do Precursor 37

da angústia e da tristeza: o pecado, a mais humilhante escravidão de fortaleza e de alegria, que remova até os corações mur-
para o homem» 8. chos e apodrecidos, e os levante para Ele 12.
A experiência – a própria e a dos outros – mostra que longe de Bem-aventurada és tu que acreditaste 13, ouviu Nossa Senhora
Deus não estamos bem, vivendo de modo egoísta; pelo contrário, dos lábios de Santa Isabel. É um elogio da sua fé, que se manifes-
aproximar-se do Senhor é fonte de alegria, reconhecê-Lo presen- tou numa entrega perfeita aos desígnios de Deus; e por essa razão
te em nós e no meio de nós como um amigo, um irmão, que nos ela é proclamada bem-aventurada, feliz. Ao mesmo tempo, Santa
acompanha e ilumina o nosso desejo de cumprir a vontade do Pai. Maria atribui tudo a Deus: Realizou em mim maravilhas aquele
«Nunca sejais homens e mulheres tristes – advertia o Papa Francis- que é poderoso 14. A medida da sua fé é a sua humildade sem me-
co poucos dias depois da sua eleição –: um cristão não o pode ser dida. Se aspiramos a que o Divino Mestre aumente a nossa fé, se-
jamais! Nunca vos deixeis invadir pelo desânimo! A nossa alegria jamos humildes, como Nossa Senhora.
não nasce do facto de possuirmos muitas coisas, mas de termos Ante o imenso panorama de almas que nos espera, ante
encontrado uma Pessoa: Jesus, que está no meio de nós; nasce do essa preciosa e tremenda responsabilidade, talvez te ocor-
facto de sabermos que, com Ele, nunca estamos sozinhos, mesmo ra pensar o mesmo que eu às vezes penso:
nos momentos difíceis, mesmo quando o caminho da vida é con-
– É comigo todo esse trabalho? Comigo que sou tão pou-
frontado com problemas e obstáculos que parecem insuperáveis...
ca coisa?
e há tantos!» 9.
Temos de abrir então o Evangelho e contemplar como Je-
Perante o perigo do desânimo, que pode vir devido a contrarie-
sus cura o cego de nascença: com barro feito de pó da terra
dades externas ou – talvez mais frequentemente – pela constata-
e de saliva. E esse é o colírio que dá luz a uns olhos cegos!
ção da miséria pessoal, um conselho de S. Josemaria servirá para
avivar a nossa fé: Sê simples. Abre o coração. Olha que não Isso somos tu e eu. Com o conhecimento da nossa fraque-
está tudo perdido. Ainda podes ir para a frente, e com mais za, do nosso nenhum valor, mas – com a graça de Deus e
amor, com mais carinho, com mais fortaleza. a nossa boa vontade – somos colírio!, para iluminar, para
emprestar a nossa fortaleza aos outros e a nós próprios 15. n
Refugia-te na filiação divina: Deus é teu Pai amantíssi-
mo. Esta é a tua segurança, o ancoradouro onde lançar a
âncora, aconteça o que acontecer na superfície deste mar
da vida. E encontrarás alegria, força, otimismo: vitória! 10.
Conscientes de ser filhos de Deus, com desejo de fazer aposto-
lado, sentiremos a necessidade de contagiar a nossa felicidade aos
outros, de iluminar as almas para que muitos não permaneçam
em trevas, mas que andem por sendas que levem até à vida
eterna 11: porque é dever de cada cristão levar a paz e a fe-
licidade pelos diversos ambientes da Terra, numa cruzada

8. S. João Paulo II, Homilia, 31-V-1979. 12. S. Josemaria, Sulco, n. 92.


9. Francisco, Homilia, 24-III-2013. 13. Lc 1, 45.
10. S. Josemaria, Via Sacra, VII estação, ponto 2. 14. Lc 1, 49.
11. S. Josemaria, Forja, n. 1. 15. S. Josemaria, Forja, n. 370.
38 Pegadas
DA NOSSA fé 3 39

Belém
Basílica da Natividade

E
stamos no Natal. Acodem-nos à memória os diversos
factos e circunstâncias que rodearam o nascimento
do Filho de Deus e o nosso olhar detém-se na gruta
de Belém 1. Calcula-se que Belém tenha sido fundada pelos cana-
neus, por volta do ano 3000 antes de Cristo. É mencionada em algu-
mas cartas enviadas pelo governador egípcio da Palestina ao faraó,
perto do ano 1350 a. C. Depois foi conquistada pelos filisteus. Na
Sagrada Escritura, alude-se pela primeira vez a Belém – que então
se chamava também Efrata: a fértil – no livro do Génesis, quando
se relata a morte e sepultura de Raquel, a segunda esposa do pa-
triarca Jacob: Raquel morreu e foi sepultada no caminho de Efra-
ta, quer dizer, de Belém 2. Mais à frente, quando se distribuíram
as terras entre as tribos do povo eleito, Belém foi atribuída à tribo
de Judá e foi berço de David, o pequeno pastor – filho mais novo
de uma família numerosa –, escolhido por Deus para segundo rei
de Israel. A partir de então, Belém ficou unida à dinastia davídica,
DUBY TAL / ALBATROSS / ALAMY STOCK PHOTO

e o profeta Miqueias anunciou que aí, nesse local insignificante


para os olhos humanos, havia de nascer o Messias:
De ti, Belém-Efrata,
pequena entre as cidades de Judá,

1. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 22.


Vista aérea do
2. Gen 35, 19.
conjunto da
Natividade.
40
Pegadas da nossa fé Belém Basílica da Natividade 41

de ti sairá aquele que há de reinar sobre Israel. Nos começos do século I, Belém era uma aldeia que não conta-
As suas origens remontam aos tempos de outrora, ria com mais de mil habitantes. Estava formada por um pequeno
aos dias mais antigos. conjunto de casas disseminadas pela encosta de uma colina, pro-
Por isso Deus os abandonará, tegidas por uma muralha que estaria em más condições de con-
até à altura em que der à luz servação, ou mesmo em boa parte desmoronada, já que tinha sido
aquela que há de ser mãe. construída quase mil anos antes. Os habitantes viviam da agricul-
Então voltará para os filhos de Israel tura e da criação de gado. Havia bons campos de trigo e de cevada
o resto dos seus irmãos. na extensa planície no sopé da colina: talvez se deva a estes culti-
Ele se levantará para apascentar o seu rebanho vos o nome de Bet-Léjem, que em hebraico significa «Casa do pão».
pelo poder do Senhor, Além disso, nos campos mais próximos do deserto, pastavam re-
pelo nome glorioso do Senhor, seu Deus. banhos de ovelhas.
Viver-se-á em segurança, A pequena aldeia de Belém continuou a contar os dias da sua
porque ele será exaltado até aos confins da terra. monótona existência agrícola e provinciana até que se deu o inau-
Ele será a paz 3. dito acontecimento que a faria famosa para sempre em todo o mun-
Neste texto encontramos vários elementos relacionados com do. S. Lucas relata-o com admirável simplicidade:
as profecias messiânicas de Isaías 4 e também com outras passa- Naqueles dias, saiu um édito de César Augusto, para ser re-
gens das Escrituras em que se anuncia um futuro descendente de censeada toda a terra. Este primeiro recenseamento efetuou-se
David 5. A tradição judaica viu nas palavras de Miqueias um vati- quando Quirino era governador da Síria. Todos se foram recen-
cínio sobre a chegada do Messias, como ficou expresso em vários sear, cada um à sua cidade. José subiu também da Galileia, da ci-
lugares do Talmude 6. Também S. João, no seu Evangelho, se faz dade de Nazaré, à Judeia, à cidade de David, chamada Belém, por
eco da opinião dominante entre os judeus do tempo de Jesus acer- ser da casa e da descendência de David, a fim de se recensear com
ca da procedência do Messias: Não diz a Escritura que o Messias Maria, sua esposa, que estava para ser mãe 9.
será da linhagem de David e virá de Belém, a cidade de David? 7. Cerca de cento e cinquenta quilómetros separavam Nazaré de
Mas é no Evangelho de S. Mateus, onde se cita explicitamente a Belém. A viagem tornar-se-ia particularmente dura para Maria, no
profecia de Miqueias, quando Herodes reúne os sacerdotes e escri- estado em que se encontrava.
bas para lhes perguntar onde devia nascer o Messias: Em Belém da As casas de Belém eram humildes e, como noutros lugares da
Judeia – responderam eles –, porque assim está escrito pelo Pro- Palestina, os vizinhos aproveitavam as grutas naturais como arma-
feta: «Tu, Belém, terra de Judá, não és de modo nenhum a menor zéns e estábulos, ou então escavavam-nas na encosta. Jesus nasceu
entre as principais cidades de Judá, pois de ti sairá um chefe, que numa destas grutas:
será o Pastor de Israel, meu povo» 8.
Enquanto ali se encontravam, chegou o dia de ela dar à luz,
e teve o seu Filho primogénito. Envolveu-O em panos e dei-
tou-O numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na
3. Mi 5, 1-4.
hospedaria 10.
4. Cf. Is 7, 14; 9, 5-6; 11, 1-4.
5. Cf. 2 Sam 7, 12; 12-16; Sl 89, 4.
6. Cf. Pesajim 51, 1 e Nedarim 39, 2.
7. Jo 7, 42. 9. Lc 2, 1-5.
8. Mt 2, 5-6. 10. Lc 2, 6-7.
42
Pegadas da nossa fé Belém Basílica da Natividade 43

A porta da a tua realeza: o diadema, a espada, o cetro? Pertencem-


LEOBARD HINFELAAR

basílica mede -Lhe, mas Ele não os quer; reina envolto em paninhos. É
apenas um
metro e meio um rei inerme, que se nos apresenta indefeso; é uma crian-
de altura. ça. Como não havemos de recordar aquelas palavras do
Apóstolo: aniquilou-Se a Si mesmo, tomando a forma de
servo (Fil 2, 7)?
Nosso Senhor encarnou para nos comunicar a Vontade
do Pai. E começa a instruir-nos estando ainda no presépio.
Jesus Cristo procura-nos com uma vocação que é vocação à
santidade, a fim de com Ele consumarmos a redenção. Con-
siderai o seu primeiro ensinamento: temos de corredimir à
custa de triunfar, não sobre o próximo, mas sobre nós mes-
mos. Tal como Cristo, precisamos de nos aniquilar, de nos
sentir servidores dos outros, para os conduzirmos a Deus.
Onde está o nosso Rei? Não será que Jesus quer reinar,
antes de mais, no coração, no teu coração? Por isso Se fez
menino 11.

A gruta venerada Temos meditado muitas vezes, cal-


mamente, até os mínimos pormenores das circunstâncias que
acompanharam a chegada à terra do Nosso Salvador. Também os
discípulos do Senhor e os primeiros cristãos estavam plenamente
conscientes, desde o início, da importância que Belém tinha adqui-
rido. Em meados do século II, S. Justino, que era natural da Palesti-
na, repetia as recordações que os habitantes da aldeia transmitiam
de pais para filhos sobre a gruta, utilizada como estábulo, em que
Jesus tinha nascido 12. Nos primeiros decénios do século seguinte,
Orígenes confirma que o lugar onde nasceu o Senhor era perfei-
A Providência Divina tinha disposto os acontecimentos para tamente conhecido naquela localidade, mesmo entre os que não
que Jesus – o Verbo feito carne, o Rei do mundo e Senhor da his- eram cristãos: «Em sintonia com o que se conta nos Evangelhos,
tória – nascesse rodeado de uma pobreza total. Nem sequer pôde em Belém pode ver-se a gruta onde nasceu [Jesus] e, dentro da gru-
gozar do mínimo de comodidades que uma família humilde teria ta, a manjedoura em que foi reclinado envolto em paninhos. E o
preparado com carinho para o nascimento do seu filho primogé- que naqueles lugares se pode ver é famoso mesmo entre pessoas
nito: só teve uns paninhos e uma manjedoura.
Contemplo agora Jesus, deitado numa manjedoura (Lc 11. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 31.
2, 12), num lugar próprio para animais. Onde está, Senhor, 12. Cf. S. Justino, Diálogo com Trifão, 78, 5.
44
Pegadas da nossa fé Belém Basílica da Natividade 45

alheias à fé; nesta gruta, diz-se, nasceu aquele Jesus que os cristãos
STANISLAO LEE / CTS

admiram e adoram» 13.
Em tempos do imperador Adriano, as autoridades do Império
edificaram templos pagãos em vários locais venerados pelos pri-
meiros cristãos – por exemplo, no Santo Sepulcro e no Calvário –,
com o intuito de apagar os vestígios da passagem de Nosso Senhor
pela terra: «Desde os tempos de Adriano até ao império de Cons-
tantino, durante cerca de cento e oitenta anos, no lugar da Res-
surreição prestava-se culto a uma estátua de Júpiter e, no rochedo
da cruz, a uma imagem de Vénus, de mármore, ali colocada pelos
gentios. Os autores da perseguição imaginavam, sem dúvida, que,
se contaminassem os lugares sagrados por meio dos ídolos, iam-
-nos tirar a fé na Ressurreição e na Cruz» 14. Algo análogo pode ter
acontecido em Belém, já que o lugar onde nasceu Jesus foi conver-
tido num bosque sagrado em honra do deus Adónis. S. Cirilo de
Jerusalém viu os terrenos, onde se encontrava a gruta, cobertos de
árvores 15, e S. Jerónimo também se refere à tentativa falhada de pa-
ganizar esta memória cristã com palavras não isentas de uma certa
ironia: «Belém, que agora é nossa, o lugar mais augusto do mundo,
aquele de que disse o salmista: da terra germinou a Verdade (Sl 84,
12), esteve sob a sombra de um bosque de Tamuz, quer dizer, de
Adónis, e na gruta onde outrora Cristo deu os seus primeiros vagi-
dos, chorava-se o amado de Vénus» 16.
Apoiando-se nesta tradição, contínua e unânime, o imperador
Constantino mandou construir uma grande basílica sobre a gru-
ta: foi consagrada a 31 de Maio de 339, e Santa Helena, que ti-
nha impulsionado decididamente esta empresa, esteve presente
na cerimónia.
Não é muito o que se conserva da primitiva basílica, que foi sa-
queada e destruída durante uma revolta dos samaritanos, no ano
529. Quando se restabeleceu a paz, Belém foi fortificada, e o impe-
rador Justiniano mandou construir uma nova basílica, que foi edi-

13. Orígenes, Contra Celso, 1, 51.


14. S. Jerónimo, Epistola LVIII. Ad Paulinum presbyterum, 3.
15. S. Cirilo de Jerusalém, Catequese, 12, 20: «Até há poucos anos, tratava-se de um lugar
povoado de bosques».
ILUSTRAÇÃO ADAPTADA
16. S. Jerónimo, Epistola LVIII. Ad Paulinum presbyterum, 3.
POR JULIÁN DE VELASCO.
46
Pegadas da nossa fé Belém Basílica da Natividade 47

MARIE-ARMELLE BEAULIEU / CTS

LEOBARD HINFELAAR

ALFRED DRIESSEN
Sob a nave central conserva-se uma grande parte dos
mosaicos do pavimento pertencente à basílica original.

sua terra. O templo saiu igualmente quase incólume da violenta


incursão na Terra Santa do califa egípcio El Hakim, no ano 1009,
bem como dos furiosos combates que se seguiram à chegada dos
Cruzados em 1099.
Depois de várias vicissitudes históricas, que seria prolixo re-
latar, em 1347 foi concedida aos franciscanos a custódia da Gru-
ta e da Basílica. Atualmente continuam ali, embora os ortodoxos
gregos, sírios e arménios também detenham direitos sobre este
Lugar Santo.
A partir da praça que há diante da basílica, o visitante tem a im-
pressão de se encontrar frente a uma fortaleza medieval: grossos
muros e contrafortes, com janelas escassas e pequenas. Entra-se por
uma porta tão diminuta que obriga a passar uma pessoa de cada
vez, e mesmo assim, com dificuldade: é preciso inclinar-se bastan-
Os mosaicos das paredes são da época das Cruzadas.
te. Bento XVI referiu-se a este acesso ao templo na sua homilia da
Santa Missa do Natal de 2011:
ficada no mesmo lugar da primeira, mas com proporções maiores. — «Hoje, quem entra na igreja da Natividade de Jesus em Be-
É a que chegou até nós, tendo sido salva durante as diversas inva- lém dá-se conta de que o portal de outrora com cinco metros e meio
sões em que foram destruídos os outros templos da época cons- de altura, por onde entravam no edifício os imperadores e os ca-
tantiniana ou bizantina. Conta-se que os persas, que no ano 614 lifas, foi em grande parte entaipado, e ficou apenas uma pequena
devastaram quase todas as igrejas e mosteiros da Palestina, respei- abertura com metro e meio de altura. Provavelmente isso foi feito
taram a Basílica de Belém ao encontrar no seu interior um mosaico com a intenção de proteger melhor a igreja contra eventuais assal-
onde os Reis Magos estavam representados com trajes usados na tos, mas sobretudo para evitar que se entrasse a cavalo na casa de
48
Pegadas da nossa fé Belém Basílica da Natividade 49

ENRIQUE BERMEJO / CTS

rosada, dão-lhe um aspeto harmonioso. Nalguns lugares, é possí-


vel apreciar os mosaicos que adornavam o pavimento da primitiva
igreja constantiniana; nas paredes, também se conservam fragmen-
tos de outros mosaicos que datam do tempo das Cruzadas.
Mas o centro desta grande igreja é a Gruta da Natividade, que
se encontra sob o presbitério: tem a forma de uma capela de re-
duzidas dimensões, com uma pequena abside do lado oriental. O
fumo das velas, que a piedade popular aí acendeu durante gera-
ções e gerações, escureceu as paredes e o teto. Tem um altar e, por
baixo deste, uma estrela de prata, que assinala o lugar onde Cristo
nasceu da Virgem Maria. Acompanha-a uma inscrição, que reza:
Hic de Virgine Maria Iesus Christus natus est.
A manjedoura onde Maria deitou o Menino, depois de o envol-
ver em paninhos, encontra-se numa capelinha anexa. Na verdade é
uma escavação na rocha, embora hoje esteja recoberta de mármore
e anteriormente de prata. Em frente, há um altar chamado dos Reis
Magos, porque tem um retábulo com a cena da Epifania. O Beato
Álvaro celebrou ali a Santa Missa no dia 19 de Março de 1994, e na
homilia referiu-se à pobreza extrema em que nasceu Jesus:
— «O Senhor podia ter vindo ao mundo para realizar a Reden-
ção do género humano revestido de um poder e majestade extraor-
dinários, mas escolheu vir no meio de uma pobreza incrível. Ven-
O Beato Álvaro celebrou a Santa Missa no dia 19 de Março de do estes lugares, fica-se assustado: não havia nada de nada, salvo
1994 na Gruta da Natividade, no altar que se vê à direita. muito amor a Deus e muito amor a nós! Por isso, Jesus decidiu
tomar a nossa carne e não considerou isso uma humilhação – Ele,
que era Deus – deixar de ter o aspeto de Deus – que é um aspeto
Deus. Quem deseja entrar no lugar do nascimento de Jesus deve
inefável, que não pode explicar-se – para Se tornar igual a nós em
inclinar-se. Parece-me que nisto se encerra uma verdade mais pro-
tudo, exceto no pecado (cf. Fil 2, 7; Heb 4, 15). Com a diferença de
funda, pela qual nos queremos deixar tocar nesta noite santa: se
que Ele decidiu morrer, e com que morte!: a da Cruz, uma morte
quisermos encontrar Deus manifestado como menino, então de-
tremenda. Esse Menino, que nasce em Belém, nasce para morrer
vemos descer do cavalo da nossa razão “iluminada”. Devemos de-
por nós» 18. n
por as nossas falsas certezas, a nossa soberba intelectual, que nos
impede de perceber a proximidade de Deus» 17.
A basílica – de planta em forma de cruz latina e cinco naves –
tem 54 metros de comprimento. As quatro filas de colunas, de cor

18. Beato Álvaro del Portillo, Homilia, 19-III-1994, recolhida em Crónica, 1994, p. 342
17. Bento XVI, Homilia, 24-XII-2011. (AGP, biblioteca, P01).
50 Pegadas
DA NOSSA fé 4 51

Nesta região, David apascentava o gado do pai quando foi un-

ALFRED DRIESSEN
gido por Samuel 1, e três gerações antes, sua bisavó Rute respigava
Santuário do Gloria os campos de trigo e cevada atrás dos ceifeiros de Booz 2. Séculos
in excelsis Deo. mais tarde, quando chegou o momento da vinda do Filho de Deus
à terra, ali ocorreu o primeiro anúncio do nascimento de Jesus: Ha-
via naquela região uns pastores que viviam nos campos e guarda-
vam de noite os rebanhos. O Anjo do Senhor aproximou-se deles
e a glória do Senhor cercou-os de luz; e eles tiveram grande medo.
Disse-lhes o Anjo:
— Não temais, porque vos anuncio uma grande alegria para
todo o povo: nasceu-vos hoje, na cidade de David, um Salva-
dor, que é Cristo Senhor. Isto vos servirá de sinal: encontrareis
um Menino recém-nascido, envolto em panos e deitado numa
manjedoura 3.
Embora o relato do Evangelho não permita identificar com cer-
teza o lugar daquela aparição, os cristãos logo a situaram numa lo-
calidade cerca de dois ou três quilómetros a leste de Belém, onde se
encontra hoje a povoação de Bet Sahur: a casa dos vigias. S. Jeróni-
mo menciona-a 4, associando-a com o local bíblico chamado Mig-

Belém
daléder – a torre de Ader ou do rebanho –, onde Jacob estabeleceu o
seu acampamento após a morte de Raquel 5. No período bizantino
– séculos IV ou V –, foi edificado ali um santuário dedicado aos pas-
tores; a igreja de Jerusalém celebrava uma festa na vigília de Natal
e também se venerava uma gruta. Existiu ainda um mosteiro, mas
quando os Cruzados chegaram disto tudo apenas ficavam ruínas.

Campo dos Pastores Séculos mais tarde, já na época moderna, dois lugares diferen-
tes da povoação de Bet Sahur conservavam a memória das antigas
tradições. O primeiro era conhecido como Der er-Ruat e encontra-
va-se na parte ocidental da localidade, que quase chegou a ser um

B
bairro de Belém. Ali havia algumas ruínas de um pequeno santuá-
elém e arredores ocupam um terreno suavemente ondula- rio bizantino. Atualmente existem nessa zona uma igreja ortodo-
do. Nalgumas colinas, o declive foi escalonado em socalcos
com plantações de oliveiras; nos vales, as áreas mais planas
estão divididas em campos agrícolas; e nas terras não cultivadas, 1. Cf. 1 Sam 16, 1-13.
onde aparece logo o estrato rochoso, cresce uma vegetação disper- 2. Cf. Rt 2, 1-17.
3. Lc 2, 8-12.
sa, tipicamente mediterrânica, constituída por pinheiros, ciprestes
4. Cf. S. Jerónimo, Epistola CVIII. Epitaphium Sanctæ Paulæ, 10.
e diversas espécies de arbustos. 5. Cf. Gen 35, 21.
52
Pegadas da nossa fé Belém Campo dos pastores 53

LEOBARD HINFELAAR

Al Qubeibeh

Abu Gosh
A caminho
de Jericó

Cidade
Velha Betfagé
Betânia
Jerusalém

ILUSTRAÇÃO: J. GIL.
Ain
Karim

Campo dos Pastores


em Siyar al-Ghanam
Basílica da
Natividade
Belém Bet Sahur
Nas absides, estão representadas
BERTHOLD WERNER / WIKIMEDIA COMMONS

Paróquia
católica em
as cenas do anúncio celestial, da Der er-Ruat 0 km 5

adoração do Menino e dos 0 mi 3

pastores retornando de Belém.


JAMIE LYNN ROSS / FLICKR

culo XIX. As escavações realizadas entre 1951 e 1952 – continuação


de outras parciais de 1859 – encontraram dois mosteiros que foram
habitados entre os séculos IV e VIII. A igreja do primeiro teria sido
demolida no século VI e reconstruída na mesma área, mas deslo-
cando a abside ligeiramente para leste, o que sugere uma relação
com alguma recordação específica. O conjunto era composto por
inúmeras instalações agrícolas – prensas, tanques, silos, cisternas –
e aproveitava as grutas da zona. Estas teriam sido utilizadas já nos
tempos de Jesus, a julgar pelos achados de peças de cerâmica per-
tencentes à época de Herodes. Também se conservam vestígios de
uma torre de vigia.
xa, construída em 1972, e a paróquia católica, edificada em 1951 e Sobre uma rocha que domina essas ruínas do Campo dos Pas-
dedicada a Nossa Senhora de Fátima e a Santa Teresa de Lisieux. tores, a Custódia da Terra Santa construiu, entre 1953 e 1954, o
O segundo lugar, à distância de quase um quilómetro a nor- Santuário do Gloria in excelsis Deo, onde se comemora o primei-
deste, encontrava-se na povoação de Siyar el-Ghanam, o campo dos ro anúncio do nascimento de Cristo. Chega-se até lá através de
pastores. Numa encosta onde há abundantes grutas naturais, havia um caminho lajeado, ladeado por pinheiros e ciprestes. A vista do
um terreno com ruínas, que foi adquirido pelos franciscanos no sé- exterior, com planta em forma de decágono e paredes inclinadas,
54
Pegadas da nossa fé Belém Campo dos pastores 55

Dez anjos que louvava a Deus, dizendo: «Glória a Deus nas alturas e paz
BERTHOLD WERNER / WIKIMEDIA COMMONS

cercam a na terra aos homens por Ele amados» 7. Considerando esta passa-
base da
cúpula. gem, Bento XVI realça um pormenor: «Para os cristãos era claro
que este falar dos anjos é um cântico, no qual todo o esplendor da
grande alegria por eles anunciada se torna sensivelmente presente.
E assim, a partir daquele momento, nunca mais cessou o cântico
de louvor dos anjos» 8.
De modo particular, aquele coro faz ressoar, através dos séculos,
no hino do Gloria que, desde muito cedo, a Igreja incorporou na
liturgia. «Às palavras dos anjos – ensina Bento XVI –, desde o se-
gundo século foram acrescentadas algumas aclamações: “Nós Vos
louvamos, Vos bendizemos, Vos adoramos Vos glorificamos, Vos
damos graças pela vossa imensa glória”; e mais tarde, outras invo-
cações: “Senhor Deus, Cordeiro de Deus, Filho de Deus Pai, que
tirais o pecado do mundo...”, até formular um suave hino de louvor
pretende lembrar uma tenda nómada. No interior, sobressai o al- que foi cantado, pela primeira vez, na Missa de Natal e depois em
tar no centro; nas paredes, em três absides, reproduzem-se cenas todos os dias de festa. Inserido no início da Celebração eucarística,
evangélicas: a aparição celestial, a adoração do Menino e os pas- o Gloria ressalta a continuidade existente entre o nascimento e a
tores retornando de Belém. A torrente de luz que entra através da morte de Cristo, entre o Natal e a Páscoa, aspetos inseparáveis do
cúpula envidraçada traz à memória a que rodeou aqueles homens. único e mesmo mistério de salvação» 9.
Dez figuras de anjos, juntamente com o cântico que entoaram, de-
Ao recitar ou cantar o Glória durante a Santa Missa – nos dias
coram a base da cúpula: Gloria in altissimis Deo et in terra pax ho-
e tempos prescritos pela liturgia – cabe a cada um ter presentes es-
minibus bonæ voluntatis 6.
tes mistérios, em que contemplamos Jesus feito homem para assim
No dia 19 de março de 1994, durante a sua peregrinação à Ter- cumprir a vontade do Pai, revelar-nos o amor que nos tem, redi-
ra Santa, o Bem-aventurado Álvaro esteve em Belém. O momento mir-nos, restabelecer-nos na nossa vocação de filhos de Deus 10. Se
mais intenso foi a Santa Missa que celebrou na Gruta da Nativi- nos unirmos sinceramente ao hino angélico não só com palavras,
dade. Antes, pela manhã, no trajeto desde Jerusalém, tinha come- mas com a vida inteira, alimentaremos o desejo de imitar Cristo,
çado a oração no carro lendo a passagem de S. Lucas sobre o nasci- de cumprir também nós a vontade de Deus e de Lhe dar glória.
mento de Jesus. Acabou-a no Campo dos Pastores, em Bet Sahur,
A mensagem de Natal ressoa com toda a força: Glória
onde também visitou as ruínas veneradas.
a Deus no mais alto dos céus e paz na terra aos homens de
boa vontade (Lc 2, 14). Que a paz de Cristo triunfe no vosso
Glória a Deus no mais alto dos céus coração, escreve o Apóstolo (Col 3, 15). Paz por nos saber-
Os pastores
ouviam a mensagem, envoltos numa nuvem de luz, quando su-
bitamente juntou-se ao Anjo uma multidão do exército celeste, 7. Lc 2, 13-14.
8. Joseph Ratzinger/Bento XVI, A Infância de Jesus, Princípia, 2012, p. 65.
9. Bento XVI, Audiência geral, 27-XII-2006.
6. Lc 2, 14. 10. Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 516-518.
56
Pegadas da nossa fé Belém Campo dos pastores 57

Ruínas dos mosteiros na manjedoura. Quando O viram, começaram a contar o que lhes
LEOBARD HINFELAAR

em Siyar-el-Ghanam. tinham anunciado sobre aquele menino. E todos os que ouviam


Há várias grutas
naturais, que nos admiravam-se do que os pastores diziam 12.
tempos de Jesus podiam Faz sentido que os pastores se apressassem, pois inesperada-
servir para guardar o mente se tornaram testemunhas de um momento histórico. Na
gado. A maior está
convertida em capela.
vida espiritual e no apostolado, a docilidade às inspirações do Es-
pírito Santo leva a aproveitar as ocasiões no momento em que se
apresentam; e essa urgência, longe de causar ansiedade, é expres-
são do amor: Quando se trabalha única e exclusivamente
pela glória de Deus, tudo se faz com naturalidade, sim-
plesmente, como quem tem pressa e não pode deter-se em
ANDREW DOWSETT / FLICKR

«grandes manifestações», para não perder essa intimidade


– irrepetível e incomparável – com o Senhor 13.
O relato do Evangelho, situado em Belém e arredores, termina
com a alegria dos pastores: Retiraram-se, louvando e glorifican-
do a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido, de acordo com o
que lhes tinha sido dito 14. Mas antes, S. Lucas revela um pormenor
íntimo: Maria guardava todas estas coisas, meditando-as no seu
coração 15. Procuremos nós imitá-la, falando com o Senhor,
num diálogo cheio de amor, de tudo o que se passa connos-
co, mesmo dos acontecimentos mais insignificantes. Não
nos esqueçamos de que devemos pesá-los, avaliá-los, vê-los
com olhos de fé, para descobrirmos a Vontade de Deus 16. n

mos amados pelo nosso Pai Deus, incorporados em Cristo,


protegidos pela Virgem Santa Maria, amparados por São
José. Esta é a grande luz que ilumina a nossa vida e que,
no meio das dificuldades e misérias pessoais, nos impele a
seguir animosamente para diante 11.
Depois de ouvir o anúncio jubiloso dos anjos, os pastores foram 12. Lc 2, 15-18.
apressadamente e encontraram Maria e José e o Menino deitado 13. S. Josemaria, Sulco, n. 555.
14. Lc 2, 20.
15. Lc 2, 19.
11. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 22. 16. S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 285.
58 Pegadas
DA NOSSA fé 5 59

anos 1010 e 970 antes de Cristo. Devido à sua situação topográfi-

O Templo
ca, a cidade tinha permanecido durante séculos como um enclave
do povo jebuseu, inexpugnável para os israelitas na sua conquista
da terra prometida. Ocupava o cimo de uma série de colinas dis-
postas como degraus em ordem ascendente: na parte sul da zona
mais elevada – ainda hoje conhecida pelos nomes de Ofel ou Ci-

de Jerusalém
dade de David –, encontrava-se a fortaleza jebuseia; na parte nor-
te, o Monte Moriá, que a tradição judaica identificava como o lu-
gar do sacrifício de Isaac 2. O maciço, com uma altura média de
760 metros acima do nível do mar, era rodeado por duas torrentes
profundas: o Cédron, no lado oriental – que separa a cidade do
Monte das Oliveiras –, e o Hinom ou Geena, a oeste e a sul. As
duas juntavam-se com uma terceira, o Tiropeon, que atravessava
as colinas de norte a sul.
Quando David tomou Jerusalém, estabeleceu-se na fortaleza
e realizou diversas construções 3, constituindo-a capital do reino.
Além disso, com a vinda da Arca da Aliança, que era o sinal da

S
presença de Deus no meio do seu povo 4, e a decisão de edificar
egundo a Lei de Moisés, uma vez decorrido o tempo da em honra do Senhor um templo para sua morada 5, converteu-a
purificação da Mãe, é preciso ir com o Menino a Jeru- no centro religioso de Israel. Segundo as fontes bíblicas, o seu fi-
salém, para O apresentar ao Senhor 1. Para um cristão, lho Salomão começou as obras do Templo no quarto ano do seu
a Cidade Santa reúne as recordações mais preciosas da passagem reinado, e consagrou-o no décimo primeiro 6, ou seja, pelo ano 960
do Nosso Salvador pela terra, porque Jesus morreu e ressuscitou a. C. Embora não seja possível chegar às evidências arqueológicas
dos mortos em Jerusalém. Esta cidade foi também cenário da sua – devido à dificuldade de realizar escavações nessa zona –, a sua
pregação e milagres, e das horas intensas que precederam a sua Pai- edificação e o seu esplendor estão pormenorizadamente descritos
xão, em que instituiu a loucura de Amor da Eucaristia. Nesse mes- na Sagrada Escritura 7.
mo lugar – no Cenáculo – nasceu a Igreja que, reunida à volta de
Maria, recebeu o Espírito Santo no dia de Pentecostes.
2. Cf. Gen 22, 2; e 2 Cro 3, 1.
Mas o protagonismo de Jerusalém na história da salvação já 3. Cf. 2 Sam 5, 6-12.
tinha começado muito antes, com o reinado de David, entre os 4. Cf. 2 Sam 6, 1-23.
5. Cf. 2 Sam 7, 1-7. Também 1 Cro 22, 1-19; 28, 1-21; e 29, 1-9.
6. Cf. 1 Re 6, 37-38.
1. S. Josemaria, Santo Rosário, IV mistério gozoso. 7. Cf. 1 Re 5, 15 – 6, 36; 7,13 – 8, 13; e 2 Cro 2, 1 – 5, 13.
60
Pegadas da nossa fé O Templo de Jerusalém 61

Terceira
muralha
(70 d. C.)
Muralha atual
da Cidade Segunda
Velha muralha Betesda
Fortaleza Piscina

on
Va Antónia de Israel

Rua ocidenta
MONTE DO

le do Cédr
le MONTE
Calvário

Cardo
do TEMPLO
Monte Monte das DO TEMPLO Templo
Templo
Ti r o
peon
Moriá Oliveiras Palácio Real Templo de Júpiter

l
Porta an o Acampamento
D ec um
de Jafa AELIA da X Legião

Va
OFEL OFEL CAPITOLINA
Fonte de Fonte de Fonte de

R ua o rienta
Ca rdo
Giom Área povoada Giom Giom

Muralha CIUDAD
DE DAVID
Ge

CIDADE da cidade CIDADE


a
en

DE DAVID DE DAVID

l
(V Piscina
ale 0m 500
de Hinom) de Siloé
Primeira
0 ft 1000 muralha

A Jerusalém de David Reinado de Salomão Destruição do segundo A nova cidade de Adriano


(ca. 1010-970 a. C.) (ca. 970-931 a. C.) Templo (70 d. C.) (135 d. C.)

Debir Hekhal
(Santo dos Santos) (Sala principal)
Basílica
Câmaras de do Santo
Sepulcro
armazenamento Ulam (Pórtico) MONTE HARAM AL-SHARIF
DO TEMPLO
Mesa dos pães Cúpula da Rocha
an o
da proposição D ec um Mesquita
de Al-Aqsa

Ca rd o M áxi m
Incenso Nea
O templo Palácios

C a r d o o rient
de Salomão dos califas

© Natio
(ca. 960 a. C.) MONTE
SIÃO
o
nal Geogr
aphic
Colunas

al
Arca da A Rocha de bronze Basílica
Aliança da Dormição
Querubins
48 m Mekhonot
157 ft (carros com bacias)
Yam Época cristã de Bizâncio Primeira época islâmica
(Banho ritual) (313-638 d. C.) (638-1099 d. C.)

Basílica Basílica
do Santo do Santo Palácio
Sepulcro Sepulcro dos paxás
MONTE DO
MONTE DO TEMPLO HARAM AL-SHARIF
TEMPLO Segunda
Templo muralha Templum Domini Cúpula da Rocha
Palácio Real Templo
Mesquita
Acre Ordem dos de Al-Aqsa
Cidadela Cavaleiros Cidadela
OFEL OFEL Templários
Fonte de Fonte de
Giom Primeira Giom Basílica da Basílica da
CIDADE muralha CIDADE Dormição Dormição
MONTE
DE DAVID DE DAVID SIÃO
Piscina Piscina
de Siloé de Siloé

Destruição do Templo Dinastia dos Asmoneus Período dos Cruzados Império otomano
(586 a. C.) (141-63 a. C.) (1099-1187 d. C.) (1516-1917 d. C.)
62
Pegadas da nossa fé O Templo de Jerusalém 63

povos. Cada um que passar diante desta casa, que foi tão eleva-
da, ficará pasmado e dirá: «Porque o Senhor fez tal coisa com esta
terra e esta casa?» 8.
A história dos séculos seguintes mostra até que ponto se cum-
priram estas palavras. Após a morte de Salomão, o reino foi dividi-
do em dois: o de Israel, a norte, com a capital na Samaria, que foi
conquistado pelos assírios no ano de 722 a. C.; e o de Judá, a sul,
com a capital em Jerusalém, que foi submetido à vassalagem por
Nabucodonosor, em 597. Por fim, o seu exército arrasou a cidade,
incluído o Templo, no ano 587, e deportou a maior parte da popu-
lação para a Babilónia.
Antes desta destruição de Jerusalém, não faltaram profetas en-
viados por Deus, que denunciavam o culto formalista e a idolatria,
e incitavam a uma profunda conversão interior; depois também
Jerusalém desde o sul em 1962; à direita, recordaram que Deus tinha condicionado a sua presença no Tem-
o Cédron e o Monte das Oliveiras. plo a uma fidelidade à Aliança, e exortaram Israel a manter a es-
perança numa reconstrução definitiva. Deste modo, foi crescendo
a convicção inspirada por Deus de que a salvação chegaria pela fi-
O Templo era o lugar do encontro com Deus através da oração e, delidade de um servo do Senhor que obedientemente tomaria so-
principalmente, dos sacrifícios; era o símbolo da proteção divina bre si os pecados do povo.
sobre o seu povo, da presença do Senhor sempre disposto a escutar Não tiveram de passar muitos anos para que os israelitas sen-
as petições e a socorrer aqueles que O invocavam nas suas carên- tissem novamente a proteção do Senhor: no ano 539 a. C., Ciro, rei
cias. Assim fica revelado nas palavras que Deus dirigiu a Salomão: da Pérsia, conquistou a Babilónia e deu-lhes liberdade para regres-
Ouvi a tua oração e escolhi este lugar como casa para receber sarem a Jerusalém. No mesmo lugar onde tinha estado o primeiro
os sacrifícios (...). Meus olhos estarão abertos e os ouvidos aten- Templo, foi edificado o segundo, mais modesto, que foi dedicado
tos à oração feita neste lugar. Pois agora escolhi e santifiquei esta no ano 515 a. C. A falta de independência política durante quase
casa dedicada a meu nome para sempre. Meus olhos e meu co- dois séculos não impediu o desenvolvimento de uma intensa vida
ração estarão nela todo o tempo. E tu, se andares na minha pre- religiosa. Esta relativa tranquilidade continuou após a invasão de
sença assim como andou teu pai David, se agires de acordo com Alexandre Magno, em 332 a. C., e também durante o governo dos
minhas ordens e observares minhas leis e decretos, firmarei teu seus sucessores egípcios, a dinastia ptolemaica. A situação mudou
trono real como prometi a teu pai David, dizendo: «Nunca ficarás no ano 200 a. C., com a conquista de Jerusalém por parte dos Se-
privado de um descendente para ser príncipe sobre Israel». Mas lêucidas, outra dinastia de origem macedónia, que se tinha esta-
se me virardes as costas e deixardes de lado as leis e decretos que belecido na Síria. As suas tentativas de impor a helenização aos
vos dei, se seguirdes deuses alheios servindo-lhes e adorando-os, povos judeus, que culminaram com a profanação do Templo em
então vos exterminarei deste chão que vos dei. E esta casa, que 175, provocaram um levantamento. O triunfo da revolta dos Ma-
consagrei a meu nome, a lançarei para longe de minha vista, de
modo que será objeto de comentário e zombaria entre todos os 8. 2 Cro 7, 12-21. Cf. 1 Re 9, 1-9.
314 m
1.030 ft

N
64 Monte do Templo
de Herodes Pegadas da nossa fé
Fortaleza Antónia O Templo de Jerusalém 65
Primeiro monte do Templo Piscina
(Salomão) Templo de MON de Israel
Herodes TE D
1.540 ft
1.590 ft

469 m
O TE
485 m

Porta de MP
Nicanor Átrio dos LO
israelitas
Ampliação asmoneia Átrio das mulheres
(141 a. C.)
280 m Altar
920 ft
Porta
oriental

Portas de
Hulda Porta Debir
sul (Santo dos Hekhal
Inscrição
de Soreg Santos) (Sala
Reconstrução do principal)
o

E

ST
d

Templo de Herodes
sa
as

E
P

(ca. 10 a. C.)

L
Obra
conservada
da época Véu
herodiana Lojas
Porta O lado sul estava ocupado pelo maior Câmaras de O Templo
dupla SUL edifício do complexo, conhecido como armazenamento de Herodes
Pórtico Real. O Sinédrio dispunha ali
Templo Porta
de algumas dependências. Mesa dos (ca. 10 a. C.)
tripla
pães da
A Rocha Incenso proposição
Porta das Colunas douradas
Tribos enfeitadas com
Muro Muro Piscina dos
ocidental oriental HA Filhos de Israel Menorah vides de ouro
RA
M A
L-S A Rocha
H ARI
F
Cúpula da © Na
tiona
Rocha 52,5 m l Geo
graph
ic
Porta da 172 ft
Corrente
Ulam (pórtico)
Ruinas do
Cúpula
C da Templo
Muro das
Corrente Porta da
Lamentações Misericórdia

Mesquita
de Al-Aqsa
A água da chuva era recolhida
em mais de 30 cisternas Construção da
sob a plataforma
Cúpula da Rocha
(691 d. C.) e da
Rocha
Aterro Mesquita de Al-Aqsa cabeus não só permitiu restaurar o culto do Templo, em 167, como
(715 d. C.)
também proporcionou que os seus descendentes, os Asmoneus,
Porta do
Profeta As galerias que suportavam a ampliação
do segundo Templo foram utilizadas como
reinassem na Judeia.
cavalariças pelos Cruzados do século XII,
que as identificaram erradamente com No ano 63 a. C., a Palestina caiu nas mãos do general romano
os Estábulos de Salomão.

Palácio
Pompeu, dando início a uma nova época. Herodes, o Grande, fez-
Porta
dos califas
Omíadas
tripla -se nomear rei por Roma, que lhe adjudicou um exército. No ano
0 km 2 37 a. C., após ter garantido o poder por meios não isentos de bruta-
Porta Porta de
0 mi 2 lidade, conquistou Jerusalém e começou a embelezá-la com novas
Nova
BA
Damasco
Porta de
Herodes Haram construções: a mais ambiciosa de todas foi o restauro e ampliação
IRR al-Sharif/
do Templo, que levou a cabo a partir do ano 20 a. C.
Cidade
OC BAI Velha Monte
Patriarcado
RIS RRO do Templo
TÃO MU
Greco-Ortodoxo ÇUL Jerusalém
Porta Mosteiro da M ANO
de Jafa Flagelação
DO V
Basílica do LORIA
OS

A apresentação de Jesus
Cidadela Santo Sepulcro A Igreja de
B Santa Ana
AR AIR
MÉ RO
NIO Porta de Santo Estêvão
(ou dos Leões)
A Cidade Velha Santa Maria e São José teriam
de Jerusalém
peregrinado a Jerusalém na sua infância e, portanto, já conhece-
Catedral
de Santiago Cúpula Igreja de
Patriarcado
Ortodoxo Muro das da Rocha Santo Estêvão na atualidade
Arménio BA
JUD IRRO
Lamentações
Porta
Dourada
riam o Templo quando, terminados os dias da purificação, levaram
Basílica da EU (tapada)
Dormição
Mesquita
Cenáculo Porta de Al-Aqsa
de Sião Porta do Es c
a va
Monturo çõe Copyright © 2008 National Geographic
s
Courtesy of National Geographic Magazine
66
Pegadas da nossa fé O Templo de Jerusalém 67

A escada da Reconstrução
EILAT MAZAR

BALAGE BALOG
Dupla Porta artística das
antes da sua passagens
restauração. subterrâneas que
conduziam à
esplanada do
Templo.

Jesus a Jerusalém, para O apresentarem ao Senhor 9. Eram neces-


sárias várias horas para percorrer, a pé ou de cavalgadura, os dez
quilómetros que separam Belém da Cidade Santa. Talvez estives-
sem impacientes por cumprir uma prescrição de cujo verdadeiro
alcance poucos suspeitavam: «A Apresentação de Jesus no Templo
mostra-O como o Primogénito que pertence ao Senhor» 10. Com a
finalidade de recordar a libertação do Egito, a Lei de Moisés ordena-
va a consagração a Deus do primeiro filho varão 11; os pais deviam
enormes de contenção – alguns com quatro metros e meio de es-
resgatá-lo mediante uma oferenda, que consistia numa quantidade
pessura – e enchendo as ladeiras com terra ou com uma estrutura
de prata equivalente ao salário de vinte dias. A Lei também deter-
de arcos subterrâneos. Formou assim uma plataforma quadrangu-
minava a purificação legal das mães depois de terem dado à luz 12;
lar, cujos lados mediam 485 metros a oeste, 314 a norte, 469 a este e
Maria Imaculada, sempre virgem, quis submeter-se com naturali-
280 a sul. No centro, rodeado por sua vez por outro recinto, erguia-
dade a este preceito, embora de facto não estivesse a ele obrigada.
-se o Templo propriamente dito: era um bloco imponente, cober-
O caminho até Jerusalém segue a ondulação das colinas numa to de pedra branca e placas de ouro, com uma altura de 50 metros.
leve descida. Quando já estavam perto, veriam perfilado no ho-
O caminho de Belém ia ter à porta de Jafa, situada no lado oeste
rizonte, a partir de alguma curva, o Monte do Templo. Herodes
da muralha da cidade. A partir daí, várias ruelas conduziam qua-
tinha feito duplicar a superfície da esplanada construindo muros
se em linha reta até ao Templo. Os peregrinos costumavam entrar
pelo flanco sul. No sopé dos muros havia numerosos vendedores,
9. Lc 2, 22. onde S. José e a Virgem Maria podiam comprar a oferenda pela
10. Catecismo da Igreja Católica, n. 529.
purificação prescrita para os pobres: um par de rolas ou dois pom-
11. Cf. Ex 13, 1-2 e 11-16.
12. Cf. Lev 12, 2-8. binhos. Subindo por uma das amplas escadarias e atravessando a
68
Pegadas da nossa fé O Templo de Jerusalém 69

À esquerda, vista de

ALBERTO PERAL / ISRAELI MINISTRY OF TOURISM


uma reconstrução
do Templo com o
átrio das mulheres
em primeiro plano.
À direita, acesso
oriental à cúpula
da Rocha, que
alguns estudiosos
identificam com a
escada semicircular
que conduzia à
porta de Nicanor.

e a que correspondia à superfície da esplanada precedente, cujos


muros tinham sido respeitados. Sempre barulhento pelo rumor
das multidões, o átrio acolhia indistintamente todos os que que-
riam reunir-se naquele lugar, estrangeiros e israelitas, peregrinos
e habitantes de Jerusalém. Este bulício misturava-se ainda com o
barulho dos operários, que continuavam a trabalhar em muitas
zonas ainda por terminar.
S. José e Nossa Senhora não se detiveram ali. Atravessando o
muro que dividia o átrio pelas portas de Hulda, e deixando para
trás o soreg – a balaustrada que delimitava a parte proibida aos gen-
tios, sob pena de morte –, chegaram finalmente ao recinto do tem-
plo, no qual se entrava pelo lado oriental. Talvez tenha sido então,
que, no átrio das mulheres, o velho Simeão se aproximou deles. Ti-
nha ido ali impelido pelo Espírito 13, com a certeza de que naquele
dia veria o Salvador, e procurava-o no meio da multidão. Vultum
tuum, Domine, requiram!, repetia S. Josemaria, no final da sua
vida, para expressar o seu anseio de contemplação. Os apaixo-
chamada Porta Dupla, acedia-se à esplanada através de corredores nados só têm olhos para o seu amor. Não é lógico que seja
subterrâneos monumentais. assim? O coração humano sente esses imperativos. Menti-
A passagem desembocava no átrio dos gentios, a parte mais es- ria se negasse que me move tanto o desejo de contemplar a
paçosa daquela superfície gigantesca. Estava dividida em duas zo- face de Jesus (...). Gosto muito de fechar os olhos e pensar
nas: a que ocupava a ampliação ordenada por Herodes, ampliação
cujo perímetro exterior contava com alguns pórticos magníficos; 13. Lc 2, 27.
70
Pegadas da nossa fé O Templo de Jerusalém 71

que chegará o momento, quando Deus quiser, em que O po- na ressurreição do seu Filho. Levando o Filho a Jerusalém, a Vir-
derei ver, não como num espelho e sob imagens obscuras... gem Mãe oferece-O a Deus como verdadeiro Cordeiro que tira os
mas cara a cara (1 Cor 13, 12). Sim, filhos, o meu coração pecados do mundo» 19.
está sedento de Deus, do Deus vivo! Quando poderei con- Ainda impressionados pelas palavras de Simeão, a que se se-
templar a face de Deus? (Sl 41, 3) 14. guiu o encontro com a profetisa Ana, S. José e Nossa Senhora di-
Finalmente, Simeão reconheceu o Messias no Menino, rece- rigir-se-iam para a porta de Nicanor, situada entre o átrio das mu-
beu-O em seus braços e bendisse a Deus, exclamando: «Agora, lheres e o dos israelitas. Provavelmente subiriam os quinze degraus
Senhor, segundo a vossa palavra, deixareis ir em paz o vosso ser- da escadaria semicircular para se apresentarem perante o sacerdote,
vo, porque os meus olhos viram a vossa salvação, que pusestes ao que teria recebido as oferendas e abençoado a jovem esposa me-
alcance de todos os povos: luz para se revelar às nações e glória diante um rito de aspersão. Com essa cerimónia foi resgatado o
de Israel, vosso povo» 15. Filho e purificada a Mãe.
«Nesta cena evangélica – ensina Bento XVI – revela-se o mis- Estás a ver?, escreveu S. Josemaria contemplando a cena. Ela
tério do Filho da Virgem, o consagrado do Pai, que veio ao mun- – a Imaculada! – submete-se à Lei como se estivesse imunda.
do para cumprir fielmente a sua vontade (cf. Heb 10, 5-7). Simeão Aprenderás com este exemplo, menino tonto, a cumprir
indica-o como “luz para iluminar as nações” (Lc 2, 32) e anuncia a Santa Lei de Deus, apesar de todos os sacrifícios pessoais?
com palavra profética a sua oferta suprema a Deus e a sua vitória Purificação! Sim, tu e eu, é que precisamos de purifi-
final (cf. Lc 2, 32-35). É o encontro dos dois Testamentos, Antigo e cação! Expiação e, além da expiação, o Amor. – Um amor
Novo. Jesus entra no antigo templo, Ele que é o novo Templo de que seja cautério: que abrase a imundície da nossa alma,
Deus: vem visitar o seu povo, obedecendo à Lei e inaugurando os e fogo que incendeie, com chamas divinas, a miséria do
tempos últimos da salvação» 16. nosso coração 20.
Simeão abençoou os jovens esposos e depois se dirigiu a Nos- A Igreja condensa os aspetos deste mistério na sua oração litúr-
sa Senhora: Este Menino foi estabelecido para que muitos caiam gica: «Deus eterno e todo-poderoso, ouvi as nossas súplicas. Assim
ou se levantem em Israel e para ser sinal de contradição; e uma como o vosso Filho único, revestido da nossa humanidade, foi hoje
espada trespassará a tua alma. Assim se revelarão os pensamen- apresentado no templo, fazei que nos apresentemos diante de vós
tos de todos os corações 17. No ambiente de luz e alegria que ro- com os corações purificados» 21.
deia a chegada do Redentor, estas palavras completam o que Deus
foi dando a conhecer: recordam que Jesus nasce para oferecer uma
oblação perfeita e única, a da Cruz 18. Quanto a Maria, «o seu pa- Não ficará pedra sobre pedra Jesus Cristo profeti-
pel na história da salvação não termina no mistério da Encarnação,
zou que do Templo não ficaria pedra sobre pedra 22. Essas palavras
mas se completa na amorosa e dolorosa participação na morte e
cumpriram-se no ano 70, quando o Templo foi incendiado durante
o cerco das legiões romanas. Cinquenta anos mais tarde, reprimi-
14. S. Josemaria, Notas de uma meditação, 25-XII-1973, recolhidas em Javier Echevarría, da a segunda sublevação e expulsos os judeus de Jerusalém, sob
Carta, 1-VI-2010.
15. Lc 2, 28-31.
16. Bento XVI, Homilia na celebração das Vésperas na festa da Apresentação do Senhor, 19. Bento XVI, Homilia da Missa na festa da Apresentação do Senhor, 2-II-2006.
2-II-2011. 20. S. Josemaria, Santo Rosário, IV mistério gozoso.
17. Lc 2, 34-35. 21. Missal Romano, Oração colecta na festa da Apresentação do Senhor.
18. Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 529. 22. Mt 24, 2; Mc 13, 2; Lc 19, 44 e 21, 6.
72
Pegadas da nossa fé O Templo de Jerusalém 73

pena de morte, o imperador Adriano ordenou a construção de uma que outrora poderia ter ocupado o Santo dos Santos, a da Cúpula
nova cidade sobre as ruínas da antiga. Chamou-lhe Aelia Capito- da Rocha, terminada no ano 691, que ainda conserva a arquitetura
lina. Sobre as ruínas do Templo, foram levantados monumentos original. Ao sul, onde se encontrava o maior pórtico da época de
com as estátuas de Júpiter e do próprio imperador. Herodes, a mesquita de Al-Aqsa, que foi acabada em 715, embora
No século IV, quando Jerusalém se converteu numa cidade cris- tenha sido submetida a vários restauros importantes ao longo da
tã, construíram-se numerosas igrejas e basílicas nos Lugares San- sua história. Desde então, excetuando os breves reinados dos Cru-
tos. Contudo, o Monte do Templo ficou abandonado, embora se zados dos séculos XII e XIII, os muçulmanos sempre tiveram direi-
permitisse aos judeus o acesso num dia por ano para rezar ao pé tos sobre o lugar: denominado Haram al-Sharif – o Santuário No-
do muro ocidental, que ainda hoje se conhece como o Muro das bre –, porque o consideram o terceiro lugar mais sagrado do Islão,
Lamentações. depois de Meca e Medina.
A expansão do Islão, que chegou a Jerusalém em 638, seis anos
depois da morte de Maomé, mudou tudo. Os primeiros governan- O novo culto
tes concentraram a sua atenção na esplanada do Templo. Rapida- Os Atos dos Apóstolos transmitiram-nos
mente foram construídas duas mesquitas: no centro, sobre o lugar numerosos testemunhos sobre o modo como os Doze e os primei-
ros cristãos frequentavam o Templo para orar e dar testemunho
da ressurreição de Jesus perante o povo 23. Simultaneamente reu-
niam-se em casa para a fração do pão 24, quer dizer, para celebrar a
A antiga cobertura de latão foi substituída
por outra de alumínio dourado, no
Eucaristia: desde o início, eram conscientes de que «o período do
restauro realizado nos anos
noventa do século passado.
templo passou. Chega um novo culto num templo não construído
por homens. Este templo é o seu Corpo: o Ressuscitado que reúne
os povos e os unifica no sacramento do seu Corpo e do seu Sangue.
Vigas de
madeira
Ele mesmo é o novo templo da humanidade» 25. n

A Rocha

Mosaicos

Painéis de Arcada
mármore octogonal

Deambulatório interior

Deambulatório
exterior
©N
atio
nal
Geo
grap
hic
A Cúpula 23. Cf. At 2, 46; 3, 1; 5, 12.20-25.
Pórtico
da Rocha 48 m
de pedra 24. Cf. At 2, 42 e 46.
(691 d. C.) 157 ft

25. Joseph Ratzinger/Bento XVI, Jesus de Nazaré. Da Entrada em Jerusalém


até à Ressurreição, Principia, 2011, p. 28.
74 Pegadas
DA NOSSA fé 6 75

DEREK WINTERBURN / FLICKR

Com a Família
de Nazaré
A cidade de Nazaré conta atualmente com cerca de 70.000
habitantes, embora nos tempos de Jesus não passasse de
uma pequena povoação onde viviam pouco mais de uma
centena de pessoas, que se dedicavam na sua maioria à agricultura.
A aldeia estava situada na encosta de uma colina, rodeada de outras
elevações formando como que um anfiteatro natural.
Em cima, a Igreja da Sinagoga. Em baixo, a que hoje se conhece
O trabalho dos arqueólogos permitiu descobrir como eram as
como Fonte da Virgem abasteceu os habitantes de Nazaré durante
casas nesta zona da Galileia há dois mil anos: muitas delas eram séculos. Podemos supor que Santa Maria iria ali com frequência. A
grutas escavadas na rocha, por vezes ampliadas exteriormente com água chega à fonte canalizada – imagem esquerda – desde o
uma construção simples. Algumas dispunham de uma adega, de manancial – à direita –, que se encontra a algumas dezenas de
um celeiro, de uma cisterna para guardar água... De qualquer for- metros, na cripta da Igreja ortodoxa de S. Gabriel Arcanjo.
ma, geralmente eram casas pequenas, estreitas e pouco iluminadas.
Em Nazaré existem vários lugares que conservam a lembrança
da presença do Senhor: o mais importante é a Basílica da Anun-
ciação 1; outros lugares ligados ao Evangelho são a Sinagoga e o
muito próximo Monte do Precipício, que recorda a oposição de
alguns nazarenos depois de terem ouvido a pregação de Jesus; há

CASA EDITRICE BONECHI


ainda a Fonte da Virgem, onde, segundo tradições antigas, Maria

1. Ver as páginas 12-23.


76
Pegadas da nossa fé Com a Família de Nazaré 77

TOBY LEUNG / FLICKR


Igreja de
S. José
(1914)

Convento
franciscano

Basílica da
Anunciação
(1969)

Entrada

Entrada para a Igreja de S. José, partir


do conjunto da Basílica da Anunciação.
Baptistério

r
e átrio

pe ja
rio
su gre
I

ta
ip
iria buscar água; o Túmulo do Justo, onde teria sido enterrado o

Cr
Santo Patriarca; e a Igreja de S. José, construída sobre os restos de
A Gruta
uma casa que a piedade popular identificou há muitos séculos com de Nossa
Senhora está
a casa da Sagrada Família. As investigações arqueológicas
Entrada na cripta, onde
descobriram restos de numerosas podem ver-se
habitações que costumavam ter uma os restos das quatro
parte escavada na rocha. Essa zona basílicas anteriores.
Parte da família de Deus O templo que hoje vemos
utilizava-se como armazém,
adega ou oficina.

ILUSTRAÇÃO: J. GIL
situa-se a cem metros da Basílica da Anunciação. Foi construído
em 1914, em estilo neorromânico, sobre as ruínas de construções
anteriores: com efeito, existia uma igreja do tempo dos Cruzados
(séc. XII) que os muçulmanos arrasaram no século XIII. Quando os
franciscanos chegaram a Nazaré por volta do ano de 1600, viram
que entre os cristãos dali tinha-se transmitido uma tradição popu-
lar que identificava essa igreja – chamada também da Nutrição, por
ser o sítio onde teria sido criado o Menino Jesus – com a oficina de
José e a casa onde vivera a Sagrada Família. As escavações realiza-
das em 1908 puseram a descoberto os restos de uma primitiva igreja
bizantina (séc. V-VI) que teria sido construída no lugar onde ainda
hoje – na cripta – é possível observar dependências de uma casa
que os arqueólogos datam do século I ou II da nossa era: uma ade-
78
Pegadas da nossa fé Com a Família de Nazaré 79

Igreja de
S. José

ILUSTRAÇÃO: J. GIL
Igreja

Entrada
Presbitério

Acesso
à cripta
BERTHOLD WERNER / WIKIMEDIA COMMONS

ORI / WIKIMEDIA COMMONS

Cripta
Batistério

Presbitério
Abside da cripta
tripla Gruta

Acesso
à gruta

Silo Adega escavada na rocha,


datada do primeiro ou
À esquerda, os três níveis segundo século.
da Igreja de S. José.

ga escavada na rocha, vários celeiros, cisternas para a água..., bem


como o que possivelmente era um batistério para onde se descia
por uma escada com sete degraus e que conserva alguns mosaicos.
Embora estes vestígios sejam significativos, não permitem aos
arqueólogos afirmar com toda a certeza que esta e não outra fos-
se efetivamente a casa da Sagrada Família. Seria necessário contar
com fontes antigas que o certificassem, como sucede em outros Lu-
gares Santos: como por exemplo, na vizinha Basílica da Anuncia-
FRANCO MARZI

ção. Não obstante, com base na antiga e venerável tradição popular,


poderemos ir à cripta da Igreja de S. José, para, na companhia de
80
Pegadas da nossa fé Com a Família de Nazaré 81

Imagem de lho de Maria foi concebido por obra do Espírito Santo; e


ALFONSO PUERTAS

S. José no esse Menino, Filho de Deus, descendente de David segundo


conjunto da
Basílica da a carne, nasce numa gruta. Os anjos celebram o seu nasci-
Anunciação. mento e personalidades de terras longínquas vêm adorá-Lo,
mas o rei da Judeia deseja a sua morte e é necessário fugir.
O Filho de Deus é um menino aparentemente indefeso que
terá de viver no Egito 4.
Nestas cenas do Evangelho, destaca-se constantemente a fide-
lidade do Santo Patriarca, que o leva a cumprir os mandatos divi-
nos sem hesitações. Vê quantos motivos para venerar S. José
e para aprender da sua vida: foi um varão forte na fé...;
sustentou a sua família – Jesus e Maria – com o seu traba-
lho esforçado...; guardou a pureza da Virgem, que era sua
Esposa...; e respeitou – amou! – a liberdade de Deus que fez
a escolha, não só da Virgem como Mãe, mas também dele
como Esposo de Santa Maria 5. Por esta escolha, o fundador do
Opus Dei não hesitou em garantir que, depois de Santa Maria,
José é a criatura mais perfeita que saiu das mãos de Deus 6.

Na terra e no Céu A Virgem Maria deixaria a casa de S.


Joaquim e de S. Ana e iria viver na de seu esposo, que certamente
seria muito próxima, pois as escavações levadas a cabo em Naza-
ré revelaram que as casas desta pequena povoação ocupavam uma
superfície de uns cem metros de largura por cento e cinquenta de
S. Josemaria, entrarmos naquele lar de Nazaré onde Jesus passou comprimento.
trinta anos da sua vida na terra. Vamos começar olhando especial- Como era a vida da Sagrada Família em Nazaré? Era a vida de
mente para o Santo Patriarca, que é Mestre de vida interior, por- uma casa modesta e humilde, porque S. José era um trabalhador,
que nos ensina a conhecer Jesus, a conviver com Ele, a to- um artesão da Galileia, um homem como tantos outros. E
mar consciência de que fazemos parte da família de Deus 2. que pode esperar da vida um habitante de uma aldeia per-
Quando despertou do sono, José fez como o Anjo do Senhor dida como era Nazaré? Trabalho, todos os dias, sempre
lhe ordenara e recebeu sua esposa, narra S. Mateus 3. A história com o mesmo esforço; e, no fim da jornada, uma casa po-
do Santo Patriarca foi uma vida simples, mas não uma
vida fácil. Depois de momentos angustiosos, sabe que o Fi- 4. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 41.
5. S. Josemaria, Forja, n. 552.
6. S. Josemaria, Notas de uma reunião de família, 23-V-1974, recolhidas em Salvador
2. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 39. Bernal, Monsenhor Josemaría Escrivá de Balaguer. Apontamentos sobre a vida do
3. Mt 1, 24. Fundador do Opus Dei, Lisboa, Edições Prumo, p. 88.
82
Pegadas da nossa fé Com a Família de Nazaré 83

bre e pequena, para recuperar as forças e recomeçar o tra- o que Ele quer que tenhamos: vida contemplativa. Porque
balho no dia seguinte. estaremos simultaneamente na terra e no Céu, tratando as
Mas o nome de José significa em hebreu Deus acrescen- coisas humanas de um modo divino 9.
tará. Deus dá à vida santa dos que cumprem a sua vontade Para ir por este caminho de contemplação na vida de todos os
dimensões insuspeitadas, o que a torna importante, o que dias, pode ser uma boa ajuda meter-se com a imaginação no lar de
dá valor a todas as coisas, o que a torna divina. À vida hu- Nazaré, para enfrentar as tarefas quotidianas como o fariam José,
milde e santa de S. José, Deus acrescentou – se me é per- Maria e Jesus:
mitido falar assim – a vida da Virgem Maria e a de Jesus Convencei-vos de que não se torna difícil converter o
Nosso Senhor 7. trabalho num diálogo de oração. Basta oferecê-lo a Deus e
No lar da Sagrada Família em Nazaré, Jesus, Maria e José san- meter mãos à obra, pois Ele já nos está a ouvir e a alentar.
tificavam a vida de todos os dias sem atuações espetaculares ou Assim, nós, no meio do trabalho quotidiano, conquistamos
chamativas. Tinham uma vida aparentemente igual à dos seus vi- o modo de ser das almas contemplativas, porque nos invade
zinhos, importante não pela materialidade do que realizavam, mas a certeza de que Deus nos olha, sempre que nos pede uma
sim pelo amor, em perfeita adesão à Vontade do Pai: nova e pequena vitória: um pequeno sacrifício, um sorriso à
Para S. José, a vida de Jesus foi uma contínua desco- pessoa importuna, começar pela tarefa menos agradável e
berta da sua vocação (...). Deus vai-lhe revelando os seus mais urgente, ter cuidado com os pormenores de ordem, ser
desígnios e ele esforça-se por compreendê-los. Como toda a perseverante no dever quando era tão fácil abandoná-lo,
alma que quer seguir de perto Jesus, descobre logo que não não deixar para amanhã o que temos de terminar hoje...
é possível andar com passo ronceiro, que não pode viver E tudo isto para dar gosto ao Nosso Pai Deus! Entretan-
da rotina. Porque Deus não se conforma com a estabilida- to, talvez sobre a tua mesa ou num lugar discreto que não
de num nível conseguido, com o descanso no que já se tem. chame a atenção, para te servir de despertador do espíri-
Deus exige continuamente mais e os seus caminhos não são to contemplativo, pões o crucifixo, que já se tornou para a
os nossos caminhos humanos. S. José, como nenhum ou- tua alma e para a tua mente o manual onde aprendes as
tro homem antes ou depois dele, aprendeu de Jesus a estar lições de serviço.
atento para conhecer as maravilhas de Deus, a ter a alma Se te decidires – sem fazer coisas esquisitas, sem abando-
e o coração abertos 8. nar o mundo, no meio das tuas ocupações habituais – a en-
O fundador do Opus Dei repetia muitas vezes que devemos vi- trar por estes caminhos de contemplação, sentir-te-ás ime-
ver com a cabeça no Céu, enquanto os nossos pés estão firmemente diatamente amigo do Mestre e com o encargo divino de abrir
na terra. Para nos tornarmos contemplativos na vida quotidiana, os caminhos divinos da terra a toda a humanidade 10. n
animava-nos a realizar as tarefas de cada dia como se estivéssemos
com a Sagrada Família na casa de Nazaré, para perseverar na inti-
midade com Jesus, Maria e José:
Acostumai-vos a procurar a intimidade de Jesus com a
sua Mãe e com o seu pai, o Santo Patriarca, então tereis
9. S. Josemaria, Homilia em São Paulo, 26-V-1974, recolhida em José Antonio Loarte
7. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 40. (ed), Por las sendas de la fe, Madrid, Cristiandad, 2013, p. 138.
8. Ibid., n. 54. 10. S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 67.
84 Pegadas
DA NOSSA fé 7 85

BAPTISM SITE COMMISSION


Do outro lado
do Jordão
N o décimo quinto ano do reinado do imperador Tibé-
rio, quando Pôncio Pilatos era governador da Judeia,
Herodes tetrarca da Galileia, seu irmão Filipe tetrarca
da região da Itureia e Traconítide e Lisânias tetrarca de Abilene,
no pontificado de Anás e Caifás, foi dirigida a palavra de Deus
a João, filho de Zacarias, no deserto. E ele percorreu toda a zona
do rio Jordão, pregando um batismo de penitência para a remis-
são dos pecados 1.
Estas palavras do Evangelista S. Lucas marcam, no tempo e no
espaço, a missão profética de S. João Baptista, e servem também
para situar o início da vida pública de Jesus:
Sucedeu que, naqueles dias, Jesus veio de Nazaré da Galileia e
foi batizado por João no rio Jordão. Ao subir da água, viu os céus
rasgarem-se e o Espírito, como uma pomba, descer sobre Ele. E
dos céus ouviu-se uma voz: «Tu és o meu Filho muito amado, em
Ti pus toda a minha complacência» 2.
Já que S. João usava o batismo como sinal de conversão, é na-
tural que se estabelecesse nas margens do Jordão. Este é pratica-
Vista aérea de Betânia, do outro lado
mente o único rio caudaloso e constante da região. Brota de três do Jordão, quando ainda não se tinha
acondicionada a zona de Qasr
el-Yahud, na margem ocidental.
1. Lc 3, 1-3.
2. Mc 1, 9-11.
86
Pegadas da nossa fé Do outro lado do Jordão 87

nascentes, no sopé do Monte Hermón, no extremo norte do país: o E muitos ali acreditaram em Jesus 6.
manancial oriental aparece perto de Banias, a uma altitude de 329 Nos primeiros séculos do cristianismo, conhecia-se a localiza-
metros sobre o Mar Mediterrâneo, e une-se ao braço central junto ção daquela Betânia, – diferente da aldeia dos irmãos Marta, Ma-
à antiga Dan, a 143 metros acima do mar; os dois braços confluem ria e Lázaro –, onde João batizava ao princípio, nove quilómetros
a seguir com o ocidental, que nasce no Líbano, a 520 metros de a norte do Mar Morto, na margem oriental do rio. Alguns autores
altitude. A corrente percorre uma pequena planície e depois, em – entre eles, Orígenes, Eusébio de Cesareia e S. Jerónimo – prefe-
rápida pendente e dando origem a numerosas cascatas, cruza um riam o nome de Betábara, que significa «o lugar de passagem». De
vale estreito até acabar no lago de Genesaré, a 210 metros abaixo facto, estava perto do caminho entre o Monte Nebo e Jericó, pelo
do nível do mar. que se pensa que as doze tribos de Israel, depois do êxodo do Egito
A partir de Genesaré, o Jordão, alimentado por outros afluentes, e da peregrinação pelo deserto, conduzidas por Josué, atravessaram
desce por um vale que se vai alargando, desde os cinco quilómetros o Jordão por aquele ponto para tomar posse da Terra Prometida 7.
iniciais até chegar aos vinte por altura de Jericó. Tem as suas mar- Os relatos dos peregrinos que visitavam Betábara entre os sé-
gens cobertas de canaviais, de tamargueiras e inclusivamente, de culos IV e VII, além de confirmarem essa localização, contribuíram
bosque nalgumas margens baixas. Ainda que a distância em linha com outros dados: numa colina próxima, venerava-se o sítio onde
reta até ao Mar Morto seja de 109 quilómetros, o percurso do rio o profeta Elias tinha sido arrebatado aos céus 8; uma coluna de már-
mede 320, por causa dos pequenos mas incontáveis meandros. Esse more assinalava o lugar do batismo de Jesus; havia uma igreja de-
fluir repousado e caprichoso levou o escritor romano, Plínio o Ve- dicada a S. João Baptista, construída sobre pilares, a fim de a pro-
lho, a dizer que o Jordão «se dirige quase de má vontade» para a sua teger das cheias; e outra dedicada ao profeta Eliseo, erguida sobre
foz no Mar Morto 3, 400 metros abaixo do nível do Mediterrâneo. o seu túmulo; algumas escadas de mármore facilitavam a descida
S. João Baptista pode ter andado por todo o percurso do rio, até às águas do Jordão; havia um mosteiro, celas para eremitas e
de sul a norte e de norte a sul. Contudo, quando Jesus chegou da dois albergues para os peregrinos, que costumavam ir aí quando
Galileia e veio ter com João Baptista ao Jordão, para ser batiza- se deslocavam de Jerusalém para o Monte Nebo; esse local de pa-
do por ele 4, João estava, sem dúvida, junto do deserto da Judeia. ragem era conhecido também por Sapsas.
Recordava com exatidão o evangelista S. João, que ali acorrera e A tradição deste lugar conservou-se até ao século XIV, mas mais
teve então o seu primeiro encontro com Jesus: Tudo isto se passou tarde a zona tornou-se insegura, as peregrinações passaram a ser
em Betânia, além do Jordão 5. Jesus voltaria aí mais tarde, quan- menos frequentes e a memória de Betânia, do outro lado do Jor-
do a rejeição dos fariseus, saduceus e herodianos ameaçou tornar- dão, perdeu-se. Foi possível recuperá-la a partir de 1897, graças à
-se violenta: De novo procuraram prendê-lO, mas Ele escapou-Se descoberta do mapa de Madaba, na Jordânia. Trata-se de um mo-
das suas mãos. Jesus retirou-Se novamente para além do Jordão, saico do século VI com uma representação do Médio Oriente, que
para o local onde anteriormente João tinha estado a batizar e lá inclui os topónimos dos dois lados do Jordão, muito perto do Mar
permaneceu. Muitos foram ter com Ele e diziam: Morto, onde são perfeitamente legíveis os nomes de «Betábara, o
— É certo que João não fez nenhum milagre, mas tudo o que lugar de passagem de João a leste do rio» e de «Aenon, que agora
disse deste homem era verdade. é Sapsaphas».

3. Plínio o Velho, História Natural, 5, 15.71. 6. Jo 10, 39-42. Cf. Mt 19, 1; Mc 10, 1.
4. Mt 3, 13. 7. Cf. Jos 3, 14-17.
5. Jo 1, 28. 8. Cf. 2 Re 2, 7-18.
88
Pegadas da nossa fé Do outro lado do Jordão 89

SIMON BALIAN / BAPTISM SITE COMMISSION


Mosaico de Madaba, onde se distinguem nos dois lados
Em cima, restos do mosteiro na colina de Elias. Na imagem inferior,
do Jordão, perto de Mar Morto, os nomes que se davam
restos das basílicas e igrejas bizantinas na zona de S. João Baptista,
no século VI ao lugar do batismo de Jesus.
e a escada que desce até a um batistério em forma de cruz.

As indicações do mapa de Madaba guiaram as primeiras explo-


rações em 1899, a que se seguiram outras, superficiais, nos princí-
pios do século XX. Não foram mais além e, depois, a situação po-
lítica impediu qualquer atuação durante vários decénios, até aos
acordos de paz de 1994, entre Israel e a Jordânia. Então, os francis-
canos do Monte Nebo pressionaram as autoridades jordanas para
prestar atenção a Betábara, e realizaram-se escavações que trouxe-
ram à luz vestígios cristãos.
A área arqueológica de Betânia, do outro lado do Jordão, re-
cebe atualmente o nome de Al-Maghtas – em árabe, batismo ou
imersão. Encontra-se em território jordano, porque o rio marca a
fronteira. Compreende duas zonas, separadas entre si por, aproxi-
madamente, dois quilómetros: a de Tell Al-Kharrar, também cha-
mada colina de Elias, com as ruínas de um mosteiro; e a de S. João

BAPTISM SITE COMMISSION


Baptista, mais próxima do leito, em que se destacam os restos de
cinco igrejas (quatro delas são bizantinas), um batistério em for-
ma de cruz, celas para eremitas e outros alojamentos. Os achados
são coincidentes com as descrições antigas que chegaram até nós.
0 quilómetros 1

90 O curso do rio Jordão percorre 320 km, do 91


Pegadas da nossa fé
Lago de Genesaré até o Mar Morto, separados 0 milhas 1
apenas por 109 km em linha reta.

JORDÂNIA

CISJORDÂNIA

S
A caminho

A
de Jericó Mosteiro

T
do século V
Restos de cinco
H
QASR Celas para A L G
basílicas e de
eremitas - A
E L - YA H U D um batistério M Tell Al-Kharrar
Colina de Elias
Igreja
moderna Zona
de S. João
Baptisita

Igrejas
modernas
92
Pegadas da nossa fé Do outro lado do Jordão 93

Qasr el-
ALFONSO PUERTAS

SIMON BALIAN / BAPTISM SITE COMMISSION


Yahud:
degraus
preparados
para chegar
até ao Jordão
desde a
margem
ocidental.

Os três últimos papas visitaram o lugar: S. João Paulo II, em


2000, Bento XVI, em 2009, e Francisco, em 2014. As autoridades
jordanas estão a facilitar a entrada dos peregrinos, e também cede- Lugar preparado na margem jordana para
que os peregrinos cheguem até à água do rio.
ram terrenos nas proximidades, para que as diferentes confissões
cristãs construam doze igrejas novas, algumas com albergues ane-
xos. Por seu turno, a Unesco decidiu em 2015 incluir Al-Maghtas — Eu é que preciso de ser batizado por Ti, e Tu vens ter comigo?
na sua lista de Património Mundial. Jesus respondeu-lhe:
Se partirmos da Cisjordânia – a margem ocidental –, o local — Deixa por agora; convém que assim cumpramos toda a
mais perto de Betânia chama-se Qasr el-Yahud. S. João Paulo II justiça 9.
também pôde aí rezar no ano 2000. Em 2011, as autoridades israe- A justiça que devem cumprir refere-se, por um lado, ao plano
litas reabriram o acesso diário aos peregrinos. Nesse lugar exis- disposto por Deus, secundado por Jesus, de chamar Israel à peni-
te uma capela ao ar livre onde é possível celebrar a Santa Missa e tência e à conversão por intermédio de João, o último dos profe-
também estão preparados uns degraus de madeira para descer até tas 10. Por outro, o batismo de Jesus representa «a aceitação e a inau-
á água, embora não seja permitido atravessar o rio. Muitas pes- guração da sua missão de Servo sofredor» 11, tal como tinha sido
soas costumam renovar os seus compromissos batismais nesse lu- anunciado por Isaías: foi contado entre os pecadores, tomando
gar. Ali vão todos os anos os cristãos de Jerusalém, na solenidade sobre si os pecados de muitos e intercedeu pelos culpados 12. Para
do Batismo do Senhor. Bento XVI, este mistério da vida de Cristo «situa-se na mesma li-
nha da Encarnação, da descida de Deus do mais alto dos céus até
Filhos amados
pelo Pai no Filho No início da sua vida pública, Jesus 9. Mt 3, 14-15.
10. Cf. Bíblia Sagrada, Santos Evangelhos, Aletheia, editores, nota a Mt 3, 13-17.
desloca-Se ao Jordão para ser batizado, embora sem ter qualquer 11. Catecismo da Igreja Católica, n. 536.
pecado para purificar. A resistência de S. João assim o indica: 12. Is 53, 12.
94
Pegadas da nossa fé Do outro lado do Jordão 95

ao mais baixo dos infernos. O sentido deste movimento de humi- diminuindo o nosso egoísmo, cresça em nós Cristo, pois il-
lhação divina resume-se numa única palavra: amor, que é o nome lum oportet crescere, me autem minui (Jo 3, 30), é preciso
do próprio Deus. Escreve o Apóstolo S. João: “Nisto se manifestou que Ele cresça e que eu diminua 19.
o amor que Deus nos tem: enviou Deus ao mundo o seu Unigénito, Nessa mudança é importante deixar que Deus atue: «O Espíri-
para que vivamos por seu intermédio”, e enviou-O “como vítima to Santo, recebido pela primeira vez no dia do nosso Batismo, abre
de propiciação pelos nossos pecados” (1 Jo 4, 9-10)» 13. o nosso coração à Verdade, à Verdade inteira. O Espírito impele a
À obediência de Jesus, logo ao sair da água, responde Deus Pai, nossa vida pelo caminho exigente mas jubiloso da caridade e da
fazendo ouvir a sua voz do Céu: Este é o meu Filho muito ama- solidariedade para com os nossos irmãos. O Espírito confere-nos a
do, no qual pus toda a minha complacência 14. E comenta o Papa ternura do perdão divino, permeando-nos com o vigor invencível
Francisco: «Jesus recebeu a aprovação do Pai celeste, que O enviou da misericórdia do Pai» 20.
precisamente para que aceitasse compartilhar a nossa condição, a Confiar no amor de Deus que nunca se cansa de nos perdoar,
nossa pobreza. Compartilhar é o verdadeiro modo de amar. Jesus encher-nos-á da esperança de imitar Cristo. De certo modo, a
não se dissocia de nós, considera-nos irmãos e compartilha con- vida humana é um constante voltar à casa do nosso Pai;
nosco. E assim, juntamente com Ele, torna-nos filhos de Deus Pai. um regresso mediante a contrição, a conversão do coração
Esta é a revelação e a fonte do amor autêntico» 15. que pressupõe o desejo de mudança, a decisão firme de me-
Jesus, depois da sua ressurreição, conferiu esta missão aos seus lhorar a nossa vida, e que portanto se manifesta em obras
Apóstolos: Ide e ensinai todas as nações, batizando-as em nome de sacrifício e de doação. Um regresso a casa do Pai por
do Pai e do Filho e do Espírito Santo 16. O batismo de João era uma meio do sacramento do perdão, em que, ao confessarmos
chamada à conversão, a uma mudança de vida. O sacramento do os nossos pecados, nos revestimos de Cristo e nos tornamos
Batismo produz uma conversão real e efetiva a quem o recebe, por- assim seus irmãos, membros da família de Deus.
que o faz tornar-se no Filho, filho amado do Pai 17. Deus espera-nos como o pai da parábola, de braços es-
A realidade de ser filhos de Deus «comporta a responsabilidade tendidos, embora não o mereçamos. Pouco importa o que
de seguir a Jesus, o Servo obediente, e de reproduzir em nós mes- Lhe devemos; tal como no caso do filho pródigo, o que é pre-
mos os seus lineamentos: ou seja, mansidão, humildade e ternura. ciso é que Lhe abramos o coração, que tenhamos saudades
E isto não é fácil» 18. Desde a nossa primeira decisão conscien- do lar paterno, que nos maravilhemos e nos alegremos pe-
te de viver integralmente a doutrina de Cristo, é certo que rante o dom que Deus nos faz: podermos chamar e sermos
avançámos muito pelo caminho da fidelidade à sua pala- realmente, apesar de tanta falta de correspondência da
vra. Mas não é verdade que restam ainda tantas coisas por nossa parte, seus filhos 21. n
fazer? Não é verdade que resta, sobretudo, tanta soberba?
É precisa, sem dúvida, uma outra mudança, uma lealdade
mais plena, uma humildade mais profunda, de modo que,

13. Bento XVI, Angelus, 13-I-2013.


14. Mt 3, 17.
15. Francisco, Angelus, 12-I-2014.
16. Mt 28, 19; cf. Mc 16, 15-16. 19. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 58.
17. Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 537, 1213. 20. Francisco, Angelus, 10-I-2016.
18. Francisco, Angelus, 10-I-2016. 21. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 64.
96 Pegadas
DA NOSSA fé 8 97

GABINETE DE IMPRENSA DO OPUS DEI


Bodas
em Caná da Galileia

T
ransportemo-nos com a imaginação a Caná, para
descobrir outra das prerrogativas de Maria. Nossa
Senhora pede a seu Filho que remedeie aquela triste
situação de umas bodas em que faltou o vinho (...). E Je-
sus realiza o que a Mãe lhe tinha sugerido, com maternal
omnipotência 1.
S. João é o único Evangelista que narra o primeiro sinal de Je-
sus, realizado durante aquela celebração em Caná: a pedido de
Nossa Senhora, converteu a água em vinho; e também situa neste
povoado da Galileia o segundo milagre de Jesus: a cura do filho de
um funcionário real, que estava doente em Cafarnaum 2. O relato
de Caná admira pela simplicidade com que foi redigido, sem, por
outro lado, perder riqueza de matizes:
No terceiro dia, realizou-se um casamento em Caná da Gali-
leia e estava lá a Mãe de Jesus. Jesus e os seus discípulos foram
também convidados para o casamento. A certa altura faltou o vi-
nho. Então a Mãe de Jesus disse-Lhe: «Não têm vinho». Jesus res-
pondeu-Lhe: «Mulher, que temos nós com isso? Ainda não che- Vitral do
gou a minha hora». Sua Mãe disse aos serventes: «Fazei tudo o Oratório de
que Ele vos disser». Havia ali seis talhas de pedra, destinadas à Pentecostes, em
Villa Tevere,
que representa
1. S. Josemaria, Artigo «La Virgen del Pilar», recolhido em Por las sendas de la fe, o milagre das
p. 168-170. bodas de
2. Cf. Jo 4, 46-54. Caná.
98
Pegadas da nossa fé Bodas em Caná da Galileia 99

purificação dos judeus, e cada uma levava duas ou três medidas.

ILUSTRAÇÃO: J. GIL

Jo rdão
Disse-lhes Jesus: «Enchei essas talhas de água». Eles encheram- 0 km 10

Corazim
-nas até cima. Depois disse-lhes: «Tirai agora e levai ao chefe de 0 mi 10
Betsaida
Cafarnaum
mesa». E eles levaram. Quando o chefe de mesa provou a água Tabgha

transformada em vinho, – ele não sabia de onde viera, pois só os Khirbet Qana
Genesaré
Mar da
serventes, que tinham tirado a água, sabiam – chamou o noivo e A caminho Magdala Galileia
de Haifa
disse-lhe: «Toda a gente serve primeiro o vinho bom e, depois de Hippos
Tiberíades
os convidados terem bebido bem, serve o inferior. Mas tu guar- Séforis Sussita
Kefer Kenna
daste o vinho bom até agora». Foi assim que, em Caná da Gali-
leia, Jesus deu início aos seus milagres. Manifestou a sua glória e A caminho da Nazaré

Jordão
planície de
os discípulos acreditaram n’Ele 3. Esdrelon
Monte
Tabor
Os mais antigos relatos cristãos que apresentam Caná da Gali-
leia como meta de peregrinação, situam-na perto de Nazaré: «Não
longe dali avistaremos Caná, onde foi convertida a água em vi- Embora estes testemunhos, que chegaram até nós, tenham um
nho» 4, afirma S. Jerónimo numa carta escrita entre os anos 386 e valor indiscutível, não fornecem dados definitivos para situar Caná,
392. E em documento posterior, dá a entender que a cidade se en- pois poderiam referir-se a dois lugares com esse nome que existem
contrava no caminho para o Mar da Galileia: «Percorremos a bom a norte de Nazaré: as ruínas de Khirbet Qana, uma aldeia abando-
ritmo Nazaré, local onde cresceu o Senhor; Caná e Cafarnaum, nada há sete séculos; e a cidade de Kefer Kenna, que conta atual-
testemunhas dos seus milagres; o lago de Tiberíades, santificado mente com dezassete mil habitantes, sendo que um quarto deles
pelas travessias do Senhor, e o deserto em que vários milhares de é cristão.
pessoas se saciaram com poucos pães e das sobras dos que come- Khirbet Qana ocupava o alto de uma colina sobre o vale de Ne-
ram se encheram tantos cestos, quantas são as tribos de Israel» 5. tufa, perto do caminho que ligava Acre com o Mar da Galileia. En-
Numerosos testemunhos falam de um santuário edificado pe- contrava-se a nove quilómetros de Séforis e a catorze de Nazaré.
los cristãos em memória daquele primeiro milagre realizado por As investigações arqueológicas trouxeram à luz os restos de uma
Jesus; também afirmam que se conservavam uma ou duas talhas pequena aldeia que sobreviveu até ao século XIII ou XIV, onde há
e que existia uma fonte na aldeia. Uma das provas mais remotas uma gruta com vestígios de culto cristão da época bizantina e nu-
pertence ao relato de um peregrino anónimo do século VI, que ti- merosas cisternas escavadas na rocha para armazenar a água da
nha partido de Séforis-Diocesareia: «Depois de três milhas de ca- chuva, uma vez que não havia fontes naquela zona.
minho, chegamos a Caná, onde o Senhor esteve presente nas bo- Kefer Kenna está a seis quilómetros de Nazaré, no caminho
das, e sentamo-nos no mesmo lugar, e ali, indignamente, escrevi que desce até Tiberíades. A povoação, abastecida por uma nascen-
o nome dos meus pais. Ainda aí restam duas talhas; enchi uma de te, remonta pelo menos ao século II a. C. Parece que no século XVI
água e derramei vinho dessa; coloquei-a cheia às costas e pousei-a os seus habitantes, que eram na maioria muçulmanos, conserva-
sobre o altar. Depois lavamo-nos na fonte para as bênçãos» 6. vam a tradição do lugar onde Jesus tinha realizado o milagre. Os
peregrinos encontraram aí uma sala subterrânea que tinha acesso
3. Jo 2, 1-11.
4. S. Jerónimo, Epistola XLVI. Paulæ et Eustochiæ ad Marcellam, 13.
a partir das ruínas de uma suposta igreja, cuja construção atribuí-
5. S. Jerónimo, Epistola CVIII. Epitaphium Sanctæ Paulæ, 13. ram ao imperador Constantino e a sua mãe, Santa Helena. Em 1641,
6. Itinerarium Antonini Piacentini, 4 (CCL 175, 130). alguns franciscanos estabeleceram-se na povoação e começaram as
100
Pegadas da nossa fé Bodas em Caná da Galileia 101

À esquerda, a
COURTESY OF WWW.HOLYLANDPHOTOS.ORG

WWW.BIBLEWALKS.COM
colina sobre a qual
se encontrava o
assentamento de
Khirbet Qana, e a
entrada para a
gruta onde se
encontraram
marcas de culto
cristão. Junto a
estas linhas, uma
das cisternas.

diligências para recuperar aquelas ruínas, cuja posse só foi possí-


vel em 1879. Em 1880, edificaram uma pequena igreja, que foram
ampliando posteriormente entre os anos 1897 e 1906. Também se
construiu, em 1885, mais ou menos a cem metros, uma capela em
honra de S. Bartolomeu – Natanael –, que era oriundo de Caná 7.
Por ocasião do Jubileu do ano 2000, foi levada a cabo uma rees-
truturação do santuário e aproveitou-se para realizar previamente
uma investigação arqueológica que completasse outro estudo de
1969. As escavações trouxeram à luz, além da igreja medieval, o que
poderia ser uma sinagoga dos séculos III-IV construída sobre os restos
de habitações anteriores, que remontam ao século I. Esta sinagoga
tinha um átrio com pavimento à base de mosaicos, e um vestíbulo
com pórtico, com uma grande cisterna no centro, que se conserva no
subsolo do templo atual; as colunas e os capitéis do pórtico também
se reutilizaram na nave. Na abside setentrional da igreja, encontrou-
-se uma outra ainda mais antiga, que continha uma sepultura dos
séculos V-VI. O tipo de túmulo parece indicar presença cristã no lu-
gar durante a época bizantina.
Tal como os testemunhos históricos, a arqueologia não nos ofe-
receu provas definitivas para situar Caná da Galileia, o lugar onde
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Jesus converteu água em vinho.

7. Cf. Jo 21, 2.
102
Pegadas da nossa fé Bodas em Caná da Galileia 103

A Igreja das Bodas


DANIEL WEBER / FLICKR

ISRAELI MINISTRY OF TOURISM


em Kefer Kenna
acabou de se
construir em 1906.

a atuação de Nossa Senhora naquele momento: Maria Santíssi-


ma, Mãe de Deus, passa despercebida, como uma qualquer,
entre as mulheres do seu povo 8. Maria, Mestra do sacrifí-
cio escondido e silencioso! – Vede-a, quase sempre oculta,
Fazei o que Ele vos disser colaborando com o Filho: sabe e cala 9. Que humildade, a
Desde os tempos mais de Santa Maria: Não a vereis entre as palmas de Jerusalém,
antigos, a riqueza e densidade do relato de S. João sobre os primei- nem – afora as primícias de Caná – na altura dos grandes
ros passos do Senhor na sua vida pública alimentaram a reflexão milagres. – Mas não foge do desprezo do Gólgota; lá está,
cristã. Através de uma narração de grande riqueza teológica – que «iuxta crucem Iesu» – junto da cruz de Jesus, sua Mãe 10.
será impossível comentar exaustivamente nestas linhas –, o mi-
lagre de Caná marca o início dos sinais messiânicos, anuncia já a
8. S. Josemaria, Caminho, n. 499.
hora da glorificação de Cristo e manifesta a fé dos Apóstolos n’Ele. 9. Ibid., n. 509.
Por isso, é significativo que S. João tenha mencionado a presença e 10. Ibid., n. 507.
104
Pegadas da nossa fé Bodas em Caná da Galileia 105

No meio daquela festa de casamento, Santa Maria repara que prontamente em nossa ajuda, demonstrando com obras que
falta o vinho e dirige-se a Jesus para acudir à carência dos esposos. se lembra constantemente dos seus filhos 15.
«À primeira vista – observa Bento XVI – o milagre de Caná pare- E, ao mesmo tempo, outro elemento essencial da sua materni-
ce distanciar-se um pouco dos restantes sinais realizados por Je- dade manifesta-se nas palavras que dirige aos criados: Fazei tudo
sus. Que sentido pode ter o facto de Jesus arranjar uma fartura tão o que Ele vos disser 16.
grande de vinho – cerca de 520 litros – para uma festa privada?»11.
Nossa Senhora, sem deixar de se comportar como Mãe,
Para o Santo Padre, é um sinal da magnitude do amor que encon-
sabe colocar os seus filhos diante das suas responsabilida-
tramos no centro da história da salvação: Deus que «Se entregou
des específicas. Aos que se aproximam dela e contemplam
completamente a Si mesmo pela mísera criatura que é o homem
a sua vida, Maria faz-lhes sempre o imenso favor de os le-
(...). Por isso, a fartura de Caná é sinal de que a festa de Deus com
var até à cruz, de os colocar diante do exemplo do Filho
a humanidade – o dom de Si mesmo pelos homens – começou» 12.
de Deus. E, nesse confronto em que se decide a vida cristã,
Desta forma, o episódio – um banquete de bodas – converte-se por
Maria intercede para que a nossa conduta culmine numa
sua vez em sinal «de um outro banquete, o das núpcias do Cordei-
reconciliação do irmão mais novo – tu e eu – com o Filho
ro, que dá seu Corpo e Sangue a pedido da Igreja, sua Esposa» 13.
primogénito do Pai.
A entrega do Senhor pelos homens tem a sua hora, que em Caná
Muitas conversões, muitas decisões de entrega ao ser-
ainda não tinha chegado. Contudo, Jesus antecipa-a graças à inter-
viço de Deus, foram precedidas de um encontro com Ma-
cessão da Santíssima Virgem: «Maria põe-se entre o seu Filho e os
ria. Nossa Senhora fomentou os desejos de busca, ativou
homens na realidade das suas privações, das suas indigências e dos
maternalmente a inquietação da alma, fez aspirar a uma
seus sofrimentos. Põe-se de “permeio”, isto é, faz de mediadora, não
transformação, a uma vida nova. E assim, o fazei o que Ele
como uma estranha, mas na sua posição de mãe, consciente de que
vos disser converteu-se numa realidade de entrega amoro-
como tal pode – ou antes, “tem o direito de” – mostrar ao Filho as
sa, na vocação cristã que ilumina desde então toda a nos-
necessidades dos homens» 14.
sa vida 17.
Com razão, muitos autores viram um paralelismo entre o mi-
Essa ideia estava contida na oração do Bem-aventurado Álvaro
lagre de Caná, onde Nossa Senhora se ocupa com solicitude ma-
del Portillo, quando ele foi rezar no Santuário das Bodas de Caná,
ternal daqueles que estão a seu lado, e o momento do Calvário,
em 17 de Março de 1994: «Quando saiu –contava D. Javier Eche-
onde São João a recebe como mãe de todos os homens. Apoiado
varría–, [o Beato Álvaro] comentou qual tinha sido a sua petição
nesta realidade, S. Josemaria chamava-lhe frequentemente Mãe
ao Senhor: que nós também seguíssemos o conselho da Virgem
de Deus e nossa Mãe, e aconselhava-nos a tratá-la como filhos:
Maria: Fazei o que Ele vos disser – façamos o que Ele nos pedir em
Maria quer certamente que a invoquemos, que nos aproxi-
todos os momentos» 18. n
memos dela com confiança, que apelemos para a sua ma-
ternidade, pedindo-lhe que se manifeste como nossa Mãe.
Mas é uma Mãe que não se faz rogar, que até se adianta às
nossas súplicas, pois conhece as nossas necessidades e vem

11. Joseph Ratzinger/Bento XVI, Jesus de Nazaré, A Esfera dos Livros, 2007, p. 315. 15. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 140.
12. Ibid., p. 318. 16. Jo 2, 5.
13. Catecismo da Igreja Católica, n. 2618. 17. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 149.
14. S. João Paulo II, Carta enc. Redemptoris Mater, 25-III-1987, n. 21. 18. Javier Echevarría, Palavras recolhidas em Crónica, 1994, p. 309 (AGP, biblioteca, P01).
106 Pegadas
DA NOSSA fé 9 107

FOTO: STANISLAO LOFFREDA / CTS. ILUSTRAÇÃO: J. GIL

Jo rdão
0 km 10
Vista aérea a partir do leste, com a
Corazim
casa de S. Pedro ao sul e a sinagoga a 0 mi 10
Betsaida
Cafarnaum
norte. Ainda não se tinha construído Tabgha
o Memorial de S. Pedro sobre os Genesaré
restos da antiga basílica. Khirbet Qana
Mar da
Magdala Galileia

A caminho Hippos
de Haifa Tiberíades
Séforis Sussita
Caná (Kefer Kenna)
A caminho
da planície
de Esdrelon Nazaré

Jordão
Monte
Tabor

Q uando Jesus ouviu dizer que João Baptista fora


preso, retirou-Se para a Galileia. Deixou Na-
zaré e foi habitar em Cafarnaum, terra à beira-
-mar, no território de Zabulão e Neftali. Assim se cum-
pria o que o profeta Isaías anunciara, ao dizer:
«Terra de Zabulão e terra de Neftali,
caminho do mar,
além do Jordão,
Galileia dos gentios:
o povo que vivia nas trevas
viu uma grande luz;
para aqueles que habitavam
na sombria região da morte
uma luz se levantou».
Desde então, Jesus começou a pregar:

Cafarnaum
— Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos
Céus 1.
Cafarnaum teve pouca importância na história de Is-
rael. O nome semita, que significa povoação de Nahum,

A cidade de Jesus fornece poucas pistas sobre a sua origem, mas indica que
não chegava a ser considerada uma cidade. Não é men-

1. Mt 4, 12-17.
108
Pegadas da nossa fé Cafarnaum A cidade de Jesus 109

cionada explicitamente no Antigo Testamento, o que não é estra- bizantina, mas nem então ultrapassaria o milhar e meio de habi-
nho: embora os vestígios da presença humana remontem ao século tantes. Estes levavam uma vida de trabalho duro, sem luxos ou re-
XIII a. C., o núcleo habitado seria mais recente, talvez do período finamentos, explorando os recursos da zona: cultivava-se o trigo e
asmoneu. No entanto, S. Mateus apresenta-a unida ao cumprimen- produzia-se azeite; recolhiam-se vários tipos de frutas; e, sobretu-
to de uma promessa messiânica e realmente faz justiça ao lugar: do, pescava-se no lago. As casas, construídas com pedra de basal-
além de Jerusalém, nenhuma localidade reúne tantas recordações to local unida com argamassa muito pobre, eram cobertas com um
da passagem do Senhor pela terra como esta pequena cidade situa- telhado de terra sobre canas ou ramagens, sem telhas.
da nas margens do Mar da Galileia. Nesse ambiente rústico, típico de uma sociedade simples for-
Os relatos dos quatro Evangelistas coincidem em colocar Cafar- mada maioritariamente por agricultores e pescadores, ocorreram
naum no centro do ministério público de Jesus na Galileia. Além muitos episódios relatados pelos Evangelhos: o chamamento de
disso, como já vimos, S. Mateus especifica que Jesus escolheu esta Pedro, André, Tiago e João enquanto se afadigavam entre barcos
cidade para residir de modo estável. Mesmo sendo uma cidade e redes 2; a vocação de Mateus quando trabalhava na cobrança de
pequena, encontrava-se na Via Maris, a rota principal que liga- impostos e, depois, a festa em sua casa, com outros publicanos 3; a
va Damasco e o Egito, e numa zona fronteiriça entre duas regiões expulsão de um espírito impuro, que atormentava um homem 4; as
governadas pelos filhos de Herodes – a Galileia, por Antipas, e a curas do servo do centurião 5, da sogra de Pedro 6, do paralítico que
Gaulanítide, por Filipe. Manifesta a sua importância, pelo menos os amigos descem através do teto 7, da hemorroíssa 8 e do homem
na região, o facto de possuir alfândega e de alojar um destacamen- da mão paralisada 9; a ressurreição da filha de Jairo 10; o pagamen-
to de soldados romanos sob a jurisdição de um centurião. Aquele to do tributo do Templo com a moeda encontrada na boca de um
que exercia o comando nessa época é bem célebre, pois o Senhor peixe 11; o discurso do Pão da Vida 12... Nas ruínas de Cafarnaum
elogiou, comovido, o seu ato de fé, que repetimos todos os dias na que chegaram até nós, com certeza temos à vista muitos dos locais
Santa Missa. onde estes factos ocorreram. No entanto, só contamos com infor-
Alguns acontecimentos que aconteceram nesta cidade duran- mações para localizar dois: a casa de Pedro e a sinagoga.
te os primeiros séculos permitiram conhecer bastante bem como
era a Cafarnaum onde Jesus viveu: no início do período árabe, no
século VII, a cidade, que era cristã, entrou em declínio; duzentos
A casa de Pedro De acordo com antigas tradições, no fi-
anos mais tarde, devia estar completamente abandonada; os edifí- nal do século I, existia em Cafarnaum um pequeno grupo de cris-
cios desmoronaram-se, essa área transformou-se num conjunto de tãos. Em fontes judaicas são chamados Minim, hereges, porque
ruínas que, gradualmente, ficaram sepultadas. Foi a própria terra
que ocultou a localização de Cafarnaum e fez cair no esquecimen- 2. Cf. Mt 4, 18-22; Mc 1, 16-20; Lc 5, 1-11.
to esses vestígios, que os conservou quase intactos até os séculos 3. Cf. Mt 9, 9-13; Mc 2, 13-17; Lc 5, 27-32.
XIX e XX, quando a Custódia da Terra Santa conseguiu adquirir a 4. Cf. Mc 1, 21-28; Lc 4, 31-37.
5. Cf. Mt 8, 5-13; Lc 7, 1-10.
propriedade e promoveu as primeiras escavações. 6. Cf. Mt 8, 14-15; Mc 1, 29-31; Lc 4, 38-39.
O trabalho dos arqueólogos, realizado em inúmeras campa- 7. Cf. Mt 9, 1-8; Mc 2, 1-12; Lc 5, 17-26.
nhas desde 1905 até 2003, permitiu confirmar que Cafarnaum se 8. Cf. Mt 9, 20-22; Mc 5, 25-34; Lc 8, 43-48.
9. Cf. Mt 12, 9-14; Mc 3, 1-6; Lc 6, 6-11.
estendia por cerca de trezentos metros ao longo da costa do Mar da
10. Cf. Mt 9, 18-26; Mc 5, 21-43; Lc 8, 40-56.
Galileia, de leste a oeste, e por outros duzentos para o interior, em 11. Cf. Mt 17, 24-27.
direção ao norte. A sua expansão máxima coincidiu com a época 12. Cf. Jo 6, 24-59.
110
Pegadas da nossa fé Cafarnaum A cidade de Jesus 111

Modelos da evolução
da casa de Pedro, Batistério
Vista atual desde
realizados pela o nordeste.
Custódia da Terra
Santa.

Finais do século V
Todas as dependências
foram destruídas e Pavimento
enterradas para edificar com mosaicos
a nova basílica, de O octógono
planta octogonal. central foi Pórtico
construído semioctogonal
sobre a antiga
sala venerada
Alguns edifícios
eram utilizados
ainda como
moradias

Segunda metade
do século IV
Ampliação da
domus ecclesia, que
foi pavimentada e tinham abandonado o judaísmo ortodoxo para aderir ao cristia-
decorada de novo.
Nos restos das
nismo. Eles mantiveram a memória da casa de Pedro, que com o
paredes foram tempo se tornou um lugar de culto. No final do século IV, a pere-
encontrados
grafitos cristãos. grina Egéria escrevia: «Em Cafarnaum, transformou-se em igreja
Muro de proteção a casa do Príncipe dos Apóstolos, cujas paredes foram preservadas
que isolou o
complexo do resto até hoje tal como eram. Ali, o Senhor curou o paralítico. Também
da cidade. O acesso
far-se-ia pelo norte. existe a sinagoga onde o Senhor curou o endemoninhado, à qual se
As casas serviam chega depois de subir muitos degraus; esta sinagoga está construí-
Finais do século I como vivendas, da com pedras quadradas» 13. Este testemunho deve completar-se
oficinas e
Sala convertida em armazéns. com outro de um século mais tarde: «Chegamos a Cafarnaum, à
domus ecclesia, na qual casa do bem-aventurado Pedro, que atualmente é uma basílica» 14.
revestiram com cal o
pavimento e engessaram. Com efeito, as primeiras escavações realizadas pelos francisca-
nos trouxeram à luz um elegante edifício do final do século V, estru-
Em frente da entrada
Pátio
turado em dois octógonos concêntricos com outro semioctógono
principal abria-se
uma extensão comum que servia de deambulatório. O pavimento ostentava um mosaico
desabitada. policromado decorado com figuras de vegetais e animais. Em 1968,
quando foi descoberta a abside orientada para leste e uma pia ba-
As coberturas seriam um S
L
entramado de canas e terra, O
porque os arqueólogos não N
13. Appendix ad Itinerarium Egeriæ, II, V, 2 (CCL 175, 98-99).
encontraram restos de telhas.
14. Itinerarium Antonini Piacentini, 7 (CCL 175, 132).
112
Pegadas da nossa fé Cafarnaum A cidade de Jesus 113

tismal no seu interior, essa construção pôde ser identificada como


a basílica bizantina.
As descobertas posteriores confirmaram os dados de outras tra-
dições: o edifício era suportado por uma base de material de aterro,
onde abundavam fragmentos de reboco com numerosos grafitos
gravados entre os séculos III e V; sob o octógono central, havia uma
sala quadrada com cerca de oito metros de lado, cujo piso de ter-
ra foi coberto com pelo menos seis camadas de cal branca no final
do século I e por um pavimento policromado antes do V. Esta sala,
com sinais de ter sido um local de culto, seria «a casa do Príncipe
dos Apóstolos» que Egéria viu convertida em igreja.
Os arqueólogos conseguiram estabelecer com bastante preci-
são como era o edifício, que teria sido construído em meados do
século I a. C. Na verdade, fazia parte de um conjunto de seis de-
pendências comunicadas entre si através de um pátio a céu aberto,
equipado com uma escadaria e um forno de argila refratária para
O Memorial de S. Pedro integra-se com as ruínas de Cafarnaum. Em baixo, cozer o pão. Os habitantes – várias famílias aparentadas – partilha-
podem ver-se os restos da estância venerada como a casa de Pedro. vam certamente a utilização desse espaço central. O acesso a partir
da rua encontrava-se no lado oriental do recinto, através de uma
porta que conservou bem o umbral de pedra basáltica e o dintel
com vestígios dos batentes. Era o último edifício do bairro, e por
isso o conjunto dava, a leste, para uma extensão de terreno livre e
para a praia, a sul.
Em 29 de Junho de 1990 foi dedicado o moderno Memorial de S.
Pedro, construído sobre as ruínas da casa e da basílica bizantina. É
uma igreja octogonal suportada por grandes pilares que a separam
do solo: isso permite aos peregrinos observar os vestígios arqueoló-
gicos tanto do exterior do templo, passando por baixo, como do in-
terior, através de um óculo quadrangular aberto no centro da nave.

A sinagoga As ruínas da sinagoga, pelo seu valor artísti-


FOTOS: DEREK WINTERBURN / FLICKR

co, concentraram o interesse dos investigadores desde o início: os


arqueólogos Robinson – que visitou o local em 1838 – e Wilson
– que realizou uma exploração em 1866 – anunciaram a sua exis-
tência. Ao mesmo tempo, também chamaram a atenção de outras
pessoas com poucos escrúpulos: muitos dos restos estariam hoje
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Pegadas da nossa fé Cafarnaum A cidade de Jesus 115

ALEXANDER HOLBREICH / FLICKR

STANISLAO LEE / CTS


No centro do Memorial de S. Pedro abre-se
um óculo sobre os vestígios da casa venerada.

danificados ou perdidos se a Custódia não tivesse adquirido o ter-


reno de Cafarnaum em 1894.
A sinagoga ergue-se no centro físico da pequena cidade, e as acrescentado um átrio no lado oriental em meados do século V. No
suas dimensões são notáveis: a sala de oração, de planta retangu- entanto, as mesmas investigações confirmaram que o complexo se
lar, mede 23 metros de comprimento por 17 de largura e possui a apoia sobre os restos de outras construções, entre as quais estaria
seu redor outras salas e pátios. Ao contrário das casas particulares, a sinagoga anterior. O indício mais notável consiste num amplo
com as suas paredes negras, de pedra basáltica, foi construída com pavimento de pedra do século I, encontrado sob a nave central da
blocos quadrados de pedra calcária branca, trazida de pedreiras sala de oração. A localização, portanto, ter-se-ia mantido.
localizadas a muitos quilómetros de distância; alguns dos blocos
pesam quatro toneladas. A magnanimidade dos arquitetos mani-
festa-se também nos elementos decorativos, ricamente lavrados e
O Beato Álvaro em Cafarnaum Entre os motivos
esculpidos: dintéis, arquivoltas, cornijas, capitéis... que levaram o Bem-aventurado Álvaro del Portillo a peregrinar
Embora nos encontremos ante o local de culto judaico mais pela Terra Santa em 1994, estava a petição pelo Romano Pontífice.
belo entre os que foram descobertos na Galileia, esta sinagoga não D. Javier Echevarría recordou-o ao falar da visita que fizeram no
é aquela onde se ouviram os ensinamentos de Jesus e se presen- dia 16 de Março a Cafarnaum:
ciaram os seus milagres, mas pertence a um período posterior: os — «Estava completamente unido à pessoa do Papa, pensando
estudos arqueológicos indicam que o edifício principal e outro re- na sua pessoa e nas suas intenções com um amor humano e sobre-
cinto ao norte teriam sido erguidos no final do século IV, e que foi natural. Estivemos em Cafarnaum, visitando o que, segundo a tra-
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Pegadas da nossa fé Cafarnaum A cidade de Jesus 117

JERZY KRAJ / CTS

zar um Credo pausadamente para unir-se ao Papa. Rezámos tam-


bém – porque lhe pareceu que era um meio muito normal, muito
bom, muito lógico para unir-se às intenções do Papa – uma oração
ao nosso Padre, pedindo pela pessoa e pelas intenções do Sucessor
de S. Pedro» 15.

Jesus percorria
as cidades e aldeias Depois de estabelecer residência
em Cafarnaum, Jesus percorria todas as cidades e aldeias, ensinan-
do nas sinagogas, pregando o Evangelho do reino e curando todas
as doenças e enfermidades 16. S. Pedro, que testemunhou estes fac-
tos maravilhosos, recordá-los-ia quando foi ao encontro do centu-
rião Cornélio e anunciou a Boa Nova aos da sua casa: Vós sabeis o
que aconteceu em toda a Judeia, a começar pela Galileia, depois
do batismo que João pregou: Deus ungiu com a força do Espírito
Santo a Jesus de Nazaré, que passou fazendo o bem e curando a
todos os que eram oprimidos pelo Demónio, porque Deus estava
com Ele. Nós somos testemunhas de tudo o que Ele fez no país
dos Judeus e em Jerusalém; e eles mataram-nO, suspendendo-O
na cruz. Deus ressuscitou-O ao terceiro dia e permitiu-Lhe ma-
nifestar-Se, não a todo o povo, mas às testemunhas de antemão
designadas por Deus, a nós que comemos e bebemos com Ele,
depois de ter ressuscitado dos mortos. Jesus mandou-nos pregar
A sinagoga vista do sul, onde se localizava a entrada principal. O muro oeste ao povo e testemunhar que ele foi constituído por Deus juiz dos
tem por fundações blocos de pedra basáltica, que poderiam pertencer à vivos e dos mortos. É d’Ele que todos os profetas dão o seguinte
sinagoga que Jesus conheceu, ou a outra intermédia, entre essa e a do século IV. testemunho: quem acredita n’Ele recebe pelo seu nome a remis-
No lado este, pode ver-se o átrio acrescentado no século V.
são dos pecados 17.
S. Josemaria viu resumida toda a vida de Cristo numa expres-
dição, foi a casa de Pedro, onde o Senhor curou a sogra do Apósto- são deste discurso: Muitas vezes fui à procura da definição
lo. Em todos os sítios que percorríamos, o Pe. Joaquim costumava da biografia de Jesus na Sagrada Escritura. Encontrei-a
encarregar-se de ler os textos do Evangelho correspondentes a es- lendo aquela que o Espírito Santo faz em duas palavras:
ses lugares, para ter mais vivas essas recordações, e – como dizia pertransiit benefaciendo (At 10, 38). Todos os dias de Je-
o nosso Padre – meter-se e ser um protagonista mais entre todos
os de cada cena».
15. Javier Echevarría, Palavras recolhidas em Crónica, 1994, p. 298 (AGP, biblioteca, P01).
Também foram conhecer as ruínas da sinagoga. Depois – conti- 16. Mt 9, 35.
nuava o seu relato D. Javier Echevarría –, o Beato Álvaro quis «re- 17. At 10, 37-43.
118
Pegadas da nossa fé Cafarnaum A cidade de Jesus 119

sus Cristo na terra, desde o seu nascimento até à mor- Se pretendemos que Cristo reine, temos de ser coeren-
te, pertransiit benefaciendo, foram preenchidos fazendo tes, começando por Lhe entregar o nosso coração. Se não
o bem 18. o fizéssemos, falar do reino de Cristo seria vozearia sem
Embora Jesus tivesse curado muitos homens de doenças e até substância cristã, manifestação exterior de uma fé inexis-
mesmo devolvido a vida a alguns, sabemos que não veio para su- tente, utilização fraudulenta do nome de Deus para com-
primir todos os males da terra, mas para libertar a humanidade da promissos humanos.
escravidão mais grave, a do pecado. Os milagres, exorcismos e curas Se a condição para que Jesus reinasse na minha alma,
são sinais de que o Pai O enviou, manifestam o domínio amoroso na tua alma, fosse contar previamente em nós com um lu-
de Deus sobre a história, revelam que o Reino estava presente já gar perfeito, teríamos razão para desesperar. Mas não te-
na pessoa de Cristo, até chegar o momento culminante do mistério mas, filha de Sião; eis que o teu Rei vem, montado num ju-
pascal 19. Como ensina Bento XVI, «a Cruz é o “trono” no qual ma- mentinho (Jo 12, 15). Vedes? Jesus contenta-Se com um
nifestou a sublime realeza de Deus-Amor: oferecendo-se em expia- pobre animal por trono. Não sei o que se passa convosco,
ção pelos pecados do mundo, Ele derrotou o domínio do “prínci- mas a mim não me humilha reconhecer-me aos olhos do
pe deste mundo” (Jo 12, 31) e instaurou definitivamente o Reino de Senhor como um jumento: fui diante de ti como um jumen-
Deus. Reino que se manifestará em plenitude no fim dos tempos, to; porém, estarei sempre contigo, tomaste-me pela minha
quando todos os inimigos, e por fim a morte, tiverem sido subme- mão direita (Sl 73, 22-23), és tu quem me leva pela arreata.
tidos (cf. 1 Cor 15, 25-26). Então o Filho entregará o Reino ao Pai Pensai nas características dum jumento, agora que há
e finalmente Deus será “tudo em todos” (1 Cor 15, 28). O caminho tão poucos. Não falo dum burro velho e teimoso, dum ani-
para chegar a esta meta é longo e não admite atalhos: de facto, é mal rancoroso que se vinga com um coice traiçoeiro, mas
necessário que cada pessoa acolha livremente a verdade do amor dum burriquito jovem, com as orelhas tesas como antenas,
de Deus. Ele é Amor e Verdade, e quer o amor e quer a verdade austero na comida, duro no trabalho, com o trote decidido
nunca se impõem: batem à porta do coração e da mente e, onde e alegre. Há centenas de animais mais formosos, mais há-
podem entrar, trazem paz e alegria» 20. beis e mais cruéis. Mas Cristo preferiu este para Se apresen-
Para estender a todo o mundo a paz e a alegria desse reinado, tar como rei diante do povo que O aclamava, porque Jesus
como fizeram S. Pedro e os outros Apóstolos, Cristo deve rei- não sabe que fazer da astúcia calculadora, da crueldade
nar, em primeiro lugar, na nossa alma. Mas que Lhe res- dos corações frios, da formosura vistosa mas vã. Nosso
ponderíamos se Ele nos perguntasse: como Me deixas rei- Senhor ama a alegria dum coração moço, o passo simples,
nar em ti? Eu responder-Lhe-ia que, para que Ele reine em a voz sem falsete, os olhos limpos, o ouvido atento às suas
mim, preciso da sua graça abundante, pois só assim é que palavras de afeto. E é assim que reina na alma 21. n
o mais imperceptível pulsar do meu coração, a menor res-
piração, o olhar menos intenso, a palavra mais corrente,
a sensação mais elementar se traduzirão num hossana ao
meu Cristo Rei.

18. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 16.


19. Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 541-550.
20. Bento XVI, Angelus, 26-XI-2006. 21. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 181.
120 Pegadas
DA NOSSA fé 10 121

que recria a vista e relaxa o espírito, enche a alma de uma sensação

DANIEL WEBER / FLICKR


intraduzível; e a recordação de Jesus e o eco das suas palavras, pare-
cem ressoar nestas paragens, fazem transcender o tempo presente.
Contudo, no passado não se respirava com tanta calma na zona.
Quando Jesus percorreu estas terras, não menos de dez povoações
se abeiravam do lago ou se refletiam nas suas águas a partir das
colinas circundantes. Existia um próspero comércio de margem
para margem, sustentado por inumeráveis embarcações. Nenhuma
dessas buliçosas cidades chegou até nós. Só a moderna Tiberíades
recorda em algo a Tibéria romana, a mais nova das antigas, fun-
dada nos princípios da nossa era e situada então mais ao sul. Das
povoações que Jesus conheceu, podemos fazer uma ideia de como
seriam unicamente através das suas ruínas.
A riqueza da comarca devia-se, em primeiro lugar, aos recur-

Tabgha
sos de pesca do lago, que tem vinte e um quilómetros de compri-
mento de norte a sul, uma largura máxima de doze quilómetros, e
uma profundidade média de quarenta e cinco metros. O seu caudal
procede principalmente do rio Jordão e de alguns mananciais que
nascem nas suas margens ou sob a superfície da água. A pesca mais
abundante é a da tilápia, também conhecida como peixe de S. Pedro.
Igreja das A agricultura constituía o outro meio principal de subsistência.
Por se encontrar a 210 metros abaixo do nível do Mar Mediterrâ-
Bem-aventuranças neo, a região goza de um clima temperado no inverno e na prima-
vera, enquanto sofre um calor angustiante em muitos dias do ve-
rão. Estas condições favorecem uma vegetação de tipo subtropical.
O historiador Flávio Josefo foi testemunha da fertilidade que aí se

P
notava no século primeiro: «Esta terra não rejeita nenhuma plan-
oucos lugares da Terra Santa nos aproximam dum modo ta e os agricultores tudo nela cultivam, pois a temperatura suave
tão imediato do Novo Testamento como o Mar da Galileia. do ar é apropriada para as diversas espécies. As nogueiras que são,
Noutros sítios, depois de dois mil anos de história, a to- principalmente, árvores de climas frios, florescem aqui com abun-
pografia foi transformada radicalmente: foram edificadas igrejas, dância. E junto a elas também germinam as palmeiras, que cres-
santuários e basílicas; algumas foram destruídas, reconstruídas de cem em zonas quentes, e as figueiras e as oliveiras, que requerem
novo, ampliadas ou restauradas; muitas aldeias e povoações conver- um ar mais temperado. Poderíamos falar de um certo orgulho da
teram-se em cidades populosas, enquanto outras desapareceram; natureza, que se esforçou por unir num só lugar espécies tão con-
foram abertas calçadas, estradas, autoestradas... Em contrapartida, trárias e de uma formosa concorrência das estações, onde cada uma
no lago, ainda que os seus arredores não sejam alheios a estas varia- delas parece aspirar a impor-se nesta terra. Pois esta região não só
ções, a paisagem manteve-se quase inalterada: a sua contemplação, produz os frutos mais diversos, contra o que se esperaria, mas que
122 Tabgha Igreja das Bem-aventuranças 123

de Cafarnaum. No princípio da sua vida pública, Jesus percorria


toda a Galileia, ensinando nas sinagogas, proclamando o Evan-
gelho do reino e curando todas as doenças e enfermidades entre
o povo. A sua fama propagou-se por toda a Síria: traziam-Lhe to-
dos os que estavam doentes, atingidos de diversos males e sofri-
mentos, possessos, epilépticos e paralíticos, e Jesus curava-os.
Igreja das
Bem-aventuranças
Seguiram-nO grandes multidões, que tinham vindo da
Galileia e da Decápole, de Jerusalém, da Judeia e de
A caminho
de Tiberíades
além do Jordão 2. O Senhor tinha deixado Nazaré e
Restos do lugar
vivia em Cafarnaum 3, na parte noroeste do Mar da
Igreja da
tradicional das
Bem-aventuranças
Galileia, onde algum dos doze ou seus parentes dis-
Multiplicação dos
pães e dos peixes
punham de casas. As multidões de que fala o Evan-
T A gelho aproximavam-se até àquela pequena cidade
B G
H A de pescadores para encontrar Jesus, mas também iam
A caminho procurá-Lo a outros sítios das redondezas 4. Entre os úl-
Ma de Cafarnaum
r da Igreja do
Primado
timos, destaca-se Tabgha.
Ga
lile de Pedro
ia

Tabgha sempre foi um lugar


de pesca abundante, porque
Subiu a um monte
0m
alguns mananciais lançam
água quente ao lago.
e ensinava-os Tabgha é uma paragem situada a três
0 ft
quilómetros a oeste de Cafarnaum, que se estende por poucos hec-
100
0
500
tares desde a margem do lago, terra adentro, até às colinas que o
rodeiam. O nome parece uma derivação árabe do original bizan-
tino Heptapegon, que significa em grego sete fontes: deve-se aos
também os conserva. Durante dez mananciais que então existiam, e que ainda hoje continuam ati-
meses sem interrupção fornece os con- vos. Segundo as tradições dos cristãos que habitaram aquela zona
IL
.G
:J

siderados reis de todos os frutos, ou seja, as


O

ininterruptamente desde os tempos de Jesus, ali teria multiplicado


ÇÃ
RA
ST

uvas e os figos, enquanto que o resto dos produtos


U

os cinco pães e os dois peixes para dar de comer a uma multidão 5;


IL

diversos amadurece ao longo de todo o ano. Além da boa ali teria pronunciado o Sermão da Montanha, que começa com as
temperatura do ar, a zona é regada por uma fonte muito cauda- Bem-aventuranças 6; e ali teria aparecido aos Apóstolos depois de
losa, que a gente dali chama Cafarnaum. Alguns pensavam que ressuscitado, quando propiciou a segunda pesca milagrosa e con-
esta era um ramal do Nilo, porque nela se cria um peixe parecido
a uma espécie existente no lago de Alexandria» 1.
Os vestígios mais importantes da passagem do Senhor por estas 2. Mt 4, 23-25.
terras mantêm-se na parte noroeste do Mar da Galileia, em torno 3. Cf. Mt 4, 13.
4. Cf. Mt 5, 1 e 14, 14; Mc 6, 32-34; Lc 6, 17-19; Jo 6, 2-5.
5. Cf. Mt 14, 13-21; Mc 6, 32-44; Lc 9, 12-17; Jo 6, 1-15.
1. Flávio Josefo, A guerra dos judeus, III, 516-520. 6. Cf. Mt 5, 1-11; Lc 6, 17-26.
124
Pegadas da nossa fé Tabgha Igreja das Bem-aventuranças 125

se para às vezes se retirar, só ou com os discípulos, e também não

JKM LIBRARY / CHATHAM UNIVERSITY


que acolhesse multidões de milhares de pessoas. Estava então des-
povoado, talvez pela dificuldade de cultivar o terreno, pois havia
um estrato rochoso a pouco profundidade. Por outro lado, graças
aos sete mananciais que apareciam na zona, a erva cobria o chão
e não faltava a sombra de muitas palmeiras. Essa parte do lago era
especialmente rica em pesca, pois algumas correntes de água mais
quente atraíam os bancos de peixes. As ladeiras dos montes cir-
cundantes começavam a sua pendente quase na própria margem,
formando um anfiteatro natural...
Ao ver as multidões, Jesus subiu ao monte e sentou-Se. Ro-
dearam-nO os discípulos, e Ele começou a ensiná-los, dizendo:
— Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o
Fotografia de finais do século XIX, em que pode ver-se reino dos Céus. Bem-aventurados os humildes, porque possui-
como eram as barcas que então se utilizavam no lago. rão a terra. Bem-aventurados os que choram, porque serão con-
solados. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, por-
firmou S. Pedro como primado da Igreja 7. Somente algumas cen- que serão saciados. Bem-aventurados os misericordiosos, porque
tenas de metros separam os três lugares onde se realizaram estes alcançarão misericórdia. Bem-aventurados os puros de coração,
episódios da vida do Senhor. porque verão a Deus. Bem-aventurados os que promovem a paz,
Um texto atribuído à peregrina Egéria, que visitou a Palestina porque serão chamados filhos de Deus. Bem-aventurados os que
no século IV, oferece-nos um testemunho eloquente da memória sofrem perseguição por amor da justiça, porque deles é o reino
cristã sobre Tabgha: «Não longe de Cafarnaum, veem-se os degraus dos Céus. Bem-aventurados sereis, quando, por minha causa, vos
de pedra sobre os quais se sentou o Senhor. Ali, junto ao mar, en- insultarem, vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal
contra-se um terreno coberto de erva abundante e muitas palmei- contra vós. Alegrai-vos e exultai, porque é grande nos Céus a vos-
ras, e, junto ao mesmo lugar, sete fontes, manando de cada uma sa recompensa 9.
delas água com fartura. Neste lugar o Senhor saciou uma multidão Segundo a tradição dos cristãos que moraram na comarca des-
com cinco pães e dois peixes. A pedra sobre a qual o Senhor pou- de os tempos de Jesus, o Sermão da Montanha – aquele conjunto
sou o pão foi convertida em altar. Junto às paredes daquela igre- de ensinamentos do Senhor que começa com as Bem-aventuran-
ja passa a via pública, onde Mateus tinha o seu telónio. Sobre o ças – foi pronunciado perto da Igreja da Multiplicação dos pães e
monte vizinho há um lugar onde o Senhor subiu para pronunciar dos peixes, na ladeira de um monte vizinho, onde havia uma gru-
as Bem-aventuranças» 8. ta. Efetivamente, a cem metros desse santuário escavaram-se em
Neste artigo, centraremos a nossa atenção no último sítio enu- 1935 os restos de alguns edifícios. Terão pertencido a uma igreja e a
merado por Egéria: «O monte das Bem-aventuranças». Pelas carac- um mosteiro dos séculos IV ou V. A capela, de sete metros de com-
terísticas de Tabgha, não se torna estranho que o Senhor o escolhes- primento por quatro de largura, construída escavando por cima
de uma pequena gruta, abarcava outra cova natural, regularizada
7. Cf. Jo 21, 1-23.
8. Appendix ad Itinerarium Egeriæ, II, V, 2-3 (CCL 175, 99). 9. Mt 5, 1-12. Cf. Lc 6, 20-23.
126
Pegadas da nossa fé Tabgha Igreja das Bem-aventuranças 127

GLEN ROBERTS / FLICKR BERTHOLD WERNER / WIKIMEDIA COMMONS

Quando se construiu a Igreja das Bem-aventuranças, procurou-se


uma localização a partir da qual se dominasse o Mar da Galileia. O
santuário está rodeado por um átrio, que filtra a luz e protege do calor.

em forma quadrada com alvenaria de pedra. Numerosos grafitos


cobriam o reboco das paredes e o chão estava pavimentado com
mosaicos.
Seguindo esta tradição, entre 1937 e 1938 edificou-se o atual
Santuário das Bem-aventuranças mas, com o fim de dispor de uma
ITAMAR GRINBERG / ISRAELI MINISTRY OF TOURISM

maior panorâmica sobre o Mar da Galileia, foi escolhida uma lo-


calização mais alta, a cerca de duzentos metros sobre a superfície
do lago e a dois quilómetros da localização antiga.
Trata-se de uma igreja de planta octogonal, coberta por uma
cúpula de tambor esbelto e rodeada por um pórtico amplo que tor-
na mais ténue a luz e o calor do sol. O uso do basalto negro local,
pedra branca de Nazaré e travertino romano forma um conjun-
128
Pegadas da nossa fé Tabgha Igreja das Bem-aventuranças 129

BENJAMIN E. WOOD / FLICKR

JON LAI YEXIAN / FLICKR


O Santuário das Bem-aventuranças está rodeado por um jardim
frondoso que o embeleza. No interior da igreja – imagem da direita –,
o altar e o tabernáculo encontram-se no centro, sob a cúpula.

to harmonioso e permite que o edifício se destaque entre a densa


vegetação da área. No interior, os elementos estão dispostos com
simplicidade de linhas: no centro, o altar, coroado com uma arqui-
volta de alabastro; por detrás, erguido sobre um pedestal de pór-
firo, o tabernáculo, ornamentado com cenas da Paixão em bronze
dourado sobre fundos de lápis-lazúli; no tambor, oito janelas com
vitrais onde se leem as palavras das Bem-aventuranças e, a fechar
o espaço, a cúpula, com um revestimento de tons doirados.

O programa das
Bem-aventuranças «As bem-aventuranças estão no co-
ração da pregação de Jesus. O seu anúncio retorna as promessas
feitas ao povo eleito, desde Abraão. A pregação de Jesus comple-
ta-as, ordenando-as, não já somente à felicidade resultante da pos-
130
Pegadas da nossa fé Tabgha Igreja das Bem-aventuranças 131

se duma terra, mas ao Reino dos céus» 10. Considerando este facto, As Bem-aventuranças iluminam as ações e atitudes que caracte-
Bento XVI sublinha a diferença entre Moisés e o Senhor, entre o rizam a vida cristã, exprimem o que significa ser discípulo de Cristo,
Sinai, um maciço rochoso no deserto, e o Monte das Bem-aventu- ter sido chamado a associar-se à sua Paixão e Ressurreição 15. «Mas
ranças: «Quem já esteve lá alguma vez e guarda impressa na alma têm valor para o discípulo, porque primeiro se realizaram, à manei-
a larga vista sobre as águas do lago, o céu e o sol, as árvores e os ra de um protótipo, no próprio Cristo. (...) As Bem-aventuranças
prados, as flores e o canto dos pássaros, não pode esquecer a admi- são como que uma biografia interior oculta de Jesus, um retrato da
rável atmosfera de paz, de beleza da criação» 11. sua figura. Ele, que não tem onde reclinar a cabeça (cf. Mt 8, 20) é
As Bem-aventuranças respondem ao desejo natural de felicida- o verdadeiro pobre; o Senhor, que pode dizer de Si mesmo: Vinde
de que Deus pôs no coração do homem, anunciam bênçãos e re- a Mim, porque sou manso e humilde de coração (cf. Mt 11, 29), é o
compensas, mas ao mesmo tempo são promessas paradoxais, es- verdadeiro manso; é o verdadeiro puro de coração e, por isso, con-
pecialmente as que se referem à pobreza, às penas, à injustiça e templa sem cessar a Deus. Ele é o construtor de paz, é Aquele que
às perseguições 12: «Os critérios mundanos ficam invertidos, logo sofre por amor de Deus: nas Bem-aventuranças aparece o mistério
que a realidade é vista na perspetiva correta, nomeadamente se- do próprio Cristo, chamando-nos à comunhão com Ele» 16.
gundo a escala dos valores de Deus, que é diferente da escala dos Para responder a essa chamada de Deus a participar da sua pró-
valores do mundo. Precisamente aqueles que, segundo os critérios pria bem-aventurança, Jesus é o caminho:
mundanos, são considerados pobres e perdidos são os verdadeiros Temos que aprender d’Ele, de Jesus, nosso único mode-
afortunados, os abençoados e podem, não obstante todos os seus lo. Se quiseres progredir, evitando tropeços e extravios, só
sofrimentos, alegrar-se e rejubilar» 13. terás que andar pelo caminho que Ele percorreu, apoiar os
As Bem-aventuranças não devem entender-se como se o júbilo teus pés nas marcas das Suas pegadas, introduzir-te no Seu
que anunciam seja alcançado apenas no mais além. S. Josemaria Coração humilde e paciente, beber do manancial dos Seus
ensinava isto, ao mesmo tempo que nos punha em guarda perante mandatos e afetos. Numa palavra, hás de identificar-te com
o perigo do vitimismo: Jesus Cristo, procurar converter-te verdadeiramente nou-
Sacrifício, sacrifício!... É verdade que seguir Jesus tro Cristo entre os teus irmãos, os homens (...).
Cristo (disse-o Ele) é levar a Cruz. Mas não gosto de ouvir Revê o exemplo de Cristo, do presépio de Belém até ao
as almas, que amam o Senhor, falar tanto de cruzes e de trono do Calvário. Considera a Sua abnegação, as Suas
renúncias; porque, quando há Amor, o sacrifício é gostoso privações: fome, sede, fadiga, calor, sono, maus-tratos,
– ainda que custe – e a cruz é a Santa Cruz. incompreensões, lágrimas... e a Sua alegria por salvar a
A alma que sabe amar e entregar-se assim, enche-se de humanidade inteira. Gostaria que gravasses agora, pro-
alegria e de paz. Então, porquê insistir em «sacrifício», fundamente, na tua cabeça e no teu coração – para o me-
como buscando consolações, se a Cruz de Cristo – que é a ditares muitas vezes e o traduzires em consequências prá-
tua vida – te torna feliz? 14. ticas – aquele resumo de S. Paulo, quando convidava os
Efésios a seguir, sem vacilações, os passos do Senhor: Sede,
pois, imitadores de Deus, como filhos bem amados, e proce-
10. Catecismo da Igreja Católica, n. 1716. dei com amor, como também Cristo nos amou e Se entregou
11. Joseph Ratzinger/Bento XVI, Jesus de Nazaré, p. 102.
12. Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1717-1718.
13. Joseph Ratzinger/Bento XVI, Jesus de Nazaré, p. 107-108. 15. Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1717.
14. S. Josemaria, Sulco, n. 249. 16. Joseph Ratzinger/Bento XVI, Jesus de Nazaré, p. 110-111.
132
Pegadas da nossa fé Tabgha Igreja das Bem-aventuranças 133

quem é perseguido por causa da verdade, para a utilidade de todos

GABINETE DE IMPRENSA DO OPUS DEI


dispõe também a sua vida» 18.
Quem segue a Cristo encontra a felicidade; e, naturalmente,
tenta espalhá-la: O Mestre passa, uma e outra vez, muito
perto de nós. Olha-nos... E se O vês, se O escutas, se não
Lhe resistes, Ele ensinar-te-á a dar sentido sobrenatural a
todas as tuas ações... E, então, também tu semearás, onde
te encontrares, consolação e paz e alegria 19.

O Beato Álvaro em Tabgha O Beato Álvaro del Por-


tillo esteve na Igreja das Bem-aventuranças no dia 16 de Março de
1994. Ali celebrou pela segunda vez a Santa Missa durante a sua
peregrinação à Terra Santa. As religiosas franciscanas que guar-
dam o santuário pararam o movimento dos visitantes à volta do
altar principal, pelo que o Beato Álvaro pôde celebrar com muita
tranquilidade.
O Beato Álvaro esteve na Igreja das Bem-aventuranças — «Ao terminar a Missa – recordava mais tarde D. Javier Eche-
a 16 de Março de 1994, e celebrou aí a Santa Missa. varrría –, comentou-nos que tinha pedido para que todos os cris-
tãos, e especialmente as suas filhas e os seus filhos do Opus Dei,
fizessem da sua vida uma adaptação total ao programa que Cristo
a Deus por nós como oferta e sacrifício de agradável odor tinha proposto nas Bem-aventuranças» 20. n
(Ef 5, 1-2).
Jesus entregou-se a si mesmo, feito holocausto por amor.
E tu, discípulo de Cristo, tu, filho predileto de Deus, tu, que
foste comprado a preço de Cruz, tu também deves estar dis-
posto a negar-te a ti mesmo 17.
No Sermão da Montanha, depois das Bem-aventuranças, Jesus
compara os crentes com o sal da terra e a luz do mundo. Comen-
tando estas palavras, S. João Crisóstomo sublinhava a relação en-
tre as duas passagens: «Quem é manso, modesto, misericordioso
e justo, não reserva só para si estas virtudes, mas faz com que es-
tas belas fontes se derramem também copiosamente em proveito
dos outros. Do mesmo modo, quem é limpo de coração, pacífico e 18. S. João Crisóstomo, In Matthæum homiliæ, 15, 7.
19. S. Josemaria, Via Sacra, VIII estação, ponto 4.
20. Javier Echevarría, Palavras recolhidas em Crónica, 1994, p. 103 e 106
17. S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 128-129. (AGP, biblioteca, P01).
134 Pegadas
DA NOSSA fé 11 135

DEROR AVI / FLICKR

Tabgha N a Terra Santa, recebe o nome de Tabgha um lugar, a cer-


ca de três quilómetros de Cafarnaum, que se estende da
margem do Mar da Galileia para o interior. Mas também
costuma aplicar-se, de modo mais restritivo, a uma pequena parte

Igreja da Multiplicação dessa região, ao sítio onde se recorda a multiplicação dos cinco pães
e dos dois peixes, com que o Senhor deu de comer a uma multidão
de cinco mil homens.
Dos relatos deste milagre, recolhidos nos Evangelhos, S. Mar-
cos oferece alguns pormenores que permitem localizá-lo perto de
Cafarnaum, junto à margem do lago, numa zona desabitada onde
crescia verdura com abundância:
Os Apóstolos voltaram para junto de Jesus e contaram-Lhe
tudo o que tinham feito e ensinado. Então Jesus disse-lhes:
— Vinde comigo para um lugar isolado e descansai um pouco.
De facto, havia sempre tanta gente a chegar e a partir que eles
nem tinham tempo de comer. Partiram, então, de barco para um
lugar isolado, sem mais ninguém. Vendo-os afastar-se, muitos
perceberam para onde iam; e, de todas as cidades, acorreram a
pé para aquele lugar e chegaram lá primeiro que eles. Ao desem-
barcar, Jesus viu uma grande multidão e compadeceu-Se de toda
aquela gente, porque eram como ovelhas sem pastor. E começou
a ensinar-lhes muitas coisas. Como a hora ia já muito adiantada,
os discípulos aproximaram-se de Jesus e disseram-Lhe:
— O local é deserto e a hora já vai adiantada. Manda-os embo-
ra, para irem aos casais e aldeias mais próximas comprar de comer.
Jesus respondeu-lhes:
— Dai-lhes vós mesmos de comer.
Disseram-Lhe eles:
— Havemos de ir comprar duzentos denários de pão, para lhes
darmos de comer?
Jesus perguntou-lhes:
Sob o altar, encontra-se a rocha venerada como o — Quantos pães tendes? Ide ver.
lugar onde o Senhor pousou os pães e os peixes.
Eles foram verificar e responderam:
136
Pegadas da nossa fé Tabgha Igreja da Multiplicação 137

SIMONE BALDINI / FLICKR

LEOBARD HINFELAAR
Acede-se à Igreja da Multiplicação através de um claustro, em cujo centro
se ergue uma oliveira. O edifício segue a planta da basílica bizantina do
século V, da qual se conserva grande parte do pavimento em mosaico.

tribuíssem. Repartiu por todos também os peixes. Todos come-


ram até ficarem saciados; e encheram ainda doze cestos com os
pedaços de pão e de peixe. Os que comeram dos pães eram cinco
mil homens 1.
Os primeiros cristãos, identificaram logo Tabgha como o lugar
onde teria sucedido este facto, da mesma maneira que recordavam
ali o monte onde Jesus tinha pronunciado as Bem-aventuranças e
também a ribeira onde Jesus tinha aparecido depois de ressuscita-
— Temos cinco pães e dois peixes. do, quando propiciou a segunda pesca milagrosa. No caso da mul-
Ordenou-lhes então que os fizessem sentar a todos, por gru- tiplicação dos pães e dos peixes, venerava-se a rocha exata onde
pos, sobre a verde relva. Eles sentaram-se, repartindo-se em gru- o Senhor tinha pousados os alimentos. A peregrina Egéria, que
pos de cem e de cinquenta. Jesus tomou os cinco pães e os dois
peixes, ergueu os olhos ao Céu e pronunciou a bênção. Depois 1. Mc 6, 30-44. Cf. Mt 14, 13-21; Lc 9, 10-17; e Jo 6, 1-15. Além disso, S. Mateus
partiu os pães e foi-os dando aos discípulos, para que eles os dis- (15, 32-39) e S. Marcos (8, 1-10) narram a segunda multiplicação.
138
Pegadas da nossa fé Tabgha Igreja da Multiplicação 139

andou pela Terra Santa no século IV, transmitiu-nos um testemu- Nos lados do

BERTHOLD WERNER / WIKIMEDIA COMMONS


nho muito valioso sobre a existência de uma igreja naquele sítio: transepto, a
decoração
«Não longe dali [de Cafarnaum] veem-se os degraus de pedra, so- mostra uma
bre os quais esteve de pé o Senhor. Aí mesmo, por cima do mar, há clara influência
um campo coberto de erva, com copioso feno e muitas palmeiras, do vale do Nilo,
e junto destas, sete fontes, cada uma das quais fornecendo água ao representar a
flora e a fauna
abundantíssima. Nesse prado o Senhor saciou o povo com cinco desse lugar:
pães e dois peixes. Convém saber que a pedra sobre a qual o Se- flamingos,
nhor pousou o pão, agora foi transformada em altar. Desta pedra, garças, lontras,
os visitantes apanham pequenos bocadinhos para a sua salvação e cisnes, patos...
a todos aproveita. Junto às paredes desta igreja passa a via pública,
onde o Apóstolo Mateus tinha o telónio. No monte que se encon-

STEVEN CONGER / FLICKR


tra perto, há uma gruta onde o Senhor, depois de subir até lá, pro-
nunciou as Bem-aventuranças» 2.
A julgar pelos dados mencionados por outros testemunhos an-
teriores, o santuário que comemorava a multiplicação dos pães e
dos peixes, ainda existia no século IV. Contudo, deve ter sofrido os
efeitos das invasões dos persas – no ano 614 –, ou dos árabes – em
638 –, pois o peregrino Arculfo não encontrou senão umas pobres
ruínas nos finais do século VII 3. A igreja nunca foi reconstruída
e, inclusivamente, a memória da localização primitiva debilitou-
-se, até chegar a confundir-se com a antiga das Bem-aventuranças.
O estado de abandono acabou no século XIX, quando o lugar foi
adquirido pela Sociedade Alemã da Terra Santa. Esta facilitou as
primeiras escavações arqueológicas, realizadas em 1911, que foram
completadas com outros estudos em 1932, 1935 e 1969.
Estas investigações permitiram comprovar a existência de duas
igrejas, uma mais pequena, de meados do século IV, que terá sido
a visitada por Egéria, e outra maior, de três naves, edificada na se-
gunda metade do século V. Mas, sobretudo, confirmaram a exati-
dão da tradição recebida, ao trazer à luz os restos do altar, a rocha Os vestígios daquelas duas igrejas são hoje visíveis no moder-
venerada com a prova de que sofreu a extração de numerosos frag- no santuário, acabado em 1982, que faz parte de um mosteiro be-
mentos, e um mosaico que representa uma cesta com pães, ladea- neditino. A basílica retoma o perímetro e a planta em forma de T
da por dois peixes. da construção bizantina do século V, de três naves separadas por
fortes colunas e arcos de meio ponto, com transepto e uma abside
2. Appendix ad Itinerarium Egeriæ, II, V, 2-3 (CCL 175, 99). na nave central. No presbitério, sob o altar, destaca-se a rocha já
3. Cf. Adamnani, De Locis Sanctis II, XXIII (CCL 175, 218). referida por Egéria; quando se construiu a segunda igreja, no sé-
140
Pegadas da nossa fé Tabgha Igreja da Multiplicação 141

culo V, foi tirada da sua posição primitiva e afastada alguns metros, xes, os discípulos embarcaram e dirigiram-se para Cafarnaum; no
para colocá-la no sítio normalmente dedicado às relíquias. Dian- meio da travessia, dificultada pelo forte vento, o Senhor alcança-os
te da rocha, no pavimento de mosaico, encontra-se a imagem dos caminhando sobre o lago. No dia seguinte, as pessoas saem à pro-
peixes e o cesto com pães, como um sinal para confirmar a tradi- cura de Jesus e encontram-nO na sinagoga de Cafarnaum, onde os
ção do lugar. Poderia datar-se entre os séculos V e VI. Com os seus recebe com estas palavras:
traços simples e as cores cálidas das tesselas, têm uma grande força — Em verdade, em verdade vos digo: vós procurais-Me, não
evocadora: qualquer leitor dos Evangelhos compreende imediata- porque vistes milagres, mas porque comestes dos pães e ficastes
mente o facto que se recorda. saciados. Trabalhai, não tanto pela comida que se perde, mas pelo
Há outros vestígios de valor arqueológico e artístico indubitá- alimento que dura até à vida eterna e que o Filho do homem vos
vel: à direita do altar, através de um vidro, podem ver-se os alicerces dará. A Ele é que o Pai, o próprio Deus, marcou com o seu selo 5.
da igreja do século V; nalguns muros, os silhares apoiam-se sobre Assim começa o discurso do Pão da Vida, no qual o Senhor re-
fundamentos bizantinos de pedra basáltica; e no chão, conserva-se vela o mistério da Eucaristia. A sua riqueza é tão grande que se
uma grande parte do pavimento original em mosaico, que apresen- considera «o resumo e a súmula da nossa fé» 6: «Sacramento da ca-
ta um desenho geométrico nas naves, mostrando, no entanto, uma ridade, a Santíssima Eucaristia é a doação que Jesus Cristo faz de Si
grande riqueza de motivos figurativos nos lados do transepto, com mesmo, revelando-nos o amor infinito de Deus por cada homem» 7.
representações de várias espécies de aves e plantas, que têm o seu No santo sacrifício do altar, oblação de valor infinito que
habitat no Mar da Galileia. Baseando-se numa inscrição encontra- eterniza em nós a redenção 8, o Senhor sai ao encontro do ho-
da junto do altar, esta ornamentação manifesta influências do vale mem, tornando-Se verdadeira, real e substancialmente presente,
do Nilo, pelo que se atribui a Martyrios, que tinha sido monge no com o seu Corpo e o seu Sangue, juntamente com a sua alma e
Egito, e foi patriarca de Jerusalém entre os anos 478 e 486. divindade 9.
O Deus da nossa fé não é um ser longínquo, que con-
O mistério da Eucaristia No mosaico onde figuram
templa com indiferença a sorte dos homens, os seus afãs,
as suas lutas, as suas angústias. É um pai que ama os seus
os peixes e a cesta com pães, diante do altar, vemos só quatro pães filhos até ao ponto de enviar o Verbo, segunda Pessoa da
representados. Ainda que se desconheçam as intenções do artista Santíssima Trindade, a fim de encarnar, morrer por nós e
que desenhou aquele pavimento, quando os beneditinos, que têm nos redimir. E é o mesmo Pai amoroso que agora nos atrai
a seu cargo o santuário, o mostram aos peregrinos, costumam dar suavemente a Si, mediante a ação do Espírito Santo que
um sentido teológico para a falta do quinto pão, lembrando que de- habita no nosso coração (...).
vemos procurá-lo sobre o altar, durante a Santa Missa, identificado
com a Eucaristia. Efetivamente, a fé cristã sempre viu prefigurado O Criador transborda de carinho pelas suas criaturas.
o dom deste sacramento na multiplicação dos pães e dos peixes 4. Como se já não bastassem todas as outras provas da sua
misericórdia, Nosso Senhor Jesus Cristo institui a euca-
Este vínculo manifesta-se com particular força no quarto Evan-
gelho, onde S. João completa o relato da multiplicação com outros
factos que ocorreram depois. A narração ocupa o capítulo sexto: 5. Jo 6, 26-27.
6. Catecismo da Igreja Católica, n. 1327.
depois de ter saciado a multidão com os cinco pães e os dois pei-
7. Bento XVI, Exortação apostólica pós-sinodal Sacramentum caritatis, 22-II-2007, n. 1.
8. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 86.
4. Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1335. 9. Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1373-1374.
142
Pegadas da nossa fé Tabgha Igreja da Multiplicação 143

Perto do Santuário
FOTOS: GABINETE DE IMPRENSA DO OPUS DEI

da Multiplicação, na
manhã de 16 de
Março de 1994. À
direita, uma das flores
que o Beato Álvaro
quis trazer como
recordação.

Oração na margem do lago Durante a sua peregrina-


ristia para que possamos tê-Lo sempre perto de nós e por- ção à Terra Santa, o Beato Álvaro foi a Tabgha a 16 de Março de
que – tanto quanto nos é possível entender –, movido pelo 1994. Primeiro esteve a rezar na Igreja da Multiplicação dos pães e
seu amor, Ele, que de nada necessita, não quis prescindir dos peixes. Tal como os outros fiéis, aproximou-se para venerar o
de nós 10. rochedo onde se diz que o Senhor pousou aqueles alimentos. «Quis
O Senhor não Se cansa de procurar a proximidade de cada ho- que sobre ele passássemos os objetos que levávamos – o crucifixo,
mem, acompanha-o no seu caminho e, manifestando ao máximo o terço...», recorda D. Javier Echevarría. «Mas pareceu-lhe pouco
a sua misericórdia, torna-Se alimento para nos divinizar: e quis também lá depositar o peitoral. Tudo o que levava consigo
quis passar pelos lugares que o Senhor tinha santificado com a sua
Jesus ficou na Eucaristia por amor..., por ti. Ficou, sa-
presença e nos quais ensinou e fez milagres» 12.
bendo como o receberiam os homens... e como o recebes tu.
Ficou, para que o comas, para que o visites e lhe contes as Como sabemos, dirigiu-se depois à Igreja do Primado – onde
tuas coisas e, falando intimamente com Ele na oração jun- repetiu o gesto de passar o terço e o crucifixo pela Mensa Christi –,
to do Sacrário e na receção do Sacramento, te apaixones à Igreja das Bem-aventuranças – onde celebrou a Santa Missa – e a
cada dia mais e faças com que outras almas – muitas! – si- Cafarnaum. Pela tarde, estava previsto fazer a oração numa barca,
gam o mesmo caminho 11. no Mar da Galileia. O Beato Álvaro sempre teve o sonho em con-
cretizar esse desejo, e era o único que tinha manifestado, depois de
10. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 84.
11. S. Josemaria, Forja, n. 887. 12. Javier Echevarría, Palavras recolhidas em Crónica, 1994, p. 292 (AGP, biblioteca, P01).
144
Pegadas da nossa fé Tabgha Igreja da Multiplicação 145

muito lhe perguntarem. Por causa dum imprevisto, porém, não foi
DORMITION ABBEY

possível cumprir esse programa, e teve de contentar-se com procu-


rar um sítio na margem.
— «Era um lugar muito próximo onde se comemora a multi-
plicação dos pães e dos peixes», continuava a recordar D. Javier
Echevarría. «Fizemos a oração materialmente na margem do lago,
numa esplanada que tem uns troncos de eucaliptos e, em frente,
umas rochas» 13.
Foi preciso fazer um certo esforço físico para chegar até lá e de-
pois para regressar, mas o Beato Álvaro não teve inconveniente em
acomodar-se ao plano proposto.
— «Disse-me que podíamos apanhar algumas flores desse sí-
tio, como recordações», continuava D. Javier Echevarría. «Antes
falou-me do tema da sua oração. Tinha meditado na cena da pes-
ca milagrosa na qual o Senhor disse a Pedro: Duc in altum! Tinha
pedido por todas as suas filhas e por todos os seus filhos, para que,
seguindo o exemplo do nosso Padre, vivamos sempre o duc in al-
O Beato Álvaro fez a oração na zona do santuário mais próxima do lago. Há tum!, entremos mar adentro, lançando-nos aos mares deste mundo
ali uma capela ao ar livre, que em 1994 tinha um tipo de cobertura diferente com a nossa vida corrente, com a nossa vida profissional e, depois,
do que aparece na fotografia, que é recente. O Beato Álvaro sentou-se para
além desse recinto, à direita do altar, no tronco que se vê por trás da árvore. que tenhamos uma pesca abundante, que sejamos homens ou mu-
Na altura, a água chegava até poucos metros do lugar onde estavam; hoje, o lheres muito apostólicos, cheios de afã de proselitismo.
nível do lago desceu e a margem fica bastante afastada. »Depois, pensou também numa realidade que comentou mui-
tas vezes. O Senhor, depois da pesca milagrosa, disse aos Apósto-
los: agora sereis pescadores de homens. E eles deixaram tudo e se-
guiram Jesus. O Padre referia-se ao relictis omnibus, isto é, a saber
deixar definitivamente todas as coisas, despojar-se dos pequenos
ídolos que tem cada um de nós, para oferecer ao Senhor a vida com
generosidade.
»Nisto pensou o Padre na oração e pediu pelas vocações de
muitos que têm de vir, e a perseverança fiel e leal dos que, como
nós, já estão no Opus Dei, sem procurar compensações de qual-
quer tipo» 14. n

13. Ibid., p. 299.


14. Ibid., p. 299-301.
146 Pegadas
DA NOSSA fé 12 147
Vista aérea da piscina
de Betesda e da Igreja
de Santa Ana.

Junto da piscina
de Betesda
D
izias-me que há cenas da vida de Jesus que te emo-
cionam mais: quando entra em contacto com ho-
mens que se sentem em carne viva, quando leva a
paz e a saúde aos que têm a alma e o corpo destroçados
pela dor... Entusiasmas-te, insistias, ao vê-Lo curar a le-
pra, restituir a vista, sarar o paralítico da piscina: aquele
pobre de quem ninguém se lembrava... Tão profundamente
humano O vês nessas alturas, tão ao teu alcance!
Pois... Jesus continua a ser o mesmo de então! 1.
Os Evangelhos relatam numerosas curas realizadas por Jesus,

DUBY TAL / ALBATROSS / ALAMY STOCK PHOTO


mas S. João recolhe a de aquele paralítico aflito pela sua solidão, do
qual ninguém se lembrava. Na sua narração, depois de esclarecer
que Jesus tinha subido desde a Galileia para a celebração de uma
festa judaica, S. João situa precisamente o cenário dos factos: Existe
em Jerusalém, junto à porta das ovelhas, uma piscina, chamada,
em hebraico, Betsatá, que tem cinco pórticos. Ali jazia um gran-
de número de enfermos, cegos, coxos e paralíticos 2. A tradução

1. S. Josemaria, Sulco, n. 233.


2. Jo 5, 2-3.
148
Pegadas da nossa fé Junto da piscina de Betesda 149

Vulgata da Bíblia, baseando-se nalguns códices hoje já relegados, localização da piscina esteve perdida durante grande parte do se-
acrescentava um versículo indicando o motivo daquela reunião de gundo milénio, e talvez teria caído no esquecimento se a sua vene-
pessoas: «Aguardavam o movimento da água. Pois um anjo do Se- ração não tivesse ficado unida a outra tradição, que situava perto
nhor descia de vez em quando à piscina e movia a água. O primei- dela a casa de Santa Ana e São Joaquim, pais da Santíssima Virgem.
ro que se metesse na piscina depois do movimento da água ficava
são de qualquer enfermidade que tivesse» 3.
O milagre que realiza Jesus é especialmente comovente por-
A Igreja de Santa Ana A memória mais antiga acerca
que O vemos tomar a iniciativa a todo o momento: em primeiro do lugar de nascimento de Nossa Senhora está relacionada com o
lugar, quando se aproxima daquela multidão de doentes; depois, Protoevangelho de Tiago, um apócrifo que pode ser datado no século
quando repara concretamente num deles, no meio da multidão; II. Segundo esta tradição, Santa Ana e São Joaquim, que era sacer-
e, finalmente, quando se oferece para curá-lo. Estava ali também dote do Templo, viviam em Jerusalém, junto da piscina Probática.
um homem, enfermo havia trinta e oito anos. Ao vê-lo deitado e Não há dados arqueológicos que confirmem esta tradição, para
sabendo que estava assim há muito tempo, Jesus perguntou-lhe: além da construção de uma igreja, no século V, onde se recordava
— Queres ser curado? a cura do paralítico, e que foi dedicada a Nossa Senhora: Santa
O enfermo respondeu-Lhe: Maria da Probática. Aparece representada no mapa-mosaico de
— Senhor, não tenho ninguém que me introduza na piscina, Madaba, do século VI. Era uma basílica com três naves e um átrio,
quando a água é agitada; enquanto eu vou, outro desce antes de apoiada em parte sobre os restos da piscina e em parte sobre terre-
mim. no firme. Havia cisternas com água por baixo do pórtico do átrio
e por baixo das naves. Tal como outros templos da região, sofreu
Disse-lhe Jesus: várias destruições e restauros, de modo que os Cruzados, no ano
— Levanta-te, toma a tua enxerga e anda. 1099, só encontraram ruínas. Edificaram então uma pequena capela
No mesmo instante o homem ficou são, tomou a sua enxerga em memória do milagre, sobre os vestígios da basílica e do dique.
e começou a caminhar 4. Mais tarde, provavelmente entre 1130 e 1150, erigiram uma igreja
A piscina chamada Betzatá ou Betesda também era conhecida românica sobre uma gruta próxima, que é venerada como o lugar
pelo nome de Probática, por estar perto da porta das Ovelhas (em da Natividade de Nossa Senhora. É a Igreja de Sta. Ana, situada
grego, próbata). Essa porta estava na secção nordeste da muralha hoje em pleno bairro muçulmano da Cidade Velha, muito perto do
e por ela entrava o gado destinado aos sacrifícios do Templo. Os início da Via Dolorosa e da porta dos Leões ou de Santo Estêvão.
cinco pórticos da piscina explicam-se não porque tivesse sido cons- Trata-se de uma das construções dos Cruzados mais bem con-
truída numa estranha forma pentagonal, mas porque tinha dois servadas da Terra Santa. Tem três naves, cada uma delas acabada
tanques separados por um grosso muro de contenção: quatro pór- num abside semicircular, e uma cripta, na qual se recorda a Nativi-
ticos cobriam os lados, e o quinto estava no meio, sobre o dique, dade de Nossa Senhora. O edifício destaca-se pela sua simplicidade
que media perto dos seis metros e meio de largura. Além do tes- e sobriedade, num harmonioso equilíbrio entre as sensibilidades
temunho evangélico, chegaram-nos descrições através de Eusébio ocidental e oriental. Também possui uma acústica excelente. De-
de Cesareia e S. Cirilo de Jerusalém, datadas dos séculos III e IV. A pois da queda dos reinos Cruzados, Saladino não derrubou a igreja,
senão que a converteu em escola islâmica; temos memória deste
3. Jo 5, 4 [Vg].
destino por causa de uma inscrição árabe sobre a porta. Quando
4. Jo 5, 5-9. acabou a guerra de Crimeia, em 1856, foi doada pelos turcos ao es-
150
Pegadas da nossa fé Junto da piscina de Betesda 151

BERTHOLD WERNER / WIKIMEDIA COMMONS

ALFRED DRIESSEN
A Igreja de Santa Ana é o
exemplo mais bem
conservado da arquitetura
dos Cruzados do século XII
em Terra Santa. No seu
interior, o único adorno é a
pedra. À esquerda, imagem tado francês, ao qual ainda pertence. No século XIX, quando o ar-
de Santa Maria e a Sua quiteto alsaciano Christophe Edouard Mauss acometeu o necessá-
mãe. Segundo uma tradição rio restauro, o achado fortuito de uma cisterna levou-o à descoberta
ALFRED DRIESSEN

venerável, Nossa Senhora


terá nascido onde hoje se de uma piscina. Foi logo identificada como a de Betesda, da qual
ergue a Igreja de Santa Ana. se tinha perdido todo o vestígio.
Vestígios de construções na zona da
152
Pegadas da nossa fé Junto a la piscina de Betesda
piscina de Betesda ao longo dos séculos 153
Anteriores a Cristo Época bizantina: séculos V-VI
Área aproximada Época romana tardia: século II Época dos Cruzados: século XII
do tanque norte

A piscina de Betesda As investigações arqueológicas


Mosaico
bizantino Banhos rituais
judaicos
realizadas desde o século XIX pelos missionários de África – os Pa-
Capela dos
dres Brancos, que administram o lugar desde 1878 – e pelos domini- Cruzados Basílica de
canos da École Biblique permitiram conhecer a história da piscina Santa Maria
da Probática
Igreja de
Santa Ana
Probática e descobrir os restos de outras estruturas dessas redon-
dezas: banhos hebraicos, um santuário pagão da época romana, a Dique Cisterna

Basílica bizantina de Santa Maria e a pequena capela dos Cruzados. Lugar


de culto
Arcadas que
Segundo alguns estudiosos, a piscina foi construída em duas Tanque de
decantação Degraus sustentavam o
pagão Cripta
átrio da basílica
épocas. A primeira poderia ser no século VIII a. C., durante os reina- bizantina

dos de Ajaz ou Ezequias, quando se construiu o dique para conter


Área aproximada
as águas que desciam do norte. O Templo era abastecido de água

FOTO: ALFONSO PUERTAS. ILUSTRAÇÃO: J. GIL. FONTE: S. GIBSON / F. AMIRAH / M. BEN JEDDOU
do tanque sul

através de um canal que vinha desse reservatório. O segundo tan-


que, a sul do primeiro, terá sido escavado nos finais do século III
a. C. Outras investigações sugerem que, quando chegou a domi-
nação romana, todo o conjunto ficou reformado. Media aproxi-
madamente 60 por 120 metros. Hoje não é possível apreciar o seu

ANTON
tamanho, mas sim a sua profundidade, entre 15 e 20 metros. A uti- PORTA DOS

IA ST.
lidade de Betesda como depósito começou a decair em tempos de LEÕES

YOT
Herodes o Grande, porque fez projetar outro com capacidade se- DERECH
SHA’AR
HAARA

melhante, que foi a piscina de Israel, mais próxima do Templo. A Canalização de água
para o Templo 0m 25
Probática deve ter continuado a ser utilizada para banhos rituais. 0 ft 100
Ainda são claramente visíveis uns degraus para descer até a água.
Por volta do ano 44, a ampliação da muralha de Jerusalém, orde-
nada por Herodes Agripa, terá cegado o tanque do norte.
Os arqueólogos encontraram o que parece ser um centro de
cura, com uma cisterna, banhos e grutas, junto do lado oriental Templo de Herodes

da piscina. Algumas ruínas reconhecem-se à simples vista. Terá Fortaleza Antónia


estado a ser usada entre os anos 150 a. C. e 70 d. C. Isto explicaria
também a aglomeração de doentes narrada por S. João no Evan-
gelho. Quando a cidade foi refundada no século II por vontade
do imperador Adriano, deve ter-se estabelecido ali um culto pa- Piscina de Betesda

gão, provavelmente dedicado a Esculápio, o deus da medicina dos


romanos. Assim o sugerem os restos aparecidos que datam des- Piscina de Israel

se período: pavimentos de mosaico, frescos, inscrições, oferendas


votivas, moedas, etc.
Vista de Jerusalém,
desde o norte, no ano 70 d. C.,
segundo a maqueta do
Museum of Israel
154
Pegadas da nossa fé Junto da piscina de Betesda 155

ALFONSO PUERTAS

ALFRED DRIESSEN
A leste da piscina foram identificados restos de uma cisterna, banhos rituais
judaicos e outras dependências que poderiam datar-se do século II a. C.
Aquele complexo converteu-se num lugar de culto pagão no século II d. C., e
mais tarde ficou tudo coberto pela Igreja de Santa Maria da Probática. As
No tanque sul da piscina veem-se uns degraus para descer até à água. bases das colunas que se vêem na imagem pertencem a essa basílica.
Também são visíveis uma das arcadas que sustentavam a basílica bizantina
e as ruínas da capela dos Cruzados que foi construída sobre o dique.

Santa Ana se conservava a memória da Natividade de Nossa Se-


Ficou tudo coberto no século V, quando foi erigida a Basílica nhora. Hoje em dia, é celebrada ali, principalmente, esta festa ma-
de Santa Maria da Probática: o átrio, sustentado por sete arcadas, riana cada 8 de setembro, com grande solenidade.
foi edificado sobre a antiga piscina, ultrapassando a largura do di- O Beato Álvaro del Portillo, na sua peregrinação à Terra Santa,
que; e as três naves, com as suas absides, ocuparam a área das curas. esteve na Igreja de Santa Ana a 21 de Março. Rezou algum tempo
Chegaram até nós as bases de quatro colunas, e também são visíveis na cripta com as pessoas o acompanhavam. Depois, aproximaram-
três dessas arcadas – uma delas intacta – e algum mosaico. -se dos restos da piscina e leram a passagem do Evangelho que nar-
Como já foi dito, os Cruzados encontraram a basílica destruí- ra a cura do paralítico.
da nos finais do século XI, e construíram uma capela sobre o dique
que separava os dois tanques, integrando parte da obra bizantina.
Os seus vestígios são os que mais bem se reconhecem em todo o
Uma mão amiga Junto da piscina de Betesda concentra-
conjunto e provam que tinha dois pisos inferiores: uma cripta, de- vam-se pessoas acossadas por todo o tipo de misérias humanas:
corada no seu tempo com pinturas representando um anjo no meio doença, desesperança, indigência, abandono, solidão... Por isso,
de uma multidão, e uma cisterna mais em baixo. Assim, no século não surpreende que essas pessoas atraíssem a compaixão do Sal-
XII, a pequena igreja recordava a cura do paralítico, enquanto em vador, que quis carregar sobre si os nossos pecados e as suas con-
156
Pegadas da nossa fé Junto da piscina de Betesda 157

Restos da capela dos


BERTHOLD WERNER / WIKIMEDIA COMMONS

TALMORYAIR / WIKIMEDIA COMMONS


Cruzados na qual se
recordava a cura do
paralítico. Não se
conserva o pavimento.
O que ficou é o da
cripta, que tinha o teto
abobadado. Há outro
nível inferior, do qual
era possível aceder a
uma cisterna com
água.

sequências, e identificar-se com os mais necessitados 5. Jesus vai a Mas o homem que tinha sido curado não sabia quem era, por-
Jerusalém, e entra por iniciativa própria sob os pórticos da Probá- que Jesus tinha-Se afastado da multidão que estava naquele local.
tica, acompanhado pelos Apóstolos. Interessa-lhe que os seus dis- Mais tarde, Jesus encontrou-o no templo e disse-lhe:
cípulos compreendam cada vez melhor a sua missão, e a cura do — Agora estás são. Não voltes a pecar, para que não te suceda
paralítico manifesta que atua com o poder de Deus: em virtude coisa pior.
desse poder, está por cima da lei e do descanso semanal – o dia do O homem foi então dizer aos judeus que era Jesus quem o ti-
milagre era sábado – e concede aos homens o perdão dos pecados. nha curado. Desde então os judeus começaram a perseguir Jesus,
Diziam os judeus àquele que tinha sido curado: por fazer isto num dia de sábado 6.
— Hoje é sábado: não podes levar a tua enxerga. Jesus quer que os seus discípulos compreendam a sua missão
Mas ele respondeu-lhes: cada vez melhor, e também quer oferecer a sua misericórdia con-
— Aquele que me curou disse-me: «Toma a tua enxerga e anda». cretamente àquele homem que padecia a sua doença havia trinta e
Perguntaram-lhe então: oito anos. O Senhor vai à procura de cada alma, que tem a sua vida,
a sua história e as suas dificuldades: conhece tudo, compadece-se
— Quem é que te disse: «Toma a tua enxerga e anda».
de tudo, e também perdoa tudo.

5. Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 2448. 6. Jo 5, 9-16.


158
Pegadas da nossa fé Junto da piscina de Betesda 159

A mesma misericórdia que Jesus teve com o paralítico renova- laboriosidade, de alegria, de presença de Deus e de visão
-se na vida de cada um, particularmente nas doenças espirituais, sobrenatural.
mais frequentes que as corporais. «Na vida, sempre se cai, porque Não entendo a tua debilidade. Se tropeças com um gru-
somos pecadores, somos fracos. Mas temos a mão de Jesus que nos po de colegas um pouco difícil (que talvez tenha chegado a
ergue, que nos levanta. Jesus quer-nos de pé! Aquela bela palavra ser difícil por desleixo teu...), esqueces-te deles, pões-te de
que Jesus dizia aos paralíticos: “Levanta-te”. Deus criou-nos para parte, e pensas que são um peso morto, um lastro que se
estarmos de pé. Existe uma bela canção que os alpinos cantam opõe aos teus ideais apostólicos; que nunca te entenderão...
quando sobem. A canção diz assim: “na arte de subir, importante
Como queres que te ouçam, se (dando por descontado
não é o não cair, mas o não permanecer caído”! Ter a coragem de
que os ames e sirvas com a tua oração e a tua mortificação)
levantar-se, de nos deixarmos reerguer pela mão de Jesus. E esta
não falas com eles?...
mão muitas vezes chega até nós pela mão de um amigo, pela mão
dos pais, pela mão daqueles que nos acompanham na vida. O pró- Quantas surpresas apanharás no dia em que te deci-
prio Jesus em pessoa está ali. Levantai-vos! Deus quer-nos de pé, das a criar amizade com um, com outro e com outro! Além
sempre de pé!» 7. disso, se não mudas, poderão exclamar com razão, apon-
tando-te a dedo: «Hominem non habeo!», não tenho quem
Como afirma o Papa, Jesus faz-se presente na existência de mui-
me ajude! 9.
tas pessoas através dalguém próximo. Uma palavra de ânimo, a
oração perseverante, a escuta generosa, o bom exemplo: tudo con- Santa Maria consegue-nos essa vontade pronta para ir ao en-
tribui para aproximar outras pessoas do Salvador, e que se levan- contro de todos. «Que Ela nos ajude a partilhar os dons recebidos
tem da sua prostração. É a responsabilidade apostólica de todo o com o espírito do diálogo e mútuo acolhimento, a viver como
cristão – inseparável da nossa fé –, que também recordava S. Jo- irmãos e irmãs cada um atento às necessidades dos outros, a sa-
semaria, muitas vezes, ao contemplar a cena de Betesda. Interes- ber dar com coração generoso, a aprender a alegria do serviço
sam-me todas as criaturas, filhas e filhos meus: desejo le- desinteressado» 10. n
vá-las todas para Deus. Doem-me as almas! Às vezes não
compreendo como me aguentam o coração e a cabeça. É
este o nosso espírito: sentir o lamento de tantos corações
áridos, que parecem dizer-nos hominem non habeo (Jo 5,
7), não tenho quem me dê uma mão e me aproxime da luz
e do calor de Cristo 8.
O lamento do paralítico será sempre um acicate, uma chama-
da urgente para sair sempre um pouco mais da indiferença e ocu-
par-se dos outros.
Comporta-te como se de ti, exclusivamente de ti, de-
pendesse o ambiente do lugar onde trabalhas: ambiente de

7. Francisco, Homilia, Jubileu dos adolescentes, 24-IV-2016.


8. S. Josemaria, Carta 6-V-1945, n. 40, em Peter Berglar, Opus Dei. Vida y obra del 9. S. Josemaria, Sulco, n. 954.
Fundador Josemaría Escrivá de Balaguer, 2.ª ed., Madrid, Rialp, 1987, p. 202. 10. Francisco, Mensagem para o XXVII Dia Mundial do Doente, 2019.
160 Pegadas
DA NOSSA fé 13 161

A basílica ficou concluída em 1924.

Monte
A sua arquitetura inspira-se nas
igrejas da Alta Síria, tanto na
fachada como no interior.

Tabor
Basílica da Transfiguração

D esde os tempos mais remotos, caminhos e pistas de cara-


vanas sulcaram a planície fértil de Esdrelon, na Galileia.
Os viajantes que desciam desde a Mesopotâmia e a Síria,
após contornar o Mar da Galileia, atravessavam-na até ao oeste,
para chegar ao Mediterrâneo e continuar até ao Egito. Os que par-
tiam do sul, desde Hebron, seguindo a via que passa por Belém,
Jerusalém e Samaria, cruzavam-na em direção ao norte perto de
Nazaré. Testemunha das suas caminhadas, solitário no meio da
planície, erguia-se o Monte Tabor.
Se formasse parte de uma cordilheira, com os seus 558 metros
acima do nível do mar, mal chamaria a atenção. Mas devido ao seu
isolamento e forma cónica – que faz lembrar a de um vulcão, embora
seja de origem calcária –, e por se elevar mais de 300 metros acima
do terreno circundante, parece ter uma altura imponente. Destaca-se
DEREK WINTERBURN / FLICKR

a notável vegetação das suas encostas, sempre cobertas de azinheiras,


lentiscos e outras plantas da montanha, e na primavera, de lírios e
açucenas. Do seu cume, uma ampla meseta onde também abundam
os ciprestes, avista-se um belo panorama. Estas características con-
Tiro
162
Pegadas da nossa fé Cesareia A caminho
de Filipe de Damasco
0 km 30

verteram o Tabor em local de culto dos povos cananeus, que ado- 0 mi 20

ravam os ídolos nos lugares altos, e também em fortificação mili-


tar, como atalaia sobre a região: para ambas coisas serviu esse lugar, Ptolemaida
(Acre) Cafarnaum
onde as pegadas da presença humana remontam a setenta mil anos. Tabgha
Genesaré Mar da
Segundo os relatos do Antigo Testamento, foi nas imediações Séforis Caná
Galileia
Tiberíades
do Tabor que Débora reuniu secretamente dez mil israelitas, sob o Monte
Carmelo Nazaré Monte
comando de Barac, que puseram em fuga o exército de Sísera 1; ali E S
D R E L O N Tabor
os madianitas e amalecitas mataram os irmãos de Gedeão 2; e, uma Naim
vez conquistada a terra prometida, o monte delimitou as fronteiras Mar Cesareia
Mediterrâneo Marítima
entre as tribos de Zabulão, Issacar e Neftali 3, que o consideravam
sagrado e ofereciam sacrifícios no seu cume 4. O profeta Oseias
combateu esse culto porque, no seu tempo, sem dúvida que não só

Jordão
Sebaste Monte
era cismático, mas também idolátrico 5. Finalmente, encontramos Ebal
uma prova da fama do Tabor no seu uso como imagem literária: Siquém
Sicar
Monte
o salmista junta-o ao Hermon para simbolizar nos dois, todos os Antipatris Gerizim
montes da terra 6; e Jeremias compara-o com a supremacia de Na- Jope
bucodonosor sobre os seus inimigos 7. (Tel Aviv)
Lida
Embora no Novo Testamento não apareça citado pelo seu
nome, a tradição rapidamente identificou o Tabor como o lugar Emaús
Jericó

da transfiguração do Senhor: Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e Jâmnia Jerusalém


João e subiu só com eles para um lugar retirado num alto monte e Ain Karim
Betânia

transfigurou-Se diante deles. As suas vestes tornaram-se resplan- Belém


Ascalão
decentes, de tal brancura que nenhum lavandeiro sobre a terra as
poderia assim branquear. Apareceram-lhes Moisés e Elias, con-
versando com Jesus. Pedro tomou a palavra e disse a Jesus: Gaza Hebron Ma
Mar
Morr o
Mort

— Mestre, como é bom estarmos aqui! Façamos três tendas:


A caminho
uma para Ti, outra para Moisés, outra para Elias. do Egito

Não sabia o que dizia, pois estavam atemorizados 8.

1. Cf. Jz 4, 4-24.
2. Cf. Jz 8, 18-19.
3. Cf. Jos 19, 10-34.
4. Cf. Dt 33, 19.
5. Cf. Os 5, 1.
ILUSTRAÇÃO: J. GIL

6. Cf. Sl 89, 13.


7. Cf. Jr 46, 18.
8. Lc 9, 28-33. Cf. Mt 17, 1-4; Mc 9, 2-5.
164
Pegadas da nossa fé Monte Tabor Basílica da Transfiguração 165

BERTHOLD WERNER / WIKIMEDIA COMMONS

O Tabor eleva-se cerca de 300


metros acima da planície de
Esdrelon. Do cimo, a vista
perde-se no horizonte dos
campos cultivados.

A exploração arqueológica no Tabor revelou a existência de um


santuário no século IV ou V – que alguns testemunhos antigos atri-
buem a Santa Helena –, construído sobre os vestígios de um lugar
de culto cananeu. Mais tarde, as narrativas de alguns peregrinos dos
séculos VI e VII referem três basílicas, em memória das três tendas
mencionadas por S. Pedro, e a presença de um grande número de
monges. De facto, encontrou-se um pavimento em mosaico dessa
época, e consta que o Concílio V de Constantinopla, em 553, erigiu
um episcopado no Tabor. Durante a dominação muçulmana, aquela
vida eremítica foi decaindo, e no ano 808, dezoito religiosos, com o
Bispo Teófanes, encarregavam-se das igrejas.
A partir do ano 1101, e enquanto durou o reino latino de Jeru-
salém, estabeleceu-se uma comunidade de beneditinos no Tabor.
Restauraram o santuário e ergueram um grande mosteiro, prote-
gido por uma muralha fortificada. Esta não foi suficiente para re-
sistir aos ataques sarracenos, que conquistaram a abadia e, entre

BENJAMIN E. WOOD / FLICKR


1211 e 1212, a converteram num bastião de defesa. Embora se tives-
se permitido aos cristãos voltar a tomar posse do lugar algum tem-
po depois, a basílica foi novamente destruída em 1263 pelas tropas
do sultão Bibars.
166
Pegadas da nossa fé Monte Tabor Basílica da Transfiguração 167

O monte ficou abandonado até à chegada dos franciscanos, em Cruzados primitiva fosse coberta por um mosaico, o altar é o mes-
1631. Desde então, conseguiram manter a propriedade, não sem di- mo e também estão à vista restos alvenaria de pedra nas paredes.
ficuldades; estudaram e consolidaram as ruínas existentes, mas ti- Além disso, recentemente foi escavada uma pequena gruta ao nor-
veram de passar três séculos até ser construída uma nova basílica: te do santuário, debaixo do lugar identificado como refeitório do
a atual, terminada em 1924. mosteiro medieval: as paredes continham inscrições em grego e
alguns monogramas com cruzes, talvez vestígios do cemitério dos
monges bizantinos que habitaram na montanha.
A basílica atual Atualmente, os peregrinos sobem
o Tabor por uma estrada sinuosa, traçada no princípio do século
XX para facilitar o fornecimento de materiais durante a construção
Jesus mostra a sua glória Na Transfiguração, Jesus
do santuário. A chegada ao cimo está marcada pela Porta do Ven- mostra a sua glória divina, confirmando assim a recente confissão
to – em árabe, Bab el-Hawa –, resto da fortaleza muçulmana do de Pedro – tu és Cristo, o Filho de Deus vivo 9–, e, deste modo, for-
século XIII, cujos muros rodeavam toda a meseta do cume. No lado talecendo também a fé dos Apóstolos perante a proximidade da
norte, encontra-se a zona greco-ortodoxa; e no lado sul, a católica, Paixão 10, que já lhes tinha começado a anunciar 11. A presença de
a cargo da Custódia da Terra Santa. Moisés e Elias é bastante eloquente: eles «tinham visto a glória de
Partindo da Porta do Vento, uma larga avenida flanqueada de Deus sobre a montanha; a Lei e os Profetas tinham anunciado os
ciprestes conduz até à Basílica da Transfiguração e ao convento sofrimentos do Messias» 12. Os Evangelistas narram também que,
franciscano. Diante da igreja, podem ver-se as ruínas do mosteiro quando Pedro ainda estava a propor que se fizessem três tendas,
beneditino do século XII, embora também haja vestígios da forta- veio então uma nuvem que os cobriu com a sua sombra e da nu-
leza sarracena. Na verdade, esta foi edificada aproveitando as fun- vem fez-se ouvir uma voz:
dações da basílica dos Cruzados, os mesmos sobre os quais se apoia — Este é o meu Filho muito amado: escutai-O 13.
o atual santuário, de três naves, que ocupa o plano do precedente. Glosando esta passagem, alguns Padres da Igreja sublinham a
A fachada, com o grande arco entre as duas torres e os frontões diferença entre os representantes do Antigo Testamento, Moisés
triangulares das coberturas, transmite ao mesmo tempo as boas- e Elias, e Cristo: «eles são servos, Este é o meu Filho (...). A eles
-vindas e um convite para elevar a alma. Ao atravessar as portas de quero-lhes bem, mas Este é o meu Amado: portanto, ouvi-O (...).
bronze, esta sensação aumenta: a nave central, separada das laterais Moisés e Elias falam de Cristo, mas são servos como vós: Este é o
por grandes arcos de meio ponto, converte-se numa escada talhada Senhor, ouvi-O» 14.
na rocha que desce até à cripta; e em cima, destaca-se o presbitério, Para Bento XVI, o sentido mais profundo da Transfiguração
muito elevado, que tem por trás uma abside em que está represen- «está resumido nesta última palavra. Os discípulos devem voltar a
tada a cena da Transfiguração sobre um fundo totalmente dourado. descer com Jesus e aprender sempre de novo: “Ouvi-O”» 15.
A evocação do mistério é destacada por uma luminosidade especial,
conseguida graças às grandes janelas abertas na fachada, às pare- 9. Mt 16, 16. Cf. Mc 8, 29; e Lc 9, 20.
des da nave central e à abside da cripta. 10. Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 555 y 568.
11. Cf. Mt 16, 21; Mc 8, 31; e Lc 9, 22.
O projeto da basílica respeitou, incluindo-os, alguns vestígios
12. Catecismo da Igreja Católica, n. 555.
das igrejas anteriores: junto à porta, as duas torres foram construí- 13. Mt 17, 5. Cf. Mc 9, 7; e Lc 9, 34-35.
das em cima de capelas com absides medievais, hoje dedicadas à 14. S. Jerónimo, Comentário ao Evangelho de S. Marcos, 6.
memória de Moisés e de Elias; e na cripta, embora a abóbada dos 15. Joseph Ratzinger/Bento XVI, Jesus de Nazaré, p. 392.
168
Pegadas da nossa fé Monte Tabor Basílica da Transfiguração 169

ISRAELI MINISTRY OF TOURISM J. GIL


Vista panorâmica
sobre o vale de
Esdrelon e, ao fundo, a
depressão do rio
Jordão. O conjunto da
esquerda engloba o
mosteiro e a igreja
greco-ortodoxa: foi
construído no século
XIX sobre ruínas da
época dos Cruzados.
Na parte mais alta do
monte, destacam-se a
Basílica da
Transfiguração
– orientada para
leste – e o convento
franciscano. A Porta
do Vento fica fora
desta perspetiva. À
direita, a nave central
da igreja, que desce
para a cripta. Na
parte de cima está o
presbitério. Na abside
do presbitério está
representada a cena da
Transfiguração do
Senhor.

Pela mão de S. Josemaria, podemos comprovar que esta exor- ensinamentos, o que disse e o que fez, contamos com os Evange-
tação destinada aos discípulos se aplica a cada fiel cristão: Meditai lhos 17. Ao transmitir a pregação dos Apóstolos depois da Ascen-
um a um, os episódios da vida do Senhor, os Seus ensina- são, comunicam-nos a verdade acerca de Jesus e tornam-no presen-
mentos. Considerai especialmente os conselhos e as adver- te: – Queres aprender com Cristo e seguir o exemplo da sua
tências com que preparava aquele punhado de homens que vida? Abre o Santo Evangelho e escuta o diálogo de Deus
haviam de ser os Seus apóstolos, os Seus mensageiros até com os homens..., contigo 18.
aos confins da Terra 16. Para escutar Cristo, para conhecer os seus
17. Cf. Conc. Vaticano II, Const. dogm. Dei Verbum, n. 18-19.
16. S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 172. 18. S. Josemaria, Forja, n. 322.
170
Pegadas da nossa fé Monte Tabor Basílica da Transfiguração 171

Este diálogo implica em primeiro lugar uma escuta atenta, me-


ditada: Não basta ter uma ideia geral do espírito que Je- O Beato Álvaro
sus viveu; é preciso aprender com Ele pormenores e atitu- no Monte Tabor No dia 17 de Março de 1994, durante
des (...). Quando amamos alguém, desejamos conhecer os
mais pequenos pormenores da sua vida e do seu carácter, a sua peregrinação à Terra Santa, o Beato Álvaro esteve na Basíli-
para nos identificarmos com essa pessoa. Por isso, temos ca da Transfiguração e celebrou a Santa Missa na capela dedicada
de meditar na vida de Jesus, desde o seu nascimento num a Moisés. Pouco depois, D. Javier Echevarría contou que, ao con-
presépio até à sua morte e à sua ressurreição. Nos primei- siderar a altura do Monte Tabor, o Beato Álvaro fez a si mesmo
ros anos do meu trabalho sacerdotal, costumava oferecer esta pergunta:
exemplares do Evangelho ou Vidas de Jesus, porque é ne- — «Que razão terá levado o Senhor, nos seus desígnios, a transfi-
cessário que a conheçamos bem, que a tenhamos inteira na gurar-Se num lugar afastado donde vivia, tendo em conta que para
mente e no coração, de modo que, em qualquer momento, aí chegar tinha de realizar o esforço físico de uma longa caminha-
sem necessidade de recorrer a nenhum livro, fechando os da? Observou que, provavelmente, era para que nos entrasse bem
olhos, possamos contemplá-la como um filme; de forma que, pelos olhos dentro que, para chegar a Deus, é preciso também es-
nas mais diversas situações da nossa vida, acorram à nos- forçar-se humanamente, o esforço dos sentidos e das potências» 22.
sa memória as palavras e os atos do Senhor 19. Ao ler o Evangelho, ao meditá-lo na oração, ser-nos-á provei-
Mas o diálogo, depois da escuta, exige uma resposta, por- toso pedir luzes ao Espírito Santo, para que venha em auxílio dos
que não se trata apenas de pensar em Jesus e de imaginar nossos anseios, e poderemos repetir, com palavras de S. Josema-
aqueles episódios; temos de meter-nos em cheio neles, como ria: Senhor nosso, aqui nos tens, dispostos a escutar tudo
atores. Temos de seguir a Cristo tão de perto como Santa o que nos quiseres dizer. Fala-nos; estamos atentos à Tua
Maria, sua Mãe; como os primeiros doze; como as santas voz. Que as Tuas palavras, caindo na nossa alma, infla-
mulheres; como aquelas multidões que se apertavam ao seu mem a nossa vontade, para que se lance fervorosamente a
redor. Se fizermos assim, se não criarmos obstáculos, as pa- obedecer-Te! 23. n
lavras de Cristo penetrarão até ao fundo da nossa alma e
transformar-nos-ão 20.
E com o seguimento de Cristo e a identificação com Ele, sentire-
mos a necessidade de unir a nossa vontade ao seu desejo de salvar
todas as almas, e inflamar-se-á o nosso afã apostólico: Esses mi-
nutos diários de leitura do Novo Testamento que te aconse-
lhei (metendo-te e participando no conteúdo de cada cena,
como um protagonista mais) são para que encarnes, para
que “cumpras” o Evangelho na tua vida... e para “fazê-lo
cumprir” 21.

22. Javier Echevarría, Palavras recolhidas em Crónica, 1994, p. 117 e 120


19. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 107. (AGP, biblioteca, P01).
20. Ibid. 23. S. Josemaria, Apontamentos da pregação oral, 25-VII-1937, em Santo Rosário,
21. S. Josemaria, Sulco, n. 672. IV mistério luminoso.
172 Pegadas
DA NOSSA fé 14 173

Jerusalém Terceira
muralha
em 70 d. C. (70 d. C.)
Porta de Área povoada Segunda Fortaleza
Damasco Muralha muralha Antónia
da cidade

Va
Getsémani

le
Calvário
Porta 0m 500

do
Templo

Ti r o
de Jafa Santo Sepulcro 0 ft 1000

dron
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Muralha
Via Dolorosa atual da
Cidade


Velha Monte das
Basílica da

o
Oliveiras
Igreja de

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Dormição Cidadela Santa Ana Cenáculo

Va l
Ge
a

en
(V Primeira
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d e Hi nom) muralha
Al-Aqsa Cúpula da Rocha
Cenáculo Porta
de Sião
PERSPETIVA: © THE NATIONAL LIBRARY OF ISRAEL, JERUSALÉM. ILUSTRAÇÃO: J. GIL.

Túmulo de Santa Maria


Getsémani
S. Pedro in
Gallicantu Basílica
Hinom da Agonia
ou Geena
Siloé
Cédron

Caminho aproximado do Lugar da


Cenáculo a Getsémani Dominus Ascensão
Flevit

Caminho aproximado
da entrada messiânica Pater Noster
de Jesus Cristo A caminho
de Betânia
Monte das Oliveiras

Jerusalém N
o Evangelho, revivemos o episódio em que Jesus
se retira para fazer oração, estando os discípulos
por perto, provavelmente a contemplá-Lo. Quan-
do terminou, um decidiu-se a pedir-Lhe: Senhor, ensina-nos
A gruta do Pai-Nosso a orar, como João também ensinou os seus discípulos. E Je-
sus respondeu-lhes: quando orardes, dizei: Pai, santificado
seja o Teu nome (Lc 11, 1-2) 1.

1. S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 145.


174 175
Pegadas da nossa fé
NICOLA E PINA / PANORAMIO

MATTES / WIKIMEDIA COMMONS


NICOLA E PINA / PANORAMIO
No local em que se
encontravam as naves da
basílica bizantina, agora
existe um jardim. À
esquerda, o presbitério da
igreja, que começou a
construir-se sobre a gruta
do Pai-Nosso. As paredes
ao redor do recinto estão
cobertas de painéis com o
Pai-Nosso escrito em mais
de setenta línguas.

Contempla devagar esta realidade: os discípulos têm ração pelos cristãos da Terra Santa. Assim acontece com o ensina-
intimidade com Jesus e, nessas conversas, Nosso Senhor mento do Pai-Nosso, que S. Mateus inclui no Sermão da Montanha,
ensina-lhes – também com as obras – como hão de rezar, enquanto é apresentado por S. Lucas em certo lugar 3, na subida
e o grande portento da misericórdia divina: que somos fi- do Senhor para Jerusalém.
lhos de Deus e que podemos dirigir-nos a Ele, como um fi- De facto, desde muito cedo se venerava uma gruta junto ao ca-
lho fala com o Pai 2. minho que vai de Betânia e Betfagé à Cidade Santa, no cume do
Durante os três anos da sua vida pública, Jesus andou pela Pa- Monte das Oliveiras, muito perto do local onde se venerava a As-
lestina e pelas regiões vizinhas anunciando o Reino de Deus. Os censão. Para aquela gruta se teria retirado Jesus muitas vezes com
Evangelistas localizam detalhadamente alguns cenários daquela os Apóstolos, aí os teria instruído sobre muitos mistérios – entre
pregação itinerante, como as sinagogas de Nazaré e de Cafarnaum, outros, as antevisões sobre o fim do mundo e a destruição de Jeru-
o poço de Sicar, os pórticos do Templo ou a casa de Marta, Maria salém –, e lhes teria transmitido a oração do Pai-Nosso. A recor-
e Lázaro, em Betânia. No entanto, de outros lugares só recebemos dação devia ser tão forte que S. Helena aí mandou construir uma
notícias através das tradições locais, difundidas de geração em ge- basílica no ano 326. Chamava-se Eleona – como o local onde se

2. S. Josemaria, Forja, n. 71. 3. Lc 11, 1.


176
Pegadas da nossa fé Jerusalém A gruta do Pai-Nosso 177

Uma escada dá
MATTES / WIKIMEDIA COMMONS

acesso à gruta
do Pai-Nosso,
onde há dois
ambientes: um
restaurado e
outro em
ruínas.

erguia –, tinha três naves e estava precedida por um grande átrio


com quatro pórticos. A cripta sob o presbitério era a gruta original.
Algumas décadas mais tarde, a poucos metros foi edificado o san-
tuário conhecido como Imbomon, que guardava a rocha de onde o
Senhor se teria elevado ao céu.
A peregrina Egéria, que descreve várias cerimónias que ali se

FOTOS: ALFONSO PUERTAS


celebravam no final do século IV, testemunha: na terça-feira da Se-
mana Santa, «todos vão à igreja que está no Monte Eleona. Quando
se chega à igreja, o bispo entra na gruta onde o Senhor costumava
ensinar os discípulos, recebe o livro dos Evangelhos e, mantendo-
178
Pegadas da nossa fé Jerusalém A gruta do Pai-Nosso 179

-se de pé, ele próprio lê as palavras do Senhor escritas no Evange- tem ofendido; e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos
lho de S. Mateus, onde diz: “Tomai cuidado para que ninguém vos do mal 5.
desencaminhe” [Mt, 24, 4]; e o bispo lê todo o discurso até ao fim» 4.
A tradição do local do Pai-Nosso, confirmada por outras tes-
temunhas posteriores, manteve-se constante: o local não mudou,
A principal oração do cristão O Pai-Nosso é a prin-
embora dos edifícios antigos e das restaurações medievais só res- cipal oração do cristão. O Catecismo da Igreja Católica – citando
tem ruínas. Durante o período otomano, em 1872, estabeleceu-se Tertuliano, S. Agostinho e S. Tomás de Aquino – dá-lhe o título de
nesse local uma comunidade de carmelitas de fundação francesa, o resumo de todo o Evangelho, o compendio das nossas petições
que construíram a igreja atual e um convento anexo. Depois da I e a mais perfeita das orações 6. Além disso, a expressão tradicional
Guerra Mundial, em 1920, começaram as obras para construir uma Oração dominical significa que é do Senhor: Jesus, como Mestre, dá-
nova basílica, dedicada ao Sagrado Coração, sobre a gruta; contu- -nos as palavras que o Pai Lhe deu; e ao mesmo tempo, como nosso
do, os trabalhos, quando já tinham eliminado uma ala do claustro Modelo, revela-nos a forma de rogar pelas nossas necessidades 7.
e afetado a cripta primitiva, tiveram de ser interrompidos e não Este carácter fundamental do Pai-Nosso foi vivido desde o iní-
voltaram a ser retomados. cio da Igreja: rapidamente substituiu outras fórmulas da piedade
Entra-se no Santuário de Eleona pela estrada de Betfagé. À di- judaica, incorporou-se na liturgia e converteu-se em parte integran-
reita, onde cresce um exuberante jardim, encontrava-se o pórtico te da catequese para receber os sacramentos. Ao longo dos sécu-
da basílica bizantina; à esquerda, descendo umas escadas, chega-se los, os grandes mestres de vida espiritual comentaram esta oração,
ao convento das Carmelitas Descalças, com a igreja precedida pelo extraindo dela as riquezas teológicas que contém. «Em tão poucas
claustro; e no centro, sob o presbitério da construção abandonada, palavras, está encerrada toda a contemplação e perfeição – escreveu
está a gruta do Pai-Nosso. Trata-se de um pequeno espaço, com S. Teresa de Jesus –, que parece não termos necessidade de outro
uma entrada dupla que lembra a Basílica da Natividade e remonta livro, senão de estudar neste, porque até aqui nos tem ensinado o
à época dos Cruzados. Há dois ambientes: um restaurado e outro, Senhor todo o modo de oração e de alta contemplação, desde os
ao fundo, reduzido a ruínas; foram aí encontradas sepulturas que principiantes na oração mental, até à de quietude e união; que a
poderiam datar-se dos primeiros séculos da nossa era. ser eu pessoa para o saber dizer, poderia escrever um grande livro
As paredes em volta do recinto estão cobertas de painéis de ce- de oração sobre tão verdadeiro fundamento» 8.
râmica com o Pai-Nosso escrito em mais de setenta línguas. Como Para rezar com proveito o Pai-Nosso, recordemos que «Jesus
sabemos, a formulação tradicional inspira-se nos ensinamentos do não nos deixa uma fórmula a ser repetida maquinalmente. Tal com
Senhor que S. Mateus recolheu: Quando orardes, não digais mui- em toda oração vocal, é pela Palavra de Deus que o Espírito Santo
tas palavras, como os pagãos, porque pensam que serão atendi- ensina aos filhos de Deus a orar ao seu Pai. Jesus dá-nos não só as
dos por falarem muito. Não sejais como eles, porque o vosso Pai palavras de nossa oração filial, mas também, ao mesmo tempo, o
bem sabe do que precisais, antes de vós Lho pedirdes. Orai assim: Espírito pelo qual elas se tornam em nós “espírito e vida” (Jo 6, 63).
Pai nosso, que estais nos Céus, santificado seja o vosso nome; Mais ainda: a prova e a possibilidade de nossa oração filial é que o
venha a nós o vosso reino; seja feita a vossa vontade assim na ter-
ra como no Céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje; perdoai-
5. Mt 6, 7-13.
-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos 6. Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 2761-2763.
7. Cf. Ibid., n. 2765.
4. Itinerarium Egeriæ, XXXIII, 1-2 (CCL 175, 78). 8. S. Teresa de Jesus, Caminho de Perfeição (códice de Valladolid), 37, 1.
180
Pegadas da nossa fé Jerusalém A gruta do Pai-Nosso 181

Pai “enviou aos nossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: um de nós renasceu em Cristo para ser uma nova criatura,
‘Abbá! Pai!’ ” (Gal 4, 6)» 9. um filho de Deus; todos somos irmãos, e temos de conviver
Um modo de crescer na consciência da nossa filiação divina é fraternalmente! 12.
converter o conteúdo do Pai-Nosso em matéria do nosso diálogo Que estais no Céu... E imediatamente lembramos que ele tam-
com Deus. Assim fez S. Josemaria nalgumas épocas. Num escrito bém está no Sacrário, e na nossa alma em graça... Senhor, que nos
em que se refere a factos da sua vida espiritual que ocorreram por fazes participar do milagre da Eucaristia: pedimos-te que
volta de 1930, relata: não te escondas, que vivas connosco, que te vejamos, que
Quando era jovem, não poucas vezes tinha por costume te toquemos, que te sintamos, que queiramos estar sempre
não utilizar nenhum livro para a meditação. Recitava, de- junto de Ti, que sejas o Rei das nossas vidas e dos nossos
gustando-as uma a uma, as palavras do Pater Noster, e de- trabalhos 13. n
tinha-me – saboreando – na consideração de que Deus era
Pater, meu Pai, que me devia sentir irmão de Jesus Cristo
e irmão de todos os homens.
Não saía do meu assombro, pensando que era filho de
Deus! Depois de cada reflexão sentia-me mais firme na fé,
mais seguro na esperança, mais abrasado no amor. E nas-
cia na minha alma uma necessidade, ao ser filho de Deus,
de ser um filho pequeno, um filho necessitado. Daí nas-
ceu na minha vida interior viver enquanto pude – enquan-
to posso – a vida de infância, que sempre recomendei aos
meus, deixando-os em liberdade 10.
Não é difícil pôr em prática este conselho do Fundador do Opus
Dei, e mais se começarmos por pedir ajuda ao Senhor, para que Ele
nos encha de luzes.
Começamos: Pai. E paramos para considerar especialmente a
filiação divina. Deus é um Pai – o teu Pai! – cheio de ternu-
ra, de infinito amor. Chama-lhe Pai muitas vezes e diz-lhe,
a sós, que o amas, que o amas muito, muito, que sentes o
orgulho e a força de ser seu filho 11.
Pai-Nosso – continuamos –, e percebemos que é nosso, de to-
dos, e por isso somos irmãos: Para o Senhor não existem di-
ferenças de nação, de raça, de classe, de estado... Cada

9. Catecismo da Igreja Católica, n. 2766.


10. S. Josemaria, Carta 8-XII-1949, n. 41, citada em Santo Rosário, edição
histórico-crítica, p. XVI-XVII. 12. S. Josemaria, Sulco, n. 317.
11. S. Josemaria, Forja, n. 331. 13. S. Josemaria, Forja, n. 542.
182 Pegadas
DA NOSSA fé 15 183

Santuário da Ressurreição de
Lázaro, construído em 1954,
tem forma de mausoléu.

Betânia
Santuário da
Ressurreição
de Lázaro

N
arram os Evangelhos que Jesus não tinha onde re-
clinar a cabeça, mas contam-nos também que ti-
nha amigos queridos e de confiança, ansiosos por
recebê-Lo em sua casa 1. Entre esses amigos, destacam-se Mar-
ta, Maria e Lázaro, os três irmãos que viviam em Betânia. Embo-
ra desconheçamos a origem do seu relacionamento com o Senhor,
sabemos que se tratavam com grande carinho e proximidade, ma-
nifestados em muitos pormenores encantadores. Como não recor-
dar com simpatia o diálogo de Marta com Jesus, quando ela recla-
ma da sua irmã?:
Jesus entrou em certa povoação, e uma mulher chamada Marta
recebeu-O em sua casa. Ela tinha uma irmã chamada Maria, que,
MARIE-ARMELLE BEAULIEU / CTS

sentada aos pés de Jesus, ouvia a sua palavra. Entretanto, Marta


atarefava-se com muito serviço. Interveio então e disse:

1. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 108.


184
Pegadas da nossa fé Betânia Santuário da Ressurreição de Lázaro 185

Imagem de Betânia do início


do século XX, tomada da zona
Al Qubeibeh norte: à esquerda, veem-se as
ruínas das basílicas cristãs;
no centro, a mesquita
edificada sobre o túmulo de
Abu Gosh
Lázaro, da qual se distingue o
minarete e, à direita, as
A caminho
de Jericó ruínas duma torre da época
das Cruzadas.
Cidade
Velha
ILUSTRAÇÃO: J. GIL.

Betfagé
Betânia
Jerusalém
Ain
Karim

Belém
0 km 5

0 mi 3

Imagem atual de Betânia, a partir do noroeste. Observam-se, em


primeiro lugar, a torre das Cruzadas e a cúpula de uma igreja
— Senhor, não Te importas que minha irmã me deixe sozinha ortodoxa; para leste, a mesquita e o santuário católico.
a servir? Diz-lhe que venha ajudar-me.
O Senhor respondeu-lhe:
— Marta, Marta, andas inquieta e preocupada com muitas coi- minitas, após o retorno da Babilónia 3; o prefixo bet, que significa
sas, quando uma só é necessária. Maria escolheu a melhor parte, casa, teria sido adicionado depois, derivando até à forma Betânia.
que não lhe será tirada 2. Marta, Maria e Lázaro teriam hospedado várias vezes o Senhor
Betânia, na encosta oriental do Monte das Oliveiras, a três qui- em sua casa. Em especial, durante os dias que antecederam a Pai-
lómetros de Jerusalém, era juntamente com a vizinha Betfagé, o úl- xão, do domingo de Ramos até à prisão de Jesus. Nessa semana,
timo ponto de descanso para quem subia à cidade vindo de Jericó. dada a curta distância que separava Betânia de Jerusalém, todos os
Nos tempos antigos, não passava de uma aldeia, embora não fosse dias ia e vinha pelo caminho – atualmente interrompido – que vai
completamente desconhecida: na Sagrada Escritura, é mencionada pelo Monte das Oliveiras. À noite, reporia as forças, rodeado pe-
com o nome de Ananias entre os lugares repovoados pelos benja- los seus amigos e discípulos. Num desses momentos, deu-se o epi-

2. Lc 10, 38-42. 3. Cf. Ne 11, 32.


186
Pegadas da nossa fé Betânia Santuário da Ressurreição de Lázaro 187

Disse isto, não porque se importava com os pobres, mas por-


AZARIA / PANORAMIO

que era ladrão e, tendo a bolsa comum, tirava o que nela se lan-
çava. Jesus respondeu-lhe:
— Deixa-a em paz: ela tinha guardado o perfume para o dia da
minha sepultura. Pobres, sempre os tereis convosco; mas a Mim,
nem sempre Me tereis 5.
A celebridade de Betânia não se deve apenas às diversas esta-
dias do Senhor, mas provém especialmente do impressionante mi-
lagre que ali se realizou: a ressurreição de Lázaro. Desde os primei-
ros tempos do cristianismo, o túmulo deste amigo de Jesus atraiu
a devoção dos fiéis, que, já no século IV, levantaram um santuário
em seu redor. A designação bizantina do lugar – to lazarion – ins-
pirou sem dúvida o nome árabe de Betânia: Al-Azariye. No entan-
to, perdeu-se o rasto da casa.
A investigação arqueológica forneceu alguns elementos para
conhecer a construção bizantina. Inspirando-se no cânone de ou-
tras igrejas da época, como o Santo Sepulcro, era formada por uma
basílica no lado oriental, o monumento que abrigava o local vene-
rado no ocidental e, no meio, servindo de união, um átrio. A basí-
lica, com três naves divididas por colunas com capitéis coríntios e
O santuário tem as fachadas decoradas com mosaicos. pavimentadas com ricos mosaicos, deve ter sido arrasada por um
terramoto. No final do século V ou início do VI, foi construída outra
igreja aproveitando em parte a estrutura da antiga, mas deslocando
sódio, protagonizado por Maria, da qual o Senhor afirmou: Onde a planta ainda mais para leste. Manteve-se até ao tempo dos Cru-
quer que se proclamar o Evangelho, pelo mundo inteiro, dir-se-á zados, em que foi restaurada e embelezada. Também no século XII,
também em sua memória o que ela fez 4. O cenário não é a sua casa, foi erguida uma nova basílica sobre o túmulo de Lázaro; tratando-
mas a de um vizinho, Simão, conhecido pelo apelido “o leproso”: -se de uma câmara escavada na rocha, ficou convertida numa crip-
Ofereceram-Lhe lá um jantar: Marta andava a servir e Lázaro ta. E, além disso, por iniciativa da rainha Melisenda, foi instituída
era um dos que estavam à mesa com Jesus. Então Maria tomou em Betânia uma abadia de freiras beneditinas.
uma libra de perfume de nardo puro, de alto preço, ungiu os pés Este conjunto de edifícios foi alterado entre os séculos XV e XVI,
de Jesus e enxugou-Lhos com os cabelos; e a casa encheu-se com uma vez que na zona do átrio e do túmulo se construiu uma mes-
o perfume do bálsamo. Disse então Judas Iscariotes, um dos dis- quita e se dificultou a entrada dos peregrinos cristãos. Entre 1566 e
cípulos, aquele que havia de entregar Jesus: 1575, os franciscanos da Custódia da Terra Santa conseguiram que
— Porque não se vendeu este perfume por trezentos denários, se lhes permitisse a entrada na gruta de Lázaro, mas tiveram que
para dar aos pobres? abrir um novo acesso, escavando uma passagem escalonada desde

4. Mc 14, 9; cf. Mt 26, 13. 5. Jo 12, 2-8; cf. Mt 26, 6-13 e Mc 14, 3-9.
188
Pegadas da nossa fé Betânia Santuário da Ressurreição de Lázaro 189

LIDIAN STRZEDULA / CTS


O cruzeiro está coberto com uma cúpula, que cria um forte
contraste entre a luz e a penumbra. À esquerda, sobre o
presbitério, um mosaico mostra o encontro de Jesus com
Marta e Maria, antes da ressurreição de Lázaro.

o exterior do recinto. É o túnel que é usado ainda hoje, embora a


propriedade continue a ser muçulmana.
No lado oriental, sobre os restos das basílicas bizantinas, a Cus-
tódia construiu, em 1954, o santuário atual. Tem forma de mauso-
léu, com planta de cruz grega e uma cúpula que surge de um octó-
gono. Cada um dos braços é decorado com uma luneta de mosaico,
onde se representam as cenas evangélicas mais importantes rela-
cionadas com Betânia: o diálogo de Marta e Jesus; a receção das
NICOLA E PINA / PANORAMIO

duas irmãs após a morte de Lázaro; a ressurreição deste; e o jantar


em casa de Simão. O arquiteto conseguiu um sugestivo contraste
entre a penumbra da igreja e a luz que inunda a cúpula, simboli-
zando a morte e a esperança da ressurreição.
190
Pegadas da nossa fé Betânia Santuário da Ressurreição de Lázaro 191

O Beato Álvaro del Portillo esteve em Betânia no domingo, 20 As irmãs mandaram então dizer a Jesus:
de Março de 1994. Fez a oração da manhã no Santuário da ressur- — Senhor, o teu amigo está doente.
reição de Lázaro e também viu o túmulo de fora. Ouvindo isto, Jesus disse:
— Essa doença não é mortal, mas é para a glória de Deus, para
Eu sou a Ressurreição que por ela seja glorificado o Filho do homem.
e a Vida «Jesus é o Filho que, desde toda a eterni-
Jesus era amigo de Marta, de sua irmã e de Lázaro. Entretan-
to, depois de ouvir dizer que ele estava doente, ficou ainda dois
dade, recebe a vida do Pai (cf. Jo 5, 26) e veio estar com os homens, dias no local onde Se encontrava 9.
para os tornar participantes deste dom: “Eu vim para que tenham
O Senhor sabia o que ia acontecer, mas quer provar a fé dessas
vida, e a tenham em abundância” (Jo 10, 10)» 6.
mulheres, mostrar o seu poder sobre a morte e preparar os discípu-
Deus deseja que tenhamos parte na Sua vida bem-aventurada, los para a Sua própria ressurreição com a de Lázaro. Desta forma,
está perto de nós, ajuda-nos a procurá-Lo, a conhecê-Lo e amá-Lo, permite que morra antes de empreender a viagem para sua casa:
mas, ao mesmo tempo, espera uma resposta livre, que acolhamos
Ao chegar, Jesus encontrou o amigo sepultado havia quatro
o Seu chamamento 7. O relato da ressurreição de Lázaro contém
dias. Betânia distava de Jerusalém cerca de três quilómetros. Mui-
muitos elementos que podem avivar a nossa fé e levar-nos a pedir
tos judeus tinham ido visitar Marta e Maria, para lhes apresentar
ao Senhor a coisa mais valiosa que pode conceder-nos: a graça de
condolências pela morte do irmão. Quando ouviu dizer que Je-
uma nova conversão para nós e para os nossos familiares e amigos.
sus estava a chegar, Marta saiu ao seu encontro, enquanto Maria
Reparaste com que afeto, com que confiança se relacio- ficou sentada em casa. Marta disse a Jesus:
navam com Cristo os seus amigos? Com toda a naturalida-
— Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morri-
de as irmãs de Lázaro lançam-lhe em rosto a sua ausência:
do. Mas sei que, mesmo agora, tudo o que pedires a Deus, Deus
– Tínhamos-te avisado! Se Tu tivesses estado aqui!...
To concederá.
Confia-lhe devagar: – Ensina-me a tratar-te com aquele
Disse-lhe Jesus:
amor de amizade de Marta, de Maria e de Lázaro; como te
tratavam também os primeiros Doze, ainda que no princípio — Teu irmão ressuscitará.
te seguissem talvez por motivos não muito sobrenaturais 8. Marta respondeu:
Em Betânia, contemplamos os sentimentos de afeto de Cristo, — Eu sei que há de ressuscitar na ressurreição do último dia.
que revelam o amor infinito do Pai por cada um, e também a fé de Disse-lhe Jesus:
Marta e Maria no seu poder para restaurar a saúde: — Eu sou a ressurreição e a vida. Quem acredita em Mim, ain-
Estava doente certo homem, Lázaro de Betânia, aldeia de Mar- da que tenha morrido, viverá; e todo aquele que vive e acredita
ta e de Maria, sua irmã. Maria era aquela que tinha ungido o Se- em Mim não morrerá para sempre. Acreditas nisto?
nhor com perfume e Lhe tinha enxugado os pés com os cabelos. Disse-Lhe Marta:
Era seu irmão Lázaro, que estava doente.
— Acredito, Senhor, que Tu és o Messias, o Filho de Deus, que
havia de vir ao mundo.
6. S. João Paulo II, Carta enc. Evangelium vitæ, 25-III-1995, n. 29.
7. Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1-3.
8. S. Josemaria, Forja, n. 495. 9. Jo 11, 2-6.
192
Pegadas da nossa fé Betânia Santuário da Ressurreição de Lázaro 193

NICOLA E PINA / PANORAMIO

MARIE-ARMELLE BEAULIEU / CTS


O acesso ao túmulo de Lázaro situa-se na rua escalonada
que, de oeste a leste, passa junto da mesquita e do santuário.
Vinte e quatro degraus conduzem a um vestíbulo, a partir
do qual, através de uma estreita abertura no pavimento,
pode-se descer à câmara mortuária.

Dito isto, retirou-se e foi chamar Maria, a quem disse em


segredo:
— O Mestre está ali e manda-te chamar.
Logo que ouviu isto, Maria levantou-se e foi ter com Jesus. Je-
sus ainda não tinha chegado à aldeia, mas estava no lugar em que
Marta viera ao seu encontro 10.
Com a mesma confiança que Marta usou para censurar o Se-
nhor pela sua ausência, Maria dirige-Lhe uma queixa semelhan-
te, porém expressa a sua fé não com palavras, mas com um gesto
de adoração:
Maria, logo que O viu, caiu-Lhe aos pés e disse-Lhe:
— Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido.

10. Jo 11, 17-30.


194
Pegadas da nossa fé Betânia Santuário da Ressurreição de Lázaro 195

Jesus, ao vê-la chorar, e vendo chorar também os judeus que Quando tiveres caído ou te encontrares angustiado pelo
vinham com ela, comoveu-Se profundamente e perturbou-Se. De- peso das tuas misérias, repete com segura esperança: – Se-
pois perguntou: nhor, olha que estou doente; Senhor, Tu que por meu amor
— Onde o pusestes? morreste na Cruz, vem curar-me.
Responderam-Lhe: Confia, insisto: persevera dirigindo-te ao seu Coração
— Vem ver, Senhor. amantíssimo. Como aos leprosos do Evangelho, dar-te-á
saúde 12.
E Jesus chorou. Diziam então os judeus:
Na batalha diária por sermos fiéis – ensinava S. Josemaria –, as
— Vede como era seu amigo.
derrotas não contam se recorrermos a Jesus. Mas Ele precisa da
Mas alguns deles observaram: nossa cooperação, da nossa vontade de O deixar agir em nós:
— Então Ele, que abriu os olhos ao cego, não podia também Não devem entristecer-nos as quedas, nem sequer as
ter feito que este homem não morresse? quedas graves, se recorremos a Deus no sacramento da
Entretanto, Jesus, intimamente comovido, chegou ao túmu- penitência, com dor e com um propósito de emenda. O cris-
lo. Era uma gruta, com uma pedra posta à entrada. Disse Jesus: tão não é um maníaco colecionador de folhas imaculadas
— Tirai a pedra. de bons serviços. Jesus Cristo Nosso Senhor tanto Se como-
Respondeu Marta, irmã do morto: ve com a inocência e a fidelidade de João como, depois da
— Já cheira mal, Senhor, pois morreu há quatro dias.
queda de Pedro, Se enternece com o seu arrependimento.
Jesus compreende a nossa debilidade e atrai-nos a Si como
Disse Jesus: que em plano inclinado, desejando que saibamos insistir
— Eu não te disse que, se acreditasses, verias a glória de Deus? no esforço de subir cada dia um pouco. Procura-nos como
Tiraram então a pedra. Jesus, levantando os olhos ao Céu, procurou os discípulos de Emaús, fazendo-Se encontrado
disse: por eles; como procurou Tomé e Lhe mostrou e Lhe fez to-
— Pai, dou-Te graças por Me teres ouvido. Eu bem sei que sem- car com os dedos nas chagas abertas nas mãos e no peito.
pre Me ouves, mas falei assim por causa da multidão que nos cer- Jesus Cristo está sempre à espera de que voltemos para Ele,
ca, para acreditarem que Tu Me enviaste. precisamente porque conhece a nossa fraqueza 13. n
Dito isto, bradou com voz forte:
— Lázaro, sai para fora.
O morto saiu, de mãos e pés enfaixados com ligaduras e o ros-
to envolvido num sudário. Disse-lhes Jesus:
— Desligai-o e deixai-o ir 11.
S. Josemaria aproveitava este relato –e os de outras curas que
aparecem nos Evangelhos – para nos fazer considerar que, no nos-
so relacionamento de confiança e amizade com Jesus, teremos de
pedir-Lhe ajuda com perseverança:
12. S. Josemaria, Forja, n. 213.
11. Jo 11, 32-44. 13. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 75.
196 Pegadas
DA NOSSA fé 16 197

ALFONSO PUERTAS
A forma do telhado do Santuário do Dominus Flevit
pretende sugerir uma lágrima. Na abside, uma grande
janela abre-se para a Cidade Velha, onde sobressaem
a Cúpula Dourada da Rocha, as cúpulas da Basílica
do Santo Sepulcro e a torre do convento franciscano de
S. Salvador, sede da Custódia da Terra Santa.

LEOBARD HINFELAAR
Jerusalém A
Paixão de Jesus é manancial inesgotável de vida.
Umas vezes, renovamos o gozoso impulso que levou
o Senhor a Jerusalém. Outras, a dor da agonia que
culminou no Calvário... Ou a glória do Seu triunfo sobre a

Ao ver a cidade, morte e o pecado. Mas, sempre, o amor – gozoso, doloroso,


glorioso – do Coração de Jesus Cristo 1.

chorou sobre ela 1. S. Josemaria, Via Sacra, XIV estação, ponto 3.


198
Pegadas da nossa fé Jerusalém Ao ver a cidade, chorou sobre ela 199

FOTO: LEOBARD HINFELAAR. ILUSTRAÇÃO: J. GIL.


Igreja de
Basílica Via Santa Ana

Oliveiras
do Santo Dolorosa
Sepulcro Getsémani Lugar da
Ascensão

Cédron
Dominus Pater Noster

das
Flevit
Cidadela
Cúpula da

nte
Al-Aqsa Rocha

Mo
Cenáculo
Gee

Basílica Cidade Velha


na

da Dormição
Va Muralha
(

le d
e Hino ) 0m 500
m

0 ft 1000

Jerusalém atualmente

Contemplamos esse amor infinito de Jesus desde os primeiros


passos do mistério pascal, quando se dispõe a cumprir a sua entrada
messiânica na Cidade de David, chegando pelo caminho de Betânia
e Betfagé. Narram os Evangelistas que enviou dois dos seus discí-
pulos a uma aldeia próxima, e ali tomassem um burrinho, sobre o
qual sentaram o Senhor. E, enquanto descia a encosta do Monte
das Oliveiras, entre os louvores que a multidão dirigia a Deus, ao
ver a cidade, chorou sobre ela e disse:
— Se ao menos hoje conhecesses o que te pode dar a paz! Mas
não. Está escondido a teus olhos. Dias virão para ti, em que os
teus inimigos te rodearão de trincheiras e te apertarão de todos
os lados. Esmagar-te-ão a ti e aos teus filhos e não deixarão em
ti pedra sobre pedra, por não teres reconhecido o tempo em que
foste visitada 2.
Aquele pranto de Cristo é recordado no Santuário do Dominus
Flevit, situado na encosta ocidental do Monte das Oliveiras. Trata-
-se de uma pequena capela construída pela Custódia da Terra Santa
em 1955, num terreno que pertencia às religiosas beneditinas que
têm o seu mosteiro no cume. Se bem que não exista localização
tradicionalmente exata relacionada com o facto evangélico – pois
foi mudando com as épocas –, o lugar atual conserva vestígios da Na zona onde se construiu o Santuário do
Dominus Flevit encontraram-se vestígios da
presença cristã desde os primeiros séculos.
2. Lc 19, 41-44.
200
Pegadas da nossa fé Jerusalém Ao ver a cidade, chorou sobre ela 201

LEOBARD HINFELAAR ALFONSO PUERTAS WHISINGBONE / FLICKR ALFONSO PUERTAS

Nas antigas necrópoles foram encontrados


vários túmulos dos séculos I e II com ossários Ao redor da cúpula,
que apresentam inscrições cristãs. quatro relevos
mostram cenas
relacionadas com a
presença cristã desde os primeiros séculos: as escavações arqueoló- entrada de Jesus em
Jerusalém. No frontal
gicas realizadas entre 1953 e 1955 descobriram uma necrópole com
do altar, aparece a
cem túmulos – que vão da idade do bronze aos períodos romano, imagem da galinha
herodiano e bizantino – e os restos de uma capela e um mosteiro com os pintainhos
que, por alguns pavimentos de mosaico, poderiam ser datados por debaixo do seu corpo.
volta do século VII.
Chega-se a Dominus Flevit por um caminho bastante íngreme
que liga Getsémani e o cume do Monte das Oliveiras. A maior par-
te dessa encosta – que corresponderia ao vale de Josafat bíblico 3–
está ocupada por cemitérios judeus. Ao entrar na propriedade dos — Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas
franciscanos, um caminho ladeado de ciprestes, oliveiras e palmei- aqueles que te são enviados, quantas vezes Eu quis reunir os teus
ras conduz até à igreja. À volta, podem apreciar-se os diversos acha- filhos, como a galinha recolhe os pintainhos debaixo das suas
dos arqueológicos. O edifício, em forma de cruz grega e com uma asas! Mas vós não quisestes. Pois bem. A vossa casa vai ficar aban-
cúpula de arcos apontados, está orientado para oeste e apresenta donada. E Eu vos digo: Não voltareis a ver-Me, até chegar o dia
uma grande janela na abside, aberta sobre a Cidade Santa: mostra em que direis: «Bendito o que vem em nome do Senhor!» 4.
ao peregrino a mesma panorâmica que teria visto Jesus quando A vista do extremo do recinto para a cidade antiga é magnífica,
desceu de Betfagé. Nas paredes, quatro relevos representam ce- especialmente de manhã, quando os raios do sol iluminam a pedra
nas relacionadas com a entrada messiânica de Cristo; e no frontal dos edifícios: aos pés, o Cédron, que separa Jerusalém do Monte
do altar, um mosaico faz referência a outra lamentação do Senhor: das Oliveiras; na vertente oriental da torrente, os cemitérios ju-

3. Cf. Joel 4, 2.12. 4. Lc 13, 34-35; cf. Mt 23, 37-39.


202
Pegadas da nossa fé Jerusalém Ao ver a cidade, chorou sobre ela 203

LEOBARD HINFELAAR

deus, e na ocidental, junto à muralha, os muçulmanos; em frente, nhã do dia 18 de Março, depois de ter celebrado a Santa Missa na
a esplanada do antigo Templo, hoje das mesquitas, com a Cúpu- Basílica do Santo Sepulcro.
la da Rocha no centro e a de Al-Aqsa à esquerda; atrás, as cúpulas
da Basílica do Santo Sepulcro e, um pouco mais longe, à direita,
a torre espigada do convento franciscano de S. Salvador, sede da A entrada messiânica do Senhor «A entrada de Je-
Custódia da Terra Santa; ao sul da muralha, as escavações arqueo- sus em Jerusalém manifesta a vinda do Reino que o Rei-Messias,
lógicas na colina do Ofel e a antiga Cidade de David; mais além, acolhido na sua cidade pelas crianças e pelos humildes de coração,
por entre algumas árvores, a Igreja de S. Pedro in Gallicantu; e ao vai realizar por meio da Páscoa da sua Morte e Ressurreição”» 5.
fundo, na linha do horizonte, a Basílica e a Abadia beneditina da A multidão dos discípulos, ao verificar o cumprimento dos orá-
Dormição, no Monte Sião. culos proféticos e sentir próxima a manifestação do Reino, acom-
Durante a sua peregrinação à Terra Santa, em 1994, o Beato
Álvaro del Portillo rezou no Santuário do Dominus Flevit na ma- 5. Catecismo da Igreja Católica, n. 570.
204
Pegadas da nossa fé Jerusalém Ao ver a cidade, chorou sobre ela 205

panha Cristo gozosamente: «Multidão, festa, louvor, bênção, paz: Encarnou para nos dar a Vida, e nós recompensamo-lo
respira-se um clima de alegria. Jesus despertou tantas esperanças com a morte 8.
no coração, especialmente das pessoas humildes, simples, pobres, Ao considerar que Jesus continua hoje visitando o seu povo,
abandonadas, pessoas que não contam aos olhos do mundo. Sou- cada um de nós – porque é nosso Salvador, porque nos ensina por
be compreender as misérias humanas, mostrou o rosto misericor- meio da pregação da Igreja, porque nos dá o seu perdão e a sua
dioso de Deus e inclinou-Se para curar o corpo e a alma. Assim é graça nos sacramentos – temos que examinar a qualidade da nos-
Jesus. Assim é o seu coração, que nos vê a todos, que vê as nossas sa resposta:
enfermidades, os nossos pecados. Grande é o amor de Jesus! E en-
Queres saber como agradecer ao Senhor o que fez por
tra em Jerusalém assim com este amor que nos vê a todos. É um
nós?... Com amor! Não há outro caminho.
espetáculo lindo: cheio de luz – a luz do amor de Jesus, do amor
do seu coração –, de alegria, de festa» 6. Amor com amor se paga. Mas a certeza do carinho é
dada pelo sacrifício. Portanto, ânimo: nega-te e toma a
Ao mesmo tempo, esse júbilo é interrompido pelo choro do Se-
Sua Cruz. Então terás a certeza de Lhe devolver amor por
nhor. O seu gesto de se dirigir para a Cidade Santa montado num
Amor 9. n
burrinho era um derradeiro chamamento ao povo: Graças ao cora-
ção misericordioso do nosso Deus – tinha dito Zacarias no Benedic-
tus –, que das alturas nos visita como sol nascente, para iluminar
os que jazem nas trevas e na sombra da morte e dirigir os nossos
passos no caminho da paz 7; contudo, Jerusalém, que tinha visto
tantos sinais do Mestre, não soube reconhecê-lo como Messias e
Salvador. São Josemaria condensava em traços vigorosos o contras-
te tremendo entre a doação de Jesus Cristo e a recusa dos homens:
Veio salvar o mundo, e os Seus negam-nO ante Pilatos.
Ensinou-nos o caminho do bem, e arrastam-nO pela via
do Calvário.
Deu exemplo em tudo, e preferem um ladrão homicida.
Nasceu para perdoar, e, sem motivo, condenam-nO ao
suplício.
Chegou por caminhos de paz, e declaram- Lhe guerra.
Era a Luz, e entregam-nO ao poder das trevas.
Trazia Amor, e pagam-lhe com ódio.
Veio para ser Rei, e coroam-nO de espinhos.
Fez-Se servo para nos libertar do pecado, e cravam-nO
na Cruz.

6. Francisco, Homilia, 24-III-2013. 8. S. Josemaria, Via Sacra, XIII estação, ponto 1.


7. Lc 1, 78-79. 9. Ibid., V estação, ponto 1.
206 Pegadas
DA NOSSA fé 17

Jerusalém
Na intimidade
do Cenáculo

A ntes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua


hora de passar deste mundo para o Pai, Ele, que amara os
seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim 1. Estas
palavras solenes de S. João, que são familiares aos nossos ouvidos,
introduzem-nos na intimidade do Cenáculo.
Onde queres que façamos os preparativos para comer a Pás-
coa? 2, tinham perguntado os discípulos. Ide à cidade – o Senhor
respondeu. Virá ao vosso encontro um homem com uma bilha de
água. Segui-o e, onde ele entrar, dizei ao dono da casa: «O Mes-
tre pergunta: Onde está a sala, em que hei de comer a Páscoa com
os meus discípulos?». Ele vos mostrará uma grande sala no andar
superior, alcatifada e pronta. Preparai-nos lá o que é preciso 3.
Conhecemos os factos que aconteceram durante a Última Ceia
do Senhor com os Seus discípulos: a instituição da Eucaristia e dos
Apóstolos como sacerdotes da Nova Aliança; a discussão entre eles
sobre quem se considerava o maior; o anúncio da traição de Judas,
do abandono dos discípulos e das negações de Pedro; o anúncio do
MAURO GOTTARDO / CTS

1. Jo 13, 1. A sala do Cenáculo conserva a


2. Mc 14, 12. arquitetura gótica com que foi
3. Mc 14, 13-15.
restaurada no século XIV. A
construção junto ao muro que se vê à
esquerda e o baldaquino sobre a
escada são da época muçulmana.
208
Pegadas da nossa fé Jerusalém Na intimidade do Cenáculo 209

Mandamento Novo e o lava-pés; o discurso de despedida e a ora- que se encontrava no lugar do Cenáculo, para onde os discípulos
ção sacerdotal de Jesus… O Cenáculo já seria digno de veneração foram depois de regressar do Monte das Oliveiras, após a subida
só pelo que aconteceu dentro das suas paredes naquela noite, mas aos céus do Salvador. Estava construída na zona de Sião que so-
foi também ali que Jesus ressuscitado apareceu em duas ocasiões breviveu à cidade, com alguns edifícios perto de Sião e sete sinago-
aos Apóstolos, que se tinham escondido dentro com as portas fe- gas, que perduraram no monte como cabanas; parece que só uma
chadas com medo dos judeus 4. Na segunda vez, Tomé retificou a destas se conservou até à época do Bispo Máximo e do imperador
sua incredulidade com um ato de fé na divindade de Jesus: Meu Constantino» 7.
Senhor e meu Deus! 5. Os Atos dos Apóstolos transmitiram-nos tam- Este testemunho coincide com outros do século IV: o que foi
bém que a Igreja, nas suas origens, se reunia no Cenáculo: Esta- transmitido por Eusébio de Cesareia, com um elenco de vinte e
vam lá Pedro e João, Tiago e André, Filipe e Tomé, Bartolomeu e nove bispos com sede em Sião desde a era apostólica até ao seu
Mateus, Tiago, filho de Alfeu, Simão, o Zeloso, e Judas, irmão de tempo; o peregrino anónimo de Bordéus, que viu ainda a última
Tiago. Todos estes perseveravam unidos em oração, em compa- das sete sinagogas; S. Cirilo de Jerusalém, que se refere à igreja su-
nhia de algumas mulheres, entre as quais Maria, Mãe de Jesus 6. perior em que se recordava a vinda do Espírito Santo; e a peregrina
No dia de Pentecostes, receberam o Espírito Santo, que os estimu- Egéria, que descreve uma liturgia celebrada ali em memória das
lou a partirem para pregar a Boa Nova. aparições do Senhor ressuscitado.
Os Evangelistas não nos fornecem dados que permitam identi- Por diversas fontes históricas, litúrgicas e arqueológicas, sabe-
ficar este lugar, mas a Tradição situa-o no extremo sudoeste de Je- mos que durante a segunda metade do século IV a pequena igre-
rusalém, sobre uma colina que começou a chamar-se Sião somente ja foi substituída por uma grande basílica, chamada Santa Sião, e
na época cristã. Originalmente, este nome aplicava-se à fortaleza considerada a mãe de todas as igrejas. Além do Cenáculo, incluía
jebuseia que David conquistou; depois, ao Monte do Templo, onde o lugar da Dormição de Nossa Senhora, que a tradição situava
se guardava a Arca da Aliança; e mais tarde, nos salmos e nos livros numa casa próxima; também conservava a coluna da flagelação e
proféticos da Bíblia, a toda a cidade e seus habitantes. Depois do as relíquias de S. Estêvão, e no dia 26 de Dezembro comemorava-
desterro da Babilónia, o termo adquiriu um significado escatológi- -se ali o rei David e S. Tiago, o primeiro Bispo de Jerusalém. Co-
co e messiânico, para indicar a origem da nossa salvação. Com base nhece-se pouco do traçado deste templo, que foi incendiado pelos
neste sentido espiritual, quando o Templo foi destruído no ano persas no século VII, restaurado posteriormente e de novo destruí-
70, a primeira comunidade cristã aplicou-o ao monte onde se en- do pelos árabes.
contrava o Cenáculo, pela sua relação com o nascimento da Igreja. Quando os Cruzados chegaram à Terra Santa, no século XII, re-
Recebemos o testemunho desta tradição através de S. Epifânio construíram a basílica e deram-lhe o nome de S. Maria do Monte
de Salamina, que viveu em finais do século IV, foi monge na Pa- Sião. Na nave sul da igreja estava o Cenáculo, que continuava a ter
lestina e bispo em Chipre. Relata que o imperador Adriano, quan- dois pisos, cada um dividido em duas capelas: no superior, as de-
do foi ao Oriente no ano de 138, «encontrou Jerusalém completa- dicadas à instituição da Eucaristia e à vinda do Espírito Santo; no
mente arrasada e o Templo de Deus destruído e profanado, com inferior, a do lava-pés e a das aparições de Jesus ressuscitado. Nesse
exceção de uns poucos edifícios e da pequena igreja dos cristãos, andar colocou-se o cenotáfio – monumento funerário no qual não
está o cadáver da pessoa a quem é dedicado – em honra de David.
Reconquistada a Cidade Santa por Saladino em 1187, a basílica não
4. Cf. Jo 20, 19-29.
5. Jo 20, 28.
6. At 1, 13-14. 7. S. Epifânio de Salamina, De mensuris et ponderibus, 14.
210
Pegadas da nossa fé Jerusalém Na intimidade do Cenáculo 211

MAURO GOTTARDO / CTS

SHALVA MAMISTVALOV / FLICKR


O cenotáfio do rei David costuma estar coberto com um tapete, e a sala onde se
encontra divide-se em duas zonas, uma para homens e outra para mulheres.

sofreu danos, e inclusive eram permitidas as peregrinações e o cul-


to. Contudo, esta situação não durou muito: em 1244, a igreja foi
definitivamente destruída e só se salvou o Cenáculo, cujos restos
chegaram até nós. Vista para a entrada do Cenáculo da escadaria da sala de Pentecostes. Em
A sala gótica atual data do século XIV e deve-se à restauração baixo, dois vestígios cristãos: um capitel adornado com o motivo eucarístico do
realizada pelos franciscanos, os seus legítimos donos desde 1342. pelicano; e a chave de uma abóboda com restos escultóricos de um cordeiro.
Os frades tinham tomado conta do santuário sete anos antes e edi-
ficado um convento junto do lado sul. Na mesma data, por bula
papal, ficou constituída a Custódia da Terra Santa e foi-lhes cedida
a propriedade do Santo Sepulcro e do Cenáculo pelos reis de Ná-
poles, que por sua vez a tinham adquirido ao sultão do Egito. Não
sem dificuldades, os franciscanos viveram em Sião durante mais
de dois séculos, até que foram expulsos pela autoridade turca em
1551. Já antes, em 1524, lhes tinha sido usurpado o Cenáculo, que
foi convertido em mesquita com o argumento de que ali se encon-
ILDA LADEIRA / FLICKR

traria enterrado o rei David, considerado profeta pelos muçulma-

ALFRED DRIESSEN
nos. Assim permaneceu até 1948, quando passou para as mãos do
estado de Israel, que o administra desde então.
212
Pegadas da nossa fé Jerusalém Na intimidade do Cenáculo 213

FOTO: ISRAELI MINISTRY OF TOURISM. ILUSTRAÇÕES: J. GIL

Segunda Terceira muralha


muralha Fortaleza (70 d. C.)
Antónia
MONTE
Calvário DO TEMPLO

Va
Templo

le
Cemitério Monte das

dron
do Tiropeon
Oliveiras
católico Muralha
atual da


Cidade
Velha

o
e d
Área povoada

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Cemitério Cenáculo Muralha

Ge
da cidade
arménio

en
(V

a
ale Primera 0m 500
de Hinom) muralla
Desde a época dos
0 ft 1000
Cruzados, o Monte Sião
fica fora da muralha.
Destruição do segundo
Templo (70 d. C.)
Cemitério
ortodoxo
grego
Abadia
beneditina Basílica
do Santo
Basílica da Sepulcro
Dormição MONTE
DO TEMPLO
an o
D ec um

Ca rd o M áxi m
Nea

C a r d o o rient
Convento de
Cenáculo S. Francisco
MONTE
Cenacolino SIÃO
o

l a
Santa Sião

Claustro

Época cristã de Bizâncio


(313-638 d. C.)

Basílica
do Santo Palácio
Sepulcro dos paxás
HARAM AL-SHARIF
Cúpula da Rocha
Sala do Cenotáfio Sala da Sala do
lava-pés de David Sala da Mesquita de Al-Aqsa
Última Ceia Pentecostes Sala do Cidadela
Última Ceia

n
Pentecostes

dro
Edifício


Cenáculo
do Cenáculo Basílica da

Ge
Dormição

en
(V

a
0m 10 ale
de Hinom)
0 ft 30 Sala do Cenotáfio
lava-pés de David
Res-do-chão Primeiro piso Seção Império otomano
(1516-1917 d. C.)
214
Pegadas da nossa fé Jerusalém Na intimidade do Cenáculo 215

MARIE-ARMELLE BEAULIEU / CTS

ALFRED DRIESSEN
JASON HARMAN / FLICKR

A sala onde se recordava a vinda do Espírito Santo – imagem superior


esquerda – abre-se muito poucas vezes durante o ano; por exemplo, no
Pentecostes. Na fotografia inferior da esquerda, tirada da zona da
entrada, veem-se na parede do fundo a escada e a porta que conduzem a
esse lugar. Sobre estas linhas, parte do claustro do convento franciscano do
século XIV; no primeiro andar, podem ver-se as três janelas do Cenáculo.

O acesso ao Cenáculo é através de um edifício anexo, subin-


do uma escadaria interior e atravessando um terraço a céu aberto.
Trata-se de uma sala de cerca de 15 metros de comprimento por 10
metros de largura, praticamente sem adornos nem mobiliário. Vá-
rias pilastras nas paredes e duas colunas no centro, com capitéis
antigos reutilizados, sustentam um teto em abóbadas. Nos fechos
das abóbadas ficaram restos de relevos com figuras de animais;
entre os quais é visível um cordeiro. Alguns acréscimos são evi-
dentes, como a construção feita em 1920, na parede central, para a
oração islâmica, que tapa uma das três janelas, ou um baldaquino
da época turca sobre a escada que conduz ao nível inferior. Este
dossel apoia-se numa pequena coluna cujo capitel é cristão, pois
está adornada com o motivo eucarístico do pelicano que alimenta
as suas crias. A parede da esquerda conserva partes que remon-
216
Pegadas da nossa fé Jerusalém Na intimidade do Cenáculo 217

Atualmente não é possível o culto no Cenáculo. Somente dois

GABINETE DE IMPRENSA DO OPUS DEI


papas tiveram o privilégio de celebrar a Santa Missa nesta sala: S.
João Paulo II, no dia 23 de Março de 2000; e Francisco, no dia 26
de Maio de 2014. Quando Bento XVI foi à Terra Santa em Maio
de 2009, rezou ali o Regina Cœli com os Bispos do país. Devido à
existência do cenotáfio em honra de David, que se venerava como
o túmulo do rei bíblico, muitos judeus vão ao piso inferior para re-
zar diante desse monumento.
A presença cristã no Monte Sião sobrevive na Basílica da Dor-
mição de Nossa Senhora – que inclui uma abadia beneditina – e
o Convento de S. Francisco. A primeira foi construída em 1910 em
terrenos que conseguiu Guilherme II, imperador da Alemanha. A
cúpula do santuário, com um tambor muito esbelto, é visível de vá-
rios pontos da cidade. No convento franciscano, fundado em 1936,
encontra-se o Cenacolino ou Igreja do Cenáculo, o lugar de culto
mais próximo da sala da Última Ceia.
Nesta capela, o Beato Álvaro celebrou a Santa Missa pela úl-
tima vez na sua vida, na manhã de 22 de Março de 1994. D. Javier
Echevarría recordava pouco tempo depois alguns detalhes desse
dia, no qual o primeiro sucessor de S. Josemaria esteve intensa-
mente recolhido em oração:
— «Fiquei impressionado pela unção com a qual se paramentou:
estava concentrado, comovido. Beijou o peitoral muito profunda-
mente antes de vestir a casula. Depois, pegou no solidéu, também
com verdadeira unção, para o colocar antes de sair» 8.
Alguns poucos fiéis da Obra participaram na Missa, mas D. Ja-
vier sublinhou que o Beato Álvaro «celebrou lá pensando em to-
dos». E continuava:
O Beato Álvaro, D. Javier Echevarría e Mons. Joaquín Alonso, — «Estava muito consciente da instituição da Eucaristia e do
na Igreja do Cenáculo, no dia 22 de Março de 1994. sacerdócio; víamos que celebrava com muita devoção. Notava-se
alguma fadiga, devida ao cansaço físico, embora pudesse ser tam-
bém a emoção de estar naquele santo lugar.
tam à era bizantina; através de uma escada e de uma porta, sobe-
» Posso assegurar que ele viveu esses momentos com verdadei-
-se à pequena sala onde se recorda a vinda do Espírito Santo. No
ra intensidade, com verdadeira loucura de Amor. Também pensou
lado oposto à entrada, há uma saída para outro terraço, que por
sua vez comunica com o telhado e dá para o claustro do convento
franciscano do século XIV. 8. Javier Echevarría, Palavras recolhidas em Crónica, 1994, p. 391 (AGP, biblioteca, P01).
218
Pegadas da nossa fé Jerusalém Na intimidade do Cenáculo 219

na reunião dos Apóstolos com Nossa Senhora no Cenáculo, e que, servindo-se o cálice da bênção, taça que continha vinho misturado
daí partiu Pedro para pregar ao povo, depois da vinda do Espírito com água. Antes de bebê-lo, quem presidia, de pé, recitava uma
Santo» 9. longa ação de graças.
Ao celebrar a Última Ceia com os Apóstolos no contexto do
antigo banquete pascal, o Senhor transformou-o e deu-lhe o seu
A instituição da Eucaristia Olhemos agora para sentido definitivo: «Com efeito, a passagem de Jesus para o seu Pai,
o Mestre reunido com os Seus discípulos na intimidade do pela sua morte e ressurreição – a Páscoa nova – é antecipada na ceia
Cenáculo. Ao aproximar-se o momento da Paixão, o Cora- e celebrada na Eucaristia, que dá cumprimento a Páscoa judaica
ção de Cristo, rodeado por aqueles que ama, abre-se em e antecipa a Páscoa final da Igreja na glória do Reino» 13. Quan-
inefáveis labaredas 10. Tinha desejado ardentemente que chegas- do, na última ceia, o Senhor instituiu a Sagrada Eucaris-
se esta Páscoa 11, a mais importante das festas anuais de Israel, na tia, era de noite (...). Caía a noite sobre o mundo, porque
qual se revivia a libertação da escravidão no Egito. Estava unida a os velhos ritos, os antigos sinais da misericórdia infinita de
outra celebração, a dos Ázimos, lembrando os pães sem fermento Deus para com a humanidade, iam realizar-se plenamen-
que o povo levou na sua fuga precipitada do país do Nilo. Ainda te, abrindo caminho a um verdadeiro amanhecer: a nova
que a cerimónia principal daquelas festas fosse uma ceia familiar, Páscoa. A eucaristia foi instituída durante a noite, prepa-
esta possuía um forte carácter religioso: «Era memória do passado, rando de antemão a manhã da Ressurreição 14.
mas ao mesmo tempo também memória profética, ou seja, anún- Na intimidade do Cenáculo, Jesus fez algo de surpreendente,
cio duma libertação futura» 12. totalmente inédito: Tomou o pão e, dando graças, partiu-o e deu-
Durante essa celebração, o momento relevante era o relato da -lho, dizendo:
Páscoa ou hagadá pascal. Começava com uma pergunta do filho — Isto é o meu Corpo entregue por vós. Fazei isto em memó-
mais novo ao pai: ria de Mim 15.
— O que distingue esta noite de todas as noites? As suas palavras exprimem a profunda novidade desta ceia em
A resposta era uma oportunidade para narrar detalhadamente relação às celebrações pascais anteriores. Quando deu o pão ázimo
a saída do Egito. O chefe da família tomava a palavra na primeira aos discípulos, não lhes entregou pão, mas sim uma realidade dife-
pessoa, para simbolizar que não só se recordavam aqueles factos, rente: Isto é o meu Corpo. «No pão repartido, o Senhor distribui-Se
mas que se faziam presentes no ritual. Ao terminar, entoava-se um a Si próprio (…). Dando graças e abençoando, Jesus transforma o
grande cântico de louvor, composto pelos salmos 113 e 114, e be- pão: já não dá pão terreno, mas a comunhão consigo mesmo» 16. E
bia-se uma taça de vinho, chamada hagadá. Depois, abençoava-se ao mesmo tempo que instituiu a Eucaristia, deu aos Apóstolos o
a mesa, começando pelo pão ázimo. A pessoa que presidia pegava poder de a perpetuar, pelo sacerdócio.
nele e dava um pedaço a cada um com a carne do cordeiro. Também com o cálice Jesus fez algo de singular relevância: No
Uma vez comida a ceia, retiravam-se os pratos e todos lavavam fim da ceia, fez o mesmo com o cálice, dizendo:
as mãos para continuar a sobremesa. A conclusão solene começava

9. Ibid., p. 391-392. 13. Catecismo da Igreja Católica, n. 1340.


10. S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 222. 14. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 155.
11. Cf. Lc 22, 15. 15. Lc 22, 19.
12. Bento XVI, Exortação apostólica pós-sinodal Sacramentum caritatis, n. 10. 16. Bento XVI, Homilia da Missa da Ceia do Senhor, 9-IV-2009.
220
Pegadas da nossa fé Jerusalém Na intimidade do Cenáculo 221

— Este cálice é a nova aliança no meu Sangue, derramado por Ele trabalhava e amarmos como Ele amava? Aprenderemos
vós 17. então a agradecer ao Senhor essa outra delicadeza de não
Diante deste mistério, S. João Paulo II dizia: «Que mais poderia querer limitar a sua presença ao momento do Sacrifício do
Jesus ter feito por nós? Verdadeiramente, na Eucaristia demonstra- Altar, mas permanecer na Hóstia Santa que se reserva no
-nos um amor levado até ao “extremo” (Jo 13, 1), um amor sem me- tabernáculo, no sacrário.
dida. Este aspeto de caridade universal do sacramento eucarístico Dir-vos-ei que, para mim, o sacrário sempre foi Betâ-
está fundado nas próprias palavras do Salvador. Ao instituí-lo, não nia, o lugar tranquilo e aprazível onde Cristo Se encontra,
Se limitou a dizer “isto é o meu corpo”, “isto é o meu sangue”, mas onde podemos contar-Lhe as nossas preocupações, os nos-
acrescenta: “entregue por vós (...) derramado por vós” (Lc 22, 19-20). sos sofrimentos, as nossas aspirações e as nossas alegrias
Não se limitou a afirmar que o que lhes dava a comer e a beber era com a mesma simplicidade e naturalidade com que Lhe fa-
o seu corpo e o seu sangue, mas exprimiu também o seu valor sa- lavam os seus amigos Marta, Maria e Lázaro. Por isso, ao
crificial, tornando sacramentalmente presente o seu sacrifício, que percorrer as ruas de uma cidade ou de uma aldeia, alegra-
algumas horas depois realizaria na cruz pela salvação de todos» 18. -me descobrir, ainda que ao longe, a silhueta duma igreja:
Bento XVI, dirigindo-se aos Bispos da Terra Santa no próprio é um novo sacrário, mais uma ocasião para permitir que
lugar da Última Ceia, ensinava: «No Cenáculo, o mistério de gra- a alma se escape para estar, em desejo, junto do Senhor
ça e de salvação, do qual somos destinatários e inclusive arautos e Sacramentado 20. n
ministros, só pode ser manifestado em termos de amor» 19: o Amor
de Deus, que nos amou primeiro e ficou realmente presente na Eu-
caristia, e o amor da nossa resposta, que nos leva a entregar-nos
generosamente ao Senhor e aos outros.
Não compreendo como se pode viver cristãmente sem
sentir a necessidade de uma amizade constante com Jesus
na Palavra e no Pão, na oração e na eucaristia. E entendo
perfeitamente que, ao longo dos séculos, as sucessivas gera-
ções de fiéis tenham concretizado essa piedade eucarística,
umas vezes com práticas multitudinárias, professando pu-
blicamente a sua fé, outras com gestos silenciosos e calados,
na sagrada paz do templo ou na intimidade do coração.
Antes de mais, devemos amar a Santa Missa, que deve
ser o centro do nosso dia. Se vivermos bem a Missa, como
não haveremos de continuar, ao longo do resto da jornada,
com o pensamento no Senhor, com o desejo ardente de não
nos afastarmos da sua presença, para trabalharmos como

17. Lc 22, 20.


18. S. João Paulo II, Carta enc. Ecclesia de Eucharistia, 17-IV-2003, n. 11-12.
19. Bento XVI, Recitação da Regina Cœli com os Ordinários da Terra Santa, 12-V-2009. 20. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 154.
No centro da Basílica
222 Pegadas
DA NOSSA fé 18 da Agonia venera-se a
rocha onde se teria
prostrado o Senhor em
oração. A cena
LEOBARD HINFELAAR

encontra-se
representada na
abside.

Getsémani
Oração e agonia de Jesus

Q uando chega a hora marcada por Deus para salvar


a humanidade da escravidão do pecado, contem-
plamos Jesus Cristo no Getsémani, sofrendo terri-
velmente até derramar um suor de sangue (cf. Lc 22, 44),
e aceitando rendida e espontaneamente o sacrifício que o
Pai Lhe reclama 1.

1. S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 25.


ALFONSO PUERTAS
224
Pegadas da nossa fé Getsémani Oração e agonia de Jesus 225

Os relatos evangélicos transmitiram-nos a localização do lugar — Porque estais a dormir? Levantai-vos e orai, para não en-
onde Jesus se retirou uma vez acabada a Última Ceia: Então saiu e trardes em tentação 8.
foi, como de costume, para o monte das Oliveiras 2, para o outro Jesus voltou por três vezes para junto dos que O acompanha-
lado da torrente do Cédron 3, e chegou com os Apóstolos a uma vam, e nas três vezes os encontrou carregados de sono, até que já foi
propriedade, chamada Getsémani 4. Segundo estas indicações, tra- tarde demais: Dormi agora e descansai... Chegou a hora: o Filho
tava-se de um horto onde havia uma prensa para extrair azeite – é do homem vai ser entregue às mãos dos pecadores. Levantai-vos.
esse o significado do nome –, e ficava fora das muralhas de Jerusa- Vamos. Já se aproxima aquele que Me vai entregar.
lém, a leste da cidade, no caminho para Betânia. Ainda Jesus estava a falar, quando apareceu Judas, um dos
Aquele lugar devia ser muito conhecido, porque Jesus Se reu- Doze, e com ele uma grande multidão, com espadas e varapaus 9.
nira lá muitas vezes com os discípulos 5. Além disso, não é estra- Com um beijo traiu o Senhor, que foi preso enquanto os discípu-
nho que os primeiros cristãos conservassem a memória de um lo- los O abandonavam e fugiam.
cal onde ocorreram factos transcendentais da história da salvação. Graças à peregrina Egéria, sabemos que na segunda metade do
No Horto das Oliveiras, perante a proximidade da Paixão, que se século IV se celebrava uma liturgia na Quinta-Feira Santa «no lugar
desencadeará com a traição de Judas, o Senhor sente a necessida- onde o Senhor rezou», e que havia aí «uma igreja formosa» 10. Os
de de rezar: Ficai aqui, enquanto Eu vou orar, disse aos Apósto- fiéis entravam no templo, oravam, cantavam hinos e escutavam os
los. Tomou consigo Pedro, Tiago e João e começou a sentir pavor relatos evangélicos sobre a agonia de Jesus no horto. Depois, di-
e angústia. Disse-lhes então: rigiam-se em procissão para outro local de Getsémani onde se re-
— A minha alma está numa tristeza de morte. Ficai aqui e cordava a prisão 11.
vigiai. Seguindo esta tradição e outras igualmente antigas, são ve-
Adiantando-Se um pouco, caiu por terra e orou para que, se nerados atualmente três lugares relacionados com os aconteci-
fosse possível, se afastasse d’Ele aquela hora. Jesus dizia: mentos daquela noite: a rocha sobre a qual o Senhor rezou, um
— Abá, Pai, tudo Te é possível: afasta de Mim este cálice. Con- horto que conserva oito oliveiras milenárias com alguns dos seus
tudo, não se faça o que Eu quero, mas o que Tu queres 6. rebentos, e a gruta onde teria sido realizada a prisão. Poucas de-
A dor era tal, que apareceu-Lhe um Anjo, vindo do Céu, para zenas de metros os separam, na zona mais baixa do Monte das
O confortar. Entrando em angústia, orava mais instantemente, e Oliveiras, quase no fundo do Cédron, no meio de uma paisagem
o suor tornou-se-Lhe como grossas gotas de sangue, que caíam muito sugestiva: esta torrente, tal como a maioria dos wadis pales-
na terra 7. A oração de Cristo contrasta com a atitude dos Apósto- tinos, é um vale seco e só recebe água com as chuvas do inverno;
los: Depois de ter orado, levantou-Se e foi ter com os discípulos, a encosta do monte, ao contrário do cume, está pouco habitada,
que encontrou a dormir, por causa da tristeza. Disse-lhes Jesus: porque grandes extensões do terreno foram destinadas a cemi-
térios. Abundam os olivais, dispostos em terraços, e também os
ciprestes nas beiras dos caminhos.

2. Lc 22, 39.
3. Jo 18, 1.
4. Mt 26, 36; Mc 14, 32. 8. Ibid., 45-46.
5. Jo 18, 2. 9. Mc 14, 41-43.
6. Mc 14, 32-36. 10. Itinerarium Egeriæ, XXXVI, 1 (CCL 175, 79).
7. Lc 22, 43-44. 11. Cf. Ibid., 2-3 (CCL 175, 79-80).
226
Pegadas da nossa fé Getsémani Oração e agonia de Jesus 227

Panorâmica da torrente do Cédron e do


Monte das Oliveiras, vista a explanada Cimo do Monte das Oliveiras,
das mesquitas em Jerusalém. onde se encontram o mosteiro
do Pater Noster e o lugar da
Ascensão. Santuário do Dominus Flevit,
onde se recorda o pranto de
Jesus por Jerusalém.

Mosteiro
russo de Maria
Madalena
Basílica da
Convento
Agonia
franciscano
Túmulo Gruta da
de Maria Prisão
Oliveiras milenárias
de Getsémani
FOTO: TRANWEIYU / FLICKR. ILUSTRAÇÃO: J. GIL

Terceira muralha
(70 d. C.)
Igreja de
A Basílica da Agonia A rocha sobre a qual, segundo
Segunda Basílica Santa Ana
Fortaleza do Santo
muralha
Antónia Sepulcro Túmulo de Santa Maria a tradição, o Senhor orou, encontra-se no interior da Basílica da
Calvário Getsémani Getsémani
Agonia ou de Todas as Nações. Recebeu este nome porque dezas-
Va

Templo Cúpula
le

Monte das da Rocha Monte das


seis países colaboraram na sua construção, que foi levada a cabo
dron
do Tiropeon

Oliveiras Oliveiras
Muralha
atual da
entre 1922 e 1924. Segue a planta da igreja bizantina, da qual che-

Cidade
Velha Al-Aqsa
o

gou até nós pouco mais do que os alicerces, pois foi destruída por
e d

Área povoada Cenáculo


Va l

Cenáculo Muralha
um incêndio, possivelmente antes do século VII. Media 25 por 16
Ge

Basílica
da cidade da Dormição
en

(V
metros, tinha três naves e três absides, e pavimentos adornados
a

ale Primeira 0m 500


de Hinom) muralha
0 ft 1000
com mosaicos; destes, conservam-se alguns fragmentos, protegi-
Jerusalém em 70 d. C. Jerusalém atualmente dos por vidros, junto dos atuais. Ao edificar o santuário moder-
228
Pegadas da nossa fé Getsémani Oração e agonia de Jesus 229

DIEGO DELSO / WIKIMEDIA COMMONS BENJAMIN E. WOOD / FLICKR

A Basílica da Agonia chama-se também de Todas as Nações, porque foram


dezasseis os países que contribuíram para a sua construção. À direita, as
cúpulas dão a ideia de um céu estrelado, visto através dos ramos das oliveiras.

no, também se encontraram vestígios de outro santuário da época


medieval. Foi erigido pelos Cruzados no mesmo lugar da basílica
primitiva, mas de tamanho maior e com uma orientação diferen-
te, virado para sudeste, o que leva a pensar que não interpretaram
devidamente os vestígios precedentes. Ficou abandonado após a
conquista de Jerusalém por Saladino.
Desde o Cédron, destaca-se o amplo átrio da basílica, com três
arcos sustentados por pilastras e colunas adossadas. A fachada está
arrematada por um frontão. No tímpano, decorado com mosaicos, trás, na abside central, está representada a agonia de Jesus no hor-
está representado Jesus Cristo como Mediador entre Deus e a hu- to; nas absides laterais, também em mosaico, figuram a traição de
manidade. Nos dias solheiros, a luminosidade exterior contrasta Judas e a prisão de Jesus.
com a penumbra do interior: as janelas filtram a luz com tons azu-
lados, lilás e violeta, que recordam as horas de agonia de Jesus e
convidam o peregrino ao silêncio, ao recolhimento e à contempla- O Horto das Oliveiras O terreno onde se ergue a ba-
ção. As doze cúpulas, sustentadas no centro da igreja por seis es- sílica é propriedade da Custódia da Terra Santa desde a segunda
beltas colunas, reforçam esta sensação através de um mosaico que metade do século XVII. Quando foi adquirido, o mais notável que
sugere o céu estrelado. conservava, além das ruínas medievais e bizantinas, era o chama-
No presbitério, diante do altar, a rocha venerada sobressai do do jardim das flores: uma área não cultivada, cercada por um muro,
pavimento. Está rodeada por uma artística coroa de espinhos. Por onde cresciam oito oliveiras que a tradição local datava da época
230
Pegadas da nossa fé Getsémani Oração e agonia de Jesus 231

LEOBARD HINFELAAR

GABINETE DE IMPRENSA DO OPUS DEI


As oito oliveiras mais
antigas de Getsémani
poderão remontar ao
primeiro milénio. À
esquerda, um ramo que
o Beato Álvaro trouxe como
recordação e que se
conserva em Villa Tevere. de Cristo. Enquanto os franciscanos esperavam o momento opor-
Na página seguinte, tuno para reconstruir a igreja, protegeram aquelas oliveiras mile-
o Beato Álvaro inclina-se
para beijar a rocha sobre a nárias, ligadas sem dúvida à tradição cristã do lugar, de modo que
qual, segundo a tradição, chegaram até nós com vida.
Jesus orou em Getsémani. O seu aspeto antigo é impressionante. Os botânicos que as es-
tudaram não chegaram a um consenso quanto à sua idade: alguns
defendem que foram plantadas no século XI e que todas vêm do
GABINETE DE IMPRENSA DO OPUS DEI

mesmo ramo; outros, que a sua enorme espessura permite suge-


rirmos que remontam ao primeiro milénio. Sejam mais ou menos
antigas, isso não tira interesse à sua preservação como testemunhas
silenciosas que perpetuam a recordação de Jesus e da última noite
da sua passagem pela terra.
232
Pegadas da nossa fé Getsémani Oração e agonia de Jesus 233

ALFRED DRIESSEN
Vistas do corredor que

EILAM GIL / FLICKR


conduz desde o pátio do
Túmulo de Santa Maria
até à Gruta da Traição ou
dos Apóstolos, mostrada
na imagem inferior. Nesse
lugar, encontraram-se
vestígios de uma
veneração ininterrupta.

A Gruta da Traição O recinto da Basílica da Agonia e


do horto de Getsémani inclui também um convento franciscano.
Fora da propriedade, umas dezenas de metros para norte, está a
Gruta da Traição, que também pertence à Custódia da Terra Santa.
Acede-se a ela através de um corredor estreito, que parte do pátio
de entrada para o Túmulo de Santa Maria. Este santuário mariano
merece um artigo separado, em conjunto com a Basílica da Dor-
mição do Monte Sião: por agora, basta dizer que, de acordo com
algumas tradições, para ali teria sido trasladado o corpo de Nossa
Senhora do bairro do Cenáculo, antes da Assunção; a igreja é par-
tilhada pelas comunidades grega, arménia, síria e copta.
A gruta mede cerca de 19 metros de comprimento por 10 me-

ENRIQUE BERMEJO / CTS


tros de largura. Alguns vestígios arqueológicos permitem pensar
que era utilizada como residência temporária ou como armazém
pelo dono do horto. Pensa-se que foi aqui que os oito Apóstolos
234
Pegadas da nossa fé Getsémani Oração e agonia de Jesus 235

descansaram na noite em que Jesus foi preso. Depois das horas

LEOBARD HINFELAAR
em agonia e oração, quando o Senhor percebeu a chegada de Ju-
das, teria ido aí com os outros três Apóstolos para avisá-los do que
ia suceder. Portanto, desse lado de Getsémani Jesus terá saído ao
encontro dos guardas.
Numerosos grafitos, gravados pelos peregrinos em diversas lín-
guas e épocas, sobre os rebocos das paredes e do teto, constituem
testemunho de uma veneração quase ininterrupta: no século IV, a
caverna já era utilizada como capela e o pavimento tinha sido ador-
nado com mosaicos; do século V até ao VIII, acolheu sepulturas cris-
tãs; na época dos Cruzados, foi decorada com frescos; a partir do
século XIV, os franciscanos obtiveram alguns direitos de culto sobre
o lugar, até que finalmente conseguiram adquiri-lo. Um restauro
realizado em 1956 revelou a estrutura primitiva, com um lagar e
uma cisterna; acima da gruta, na mesma propriedade, descobri-
ram-se os restos de uma antiga prensa de azeite. Não se faça a minha vontade,
mas a Tua São tantas as cenas em que Jesus Cris-
O Beato Álvaro, to fala com o seu Pai, que se torna quase impossível deter-
em Getsémani O Beato Álvaro del Portillo esteve em
mo-nos em todas. Mas penso que não podemos deixar de
considerar as horas, tão intensas, que precederam a Sua
Getsémani na tarde de 18 de Março de 1994. Fez a oração na Basíli- Paixão e Morte, quando se prepara para consumar o Sacri-
ca da Agonia. Ofereceram-lhe alguns ramos das oliveiras do jardim, fício que nos reconduzirá ao Amor Divino. Na intimidade do
que ele agradeceu muito. Pensou que poderia enviar um deles ao Cenáculo, o Seu Coração transborda: dirige-se suplicante
Papa João Paulo II no Domingo de Ramos, e D. Javier Echevarría ao Pai, anuncia a vinda do Espírito Santo, anima os Seus
fez isso em nome do Bem-aventurado Álvaro, que neste dia já es- a uma contínua atividade de caridade e de fé.
tava no céu. Além disso, D. Javier explicou depois desta peregri-
nação: «Também quis passar o seu peitoral, o crucifixo e o terço na
Esse fervoroso recolhimento do Redentor continua em
rocha da Agonia. O lugar que o Senhor escolheu para sua oração
Getsémani, quando percebe que já está iminente a Paixão,
naquela noite é muito duro: uma pedra áspera, afiada, em que fi-
com as humilhações e as dores que se aproximam. Essa
cou horas ajoelhado, depois do esforço e cansaço da Última Ceia e
Cruz dura, onde suspendem os malfeitores e que Ele dese-
do dia que havia passado. Temos que agradecer ao Senhor até es-
jou ardentemente. Pai, se quiseres, afasta de mim este cá-
tes gestos materiais que expressam o seu amor com tanta clareza.
lice (Lc 22, 42). E logo a seguir: contudo, não se faça a mi-
Manter-se horas em oração, de joelhos, naquela pedra, não é nada
nha vontade, mas a Tua (Ibid.) 13.
fácil. Tivemos a sorte de fazer ali a oração da tarde» 12. Se formos conscientes de que somos filhos de Deus, de que a
nossa vocação cristã exige seguir os passos do Mestre, a contem-

12. Javier Echevarría, Palavras recolhidas em Crónica, 1994, p. 332 y 335


(AGP, biblioteca, P01). 13. S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 240.
236
Pegadas da nossa fé Getsémani Oração e agonia de Jesus 237

plação da sua oração e agonia no Horto das Oliveiras há de levar- a “terra” tornou-se “céu”; a “terra” da sua vontade humana, abala-
-nos ao diálogo com Deus Pai. «Quando ora, Jesus já nos ensina da pelo pavor e pela angústia, foi assumida pela sua vontade divi-
a orar» 14; e além de ser o nosso modelo, convoca-nos à oração, tal na, de maneira que a vontade de Deus se cumpriu sobre a terra. E
como a Pedro, Tiago e João, quando os levou consigo e lhes pediu isto é importante inclusive na nossa oração: devemos aprender a
que vigiassem com Ele: Orai, para não entrardes em tenta- confiar-nos mais à Providência divina, pedir a Deus a força para
ção. – E Pedro adormeceu. – E os outros Apóstolos. – E sairmos de nós mesmos e renovarmos o nosso “sim”, para lhe re-
adormeceste tu, menino amigo… e eu fui, também, outro petirmos: “Seja feita a vossa vontade”, para conformarmos a nossa
Pedro dorminhoco 15. vontade com a sua» 17.
Não há justificação para se abandonar ao sono: «Todos pode- Jesus, só e triste, sofria e empapava a terra com o Seu
mos rezar; com mais exatidão, todos devemos rezar, porque viemos sangue. De joelhos, sobre a terra dura, persevera na ora-
ao mundo para amar Deus, para O louvar e servir e depois, na ou- ção… Chora por ti… e por mim: esmaga-O o peso dos pe-
tra vida – aqui estamos de passagem –, sermos eternamente felizes cados dos homens 18.
com Ele. E que é rezar? Simplesmente, falar com Deus mediante Dirige-te a Nossa Senhora e pede-lhe que te faça a ofer-
orações vocais ou na meditação. Não há lugar para a desculpa de ta – prova do seu carinho por ti – da contrição, da compun-
que não sabemos ou de que nos cansamos. Falar com Deus para ção pelos teus pecados e pelos pecados de todos os homens
aprender d’Ele, consiste em olhá-Lo, em contar-Lhe a nossa vida – e mulheres de todos os tempos, com dor de Amor.
trabalho, alegrias, penas, cansaços, reações, tentações. Se O escu- E com essa disposição, atreve-te a acrescentar: – Mãe,
tamos, ouviremos o que nos sugere: deixa aquilo, sê mais cordial, Vida, minha Esperança, conduz-me pela tua mão..., e se
trabalha melhor, serve os outros, não penses mal de ninguém, fala há alguma coisa agora em mim que desagrada ao meu
com sinceridade e com educação...» 16. Pai-Deus, concede-me que a veja e que, entre os dois a
Bento XVI, numa audiência que dedicou à oração de Jesus em arranquemos.
Getsémani, referia-se à capacidade que temos os cristãos, quando Continua sem medo: – Ó clementíssima, ó piedosa, ó
procuramos uma intimidade cada vez maior com Deus, de trazer doce Virgem Santa Maria!, roga por mim, para que, cum-
para esta terra uma antecipação do céu: «Cada dia na oração do prindo a amabilíssima Vontade do teu Filho, seja digno de
Pai-Nosso nós pedimos ao Senhor: “Seja feita a vossa vontade, as- alcançar e gozar as promessas de Nosso Senhor Jesus 19. n
sim na terra como no céu” (Mt 6, 10). Isto é, reconhecemos que há
uma vontade de Deus connosco e para nós, uma vontade de Deus
sobre a nossa vida, que deve tornar-se cada dia mais a referência
da nossa vontade e do nosso ser; além disso, reconhecemos que
é no “céu” que se cumpre a vontade de Deus, e que a “terra” só se
torna “céu”, lugar da presença do amor, da bondade, da verdade e
da beleza divina, se nela se cumprir a vontade de Deus. Na prece
de Jesus ao Pai, naquela noite terrível e admirável do Getsémani,

14. Catecismo da Igreja Católica, n. 2607. 17. Bento XVI, Audiência, 1-II-2012.
15. S. Josemaria, Santo Rosário, I mistério doloroso. 18. S. Josemaria, Santo Rosário, I mistério doloroso.
16. Javier Echevarría, Getsémani: em oração com Jesus Cristo, Lisboa, Diel, 2011, p. 10. 19. S. Josemaria, Forja, n. 161.
No exterior da Igreja de
238 Pegadas
DA NOSSA fé 19 S. Pedro in Gallicantu,
um conjunto escultórico
recorda as negações do
Príncipe dos Apóstolos.

S. Pedro
in Gallicantu

A companhia de soldados, o oficial e os guardas dos judeus


apoderaram-se de Jesus e manietaram-nO. Levaram-nO
primeiro a Anás, por ser sogro de Caifás, que era o sumo
sacerdote nesse ano. Caifás é que tinha dado o seguinte conselho
aos judeus: «Convém que morra um só homem pelo povo» 1.
Os quatro Evangelistas relatam o interrogatório a que os prín-
cipes dos sacerdotes e o Sinédrio submeteram Jesus. Realizou-se
em casa de Caifás 2. Até ali conseguiram chegar duas testemunhas
excecionais: Simão Pedro seguia Jesus com outro discípulo. Esse
discípulo era conhecido do sumo sacerdote e entrou com Jesus no
pátio do sumo sacerdote, enquanto Pedro ficava à porta, do lado
de fora. Então o outro discípulo, conhecido do sumo sacerdote,
falou à porteira e levou Pedro para dentro 3.
LEOBARD HINFELAAR

1. Jo 18, 12-14.
2. Cf. Mt 26, 57.
3. Jo 18, 15-16.
240
Pegadas da nossa fé Jerusalém S. Pedro in Gallicantu 241

A Igreja de
ALFONSO PUERTAS

LEOBARD HINFELAAR
S. Pedro in
Gallicantu está
na ladeira
oriental do
Monte Sião. No
exterior,
protegida por
uma cobertura,
pode ver-se uma
maqueta de
Jerusalém na
época bizantina.

Durante o processo, contrastam as atitudes do Mestre e de S.


Pedro. Perante as acusações injustas, as incriminações infundadas,
os falsos testemunhos, as afrontas... Jesus calou-se. Depois, quando
devia proclamar a verdade, afirmou-a com serenidade. Pedro, ate-
morizado pelos servos, negou que tivesse algo a ver com o Mestre: Em Jerusalém, este episódio situa-se na ladeira oriental do
Não O conheço 4, não sei o que dizes 5, não conheço esse homem 6. Monte Sião, não muito longe do Cenáculo, quer dizer, num bair-
Nesse instante – ainda ele falava – um galo cantou. O Senhor ro residencial da cidade em tempos de Jesus Cristo, que dava para
voltou-Se e fitou os olhos em Pedro. Então Pedro lembrou-se da as torrentes do Cédron e Hinom (ou Geena). Os estudiosos pro-
palavra do Senhor, quando lhe disse: «Antes de o galo cantar, Me põem pelo menos duas localizações diferentes para a casa de Cai-
negarás três vezes». E, saindo para fora, chorou amargamente 7. fás nessa zona, mas os resultados arqueológicos são mais sugesti-
vos a favor de S. Pedro in Gallicantu. Este santuário eleva-se numa
propriedade que pertence aos Agostinianos Assuncionistas desde
4. Lc 22, 58.
finais do século XIX. As escavações realizadas de 1888 a 1909 e de
5. Mt 26, 70.
6. Mc 14, 71. 1992 a 2002 trouxeram à luz os restos de uma mansão da época de
7. Lc 22, 60-62. Herodes, com moinhos, cisternas e dependências rupestres. En-
242
Pegadas da nossa fé Rua em
escalinata

S. Pedro in Gallicantu
em 1912, depois das
primeiras escavações

ILUSTRAÇÕES: J. GIL
Igreja de
Basílica Via Santa Ana Cântaro Mosaico Restos de construções

Oliveiras
do Santo Dolorosa
Sepulcro Getsémani Lugar da Rocha na superfície
Ascensão
Rocha no subsolo

Cédron
Dominus Pater Noster

das
Flevit
Cidadela
Cúpula da Mosaico

nte
da igreja Locais
Al-Aqsa Rocha da época

Mo
Basílica Fossa herodiana
da Dormição Cenáculo
Jerusalém atualmente venerada
S. Pedro in
Ge

na A B
Gallicantu
e

0m 500
(V Cidade Velha
ale
de Hinom)
Muralha 0 ft 1000

controu-se também o umbral de uma porta, em pedra bem lavra-


da, com uma inscrição mostrando o lugar onde se depositavam
0m 10
esmolas para o perdão dos pecados, e duas coleções de medidas e
0 ft 30
pesos que se utilizavam no Templo. Esta casa teria sido venerada
mais tarde pelos cristãos, que construíram uma igreja sobre ela no
Mosaico
século V, da qual se conservam alguns pavimentos em mosaico. O da igreja
Cântaro do século V, que era utilizado
centro da basílica era formado por uma cisterna profunda, que ini- para lavar a cara e as mãos antes de
entrar na igreja. Foi encontrado junto
cialmente devem ter sido banhos rituais judaicos. dum possível acesso lateral à cripta.

É provável que um antigo testemunho do século VI se refira a Fosso


com três
Mosaico

este santuário: «Do Gólgota a Santa Sião são duzentos passos. Esta cruzes
Escadas
Locais da
Nas paredes do fosso época herodiana
é a mãe de todas as igrejas, pois foi fundada por Nosso Senhor Je- foram encontradas
para o banho
ritual judeu
sete cruzes pintadas e a
sus Cristo e pelos Apóstolos. Foi a casa do Evangelista S. Marcos. silhueta de um orante. Fossa
venerada
Desde Santa Sião até à casa de Caifás, que agora é a Igreja de S. Pe- A B

dro, são mais ou menos cinquenta passos» 8.


Anástasis Martyrion
O edifício bizantino sofreu a sorte de muitos outros templos
Santo
da Terra Santa: destruído no século VII pelos persas foi restaurado; Sepulcro
Santa Maria
depois de este segundo santuário ter sido destruído no século XI, os da Probática

Cruzados construíram uma terceira basílica no século XII; também

C A RDO MÁXIMO
foi arrasada, e mais tarde substituída por um pequeno oratório, que
A Nea:
finalmente desapareceu no século XIV. Os vestígios de cada etapa Santa Maria
Mãe de Deus
ficaram sepultados até 1887, quando os religiosos assuncionistas
tomaram conta do terreno. Santa Sião

A Jerusalém
8. Theodosius, De situ Terræ Sanctæ, 7 (CCL 175, 118). cristã na S. Pedro in
época bizantina Gallicantu
244
Pegadas da nossa fé Jerusalém S. Pedro in Gallicantu 245

FOTOS: ALFONSO PUERTAS

Na capela superior, o retábulo representa o interrogatório ao


Senhor. Sobre estas linhas, no oratório intermédio, dedicado a
S. Pedro, representam-se, da esquerda para a direita, as
negações, o pranto amargo e a confirmação do primado.

o Senhor ressuscitado nas margens do Mar da Galileia, quando


o confirmou na sua missão; mais abaixo, na cripta, encontram-
-se várias grutas cujo uso através dos séculos é difícil de precisar,
e a cisterna venerada desde a época bizantina, conhecida como
a fossa profunda.
Esta última revela-se de grande interesse por se tratar da parte
da casa original que atraiu a atenção dos cristãos desde os tempos
mais antigos: o primeiro acesso à cavidade, por uma escada e uma
porta dupla, mostra que serviu para os banhos de purificação ju-
daicos; nalgum momento, continuou a escavação para aumentar a
A igreja atual foi consagrada em 1931, e completamente reno- profundidade e convertê-la numa cisterna, e foi aberto um orifício
vada em 1997. Dispõe de dois níveis e uma cripta: na capela su- circular na abóbada. Os sinais acrescentados pelos fiéis – três cruzes
perior, coberta por uma cúpula decorada com mosaicos e vitrais, gravadas na face interior da abertura, além da silhueta de um oran-
recorda-se o processo de Jesus perante o Sinédrio; no oratório in- te e outras sete cruzes pintadas nas paredes da fossa – mostram que
termédio, onde o solo rochoso começa a aflorar sobre o pavimento, no século V o lugar era considerado como o presídio onde Jesus es-
recordam-se as negações de Pedro, o seu pranto e o encontro com teve até à aurora da Sexta-Feira Santa. Procurando continuar essa
246
Pegadas da nossa fé Jerusalém S. Pedro in Gallicantu 247

ALFONSO PUERTAS ANTON_17 / WIKIMEDIA COMMONS


Junto a estas linhas,

ALFONSO PUERTAS
a cisterna venerada
como a fossa
profunda, onde
Jesus teria esperado
o alvorecer da
Sexta-Feira Santa.
Tem uma porta
dupla, que revela
ter sido usada
anteriormente para
as abluções dos
judeus; na abóbada
há uma abertura,
onde foram
gravadas três cruzes
tradição, os peregrinos atuais meditam aí sobre os padecimentos na época bizantina;
de Cristo, seguindo as palavras do salmista: e nas paredes
encontraram-se os
Lançastes-me na cova mais profunda, restos de várias
nas trevas do abismo. cruzes pintadas.
Pesa sobre mim a vossa ira,
todas as vossas ondas caíram sobre mim.
Afastastes de mim os meus conhecidos,
fizestes-me para eles objeto de horror.
Estou preso e não posso libertar-me,
meus olhos se apagaram de tanto sofrer.
Clamo a Vós, Senhor, todo o dia,
estendo para Vós as minhas mãos 9.
No exterior da igreja podem ver-se outros restos arqueológi-
cos, entre os quais se destaca uma rua escalonada perpendicular que o tinha prendido no Horto das Oliveiras, e que O levou a casa
à ladeira. Unia os bairros nobres, na zona alta, com os popula- do sumo sacerdote.
res, situados ao longo da torrente do Cédron, perto dos pontos de No recinto do santuário, os peregrinos também têm oportuni-
abastecimento de água: a fonte de Giom e a piscina de Siloé. Sem dade de ver uma maqueta em grande escala que representa Jerusa-
dúvida, o caminho existia em tempos do Senhor – embora talvez lém na época bizantina. Reproduz detalhadamente as sete igrejas
não empedrado –, e é muito provável que o percorresse em nume- que foram construídas entre os séculos IV e VI: o Santo Sepulcro,
rosas ocasiões: particularmente, na noite de Quinta-Feira Santa, Santa Sião – que agrupava a Dormição e o Cenáculo –, Santa Maria
primeiro acompanhado pelos Apóstolos, para se dirigir do Cená- da Probática – que hoje coincide mais ou menos com Santa Ana –,
culo para Getsémani, e depois levado à força pelo tropel de gente S. João Baptista – onde esteve o palácio de Herodes e se ergue ago-
ra a Cidadela –, Siloé – sobre a piscina –, Santa Maria – conhecida
9. Sl 88, 7-10. como a Nea, no cardo máximo, também desaparecida – e S. Pedro.
248
Pegadas da nossa fé Jerusalém S. Pedro in Gallicantu 249

Junto à igreja, há
FOTOS: LEOBARD HINFELAAR

ALFONSO PUERTAS
uma rua com degraus
que percorre a
ladeira. Jesus
provavelmente
percorreu este
caminho na noite da
Quinta-Feira Santa.

Durante a sua estadia na Terra Santa, em 1994, o Beato Álvaro zes – sem lhe dirigir sequer uma censura; só com um olhar
del Portillo rezou em S. Pedro in Gallicantu no dia 21 de Março à de Amor.
tarde, na véspera de regressar a Roma. Com esses mesmos olhos olha para nós Jesus, depois
das nossas quedas. Oxalá possamos dizer-Lhe, como Pe-
Saindo para fora, dro, «Senhor, Tu sabes tudo; Tu sabes que eu Te amo!», e
mudemos de vida! 11.
chorou amargamente Quando o galo cantou, o Comentando esta passagem, S. Ambrósio explica: «Todos
Senhor voltou-Se e fitou os olhos em Pedro. Então Pedro lembrou- aqueles para quem Jesus olha, choram. Na primeira vez, Pedro re-
-se da palavra do Senhor, quando lhe disse: «Antes de o galo can- negou e não chorou: era porque o Senhor não tinha olhado para ele.
tar, Me negarás três vezes». E, saindo para fora, chorou amarga- Negou-O uma segunda vez e também não chorou, pois o Senhor
mente 10. Só S. Lucas regista aquele gesto misericordioso de Jesus: ainda não tinha olhado para ele. Porém, quando O negou pela ter-
O Senhor converteu Pedro – que O tinha negado três ve- ceira vez, Jesus cravou nele o seu olhar, e começou a chorar amar-

10. Lc 22, 61-62. 11. S. Josemaria, Sulco, n. 964.


250
Pegadas da nossa fé Jerusalém S. Pedro in Gallicantu 251

guradamente (...). Pedro chorou e com profunda amargura; chorou Para a frente, aconteça o que acontecer! Bem agarrado
para que as suas lágrimas pudessem lavar o seu pecado. Também pelo braço do Senhor, considera que Deus não perde bata-
tu deves chorar a tua culpa com lágrimas se quiseres conseguir o lhas. Se, por qualquer motivo, te afastares d’Ele, reage com
perdão no mesmo momento e instante em que Cristo te olhar. Se a humildade de começar e de recomeçar, de fazer de filho
te acontece cair em algum pecado, Ele, que está como testemunha pródigo todos os dias, e mesmo repetidamente nas vinte e
no mais íntimo do teu ser, olha-te para te fazer recordar e confes- quatro horas do dia, de consertar o teu coração contrito na
sar o teu erro» 12. Confissão, verdadeiro milagre do Amor de Deus. Neste Sa-
Embora o pecado mortal destrua a caridade no coração do ho- cramento maravilhoso, o Senhor limpa a tua alma e inun-
mem e o afaste de Deus 13, a misericórdia do Senhor não nos aban- da-te de alegria e de força para não desanimares na tua
dona, a conversão é sempre possível: «Convido todo o cristão – afir- luta e para voltares de novo sem cansaço a Deus, mesmo
ma o Santo Padre Francisco –, em qualquer lugar e situação em que quando tudo te parecer negro. Além disso, a Mãe de Deus,
se encontre, a renovar hoje mesmo o seu encontro pessoal com Je- que é também nossa Mãe, protege-te com a sua solicitude
sus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar maternal e inspira-te confiança no teu caminhar 15.
por Ele (...). Quando alguém dá um pequeno passo em direção a Os Evangelistas não narram se S. João permaneceu na casa de
Jesus, descobre que Ele já aguardava de braços abertos a sua che- Caifás ou saiu atrás de S. Pedro, nem sequer sabemos onde cada um
gada. Este é o momento para dizer a Jesus Cristo: “Senhor, deixei- se dirigiu depois. Mas a S. João encontramo-lo mais tarde ao pé da
-me enganar, de mil maneiras fugi do vosso amor, mas aqui estou Cruz, junto a Nossa Senhora: Antes, só, não podias... –Agora,
novamente para renovar a minha aliança convosco. Preciso de Vós. recorreste à Senhora, e, com Ela, que fácil! 16. n
Resgatai-me de novo, Senhor; aceitai-me mais uma vez nos vossos
braços redentores”. Como nos faz bem voltar para Ele, quando nos
perdemos! Insisto uma vez mais: Deus nunca se cansa de perdoar,
somos nós que nos cansamos de pedir a sua misericórdia» 14.
Enquanto combatemos – um combate que durará até
à morte – não excluas a possibilidade de que se levantem,
violentos, os inimigos de fora e os de dentro. E, como se o
peso fosse pequeno, às vezes acumular-se-ão na tua mente
os erros cometidos, talvez abundantes. Em nome de Deus
te digo: não desesperes. Quando isso acontecer – não tem
necessariamente de acontecer, nem será o habitual – trans-
forma essa ocasião em motivo para te unires mais ao Se-
nhor, porque Ele, que te escolheu como filho, não te aban-
donará. Permite a prova, para que ames mais e descubras
com mais clareza a Sua contínua proteção, o Seu Amor (...).

12. S. Ambrósio, Expositio Evangelii secundum Lucam, X, 89-90.


13. Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1855. 15. S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 214.
14. Francisco, Exortação apostólica Evangelii gaudium, 24-XI-2013, n. 3. 16. S. Josemaria, Caminho, n. 513.
252 Pegadas
DA NOSSA fé 20 253

Jerusalém
Porta A Via Dolorosa
Nova
Porta de na atualidade
Damasco

Porta de
Herodes
Custódia B
da Terra Santa CR AIRRO
RU IST
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ES ÃO BAI
Patriarcado . FR RRO
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Via Dolorosa
Latino CO
Santo Sepulcro M
XIV Arco do ANO
Patriarcado VIII VII Ecce homo Igreja da
Porta Greco-Ortodoxo III
Condenação
de Jafa IX DO V
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OS R OSA II
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MÉ RO Porta de Santo Estevão
0m 500
Área povoada NIO (ou dos Leões)
Terceira
muralha 0 ft 1000 Muralha da cidade Patriarcado Catedral de
(70 d. C.) Cúpula da
Ortodoxo Santiago Rocha
Arménio
Segunda Fortaleza Basílica BA Muro das
muralha Antónia do Santo JUD IRRO Lamentações Porta Igreja de
Monte Sepulcro Monte EU Dourada Santo Estevão
Calvário do Templo do Templo (tapada) Túmulo de
Santa Maria
Basílica da
Templo o Dormição
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Muralha r
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atual da de Sião Mesquita d


Nea Cenáculo de Al-Aqsa é
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Primeira
muralha Santa Sión Jerusalém
Destruição do 0 km 2
segundo Templo Época cristã de Bizâncio
Copyright © 2008 National Geographic
(70 d. C.) (313-638 d. C.) Courtesy of National Geographic Magazine 0 mi 2

Q ueres acompanhar Jesus de perto, muito de per-


to?... Abre o Santo Evangelho e lê a Paixão do Se-
nhor. Mas só ler, não: viver. A diferença é grande.
Ler é recordar uma coisa que passou; viver é estar presen- Na Sexta-Feira
te num acontecimento que sucede agora mesmo, ser uma Santa, os fiéis
pessoa mais naquelas cenas 1. Ao longo dos séculos, multidões de Jerusalém
de cristãos contemplaram a morte redentora de Jesus na cruz e a – na sua
maioria, árabes
Sua ressurreição: o Mistério Pascal, que está no centro da nossa fé 2. cristãos –
Com o passar do tempo, a meditação daqueles acontecimentos fi-

MARIE-ARMELLE BEAULIEU / CTS


percorrem em
xou-se em algumas devoções, entre as quais se destaca a Via Sacra. procissão a Via
Dolorosa,
levando uma
1. S. Josemaria, Via Sacra, IX estação, ponto 3. cruz de
2. Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 571. madeira.
254
Pegadas da nossa fé Jerusalém Via Dolorosa 255

Como sabemos, este exercício tem por objetivo considerar com todos, sem nenhuma exceção, grandes e pequenos, ricos e pobres,
espírito de compunção e compaixão a última e mais dolorosa par- estão presentes; ninguém deixa de participar, especialmente nes-
te dos sofrimentos do Senhor, acompanhando-O espiritualmente se dia, na vigília até à aurora. Dessa forma acompanha-se o Bispo
no caminho que percorreu, carregando a Cruz, desde o Pretório de desde Getsémani até à porta, e, desde aí, atravessando toda a ci-
Pilatos até ao Calvário, e aí, desde que foi cravado no patíbulo até dade, até à Cruz» 5.
ser depositado no Sepulcro. Segundo outros testemunhos posteriores, parece que se foi de-
A prática da Via Sacra fundamenta-se na veneração pelos San- finindo pouco a pouco o caminho pelo qual Jesus tinha passado
tos Lugares, onde não era necessário imaginar os cenários da Pai- através das ruas de Jerusalém, ao mesmo tempo que também se
xão, já que estavam à vista e eram percorridos fisicamente. Uma determinavam as estações, quer dizer, os lugares onde os fiéis se
lenda piedosa – recolhida em De transitu Mariæ, um apócrifo siría- detinham para contemplar cada um dos episódios da Paixão. Os
co do século V – conta que a Virgem Santíssima caminhava diaria- Cruzados – nos séculos XI e XII – e os Franciscanos – a partir do
mente pelos lugares onde o seu Filho tinha sofrido e derramado o século XIV – contribuíram em grande medida para fixar essas tra-
seu sangue 3. Chegou até nós – através de S. Jerónimo – o testemu- dições. Deste modo, na Cidade Santa, durante o século XVI já se
nho da peregrinação à Palestina que a nobre Santa Paula realizou seguia o mesmo itinerário que se percorre atualmente, conhecido
entre os anos 385 e 386: em Jerusalém, «visitava com grande fer- como Via Dolorosa, com a divisão em catorze estações.
vor e empenho todos os lugares, de tal modo que, não tendo pres- A partir de então, fora de Jerusalém estendeu-se o costume de
sa para ver os outros, não se conseguia arrancá-la dos primeiros. estabelecer a Via Sacra para que os fiéis considerassem essas ce-
Prostrada perante a cruz, adorava o Senhor como se O estivesse a nas, à imitação dos peregrinos que iam pessoalmente à Terra San-
ver cravado nela. Entrou no sepulcro da Anástasis e beijava a pedra ta: difundiu-se primeiro em Espanha – graças ao Beato Álvaro de
que o Anjo daí tinha removido. O próprio lugar em que o Senhor Córdova, dominicano – e, daí, passou à Sardenha, e mais tarde ao
tinha jazido, acariciava-o com a boca, tal a sua fé, como alguém se- resto da Europa. Entre os divulgadores desta devoção, ocupa um
dento que encontrou as águas desejadas. Quantas lágrimas derra- lugar destacado S. Leonardo de Porto Maurício: de 1731 a 1751, no
mou ali, quantos gemidos de dor, testemunhou toda a Jerusalém, decurso de umas missões em Itália, erigiu mais de 570 Vias Sacras;
testemunhou o Senhor a quem orava» 4. e quando Bento XIV quis colocar a do Coliseu, em 27 de Dezem-
Também conhecemos bastantes detalhes de algumas cerimó- bro de 1750, foi ele o pregador durante a cerimônia. Os Romanos
nias litúrgicas que se realizavam em Jerusalém na mesma época, Pontífices também têm fomentado esta prática piedosa conceden-
graças à peregrina Egéria, que visitou a Terra Santa em finais do do indulgências aos que a realizarem.
século IV. Muitas destas cerimónias consistiam na leitura dos rela- A contemplação dos padecimentos do Senhor leva ao arrepen-
tos evangélicos relacionados com cada lugar, na recitação de algum dimento dos próprios pecados, fomentando o desagravo e a repara-
salmo e no canto de hinos. Além disso, ao descrever as cerimónias ção. Quando as cenas se revivem na Via Dolorosa, a proximidade
sagradas de Quinta e Sexta-Feira Santas, narra que os fiéis iam em pode ajudar a que a alma se inflame ainda mais no amor a Deus.
procissão desde o Monte das Oliveiras até ao Calvário: «Vai-se a pé É, certamente, impossível saber se esse itinerário coincide com o
até à cidade, com hinos, e chega-se à porta à hora em que se come- trajeto exato do Senhor, pois o traçado das ruas, em linhas gerais,
ça a distinguir um homem do outro; depois, no interior da cidade, data da reconstrução romana de Jerusalém realizada no tempo de
Adriano, no ano 135. Seria necessária uma investigação arqueoló-
3. Cf. Dictionnaire de spiritualité, II, col. 2577.
4. S. Jerónimo, Epistola CVIII. Epitaphium Sanctæ Paulæ, 9. 5. Itinerarium Egeriæ, XXXVI, 3 (CCL 175, 80).
256
Pegadas da nossa fé Jerusalém Via Dolorosa 257

LEOBARD HINFELAAR

MARIE-ARMELLE BEAULIEU / CTS


Um círculo metálico escuro assinala cada estação. O primeiro encontra-
se no exterior da escola islâmica de El-Omariye. No seu pátio começa a
procissão organizada pelos franciscanos da Custódia da Terra Santa.
Saindo, poucos metros depois, aparece o sinal da segunda estação.
Distingue-se na imagem da página seguinte, no lado direito da rua,
assim como o arco do Ecce Homo, ao fundo.

gica que atingisse o nível da cidade na primeira metade do século


I, e nem sequer assim se resolveriam todas as interrogações. Fora
esta falta de certeza, a Via Dolorosa é a Via Sacra por excelência,
a que os cristãos percorreram durante séculos. Quanto às catorze
estações, a maioria foi tirada diretamente do Evangelho, e outras
chegaram até nós através da tradição piedosa do povo cristão. Va-
mos segui-las pela mão de S. Josemaria, que as meditou com par-
ticular vivacidade.

I estação: Jesus é
MARIE-ARMELLE BEAULIEU / CTS

condenado à morte Todas as sextas-feiras, às três da


tarde, celebra-se em Jerusalém uma procissão que percorre a Via
Dolorosa. Preside-a o Custódio de Terra Santa ou alguém que o
represente, acompanhado por numerosos peregrinos, fiéis residen-
258
Pegadas da nossa fé Jerusalém Via Dolorosa 259

ALFRED DRIESSEN

BENJAMIN E. WOOD / FLICKR


Vistas do interior e da fachada da Igreja da Flagelação,
que se ergue junto da segunda estação.

tes em Jerusalém e frades franciscanos. O ponto de partida é o pá-


tio da escola islâmica de El-Omariye, situada no ângulo noroeste II estação:
da Esplanada do Templo. Uma vez que, no século I, se elevava ali Jesus toma a Sua Cruz Saindo da escola e atraves-
a Fortaleza Antónia, que acolhia a guarnição romana aquartelada
na cidade, identifica-se tradicionalmente com o pretório onde se sando a Via Dolorosa, chega- se ao Convento franciscano da Fla-
realizou o julgamento de Jesus ante o governador Pôncio Pilatos. gelação. Trata-se de um conjunto construído em torno a um amplo
claustro, com o Studium Biblicum Franciscanum à frente e duas
Está para se pronunciar a sentença. Pilatos troça: Ecce igrejas aos lados: à direita, a da Flagelação, reconstruída em 1927
rex vester (Jo 19, 14)! Os pontífices respondem enfurecidos: sobre as ruínas de outra do século XII; e à esquerda, a da Conde-
não temos outro rei, senão César (Jo 19, 15). nação, levantada em 1903. No muro exterior desta igreja, na rua,
Senhor, onde estão os Teus amigos? Onde estão os Teus está assinalada a segunda estação: Levando a cruz, Jesus saiu para
súbditos? Deixaram-Te. É uma debandada que dura há o chamado Lugar do Calvário, que em hebraico se diz Gólgota 7.
vinte séculos... Fugimos todos da Cruz, da Tua Santa Cruz. Preparam um cortejo, uma longa procissão, como se se
Sangue, quebranto, solidão e uma insaciável fome de tratasse de uma festa. Os juízes querem saborear a sua vi-
almas... são o cortejo da Tua realeza 6. tória, com um suplício lento e desapiedado.

6. S. Josemaria, Via Sacra, I estação, ponto 4. 7. Jo 19, 17.


260
Pegadas da nossa fé Jerusalém Via Dolorosa 261

Jesus não encontrará a morte num abrir e fechar de O arco do Ecce Homo

BENJAMIN E. WOOD / FLICKR


olhos... É-Lhe dado tempo para que a dor e o amor conti- atravessa a Via
Dolorosa e é, na
nuem a identificar-se com a Vontade amabilíssima do Pai 8. realidade, o vão central
Um pouco mais adiante, a Via Dolorosa atravessa um arco de de um arco de triunfo.
meio ponto com um corredor construído por cima. É conhecido A parte norte desse arco
faz as vezes de retábulo
popularmente como o arco do Ecce Homo, e recorda o lugar onde na Igreja do convento
Pilatos apresentou Jesus ao povo depois da flagelação e da coroação do Ecce Homo.
de espinhos. Na realidade, é o vão central de um arco de triunfo
do qual se conserva também a porta do lado norte no interior do
Convento das Damas de Sião: faz as vezes de retábulo da Basílica
do Ecce Homo, terminada no século XIX. Do mesmo modo que esse
elemento se considerava pertencente à Fortaleza Antónia, vários
lajedos de pedra na mesma zona costumavam identificar-se com o
lugar chamado «Litóstrotos» 9: sobretudo, são visíveis na Igreja da
Condenação e no Convento das Damas de Sião. Com efeito, tan-
to o arco como os pavimentos são de origem romana, mas haveria
que datá-los algo mais tarde, na época de Adriano.
Quando se percorre a Via Dolorosa, ao passar por este ponto
vem à mente quanto Cristo tinha sofrido já antes de carregar com
a cruz: Pilatos, desejando contentar o povo, solta-lhes Bar-
rabás e manda açoitar Jesus.
Atado à coluna. Cheio de chagas.
Ouvem-se os golpes dos azorragues na Sua carne ras-
gada, na Sua carne sem mancha, que padece pela tua car-
ne pecadora. – Mais golpes. Mais sanha. Mais ainda... É o
cúmulo da crueldade humana.
Por fim, rendidos, lá desprendem Jesus. – E o corpo de
Cristo rende-Se também à dor e cai, como um verme, trun-
cado e meio morto 10.
Depois, levam o meu Senhor para o pátio do pretório,
e ali convocam toda a coorte (Mc 15, 16). – A soldadesca
brutal desnudou a Sua carne puríssima. – Com um farra-

ISRAELI MINISTRY OF TOURISM


po de púrpura, velho e sujo, cobrem Jesus.

8. S. Josemaria, Via Sacra, II estação, ponto 2.


9. Jo 19, 13.
10. S. Josemaria, Santo Rosário, II mistério doloroso.
262
Pegadas da nossa fé Jerusalém Via Dolorosa 263

Na terceira estação – Na Sua mão direita, uma cana, por cetro...


ALFRED DRIESSEN

há uma capela do
Patriarcado A coroa de espinhos, cravada às martelada, faz d´Ele
Arménio católico. um Rei de comédia... Ave Rex judæorum! – Ave, Rei dos
A cena que se judeus! (Mc 15, 18). E, à força de pancadas, ferem-Lhe a
contempla está cabeça. E esbofeteiam-nO... e cospem-Lhe em cima.
representada tanto
no dintel como no Coroado de espinhos e vestido com andrajos de púrpu-
retábulo. No lugar ra, Jesus é mostrado ao povo judeu: Ecce homo! – Aí ten-
da quarta estação des o homem! 11.
também existe uma
igreja. O coração estremece, ao contemplar a Santíssima Hu-
manidade do Senhor convertida numa chaga (...). Olha
para Jesus. Cada rasgão é uma censura; cada azorrague,
um motivo de dor pelas tuas ofensas e as minhas 12.

III estação: Jesus cai


pela primeira vez A Via Dolorosa continua em
ligeira descida até se cruzar com uma rua que vem da porta de
Damasco; chama-se El-Wad – o vale – e segue o antigo leito da
torrente do Tiropeon. Voltando à esquerda, quase na esquina, en-
contra-se uma pequena capela, pertencente ao Patriarcado Armé-
nio católico, com a terceira estação.
O corpo extenuado de Jesus já cambaleia sob a Cruz
enorme. Do Seu Coração amorosíssimo mal chega um alen-
to de vida aos Seus membros chagados.
À direita e à esquerda, o Senhor vê essa multidão que
anda como ovelhas sem pastor. Poderia chamá-los um a
um, pelos seus nomes, pelos nossos nomes. Aí estão os que
se alimentaram na multiplicação dos pães e dos peixes, os
que foram curados das suas doenças, os que doutrinou jun-
to do lago e na montanha e nos pórticos do Templo.
Uma dor aguda penetra na alma de Jesus e o Senhor
desfalece extenuado.
J. PANIELLO

11. Ibid., III mistério doloroso.


12. S. Josemaria, Via Sacra, I estação, ponto 5.
264
Pegadas da nossa fé Jerusalém Via Dolorosa 265

Mal Jesus se levantou da Sua primeira queda, encontra


J. PANIELLO

Sua Mãe Santíssima, junto do caminho por onde Ele passa.


Com imenso amor Maria olha para Jesus, e Jesus olha
para a Sua Mãe; os Seus olhares encontram-se, e cada
coração verte no outro a Sua própria dor (...). Na escu-
ra solidão da Paixão, Nossa Senhora oferece ao seu Filho
um bálsamo de ternura, de união, de fidelidade; um sim à
Vontade divina.
Pela mão de Maria, tu e eu queremos também consolar
Jesus, aceitando sempre e em tudo a Vontade do Seu Pai,
do nosso Pai 14.

V estação: Simão Cireneu ajuda


Jesus a levar a Cruz Em seguida deixa-se a rua de
El-Wad e volta-se à direita, para seguir de novo a Via Dolorosa.
Este troço é muito característico da Cidade Velha: estreito e íngre-
me, com degraus de poucos em poucos passos e numerosos arcos
Capela da quinta estação, pertencente aos franciscanos.
que cruzam a rua por cima, juntando os edifícios dos dois lados.
Logo no início, à esquerda, há uma capela que já no século XIII era
dos franciscanos, onde se recorda a quinta estação: Requisitaram,
Tu e eu não podemos dizer nada: agora já sabemos por- para Lhe levar a cruz, um homem que passava, vindo do campo,
que pesa tanto a Cruz de Jesus. E choramos as nossas misé- Simão de Cirene, pai de Alexandre e Rufo 15.
rias e, também, a ingratidão tremenda do coração huma-
No conjunto da Paixão, é bem pouco o que significa esta
no. Do fundo da alma nasce um ato de profunda contrição,
ajuda. Mas a Jesus basta-Lhe um sorriso, uma palavra, um
que nos arranca da prostração do pecado. Jesus caiu para
gesto, um pouco de amor, para derramar copiosamente a
que nos levantemos: uma vez e sempre 13.
Sua graça sobre a alma do amigo (...).
Às vezes, a Cruz aparece sem que a procuremos: é Cris-
IV estação: Jesus encontra to que pergunta por nós. E se, porventura, ante essa Cruz
Sua Mãe Santíssima Avançando poucos metros, chega- inesperada, e talvez por isso mais obscura, o coração mos-
trar repugnância... não lhe dês consolações. E, se as pedir,
-se à quarta estação, onde há uma igreja, também dos arménios. cheio de uma nobre compaixão, diz-lhe devagar, em con-
Nossa Senhora não abandona o Seu Filho durante a Paixão; de fidência: coração, coração na Cruz, coração na Cruz! 16.
facto, vê-La-emos mais adiante no Gólgota.
14. Ibid., IV estação.
15. Mc 15, 21.
13. Ibid., III estação. 16. S. Josemaria, Via Sacra, V estação.
266
Pegadas da nossa fé Jerusalém Via Dolorosa 267

LEOBARD HINFELAAR

ALFRED DRIESSEN
A sexta estação está assinalada num fragmento de coluna encravado
no muro, junto à porta da capela que recorda o gesto da Verónica.
Retábulo da quinta estação.

esse suor e esse sangue que mancham e deformam as Suas


VI estação: Uma piedosa mulher feições, a nossa limpeza.
enxuga a face de Jesus Pouco sabemos desta mulher. Senhor, que eu me decida a arrancar, mediante a peni-
Uma tradição baseada em textos apócrifos identifica-a com a he- tência, a triste máscara que forjei com as minhas misérias...
morroíssa de Cafarnaum, chamada Berenice; ao traduzir-se o seu Então, só então, pelo caminho da contemplação e da expia-
nome para latim, converteu-se em Verónica. Na Idade Media situa- ção, a minha vida irá copiando fielmente os traços da Tua
-se a sua casa aqui, perto do ponto médio da rua, onde hoje exis- vida. Ir-nos-emos parecendo cada vez mais conTigo. Sere-
te uma pequena capela com entrada direta desde a Via e per cima mos outros Cristos, o próprio Cristo, ipse Christus 17.
uma igreja greco-católica.
Uma mulher, de nome Verónica, abre caminho entre a VII estação: Jesus cai
multidão, levando um pano branco dobrado, com o qual pela segunda vez
limpa piedosamente o rosto de Jesus. O Senhor deixa gra- No fim da subida, a Via Dolorosa
vada a Sua Santa Face, nas três partes desse véu. desemboca no Khan ez-Zait – o mercado do azeite –, o animado e
O rosto bem-amado de Jesus, que tinha sorrido às crian- concorrido mercado que vem desde a Porta de Damasco. Delimi-
ças e se transfigurou de glória no Tabor, está agora como
que oculto pela dor. Mas esta dor é a nossa purificação; 17. Ibid., VI estação.
268
Pegadas da nossa fé Jerusalém Via Dolorosa 269

Sob estas linhas, a capela da séptima

J. PANIELLO
estação, que também é propriedade da VIII estação: Jesus
Custódia da Terra Santa. À direita, no
lugar da oitava estação há uma pedra consola as filhas de Jerusalém A poucos metros
redonda, de pequenas dimensões, com
uma cruz e uma inscrição lavradas:
do lugar da segunda queda, seguindo pela rua de S. Francisco, que
Jesus Cristo vence. sobe em direção a oeste e prolonga a Via Dolorosa, chega-se à oi-
tava estação.
Entre as pessoas que contemplam a passagem do Senhor,
há umas tantas mulheres que não podem conter a sua com-
paixão e desfazem-se em lágrimas (...). Mas o Senhor quer
encaminhar esse pranto para um motivo mais sobrenatu-
ral, e convida-as a chorar pelos pecados, que são a causa
da Paixão e que atrairão o rigor da justiça divina:
– Filhas de Jerusalém, não choreis por Mim; chorai por
vós mesmas e pelos vossos filhos... Pois, se tratam assim a ma-
deira verde, o que acontecerá ao lenho seco (Lc 23, 28.31).
Os teus pecados, os meus, os de todos os homens põem-se
de pé. Todo o mal que fizemos e o bem que deixámos de fa-
zer. O panorama desolador dos inumeráveis delitos e infâ-
mias sem conta, que teríamos cometido, se Ele, Jesus, não
nos tivesse confortado com a luz do Seu olhar amabilíssimo.
ISRAELI MINISTRY OF TOURISM

Que pouco é uma vida para reparar! 19.


ALFRED DRIESSEN

IX estação: Jesus cai


pela terceira vez Para ir à nona estação, talvez
ta os bairros muçulmano e cristão, e coincide com o antigo Cardo antigamente houvesse uma passagem mais direta, mas hoje em dia
Máximo, a rua principal da Jerusalém romana e bizantina. A sé- é necessário voltar atrás até ao mercado, seguir alguns metros na di-
tima estação encontra-se no cruzamento, onde há uma capelinha reção sul, e subir uma escadaria que se abre no lado direito da Via.
propriedade dos franciscanos. No final de uma viela, uma coluna assinala a terceira queda. Está
colocada numa esquina, entre um acesso ao terraço do convento
Cai Jesus sob o peso do madeiro... Nós, pela atração etíope e a porta da Igreja copta de Santo António.
das coisas da terra.
O Senhor cai pela terceira vez, na ladeira do Calvário,
Prefere vir-se abaixo a largar a Cruz. Assim sana Cris- quando faltam apenas quarenta ou cinquenta passos para
to o desamor que nos derruba 18.

18. Ibid., VII estação, ponto 1. 19. Ibid., VIII estação.


270
Pegadas da nossa fé Jerusalém Via Dolorosa 271

chegar ao cume. Jesus não se aguenta em pé: faltam-Lhe A nona estação está

LEOBARD HINFELAAR
as forças e jaz, esgotado, por terra 20. assinalada ao fundo de uma
azinhaga, entre a Igreja copta
Agora compreendes quanto fizeste sofrer Jesus, e enches- de Santo António e a entrada
-te de dor: como lhe pedes perdão deveras e choras pelas no terraço do Convento etíope.
tuas traições passadas! Não te cabem no peito as ânsias Em baixo, podem ver-se as
duas cúpulas do Santo
de reparar! Sepulcro, além de outra,
Bem. Mas não esqueças que o espírito de penitência está pequena, em primeiro plano,
principalmente em cumprir, custe o que custar, o dever de que pertence à Capela de
Santa Helena, situada na
cada instante 21. cripta da basílica.
O lugar onde se recorda a última queda do Senhor fica a poucos
metros da Basílica do Santo Sepulcro. De facto, as últimas cinco
estações da Via Dolorosa encontram-se no seu interior. Para lá ir, MARIE-ARMELLE BEAULIEU / CTS

uma opção é voltar ao mercado e percorrer algumas ruas até chegar


à praceta que se abre em frente à entrada, na fachada sul; é o itine-
rário habitual da procissão das sextas-feiras. A outra opção, mais
curta, consiste em cruzar o terraço do convento etíope – que, por
sua vez, é a cobertura de uma das capelas inferiores da basílica –,
e descer atravessando o edifício, que tem uma saída direta para a
praça, junto ao lugar do Calvário. Visitá-lo-emos para meditar as
seguintes cenas da Paixão no próximo artigo. n

20. Ibid., IX estação.


21. Ibid., IX estação, ponto 5.
272 Pegadas
DA NOSSA fé 21 273

BERTHOLD WERNER / WIKIMEDIA COMMONS

As cúpulas da
Basílica do Santo
Sepulcro destacam-se

A
sobre os edifícios da
Cidade Velha. nona estação da Via Dolorosa tinha-
-nos deixado muito perto do Calvário.
Até esse momento, tínhamos acompa-
nhado Jesus com a Cruz às costas por um iti-
nerário que nos foi transmitido pela piedade
secular do povo cristão. Agora encontramo-
-nos perante o lugar central da nossa fé, que
poderíamos considerar o mais sagrado da Ter-
ra Santa: o sítio onde Jesus Cristo «foi cruci-
ficado, morto e sepultado», e «ressuscitou ao
terceiro dia» 1.
Poucas dezenas de metros separam o Cal-
vário do túmulo do Senhor. Toda a zona está
dentro da Basílica do Santo Sepulcro, tam-
bém chamada da Ressurreição pelos cristãos
orientais. Aos olhos dos peregrinos, apresen-
ta-se com uma arquitetura singular, que pode
considerar-se até desordenada ou caótica. No
exterior, está formada por vários volumes so-
brepostos e acrescentados, entre os quais se
destaca um campanário truncado; sobre essa
aglomeração de edificações e terraços, levan-
tam-se duas cúpulas, uma maior do que a ou-

Jerusalém
tra, que caracterizam o perfil de Jerusalém. O
interior está configurado como um conjunto
complexo de altares e capelas, grandes e pe-
quenas, fechadas por muros ou abertas, dis-
postas em diferentes níveis com comunicação

O Calvário através de escadas.


Esta aparência surpreendente não é mais do que o resultado da
sua atribulada história: talvez nenhum outro lugar do mundo te-

1. Símbolo dos Apóstolos.


274
Pegadas da nossa fé Jerusalém O Calvário 275

nha passado por tantas edificações, demolições, reconstruções, in- A crucifixão romana
tinha muitas variantes
cêndios, terramotos, restaurações... A tudo isto há que acrescentar
que a propriedade da basílica é partilhada entre a Igreja Católica
– representada pelos franciscanos, que guardam os Santos Lugares
desde 1342 – e as Igrejas Ortodoxas grega, arménia, copta, síria e Assento O apoio
etíope, que gozam de diferentes direitos. (sedile)
incómodo
dos pés
prolongava
e doloroso a agonia
por asfixia

O lugar do Calvário
A única vítima de crucifixão Os cravos de ferro A tradição da Igreja Jesus é representado
conhecida, cujos restos foram eram caros, pelo que diz que S. Pedro foi tradicionalmente com
Os Evangelhos transmitiram-nos encontrados em Israel, tinha um
prego cravado no osso calcâneo.
os romanos utilizavam
quase sempre cordas.
crucificado em Roma,
em posição invertida.
as mãos e os pés
pregados na Cruz.
que levaram Jesus e conduziram-nO ao lugar do Gólgota, que quer
dizer, lugar do Calvário 2. Ali O crucificaram, e com Ele mais dois: ILUSTRAÇÃO: COURTESY OF NATIONAL GEOGRAPHIC MAGAZINE. FOTO: DEREK WINTERBURN / FLICKR

um de cada lado e Jesus no meio 3. Esse local era perto da cidade 4;


portanto, fora do recinto das muralhas. No local em que Jesus ti-
nha sido crucificado, havia um jardim e, no jardim, um sepulcro
novo, no qual ainda ninguém fora sepultado 5. Quando Jesus mor-
reu, por causa da Preparação dos judeus, porque o sepulcro ficava
perto, depositaram Jesus 6.
Pesquisas arqueológicas encontraram outros túmulos da mes-
ma época nas proximidades do Calvário, aos quais se pode aceder
pela basílica. Este dado confirma que então toda aquela zona se
encontrava fora de Jerusalém, pois a lei judaica proibia os enterra-
mentos dentro das suas muralhas. Alguns estudiosos também iden-
tificaram a zona como uma antiga pedreira abandonada, da qual o
Gólgota seria o ponto mais alto: isto estaria de acordo com vários
testemunhos primitivos, que descrevem um terreno rochoso com
numerosos fragmentos de pedra. Em resumo, embora hoje o Santo
Sepulcro ocupe praticamente o centro da Cidade Velha, devemos Do pátio lajeado em frente da basílica, chamam atenção o
imaginar o lugar da crucifixão nos arredores, sobre um penhasco campanário truncado; as portas, uma aberta e outra tapada;
que se elevava a vários metros do solo, entre outros penedos me- e a capela adossada à fachada, chamada dos Francos.
nores, hortos fechados com vedações e sepulcros, e tendo à vista
as muralhas e um caminho transitado. Os cristãos de Jerusalém conservaram a memória do local, de
forma que não se perdeu, apesar das dificuldades. No ano 135, após
ter sufocado a segunda revolta dos judeus contra Roma, o impera-
2. Mc 15, 22. Cf. Mt 27, 33; Lc 23, 33; e Jo 19, 17. dor Adriano ordenou que a cidade fosse arrasada e construiu uma
3. Jo 19, 18.
4. Jo 19, 20.
nova em cima: a Aelia Capitolina. A área do Calvário e o Santo
5. Jo 19, 41. Sepulcro, incluída na nova superfície urbana, foi coberta com um
6. Jo 19, 42. aterro e foi ali levantado um templo pagão. S. Jerónimo relata, no
276
Pegadas da nossa fé Jerusalém O Calvário 277

ano 395, recolhendo uma tradição anterior: «Desde os tempos de


Terceira
muralha
(70 d. C.)
Adriano até ao império de Constantino, por cerca de cento e oiten-
Segunda Betesda Templo ta anos, no lugar da ressurreição prestava-se culto a uma estátua de
Fortaleza
muralha
Antónia
Piscina de Vénus
e Júpiter Júpiter e, na rocha da cruz, a uma imagem de Vénus de mármore,

Rua ocidenta
de Israel
Calvário
colocada pelos gentios. Os autores da perseguição pensavam, sem

Cardo
Getsémani Getsémani
Va

Templo Templo
le

de Júpiter
Monte das
dúvida, que, se contaminassem os lugares sagrados por meio de
do Tiropeon

l
Muralha Oliveiras an o Acampamento
D ec um

dro
da X Legião
atual da
Cidade
Velha
Cé AELIA
CAPITOLINA ídolos, nos iam tirar a fé na ressurreição e na cruz» 7.

R ua o rienta
Fonte de
A mesma construção que ocultou o Gólgota à veneração cristã

Ca rdo
Giom Monte
Cenáculo Área povoada Sião Cenáculo
contribuiu para a sua preservação até ao século IV. No ano 325, o
Ge

Piscina Muralha da cidade


en

l
(V de Siloé
a

Bispo de Jerusalém Macário pediu e obteve autorização de Cons-


ale 0m 500
de Hinom) Primeira
muralha 0 ft 1000
tantino para derrubar os templos pagãos levantados nos Santos
Destruição do segundo A nova cidade de Adriano Lugares. Uma vez que foram descobertos o Sepulcro de Jesus e o
Templo (70 d. C.) (135 d. C.)
Calvário, foi projetada uma magnífica obra: «Convém, portanto
– escreveu o imperador a Macário – que a tua prudência disponha
Basílica Basílica
e preveja tudo o for necessário, de modo que não só se realize uma
do Santo
Sepulcro
do Santo
Sepulcro Haram al-Sharif basílica melhor que qualquer outra, mas que também o resto seja
Getsémani Getsémani tal que todos os monumentos mais belos de todas as cidades sejam
Monte Cúpula da Rocha
D ec um an
o
do Templo
Mesquita superados por este edifício» 8.
de Al-Aqsa
Ca rd o M áxi m

Nea
Graças às fontes documentais e às escavações arqueológicas –
C a r d o o rient

Palácios
dos califas
Monte realizadas sobretudo no século XX –, sabemos que o complexo ti-
Sião
o
Cenáculo
nha três partes, dispostas de oeste a leste: um mausoléu circular
al

Santa Sião
com o túmulo no centro, chamado Anástasis – ressurreição –; um
pátio quadrangular com pórticos em três dos seus quatro lados, a
Época cristã de Bizâncio Primeira época islâmica céu aberto, onde estava a rocha do Calvário; e uma basílica para
(313-638 d. C.) (638-1099 d. C.) celebrar a Eucaristia, com cinco naves e átrio, conhecida como
Martyrion – testemunho. A igreja foi dedicada no ano 336. Des-
Igreja de
se antigo esplendor constantiniano resta muito pouco: devastado
Basílica Basílica
do Santo
Sepulcro
do Santo
Sepulcro
Via
Dolorosa
Santa Ana
Túmulo de Santa Maria
pelos persas em 614 e restaurado pelo monge Modesto, o comple-
Getsémani
Basílica
da Agonia xo sofreu terramotos e incêndios até que finalmente foi destruí-
Templum Domini Cúpula Monte das
da Rocha Oliveiras do em 1009 por ordem do sultão El-Hakim; a forma atual deve-
Cidadela
Ordem dos
Cavaleiros Cidadela
Mesquita
n de Al-Aqsa -se ao restauro do imperador bizantino Constantino Monómaco
Templários
– no século XI –, à obra dos Cruzados – no século XII – e a outras
ro
Céd

Monte
Sião Basílica
Cenáculo
Basílica
transformações posteriores.
Ge

da Dormição n a da Dormição
e

(V
ale
de Hinom)
ILUSTRAÇÃO: J. GIL

Período dos Cruzados A Cidade Velha 7. S. Jerónimo, Epistola LVIII. Ad Paulinum presbyterum, 3.
(1099-1187 d. C.) atualmente 8. Eusébio de Cesareia, De vita Constantini, 3, 31.
O Gólgota no século I Planta da igreja
na atualidade

Jesus foi crucificado fora de Jerusalém, num local


chamado Gólgota, que significa “lugar da Caveira”. Pedreira
O seu corpo foi sepultado num túmulo próximo. A Igreja do
Os arqueólogos encontraram provas de que a zona Santo Sepulcro
na atualidade
era uma antiga pedreira abandonada, convertida
em necrópole judia. Gólgota

Edícula

Restauro na
Segundo os peritos, este desenho publicado pela época dos reinos dos
National Geographic Magazine é a representação da Cruzados (1114-1167)
zona do Calvário e do túmulo de Jesus que mais concorda
com as descobertas arqueológicas feitas até hoje.

Pedreira

Túmulo escavado
na rocha onde foi
colocado o corpo
do Senhor

O conjunto
Gólgota/Calvário constantiniano, que
foi dedicado no ano 336

Nível térreo do
túmulo original

AMPLIAÇÃO

A transformação
ordenada por Adriano
no ano 135

Copyright © 2017 National Geographic


Courtesy of National Geographic Magazine O Gólgota no século I
A transformação ordenada
por Adriano no ano 135 Planta da igreja
na atualidade
No ano 135, reprimida a segunda rebelião dos judeus
contra Roma, o emperador Adriano ordenou que a cidade A Igreja do
fosse arrasada e, sobre ela, construiu uma nova cidade: Templo Santo Sepulcro
de Adriano na atualidade
Aelia Capitolina. A área do Calvário e do túmulo, incluídas
na nova superfície urbana, foi coberta com um aterro,
Gólgota
onde ergueram um templo pagão.
Edícula

Restauro na
época dos reinos dos
Cruzados (1114-1167)
As relíquias da Paixão
ficaram ocultas numa
antiga cisterna e aí as
encontrou Santa Helena,
no ano 327.

Túmulo

O conjunto
constantiniano, que
foi dedicado no ano 336
Calvário

Nível térreo do
túmulo original

O terreno em volta do Calvário,


incluindo o túmulo de Jesus, A transformação
foi aterrado e, sobre ele, foi ordenada por Adriano
construído um templo pagão. no ano 135

Copyright © 2017 National Geographic


Courtesy of National Geographic Magazine O Gólgota no século I
O conjunto constantiniano,
que foi dedicado no ano 336 Planta da igreja
na atualidade
No ano 325, Macário, Bispo de Jerusalém pediu e
conseguiu licença de Constantino para derrubar A Igreja do
Igreja de
os templos pagãos erguidos nos Santos Lugares. Constantino Santo Sepulcro
na atualidade
Uma vez descobertos os locais do Sepulcro de Jesus
e do Calvário, foi projetada uma magnífica obra.
Gólgota

Edícula

Mausoléu
da Anástasis
Restauro na
época dos reinos dos
Cruzados (1114-1167)

Primeira
edícula Pórtico triplo
O conjunto
constantiniano, que
foi dedicado no ano 336
Martyrion

Nível térreo do Átrio


Rocha do oriental
túmulo original Cripta
Calvário

Capela da A transformação
Invenção ordenada por Adriano
da Cruz no ano 135

Copyright © 2017 National Geographic


Courtesy of National Geographic Magazine O Gólgota no século I
Restauro na época dos reinos
dos Cruzados (1114-1167) Planta da igreja
na atualidade
O Santo Sepulcro, danificado pelos persas em 614 e
restaurado pelo monge Modesto, sofreu terramotos Igreja dos A Igreja do
e incêndios até que finalmente foi destruído por ordem Cruzados Santo Sepulcro
na atualidade
do sultão El-Hakim, em 1009; a forma atual deve-se
principalmente ao restauro bizantino do século XI
Gólgota
e à obra dos Cruzados no século XII.
Edícula
Anástasis

Restauro na
época dos reinos dos
Cruzados (1114-1167)

Edícula
do Sepulcro Coro
O conjunto
Claustro constantiniano, que
Rocha foi dedicado no ano 336
Capela de
do Calvário Santa Helena
Nova
entrada

Capela da A transformação
Invenção ordenada por Adriano
da Cruz no ano 135

Copyright © 2017 National Geographic


Courtesy of National Geographic Magazine O Gólgota no século I
A Basílica do Santo Sepulcro na atualidade
Planta da igreja
A Basílica do Santo Sepulcro, também chamada da Ressurreição na atualidade
pelos cristãos orientais, apresenta-se hoje com uma arquitetura
singular, resultado da sua atribulada história: talvez nenhum
A Igreja do
outro lugar no mundo tenha sofrido tantas edificações, demolições, Santo Sepulcro
reconstruções, incêndios, terramotos, restauros... na atualidade

Gólgota

Edícula

Anástasis

Restauro na
época dos reinos dos
Cruzados (1114-1167)

Pátio do
convento etíope

Edícula do
Sepulcro Katholikon
O conjunto
constantiniano, que
foi dedicado no ano 336
Rocha Capela de
do Calvário Santa Helena
Entrada

Capela da A transformação
Invenção ordenada por Adriano
da Cruz no ano 135

Copyright © 2017 National Geographic


Courtesy of National Geographic Magazine O Gólgota no século I
288
Pegadas da nossa fé Jerusalém O Calvário 289

STANISLAO LEE / CTS

MARIE-ARMELLE BEAULIEU / CTS


Entrando na basílica, à direita da porta, há uma
escada muito íngreme que conduz ao Calvário.
A décima estação da Via Dolorosa costuma contemplar-se
quando se começa a subir o Gólgota, uns metros antes da Capela
Nas próximas páginas acabaremos o caminho da Via Dolorosa da Crucifixão, onde se encontra a décima primeira estação.
que deixamos em suspenso no artigo sobre a Via Sacra. Tínhamos
começado, pela mão de S. Josemaria, com espirito contemplati-
vo: Ao fazer meditação, a Paixão de Cristo sai do quadro
tico que diminui um pouco a dor da crucifixão. Mas Jesus,
frio da história ou das considerações piedosas, para se nos tendo provado para agradecer esse piedoso obséquio, não
apresentar diante dos olhos, terrível, angustiante, cruel, quis beber (cf. Mt 27, 34). Entrega-se à morte com a plena
sangrenta... Cheia de Amor! 9. liberdade do Amor.
Depois, os soldados despojam Cristo das Suas vestes (...)
e dividem-nas em quatro partes. Mas a túnica é sem costu-
X estação: Jesus é despojado ra, pelo que dizem:
das Suas vestes Logo ao entrar no Santo Sepulcro, à
— Não a rasguemos; deitemos antes sortes para ver de
direita, duas escadas de pedra muito íngremes conduzem às cape-
quem será (Jo 19, 24) (...).
las do Gólgota, o lugar do suplício. Encontram-se a cerca de cinco É o espólio, o despojo, a pobreza mais absoluta. Nada
metros de altura acima do nível da basílica. Uma vez em cima, os ficou ao Senhor a não ser um madeiro.
peregrinos costumam contemplar a décima estação. Para chegar a Deus, Cristo é o caminho; mas Cristo está
Ao chegar o Senhor ao Calvário, dão-Lhe de beber um na Cruz, e, para subir à Cruz, é preciso ter o coração livre,
pouco de vinho misturado com fel, uma espécie de narcó- desprendido das coisas da terra 10.

9. S. Josemaria, Sulco, n. 993. 10. S. Josemaria, Via Sacra, X estação.


Capela da
Aparição

Deambulatório
Altar de Maria Madalena Capela de Capela dedicada a Vartan,
S. Longino que viveu no século V e
A torre sineira foi construída no Capela da é venerado como santo
século XII. Após o derrube sofrido Divisão das pelos cristãos arménios.
no século XVI e as sucessivas Vestes
XIV
modificações executadas, a sua
altura ficou reduzida à metade Cúpula da Rotunda Katholikon Capela de
da do projeto original. ou Anástasis Túmulos do Santa Helena
Anástasis
século I

XII
Calvário
XIII

X XI
Capela da
Memória Área Invenção da
das Três sob o Santa Cruz
Calvário
Cúpula do Marias Acesso Capela
Edícula Katholikon desde o de Adão
do Santo convento
Sepulcro etíope
Praça 0m 10

XIV
0 ft 30

Acesso
desde as ruas A Igreja do
de Jerusalém Santo Sepulcro
na atualidade

Iconóstase

Pedra
da Unção Via Dolorosa
Altar do
A nona estação, que recorda a última queda
Katholikon
do Senhor, está situada a cerca de trinta
metros do Calvário. As últimas cinco estações
estão no interior da Igreja do Santo Sepulcro.
IX

X XII

XIII
Entrada
XI

A porta da direita foi entaipada


no século XII, quando os Cruzados
foram derrotados por Saladino. Pátio do
convento
A capela dos Francos permitia o acesso etíope
direto ao Calvário, facilitando aos
peregrinos medievais lucrar a indulgência Capela do
mesmo que a basílica estivesse encerrada. Calvário
Capela da Capela dos
Crucifixão Impropérios

Lugar onde foi


depositado o corpo
de Jesus

Capela do Anjo
A edícula atual, realizada em
1810 pelos cristãos ortodoxos
gregos, foi consolidada e Capela de
Capela
restaurada, de acordo com Santa Helena
da Igreja
os católicos e arménios,
Copta
nos anos 2016 e 2017.
0m 5
Câmara
funerária 0 ft 10 Capela da
Invenção da
Santa Cruz
292
Pegadas da nossa fé Jerusalém O Calvário 293

ALFRED DRIESSEN LEOBARD HINFELAAR MARIE-ARMELLE BEAULIEU / CTS

À esquerda da Capela da Crucifixão encontra-se a do


Calvário, que corresponde à décima segunda estação.
Sob o altar, um círculo de prata marca o sítio onde se
levantou a Cruz. E a rocha é também visível aos lados.

XI estação: Jesus é
pregado na Cruz Poucos passos separam a décima
da décima primeira estação, assinalada com um altar. A cena da
crucifixão está representada em cima, num mosaico. A capela per-
tence aos franciscanos da Custódia da Terra Santa.
Já pregaram Jesus ao madeiro. Os verdugos executa-
ram desapiedadamente a sentença. O Senhor tudo deixou,
com mansidão infinita.
Não era necessário tanto tormento (...). Mas quis so-
frer tudo isso por ti e por mim. E nós, não vamos saber
corresponder?
grega. Ergue-se sobre a rocha venerada, visível aos lados do altar
É muito possível que, nalguma altura, a sós com um cru-
através de um vidro. Por baixo, um disco de prata, aberto no cen-
cifixo, te venham as lágrimas aos olhos. Não te domines...
tro, marca o buraco onde foi erguida a Cruz.
Mas procura que esse pranto acabe num propósito 11.
No cimo da Cruz, está escrita a causa da condenação:
Jesus Nazareno, Rei dos Judeus (Jo 19, 19). E todos os que
XII estação: Jesus passam por ali O injuriam e O escarnecem.
morre na Cruz À esquerda da Capela da Crucifixão,
— Se é o rei de Israel, desça agora da Cruz (Mt 27, 42).
encontramos a capela do Calvário, propriedade da Igreja ortodoxa Um dos ladrões vem em Sua defesa:
— Este não fez nenhum mal (Lc 23, 41).
11. Ibid., XI estação, ponto 1. Depois, dirige a Jesus uma petição humilde, cheia de fé:
294
Pegadas da nossa fé Jerusalém O Calvário 295

Capela de Adão, — Elí, Elí, lamma sabachtani?! Isto é: Meu Deus, Meu
MARIE-ARMELLE BEAULIEU / CTS

situada sob o Deus, por que Me abandonaste (Mt 27, 46).


Calvário. A rocha
do Gólgota é Depois, sabendo que todas as coisas estão prestes a ser
visível através dos consumadas, para que se cumpram as Escrituras, diz:
vidros.
— Tenho sede (Jo 19, 28).
Os soldados embebem uma esponja em vinagre e, atan-
do-a a uma cana de hissope, aproximam-Lha da boca. Je-
sus sorve o vinagre e exclama:
— Tudo está consumado (Jo 19, 30).
O véu do templo rasga-se e a terra treme, quando o Se-
nhor brada com voz forte:
— Pai, nas Tuas mãos entrego o Meu espírito (Lc 23, 46).
E expira.
Ama o sacrifício que é fonte de vida interior. Ama a Cruz
que é altar do sacrifício. Ama a dor até beber, como Cristo,
as fezes do cálice 12.
Na parte da rocha visível à direita, nota-se uma fenda atribuí-
da ao terramoto que se produziu com a morte de Cristo: Jesus, cla-
mando outra vez com voz forte, expirou. Então, o véu do templo
rasgou-se em duas partes, de alto a baixo; a terra tremeu e as ro-
chas fenderam-se 13. A fenda também se pode ver noutra capela
imediatamente abaixo, dedicada a Adão. Segundo uma piedosa
tradição, a que Orígenes já faz referência no século III, ali se encon-
— Senhor, lembra-Te de mim, quando entrares no Teu traria o túmulo do primeiro homem; ao abrir-se a terra, o sangue
Reino (Lc 23, 42). do Senhor teria chegado até aos seus restos, convertendo-o no pri-
— Em verdade te digo que, hoje mesmo, estarás comigo meiro redimido. Na iconografia cristã, esta lenda inspirou o cos-
no Paraíso (Lc 23, 43). tume de pôr uma caveira aos pés da Cruz.
Maria, Sua Mãe, está junto da Cruz, com outras santas
mulheres. Jesus olha-a e olha, depois, para o discípulo que XIII estação: Jesus é descido da
ama e diz a Sua Mãe:
cruz e entregue à Sua Mãe Esta cena contempla-se
— Mulher, aí tens o teu filho.
Depois, diz ao discípulo: entre a Capela da Crucifixão e a do Calvário, num altar dedicado
a Nossa Senhora das Dores.
— Aí tens a tua Mãe (Jo 19, 26-27).
Apaga-se a luminária do céu e a terra fica mergulhada 12. Ibid., XII estação.
em trevas. São cerca das três, quando Jesus exclama: 13. Mt 27, 50-51.
296
Pegadas da nossa fé Jerusalém O Calvário 297

Mergulhada na dor, Maria está junto da Cruz. E João, A décima terceira

ALFRED DRIESSEN
com Ela. Mas faz-se tarde, e os judeus insistem para que estação situa-se entre
as Capelas da
se tire o Senhor dali. Crucifixão e a do
Depois de ter obtido de Pilatos a licença que a lei roma- Calvário, diante de
na exige para sepultar os condenados, chega ao Calvário uma imagem da
Nossa Senhora das
um senador chamado José, varão bom e justo, oriundo de Dores, oferecida em
Arimateia. Ele não tinha concordado com a condenação nem 1778 pela rainha de
com a execução; ao contrário, era dos que esperavam o rei- Portugal D. Maria I.
no de Deus (Lc 23, 50-51). Com ele vem também Nicodemos,
o mesmo que anteriormente tinha ido de noite encontrar-se
com Jesus, trazendo uma mistura de mirra e aloés, de qua-
se cem libras (Jo 19, 39).
Não eram conhecidos, publicamente, como discípulos
do Mestre; não se encontravam nos grandes milagres nem
O acompanharam na Sua entrada triunfal, em Jerusalém.
Agora, no momento mau, quando os outros fogem, não te-
mem comprometer-se pelo seu Senhor.
Tomam os dois o corpo de Jesus e deixam-nO nos braços
de Sua Santíssima Mãe. Renova-se a dor de Maria 14.
Meditemos no Senhor chagado dos pés à cabeça por
amor a nós (...). À vista de Cristo feito um farrapo, trans-
formado num corpo inerte descido da cruz e confiado a
sua Mãe, à vista desse Jesus destroçado, poder-se-ia con- sermos fiéis, de nos identificarmos deveras com Cristo, de
cluir que esta cena é a clara exteriorização de uma derrota: perseverarmos, custe o que custar, nessa missão sacerdotal
onde estão as massas que O seguiram e o reino cuja vinda que Ele encomendou a todos os seus discípulos sem exceção,
anunciava? (...) e que nos impele a sermos sal e luz do mundo 15.
Situados agora ante esse momento do Calvário em que Esses desejos de fidelidade converter-se-ão em obras se recor-
Jesus já morreu e ainda não se manifestou a glória do seu rermos a Nossa Mãe, que desde a embaixada do Anjo até à
triunfo, temos uma boa ocasião para examinar os nossos sua agonia ao pé da Cruz, não teve outro coração nem ou-
desejos de vida cristã, de santidade, para reagir com um tra vida que a de Jesus 16. Diz: Minha Mãe (tua, porque és
ato de fé perante as nossas debilidades e, confiando no po- seu por muitos títulos), que o teu amor me prenda à Cruz
der de Deus, fazer o propósito de pôr amor nas coisas do do teu Filho; que não me falte a Fé, nem a valentia, nem a
nosso dia-a-dia. A experiência do pecado tem de nos condu- audácia, para cumprir a vontade do nosso Jesus 17.
zir à dor, a uma decisão mais madura e mais profunda de
15. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 95-96.
16. S. Josemaria, Via Sacra, XIII estação, ponto 4.
14. S. Josemaria, Via Sacra, XIII estação. 17. S. Josemaria, Caminho, n. 497.
298
Pegadas da nossa fé Jerusalém O Calvário 299

A Pedra da Unção

FOTOS: MARIE-ARMELLE BEAULIEU / CTS


lembra as atenções
de Nicodemos e de
José de Arimateia
com o Corpo do
Senhor. À direita,
os franciscanos da
Custódia da Terra
Santa fazem uma
procissão na
basílica nalguns
dias da Quaresma.
Ao fundo pode
ver-se a entrada à
Anástasis.

Mesmo que todos Vos abandonem e desprezem..., ser-


viam!, servir-Vos-ei, Senhor 18.
XIV estação: Jesus é Continuando para oeste, chega-se à Rotunda ou Anástasis, mo-
colocado no sepulcro Descendo do Calvário e regres-
numento circular fechado com uma cúpula, em cujo centro se le-
vanta a capela com o túmulo do Senhor.
sando ao átrio da basílica, encontramos a Pedra da Unção, que é
muito venerada pelos cristãos ortodoxos. Trata-se de uma laje de Num horto muito perto do Calvário, José de Arimateia
pedra avermelhada com veios brancos, que recorda os cuidados tinha mandado lavrar, na rocha, um sepulcro novo. E, por
que José de Arimateia e Nicodemos dedicaram ao Corpo de Jesus. ser a véspera da grande Páscoa dos judeus, põem Jesus ali.
Depois, José rolou uma grande pedra, para diante da boca
Eu subirei com eles ao pé da Cruz, apertar-me-ei ao
do sepulcro, e retirou-se (Mt 27, 60).
Corpo frio, cadáver de Cristo, com o fogo do meu amor...,
despregá-Lo-ei com os meus desagravos e mortificações..., Sem nada veio Jesus ao mundo e sem nada – nem sequer
envolvê-Lo-ei com o lençol novo da minha vida limpa e en- o lugar onde repousa – se nos foi.
terrá-Lo-ei no meu peito de rocha viva, donde ninguém mO
poderá arrancar; e, aí, Senhor, descansai! 18. S. Josemaria, Via Sacra, XIV estação, ponto 1.
Identificada
a rocha original Jerusalém O Calvário 301
Laje superior, de mármore, Em 2016, durante
colocada provavelmente
o restauro da
entre 1244 e 1345.
Edícula, os técnicos

MARIE-ARMELLE BEAULIEU / CTS


Laje inferior, analisaram com um
de mármore, georadar e outros
do século IV instrumentos, e
descobriram os
Restos
da rocha
restos do sepulcro
original escavado na rocha.

Restauro Cantaria
de 2016 intermédia

Restauro
Porta de 1810

A 26 de Outubro de 2016 foram retiradas as pedras de mármore


que cobrem o banco escavado na rocha onde foi colocado o Corpo
de Jesus. A pedra original ficou à vista durante poucos dias.
Capela
da Igreja Câmara
Copta funerária
Capela
do Anjo
A Mãe do Senhor – minha Mãe – e as mulheres que se-
Porta
guiram o Mestre desde a Galileia, depois de observar tudo
Rocha Sagrada atentamente, partem também. Cai a noite.
Escada
interior Agora consumou-se tudo. Cumpriu-se a obra da nossa
Redenção. Já somos filhos de Deus, porque Jesus morreu
por nós e a Sua morte resgatou-nos.
Empti enim estis pretio magno (1 Cor 6, 20)!, tu e eu fo-
mos comprados por alto preço.
Temos de fazer vida nossa a vida e a morte de Cristo.
Ilustração fundamentada
Morrer pela mortificação e a penitência, para que Cristo
Câmara
funerária
nos vestígios do túmulo
que foram identificados
viva em nós pelo Amor. E seguir, então, as pisadas de Cris-
durante o restauro da to, com ânsia de corredimir todas as almas.
Edícula, em 2016.
Dar a vida pelos outros. Só assim se vive a vida de Je-
sus e nos fazemos uma só coisa com Ele 19. n

19. Ibid., XIV estação.


Pedra para selar
a sepultura
Copyright © 2017 National Geographic
Courtesy of National Geographic Magazine
302 Pegadas
DA NOSSA fé 22 O túmulo do Senhor
está numa capela no
centro da Anástasis.

Jerusalém
O Santo Sepulcro

A o cair da tarde – visto ser a Preparação, isto é, a véspera


do sábado – 1, veio um homem rico de Arimateia, chama-
do José 2, que era pessoa reta e justa e esperava o reino de
Deus. Era membro do Sinédrio, mas não tinha concordado com
a decisão e o proceder dos outros 3. Era discípulo de Jesus, embo-
ra oculto por medo dos judeus 4. Foi corajosamente à presença de
Pilatos e pediu-lhe o corpo de Jesus. Pilatos ficou admirado de Ele
já estar morto e, mandando chamar o centurião, perguntou-lhe se
Jesus já tinha morrido. Informado pelo centurião, ordenou que o
corpo fosse entregue a José 5.
Veio também Nicodemos, aquele que, antes, tinha ido de noite
ao encontro de Jesus. Trazia uma mistura de quase cem libras de
mirra e aloés – mais de trinta quilos –. Tomaram o corpo de Jesus e
envolveram-no em ligaduras juntamente com os perfumes, como
é costume sepultar entre os judeus. No local em que Jesus tinha
sido crucificado, havia um jardim e, no jardim, um sepulcro novo,
no qual ainda ninguém fora sepultado 6. José tinha-o mandado es-

1. Mc 15, 42.
2. Mt 27, 57.
3. Lc 23, 50-51.
MARIE-ARMELLE BEAULIEU / CTS

4. Jo 19, 38.
5. Mc 15, 43-45.
6. Jo 19, 39-41.
O Calvário e o túmulo de Jesus
304
As investigações arqueológicas identificaram a zona com
Pegadas da nossa fé Jerusalém O Santo Sepulcro 305
uma antiga pedreira, abandonada no século I, da qual o Calvário
seria o ponto mais alto. Quando Jesus morreu, José de
Arimateia pediu o seu corpo a Pilatos para lhe dar sepultura.
Tinha precisamente ali perto um túmulo, que mandara
Em primeiro

BENJAMIN E. WOOD / FLICKR


escavar na rocha. O local servia para enterramentos Na página
por estar fora da cidade. seguinte, a
plano, a Pedra
Edícula do da Unção e, ao
Sepulcro na
atualidade.
fundo, um
baldaquino
Representação
marca o lugar
Túmulo artística da onde as Santas
zona do Calvário
e do túmulo de
Mulheres
Jesus, segundo presenciaram a
algumas hipóteses
dos séculos XIX e XX.
descida de Jesus
da Cruz e a sua
Calvário sepultura.

Testemunhas de exceção Descendimento da Cruz


Maria Madalena e outras mulheres que Ao descravar o corpo da Cruz, devem ter
acompanharam Jesus desde Galileia observaram envolvido com um pano a cabeça de Jesus.
como desceram o Seu corpo da Cruz e o colocaram Os judeus desaprovavam o derramamento
no sepulcro. Na alvorada do sábado também de sangue dos defuntos. Este pano será
foram testemunhas da Sua Resurreição. venerado como o Santo Sudário de Oviedo.

Túmulo de Jesus
O túmulo foi escavado na rocha,
ou completamente de novo, ou cavar na rocha 7. Foi aí que, por causa da Preparação dos Judeus,
aproveitando alguma cavidade
natural ou da antiga pedreira. porque o sepulcro ficava perto, depositaram Jesus 8. Rolaram uma
grande pedra para a entrada do sepulcro e retiraram-se. Estavam
Se o túmulo tivesse
tido duas câmaras, ali Maria Madalena e a outra Maria 9. As mulheres que tinham
corresponderiam aos
dois habitáculos da vindo com Jesus da Galileia acompanharam José e observaram
Edícula do Sepulcro.
o sepulcro e a maneira como fora depositado o corpo de Jesus 10.
Câmara funerária
Passados alguns anos, os restos dos
Ao entrar na Basílica do Santo Sepulcro, o peregrino depara
defuntos eram trasladados aos ossários, com um espaço reduzido, fechado por muros, que desempenha o
de modo que os nichos eram reutilizados. Antecâmara A entrada era
Segundo as últimas fechada com uma
hipóteses, parece estar pedra.
descartado que o túmulo de 7. Mt 27, 60.
Jesus tivesse duas câmaras. 8. Jo 19, 42.
Preparação do corpo
Sudário de linho 9. Mt 27, 60-61.
José de Arimateia e Nicodemo envolveram o corpo de Jesus 10. Lc 23, 55-56.
num lençol de linho, venerado como o Santo Sudário de
Turim, que ligaram com bandas cruzadas. Também ungiram
o cadáver com uma mistura de mirra e aloés.

GRÁFICO: JOSEMI BENÍTEZ. COPYRIGHT © 2017 EL CORREO


Cúpula Cúpula do
da Rotunda Katholikon Basílica do Santo Sepulcro
306 ou Anástasis
Pegadas da nossa fé
Os lugares onde Jesus morreu e foi sepultado distam Jerusalém O Santo Sepulcro 307
apenas umas dezenas de metros. Toda a zona ficou
incluída dentro da Basílica do Santo Sepulcro: um
conjunto complexo de edificações, dispostas em
Torre sineira
Edícula
níveis diferentes, resultante da sua história turbulenta.
papel de átrio. Como o conjunto arquitetónico não tem perspetiva,
do Santo a vista fixa-se no que é conhecido como a Pedra da Unção, ladeada
Sepulcro
por altos castiçais e decorada com una fila de lampadários votivos
pendentes. Esta laje, que está uns centímetros acima do pavimen-
to, aos pés do Calvário, ajuda a recordar os piedosos cuidados que
José de Arimateia e Nicodemos dedicaram ao Corpo de Jesus de-
pois de O terem descido da Cruz.
Andando um pouco para oeste, encontramos um pequeno mo-
numento: uma pedra circular de mármore, no solo, coberta por um
Entrada Pátio do
convento baldaquino. Segundo a tradição, foi desse local que as mulheres
etíope
observaram a descida da Cruz e a sepultura do Senhor. Em frente,
atravessando um vão entre duas enormes colunas, acede-se à Ro-
Calvário
Nas capelas atuais, tunda ou Anástasis, o mausoléu que Constantino mandou edificar
através dos vidros,
é visível uma parte como moldura para o túmulo de Jesus. Este fica no centro, ao nível
Capela de
da rocha.
Santa Helena do pavimento da basílica, inserido numa capela.
Capela
As construções transformaram a zona e até parte do próprio
da Invenção sepulcro, mas graças aos dados da Escritura e da arqueologia po-
da Santa Cruz
demos fazer uma ideia de como era no século I. O Gólgota fazia
Na página
anterior, o
parte de uma pedreira abandonada. O sepulcro tinha sido aberto
túmulo em
tempos de Edícula do Santo Sepulcro
numa rocha dessa pedreira e tinha uma pequena abertura no lado
Jesus. A edícula estava em perigo de este – que foi fechada rolando uma grande pedra –, pela qual pos-
ruína por causa dos danos
sofridos no terramoto de 1927. sivelmente se tinha que passar de joelhos. Depois de um corredor
Desde 1947 estava sustentado
por uma estrutura de vigas de estreito, entrava-se num vestíbulo, que por sua vez conduzia à câ-
aço. O restauro de 2017 foi
possível graças ao acordo entre mara funerária. Ali depositaram rapidamente o Corpo do Senhor,
as Igrejas Ortodoxa, Católica e
Arménia, que partilham a sobre um banco escavado à direita, na parede norte, pois começa-
propriedade da Basílica.
vam a aparecer as luzes do sábado 11.
Capela do Anjo
No interior do pedestal está
o único fragmento que se
conserva da pedra circular que
O sepulcro vazio Depois de passar o sábado, Maria
fechava originalmente a entrada.
Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé compraram aromas
para irem embalsamar Jesus. E no primeiro dia da semana, par-
tindo muito cedo, chegaram ao sepulcro ao nascer do sol. Diziam
umas às outras:
— Quem nos irá revolver a pedra da entrada do sepulcro?
Câmara funerária
Desde o século IV, o túmulo de
Jesus está coberto por uma edícula,
que foi destruída e reconstruída
várias vezes. A existente na 11. Lc 23, 54.
atualidade foi acabada em
1810 e restaurada entre GRÁFICO: JOSEMI BENÍTEZ
2016 e 2017. COPYRIGHT © 2017 EL CORREO
308
Pegadas da nossa fé Jerusalém O Santo Sepulcro 309

Mas, olhando, viram que a pedra já fora revolvida; e era muito

MARIE-ARMELLE BEAULIEU / CTS


grande. Entrando no sepulcro, viram um jovem sentado do lado
direito, vestido com uma túnica branca, e ficaram assustadas. Mas
ele disse-lhes:
— Não vos assusteis. Procurais a Jesus de Nazaré, o Crucifica-
do? Ressuscitou: não está aqui. Vede o lugar onde O tinham de-
positado. Agora ide dizer aos seus discípulos e a Pedro que Ele
vai adiante de vós para a Galileia. Lá O vereis, como vos disse 12.
Conhecemos bem os relatos evangélicos das aparições do Se-
nhor ressuscitado: a Maria Madalena, aos discípulos de Emaús,
aos Onze reunidos no Cenáculo, a Pedro e a outros Apóstolos no
Mar da Galileia... Esses encontros com Jesus, que lhes permitiram
testemunhar o acontecimento real da sua Ressurreição, foram pre-
parados pela descoberta do sepulcro vazio. «A descoberta do fac-
to pelos discípulos foi o primeiro passo para o reconhecimento do
facto da ressurreição (...). “O discípulo que Jesus amava” (Jo 20, 2)
afirma que, ao entrar no túmulo vazio e ao descobrir “os lençóis
no chão” (Jo 20, 6) “viu e acreditou” (Jo 20, 8); o que supõe que ele
terá verificado, pelo estado em que ficou o sepulcro vazio, que a
Anástasis do Santo Sepulcro, com a Edícula no centro.
ausência do corpo de Jesus não podia ter sido obra humana e que
Jesus não tinha simplesmente regressado a uma vida terrena, como
fora o caso de Lázaro» 13. e a gruta mais santa de todas retomou o aspeto da ressurreição do
O túmulo vazio também deve ter constituído para os primeiros Salvador. Efetivamente, depois de ter estado sepultada nas trevas,
cristãos um sinal essencial. Podemos imaginar que se aproxima- voltou novamente para a luz, e a todos os que iam vê-la deixava-
riam desse lugar com veneração, e que o contemplariam atónitos -os vislumbrar claramente a história das maravilhas ali realizadas,
e felizes... Esses fiéis seriam seguidos por outros e outros, de modo atestando com obras mais sonoras do que qualquer voz a Ressur-
que não se perdeu a memória do local, nem sequer quando o impe- reição do Salvador» 14.
rador Adriano arrasou Jerusalém, na primeira metade do século II. Os arquitetos de Constantino isolaram a zona do túmulo de
Essa tradição está dramaticamente latente num relato de Eusébio Jesus e cortaram a rocha onde tinha sido escavado, de modo que o
de Cesareia, no qual descreve as obras patrocinadas por Constan- sepulcro ficou separado num cubo de pedra. Revestiram-no com
tino no ano 325 e a descoberta do túmulo de Jesus: «Quando, re- um edículo e, tomando-o como centro, projetaram à sua volta um
movido um elemento depois do outro, apareceu o lugar ao fundo mausoléu de planta circular – a Anástasis –, coberto por uma gran-
da terra, então, contra qualquer esperança, apareceu o resto, quer de cúpula com um óculo. Embora esta estrutura se tenha conser-
dizer, o venerado e santíssimo testemunho da ressurreição salvífica, vado até aos nossos dias, poucos elementos podem atribuir-se à
obra original.
12. Mc 16, 1-7.
13. Catecismo da Igreja Católica, n. 640. 14. Eusébio de Cesareia, De vita Constantini, 3, 28.
310
Pegadas da nossa fé Jerusalém O Santo Sepulcro 311

MARIE-ARMELLE BEAULIEU / CTS

O interior consta de uma câmara e de uma antecâmara, que se


comunicam através duma abertura baixa e estreita. A antecâmara
mede três metros e meio de comprimento por quatro de largura, e
imita o vestíbulo do hipogeu original, que foi eliminado já no tem-
po de Constantino. Chama-se Capela do Anjo, em recordação da
criatura celestial que, sentada sobre a grande pedra que fechava o
sepulcro, apareceu às mulheres para lhes anunciar a Ressurreição.
Uma parte dessa rocha está guardada no centro da sala, dentro de
um pedestal; até à destruição da basílica, em 1009, por ordem de
El-Hakim, tinha sido conservada inteira. A fúria do sultão também
atingiu a câmara, que corresponde exatamente ao túmulo do Se-
nhor, causando estragos quase irreparáveis. O nicho onde José de
Arimateia e Nicodemos depositaram o Corpo de Jesus encontra-
-se à direita, paralelamente à parede, coberto por lajes de mármore.
Aí, «ressuscitou ao terceiro dia» 15. Compreende-se perfeitamente
a piedade com que os peregrinos entram nesse espaço reduzido,
onde, além do mais, é possível celebrar a Santa Missa a determi-
nadas horas do dia.
Durante os trabalhos de restauro da edícula, no dia 26 de Ou-
tubro de 2016 deu-se um acontecimento histórico: pela primeira
vez, desde 1555, foram retiradas as lajes de mármore e foi possível
constatar a existência da pedra original. Além disso, apareceu parte
de outra lápide, fragmentada. Trata-se de uma cobertura anterior.
Depois de analisar a massa utilizada para fixá-la, os peritos con-
cluíram que foi colocada no século IV.
Na Capela do Anjo, dentro de um pedestal, conserva-se um Fora da Rotunda, no conjunto que os Cruzados construíram so-
fragmento da pedra usada para fechar o túmulo de Jesus.
bre os restos do triplo pórtico e da basílica de cinco naves de Cons-
tantino, há outras capelas. As mais importantes são as do Calvário,
O edículo atual, realizado em 1810, pelos cristãos ortodoxos que já foram descritas anteriormente. Além dessas, são de destacar:
gregos, foi restaurado e consolidado em 2016-2017, de acordo com no lado norte, propriedade da Custódia da Terra Santa, o altar de
os católicos e os arménios. Sobre o teto plano da Edícula, ergue- Maria Madalena e a Capela do Santíssimo Sacramento, que está
-se uma pequena cúpula de estilo moscovita, sustentada por pe- dedicada à Aparição de Jesus ressuscitado a sua Mãe e conserva um
quenas colunas; a fachada apresenta-se adornada com castiçais fragmento da coluna da Flagelação; no centro da igreja, ocupando
e lampadários de azeite; e nos lados, numerosas inscrições em o antigo coro dos cónegos, e aberto só para a Anástasis, o chama-
grego convidam todos os povos a louvar Cristo ressuscitado. O do Katholikon, um amplo espaço que depende da Igreja ortodoxa
altar localizado no lado posterior, que pertence aos coptas, data
do século XII. 15. Símbolo dos Apóstolos.
312
Pegadas da nossa fé Jerusalém O Santo Sepulcro 313

MARIE-ARMELLE BEAULIEU / CTS

NADIM ASFOUR / CTS


O local onde foi colocado o Corpo do Senhor, e donde também
ressuscitou ao terceiro dia, encontra-se na parede norte da câmara
sepulcral, coberto por lajes de mármore. Ao retirá-las em 2016,
encontrou-se uma laje anterior com uma cruz gravada, que
remontaria à construção da basílica de Constantino no século IV,
e observou-se a existência da pedra original.

grega; por trás deste, no deambulatório, as Capelas que recordam


os impropérios contra Jesus crucificado, a divisão das suas vestes
e a lançada do soldado Longino; e num nível inferior, a de Santa
Helena – que pertence à Igreja arménia –, S. Vartan – também dos
cristãos arménios, onde há um grafito de um peregrino do século
II – e a da Invenção da Santa Cruz.
A Basílica do Santo Sepulcro Capela
da Aparição
Capela dedicada a
Capela de Vartan, que viveu
S. Longino
É considerado o lugar mais sagrado da Cristandade Altar de Maria
Madalena
no século V e
é venerado
Deambulatório
porque encerra no seu interior os lugares venerados como santo
pelos cristãos
Capela da
como cenários da crucifixão, morte, sepultura e Anástasis
Divisão das arménios.
Vestes
ressurreição de Jesus Cristo.
Edícula Katholikon
Capela de
Santa Helena

Túmulos Capela
do século I de Adão Capela dos
Impropérios
Capela da
Calvário Invenção da
Memória
das Três Santa Cruz
Marias

Cúpula do Praça
Katholikon A Igreja do
Santo Sepulcro
na atualidade
Cúpula da
Rotunda ou Anástasis

Ponto de vista da
secção transversal
mostrada em baixo

Edícula 42,7 METROS Gólgota ou


Calvário

Nível Pátio do convento etíope


estimado
da rocha
original Capela
do Calvário
Capela
da Igreja Câmara
Copta funerária
4,8 m

Pedra venerada como o lugar onde Capela Este afloramento


foi depositado o cadáver de Cristo. de Adão é venerado como
um vestígio do lugar
onde foi levantada
a Cruz de Jesus.
SÉCULO IV SÉCULO XI SÉCULO XVI HOJE Capela de
Santa Helena

Evolução da edícula
Capela da
O túmulo de Jesus ficou coberto por uma capela Invenção da
desde que foi construída a primeira basílica. Esta Santa Cruz
edícula teve várias transformações. Copyright © 2017 National Geographic
Courtesy of National Geographic Magazine
316
Pegadas da nossa fé Jerusalém O Santo Sepulcro 317

O Katholikon
JON LAI YEXIAN / FLICKR

está coberto
por uma
grande
cúpula, que,
do exterior, se
vê coroada
com uma
cruz.

Desde o deambulatório, uma escada desce até à cripta. Nas paredes,


numerosas cruzes testemunham a veneração dos peregrinos. À
direita, a Capela de Santa Helena, que pertence aos cristãos
arménios. A partir daí, outra escada conduz a um nível inferior,
onde se encontra a Capela da Invenção da Santa Cruz.

Cada espaço tem a sua memória, mas seria muito extenso de-
ter-se em todos eles. Contudo, a cripta merece uma explicação,
pois a tradição situa aí um acontecimento relevante: a descoberta
da Cruz por Santa Helena, mãe de Constantino, que foi a Jerusa-
lém pouco tempo antes de morrer, por volta do ano 327. S. Ambró-
sio relata-o com grande força poética: «Helena chegou, começou a
visitar os lugares santos e o Espírito inspirou-lhe que procurasse

FOTOS: J. PANIELLO
o madeiro da cruz. Dirigiu-se ao Gólgota e disse: eis aqui o lugar
da contenda, onde está a vitória? Procuro o estandarte da salvação
318
Pegadas da nossa fé Jerusalém O Santo Sepulcro 319

e não o encontro. Eu estou no trono – disse – e a Cruz do Senhor

FOTOS: GABINETE DE IMPRENSA DO OPUS DEI


no pó? Eu, no meio do ouro e o triunfo de Cristo entre as ruínas?
(...). Vejo o que fizeste, diabo, para que fosse sepultada a espada
com que foste aniquilado. Mas Isaac desentulhou os poços que os
estrangeiros tinham obstruído e não permitiu que a água perma-
necesse escondida. Afaste-se, pois, o entulho, a fim de que apare-
ça a vida; seja esgrimida a espada com que foi amputada a cabeça
do autêntico Golias (...). Que conseguiste, diabo, escondendo o
madeiro, senão ser vencido uma vez mais? Venceu-te Maria, que
gerou o triunfador, que deu à luz sem dano da sua virgindade a
quem, crucificado, te havia de vencer e, morto, te dominaria. Tam-
bém hoje serás vencido de modo que uma mulher ponha a des-
No dia 17 de Março de 1994, o Beato Álvaro chegou a Jerusalém
coberto as tuas insídias. Ela, como santa, levou o Senhor no seu e quis logo ir à Basílica do Santo Sepulcro. Rezou no Calvário
seio; eu procurarei a sua cruz. Ela mostrou que tinha nascido; eu, – imagem da direita – e no interior do túmulo do Senhor – à
que ressuscitou» 16. esquerda –, onde permaneceu ajoelhado alguns minutos.
A narração continua com a descoberta de três cruzes escon-
didas no fundo de uma antiga cisterna, que corresponde à atual
Capela da Invenção. A Cruz de Cristo pôde ser reconhecida gra- gue. Estava muito contente, muito contente. Caminhávamos deva-
ças aos restos do titulus, letreiro mandado colocar por Pilatos, que gar, para que não se cansasse, mas estava com vontade de chegar lá».
também foi encontrado; conserva-se um fragmento na Basílica da Assim que entrou na basílica, o Bem-aventurado Álvaro diri-
Santa Cruz em Roma. Também foram recuperados alguns cravos: giu-se à Pedra da Unção, «ficou de joelhos, beijou repetidamente
um deles serviu para fazer a Coroa de ferro dos imperadores que a pedra e apoiou a cabeça com grande devoção». Depois foi com
se guarda em Monza, um segundo venera-se no Duomo de Milão, aqueles que o acompanhavam ao Sepulcro e, enquanto espera-
e o terceiro em Roma. vam a sua vez de entrar, «começou a fazer a oração. A partir des-
se momento quis ficar isolado, para contemplar tudo o que Deus
foi capaz de fazer por cada um de nós». Uma vez dentro, «caiu
O Beato Álvaro,
de joelhos e lá ficou por muito tempo, com as mãos, os braços e
no Santo Sepulcro Quando fez a sua peregrinação à a cabeça apoiados na laje. Era difícil sair daquele lugar porque o
Terra Santa, em 1994, o Beato Álvaro del Portillo chegou a Jerusa- víamos muito concentrado, muito metido em Deus. Ficámos um
lém a 17 de Março. Assim que pôde, foi ao Santo Sepulcro. bom tempo até que, pensando nas pessoas que esperavam do lado
— «Embora tivesse dificuldade para percorrer aquelas ruas em- de fora, lhe dissemos (...) que estava na hora. Acendeu duas ve-
pedradas e com degraus – lembrava depois D. Javier Echevarría –, las numa espécie de recipiente com areia, pedindo pelo trabalho
alegrava-se ao pensar que ia chegar ao lugar onde o Senhor se en- apostólico das suas filhas e dos seus filhos».
tregou por nós totalmente, onde – como dizia o nosso Padre –tinha Depois aproximaram-se do Calvário, subindo por uma escada
dado até o seu último hálito de vida e até a última gota do seu san- muito íngreme. O Bem-aventurado Álvaro «subiu fatigado – con-
tinuava recordando D. Javier –, mas também ali, logo que chega-
16. S. Ambrósio, De obitu Theodosii, 43-44. mos, caiu de joelhos e ficou com a cabeça no lugar onde esteve er-
320
Pegadas da nossa fé Jerusalém O Santo Sepulcro 321

guida a Santa Cruz. Ficamos depois a rezar um pouco mais, até a


MARIE-ARMELLE BEAULIEU / CTS

hora de fechar» 17.
No dia seguinte, 18 de Março, o Bem-aventurado Álvaro voltou
à basílica e celebrou a Santa Missa no altar que comemora a apari-
ção de Cristo ressuscitado a Maria Madalena. D. Javier Echevarría
contou um pormenor dessa celebração: o Beato Álvaro «disse de-
pois, que lhe veio à cabeça durante a Missa algo que o nosso Padre
dizia, pensando em que Maria Madalena chorava porque não sabia
como ficar sem o seu Jesus. O nosso Padre dizia: nós, sem Deus, não
estamos bem. Lembrou-se daquela frase incisiva e acrescentou que
entendia perfeitamente o amor da Madalena, que sem o seu Jesus
não poderia estar bem, tinha que ficar desconsolada» 18.

Cristo vive Na Terra Santa há muitos lugares que con-


servam a marca da passagem do Senhor, e têm sido venerados ao
longo dos séculos, com toda a justiça. Contudo, nenhum é com-
parável ao Santo Sepulcro, o lugar exato onde decorreu o aconte-
cimento central da nossa fé: Se Cristo não ressuscitou – advertia
A poucos metros da Anástasis, um altar lembra a aparição do S. Paulo aos fiéis de Corinto –, então a nossa pregação é inútil e
Senhor a Maria Madalena. No dia 18 de Março, pela manhã, também é inútil a vossa fé 19.
o Beato Álvaro concelebrou a Santa Missa nesse altar.
Mas Cristo vive. Esta é a grande verdade que enche de
conteúdo a nossa fé. Jesus, que morreu na cruz, ressuscitou,
triunfou da morte, do poder das trevas, da dor e da angús-
tia (...). Cristo não é uma figura que passou, que existiu a
certa altura e que Se foi embora, deixando-nos uma recor-
dação e um exemplo maravilhosos. Não. Cristo vive. Jesus
é o Emanuel: Deus connosco. A sua ressurreição revela-nos
que Deus não abandona os seus 20.
Bento XVI repetiu em várias ocasiões e de diversos modos que
na origem da fé não está uma decisão ética nem uma grande ideia,
GABINETE DE IMPRENSA DO OPUS DEI

17. Javier Echevarría, Palavras recolhidas em Crónica, 1994, p. 315-316


(AGP, biblioteca, P01).
18. Ibid., p. 323.
19. 1 Cor 15, 14.
20. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 102.
322
Pegadas da nossa fé Jerusalém O Santo Sepulcro 323

e que também não são apenas conhecimentos o que os fiéis devem compete a nós, aos homens de todos os tempos, acolher esta vitória
transmitir: «A fé cristã, como sabemos, nasce não do acolhimen- na nossa vida e nas realidades concretas da história e da sociedade.
to de uma doutrina, mas do encontro com uma Pessoa, com Cris- Por isso, parece-me importante sublinhar aquilo que hoje pedimos
to morto e ressuscitado. Na nossa existência quotidiana, queridos a Deus na liturgia: “Senhor nosso Deus, que, pelo Batismo, aumen-
amigos, são muitas as ocasiões para comunicar aos outros esta nos- tais continuamente a vossa Igreja com novos filhos, concedei-lhes
sa fé de modo simples e convicto, de modo que do nosso encon- a graça de serem fiéis na vida ao sacramento que pela fé receberam”
tro pode nascer a sua fé. É urgente como nunca que os homens e (Oração Colecta da Segunda-feira da Oitava de Páscoa).
as mulheres da nossa época conheçam e encontrem Jesus e, graças » Sim, é verdade, o Batismo que nos faz filhos de Deus, a Euca-
também ao nosso exemplo, se deixem conquistar por Ele» 21. ristia que nos une a Cristo, devem tornar-se vida, ou seja, traduzir-
Com a sua encarnação, com a sua vida de trabalho em -se em atitudes, comportamentos, gestos e escolhas. A graça con-
Nazaré, com a sua pregação e os seus milagres por terras tida nos Sacramentos pascais é uma potencialidade de renovação
da Judeia e da Galileia, com a sua morte na cruz, com a enorme para a existência pessoal, para a vida das famílias, para as
sua ressurreição, Cristo é o centro da criação, Primogéni- relações sociais. Mas tudo passa através do coração humano: se eu
to e Senhor de toda a criatura. me deixar alcançar pela graça de Cristo ressuscitado, se lhe permi-
A nossa missão de cristãos é proclamar essa realeza de tir que transforme aquele meu aspeto que não é bom, que me pode
Cristo; anunciá-la com a nossa palavra e com as nossas fazer mal, a mim e ao próximo, permitirei que a vitória de Cristo
obras. O Senhor quer os seus em todas as encruzilhadas da se consolide na minha vida, ampliando a sua ação benéfica. Este
terra. A uns, chama-os ao deserto, desentendidos das in- é o poder da graça! Sem a graça nada podemos! Sem a graça nada
quietações da sociedade humana, para recordarem aos ou- podemos! E com a graça do Batismo e da Comunhão eucarística
tros homens, com o seu testemunho, que Deus existe; a ou- posso tornar-me instrumento da misericórdia de Deus, da bonita
tros, encomenda o ministério sacerdotal. Mas o Senhor quer misericórdia de Deus» 23. n
a grande maioria no meio do mundo, nas ocupações terre-
nas; estes cristãos devem pois levar Cristo a todos os am-
bientes em que se desenvolve o trabalho humano: à fábrica,
ao laboratório, ao trabalho do campo, à oficina do artesão,
às ruas das grandes cidades e às veredas das montanhas
(...). Cada cristão há de tornar Cristo presente entre os ho-
mens, vivendo de tal maneira que todos aqueles com quem
contactar sintam o bonus odor Christi (cf. 2 Cor 2, 15), o
bom odor de Cristo, atuando de tal forma que, através das
ações do discípulo, se possa descobrir o rosto do Mestre 22.
Poucos dias depois de iniciar o seu pontificado, durante a Pás-
coa, o Papa Francisco referiu-se a esta missão, que compete a todos
os batizados: «Cristo venceu o mal de modo pleno e definitivo, mas

21. Bento XVI, Regina Cœli, Segunda-Feira da Oitava de Páscoa, 9-IV-2007.


22. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 105. 23. Francisco, Regina Cœli, Segunda-Feira da Oitava de Páscoa, 1-IV-2013.
324 Pegadas
DA NOSSA fé 23 325

Uma povoação
Enquanto falavam e discutiam, Jesus aproximou-Se deles e pôs-
-Se com eles a caminho. Mas os seus olhos estavam impedidos de
O reconhecerem 3.

chamada
Pelos pormenores que transmite S. Lucas, poderia parecer sim-
ples localizar a aldeia aonde se dirigiam Cléofas e o outro discípulo.
Contudo, ao contrário do que ocorre com muitos lugares da Terra
Santa, o passar dos séculos e os acontecimentos da história não fo-

Emaús
ram indiferentes, de forma que hoje em dia há vários lugares que
poderiam ser identificados com a povoação de Emaús dos Evange-
lhos. Alguns merecem maior credibilidade, não só porque gozam
do consenso dos estudiosos, mas também por serem atualmente
lugares de peregrinação.
O primeiro deles coincide com uma cidade a oeste de Jerusa-
lém que aparece com o nome de Emaús no Antigo Testamento:
no ano 165 a. C., o exército selêucida de Nicanor e Górgias, acam-
pado nas proximidades, foi derrotado de forma impressionante

R
essuscitou! – Jesus ressuscitou. Não está no sepul- pela rebelião judia liderada por Judas Macabeu 4. Também ali, na
cro. A Vida pôde mais do que a morte 1. A ressurreição mesma época, se construiu uma fortaleza 5, da qual ainda existem
de Cristo, que ocorreu nas primeiras horas do domingo, é vestígios. A sua situação estratégica – no caminho entre a cidade
um facto que os Evangelhos afirmam de modo claro e inequívoco. portuária de Jafa e Jerusalém, onde acaba a planície e começam
Além das primeiras testemunhas do sepulcro vazio – as santas mu- os montes centrais da Palestina – fez com que os romanos a con-
lheres, os Apóstolos Pedro e João – narram diversas aparições de vertessem num importante núcleo administrativo em meados do
Jesus ressuscitado. Entre elas, a dos discípulos de Emaús, descrita século I a. C. Contudo, como represália por um ataque a uma das
com pormenores comovedores por S. Lucas, provocava um espe- suas coortes, foi incendiada e arrasada no ano 4 a. C. A cidade terá
cial impacto em S. Josemaria: Quanta aplicação tem também sido reconstruída pelos anos 66-67 da nossa era, já que os historia-
no modo especial de ser da Obra de Deus! 2. dores Flávio Josefo e Plínio a enumeram entre as capitais de distri-
Conhecemos bem o início do relato: Naquele mesmo dia, o to, e Vespasiano conquistou-a na sua campanha para submeter a
primeiro da semana, dois dos discípulos de Jesus iam a caminho revolta dos judeus. Passou então a chamar-se Nicópolis, cidade da
duma povoação chamada Emaús, que ficava a duas léguas de Je- vitória, nome pelo qual ficou conhecida quando recebeu o título
rusalém. Conversavam entre si sobre tudo o que tinha sucedido. de cidade romana, no ano 223.

1. S. Josemaria, Santo Rosário, I mistério glorioso. 3. Lc 24, 13-16.


2. S. Josemaria, 29-III-1932, em Apuntes íntimos, n. 675, recolhido em Camino, 4. Cf. 1 Mac 3, 38 – 4, 25.
3.ª edición crítico-histórica, n. 917. 5. Cf. 1 Mac 9, 50.
Linha do caminho-de-ferro
entre Tel Aviv e Jerusalém

Santuário
de Emaús
El-Qubeibeh

Emaús-Nicópolis

Mosteiro
trapista
de Latrun

A JERUSALÉM
Caminho de Kiryat Yearim:
Antiga rota para Jafa, que
passa por Emaús-Nicópolis.
Abu Gosh foi considerada, no
século XII, uma possível localização
de Emaús, mas a sua aceitação
não prosperou. Existe uma igreja
românica dos Cruzados.

Autoestrada entre Tel Aviv e Jerusalém:


em parte, segue o traçado de uma
calçada romana do século II, mas é mais
direta e íngreme que o caminho antigo.

0 quilómetros 1
Tel Aviv
Jerusalém
0 milhas 1
ISRAEL
0 estádios 10
0 quilómetros 1
Tel Aviv
Jerusalém
0 milhas 1
ISRAEL
0 estádios 10

Santuário
de Emaús
El-Qubeibeh
A EMAÚS-NICÓPOLIS

Caminho de Kiryat Yearim:


Antiga rota para Jafa, que
passa por Emaús-Nicópolis.
Abu Gosh foi considerada, no
século XII, uma possível localização
de Emaús, mas a sua aceitação
não prosperou. Existe uma igreja
românica dos Cruzados.

Autoestrada entre Tel Aviv e Jerusalém:


em parte, segue o traçado de uma
calçada romana do século II, mas é mais
direta e íngreme que o caminho antigo.

Alguns cristãos de Terra Santa


começaram o costume de peregrinar
desde Jerusalém na segunda-feira da
Páscoa, seguindo as diversas tradições.

Jerusalém

Área povoada em
tempos de Jesus Cristo
330
Pegadas da nossa fé Uma povoação chamada Emaús 331

As escavações em Lugar arqueológico


Emaús-Nicópolis de Emaús-Nicópolis Túmulos romanos
trouxeram à luz as
fundações de uma
basílica bizantina
– lado esquerdo da
Mosaicos
imagem –, e parte
dos muros de outra Basílica
Norte
norte
construída pelos
Cruzados. Em
baixo, a abside da
Batistério
basílica dos Mosaicos (séc. V-VI)
Cruzados.

WWW.EMMAUS-NICOPOLIS.ORG
ILUSTRAÇÃO ADAPTADA POR J. GIL
Basílica Sul

Casa do Bispo Pedreira


de Nicópolis
(séc. V-VII)

Basílica bizantina de três


absides (séc. VI-VII),
reconstruída mais pequena
pelos Cruzados
no século XII. Abside Sul,
com nicho
para relíquias.
0m 20

0 ft 50

qual o Senhor, reconhecido na fração do pão, consagrou em igreja


a casa de Cléofas» 6.
Durante a época bizantina, entre os séculos IV e VII, Emaús-
-Nicópolis contaria com uma população cristã representativa, pois
Os testemunhos mais antigos que identificam Emaús-Nicópo- foi sede episcopal. No ano 628, os árabes invadiram a Palestina e
lis com o lugar evangélico remontam ao século III: Eusébio de Ce- conquistaram a cidade, que passou a chamar-se Ammwas. Em-
sareia, no Onomasticon, lista de lugares bíblicos elaborado por volta bora existam notícias de que os habitantes foram evacuados dois
do ano 295, afirma que «Emaús, de onde era Cléofas, que é mencio- anos depois por causa de uma praga, manteve a sua importância
nada no Evangelho de Lucas, é hoje em dia Nicópolis, importan- como sede de distrito durante a dominação islâmica. Em Junho
te cidade da Palestina»; e S. Jerónimo, além de confirmar esta tese de 1099, foi o último bastião tomado pelos Cruzados no seu cami-
ao traduzir o livro de Eusébio ao latim, transmite-nos que peregri-
nou no ano de 386 a «Nicópolis, que antes se chamava Emaús, na 6. S. Jerónimo, Epistola CVIII. Epitaphium Sanctæ Paulæ, 8.
332
Pegadas da nossa fé Uma povoação chamada Emaús 333

KONSTANTIN HOSHANA
As escavações em Emaús-El-Qubeibeh revelaram os restos de
uma aldeia medieval. À direita, a igreja, construída em 1902.

nho para Jerusalém; e no século XII, durante os reinados cristãos,


foi construída uma igreja sobre as ruínas de uma basílica da épo-
ca bizantina.
Até a essa época, a tradição que situava em Nicópolis a manifes-
tação de Jesus ressuscitado tinha-se mantido apesar de contrastar
com um dado fornecido por S. Lucas: que Emaús estava a sessenta
estádios de Jerusalém, quando a distância de Nicópolis é de cen-
to e sessenta, quer dizer, há uma diferença de vinte quilómetros.
Ainda que alguns estudiosos tenham avançado diversas hipóteses
para explicar isto, o facto é que a identificação de Nicópolis com
Emaús perdeu força, a sua igreja ficou abandonada ao partirem os
Cruzados e a presença cristã desapareceu da cidade até finais do
século XIX. Por iniciativa da Santa Mariam de Belém, religiosa car-
melita, em 1878, foi comprado o terreno onde estavam as ruínas da
igreja e recomeçaram as peregrinações. As escavações arqueológi-
cas realizadas em 1880, em 1924 e as que atualmente se realizam meiras escavações, realizadas em finais do século XVIII, trouxeram
puseram a descoberto os vestígios de duas basílicas bizantinas e à luz os restos de uma basílica do tempo dos Cruzados que tinha
de uma igreja medieval – dos Cruzados – construída com pedras incorporado outro edifício precedente, e também revelaram vestí-
tiradas das ruínas das duas primeiras. gios de uma aldeia medieval. Em 1902, foi construída uma igreja
Outro lugar que poderia corresponder ao Emaús dos Evange- de estilo neorromânico integrando as ruínas da anterior, que é a
lhos é a pequena povoação de El-Qubeibeh, construída sobre uma que persiste até hoje.
fortificação romana antiga chamada Castellum Emmaus, que se en- Na Páscoa de 2008, Bento XVI referiu-se ao facto de que não
contra à distância exata de sessenta estádios de Jerusalém. Em 1355, tenha sido identificada, com certeza, a Emaús que aparece no
os franciscanos que chegaram ali descobriram algumas tradições Evangelho: «Existem várias hipóteses, e isto é sugestivo, porque
locais que permitiam identificá-la com a pátria de Cléofas. As pri- nos deixa pensar que Emaús representa na realidade todos os
334
Pegadas da nossa fé Uma povoação chamada Emaús 335

FOTOS: C. RICO

Compreende a sua dor, penetra no seu coração, comuni-


ca-lhes um pouco da vida que nele habita 9. As suas esperanças
de que Jesus redimiria Israel tinham terminado com a crucifixão.
Na Páscoa, os caminhos nas Ao sair de Jerusalém, sabiam já que o seu corpo não se encontrava
redondezas de Jerusalém
destacam-se pelo colorido no sepulcro, e que as mulheres afirmavam ter recebido o anúncio
da sua vegetação. da sua ressurreição através de uns anjos; mas não acreditaram 10,
estão tristes e titubeantes na fé.
Então Jesus disse-lhes: «Homens sem inteligência e lentos de
lugares: a estrada que nos conduz é o caminho de todos os cristãos, espírito para acreditar em tudo o que os profetas anunciaram!
aliás, de todos os homens. Nas nossas estradas Jesus ressuscitado Não tinha o Messias de sofrer tudo isso para entrar na sua gló-
faz-se companheiro de viagem, para reavivar nos nossos corações ria?». Depois, começando por Moisés e passando pelos Profetas,
o calor da fé e da esperança e o partir o pão da vida eterna» 7. explicou-lhes em todas as Escrituras o que Lhe dizia respeito 11.
Como seria aquela conversa! Mas ao chegarem à aldeia,
Reconheceram-no acaba a viagem, e aqueles dois homens que, sem se aperce-
berem, tinham sido tocados no mais íntimo dos seus cora-
ao partir o pão Caminhavam os dois discípulos para
ções pela Palavra e pelo Amor do Deus feito homem, têm
Emaús. O seu caminhar era normal, como o de tantas ou- pena de que Ele se vá embora. Porque Jesus se despede
tras pessoas que transitavam por aquelas paragens. E aí, como quem vai seguir para diante (Lc 24, 28) 12. Contudo,
com naturalidade, lhes aparece Jesus. E caminha com eles, os dois discípulos retêm-no e quase O obrigam a ficar com
numa conversa que diminui a fadiga. Imagino a cena: já eles 13. Com uma maneira de dizer cheia de ternura divina e huma-
bem adiantada a tarde. Sopra uma brisa suave. De um na, eles imploram: Ficai connosco, porque o dia está a terminar e
lado e de outro, campos semeados de trigo já crescido e as vem caindo a noite 14. Jesus fica, e quando Se pôs à mesa, tomou
velhas oliveiras com os ramos prateados pela luz indecisa 8.
A presença do Senhor inspirava uma grande confiança, pois 9. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 105.
com apenas duas frases provocou a confidência dos discípulos: 10. Cf. Lc 24, 17-24.
11. Lc 24, 25-27.
12. S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 314.
7. Bento XVI, Regina Cœli, 6-IV-2008. 13. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 105.
8. S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 313. 14. Lc 24, 29.
336
Pegadas da nossa fé Uma povoação chamada Emaús 337

o pão, recitou a bênção, partiu-o e entregou-lho. Nesse momento Sonho – e o sonho já se tornou realidade – com multidões
abriram-se-lhes os olhos e reconheceram-nO. Mas Ele desapare- de filhos de Deus que se santifiquem na sua vida de cidadãos
ceu da sua presença. Disseram então um para o outro: «Não ardia vulgares, compartilhando ideais, anseios e esforços com as
cá dentro o nosso coração, quando Ele nos falava pelo caminho e outras pessoas. Preciso de lhes gritar esta verdade divina:
nos explicava as Escrituras?» 15. se permaneceis no meio do mundo, não é porque Deus se te-
Comentando esta passagem, S. Josemaria aplicava-a também nha esquecido de vós, não é porque o Senhor vos não tenha
ao apostolado daqueles cristãos que, no meio do mundo, são cha- chamado; Ele convidou-vos a permanecer nas atividades
mados a tornar Jesus presente em todos os lugares onde os homens e nas ansiedades da terra porque vos fez saber que a vossa
desenvolvem as suas tarefas 16. vocação humana, a vossa profissão, as vossas qualidades,
«Nonne cor nostrum ardens erat in nobis, dum loquere- não só não são alheias aos seus desígnios divinos, mas Ele
tur in via?». – Não é verdade que sentíamos abrasar-se-nos as santificou como oferenda gratíssima ao Pai! 18.
o coração, quando nos falava pelo caminho? A reação dos discípulos de Emaús, que se levantaram logo e
Se és apóstolo, estas palavras dos discípulos de Emaús voltaram a Jerusalém 19, também é uma lição para nós:
deviam sair espontaneamente dos lábios dos teus compa- Abrem-se os nossos olhos como os de Cléofas e os do ami-
nheiros de profissão, depois de te encontrarem a ti no ca- go, quando Cristo parte o pão. E mesmo que Ele volte a de-
minho da vida 17. saparecer da nossa vista, também seremos capazes de em-
O Senhor quis aparecer a Cléofas e ao seu companheiro de preender de novo a marcha – anoitece – para falar d’Ele
um modo normal, como mais um viajante, sem se fazer reconhe- aos outros. Porque tanta alegria não cabe num só coração.
cer imediatamente. Como nos trinta anos de vida oculta de Jesus: Caminho de Emaús. O nosso Deus encheu este nome de
Esses anos ocultos do Senhor não são uma coisa sem sig- doçura. E Emaús é o mundo inteiro, porque o Senhor abriu
nificado, nem uma simples preparação para os anos que os caminhos divinos da Terra 20. n
viriam depois, os da sua vida púbica. Desde 1928, com-
preendi claramente que Deus deseja que os cristãos tomem
como exemplo toda a vida do Senhor. E entendi especial-
mente a sua vida escondida, a sua vida de trabalho cor-
rente no meio dos homens: o Senhor quer que muitas almas
encontrem o seu caminho nos anos de vida calada e sem
brilho. Assim, obedecer à Vontade de Deus é sempre sair do
nosso egoísmo; mas não tem de se traduzir no afastamen-
to das circunstâncias ordinárias da vida dos homens, que
são iguais a nós pelo seu estado, a sua profissão e a sua si-
tuação na sociedade.

15. Lc 24, 30-32. 18. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 20.


16. Cf. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 105. 19. Cf. Lc 24, 33.
17. S. Josemaria, Caminho, n. 917. 20. S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 314.
338 Pegadas
DA NOSSA fé 24 339

Tabgha
Igreja do
Primado

Se o nível da água, no Mar da Galileia, é alto, a


Igreja do Primado fica junto à margem do lago.
Se é baixo, aparece o leito pedregoso.

FOTO: BERTHOLD WERNER / WIKIMEDIA COMMONS. ILUSTRAÇÃO: J. GIL.

Jo rdão
0 km 10
outros artigos anteriores, socorremo-nos do testemunho 0 mi 10 Corazim
da peregrina Egéria sobre Tabgha, que remonta ao sécu- Cafarnaum Betsaida
Tabgha
lo IV: «Não longe de Cafarnaum, veem-se os degraus de
Genesaré
pedra sobre os quais se sentou o Senhor. Ali, junto ao mar, encon- Khirbet Qana
Mar da
Magdala Galileia
tra-se um terreno coberto de erva abundante e muitas palmeiras, A caminho
de Haifa

e, junto ao mesmo lugar, sete fontes, manando de cada uma delas Tiberíades
Hippos
Sussita
Séforis
água com fartura. Neste lugar o Senhor saciou uma multidão com Kefer Kenna
cinco pães e dois peixes. A pedra sobre a qual o Senhor pousou o
A caminho da
pão foi convertida em altar. Junto às paredes daquela igreja passa a Nazaré

Jordão
planície de
Esdrelon
Monte
via pública, onde Mateus tinha o seu telónio. Sobre o monte vizi- Tabor
340 Tabgha Igreja do Primado 341

bém estavam presentes os filhos de Zebedeu e mais dois discípu-


los de Jesus. Disse-lhes Simão Pedro: «Vou pescar». Eles respon-
deram-lhe: «Nós vamos contigo». Saíram de casa e subiram para
o barco, mas naquela noite não apanharam nada. Ao romper da
manhã, Jesus apresentou-Se na margem, mas os discípulos não
sabiam que era Ele. Disse-lhes Jesus: «Rapazes, tendes al-
guma coisa para comer?» Eles responderam: «Não».
Igreja das
Disse-lhes Jesus: «Lançai a rede para a direita do
A caminho
de Tiberíades
Bem-aventuranças barco e encontrareis». Eles lançaram a rede e já
T
A
B
mal a podiam arrastar por causa da abundância
G de peixes. O discípulo predileto de Jesus disse a
H
A
Pedro: «É o Senhor». Simão Pedro, quando ou-
Igreja da
Multiplicação viu dizer que era o Senhor, vestiu a túnica que ti-
dos pães e dos peixes nha tirado e lançou-se ao mar. Os outros discípulos,
A caminho que estavam distantes apenas uns duzentos côvados da
de Cafarnaum
Ma
r da Igreja do margem, vieram no barco, puxando a rede com os peixes.
Ga Primado
lile
ia de Pedro Logo que saltaram em terra, viram brasas acesas com peixe em
cima, e pão. Disse-lhes Jesus: «Trazei alguns dos peixes que apa-
Tabgha sempre foi um lugar
de pesca abundante, porque nhastes agora». Simão Pedro subiu ao barco e puxou a rede para
alguns mananciais lançam
0m água quente ao lago. terra, cheia de cento e cinquenta e três grandes peixes. E, apesar
0 ft
de serem tantos, não se rompeu a rede. Disse-lhes Jesus: «Vinde
100 500
comer». Nenhum dos discípulos se atrevia a perguntar: «Quem
és Tu?»: porque bem sabiam que era o Senhor. Jesus aproximou-
0

-Se, tomou o pão e deu-lho, fazendo o mesmo com os peixes. Foi


esta a terceira vez que Jesus Se manifestou aos discípulos, depois
de ter ressuscitado dos mortos 2.
IL
.G

nho há um lugar onde o Senhor subiu para pro-


:J

O relato de Egéria não afirma que existiu uma igreja na mar-


O
ÇÃ
RA

nunciar as Bem-aventuranças» 1.
ST

gem em que Jesus apareceu, mas um texto tardio – dos séculos


U
IL

Agora centraremos a nossa atenção sobre o primeiro local X-XI – atribui à imperatriz Santa Helena a construção de um san-
citado por Egéria. «Os degraus de pedra sobre os quais se sentou tuário dedicado aos Apóstolos no local em que Jesus almoçou com
o Senhor». Segundo esta tradição, referem-se ao lugar a partir do eles. Alguns documentos, a partir do século IX, denominam-no
qual Jesus teria indicado aos da barca que lançassem a rede à sua indistintamente Mensa, Tabula Domini, dos Doze Tronos ou dos
direita, durante a aparição do Senhor ressuscitado, que S. João nar- Carvões, nomes que relembram aquele almoço. Através de um tes-
ra no final do seu evangelho: Estavam juntos Simão Pedro, Tomé, temunho da Idade Média, sabemos também que o templo esta-
chamado Dídimo, e Natanael, que era de Caná da Galileia. Tam- va dedicado em particular ao Príncipe dos Apóstolos: «Ao pé do

1. Appendix ad Itinerarium Egeriæ, II, V, 2-3 (CCL 175, 99). 2. Jo 21, 2-14.
342
Pegadas da nossa fé Tabgha Igreja do Primado 343

BERTHOLD WERNER / WIKIMEDIA COMMONS

BERTHOLD WERNER / WIKIMEDIA COMMONS


Junto aos degraus rochosos, há No lado sul, podem ver-se alguns
seis pedras em forma de coração degraus de pedra, donde Jesus,
– provavelmente são bases de segundo a tradição, indicou aos
colunas – provenientes do átrio discípulos que lançassem a rede
de alguma igreja. para a sua direita.

A rocha onde teria almoçado o Senhor


com os discípulos conserva-se no interior.

monte está a Igreja de S. Pedro, muito formosa, mas abandonada»,


afirma o peregrino Saewulfus em 1102 3. Depois de diversas vicis-
situdes, foi definitivamente destruída em 1263. A atual, levantada
pelos franciscanos em 1933 sobre os alicerces da antiga capela, cha-

3. Saewulfus, Relatio de peregrinatione ad Hierosolymam et Terram Sanctam.


344
Pegadas da nossa fé Tabgha Igreja do Primado 345

ma-se Igreja do Primado para recordar o lugar em que Jesus con-

GABINETE DE IMPRENSA DO OPUS DEI


firmou Pedro como pastor supremo da Igreja: Depois de comerem,
perguntou a Simão Pedro: «Simão, filho de João, amas-Me tu mais
do que estes?». Ele respondeu-Lhe: «Sim, Senhor, Tu sabes que Te
amo». Disse-lhe Jesus: «Apascenta os meus cordeiros». Voltou a
perguntar-lhe segunda vez: «Simão, filho de João, tu amas-Me?».
Ele respondeu-Lhe: «Sim, Senhor, Tu sabes que Te amo». Disse-
-lhe Jesus: «Apascenta as minhas ovelhas». Perguntou-lhe pela
terceira vez: «Simão, filho de João, tu amas-Me?». Pedro entriste-
ceu-se por Jesus lhe ter perguntado pela terceira vez se O amava e
respondeu-Lhe: «Senhor, Tu sabes tudo, bem sabes que Te amo».
Disse-lhe Jesus: «Apascenta as minhas ovelhas» 4.
As investigações arqueológicas realizadas em 1969, confirma-
ram que, sob a Igreja do Primado, se encontram restos de dois san-
tuários mais antigos. Do primeiro, de finais do século IV, são visí-
veis alguns fragmentos das suas paredes, com reboco branco. Do
segundo, construído cem anos mais tarde em pedra basáltica, é re-
conhecível nos muros circundantes. Os dois tinham como centro
uma rocha chamada pelos peregrinos Mensa Christi, que continua Um dos franciscanos que guardavam a igreja convidou o Beato
a venerar-se na atualidade diante do altar, como o lugar do almo- Álvaro a dar a bênção com a estola que utilizou o Papa Paulo VI.
ço com os Apóstolos. Além disso, os degraus referidos por Egéria
podem observar-se no exterior, no lado sul da capela, preteridos as chaves do reino, com demonstração plena de mistério, diz: três
por uma grade. vezes que apascente as minhas ovelhas. Isto fá-lo sem dúvida ago-
ra, e o piedoso pastor manda que se realize o mandato do Senhor,
A confirmação de Pedro confirmando com exortações e pedindo sem cessar por nós, para
que não sejamos vencidos por nenhuma tentação. Se tem este cui-
no Primado Comentando o diálogo entre Jesus e dado da sua piedade com todo o povo de Deus e em todo o lugar,
S. Pedro, que já apresentámos, S. Leão Magno – Romano Pontífice como devemos acreditar, quanto mais se dignará conceder-nos a
entre os anos 440 e 461 –, sublinhava que a solicitude do Príncipe sua ajuda aos que imediatamente fomos instruídos por ele, que es-
dos Apóstolos se estende especialmente aos seus sucessores: «Em tamos junto ao sagrado leito do seu sono, onde descansa a própria
Pedro robustece-se a fortaleza de todos, e de tal modo se ordena o carne que presidiu?» 5.
auxílio da graça divina, que a firmeza que se confere a Pedro por No início do seu pontificado, Bento XVI também se referiu à
Cristo dá-se aos outros Apóstolos por Pedro. Por isso, depois da missão de velar pela Igreja que o Senhor confiou a Pedro e seus su-
Ressurreição, o Senhor, para manifestar a tripla confissão do eter- cessores, e por três vezes pediu orações para ser fiel ao seu ministé-
no amor, depois de ter dado ao Bem-aventurado Apóstolo Pedro rio: «Uma das características fundamentais deve ser a de amar os

4. Jo 21, 15-17. 5. S. Leão Magno, Homilia na festa de S. Pedro Apóstolo.


346
Pegadas da nossa fé Tabgha Igreja do Primado 347

homens que lhe foram confiados, assim como ama Cristo, a cujo S. Josemaria deixou-nos a convicção de que, depois de Deus e
serviço se encontra. “Apascenta as minhas ovelhas”, diz Cristo a da nossa Mãe a Virgem Santíssima, na hierarquia do amor
Pedro, e a mim, neste momento. Apascentar significa amar, e amar e da autoridade, vem o Santo Padre 8. No dia 14 de Feverei-
quer dizer também estar prontos para sofrer. Amar significa: dar ro de 1975, durante a última tertúlia geral na Venezuela, exprimiu
às ovelhas o verdadeiro bem, o alimento da verdade de Deus, da esta ideia com outras palavras:
palavra de Deus, o alimento da sua presença, que ele nos oferece — Padre, como demonstrar o nosso amor e fidelidade ao papa,
no Santíssimo Sacramento. Queridos amigos neste momento eu nestes momentos?, perguntou uma mulher.
posso dizer apenas: rezai por mim, para que eu aprenda cada vez
— Que boa pergunta, minha filha!, respondeu. O Papa é
mais a amar o Senhor. Rezai por mim, para que eu aprenda a amar
o Vicecristo, o Papa é Pedro, o Papa é o representante de
cada vez mais o seu rebanho, a vós, a Santa Igreja, cada um de vós
Deus na terra. O nosso amor de cristãos tem que ser assim:
singularmente e todos vós juntos. Rezai por mim, para que eu não
Jesus Cristo, Maria santíssima, S. José, o Papa! O Papa
fuja, por receio, diante dos lobos. Rezai uns pelos outros, para que
por cima de tudo (...). Na terra, está formando – digamos
o Senhor nos guie e nós aprendamos a guiar-nos uns aos outros» 6.
assim – uma unidade de amor com Cristo, com Maria San-
O Bem-aventurado Álvaro del Portillo esteve na Igreja do Pri- tíssima, Mãe de Cristo, e com S. José (...). Já te respondi:
mado, no dia 16 de Março de 1994. Rezou pelo Papa e, além dis- amar o Papa!
so, apresentou-se-lhe uma ocasião particular para pedir pela sua
A gente rompeu numa salva de palmas e o Fundador do Opus
pessoa e intenções. Recordava-o D. Javier Echevarría pouco tem-
Dei uniu-se a eles, dizendo:
po depois:
— Sim, para o Papa, para o Papa este aplauso.
— «Quando entramos na Igreja do Primado, os frades francis-
canos que nos atenderam com muito carinho, encheram-se de ale- A ovação tornou-se então muito maior 9. n
gria ao ver o Padre. Disseram-nos: Aqui temos por costume deixar
aos bispos a estola que utilizou Paulo VI, quando fez a sua viagem
em 1964, para que deem a bênção aos fiéis. O Padre ficou muito
contente, porque tudo o que seja unir-se ao Papa, seja quem for, é
motivo de alegria para um bom filho da Igreja. Temos que amar o
Papa com loucura.
» O Padre estava muito feliz por utilizar essa estola, que é já
uma recordação, uma relíquia de Paulo VI. Deu a bênção aos fiéis.
Mas não contávamos com que as pessoas sempre querem mais.
Nesse momento, chegava um grupo de italianos que, ao ver o que
acabava de fazer o Padre, disseram: Também nós queremos uma
bênção. O Padre voltou a pôr a estola, deu-lhes a bênção com ale-
gria e pediu-lhes orações» 7.

8. S. Josemaria, Forja, n. 135.


6. Bento XVI, Homilia no solene inicio do Ministério Petrino, 24-IV-2005. 9. S. Josemaria, Apontamentos tomados durante uma tertúlia, 14-II-1975, recolhidos no
7. Javier Echevarría, Palavras recolhidas em Crónica, 1994, p. 294-295 vídeo intitulado St Josemaria Escriva talks about love for the Pope
(AGP, biblioteca, P01). (https://youtu.be/FD7DBEnpOrI).
348 Pegadas
DA NOSSA fé 25 349

FOTO: ALASTAR O CLAONAIN / FLICKR. ILUSTRAÇÃO: J. GIL.

Um recinto octogonal delimita


o Lugar da Ascensão, que é
recordado no centro, dentro
de uma capela. Basílica
Igreja de
Via Santa Ana

Oliveiras
do Santo Dolorosa
Sepulcro Getsémani Lugar da
Ascensão

Cédron
Dominus Pater Noster

das
Flevit
Cidadela
Cúpula da

nte
Al-Aqsa Rocha

Mo
Ge
Cenáculo
Basílica Cidade Velha

en
(V da Dormição

a
ale Muralha
de Hin
om) 0m 500

0 ft 1000

Jerusalém na atualidade

J esus Cristo realizou a obra da


redenção humana principal-
mente pelo mistério da sua
paixão, da sua ressurreição de en-
tre os mortos e da sua gloriosa as-
censão 1. Agora vamos considerar o
último desses episódios, que mar-
ca o fim de sua vida terrena. Des-
de o seu nascimento em Belém

O lugar da
já aconteceram muitas coisas:
encontrámo-Lo no berço, ado-
rado por pastores e reis; con-
templámo-Lo nos longos anos
de trabalho silencioso em Na-

Ascensão
zaré; acompanhámo-Lo pelas
terras da Palestina, pregando aos homens o reino de Deus
e fazendo bem a todos. E mais tarde, nos dias da sua Pai-

1. Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1067.


350
Pegadas da nossa fé Jerusalém O lugar da Ascensão 351

xão, sofremos ao ver como O acusavam, com que furor O


maltratavam e com que ódio O crucificavam.
À dor, seguiu-se a alegria luminosa da ressurreição.
Que fundamento tão claro e tão firme para a nossa fé! Já
não deveríamos duvidar. Mas talvez sejamos ainda fracos,
como os Apóstolos, e neste dia da ascensão perguntemos a
Cristo: é agora que vais restaurar o reino de Israel? (At 1,
6). É agora que vão desaparecer definitivamente todas as
nossas perplexidades e todas as nossas misérias?
O Senhor responde-nos subindo aos céus 2.
Os relatos bíblicos são muito sucintos sobre este acontecimen-
to que afirmamos no Credo. S. Marcos, depois de narrar algumas
aparições de Cristo ressuscitado aos seus discípulos, acrescenta: O
Senhor Jesus, depois de ter falado com eles, foi elevado ao Céu e
sentou-Se à direita de Deus 3. S. Lucas, tanto no Evangelho como
nos Atos dos Apóstolos, acrescenta alguns detalhes da cena: Je-
sus levou os discípulos até junto de Betânia e, erguendo as mãos,
abençoou-os. Enquanto os abençoava, afastou-Se deles e foi eleva-
do ao Céu. Eles prostraram-se diante de Jesus 4. Estando de olhar
fito no Céu, enquanto Jesus Se afastava, apresentaram-se-lhes
dois homens vestidos de branco, que disseram:
— Homens da Galileia, porque estais a olhar para o Céu? Esse
Jesus, que do meio de vós foi elevado para o Céu, virá do mesmo
modo que O vistes ir para o Céu.
Então os Apóstolos voltaram para Jerusalém, descendo o mon-
te chamado das Oliveiras, que fica perto de Jerusalém, à distância
de uma caminhada de sábado 5.
De acordo com estes dados, a tradição situa a Ascensão no cimo
da colina central do Monte das Oliveiras, a pouco mais de um qui-
lómetro da cidade, em direção a Betfagé e Betânia. Nessa elevação,
de uns 800 metros de altitude, foi construída uma igreja durante
a segunda metade do século IV. Segundo várias fontes, a iniciativa Uma abertura
no pavimento
permite ver a

FOTOS: ALFRED DRIESSEN
2. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 117. rocha donde,
3. Mc 16, 19. segundo a
4. Lc 24, 50-52. tradição, Jesus
5. At 1, 10-12. subiu ao céu.
352
Pegadas da nossa fé Jerusalém O lugar da Ascensão 353

MATTES / WIKIMEDIA COMMONS

STANISLAO LEE / CTS


As colunas conservaram os capitéis colocados durante o
restauro levado a cabo pelos Cruzados no século XII. No
exterior há dois altares de pedra utilizados pelas Igrejas
ortodoxas arménia e grega; os católicos, no entanto,
celebram dentro do edifício, num altar portátil.

Da mesma maneira que o Santo Sepulcro e outros edifícios de


culto da Palestina, o Imbomon sofreu danos quando da invasão dos
persas, no ano 614, e foi posteriormente restaurado pelo monge
Modesto. Contamos com uma valiosa descrição transmitida pelo
Bispo Arculfo, que o visitou pelo ano 670: tratava-se de uma igreja
partiu da nobre patrícia Poemenia, que teria ido de Constantino- de planta circular com três pórticos no interior, e uma capela tam-
pla, em peregrinação, à Terra Santa. Esse santuário era conhecido bém redonda no centro, não fechada com abóbadas ou telhado,
com o nome de Imbomon. Graças à peregrina Egéria, sabemos que mas sim a céu aberto para lembrar aos peregrinos a cena da As-
os fiéis de Jerusalém se reuniam nesse lugar para algumas cerimó- censão; na parte oriental desse espaço havia um altar protegido por
nias na Semana Santa e no dia de Pentecostes. uma pequena cobertura, e no meio uma rocha muito venerada, pois
354
Pegadas da nossa fé Jerusalém O lugar da Ascensão 355

muros de pedra foram acrescentados mais tarde. No interior, uma


abertura no pavimento, assinalada por quatro peças de mármore,
deixa ver a rocha venerada.

Esquema atribuído ao Facto histórico e acontecimento


Bispo Arculfo, que visitou
a Igreja da Ascensão pelo
de salvação O mistério da Ascensão abrange um facto
ano 670. histórico e um acontecimento de salvação. Como facto histórico,
«marca a entrada definitiva da humanidade de Jesus no domínio
celeste de Deus de onde há de voltar, mas que, entretanto, o ocul-
ta aos olhos dos homens» 7.
Ao considerar esta cena, S. Josemaria chamava a atenção, mui-
tas vezes, para a despedida do Senhor: Tal como os Apóstolos,
ficamos meio admirados, meio tristes, ao ver que nos deixa.
os fiéis consideravam-na o último lugar onde o Senhor tinha pou- Na realidade, não é fácil habituarmo-nos à ausência físi-
sado os pés, e reconheciam as suas pegadas impressas na pedra 6. ca de Jesus. Comove-me recordar que, num gesto magní-
O santuário foi reformulado durante a época dos Cruzados,
fico de amor, Se foi embora e ficou: que foi para o céu e Se
quando uma parte se converteu em Mosteiro dos Cónegos Regu-
nos entrega como alimento na Hóstia Santa. Mas nem por
lares de Santo Agostinho. No século XIII, os muçulmanos demoli-
isso deixamos de sentir a falta da sua palavra humana, do
ram os edifícios exceto a capela central – é a que chegou até nós – e
seu modo de atuar, de olhar, de sorrir, de fazer o bem (...).
posteriormente levantaram ao lado uma mesquita. Se bem que o
Sempre me pareceu lógico – e me encheu de alegria – que
lugar faça parte ainda hoje das propriedades do waqf – instituição
a Santíssima Humanidade de Jesus Cristo subisse à glória
religiosa islâmica –, na solenidade da Ascensão é permitido cele-
do Pai, mas penso também que esta tristeza, própria do dia
brar ali a Santa Missa: é um direito que os franciscanos da Custó-
da ascensão, é uma prova do amor que sentimos por Je-
dia da Terra Santa obtiveram das autoridades otomanas.
sus, Senhor nosso. Ele, sendo perfeito Deus, fez-Se homem,
perfeito homem, carne da nossa carne e sangue do nosso
A capela ergue-se no centro de um recinto octogonal, circunda- sangue; e separou-Se de nós para ir para o céu. É muito
do por um muro onde ainda são visíveis algumas bases das colunas natural que sintamos a sua falta 8.
do período dos Cruzados. Segundo os estudos arqueológicos, a pe-
Como acontecimento de salvação, a entrada de Cristo ressus-
quena igreja, também octogonal, apresenta a planta um pouco des-
citado no Céu manifesta o nosso destino definitivo: «Jesus Cristo,
locada em relação à construção bizantina; mesmo assim, cumpre a
Cabeça da Igreja, precede-nos no Reino glorioso do Pai para que
mesma função: preservar a memória das pegadas de Jesus e da sua
nós, membros do seu corpo, vivamos na esperança de estar um dia
Ascensão. No exterior, têm particular interesse artístico os arcos e
eternamente com Ele» 9. O Papa Francisco, poucas semanas de ter
as colunas, rematadas com capitéis finamente esculpidos, pois são
originais do século XII; o tambor, a cúpula e o fecho dos vãos com
7. Catecismo da Igreja Católica, n. 665.
8. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 117.
6. Cf. Adamnano, De locis sanctis, 1, 23 (CCL 175, 199-200). 9. Catecismo da Igreja Católica, n. 666.
356
Pegadas da nossa fé Jerusalém O lugar da Ascensão 357

MATTES / WIKIMEDIA COMMONS

DANIEL WEBER / FLICKR


A cúpula foi acrescentada na época islâmica. Originalmente,
a capela era a céu aberto, para evocar a Ascensão.

sido eleito, fazia-nos refletir sobre este significado da Ascensão e


sobre as suas consequências na vida de cada cristão. O seu ponto
de partida era a última peregrinação de Jesus a Jerusalém, quan-
do compreende que se aproxima a Paixão: «Enquanto ascende à
Cidade santa, de onde terá lugar o êxodo desta vida, Jesus vê já a
meta, o Céu, mas sabe bem que o caminho que o leva à glória do
Pai passa pela Cruz, através da obediência ao desígnio divino de
amor pela humanidade. O Catecismo da Igreja Católica afirma que
“a elevação na cruz significa e anuncia a elevação da Ascensão ao
céu” (n. 662). Também nós devemos ver claramente, na nossa vida
cristã, que a entrada na glória de Deus exige a fidelidade diária à
sua vontade, mesmo quando requer sacrifício, e às vezes exige que
mudemos os nossos programas» 10. Comentando estas palavras, o

10. Francisco, Audiência geral, 17-IV-2013.


358
Pegadas da nossa fé Jerusalém O lugar da Ascensão 359

Prelado do Opus Dei recordava: «Não esqueçamos, filhas e filhos simples – nem ricos nem sábios, nem influentes – tinham de levar
meus, que não há cristianismo sem Cruz, não há verdadeiro amor a todo o mundo a mensagem de um condenado.
sem sacrifício, e procuremos ajustar a nossa vida diária com esta » Menos de trezentos anos depois, uma grande parte do mundo
alegre realidade. Porque significa darmos os mesmos passos que romano tinha-se convertido ao cristianismo. A doutrina do cruci-
o Mestre deu» 11. ficado vencera as perseguições do poder, o desprezo dos sábios, a
Na mesma audiência, o Papa também tirava um ensinamento resistência a certas exigências morais que contrariavam as paixões.
do lugar escolhido pelo Senhor para a sua partida: «A Ascensão E, apesar dos vaivéns da história, ainda hoje o cristianismo conti-
de Jesus verifica-se concretamente no Monte das Oliveiras, perto nua a ser a maior força moral da humanidade. Só a graça de Deus
do lugar para onde se tinha retirado em oração antes da Paixão pode explicar isto. Mas a graça atuou através dos homens que se
para permanecer em profunda união com o Pai: mais uma vez ve- sabiam investidos de uma missão e a cumpriram» 16.
mos que a oração nos concede a graça de viver fiéis ao desígnio de A graça atuou através dos Apóstolos, porque todos estes perse-
Deus» 12. veravam unidos em oração, em companhia de algumas mulheres,
Jesus subiu aos céus, dizíamos. Mas, pela oração e pela entre as quais Maria, Mãe de Jesus 17. n
Eucaristia, o cristão pode ter com Ele a mesma intimida-
de que tinham os primeiros Doze, inflamar-se no seu zelo
apostólico, para com Ele realizar um serviço de correden-
ção, que é semear a paz e a alegria 13.
S. Lucas refere que os Apóstolos, depois de se despedirem do
Senhor, voltaram para Jerusalém com grande alegria 14. Essa rea-
ção só se explica pela fé, pela confiança; os discípulos compreen-
deram que, ainda que não vejam mais a Jesus, «permanece para
sempre com eles, não os abandona e, na glória do Pai, sustém-nos,
orienta-os e intercede por eles» 15.
«O encargo que um punhado de homens recebeu no Monte
das Oliveiras, perto de Jerusalém, durante uma manhã primaveril
cerca do ano 30 da nossa era, tinha todas as características de uma
“missão impossível”. Recebereis o poder do Espírito Santo, que descerá
sobre vós e sereis meus testemunhos em Jerusalém, em toda a Judeia, na
Samaria e até aos confins da terra (At 1, 8). As últimas palavras pro-
nunciadas pelo Cristo antes da Ascensão, pareciam uma loucura.
A partir dum recanto perdido do Império Romano, alguns homens

11. Javier Echevarría, Carta, 1-V-2013. 16. Beato Álvaro del Portillo, «Catholic Familyland», Issue XXVII, 1998 (Meditación
1989), recolhido em Rezar con Álvaro del Portillo: textos para meditar, Selección de José
12. Francisco, Audiência geral, 17-IV-2013.
Antonio Loarte, Cobel, 2014, n. 5.1. (livro disponível gratuitamente na internet:
13. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 120. http://opusdei.org/es-es/article/rezar-con-alvaro-del-portillo-libro-electronico-
14. Lc 24, 52. gratuito/).
15. Francisco, Audiência geral, 17-IV-2013. 17. At 1, 14.
360 Pegadas
DA NOSSA fé 26 361

ra: participando na vitória de Cristo, Ela venceu a morte e triun-


fa já na glória celestial com todo o seu ser, em corpo e alma. A li-
Alegram-se os Anjos turgia faz-nos contemplar este facto todos os anos na solenidade
da Assunção, 15 de Agosto, e na memória de Santa Maria Virgem,

pela sua
Rainha, que se celebra no dia 22 para lembrar que, desde a sua en-
trada no paraíso, exerce junto de seu Filho o reinado maternal so-
bre toda a criação.
Conhecemos poucos pormenores sobre os últimos anos de Nos-

Assunção
sa Senhora na terra. Entre a Ascensão e Pentecostes, a Sagrada Es-
critura situa-a no Cenáculo 3; depois permaneceria junto a S. João,
pois foi confiada aos seus cuidados filiais 4. Mas a Escritura não re-
gista o momento nem o ambiente em que ocorreu a Assunção. Se-
gundo alguns testemunhos antiquíssimos, teria sido em Jerusalém;
segundo outros, de origem mais recente, em Éfeso.
Entre as tradições da Cidade Santa, são de referir alguns relatos

M
que pertencem ao género apócrifo do Transitus Virginis ou Dormi-
aria foi levada por Deus, em corpo e alma, para tio Mariæ; com este termo sempre se quis exprimir que o fim da
os céus; há alegria entre os anjos e os homens. vida de Nossa Senhora se parecia a um doce sono. Esses escritos
Qual é a razão desta satisfação íntima que desco- narram que, quando Santa Maria deixou este mundo, reunidos
brimos hoje, com o coração que parece querer saltar-nos do os Apóstolos à volta do seu leito, o próprio Senhor desceu do céu
peito e a alma cheia de paz? Celebramos a glorificação da acompanhado de inumeráveis anjos e levou a alma da sua Mãe;
nossa Mãe e é natural que nós, os seus filhos, sintamos um depois, os discípulos colocaram o corpo num sepulcro e, passados
júbilo especial ao ver como é honrada pela Trindade Bea- três dias, o Senhor voltou para o levar e uni-lo à alma no paraíso.
tíssima (...): Filha de Deus Pai, Mãe de Deus Filho, Esposa Ao descrever estes factos, os autores diferenciam dois lugares: a
de Deus Espírito Santo; mais do que Ela, só Deus 1. casa onde se deu o trânsito e o túmulo de onde o corpo de Santa
A fé nesta verdade consoladora da Assunção leva-nos a afir- Maria foi elevado ao Céu.
mar que «a Virgem Imaculada, preservada imune de toda a man- Encontramos ecos destes testemunhos nos ensinamentos de
cha da culpa original, terminado o curso da vida terrena, foi ele- vários Padres da Igreja. S. João Damasceno, que morreu em Jeru-
vada ao céu em corpo e alma e exaltada pelo Senhor como rainha, salém em meados do século VIII, relata a Assunção de um modo
para assim se conformar mais plenamente com o seu Filho, Se- semelhante aos apócrifos e situa também os acontecimentos no
nhor dos senhores e vencedor do pecado e da morte» 2. Cenáculo e no Horto das Oliveiras: o corpo amortalhado da San-
Este é, portanto, o núcleo do ensinamento transmitido pela tíssima Virgem, «retirado do Monte Sião, colocado sobre os om-
Igreja sobre os últimos mistérios da vida terrena de Nossa Senho- bros gloriosos dos Apóstolos, é transportado, com o túmulo, para

1. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 171. 3. Cf. At 1, 13-14.


2. Catecismo da Igreja Católica, n. 966. 4. Cf. Jo 19, 25-27.
362
Pegadas da nossa fé Jerusalém Alegram-se os Anjos pela sua Assunção 363

Perspetiva da Cidade Velha de


Jerusalém e seus arredores,
publicada em 1928.

Porta de
Damasco
Porta de
Porta Basílica Herodes
de Jafa do Santo
Sepulcro
Basílica da
Dormição Cidadela Betesda Igreja de
Santa Ana
Cúpula da
Rocha
Porta dos
Monte do
Leões
templo
Cenáculo Porta Túmulo de
de Sião Santa Maria Gruta da
Hinom ou
Geena Mesquita Getsémani Traição
S. Pedro in de Al-Aqsa
Gallicantu Basílica
da Agonia Mosteiro
russo de Maria
Siloé Cédron Madalena
Lugar da
Santuário do Ascensão
THE NATIONAL LIBRARY OF ISRAEL, JERUSALÉM

Dominus Flevit

Convento do
Pater Noster

Monte das
Oliveiras

o templo celestial. Mas antes é conduzido através da cidade, como Basílica da Dormição; e em Getsémani, junto ao horto onde Jesus
uma esposa belíssima, adornada pelo esplendor inefável do Espí- rezou na noite de Quinta-feira Santa, o Túmulo de Santa Maria.
rito; e assim é acompanhada até ao horto santíssimo de Getsémani,
enquanto os anjos a precedem, a seguem e a cobrem com as suas
asas, com a Igreja em toda a sua plenitude» 5. A Basílica da Dormição Em páginas anteriores falou-
Na Cidade Santa, duas igrejas conservam ainda hoje a memória -se acerca do Monte Sião, isto é, a colina que se encontra no extre-
destes mistérios: no Monte Sião, a poucos metros do Cenáculo, a mo sudoeste da Cidade Santa e que recebeu esse nome na época
cristã. Ali, em volta do Cenáculo, nasceu a primitiva Igreja; e ali,
5. S. João Damasceno, Homilia II in Dormitionem Beatæ Mariæ Virginis, 12. durante a segunda metade do século IV, foi construída uma grande
364
Pegadas da nossa fé Jerusalém Alegram-se os Anjos pela sua Assunção 365

ISRAELI MINISTRY OF TOURISM

MORDAGAN / ISRAELI MINISTRY OF TOURISM


basílica, chamada Santa Sião e considerada a mãe de todas as igre-
A Basílica da Dormição tem anexa uma abadia beneditina. Da jas. Além do Cenáculo, incluía o lugar do Trânsito de Nossa Se-
Porta de Sião, uma rua conduz até ao Cenáculo – à esquerda –
e até à Dormição – à direita. A igreja, de planta circular, conta nhora, que a tradição situava numa casa próxima. Aquele templo
com uma abside decorada com um grande mosaico, onde está passou por várias destruições e restauros nos séculos seguintes, até
representada a Santíssima Virgem com o Menino Jesus. que apenas ficou incólume o Cenáculo. Contudo, nunca foi esque-
cido o vínculo da zona com a vida de Santa Maria, de modo que em
1910, quando o imperador da Alemanha Guilherme II conseguiu
uns terrenos em Sião, edificou-se uma abadia beneditina com uma
basílica anexa dedicada à Dormição de Nossa Senhora.
Trata-se de uma igreja de estilo românico alemão com traços
bizantinos, concebida em dois pisos. No piso superior encontra-
-se a nave principal, de planta circular, rematada por uma gran-
de cúpula decorada com mosaicos; à volta abrem-se seis capelas
laterais e, no lado oriental, uma abside que dá para o presbitério,
NOAM CHEN / ISRAELI MINISTRY OF TOURISM

com uma abóbada de canhão e uma semicúpula também decora-


da com um grande mosaico. Descendo ao piso inferior, a atenção
dirige-se para o centro da cripta, onde se encontra uma imagem
jacente da Santíssima Virgem protegida por um pequeno temple-
te. Várias capelas – ofertas de diversos países ou associações – ro-
deiam esse santuário.
366
Pegadas da nossa fé Jerusalém Alegram-se os Anjos pela sua Assunção 367

MARIE-ARMELLE BEAULIEU / CTS

Para chegar ao sepulcro venerado é preciso descer dois lances


de escadas: o primeiro, da rua até um pátio num nível inferior, que
serve de átrio da igreja e que também conduz à Gruta da Traição; o
segundo, dentro do edifício, do pórtico até a nave. Esta profundi-
dade explica-se porque o leito do Cédron tem subido com o passar
dos séculos, e porque a construção que se conservou até nós cor-
responderia na realidade à cripta da basílica primitiva, cuja obra
pode remontar ao séculos IV ou V.
Em 1972, uma inundação obrigou a realizar um profundo res-
tauro na igreja, e aproveitou-se o facto para proceder a investiga-
ções arqueológicas. Esses estudos, junto com as fontes históricas,
indicam que a sepultura onde, segundo a tradição, repousou o cor-
po da Virgem Maria fazia parte de um complexo funerário do sé-
culo I. Tinha sido inteiramente escavado na rocha e contava com
três recintos. Quando se decidiu incluir o túmulo de Santa Maria
num edifício de culto, os arquitetos bizantinos devem ter seguido
um procedimento parecido ao utilizado no Santo Sepulcro: isola-
ram-no à volta, eliminando também outras câmaras; substituíram o
teto por uma cúpula de cantaria, e por cima levantaram o santuário.
Como sucedeu com outros lugares cristãos na Terra Santa, as in-
No centro da cripta, destaca-se uma imagem jacente de Nossa Senhora. vasões do primeiro milénio fizeram com que o santuário se encon-
trasse deteriorado à chegada dos Cruzados, no século XI. Em 1101
instalou-se ali uma comunidade de beneditinos de Cluny, e come-
O Beato Álvaro del Portillo esteve na Basílica da Dormição em çaram as obras de restauro: foi aberta a entrada para a cripta, alon-
22 de Março de 1994, último dia da sua peregrinação à Terra San- gando a escadaria; dos lados da descida, foram construídas duas
ta. Ali fez a oração da manhã, preparando-se intensamente para capelas, utilizadas mais tarde como panteão real; embelezou-se o
celebrar a Santa Missa na Igreja do Cenáculo, no Convento de S. túmulo da Virgem Maria, cobrindo-o com um templete de már-
Francisco, nas proximidades. more; reconstruiu-se a igreja superior e, ao lado, construiu-se um
mosteiro com hospedaria para peregrinos, e um hospital. Poucos
decénios mais tarde, depois da conquista de Jerusalém por Saladi-
O Túmulo de Santa Maria O Túmulo de Santa no, de todo o conjunto ficavam apenas a cripta, a fachada e a escada-
Maria encontra-se no vale da torrente do Cédron, em Getsémani, ria que as unia, com as duas capelas: é o que constitui a igreja atual.
umas dezenas de metros ao norte da Basílica da Agonia e do Hor-
to das Oliveiras. É conhecida também pelo nome de Igreja da As-
sunção pelos cristãos ortodoxos gregos e arménios, que partilham Esperança nossa «O mistério da Assunção de Maria
a propriedade, e pelos sírios, coptas e etíopes, que detêm alguns em corpo e alma também está inteiramente inscrito na Ressurrei-
direitos sobre o lugar. ção de Cristo. A humanidade da Mãe foi “atraída” pelo Filho na
368
Pegadas da nossa fé Jerusalém Alegram-se os Anjos pela sua Assunção 369

NICOLA E PINA / PANORAMIO

SVETLANA GRECHKINA / FLICKR


A entrada para o Túmulo de Maria encontra-se vários metros abaixo do Filho: a pobreza de Belém, a vida oculta de trabalho ordi-
nível da rua. A fachada conserva elementos do restauro realizado no nário em Nazaré, a manifestação da divindade em Caná
século XII pelos Cruzados. Uma escada comprida leva-nos da entrada até da Galileia, as afrontas da Paixão, o Sacrifício divino da
à nave da igreja. Aos lados, abrem-se duas capelas.
Cruz, e a bem-aventurança eterna do Paraíso.
Tudo isto nos afeta diretamente, porque este itinerário
sua passagem através da morte. Jesus entrou de uma vez por todas sobrenatural há de ser também o nosso caminho. Maria
na vida eterna com toda a sua humanidade, a qual Ele recebera de mostra-nos que esta senda é praticável e segura. Ela pre-
Maria. Assim, Ela, a Mãe, que o seguira fielmente durante toda a cedeu-nos na via da imitação de Cristo, e a glorificação da
sua vida, tinha-O seguido com o coração, entrou com Ele na vida nossa Mãe é a firme esperança da nossa salvação. Por isso
eterna, que também chamamos Céu, Paraíso, Casa do Pai» 6. Ao lhe chamamos spes nostra e causa nostræ lætitiæ, esperan-
mesmo tempo, «a Assunção é uma realidade que também nos diz ça nossa e causa da nossa alegria.
respeito, porque nos indica de modo luminoso o nosso destino, o Não podemos perder nunca a esperança de chegar a ser
da humanidade e da história. Com efeito, em Maria contempla- santos, de aceitar o convite do Senhor, de ser perseveran-
mos aquela realidade de glória à qual é chamado cada um de nós, tes até ao final. Deus, que em nós começou a obra da san-
juntamente com toda a Igreja» 7. tificação, levá-la-á a cabo (cf. Fil 1, 6) 8.
Nossa Senhora, participando plenamente na obra da Esta esperança, que é um dom de Deus, não nos exime da luta:
nossa salvação, tinha de seguir de perto os passos de seu ninguém pode permanecer passivo. Pelo contrário, a fé e a própria
experiência demonstram-nos que a vida cristã passa pela Cruz
6. Francisco, Homilia, 15-VIII-2013.
7. Bento XVI, Angelus, 15-VIII-2012. 8. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 176.
370
Pegadas da nossa fé Jerusalém Alegram-se os Anjos pela sua Assunção 371

FOTOS: SVETLANA GRECHKINA / FLICKR


No centro da nave, encontra-se uma capela que cobre o sepulcro onde,
segundo a tradição, os Apóstolos colocaram o corpo da Virgem Maria
antes da Assunção. A câmara funerária está escavada na rocha e tem
para alcançar a glória, e que a fidelidade consiste num contínuo um banco adossado à parede para colocar o corpo.
começar e recomeçar. Recomeçar? – Sim!: cada vez que fa-
zes um ato de contrição – e diariamente deveríamos fazer
muitos – recomeças, porque dás a Deus um novo amor 9. jos de felicidade. A fé ensina-nos que tudo tem um sentido
A nossa existência na terra é um tempo de peregrinação, de divino, pois esta é uma característica intrínseca e própria
viagem, pelo que não faltarão os sacrifícios, a dor e as privações... do caminho que nos conduz à casa do Pai. Esta maneira
mas haverá também a alegria. sobrenatural de compreender a existência terrena do cris-
tão não simplifica a complexidade humana, mas assegura
Talvez julgueis que este otimismo é excessivo, porque ao homem que essa complexidade pode ser penetrada pelo
todos os homens conhecem as suas insuficiências e os seus nervo do amor de Deus, pelo cabo forte e indestrutível que
fracassos, experimentam o sofrimento, o cansaço, a ingra- liga a vida na terra à vida definitiva na Pátria 10.
tidão, talvez até o ódio. E nós, os cristãos, sendo iguais aos
outros, como poderemos estar livres dessas constantes da Para aumentar a nossa esperança, recorramos confiados à San-
condição humana? tíssima Virgem Maria: Cor Mariæ Dulcissimum, iter para tu-
tum, Coração Dulcíssimo de Maria, dá força e segurança
Seria ingénuo negar a reiterada presença da dor e do ao nosso caminho na terra. Sê tu mesma o nosso caminho,
desânimo, da tristeza e da solidão, durante a nossa pere- porque tu conheces as vias e os atalhos certos que, através
grinação por esta terra. Pela fé, aprendemos com seguran- do teu amor, levam ao amor de Jesus Cristo 11. n
ça que nada disso é produto do acaso e que o destino da
criatura não é caminhar para a aniquilação dos seus dese-
10. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 177.
9. S. Josemaria, Forja, n. 384. 11. Ibid., n. 178.
372 Pegadas
DA NOSSA fé 27 373

ao Mediterrâneo e terminando num promontório sobre a cidade


de Haifa. Tem o comprimento de 25 km e uma largura que varia
entre os dez e os quinze, com uma altitude média de 500 metros. O
nome deriva da palavra kerem que significa horto, vinha ou jardim,

Monte
sempre com o matiz acrescentado da beleza. Esta qualificação ajus-
ta-se à realidade: nesta cadeia brotam muitas fontes pelo que nas
suas colinas e barrancos cresce uma flora rica e variada, tipicamen-
te mediterrânica: loureiros, murtas, azinheiras, tamarindos, cedros,

Carmelo
pinheiros, alfarrobeiras, lentiscos... Esta fertilidade foi sempre pro-
verbial e nos vários livros do Antigo Testamento aparece como o
símbolo da prosperidade de Israel, ou também da sua desgraça, em
caso de aflição: O Senhor rugirá de Sião, trovejará de Jerusalém, os
prados dos pastores estarão de luto, o cume do Carmelo secará 2.
Existem também numerosas cavernas – mais de mil – particular-
Santuário de Stella Maris mente a oeste, com abertura estreita mas muito amplas.
A história do Carmelo está intimamente ligada ao profeta Elias
que viveu no século IX a. C. Segundo a tradição recolhida pelos San-
tos Padres e por outros escritores da antiguidade, mantinha-se viva

J
em vários locais a memória da sua presença: uma gruta na ladeira
norte, no cabo de Haifa, onde viveu primeiro ele e depois Eliseu;
esus percorreu muitas cidades e aldeias da Palestina durante perto dali, o local onde se reuniam com os seus discípulos, chama-
os três anos da sua vida pública, anunciando o Reino de Deus. do pelos cristãos Escola de Profetas e em árabe El Hader; na mes-
O seu ministério itinerante desenvolveu-se sobretudo nas mar- ma zona, a oeste, uma nascente conhecida como a fonte de Elias,
gens do Mar da Galileia, em Jerusalém e nas viagens entre esses que ele mesmo teria feito brotar da rocha; e a sudeste do maciço,
dois locais: de norte para sul e de sul para norte, seguindo o rio Jor- o cume de El-Muhraqa e a torrente do Qisom, onde enfrentou os
dão ou através da Samaria. Os Evangelistas contam-nos também quatrocentos e cinquenta profetas de Baal, por intermédio da sua
que certa vez se retirou para lá dos confins da Galileia, para a re- oração Deus fez descer fogo do céu, e deste modo o povo abando-
gião de Tiro e Sídon que foram a antiga Fenícia e hoje são o Líba- nou a idolatria, segundo relata o primeiro livro dos Reis 3.
no 1; contudo não existem registos de que tenha chegado até à costa Nestes locais venerados desde o alvor do cristianismo, onde
do Mediterrâneo onde a população era maioritariamente gentil. É se construíram igrejas e mosteiros em memória de Elias, nasceu
nesse local que se situa o monte Carmelo, especialmente ligado a a Ordem do Carmo. A sua origem remonta à segunda metade do
Elias e a Eliseu, dois grandes profetas do Antigo Testamento e, na século XII, quando S. Bertoldo de Malafaida, cruzado de origem
época cristã, ao nascimento da Ordem do Carmelitas. francesa, reuniu à sua volta alguns eremitas que viviam dispersos
O Carmelo é uma cadeia de montanhas, de rocha calcária, que em El Hader, na zona do monte Carmelo, próxima de Haifa. Edi-
se separa do sistema montanhoso da Samaria, prolongando-se até
2. Am 1, 2. Cf. Is 33, 9 e 35, 2; Jr 50, 19; e Na 1, 4.
1. Cf. Mt 15, 21 e Mc 7, 24. 3. Cf. 1 Re 18, 19-40.
374
Pegadas da nossa fé Monte Carmelo santuário de Stella Maris 375

FOTO: LEOBARD HINFELAAR. ILUSTRAÇÃO: J. GIL

ão
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Ptolemaida

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(Acre) Corazim
Betsaida
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Cafarnaum
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Cabo de
Haifa
Magdala
Cidade Mar da
atual Galileia
Stella
Maris Tiberíades
Antigo Hippos

M
Mosteiro de Sussita

o
Wadi es-Siah
te Séforis

n
Caná (Kefer-Kenna)
Imagem do

Ca
profeta Elias que

rm
se encontra no
exterior do

e
santuário de Nazaré

lo
El-Muhraqa.
El-Muhraqa Monte
Tabor
Santuário do
Sacrifício
de Elias Naim
P L A N Í C I E D E
E S D R E L O N

ficaram ali um santuário e mais tarde, por volta de 1200, outro na


ladeira ocidental, em Wadi es-Siah. S. Brocardo, sucessor de Ber-
toldo como prior, nos primeiros anos dos século XIII solicitou ao
Patriarca de Jerusalém uma aprovação oficial e uma norma que or-
ganizasse a sua vida religiosa de solidão, ascese e oração contem-
plativa: é a Regra do Carmo – também chamada Regra do Nosso
Salvador – ainda em vigor nos nossos dias. Por diversas razões, o
reconhecimento do Papa atrasou-se até 1226. A partir de então e O atual
por causa da incerteza que os cristãos sofriam no oriente, alguns Mosteiro e
carmelitas regressaram aos seus países na Europa, onde constituí- Santuário de
ram novos mosteiros. Este êxodo foi providencial para a sobrevi- Stella Maris

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ergue-se no
vência e expansão da Ordem do Carmo, pois em 1291 os exércitos extremo norte
do Egito conquistaram Acre e Haifa, queimaram os santuários do do Monte
Monte Carmelo e assassinaram os monges. Carmelo.
376
Pegadas da nossa fé Monte Carmelo santuário de Stella Maris 377

Por trás do
EREZ RAVIV / FLICKR

LEOBARD HINFELAAR
altar, situado
sobre uma
gruta que
recorda a
presença do
profeta Elias
no Carmelo,
encontra-se
uma imagem
de Nossa
Senhora do
Carmo de
Stella Maris.

Relatar a história da Ordem do Carmo seria demasiado exten-


so. No que diz respeito à Terra Santa, basta referir que, exceto um
interregno no século XVII, a Ordem não pôde restabelecer-se no
Monte Carmelo a não ser a partir do princípio do século XIX. Entre
1827 e 1836, foi construído no extremo norte, sobre uma gruta que
lembrava a presença de Elias, o atual Mosteiro e Santuário de Stel-
la Maris: assim como a nuvenzinha que o criado de Elias avistou e
trouxe a chuva que fecundaria a terra de Israel, depois do episódio
dos falsos profetas 4, assim também de Nossa Senhora nasceu Cris-

ISRAELI MINISTRY OF TOURISM


to, pelo qual a graça de Deus se derramou por toda a terra. Os edi-
fícios de três andares, formam um conjunto retangular de sessenta

4. Cf. 1 Re 18, 44.


378
Pegadas da nossa fé Monte Carmelo santuário de Stella Maris 379

FOTOS: WWW.BIBLEWALKS.COM

Vista do alto de El-Muhraqa e, à direita, do


Santuário carmelita do Sacrifício de Elias.

metros de comprimento por seis de largura. Para norte a vista da


baía de Haifa é magnífica e em dias límpidos pode avistar-se Acre
seguindo a linha do litoral. Entra-se na igreja pela fachada oeste:
o espaço ao centro é octogonal e está coberto por uma cúpula de-
corada com cenas de Elias e de outros profetas, a Sagrada Família,
os Evangelistas e alguns santos carmelitas. As pinturas foram fei-
tas em 1928. Também é dessa época o revestimento do templo em
mármore, terminado em 1931. O ponto central é o presbitério: por
trás do altar, num nicho, encontramos uma imagem de Nossa Se-
nhora do Carmo e, por debaixo, a gruta onde, segundo a tradição, manifestação de espírito de penitência, pôs-se de joelhos, não no
habitou Elias. É um espaço de aproximadamente três por cinco me- genuflexório do banco, mas sobre a pedra. Aí, diante do Santís-
tros, separado da nave por duas colunas de pórfiro e uns degraus, simo e da imagem de Nossa Senhora do Monte Carmelo, esteve
ao fundo está um altar e uma imagem do profeta. a rezar quase um quarto de hora, preparando-se para a visita aos
Na tarde de 14 de Março de 1994, o Beato Álvaro del Portillo Santos Lugares» 5.
chegou à Terra Santa e dormiu em Tel Aviv. No dia seguinte, no
seu caminho para a Galileia, parou no Santuário de Stella Maris: 5. Javier Echevarría, Palavras recolhidas em Crónica, 1994, p. 274-275
«Entrou naquela igreja – contava D. Javier Echevarría –, e como (AGP, biblioteca, P01).
380
Pegadas da nossa fé Monte Carmelo santuário de Stella Maris 381

Além de Stella Maris, a Ordem do Carmo tem outro santuário

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no extremo sul do Monte Carmelo, em El-Muhraqa, conhecido
como Sacrifício de Elias: lembra o episódio dos profetas de Baal já
referido. No entanto, do antigo mosteiro fundado em Wadi es-Siah,
atualmente Nahal Siakh, apenas subsistem ruínas.

A devoção do escapulário
do Carmo Ao longo dos séculos, a Ordem do Carmo
dotou a cristandade inúmeros tesouros espirituais: basta pensar
nas vidas exemplares e nos ensinamentos de Santa Teresa de Ávi-
la, S. João da Cruz ou de Santa Teresa de Lisieux, os três nomea-
dos Doutores da Igreja. Entre essas riquezas, destaca-se o costu-
me do escapulário que S. Josemaria viveu, difundiu e estabeleceu
que todos os fiéis da Obra o tivessem: Traz sobre o peito o san-
to escapulário do Carmo. – Poucas devoções (há muitas, e As ruínas que se acharam em Wadi es-Siah remontam aos séculos XII e XVII.
muito boas devoções marianas) estão tão arraigadas entre
os fiéis e têm tantas bênçãos dos Pontífices. – Além disso, é
tão maternal este privilégio sabatino! 6. Carmelitis / aos Carmelitas
O escapulário assegura a quem o usa com piedade duas prer- da privilegia / concede privilégios
rogativas: ajuda para perseverar no bem até ao momento da morte Stella Maris / Estrela do mar
e a libertação das penas do purgatório. Esta devoção começou em Em resposta à sua oração, Nossa Senhora apareceu-lhe trazen-
1251, durante um momento de especial contradição para a Ordem, do na mão o escapulário e disse-lhe: «Este é um privilégio para ti e
que dava os seus primeiros passos na Europa. Segundo uma reda- todos os teus: quem morrer usando-o, salvar-se-á». Uma redação
ção antiga do Catálogo dos santos carmelitas, na qual se funda este mais longa afirma: «Aquele que morrer usando-o, não sofrerá o
relato, um certo S. Simão – identificado mais tarde como S. Simão fogo eterno... salvar-se-á». O escapulário formava então parte do
Stock, prior geral inglês – recorria insistentemente a Nossa Senho- hábito religioso, ainda que a sua origem tenha sido uma roupa de
ra com a seguinte súplica: trabalho que os servos e os artesãos usavam. Consistia numa tira
Flos Carmeli / Flor do Carmelo de pano com uma abertura para enfiar pela cabeça, que se sobre-
vitis florigera / vide florida punha sobre a túnica, e caía sobre o peito e as costas.
splendor cœli / esplendor do céu A segunda prerrogativa, conhecida como privilegio sabatino,
Virgo puerpera / Virgem fecunda procede de uma tradição medieval. A Sé Apostólica estabeleceu
singularis / e singular em 1613, através de um decreto, que o povo cristão pode acreditar
Mater mitis / oh doce Mãe piedosamente na ajuda da Santíssima Virgem às almas dos frades
sed viri nescia / que não conheceu varão e confrades da Ordem do Carmo que falecerem na graça de Deus,
usando o escapulário, vivendo a castidade de acordo com o seu es-
6. S. Josemaria, Caminho, n. 500. tado e rezando o Ofício Breve ou – se não sabem ler – guardarem
382
Pegadas da nossa fé Monte Carmelo santuário de Stella Maris 383

os jejuns e abstinências determinados pela Igreja; e que Nossa Se- Jesus, do alto da cruz, fez a João, e nele a todos nós, de sua Mãe;
nhora atuará com a sua proteção especialmente no sábado, dia es- e a entrega do apóstolo predileto e de nós a Ela, constituída como
pecialmente dedicado pela Igreja à Mãe de Deus. Isto é, o privilegio nossa Mãe espiritual» 7.
sabatino funda-se numa verdade usual da doutrina cristã comum: Estas ideias estão contidas nas palavras que o celebrante pro-
a solicitude maternal de Santa Maria para fazer com que os filhos nuncia na bênção do escapulário: «Deus (…), olhai benignamente
que expiam as suas culpas no purgatório alcancem, o mais depres- para os vossos servos que recebem piedosamente este escapulário
sa possível, por sua intercessão, a glória do Céu. em honra da Virgem Santa Maria, e fazei que se tornem verdadei-
Ao mesmo tempo que a Ordem do Carmo se ia desenvolvendo ra imagem de Cristo, de modo que, ao terminarem o curso da sua
– especialmente nos séculos XVI e XVII, graças a várias reformas –, vida terrena, com o auxílio da Virgem Santíssima, mereçam entrar
também se multiplicaram as suas confrarias. Atraiam muitos fiéis na alegria da vossa morada celeste» 8.
que, sem abraçarem a vida religiosa, participavam da devoção a Ao falar da intimidade com Deus, S. Josemaria animava-nos
Nossa Senhora difundida pela espiritualidade carmelita. Manifes- com frequência a sermos crianças, a reconhecer que necessitamos
tavam-no vestindo o escapulário, que se foi simplificando na sua sempre da ajuda da graça. E também nos ensinou a percorrer este
forma até se converter em dois quadrados de tecido unidos por fi- caminho pela mão de Nossa Senhora:
tas para usá-lo ao pescoço. Porque Maria é Mãe, a sua devoção ensina-nos a ser
A Sé Apostólica interveio, em numerosas ocasiões, para fomen- filhos: a amar deveras, sem medida; a ser simples, sem as
tar este costume, unindo-lhe a faculdade de ganhar indulgências e complicações que nascem do egoísmo de pensar só em nós;
fixando algumas questões práticas: a cerimônia de imposição, que a estar alegres, sabendo que nada pode destruir a nossa
basta receber-se uma vez apenas, pode ser realizada por qualquer esperança. O princípio do caminho que leva à loucura do
sacerdote; a bênção de um novo escapulário para substituir outro amor de Deus é um confiado amor a Maria Santíssima: es-
já gasto; ou a possibilidade de substituir o tecido por uma medalha crevi-o há muitos anos, no prólogo a uns comentários ao
com as imagens do Sagrado Coração de Jesus e de Nossa Senhora. Santo Rosário, e desde então voltei a comprovar repeti-
Há alguns anos, na celebração do 750º aniversário da entrega damente a verdade destas palavras. Não vou fazer aqui
do escapulário – a aparição a S. Simão Stock –, o Papa João Pau- grandes considerações em torno desta ideia; mas convido-
lo II, que o usava desde jovem , resumiu assim o seu valor religio- -vos a fazer esta experiência, a descobri-lo pessoalmente
so: «Duas são, portanto, as verdades evocadas no símbolo do Es- em conversa amorosa com Maria, abrindo-lhe o coração,
capulário: por um lado, a proteção contínua da Santíssima Virgem, confiando-lhe as vossas alegrias e as vossas penas, pedin-
não só ao longo do caminho da vida, mas também no momento do-lhe que vos ajude a conhecer e a seguir Jesus 9. n
da passagem para a plenitude da glória eterna; por outro lado, a
consciência de que a devoção a Ela não pode limitar-se a orações e
obséquios em sua honra nalgumas circunstâncias, mas deve cons-
tituir um “hábito”, quer dizer, uma orientação permanente da con-
duta cristã, tecida de oração e de vida interior, mediante a prática
frequente dos Sacramentos e o exercício concreto das obras de mi-
sericórdia espirituais e corporais. Deste modo, o escapulário con- 7. S. João Paulo II, Mensagem à Ordem do Carmo por ocasião da dedicação do ano de
2001 a Maria, 25-III-2001.
verte-se em símbolo de “aliança” e de comunhão recíproca entre 8. Ritual Romano. Celebração das Bênçãos, n. 1218.
Maria e os fiéis: de facto, traduz de modo concreto a entrega que 9. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 143.
Anexos 385

Renovação das promessas batismais Todos: Sim, renuncio.


Sacerdote: Credes em Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra?
A liturgia da Igreja não prevê uma cerimónia concreta e exclusiva para este fim,
fora da Santa Missa. Se servir para a piedade dos peregrinos, estes podem re- Todos: Sim, creio.
novar as promessas batismais à beira do rio Jordão utilizando uma adaptação Sacerdote: Credes em Jesus Cristo, seu único Filho, Nosso Senhor, que nas-
dos textos propostos para a Vigília Pascal (cf. Missal Romano, edição portuguesa, ceu da Virgem Maria, padeceu e foi sepultado, ressuscitou dos mortos e está
1992, p. 320-321; Ritual Romano, Celebração do Batismo das Crianças, 2.ª edição, sentado à direita do Pai?
p. 59; Ritual Romano, Celebração das bênçãos, p. 37). Todos: Sim, creio.

V. Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.


Sacerdote: Credes no Espírito Santo, na santa Igreja católica, na comunhão dos

R. Amen.
santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne e na vida eterna?

V. O Senhor esteja convosco.


Todos: Sim, creio.

R. Ele está no meio de nós.


O sacerdote faz sua esta profissão de fé, dizendo: Esta é a nossa fé. Esta é a

R. Amen.
fé da Igreja, que nos gloriamos de professar em Jesus Cristo, nosso Senhor!

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, segundo São Marcos 1, 6b-11


Naquele tempo, João começou a pregar, dizendo: «Vai chegar depois de mim A seguir, o sacerdote asperge os presentes com água do rio Jordão, enquan-
quem é mais forte do que eu, diante do qual eu não sou digno de me inclinar to diz:
para desatar as correias das suas sandálias. Eu batizo na água, mas Ele bati- Esta água nos recorde o nosso batismo em Cristo, que nos remiu com a Sua

R. Amen.
zar-vos-á no Espírito Santo». Sucedeu que, naqueles dias, Jesus veio de Na- Morte e Ressurreição.
zaré da Galileia e foi batizado por João no rio Jordão. Ao subir da água, viu os
céus rasgarem-se e o Espírito, como uma pomba, descer sobre Ele. E dos céus
ouviu-se uma voz: «Tu és o meu Filho muito amado, em Ti pus toda a minha
complacência». No final, recita-se o Pai Nosso.

R. Glória a Vós, Senhor.


Palavra da salvação. Sacerdote: Porque nos chamamos e somos filhos de Deus, ousamos dizer com
toda a confiança:
Pai nosso, que estais nos céus, santificado seja o vosso nome; venha a
nós o vosso reino; seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu.
Sacerdote: Irmãos Caríssimos: Pelo mistério pascal, fomos sepultados com O pão nosso de cada dia nos dai hoje; perdoai-nos as nossas ofensas, as-
Cristo no Batismo, para vivermos com Ele uma vida nova. Por isso, renovemos sim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido; e não nos deixeis
as promessas do santo Batismo, pelas quais renunciámos outrora a Satanás e cair em tentação; mas livrai-nos do mal. Amen.
às suas obras e prometemos servir fielmente a Deus na santa Igreja Católica.
Sacerdote: Renunciais ao pecado para viverdes na liberdade dos filhos de O sacerdote conclui: Deus todo-poderoso, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo,
Deus? que nos fez renascer pela água e pelo Espírito Santo e nos perdoou todos os
Todos: Sim, renuncio. pecados, nos guarde com a sua graça, em Cristo Jesus Nosso Senhor, para a

R. Amen.
Sacerdote: Renunciais às seduções do mal, para que o pecado não vos vida eterna.
escravize?

R. Amen.
Todos: Sim, renuncio. Abençoe-vos Deus Todo-poderoso Pai, Filho ✠ e Espírito Santo.
Sacerdote: Renunciais a Satanás, que é o autor do mal e pai da mentira?
Anexos 387

Renovação das promessas matrimoniais Sacerdote: O Senhor vos guarde em todos os dias da vossa vida. Seja o vos-
so conforto na tristeza e auxílio na prosperidade, e encha a vossa casa com a
A liturgia da Igreja prevê várias fórmulas para este fim, dentro e fora da Santa abundância das suas bênçãos. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, que

R. Amen.
Missa. Damos a seguir uma adaptação dos textos propostos (cf. Ritual Romano, é Deus convosco na unidade do Espírito Santo.
Celebração das bênçãos, p. 44; Ritual Romano, Celebração do Matrimónio, 3.ª
edição, p. 189-190), que os peregrinos podem utilizar para renovar as promessas
matrimoniais em Caná de Galileia ou na Igreja de S. Ana, em Jerusalém.
O sacerdote pode benzer as alianças:

V. Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Fortalecei e santificai, Senhor, o amor dos vossos servos, para que, entregan-

R. Amen. do um ao outro estas alianças, em sinal de fidelidade, progridam sempre na

V. O Senhor esteja convosco.


graça do sacramento. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, que é Deus

R. Ele está no meio de nós. R. Amen.


convosco na unidade do Espírito Santo.

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, segundo São Marcos 10, 6-9 Segue a oração do Senhor.
Naquele tempo, disse Jesus: «No princípio da criação, “Deus fê-los homem Sacerdote: Porque nos chamamos e somos filhos de Deus, ousamos dizer com
e mulher. Por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa, e toda a confiança:
os dois serão uma só carne”. Deste modo, já não são dois, mas uma só carne. Pai nosso, que estais nos céus, santificado seja o vosso nome; venha a
Portanto, não separe o homem o que Deus uniu». nós o vosso reino; seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu.
O pão nosso de cada dia nos dai hoje; perdoai-nos as nossas ofensas, as-

R. Glória a Vós, Senhor.


Palavra da salvação.
sim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido; e não nos deixeis
cair em tentação; mas livrai-nos do mal. Amen.

Sacerdote: Recordando o dia da celebração do sacramento do Matrimónio, O sacerdote, com as mãos estendidas, diz a oração da bênção:
em que unistes as vossas vidas com um vínculo indissolúvel, desejais agora
renovar diante do Senhor os compromissos que então assumistes. A fim de Senhor, Pai santo, que elevastes a tão grande dignidade a indissolúvel aliança
que estes compromissos sejam confirmados com a graça divina, orai ao Se- matrimonial, tornando-a imagem e símbolo da união nupcial de Cristo com a
nhor no íntimo do vosso coração. Igreja, olhai com bondade para estes vossos servos N. e N., que, unidos pelo
Matrimónio, imploram o vosso auxílio e a intercessão da Virgem Santa Maria:
Os cônjuges renovam em silêncio o seu compromisso. fazei que o seu amor se manifeste sempre nas alegrias e nas tristezas, ajudan-
Se, porém, parecer oportuno e os esposos quiserem renovar em voz alta o seu do-se mutuamente, solícitos em conservar a unidade de espírito pelo vínculo
compromisso, procede-se do seguinte modo: da paz; encontrem nos seus trabalhos a vossa presença reconfortante, sintam
O esposo: Bendito sejais, Senhor, que me concedestes a graça de receber nas tribulações a vossa companhia consoladora, e reconheçam sempre em

R. Amen.
N. por minha esposa. Vós a fonte da perfeita alegria. Por Nosso Senhor.

A esposa: Bendito sejais, Senhor, que me concedestes a graça de receber


N. por meu esposo. O sacerdote conclui dizendo:

R. Amen.
Ambos: Bendito sejais, Senhor, porque nos assististes com a vossa graça Abençoe-vos Deus todo-poderoso, Pai, Filho ✠ e Espírito Santo.
nos momentos felizes e nos momentos difíceis da nossa vida. Ajudai-nos,
nós Vos pedimos, a conservar fielmente o amor recíproco, para que seja-
mos testemunhas fiéis da aliança, que contraístes com os homens.
Anexos 389

Renovação das promessas sacerdotais Sacerdotes: Sim, quero.


Em seguida, dirigindo-se ao povo, o Bispo diz:
A liturgia da Igreja não prevê uma cerimónia concreta e exclusiva com este fim
fora da Santa Missa. Se servir para a piedade dos sacerdotes, especialmente se E agora, filhos caríssimos, orai pelos vossos presbíteros, para que o Senhor
peregrinarem com o seu Bispo, podem renovar as promessas sacerdotais junto derrame abundantemente sobre eles as suas bênçãos, a fim de que sejam
do Cenáculo utilizando uma adaptação dos textos propostos para Missa Crismal ministros fiéis de Cristo Sumo Sacerdote, e vos conduzam a Ele, única fonte
(cf. Missal Romano, edição portuguesa, 1992, p. 234-235). de salvação.
Povo: Cristo, ouvi-nos. Cristo, atendei-nos.

V. Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Bispo: Rezai também por mim, para que seja fiel ao ministério apostólico que

R. Amen. me foi confiado e seja imagem, cada vez mais viva e perfeita, de Cristo Sacer-

V. O Senhor esteja convosco.


dote, Bom Pastor, Mestre e Servo de todos.

R. Ele está no meio de nós.


Povo: Cristo, ouvi-nos. Cristo, atendei-nos.

E conclui o Bispo: O Senhor nos guarde a todos no seu amor e nos conduza

R. Amen.
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, segundo São Mateus 10, 1-5a à vida eterna.
Naquele tempo, Jesus chamou a Si os seus doze discípulos e deu-lhes poder

R. Amen.
de expulsar os espíritos impuros e de curar todas as doenças e enfermidades.
São estes os nomes dos doze apóstolos: primeiro, Simão, chamado Pedro, e
Abençoe-vos Deus Todo-poderoso Pai, Filho ✠ e Espírito Santo.
André, seu irmão; Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão Filipe e Bartolo-
meu; Tomé e Mateus, o publicano; Tiago, filho de Alfeu, e Tadeu; Simão, o Ca-
naneu, e Judas Iscariotes, que foi quem O entregou. Jesus enviou estes Doze.

R. Glória a Vós, Senhor.


Palavra da salvação.

O Bispo dialoga com os sacerdotes com estas ou outras palavras semelhantes:


Bispo: Filhos caríssimos, neste lugar onde Cristo instituiu o sacerdócio, que-
reis renovar as promessas que fizestes, no dia da ordenação, diante do vosso
Bispo e do povo santo de Deus?
Os sacerdotes, simultaneamente respondem: Sim, quero.
Bispo: Quereis viver mais intimamente unidos a Cristo e configurar-vos com
Ele, renunciando a vós mesmos e permanecendo fiéis aos compromissos que,
por amor de Cristo e da Sua Igreja, aceitastes alegremente no dia da vossa or-
denação sacerdotal?
Sacerdotes: Sim, quero.
Bispo: Quereis permanecer fiéis dispensadores dos mistérios de Deus na ce-
lebração eucarística e nas outras ações litúrgicas e desempenhar fielmente
o ministério da pregação, como seguidores de Cristo, Cabeça e Pastor, sem
ambicionar bens temporais, mas movidos unicamente pelo zelo das almas?
Cafarnaum

Índices
A cidade de Jesus | 106
A casa de Pedro | 109
Sinagoga | 113
Tabgha
Igreja das Bem-aventuranças | 120
Igreja da Multiplicação | 134
Igreja do Primado | 338
Caná
Haifa Igreja das
Bodas | 99
Santuários do Monte
Carmelo | 372 Monte
Nazaré Tabor
Basílica da Anunciação | 12 Basílica da
Mistérios gozosos Mistérios luminosos Mistérios dolorosos Mistérios gloriosos Igreja de S. José | 74 Transfiguração
160
A Anunciação do Anjo à O Batismo de Jesus | 84 A Oração de Jesus no Horto A Ressurreição de Nosso Senhor
Virgem Nossa Senhora | 12 A Revelação de Jesus nas 222 302, 324, 338
A Visitação de Nossa bodas de Caná | 96 A Flagelação do Senhor | 260 A Ascensão de Jesus aos Céus | 348 Emaús
Senhora à sua prima Santa O anúncio do Reino de Deus A Coroação de espinhos | 263 A vinda do Espírito Santo | 208, 214 Santuário de
Isabel | 24 106, 120 Jesus com a Cruz às costas A Assunção de Nossa Senhora | 360 Al-Maghtas
Emaús-El-Qubeibeh
O Nascimento do Filho de A Transfiguração | 160 252 A Coroação de Maria Santíssima | 361 332 Lugar do
Deus em Belém | 38, 50 A instituição da Eucaristia Jesus morre na Cruz | 272 Batismo de
A Apresentação de Jesus
Emaús
206 Jesus | 84
no Templo | 58 Restos arqueológicos de
Emaús-Nicópolis | 325 Jerusalém
A perda e o encontro do
Menino Jesus | 58
Ain Karim
Igreja da Visitação | 25 Betânia
Igreja de S. João Baptista | 31 Santuário da
Ressurreição de
Belém Lázaro | 182
Basílica da Natividade | 38
Basílica do Campo dos Pastores | 50
Santo Sepulcro
Basílica da 272, 302
Piscina de
Dormição | 363
Jerusalém Via Dolorosa | 252
Betesda | 146
História da cidade | 58
Igreja de Santa Ana | 149
Monte do Templo | 58
Horto das Oliveiras | 229
Cenáculo | 206
Getsémani Túmulo de Santa Maria | 366
222
Gruta da Traição | 232
S. Pedro in
Gallicantu | 238
Basílica da
Agonia | 227

Monte das
Dominus
Oliveiras
Flevit | 196
Lugar da Ascensão | 348

Pater Noster | 172


Índices
Viagem do Beato Álvaro del Portillo
à Terra Santa, em Março de 1994
Segunda-feira, 14
• Chegada e noite em Tel Aviv | 378
Terça-feira, 15
• Haifa: Santuário de Stella Maris | 378
• Nazaré: Igreja de S. José e fonte de Nossa Senhora | 19
• Santa Missa na Basílica da Anunciação | 19
Quarta-feira, 16
• Tabgha: Igreja da Multiplicação | 143
• Tabgha: Igreja do Primado | 346
• Santa Missa na Basílica das Bem-aventuranças | 133
• Cafarnaum: casa de S. Pedro e sinagoga | 115
• Oração junto do Mar da Galileia | 143
Quinta-feira, 17
• Igreja das Bodas, em Caná | 105
• Santa Missa no Monte Tabor, na Capela de Moisés | 171
• Paragem em Jericó
• Chegada a Jerusalém e oração na Basílica do Santo Sepulcro | 318
Sexta-feira, 18
• Missa no altar da Madalena, na Basílica do Santo Sepulcro | 321
• Dominus flevit | 202
• Oração em Getsémani | 230, 234
Sábado, 19
• Oração no Campo dos Pastores | 54
• Santa Missa na Basílica da Natividade | 49
Domingo, 20
• Betânia: túmulo de Lázaro e Santuário da Ressurreição | 190
• Ain Karim | 34
• Oração na Igreja da Visitação | 35
• Igreja de S. João Baptista
Segunda-feira, 21
• Oração na Igreja de Santa Ana | 155
• Piscina de Betesda | 155
• Oração na Igreja da Flagelação, Convento do Ecce Homo e Via Dolorosa
• S. Pedro in Gallicantu | 248
Terça-feira, 22
• Oração na Basílica da Dormição | 366
• Cenáculo
• Santa Missa na Igreja do Cenáculo | 217
• Regresso a Roma desde o aeroporto de Tel Aviv | 11

FONTE: JOAQUÍN ALONSO, «VIAJE DEL VENERABLE ÁLVARO DEL PORTILLO A TIERRA SANTA (MARZO 1994). LOS ÚLTIMOS DÍAS DE SU VIDA»
http://opusdei.org/es-es/article/viaje-del-venerable-alvaro-del-portillo-a-tierra-santa-marzo-de-2014-los-ultimos-dias-de-su-vida/

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