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UM DEFENSOR NO CÉU

O dia 22 de outubro de 1844 entrou para a teologia adventista como a data em que
Cristo inaugurou seu ministério de julgamento no Céu. Mas o que diz a evidência
bíblica sobre o trabalho sacerdotal dele no santuário celestial? Entenda esse tema
ainda debatido por adventistas e mal compreendido pelos cristãos em geral.

Cristo não se cansa de agir em favor da nossa salvação. Essa é a ideia básica de seu
sacerdócio no santuário celestial após sua ascensão. Infelizmente, muitos pensam que,
na atividade divina para a salvação humana, em sua ascensão, Cristo tivesse sido
substituído pelo Espírito Santo, que foi enviado à Terra. Segundo esse pensamento,
Cristo já fez tudo o que deveria ter feito para nossa salvação ao morrer na cruz. Para
usar a analogia de esportes coletivos, Cristo estaria agora aguardando no banco de
reserva do Céu, torcendo para que o Espírito Santo faça sua parte e as pessoas
respondam positivamente.

Contudo, embora a Bíblia indique que o Espírito é o substituto de Cristo na Terra (Jo
14–16), as Escrituras ensinam que Jesus continua trabalhando para nossa salvação após
sua ascensão, e esse trabalho se define por seu sacerdócio celestial. Cristo não é um
mero espectador celestial que já cumpriu seu papel salvífico.

O ensinamento bíblico sobre seu sacerdócio revela um trabalho ativo em três etapas: (1)
inauguração, (2) mediação contínua e (3) julgamento escatológico. Cada uma dessas
etapas corresponde claramente à obra sacerdotal tipificada no Antigo Testamento.

ETAPA 1: INAUGURAÇÃO
O livro de Hebreus interpreta a ascensão do Cristo ressuscitado ao Céu como sua
entrada no santuário celestial na condição de sumo sacerdote (4:14; 6:19, 20; 9:12, 24).
Essa entrada marca (1) a conclusão da oferta sacrifical de Cristo e (2) o início de sua
mediação contínua. Veremos as implicações desses conceitos.

Ao pensarem sobre o conceito de sacrifício, muitos se concentram na vítima que morre


sacrificalmente. Nesse caso, a imagem desse conceito é a de um animal sendo imolado
ou a de Cristo sendo crucificado. Do ponto de vista bíblico, não há nada de errado com
essa imagem, desde que ela não seja a única. Uma expressão que nos ajuda na
conceitualização de sacrifício na Bíblia é a oferta sacrifical. Em geral, uma oferta é
oferecida a alguém. Nesse caso, a ênfase não está na vítima que morre como sacrifício,
mas na pessoa (Deus) para quem o sacrifício está sendo oferecido. Essa noção de oferta
sacrifical nos ajuda a observar um dado interessante sobre sacrifícios e sacerdócio em
Levítico.
Embora o trabalho do sacerdote israelita pudesse incluir o ato sacrifical de imolar um
animal (cf. Lv 4:4; 16:11, 15), essa não era sua atividade distintiva na oferta de um
sacrifício. De fato, os próprios israelitas imolavam os animais que eles levavam para
ofertas individuais (cf. Lv 1:1-5, 10, 11; 3:1, 2, 6-8, 12, 13, 22-24, 27-29). A rigor, a
atividade exclusiva do sacerdote era o rito que ocorria após a morte do animal. Nas
ofertas primariamente definidas pelo uso do fogo (por exemplo, holocaustos e ofertas
pacíficas), somente o sacerdote queimava o animal (cf. Lv 1:7-9, 12, 13, 17; 3:5, 11,
16), produzindo tipologicamente um movimento vertical em que a fumaça do sacrifício
ascendia para o céu e chegava a Deus como “aroma agradável” (Lv 1:9, 13, 17; 3:5, 16).
No caso das ofertas pelo pecado, que eram primariamente definidas pela manipulação
de sangue, somente o sacerdote manipulava o sangue (cf. Lv 4:5-7, 16-18, 25, 30, 34),
produzindo tipologicamente um movimento vertical em que parte do sangue era
colocado nas pontas do altar de sacrifício (Lv 4:25, 30) ou um movimento horizontal no
qual parte do sangue era levado para dentro do santuário e aspergido perante Deus,
diante do véu entre o lugar santo e o santíssimo (Lv 4:5-7, 16-18).

Assim, a atividade distintiva do sacerdote israelita não era imolar o animal, mas realizar
o processo de oferecimento do animal sacrificado para Deus, tanto em um movimento
tipológico vertical quanto horizontal. Verticalmente, a oferta chegava a Deus no Céu.
Horizontalmente, ela chegava a Deus no santuário. Como essa tipologia apontava para
Cristo, Ele apresentou seu sacrifício diante do Pai, cumprindo assim o movimento
vertical (ascensão para o Céu; Hb 4:14; 9:24) e o horizontal (entrada no santuário
celestial; Hb 6:19-20; 9:12, 24). Em sua ascensão, Cristo concluiu o oferecimento de
seu sacrifício. Hebreus 8:3 e 4 indica que Cristo ofereceu seu sacrifício no santuário
celestial. Obviamente, seu sacrifício foi terrestre, na cruz (Hb 9:26). Mas o oferecimento
desse sacrifício é concluído por sua entrada no santuário (veja Hb 9:25, onde o
oferecimento sacerdotal é realizado ao “entrar”).
Quanto ao início da obra de contínua mediação, o início do trabalho sacerdotal de Cristo
no Céu ocorreu no contexto de outros “inícios” na história da salvação. Entre eles,
podemos destacar o início do uso do santuário celestial pelo sacerdócio salvífico de
Cristo (Hb 8:1-5; 9:11, 12, 24) e o início da nova aliança, mediada por sua obra
sacerdotal no santuário celestial (Hb 7:22; 8:6, 8, 10; 9:15; 10:16; 12:24). De fato, a
inauguração da aliança, do santuário e do sacerdócio reflete tipologicamente a
formalização da aliança de Deus com os israelitas que saíram do Egito (cf. Êx 19:1-8;
24:7, 8; 32:10; Hb 9:18-20).

Essa aliança iniciou um conjunto de eventos que incluíram a construção e


inauguração/consagração do santuário (cf. Êx 25-27, 30-31, 35-40; Nm 7; Hb 9:21) e a
escolha e consagração dos sacerdotes (cf. Êx 28-29; Lv 8-9). No entanto, o santuário, os
sacerdotes e os sacrifícios eram apenas “sombras” que tipificavam a realidade do
sacerdócio de Cristo. O santuário terrestre apontava para o santuário celestial (Hb 8:5;
9:11, 24), os sacerdotes pecadores e mortais apontavam para o sacerdote sem pecado e
imortal (Hb 7:16, 24, 26) e os inúmeros sacrifícios de animais apontavam para o único
sacrifício de Cristo (Hb 10:1, 4, 11, 12).

Portanto, a característica básica da nova aliança é a presença das realidades do santuário


celestial, do sacerdote perfeito e do único sacrifício. O trabalho desse sacerdote no
santuário celestial, com base em seu único sacrifício, traz a realidade do perdão de
pecados e da interiorização da lei divina no coração dos crentes (Hb 8:8-12; 10:16, 17).
Essa realidade era vista em forma de promessa na tipificação do santuário terrestre e dos
múltiplos sacerdotes e sacrifícios que mediavam o relacionamento de aliança do povo
de Israel com Deus antes da vinda de Cristo.

ETAPA 2: MEDIAÇÃO CONTÍNUA


Em virtude da inauguração do sacerdócio Cristo, iniciou-se um processo de mediação
contínua no santuário celestial. Na tipologia do sacerdócio israelita, essa mediação
ocorria no trabalho diário dos sacerdotes no primeiro compartimento do santuário
terrestre (Hb 9:6; 7:27). Contudo, ao passo que esse trabalho era caracterizado pelo
oferecimento de vários sacrifícios (Hb 7:27), especialmente o da manhã e o da tarde (cf.
Nm 28:3-8), a mediação contínua de Cristo não é acompanhada de sacrifícios, mas se
fundamenta em seu único sacrifício. Essa mediação compreende basicamente as duas
características centrais da nova aliança (Hb 8:8-12; 10:16, 17): (1) o perdão de pecados
e (2) a interiorização da lei divina no coração dos crentes. Em outras palavras, a obra de
justificação e santificação.

Em relação ao perdão, embora Cristo tenha morrido na cruz e apresentado seu sacrifício
ao Pai na sua ascensão, o problema do pecado ainda não foi plenamente resolvido.
Ainda vivemos neste mundo pecaminoso em que os crentes precisam lutar contra o
pecado (Hb 10:36; 12:4). Infelizmente, nessa luta, ainda caímos em pecado. Mas, se
pecamos, Jesus é nosso intercessor celestial para que sejamos perdoados (1Jo 2:1, 2).
Deus nos justifica (não somos condenados) com base nessa intercessão (Rm 8:33, 34).
Cristo é o sumo sacerdote que se compadece das nossas fraquezas (Hb 4:14) e
misericordiosamente faz expiação dos nossos pecados (Hb 2:17). Ele vive para
interceder por nós e, com base nessa intercessão, podemos ser salvos e nos achegarmos
a Deus (Hb 7:25). Isso ocorre todas as vezes que confessamos nossos pecados em
oração (1Jo 1:9). Logo, a mediação contínua de Cristo é especialmente a mediação de
nossas orações, que são apresentadas por Ele diante do Pai para o perdão de nossos
pecados.

Porém, se o Pai nos ama, por que necessitamos de um mediador para nossas orações?
Por que Ele não perdoa diretamente? Em síntese, ao obtermos a justificação por meio de
Cristo, Deus necessita ser não apenas justificador, mas também justo (Rm 3:26). Não
basta Deus perdoar os pecadores. Ele precisa ser justo ao oferecer esse perdão. É
exatamente por meio da intercessão de Cristo em nosso favor, com base na perfeição de
sua vida e seu sacrifício em nosso lugar, que Deus pode ser justo ao nos perdoar. Foi o
próprio Pai que deu seu Filho (Jo 3:16) e o estabeleceu como sacerdote mediador (Hb
5:4-6; 7:21) em nosso favor. Portanto, a morte e a intercessão de Cristo não ocorreram
para que o Pai fosse convencido a ter misericórdia dos pecadores arrependidos. Antes, o
Pai agiu como a autoridade diante da qual a intercessão de Cristo é apresentada, para
que o processo legal de perdão de pecados seja justo.

Quanto à interiorização da lei divina no coração dos crentes, além do perdão dos
pecados, a mediação contínua de Cristo atua para promover o crescimento do
relacionamento dos crentes com Deus, no qual a vida deles se mantém alinhada à
vontade divina. Nesse sentido, Cristo socorre aqueles que são tentados (Hb 2:18),
dando-lhes força para que se mantenham fiéis a Deus. Ele media a ação divina que
aperfeiçoa espiritualmente os crentes, para que estes façam a vontade de Deus (Hb
13:20, 21).

ETAPA 3: JULGAMENTO ESCATOLÓGICO


A conclusão do sacerdócio salvífico de Cristo será seguida por sua segunda vinda, que
trará salvação aos que o aguardam (Hb 9:28). Essa vinda está associada ao juízo
escatológico (Hb 9:27, 28), no qual o santuário celestial necessita ser purificado com o
sacrifício de Cristo (Hb 9:23). Na tipologia do Antigo Testamento, no Dia da Expiação
o santuário era purificado dos pecados dos israelitas (Lv 16:16-20) e,
consequentemente, os próprios israelitas eram purificados de seus pecados (Lv 16:30).
Esse dia funcionava como um julgamento coletivo e, portanto, devia ser um momento
de contrição para cada pessoa (Lv 16:29). O perdão de pecados via mediação diária
ocorria por meio da transferência desses pecados para o santuário ao longo do ano,
ritualmente efetuada por meio do sangue dos sacrifícios que era levado para o santuário
ou pela ingestão da carne dos sacrifícios por parte do sacerdote (Lv 6:26, 30). Era o Dia
da Expiação que trazia purificação final e coletiva no calendário anual.
A compreensão do cumprimento tipológico do Dia da Expiação na obra sacerdotal de
Cristo é, às vezes, dificultada pela interpretação por parte de alguns cristãos da entrada
de Cristo no santuário celestial, por ocasião de sua ascensão, como sendo o
cumprimento desse dia. O problema com essa interpretação é que Ele não resolve total
nem coletivamente o problema do pecado ao entrar no santuário celestial no primeiro
século da era cristã. Esse problema só será plenamente resolvido no julgamento
escatológico, quando o santuário celestial será purificado de acordo com a tipologia do
Dia da Expiação.

Como interpretamos, então, as passagens de Hebreus que parecem indicar que Cristo
entrou como sumo sacerdote no lugar santíssimo em sua ascensão (6:19, 20; 9:12, 24,
25)? Não seria esse o cumprimento do Dia da Expiação? Não. Vamos explicar em três
passos.

Primeiramente, ao compararmos diferentes versões de Hebreus 9:12 e 25, observamos


que algumas mencionam “santo dos santos” (ARA) ou “lugar santíssimo” (NVI,
NTLH), mas outras traduções mencionam “santuário” (ARC, ACF, BJ, TEB). O fato é
que nessas duas passagens (como também em 8:2; 9:1, 8, 24; 10:19; 13:11), a expressão
grega ta hagia é utilizada. Essa expressão normalmente se refere ao santuário como um
todo. Portanto, a ênfase de Hebreus é que, na ascensão, Cristo entrou no santuário
celestial.
Em segundo lugar, Hebreus compara a entrada de Cristo no santuário celestial (9:11,
12) com o início da aliança de Deus com o povo que saiu do Egito (9:18-21), que
incluiu a inauguração do santuário com a apresentação de sacrifícios. Note que Hebreus
9:21 enfatiza que todas as partes e utensílios do santuário foram consagrados com o
sangue de sacrifícios. Portanto, o Dia da Expiação não foi o único momento na tipologia
do Antigo Testamento em que houve a entrada com sangue no lugar santíssimo. A
inauguração do santuário também incluiu uma entrada com sangue ali. Assim, à luz do
rito da inauguração, a entrada de Cristo no santuário como um todo (podendo incluir o
lugar santíssimo) em sua ascensão não indica o cumprimento da tipologia do Dia da
Expiação.

Em terceiro lugar, na comparação de Hebreus 9:24 e 25 da entrada de Cristo no


santuário celestial (ascensão) com a entrada anual do sumo sacerdote no santuário
israelita (Dia da Expiação), o que é comparado é o oferecimento do sacrifício. A
diferença fundamental do sacerdócio de Cristo em relação ao sacerdócio israelita é que
Ele ofereceu um único sacrifício (9:26; 7:27; 10:11, 12), ao passo que os serviços no
santuário terrestre eram caracterizados por uma pluralidade de sacrifícios. Com efeito,
todos esses sacrifícios (inclusive os do Dia da Expiação) se cumpriram no sacrifício
único de Cristo, ocorrido na cruz e oferecido ao Pai na ascensão. Logo, o Dia da
Expiação escatológico de Cristo se diferencia da atividade anual do sumo sacerdote
israelita, especialmente no segundo compartimento do santuário, no sentido de que
Cristo não oferece sacrifícios, mas purifica o santuário celestial com base em seu único
sacrifício já oferecido.

O cumprimento profético do Dia da Expiação, em que o santuário celestial é purificado


(Hb 9:23), teve início em 1844 (Dn 8:14). O significado dessa purificação é o
julgamento divino caracterizado pela abertura de livros em um tribunal celestial (Dn
7:9, 10), e todos estão envolvidos nesse juízo que já teve início (Ap 14:6; veja os
paralelos entre Dn 8:14, Dn 7:13 e Ap 14 em Ellen White, O Grande Conflito, p. 424-
426). Felizmente, o cumprimento profético do Dia da Expiação desde 1844 também
inclui o oferecimento de “perdão de pecados aos homens, mediante a intercessão de
Cristo no lugar santíssimo” (ibid., p. 430). Ademais, o fato de que o julgamento
escatológico já teve início significa que, em breve, Cristo virá para trazer completa
salvação aos que o aguardam (Hb 9:28). Esse é o alvo final do seu sacerdócio.
Enquanto isso, seu trabalho sacerdotal continua no santuário celestial. Cristo não se
cansa de agir em favor da nossa salvação. Cada um de nós precisa se apropriar dessa
realidade!

ADRIANI MILLI, doutor em Antigo Testamento pela Universidade Andrews (EUA), é


professor de Teologia no Unasp, em Engenheiro Coelho (SP)

(Artigo publicado originalmente na edição de outubro de 2016 da Revista Adventista)


Ellen White nunca teve dúvida sobre a importância do santuário celestial para o plano
da salvação. Esse é um tema que permeia seus escritos. Por isso, minimizar o papel do
santuário na teologia adventista seria o mesmo que eliminar um de seus mais
importantes pilares.
“O assunto do santuário foi a chave que desvendou o mistério do desapontamento de
1844”, ela escreveu em O Grande Conflito (p. 423). E completou: “O santuário no Céu
é o próprio centro da obra de Cristo em favor dos homens. […] A intercessão de Cristo
no santuário celestial em prol do homem é tão essencial ao plano da redenção como o
foi sua morte sobre a cruz” (p. 488, 489).
Na opinião da mensageira, o conhecimento desse tema é indispensável: “A
compreensão correta do ministério do santuário celestial constitui o alicerce de nossa
fé” (Evangelismo, p. 221). “O assunto do santuário e do juízo de investigação deve ser
claramente compreendido pelo povo de Deus” (O Grande Conflito, p. 488). “O
significado da dispensação judaica não é ainda plenamente compreendido. Profundas e
vastas verdades são prefiguradas em seus ritos e símbolos” (Parábolas de Jesus, p.
133). Embora a teologia adventista sobre o santuário tenha sido refinada ao longo dos
anos, ainda existem tesouros a ser descobertos nessa área. (Marcos De Benedicto)

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