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COMUNIDADE AUTORECONHECIDA DO QUILOMBO DE VÓ DOLA

Pedrinhas – Cruzeiro – Vitória da Conquista – BA

CARTA DA COMUNIDADE À PREFEITA SHEILA LEMOS

À Exma. Senhora Sheila Lemos - Prefeita Municipal


Cc: Ilmo. Sr. Michael Farias – Secretário Municipal de Desenvolvimento Social
Cc: Ilma. Sra. Mãe Olinda Pereira – Coordenadora Municipal de Políticas de Igualdade Racial
Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista – BA

Beco de Dola, Vitória da Conquista, BA, 14 de dezembro de 2021.

"Não sou descendente de escravo. Eu descendo de


pessoas que foram escravizadas" (Makota Valdina)

Prezada Prefeita Sheila Lemos

Saudações!

Nós, comunidade do Povo de Dola, viemos agradecer a vossa visita, realizada no último dia 10
de dezembro, uma data tão significativa para o mundo, especialmente para o povo negro
deste país e desta cidade. O Dia Internacional dos Direitos Humanos celebra tudo que temos
direito e queremos reafirmar: a vida, o reconhecimento da diferença, a superação das
desigualdades, e a participação ativa na construção dos nossos destinos.

Sabemos o quanto essa sociedade nos deve. Somos herdeiras e herdeiros de pessoas que
nunca se curvaram à escravidão, ao racismo e à morte. Em nossa história, desenvolvemos
resistentes formas cotidianas de reafirmarmos a vida. O Beco de Dola é um espaço de
resistência, um território negro mantido na força das mulheres e da ancestralidade. Somos a
África viva! Somos a Conquista Africana!

Temos uma trajetória coletiva de uma família extensa negra que, juntamente às trajetórias de
tantas mulheres negras, é parte fundamental da história de Vitória da Conquista. Estamos na
origem do Bairro das Pedrinhas. Quebramos pedras, carregamos água do Poço Escuro,
lavamos roupa, cuidamos de casas e famílias do centro, e batemos tambores para o nosso
sagrado nos amparar. Nossa mais velha, Dona Zita, filha de Vó Dola, é a expressão viva de
nossa história, de nossas lutas. O Terreiro de Xangô de Mãe Fátima, da Nação Angola, hoje
conduzido por sua filha, Mãe Eliane, é nosso maior patrimônio imaterial, e também da cidade
e da Bahia.

Participamos dos antigos blocos, afoxés e escolas de samba dos carnavais de rua. No Beco,
pulsa a cultura afroconquistense dos músicos percussionistas que originaram o Abadaba, o
Grupo de Bate-lata Marujada Mirim, o Samba de Roda Negras do Beco. Neste ano, nosso
grande passo é a Biblioteca Comunitária Kilombeco, com sede inicial no próprio barracão do
Terreiro de Xangô, com o objetivo de ser um espaço de incentivo à leitura e ao
empoderamento de nossas crianças, adolescentes e jovens. Participamos de editais, formamos
parcerias, construímos redes.

Receber a primeira prefeita mulher desta cidade, e sua equipe, é sabermos que, nós,
mulheres, somos as que administramos a vida. Na periferia desta cidade, cuidar da vida do
nosso povo é o centro da nossa vida. Atravessamos décadas de processos de vulnerabilização a
que está submetida a população negra deste país. Durante a pandemia da Covid-19, ficamos
por nossa própria sorte, com as panelas vazias, com as nossas crianças sem condições de
acompanhar as aulas remotas, sem material escolar, sem merenda, sem máscaras, sem cestas
básicas. A morte teima em rondar com políticas públicas que, ao reforçar um modelo
colonizador da ação “para”, ao invés, da ação política “com”, menos geram perspectivas, e
mais reproduzem os ecos dos impactos das balas do braço armado do Estado a abreviar a vida
dos jovens das Pedrinhas e das periferias do Brasil. Convivemos com uma realidade da
necropolítica e da morte, mas resistimos reinventando a vida.

Por isso, através deste documento, representamos as principais demandas que temos
acumuladas há décadas, e solicitamos da Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista, através
de Vossa Senhoria, das respectivas secretarias municipais e das coordenações municipais de
políticas públicas, o compromisso de buscar atendê-las, sempre em diálogo direto com a
comunidade.

Solicitamos o início do processo burocrático de autorreconhecimento enquanto Comunidade


Quilombola Urbana da nossa comunidade do Povo de Vó Dola como Comunidade Quilombola
de Vó Dola. Vitória da Conquista já possui, na zona rural, 32 comunidades quilombolas
reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares, dentre outras identificadas. Desejamos que
nosso processo de autoreconhecimento seja construído de dentro pra fora e em sintonia com
o Conselho das Associações Quilombolas do Território Sudoeste da Bahia.

Solicitamos a ampliação de serviços do CRAS para atender nossas famílias, especialmente no


fomento à perspectiva de vida mais digna, a partir das mães, dos pais, dos jovens,
adolescentes e crianças.

Solicitamos o estudo da viabilidade de construir um polo educativo, cultural e social das


Pedrinhas no espaço ocioso do antigo Clube Social, reunindo vários serviços públicos para a
comunidade.
Solicitamos que nos ajudem a possibilitar a retomada de parte dos terrenos que nossa
matriarca Vó Dola precisou se desfazer para tratar da saúde das suas filhas. Em especial, o
terreno localizado à frente e contíguo ao Beco de Dola. Nosso projeto é construirmos, ali, o
nosso Centro Educacional e Cultural Quilombo de Vó Dola.

Solicitamos que nossas crianças sejam amparadas com transporte escolar no percurso para a
escola provisória que substitui a Escola Municipal Antônia Cavalcante, há mais de um ano
destruída. Dezenas de crianças das Pedrinhas estão sem estudar, por conta dos perigos e da
distância do percursos aumentado com a escola provisória, depois da Praça Gerson Sales.

Solicitamos apoio para a viabilidade de projetos de geração de renda para as nossas jovens e
mulheres.

Solicitamos o estudo para o tombamento do Terreiro de Xangô como patrimônio imaterial do


município de Vitória da Conquista.

Por fim, esperamos novas visitas da senhora prefeita e de suas coordenações e equipes
técnicas municipais. Estamos de braços abertos para construirmos cada passo desse processo
de fortalecimento e emancipação comunitária.

Que a espiritualidade acompanhe os vossos projetos e a vossa gestão à frente do município,


para que a vida do povo desta cidade, especialmente as populações da periferia e quilombolas,
sejam tratadas com o respeito e a garantia de direitos.

Por ora, apresentamos as principais lideranças que participam deste documento, e da


construção de projetos para a comunidade do Povo de Dola e do Terreiro de Xangô: Mãe
Eliane de Iemanjá, Makota Laiz de Oxum, Makota Kota de Oyá, Makota Jaíra de Oxossi,
Makota Gaúcha de Yansã, Makota Naiara de Oxum, Makota Josy de Yansã, Ogã Betão de
Ogum, Ogã Roque de Ogum, Ogã Flávio de Xangô, Josiane Gonçalves (Noca).

Confiantes e dispostas a continuar nas nossas lutas, agradecemos a vossa atenção.

Vitória da Conquista, 14 de dezembro de 2021.

Pela memória de nossas mães ancestrais, Vó Dola e Mãe Fátima.

Mãe Eliane de Iemanjá Makota Laiz de Oxum

Ogã Betão de Ogum

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