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FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 4, n.

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FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 4, n. 1/2014

e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho

ISSN 2179-8222

Editor
Waldir de Pinho Veloso

Conselho Editorial
Reinaldo Silva Pimentel Santos
Simone Rosiane Corrêa Araújo
Waldir de Pinho Veloso

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho,


v. 4, n. 1/2014 – ISSN 2179-8222 – Semestral – Montes Claros

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FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 4, n. 1/2014

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho

Editor

Waldir de Pinho Veloso

Conselho Editorial

Reinaldo Silva Pimentel Santos


Simone Rosiane Corrêa Araújo
Waldir de Pinho Veloso

Correção Linguística

Waldir de Pinho Veloso

Editoração Gráfica

Maria Rodrigues Mendes

Capa

Adriano Magno de Freitas


Maria Rodrigues Mendes

FAS@JUS : e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho / Faculdade de Direito Santo


Agostinho. – Vol. 4, n. 1, 2014 - . - Montes Claros, MG. Fundação Santo Agostinho, 2014-

v. : il. 21 x 29 cm.

Semestral
ISSN 2179-8222

1. Direito. I. Faculdade de Direito Santo Agostinho. lI. Título.

CDU: 34 (05)

Ficha catalográfica elaborada por Edmar dos Reis de Deus CRB6 2486.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO....................................................................................................................... 7

ENTREVISTA.............................................................................................................................. 9

ARTIGOS DO CORPO DISCENTE

O AMOR COMO PECÚNIA: A RESPONSABILIDADE CIVIL PELO ABANDONO


AFETIVO PARENTAL
Betânia Gusmão Mendes............................................................................................................. 15

LIMITAÇÃO À IMUNIDADE MATERIAL DOS PARLAMENTARES EM FUNÇÃO DE


SEUS ABUSOS E EXCESSOS
Elles Albano de Aguiar Carneiro................................................................................................... 23

EDUCAÇÃO DOMICILIAR E O ABANDONO INTELECTUAL


Gislene Sampaio Said................................................................................................................... 33

CRIME DE EXCESSO DE EXAÇÃO: A INCONGRUÊNCIA DA PENA NA FORMA


QUALIFICADA COM O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Luciano Carvalho de Almeida....................................................................................................... 43

O MEDO E A PENA DE MORTE NA VISÃO DE BECCARIA


Tiago Barbosa............................................................................................................................. 51

RESUMOS

TESTAMENTO VITAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: UMA


ABORDAGEM ACERCA DO CONFRONTO DA VIDA COMO UM BEM JURÍDICO
INDISPONÍVEL VERSUS O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Diego Celestino Ferreira.............................................................................................................. 61

O CONFRONTO ENTRE O UNIVERSALISMO E O MULTICULTURALISMO


Isadora Oliveira de Paula e Silva................................................................................................. 62

A DOUTRINA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA ANTE O


PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA PESSOA JURÍDICA
Matheus Medeiros Maia.............................................................................................................. 63

RESENHA

EUTANÁSIA EM A GUERRA DOS TRONOS


Dandara Tamires Reis e Castro................................................................................................... 67

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho (FADISA),


v. 4, n. 1/2014 - Semestral – Montes Claros

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APRESENTAÇÃO

Para que um veículo de divulgação científica a seção que comumente é destinada aos
seja classificado como triunfante, há necessidade Acadêmicos do Curso de Direito da Faculdade de
de comprovada continuidade. O eterno nascer ou Direito Santo Agostinho.
renascer de uma publicação de cunho científico Em ordem alfabética em relação aos seus
fomenta a oportunidade para diversificados autores – importante destacar que são de autorias
autores de textos científicos se manifestarem. individuais – o primeiro exposto é o Artigo Científico
Parece uma vitória do próprio veículo. E é. de autoria da Acadêmica Betânia Gusmão
Mas, antes disso, é um conjunto de vitórias dos Mendes, que cuida do assunto sob o título “O
autores que o integram, dos verdadeiros atores que amor como pecúnia: a responsabilidade civil
compõem o elenco, das pessoas que são, em pelo abandono afetivo parental”, no qual desce
síntese, o motivo de vir ao mundo das publicações a detalhes, doutrinários e jurisprudenciais, acerca
mais um Volume, mais uma Edição, mais um da patrimonialização da quebra do cumprimento
Número desta publicação seriada de caráter dos deveres que os pais (normalmente, o gênero
científico. masculino) deveriam ter para com seus filhos. O
Para consolidar a sua existência, para driblar trabalho mostra a visão de diversos integrantes dos
intempéries e para deixar indelevelmente fixado o Tribunais Superiores, na aplicação do Direito, que
sulco de um andar provido de esforço científico, a concedem ou não indenização em casos de pais
Revista Eletrônica Fas@Jus, do Curso de Direito que descumprem os seus deveres em relação aos
da Faculdade de Direito Santo Agostinho, filhos. A doutrina exposta também é variada. E há
apresenta-se em nova roupagem, novo Volume, conclusão, por parte da autora.
novo Número, nova Edição. Sabendo que científico Um outro texto científico é assinado pelo
é o que é academicamente divulgado, proporciona Acadêmico Elles Albano de Aguiar Carneiro,
– ou oportuniza, em palavras outras – espaços a que decidiu pesquisar, estudar e consolidar, em
quem se mostra capaz. texto científico, seus conhecimentos sobre o tema
Este Volume 4, Número 1, é especial. Contém “Limitação à imunidade material dos
material científico assinado exclusivamente por parlamentares em função de seus abusos e
Acadêmicos que integram o Programa Especial excessos”, tocando as searas do Direito
de Tutoria (PET), um dos pontos de apoio que o Constitucional, Direito Eleitoral e algum tópico
Curso de Direito da Faculdade de Direito Santo acerca da Ética e da Moral. Distingue o que é
Agostinho oferta aos seus Acadêmicos. proteção ao mandato parlamentar e a compara com
Para explicar o que é o Programa Especial a tática empregada por alguns políticos que se
de Tutoria (PET), foi convidada a Professora escondem atrás da imunidade parlamentar para
Mestre Liz Helena Silveira do Amaral cometer abusos, excessos e, por que não dizer,
Rodrigues que, até o fim de 2013, era a crimes de toda sorte.
Coordenadora do PET e foi a idealizadora de um Na ordem alfabética, o terceiro Artigo
Número especial da Revista Eletrônica Fas@Jus Científico é escrito pela Acadêmica Gislene
dedicado exclusivamente aos membros do Sampaio Said. Ela debruça sobre a análise, em
Programa. Em vez de um texto menos pessoal, tom científico, da responsabilidade que têm os pais
que ela faria se continuasse como integrante do na educação dos seus filhos, ou dos tutores em
Conselho Editorial, como era até o fim de 2013, a relação aos seus pupilos. E mostra que se a
Professora Liz Rodrigues foi convidada a conceder Constituição Federal diz que é dever dos pais
uma Entrevista. Na seção, toda a explicação da proporcionar a educação aos filhos, concede
origem do PET, a sua evolução, o fomento à também o direito de os pais levarem a efeito esta
iniciação científica, o estádio atual e o que se pensa educação em âmbito familiar. Mas, há lei que dispõe
do futuro. Não são meras reminiscências: é um ser crime de abandono intelectual a não
lembrar consciente, resgatando a história e providência, por parte dos pais e tutores, em
projetando, com solidez de quem tem alicerce, um matricular seus filhos e pupilos em escolas. A
porvir que se anuncia vitorioso. análise, destarte, mostra qual norma deve ser
Cinco são os Artigos Científicos que integram cumprida: a determinação da oferta da educação

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(que poderia ser a domiciliar) ou a oferta da Agostinho, não tem uma seção que publica
educação necessariamente em estabelecimento de Resumos de trabalhos científicos. Por se tratar de
ensino. E o crime de abandono intelectual. O título uma publicação contendo apenas escritos de cunho
é “Educação domiciliar e o abandono científico da pena de Acadêmicos que fazem parte
intelectual”. do Programa Especial de Tutoria (PET), a seção
Por seu lado, o Acadêmico Luciano foi criada e está preenchida pelos trabalhos dos
Carvalho de Almeida tratou do tema “Crime Acadêmicos Diego Celestino Ferreira,
de excesso de exação: a incongruência da Isadora Oliveira de Paula e Silva e Matheus
pena na forma qualificada com o princípio da Medeiros Maia. São temas dos seus estudos,
proporcionalidade”. Para o autor, há uma respectivamente, “Testamento vital no
necessária discussão acadêmica quanto ao ordenamento jurídico brasileiro: uma
princípio da proporcionalidade quando se trata do abordagem acerca do confronto da vida como
crime de excesso de exação. Explica o autor, com um bem jurídico indisponível versus o
base doutrinária, que um crime em sua forma princípio da dignidade da pessoa humana”; “O
inicialmente clausulada tem uma versão que impõe confronto entre o universalismo e o
punição mais forte, a maneira qualificada. A multiculturalismo”, e “A doutrina da
reflexão mostra que, em se tratando do crime de desconsideração da personalidade jurídica
excesso de exação – a cobrança de tributo ante o princípio da autonomia da pessoa
inexistente ou em valores acima dos fixados pelas jurídica”.
alíquotas, bases de cálculo ou hipóteses de Uma coluna tradicional na Revista Eletrônica
incidência, ou mesmo o emprego de maneira Fas@Jus, do Curso de Direito da Faculdade de
vexatória na cobrança dos encargos tributários – Direito Santo Agostinho, é a Resenha. Texto de
em seu formato qualificado, pode ter punição mais caráter acadêmico que visa analisar alguma obra
branda do que a condição inicial ou “simples”. Um e sobre ela emitir uma opinião, com crítica – no
paradoxo desvendado pelo texto. sentido de análise profunda – a Resenha da vez é
Para fechar a seção, o Acadêmico Tiago da lavra da Acadêmica Dandara Tamires Reis
Barbosa procurou todos os modos de, e Castro. A Acadêmica lida com a análise do livro
cientificamente, escrever sobre o assunto cujo título A guerra dos tronos, do norte-americano George
é autoexplicativo: “O medo e a pena de morte R. R. Martin. A qualidade de científico vem,
na visão de Beccaria”. O trabalho tem muito de exatamente, da inserção de temas sobre eutanásia,
Filosofia e Psicologia e, igualmente, muito de ortotanásia e outras questões do Biodireito,
Direito. Definir e mostrar que o medo é o presentes no livro e destacados pelo texto. O título
contrapeso que evita atitudes infundadas é o lema é “Eutanásia em A guerra dos tronos”.
do autor. Para calçar os seus estudos, busca em Com o Volume 4, Número 1, a Revista
Cessare Beccaria, clássico e necessariamente Eletrônica Fas@Jus, do Curso de Direito da
suporte para estudos mais profundos, os esteios Faculdade de Direito Santo Agostinho, procura
ou alicerces científicos abordados. A extração do disponibilizar, a todo o mundo científico, um
livro Dos delitos das penas é quanto à pena de desabrochar de autores, em seus passos iniciais,
morte e sobre o medo em outros aspectos. Fatores porém firmes, em vários segmentos do
que fazem, a todos, pensar antes de uma ação conhecimento científico.
violenta contra outrem (medo da perda da O conhecimento científico se engrandece
liberdade, ou do pecado) ou que pode colocar em com este Volume. Pelo menos, é o que entendem
risco a sua própria vida (medo da morte). os assinantes deste texto de apresentação.
Normalmente, a Revista Eletrônica Fas@Jus,
do Curso de Direito da Faculdade de Direito Santo Os Organizadores

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ENTREVISTA

Entrevistada: Professora Liz Helena Silveira do Amaral Rodrigues

A Professora Liz Helena Silveira do Amaral Agostinho, apresentou a ideia da publicação de um


Rodrigues é Mestre em Direito e fez parte do Número dessa Revista Eletrônica exclusivamente
quadro de Professores da Faculdade de Direito com trabalhos científicos dos Acadêmicos que
Santo Agostinho durante vários anos. Na integram o PET. Uma vez aceita a ideia – de forma
Instituição, à qual chegou assim que obteve o grau imediata e sem restrições ou pedido de tempo para
de Mestre em Direito, a Professora acompanhou ajustes de pensamento – ficou incumbida de reunir
diversas Turmas, desde as que adentraram na os textos científicos.
Faculdade no início das atividades, o que significa Considerando que a vinda a lume deste
dizer que foi Professora dos primeiros graduados. Volume 4, Número 1, da Revista Eletrônica
Tempos de dedicação após o início das atividades Fas@Jus se dá em um semestre letivo que já não
docentes na Instituição, galgou vários degraus. conta com a Professora Liz Helena Silveira do
Chegou a Coordenadora do Programa Especial de Amaral Rodrigues como membro do Conselho
Tutoria (PET). Editorial, não seria justo que o nascimento deste
Oriunda de Santa veículo científico fosse
Catarina, habitou Montes desprovido da sua participação.


Claros, Minas Gerais, e, exceto O melhor destaque para quem
quanto ao sotaque sulista, Vale destacar que, coordenou o Programa
tornou-se mineira. em alguns semestres, o Especial de Tutoria – no qual
No fim de 2013, por PET chegou a nasceram os trabalhos
questões familiares, mudou-se responder por 90% dos científicos integrantes deste
para a capital paulista. Após a trabalhos científicos número – e ainda reuniu os
decisão, cumpriu até o fim do apresentados em textos que estão contidos neste
ano as funções de Professora de Congressos exemplar, é a disponibilidade de
múltiplas disciplinas na organizados pela um espeço para explicar o que
Faculdade de Direito Santo Faculdade é o PET, qual a história do
Agostinho (Direito Internacional, Programa, quais os destaques
Estatuto da Criança e do entre seus integrantes e o que
Adolescente, Biodireito e outras) e Coordenadora se espera que venha por aí, especialmente após a
do PET até que as férias chegaram. Somente aí, vitória – a edição especial desta Revista – dos seus
rumou-se para a São Paulo dos sonhos mais atuais. integrantes.
Como Coordenadora do Programa Especial Por isso e por outros vários motivos, a seguir
de Tutoria, acompanhou diretamente diversos se encontram as palavras da Professora Mestre
Acadêmicos no desenvolvimento de seus artigos Liz Helena Silveira do Amaral Rodrigues, Mestre
científicos. Também, como Coordenadora, esteve em Direito, em atenção aos questionamentos da
ao lado dos outros Professores integrantes do Revista Eletrônica Fas@Jus.
Programa, tornando-se uma Tutora menos direta
dos Acadêmicos orientados por esses outros
Professores. Fas@Jus: Para início, gostaríamos que
No fim de 2013, na qualidade de membro do Você definisse o PET com objetivos e
Conselho Editorial da Fas@Jus, Revista Eletrônica funções.
do Curso de Direito da Faculdade de Direito Santo Professora Mestre Liz Rodrigues: O

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Programa Especial de Tutoria (PET) foi criado, seguro e a estruturar um raciocínio científico
em um primeiro momento, como uma forma de mais sofisticado. Vale destacar que, em alguns
auxiliar o Acadêmico na escolha do tema do semestres, o PET chegou a responder por 90%
trabalho de curso. Posteriormente, o perfil do dos trabalhos científicos apresentados em
Programa foi alterado e o PET passou a se Congressos organizados pela Faculdade,
caracterizar como um programa de iniciação sendo que, em algumas situações, a quantidade
científica. Hoje, pode-se dizer que o objetivo de trabalhos apresentados pelos Acadêmicos
do projeto é fomentar a produção de trabalhos de Direito era praticamente equivalente à soma
científicos pelo corpo discente, seja pela dos trabalhos apresentados por vários outros
publicação de resumos, seja pela de artigos Cursos.
propriamente ditos.
Fas@Jus: Os Acadêmicos que já
Fas@Jus: Qual o histórico do PET em integraram ou integram o PET participam
termos de época do início e desenvolvimento, ativamente das divulgações científicas. Cite
especialmente os primeiros momentos? alguns eventos científicos nos quais os
Professora Mestre Liz Rodrigues: O integrantes do PET tiveram destaque.
Projeto começou em 2008, em razão da pouca Professora Mestre Liz Rodrigues:
variabilidade dos temas de monografia. A Poderíamos destacar o Congresso Brasileiro de
Professora Mestre Vivian Cristina Maria Santos Direito e Teoria do Estado – que já teve dez
estruturou e coordenou o Projeto, como o apoio edições seguidas e ininterruptas de sucesso
do Professor Doutor Elton Dias Xavier. Eu tive internacional – bem como o Fórum Integrado
a oportunidade de integrar o grupo de de Ensino, Pesquisa e Extensão e eventos
Professores que compôs esta primeira realizados por outras Instituições de Ensino
formação. Nesta fase, costumávamos indicar Superior IES, como a Universidade Estadual
aos Alunos as “novidades” mais interessantes, de Montes Claros, que sempre criaram
seja em termos doutrinários, seja em termos condições para que os Alunos participassem
jurisprudenciais, bem como comentando as dos eventos. Cumpre destacar a importância
nossas próprias áreas de trabalho – o grupo que a abertura destes espaços têm na formação
de Professores Tutores sempre foi composto, dos Alunos, que, aos poucos, adquirem
preferencialmente, por Professores Mestres, confiança, passam a organizar um raciocínio
dedicados à pesquisa, o que contribuiu, penso, científico mais sofisticado e, também, adquirem
para a diversificação das áreas de interesse. fluência verbal e escrita, competências
Quando retornei ao Programa, em 2012, essenciais para o profissional de Direito.
o PET já estava desvinculado da escolha de
temas para o Trabalho de Curso (TC) e o foco Fas@Jus: Até 2013, como integrante do
já estava direcionado à iniciação científica, Conselho Editorial da Revista Eletrônica
especialmente após a inclusão, no Regulamento Fas@Jus, quando os artigos submetidos para
de Trabalho de Curso, da possibilidade de análise eram de autoria de integrantes do
substituição da monografia por artigos PET, Você pedia para se abster da emissão
científicos, produzidos ao longo de vários de Parecer. Qual a sua ligação com os
semestres da graduação. Até então, todos os Acadêmicos que integram o PET?
Acadêmicos somente podiam se graduar de Professora Mestre Liz Rodrigues:
elaborassem e defendessem, com aprovação, Considerando o modo como o Programa é
uma monografia. A partir deste momento, o PET organizado, penso que a ligação que é
passou a ter um papel fundamental na produção desenvolvida em virtude do interesse do Aluno,
científica discente do Curso de Direito, pois, pois, considerando que o Professor fica
sendo um Projeto constante e com um grande disponível em determinados horários, cabe ao
número de vagas, muitos Alunos puderam Acadêmico vir à Faculdade e pedir a orientação
contar com a orientação dos Professores do Professor. Deste modo, levando-se em
Tutores e passaram a se expressar de modo mais consideração o maior ou menor interesse do

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Aluno, afinidade com a área de pesquisa e o também para os Alunos, que poderão participar
trabalho que está sendo desenvolvido, muitas de uma obra coletiva. Para os Alunos, a edição
vezes são criados laços entre o Tutor e o Aluno da Revista é um prêmio por sua dedicação e
que está sendo acompanhado. Com muita esforço. Acredito que, em um próximo momento,
frequência, mantínhamos contato via e-mail e o grupo poderia trabalhar para viabilizar um
redes sociais, e, em certas situações, o livro, com maior densidade científica e que
engajamento do Professor resultava em alguns fosse voltado à exploração, em profundidade,
trabalhos em coautoria, o que também é muito de um determinado assunto jurídico relevante.
interessante. Deste modo, e considerando a
maior atenção que os Alunos do Programa Fas@Jus: Qual o mundo que Você
recebiam, eu entendia que, como membro do vislumbra para os Acadêmicos da Faculdade
PET, não caberia a mim analisar o resultado de Direito Santo Agostinho (FADISA) que
do nosso trabalho coletivo, pois, claro, não integram o PET?
teria o mesmo distanciamento que outros Professora Mestre Liz Rodrigues: Esta
membros do Conselho Editorial poderiam ter. é uma questão muito particularizada mas, em
Já cheguei a dizer algo como “esta Aluna, no geral, percebe-se que o Aluno que passou pelo
ato de escrever este Artigo Científico, é como PET tem mais segurança e expressa suas ideias
se fosse minha filha”, uma vez que teria com maior clareza. Considerando nossas
acompanhado a apresentação da ideia, os peculiaridades profissionais, o
primeiros esboços, os primeiros traços, as desenvolvimento da habilidade de falar em
correções e melhoras e teria sido a primeira a público, a desenvoltura na defesa de um ponto
ver o trabalho pronto e vencedor. O mesmo de vista, a correta estruturação de um
sentimento é manifestado por outros raciocínio em um trabalho escrito contribuem,
Professores Tutores, integrantes do Programa. em muito, para a vida profissional da pessoa
Durante a orientação especial, cria-se, creio, graduada em Direito. A realização de atividades
um elo valioso entre Professor Tutor e paralelas às normalmente exigidas durante a
Acadêmico integrante do Programa. graduação, a elaboração de artigos e as
publicações certamente contribuem para a
Fas@Jus: A publicação de um Número formação de um currículo diferenciado, que
da Revista Eletrônica Fas@Jus com textos pode pesar favoravelmente quando este
científicos de autoria somente de integrantes Acadêmico for participar de um processo
do PET representa que marco? seletivo, quando do início de sua vida
Professora Mestre Liz Rodrigues: É um profissional. Deste modo, creio que o Programa
marco interessante não só porque comemora contribui para o desenvolvimento da autonomia
os cinco anos de existência do programa, como do Aluno, que poderá conduzir sua carreira
por ressaltar o grau de maturidade acadêmica com mais segurança e encontrar as
que o grupo de Alunos integrantes do Programa oportunidades profissionais mais adequadas
atingiu. A consolidação da Revista é importante ao seu perfil.

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ARTIGOS DO
CORPO DISCENTE

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O AMOR COMO PECÚNIA:


a responsabilidade civil pelo abandono afetivo parental

Betânia Gusmão Mendes1

RESUMO the most important things to a person, where it’s


abcense may cause damage to the psychological,
A entidade familiar se modificou no tempo de acordo moral and in the construction of a reasonable citizen.
com os valores sociais, passando das relações Therefore, the federal supreme court recognized
hierarquizadas e patriarcais para o modelo fundado that the existence of affection in paternal
no amor e afeto. Sendo o afeto familiar de suma relationships generates irreversible trauma to the
importância para o indivíduo, a sua privação pode person, bringing the right of asking for
gerar sequelas no âmbito pessoal, psicológico, moral indemnification. This decision had as assumptions
e até na construção do indivíduo como cidadão. the normative aspect of civil liability abandonment
Desta maneira, o Superior Tribunal de Justiça and breach of the duties and obligations of family
reconheceu que a inexistência de afeto nas relações power. However, we don’t know for sure if treating
paterno-filiais gera traumas irreparáveis à pessoa, love with pecunia represents the development or
cabendo indenização por dano moral. Essa decisão backspace in the modern family law. This study aims
teve como premissa o aspecto normativo da to analyze, through literature searches and
responsabilidade civil pelo abandono e o jurisprudential, employment of civil liability in cases
descumprimento dos deveres e obrigações of abandonment and parental affective application
decorrentes do poder familiar. Entretanto, não se of moral damages. Watching the opposing views
sabe ao certo se tratar o amor como pecúnia about conceiving paternal relationship only in the
representa avanço ou retrocesso no Direito das assests and all the controversies wich give rise in
Famílias na contemporaneidade. O presente trabalho the legal universe. Once the judicialization affection
tem por objetivo analisar, através de pesquisas reaches its social function of the institute.
bibliográficas e jurisprudenciais, o emprego da
responsabilidade civil nos casos de abandono afetivo Key words: Family law, paternal abandonment, civil
parental e a aplicação da indenização por dano liability.
moral. Observando as visões antagônicas sobre
conceber as relações paterno-filiais apenas no campo
patrimonial e todas as controvérsias que elas ensejam 1 INTRODUÇÃO
no universo jurídico. Visto que, não é pacífico se a
“judicialização” do afeto alcança a função social do
instituto. A entidade familiar é a estrutura basilar da
sociedade, e se transforma no tempo, de acordo com
Palavras-chave: Direito de família, abandono os valores sociais. A concepção de família se
afetivo parental, responsabilidade civil. modificou, passando das relações hierarquizadas e
patriarcais para o modelo fundado nos laços de amor
e afeto.
ABSTRACT O afeto familiar é dotado de importância aos
indivíduos e a sua privação pode gerar sequelas que
The family entity has been modified along time perdurarão por toda existência, seja no âmbito
according to the social values. Going through defined pessoal, psicológico, moral ou na construção do
standards, with the father figure, building basis of indivíduo como cidadão. A ausência do genitor na
love and affection. Family affection, being one of formação dos filhos quanto à falta de afeto pode

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Acadêmica do Quinto Período do Curso de Direito da Faculdade de Direito Santo Agostinho e membro do Programa
Especial de Tutoria (PET).

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ser encarada como omissão danosa. família estagnado ou imutável. Segundo Dias (2008),
Na tentativa de minimizar os efeitos danosos a família constitui um agrupamento informal, de
do abandono afetivo, o Superior Tribunal de Justiça formação espontânea no meio social, cuja
reconheceu que a inexistência de afeto nas relações estruturação se dá através do Direito, que se
paterno-filiais gera prejuízos irreparáveis à pessoa, apresenta apenas como instrumento de
cabendo indenização por dano. Essa decisão teve concretização da realidade.
como premissa o aspecto normativo da As relações familiares desde os primórdios
responsabilidade civil e do descumprimento dos eram estabelecidas segundo os modelos
deveres e obrigações decorrentes do poder familiar. hierarquizados e patriarcais, tendo a necessidade
O art. 1.634 do Código Civil Brasileiro de 2002 do matrimônio para o reconhecimento jurídico. A
dispõe que o dever dos pais não é restrito ao sustento família era vista como uma unidade de produção,
material dos filhos. Também, a obrigação se estende que incentivava a procriação, com o intuito de
a criação e educação, bem como o direito/dever de fortalecer os laços patrimoniais. Farias e Rosenvald
tê-los em sua companhia e guarda. Do preceito (2010, p. 4) afirmam que “as pessoas se uniam em
normativo em epígrafe se depreende que os família com vistas à formação de patrimônio, para
elementos extras patrimoniais como: valores morais, sua posterior transmissão aos herdeiros, pouco
convivência familiar, orientação educacional e a importando os laços afetivos.”.
própria construção do indivíduo como cidadão são Entretanto, como indica Dias (2009, p. 28) “a
tão imperiosos ao filho quanto a assistência material. Revolução Industrial fez aumentar a necessidade
É inquestionável que a ausência do afeto, do de mão-de-obra, principalmente nas atividades
carinho e da presença do genitor na vida da pessoa terciárias”. Assim, novas perspectivas sociais
acarretará danos irremediáveis. Entretanto, a passaram a vigorar. Houve a necessidade de as
tentativa simplista de resolver na esfera patrimonial mulheres integrarem o mercado de trabalho,
os danos decorrentes do abandono afetivo parental mitigando o império machista e patriarcal, acabando
gera controvérsias no meio jurídico. com a preponderância do caráter produtivo e
Não se sabe ao certo se seria possível reprodutivo da família.
solucionar no campo da responsabilidade civil a Sobre essa nova concepção da família,
questão da ausência do afeto, e se uma indenização esclarecem Farias e Rosenvald (2010, p. 4):
seria apta a sanar a falta de assistência dos pais.
Além disso, a fixação de indenização pecuniária pela A arquitetura da sociedade moderna impõe um
falta de afeto poderia ensejar maiores desavenças modelo familiar descentralizado, democrático,
igualitário e desmatrimonializado. O escopo
entre as partes, solidificando, desta maneira, o
precípuo da família passa a ser a solidariedade
afastamento entre eles. social e demais condições necessárias ao
Ao longo do presente trabalho, pretende-se aperfeiçoamento e progresso humano, regido
analisar as visões antagônicas sobre a indenização o núcleo familiar pelo afeto, como mola
por abandono afetivo, buscando compreender se propulsora.
tratar o amor como pecúnia caracteriza um avanço
ou retrocesso no Direito das Famílias A afetividade torna-se essencial nas relações
contemporâneo. familiares. Lôbo (2009) afirma que a atual
Este artigo, de caráter exploratório, foi concepção familiar prioriza o laço de afetividade
elaborado de acordo com o método dedutivo, que une seus membros, o que propiciou uma
adotando-se o procedimento monográfico, com o reformulação do conceito de filiação que se
recurso de fontes bibliográficas bem como o estudo desprendeu da verdade biológica e passou a valorar
jurisprudencial. muito mais a realidade afetiva.
Sendo o afeto o laço que une as famílias na
2 FAMÍLIA E AFETO modernidade, ele é tão elementar para as relações
paterno-filiais quanto os laços biológicos. Assim
O conceito de família, seus princípios ensina Nogueira (2001, p. 86):
fundamentais bem como a sua própria formação se
modificaram no tempo de acordo com os preceitos Para a criança, sua simples origem fisiológica
sociais. “A história da família é extensa, não linear não a leva a ter vínculo com seus pais; a
figura dos pais, para ela, são aqueles com
e configurada por rupturas sucessivas” (PERROT, que ela tem relações de sentimento, aqueles
1995), não sendo possível estabelecer um ideal de que se entregam ao seu bem, satisfazendo

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suas necessidades de carinho, alimentação, recente. O princípio da afetividade nos faz


cuidado e atenção. entender e considerar que o afeto pressupõe
também o seu avesso, já que o amor e o ódio
são complementos ou são dois lados de uma
Segundo Cervany (2010), a presença do amor
mesma moeda. Faltando o afeto, deve entrar
no convívio familiar possui grande importância para a lei para colocar limites onde não foi possível
o ajustamento psicológico e afetivo dos filhos. E a pela via do afeto.
privação do afeto pode gerar sequelas que
perdurarão por toda a existência, seja no âmbito Segundo as premissas desse princípio, nas
pessoal, psicológico, moral ou afetivo. famílias modernas prevalece o afeto e não apenas
Nesse sentido, Winnicott (2008) ensina que o os laços biológicos. Sendo o afeto princípio básico
bebê privado de um contato afetivo satisfatório com para as relações de parentabilidade, Lôbo (2003, p.
seus genitores sofrerá perturbações no seu 56) diz que “o afeto não é fruto da biologia. Os laços
desenvolvimento psicológico e emocional, o que de afeto e de solidariedade derivam da convivência
ensejará em inúmeras dificuldades pessoais. Assim, familiar, não do sangue”. A afetividade é tão
uma boa assistência afetiva configura aspecto importante que Dias (2009) afirma que é o princípio
essencial para o desenvolvimento completo da norteador de todo o Direito das Famílias.
capacidade relacional desse filho. A Constituição da República Federativa do
Demonstrada a relevância do afeto para o Brasil de 1988 (CRFB/88), também elenca os
desenvolvimento regular do indivíduo, bem como deveres e obrigações decorrentes dos pais para com
para as suas relações interpessoais, é possível inferir os filhos. O art. 227 da CRFB/88 enumera os
que privação desse afeto, pode ser encarada como direitos e deveres da criança que devem ser
omissão danosa à formação integral da pessoa assegurados pelo Estado, pela sociedade e pela
humana. família:

3 O ABANDONO AFETIVO PARENTAL Art. 227. É dever da família, da sociedade e


NO ORDENAMENTO JURÍDICO do Estado assegurar à criança, ao adolescente
BRASILEIRO e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito
à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à
Aceitar o abandono afetivo como premissa dignidade, ao respeito, à liberdade e à
para dano moral e, consequentemente, passível de convivência familiar e comunitária, além de
indenização, tem gerado uma crescente procura pelo colocá-los a salvo de toda forma de
Poder Judiciário, a fim de que os filhos sejam negligência, discriminação, exploração,
ressarcidos de alguma maneira pela quebra dos violência, crueldade e opressão.
deveres jurídicos dos pais em relação a seus filhos.
Segundo Barros (2005, p. 886) “a afeição é um fato O art. 229 da CRFB/88 estabelece as
social jurígeno, que gera direitos e obrigações acerca obrigações dos pais para com os filhos. Fixa, por
de vários bens e valores, como alimentos, moradia, exemplo, “o dever de assistir, criar e educar os
saúde, educação, etc.”. Portanto, o afeto nas filhos.”. Assim, a família, a sociedade e o Estado
relações sociais é protegido por todo o ordenamento devem zelar pelo bem-estar físico, psíquico e moral
jurídico, seja através dos princípios constitucionais dos indivíduos. Assegura Lôbo (2009) que ela deve
ou por princípios do Direito Privado. propiciar à criança e ao adolescente os meios de
O princípio da afetividade é decorrente dos realização da dignidade pessoal, impondo a todas as
princípios constitucionais da dignidade da pessoa entidades com fins afetivos, a natureza e o
humana e da solidariedade familiar. A afetividade reconhecimento de família, fazendo-se cumprir as
deixa de ser valor jurídico e se torna princípio quando normas estabelecidas na legislação brasileira.
as relações familiares deixam de ser essencialmente Na seara do Direito Civil, o Código Civil
para desenvolvimento patrimonial ou para a Brasileiro de 2002 (CCB/02), instituído pela Lei
reprodução e passam a ser espaço para o 10.406, de 10-1-2002, no seu art. 1.634, determina
desenvolvimento e crescimento pessoal. Pereira que o dever dos pais não é restrito ao sustento
(2005, p. 844) destaca que: material, mas também a obrigação de dirigir os filhos
quanto à sua criação e à educação, bem como tê-
De simples valor jurídico a princípio jurídico los em sua companhia e guarda, estabelecendo,
foi um outro passo, e historicamente, é nesse contexto, os elementos extrapatrimoniais.

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Como os valores morais, a convivência familiar, a Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts.
orientação educacional e a própria construção do 186 e 187), causar dano a outrem fica
indivíduo como cidadão são tão significativos quanto obrigado a repará-lo.
a assistência material.
Inúmeros são os aspectos normativos que De acordo com os art. 186 e 927 do CCB/02,
visam à proteção dos filhos quanto ao abandono para a aplicação da responsabilidade civil são
físico, material ou afetivo pelos genitores, visto que necessários alguns requisitos que configuram a
a ausência do amor, do carinho e da presença dos ilicitude. São eles: a conduta (negativa ou positiva),
pais acarretará danos irreparáveis à pessoa. o dano e o nexo de causalidade.
Entretanto, quando essa omissão não é resolvida de Diniz (2006) ressalta que para a configuração
maneira pacífica, alguns juristas e magistrados da ilicitude é necessário que o fato lesivo seja
defendem a aplicação do instituto da responsabilidade causado pelo agente, por ação ou omissão
civil e a reparação por dano moral. voluntária, decorrente da negligência ou
A CRFB/88 eleva a reparação por dano moral imprudência; que tenha produzido um dano moral
ao patamar de direito fundamental, no art. 5.º, incisos ou patrimonial, além do que deve haver um nexo de
V e X, prevendo a reparação dos danos materiais, causalidade entre o dano e o comportamento do
morais ou à imagem. Desta maneira afirma Gama agente. E, somente diante desses pressupostos é
(2010, p. 171): que o indivíduo pode buscar a indenização por
responsabilidade civil.
A carga de sofrimento, de dor, de abalo No caso do abandono afetivo parental, os
psíquico recai sobre a pessoa da vítima, genitores deixam de cumprir com os elementos
independentemente de qualquer perda
básicos para a funcionalidade das entidades
material, é justificadora do direito à reparação
do dano moral sofrido, devendo se observar familiares, uma vez que estas devem contribuir para
a prevalência da tutela da personalidade a realização da personalidade dos indivíduos, em
humana diante da nova ordem de valores especial os filhos.
tutelados no campo existencial pela Hironaka (2006) analisa o dano, a culpa e o
Constituição da República do Brasil. nexo de causalidade nos casos de abandono afetivo.
Segundo a autora, o dano causado pelo abandono é
O instituto da responsabilidade civil visa antes de tudo um dano à personalidade do indivíduo,
reparar o dano moral através da indenização, com visto que a família, como primeiro grupo do qual o
o intuito de recomposição das situações jurídicas filho participa, possui o dever de incitar na criança
lesadas, com o escopo de compensar o abalo um sentimento de responsabilidade social. Outra
psíquico sofrido. Gagliano e Pamplona Filho (2011, hipótese é que o dano seria causado pela ausência
p. 51) caracterizam a responsabilidade civil como de afeto nas relações entre pais e filhos,
“a agressão a um interesse eminentemente prejudicando, assim, o desempenho integral do dever
particular, sujeitando, assim o infrator, ao pagamento de educação e convivência decorrentes da
de uma compensação pecuniária a vítima, caso não responsabilidade dos genitores.
possa repor o estado anterior das coisas.”. No caso de culpa, deve ser evidenciado que o
Venosa (2010) destaca que toda ação ou genitor tenha sido omisso na convivência com o filho,
omissão que gera prejuízo a outrem, acarreta o dever negando-se a participar do seu desenvolvimento,
de indenizar, se ausentes as causas excludentes de
sendo negligente ou imprudente.
indenização. Assim, de acordo com o ordenamento
Concomitantemente ao abandono, na maioria dos
jurídico, a responsabilidade civil impõe a reparação
casos é possível existir a inobservância dos deveres
do dano causado a quem, por ato ilícito, causar dano
e obrigações imateriais decorrentes do poder familiar.
a outrem, segundo os preceitos do artigo 186, do
Já para a análise do nexo de causalidade,
CCB/02, que dispõe:
Hironaka (2006, p. 7) dispõe que é necessária “a
Art. 186. Aquele, que por ação ou omissão
fixação em caráter retrospectivo, da época em que
voluntária negligência ou imprudência, violar os sintomas do dano sofrido pela criança
direito e causar dano a outrem, ainda que começaram a se manifestar, pois não poderá imputar
exclusivamente moral, comete ato ilícito. ao pai um dano que tenha manifestado em tempo
anterior ao abandono.”. Em outros termos, faz-se
O artigo 927, do CCB/02, por sua vez necessário observar se os danos acontecidos são
determina: decorrentes do abandono.
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Na atualidade há divergências sobre a Gerais (TJMG), conforme Acórdão a seguir


valoração econômica conferida ao abandono afetivo, transcrito:
gerando opiniões e decisões contraditórias. Existem
aqueles que defendem que o valor pecuniário não AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - DANOS
seria apto a sanar os problemas decorrentes do MORAIS - ABANDONO AFETIVO - ATO
ILÍCITO - INEXISTÊNCIA - DEVER DE
abandono e, em contrapartida, há os que entendem INDENIZAR - AUSÊNCIA. A omissão do
que o instituto da responsabilidade civil seria aplicável pai quanto à assistência afetiva pretendida
ao caso. pelo filho não se reveste de ato ilícito por
Os que defendem a indenização por abandono, absoluta falta de previsão legal, porquanto
como o Superior Tribunal de Justiça, afirmam que ninguém é obrigado a amar ou a dedicar amor.
Inexistindo a possibilidade de reparação a
há uma violação grave dos deveres e obrigações
que alude o art. 186 do Código Civil, eis que
dos pais para com os filhos. Compreendem também ausente o ato ilícito, não há como reconhecer
que o genitor comete ato ilícito ao descumprir com o abandono afetivo como passível de
as suas obrigações, visto que a criança necessita do indenização. (TJMG. Apelação Cível
carinho, amor, presença e afeto para sua formação, 1.0024.07.790961-2/001, Rel. Des. Alvimar de
seja ela biológica, moral, psíquica, social, emocional Ávila, DJ 11-2-2009).
e até como cidadão. A condenação pecuniária seria
Assim, é possível observar às divergências
sanção aplicada ao indivíduo pela falta de carinho,
existentes entre as decisões dos Tribunais referentes
apta a minimizar o sofrimento desse filho, além do
à responsabilidade civil por abandono afetivo.
caráter pedagógico, que impediria outros pais de
O que se vê é que, enquanto alguns
incidir em condutas semelhantes.
magistrados e juristas compreendem que tratar o
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça,
amor como simples patrimônio seria um retrocesso
no dia 24 de abril de 2012, em Recurso Especial de
no Direito das Famílias, outros, no entanto, entendem
número 1.159.242-SP (2009/0193701-9), que a indenização seria cabível para sanar os males
reconheceu o afeto como valor jurídico e concedeu causados pelo abandono.
indenização à filha pelo abandono afetivo do pai.
Nas palavras da Ministra Nancy Andrighi, colhidas 4 AFETO E PECÚNIA
no Acórdão
A família, na atualidade, é estabelecida
Amar é faculdade, cuidar é dever. [...] Sob
segundo os preceitos do carinho, amor e do afeto.
esse aspecto, indiscutível o vínculo não
apenas afetivo, mas também legal que une Os laços afetivos se sobrepõem aos biológicos e
pais e filhos, sendo monótono o são eles que amarram a convivência familiar e a
entendimento doutrinário de que, entre os estrutura da sociedade. Dessa maneira, as relações
deveres inerentes ao poder familiar, afetivas devem ser estabelecidas de maneira livre e
destacam-se o dever de convívio, de espontânea. A ideia de afetividade deve ser
cuidado, de criação e educação dos filhos,
construída. Ela representa um processo dinâmico e
vetores que, por óbvio, envolvem a
necessária transmissão de atenção e o
dialético, em que o relacionamento entre pais e filhos
acompanhamento do desenvolvimento é estabelecido com o decorrer da vida.
sociopsicológico da criança. Nesse sentido a responsabilidade civil não seria
apta a sanar os problemas decorrentes do abandono.
Com esses pressupostos, a Ministra Nancy Como dispõem Farias e Rosenvald (2008), a
Andrighi asseverou que é possível exigir a indenização decorrente da negativa de afeto
indenização por dano moral decorrente de abandono produziria uma verdadeira “patrimonialização” de
afetivo pelos pais. algo que não possui característica econômica. Seria
Já aqueles que são contrários à indenização subverter a evolução natural da ciência jurídica,
pelo abandono afetivo elencam que não seria possível retrocedendo a um período em que o ter valia mais
a lei obrigar os pais de sentirem afeto pelos seus que o ser.
filhos. As relações afetivas são provenientes do Observa-se, também, que o medo da possível
psicológico humano; ninguém possui obrigação legal ação de responsabilidade civil por abandono, levaria
de amar o outro, não podendo ensejar na ausência os pais, que não possuem qualquer tipo de relação
do afeto a aplicação do instituto da responsabilidade afetiva com seus filhos, a buscarem uma convivência
civil. Dessa maneira, o Tribunal de Justiça de Minas forçada com receio de futuras sanções do Poder

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Judiciário. Entretanto, a mera presença física não é a cura dos danos decorrentes do abandono seriam
capaz de suprir os danos ocasionados pelo impossíveis por meios exclusivamente patrimoniais.
desinteresse demonstrado nesses encontros E o faz com os seguintes termos:
impostos pelo medo e poderiam ser muito mais
danosos para os filhos, que esperam o apoio de seus Se tanto o pai quanto a filha tiverem a
pais e uma convivência afetiva espontânea. grandeza de perdoarem as faltas que um e
outro possam ter cometido, se cada um
Além desse aspecto, a busca judicial pelo
conseguir superar as suas dificuldades
“afeto” ocasionará danos ao filho queixoso, visto pessoais e minimizar ou sublimar as mágoas
que é uma situação humilhante, reclamar porventura existentes, certamente terão
publicamente por um amor negado, enquanto o pai ganhos afetivos e serão mais felizes. Mas, o
ou mãe omissos declaram também publicamente a certo é que esse conflito, que ainda persiste,
falta de amor. não poderá ser resolvido com qualquer
Com o posicionamento favorável à indenização. Pelo contrário.
condenação pecuniária pelo abandono aos filhos, o
Poder Judiciário terá uma quantidade exacerbada Assim, é possível compreender que tratar o
de ações indenizatórias com intuito meramente afeto segundo os preceitos pecuniários iria contra o
patrimonial, interesses visando apenas à vingança, próprio princípio da afetividade vigente no Direito
o que descaracterizaria a relação familiar. das Famílias. Sendo possível dispor que a utilização
Outro aspecto a ser observado, é que a da responsabilidade civil com escopo na indenização
indenização não seria aplicável ao caso de abandono por abandono afetivo representa um verdadeiro
afetivo, visto a impossibilidade de comprovação do atraso nas relações familiares. A intromissão do
dano moral, como dispõe o Desembargador Relator Judiciário nas questões de carinho, afeto e amor de
José Flávio de Almeida, da 12.ª Câmara Cível do maneira coativa pode representar perigo ou abuso
Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, ao de poder, visto que o afeto é sentido, construído;
negar Recurso de Apelação n.° 1.0720.09.052727- não imposto.
9/001(1), nos seguintes termos:
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O tardio reconhecimento de paternidade, se
não estabelecido vínculo e convivência entre De acordo com o exposto, é possível inferir
pai biológico e filho, depois de muitos anos que a indenização por abandono afetivo parental
de vida distanciados no tempo e espaço, representa um verdadeiro retrocesso no Direito das
ainda que essa situação de fato possa ser Famílias. Admitir a aplicação do instituto da
cunhada de abandono afetivo, não configura
responsabilidade civil limitaria as relações subjetivas
ato ilícito passível de reparação por danos
morais. Mesmo que possa ser moralmente do afeto e amor ao campo patrimonial. E, como
reprovável a conduta do apelado. exposto, o Direito evoluiu. E não são as relações
econômicas que o norteiam na atualidade.
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, A indenização pelo abandono não é apta a sanar
julgou improcedente a Apelação Civil n.º os danos causados ao filho e muito menos propiciaria
70050203751, de responsabilidade por abandono melhora nas relações familiares. Poderia, no entanto,
afetivo. O Relator da Apelação do TJRS, o aumentar as desavenças e solidificar a ausência de
Desembargador Alzir Felippe Schmitz, afirmou que relações salutares entre genitores e filhos.
‘‘mesmo os abalos ao psicológico, à moral, ao Tratar o amor como simples pecúnia não
espírito e, de forma mais ampla, à dignidade da representaria nenhuma finalidade social benéfica.
pessoa humana, em razão da falta de afetividade, O afeto é que regula as famílias. É dele que
não são indenizáveis por impossibilidade de aferição decorrem todas as relações pessoais. Não pode
da culpa.’’, requisito determinante para a fixação ser imposto.
da responsabilidade civil. Como dispõem os aspectos normativos, os pais
Segundo o Desembargador Sérgio Fernando possuem a obrigação de cumprir os deveres
de Vasconcellos Chaves, da 7.ª Câmara Cível do inerentes à maternidade e paternidade responsáveis.
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Entretanto, buscar a obrigatoriedade do amor é algo
no Recurso n.° 70029347036, a busca pelo perdão perigoso. E a monetarização do afeto pode levar a
seria mais benéfica no desenvolvimento das relações uma convivência forçada não benéfica a qualquer
afetivas entre filhos e pais, pois a reaproximação ou das partes.

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Pensar em Direito das Famílias contemporâneo ZIMERMAN, David; COLTRO, Antônio Carlos
é pensar em relações afetivas. Portanto, quando o Mathias (Org.). Aspectos psicológicos na
amor é transformado em simples pecúnia representa prática jurídica. 3. ed. Campinas: Millenium,
um retrocesso no tempo, limitando a estagnação de 2010.
reduzir as relações interpessoais ao campo do
patrimônio. O afeto é algo que nasce naturalmente, HIRONAKA, Gilselda Maria Fernandes
fruto de aproximação espontânea. É recíproco e não Novaes. Pressupostos, elementos e limites do
pode ser criado pela força do Poder Judiciário. dever de indenizar por abandono afetivo. In:
PEREIRA, Tânia da Silva; PEREIRA, Rodrigo
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Institui o Código Civil. Diário Oficial [da] civil comentado. São Paulo: Atlas, 2003.
República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 11
jan. 2002. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Famílias. 2. ed. São
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Especial n.º 1.159.242-(2009/0193701-9). LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades familiares
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RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do WINNICOTT, Donald Woolds. A criança e o


Rio Grande do Sul. Apelação Civil n.º seu mundo. 6. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

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LIMITAÇÃO À IMUNIDADE MATERIAL DOS PARLAMENTARES


EM FUNÇÃO DE SEUS ABUSOS E EXCESSOS

Elles Albano de Aguiar Carneiro1

RESUMO Keywords: immunity material, parliamentarians,


limits, excesses and abuses.
O presente artigo foi construído a partir da análise
de material bibliográfico coletado com a finalidade 1 INTRODUÇÃO
de obter maiores conhecimentos acerca da
deturpação do propósito de proteção e garantia ao Desde a Grécia antiga, passando pelos
Parlamentar, por sua opinião, palavra e voto. contratualistas como Montesquieu (1962), até a sua
Constantes abusos e excessos contribuem para o inscrição jurídico-positiva nos diversos textos
perecimento do ideal de política, bem como a constitucionais dos Estados modernos, a teoria da
degradação desta prerrogativa frente ao cidadão. separação dos Poderes objetiva um poder político
No decorrer do trabalho, será apresentado o devidamente independente e harmônico, a fim de
sistema garantidor da imunidade material, aliado à primar pelo equilíbrio e evitar o arbítrio e o
sua consequente necessidade de limitação e desrespeito aos direitos fundamentais do homem.
fiscalização, de modo a não descaracterizar tal Neste sentido, o Estado divide seus órgãos e
garantia que se faz de suma importância para o suas respectivas funções em típicas e atípicas.
desenvolvimento democrático, além de contribuir Conforme a Constituição Federal, cada Poder deve
para o resgate da credibilidade da classe política ser compreendido como órgão do Estado, ao qual
nacional. é conferida uma função peculiar. Ao Poder
Legislativo, foco deste estudo, como função típica,
Palavras-chave: imunidade material, cabe a elaboração de leis genéricas e impessoais
parlamentares, limites, abusos e excessos. a serem seguidas pelos membros da sociedade,
além de fiscalizar. O Poder Executivo, por sua vez,
está encarregado de aplicar as leis enquanto
ABSTRACT Administração Pública, exercendo efetivamente
atos de chefia e administração nos termos da lei.
This article was built from an analysis of E o Poder Judiciário, designado a dirimir os conflitos
bibliographic material collected in order to obtain existentes na sociedade, aplicando o Direito ao caso
more knowledge about the misrepresentation of concreto e interpretando oficialmente a legislação
the purpose of protection and assurance to (NOVELINO, 2009).
Parliament, in its opinion, word and vote. Constant Tal dispositivo tem por finalidade evitar uma
abuses and excesses contribute to the extinction convergência automática ao abuso, já que os
of the optimal policy as well as the degradation of Poderes acabam se limitando reciprocamente em
this prerogative against the citizen. During the work suas funções típicas e atípicas. Neste sistema de
will be presented the system guaranteeing the freios e contrapesos, conforme vislumbrado por
immunity material, combined with its consequent Montesquieu, os Poderes tendem a se regularizar
need for limiting and monitoring, so as not to para funcionarem em uma harmonia
mischaracterize such warranty that makes him contrabalançada e flexível. O eventual ou
extremely important for democratic development, pretendido descomedimento de um encontrará o
and contribute to the rescue of the credibility of devido limite na atuação de outro, de modo justo e
national political class. independente.

1
Acadêmico do Sétimo Período Matutino do Curso de Direito da Faculdade de Direito Santo Agostinho e membro do
Programa Especial de Tutoria (PET).

23
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Dentre as vertentes do Poder Legislativo, a Para tanto, tem-se como base, o posicionamento
sua relação com o aparelho de garantias e proteção jurisprudencial e doutrinário acerca do assunto, além
aos Deputados e Senadores, advindas do Estatuto da busca pela definição dos limites de atuação dos
do Congressista, como meio garantidor das membros do Poder Legislativo.
imunidades, é aquela que causa maior inquietação.
Haja vista que a deturpação desse instituto como 2 IMUNIDADE PARLAMENTAR:
forma de escudo ao arbítrio, remete à sociedade a ANTECEDENTES HISTÓRICOS
ideia de regalia ao Parlamentar, mero instrumento
de representação do povo. E assim, chamar Desde os primórdios das civilizações, os
atenção para a real eficácia desse instituto, como homens disseminavam ideais de igualdade. Os
também da possibilidade do seu enrijecimento. cristãos, por exemplo, já pregavam que todos os
É inquestionável a conquista dessa autêntica homens são iguais perante Deus. Alguns filósofos
necessidade institucional para a manutenção da como Platão, Aristóteles e Heráclito propagaram
democracia pátria. Quando bem administrada, o Direito Natural, defendendo a ideia de que os
confere ao seu detentor proteção necessária à sua homens já nascem com determinados direitos,
liberdade de atuação, propiciando, assim, a lógica inerentes à natureza, simplesmente pelo fato de
da tripartição de Poderes. Isto porque o escopo do serem humanos. E, assim, não podem ser
Estatuto do Congressista é conferir aos membros descartados quando em sociedade (HERVADA,
do Congresso Nacional o fortalecimento do seu 2008).
exercício frente à interferência dos demais Com o tempo, tais direitos continuaram a ser
Poderes. discutidos, sempre à luz de novas perspectivas.
No que diz respeito à deturpação do seu Preleciona Moraes (2011), que várias correntes
propósito de amparo e segurança, o que se discute de pensamentos persistiram a evoluir, e muitas
são formas de evitar atos atentatórios à liberdade delas, acabaram por influenciar na elaboração de
de atuação dos Parlamentares, como os que documentos importantes, como a Magna Carta, em
outrora ocorreram nos períodos de repressão 1215, que limitava o poder dos monarcas ingleses,
política e ditadura militar. Nesse diapasão, é além do papel fundamental na criação da
marcante a influência dessa chaga histórica no Constituição dos EUA, aprovada em 1787.
presente instituto, que se evidencia ao abrigar o Consolidadas basicamente pelo direito
direito de opinião e o direito de se opor. europeu, segundo a doutrina, as
Contudo, tal finalidade, quando não
perfeitamente desempenhada pelos representantes imunidades parlamentares como corolário da
defesa da livre existência e independência
eleitos, levanta questões polêmicas quanto à do Parlamento tem no sistema constitucional
violação dos direitos individuais constitucionalmente inglês sua origem, através da proclamação
garantidos. do duplo princípio da freedom of speach
Na mão inversa, constantes abusos e (liberdade de palavra) e da freedom from
excessos cometidos por parte dos parlamentares arrest (imunidade à prisão arbitrária), no Bill
cooperam para o perecimento do ideal ético de of Rights de 1688, os quais proclamaram que
a liberdade de expressão e de debate ou de
política objetivado, bem como a degradação do troca de opiniões no Parlamento não pode
direito e da justiça para com o cidadão. O que de ser impedida ou posta em questão em
fato se traduz aos olhos da população em geral é a qualquer corte ou lugar fora do Parlamento
ideia de estarem os seus representantes fora da (MORAES, 2011, p. 456).
ação da lei e do seu âmbito de atuação, que se
mostra imprudente e implacável em relação ao Segundo Aleixo (1961), surge, por volta do
cidadão comum. século XVII, como maneira de garantir aos
Como tentativa de sanar inquietações ou até membros do Parlamento inglês, a livre expressão
mesmo levantar novas problemáticas é que se faz de suas opiniões sem o risco de serem presos pelo
de grande valia examinar de maneira minuciosa o arbítrio do Rei. Nessa época, o regime dominante
instituto da Imunidade Material, prevista no artigo era o do Absolutismo Monárquico. E, nele, Monarca
53 da Constituição da República. Com este intuito, e Estado se confundiam em um só.
foram feitas considerações relativas à crescente Em relação à abrangência das imunidades, o
necessidade de impedir que esta prerrogativa dê azo processo histórico diz respeito a somente palavras
a abusos e excessos por parte dos Parlamentares. e votos, dos quais apenas aqueles enunciados dentro

24
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do recinto das Sessões ou das Comissões são “movimento das Diretas Já”. A Emenda não foi
amparados pelo dispositivo em tela. Com o tempo, aprovada pela Câmara dos Deputados. Em 15 de
passou a se abranger a liberdade de expressão e janeiro de 1985, o Colégio Eleitoral escolhe o
opinião (MORAES, 2011). então Deputado Tancredo Neves, da Aliança
O caráter de proteção ao livre exercício do Democrática, como novo Presidente da
Parlamentar, em âmbito nacional, tem como República, sendo este o primeiro Presidente civil
baluarte a Constituição da República que, após 21 anos do regime. Mas, como Tancredo
essencialmente, assegura todos os direitos e as Neves veio a falecer antes de assumir o cargo, a
garantias individuais e coletivas. Desde a Presidência da República passa a ser ocupada
Constituição Imperial, de 1824, são previstas pelo Vice-Presidente José Sarney.
normas para disciplinar o tema. A Carta de 1937, Com a promulgação da nova Constituição,
contudo, em seus arts. 42 a 43, modificou no ano de 1988, primou-se por apagar os indícios
significativamente o tratamento das imunidades. deste momento histórico e estabelecer princípios
Embora previstas, a Constituição admitia a democráticos ao País. Deste modo, passado o
responsabilização do Parlamentar por difamação, período de repressão política acarretado pela
injúria, ultraje à moral pública ou provocação pública chamada Era Vargas e pelo subsequente regime
ao crime, ficando sujeito à perda do mandato ditatorial no Brasil, o constituinte originário objetiva
(CARVALHO, 2012). cercar e majorar os benefícios da classe
Tal modificação é a expressão de um parlamentar. Logo, evitar novas crises políticas.
momento de aparente legalidade e excesso de Conforme assenta Moraes, a redação original
Poder Executivo, haja vista que entre os anos de
1964, 1967 e 1985, o Brasil foi governado por uma da Constituição Federal de 1988 previa as
forma de Governo estritamente ditatorial, no qual imunidades material e formal no art. 53, §§
1.º, 2.º e 3.º, determinando que os Deputados
os militares se alternaram no Poder 2 . Fase
e Senadores eram invioláveis por suas
marcada pela ausência de eleições diretas e opiniões, palavras e votos, bem como desde
caracterizada pela falta de democracia, além da a expedição do diploma não poderiam ser
supressão de direitos constitucionalmente presos, salvo em flagrante de crime
estabelecidos, e com instituição de censura, inafiançável, nem processados
perseguição e intervenção política na forma de criminalmente, sem prévia licença de sua
repressão aos que desafiavam o regime dominante. Casa. Ainda, disciplinava que, no caso de
flagrante de crime inafiançável, os autos
Durante o referido regime ditatorial, o seriam remetidos, dentro de vinte e quatro
encalço aos Parlamentares, aliado à dissolução de horas, à Casa respectiva, para que, pelo voto
Partidos Políticos e a cassação de mandatos, secreto da maioria de seus membros,
contribuiu para o enfraquecimento da classe, com resolvesse sobre a prisão e autorizasse, ou
reflexo até os presentes dias. Muitos políticos não, a formação de culpa (2011, p. 459-460).
sentiram na pele o horror de um tempo em que
não havia liberdade, ao serem presos, torturados e Alterando expressivamente tal regime, a
até mesmo exilados3. Emenda Constitucional n.º 35, de 20 de dezembro
Para Mota (2002), a situação começa a dar de 2001, manteve a imunidade material e restringiu
sinais de redemocratização com o nascimento da a imunidade formal processual.
“Lei da Anistia” (Lei n.º 6.683/79). À época, após
ser fortemente pressionado, o General João 3 IMUNIDADES PARLAMENTARES
Baptista Figueiredo, Presidente da República,
concedeu aos exilados e condenados por crimes Imunidades parlamentares são prerrogativas
políticos o direito de regressar ao Brasil. Em 1984, intrínsecas à função parlamentar, cujo escopo é
a sociedade se reorganiza, e milhões de brasileiros essencialmente garantir a liberdade de expressão
vão às ruas reivindicar eleições diretas e a e manifestação, e assim excluir a sua
aprovação da “Emenda Dante de Oliveira”, responsabilidade civil e penal. Adotadas por quase
garantidora das eleições diretas daquele ano – todos os países democráticos do mundo,

2
Disponível em: <http://www.suapesquisa.com/ditadura/>. Acesso em: 5 jun. 2011.
3
Disponível em: <http://guiadoestudante.abril.com.br/estudar/historia/ditadura-militar-brasil-1964-1985-
650468.shtml>. Acesso em: 5 jun. 2011.

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representam o elemento preponderante para a 4 ESTATUTO DO CONGRESSISTA:


independência do Poder Legislativo, haja vista que ANÁLISE DA IMUNIDADE MATERIAL
se concretiza na proteção do exercício das funções
de deputados e senadores contra o arbítrio dos O Estatuto do Congressista designa o
demais poderes (SILVA, 2011). conjunto de normas constitucionais cujo regime
Frente ao direito comum, constitui-se como protetivo é voltado aos membros do Poder
garantia de liberdade de opinião, palavras e votos Legislativo (SILVA, 2011). Ou seja, uma espécie
(imunidade material), além do amparo contra de lei de regência composta por diversas regras
prisões arbitrárias e processos indevidos, medida da própria Constituição Federal, que compreendem
que obriga a Justiça a pedir licença à Câmara dos direitos e deveres, cujo desígnio é a garantia do
Deputados ou ao Senado Fedeal para processar exercício do Parlamentar.
membros do Legislativo por crimes ligados às Institui, em seu Título IV – “Da Organização
atividades parlamentares (imunidade formal). Para dos Poderes” – Capítulo I – “Do Poder
Moraes, no primeiro grupo, enquadram-se as Legislativo” – Seção I – “Do Congresso Nacional”,
garantias que se referem à manutenção e ao bom imunidades e vedações (incompatibilidades)
funcionamento do Congresso Nacional como parlamentares, de modo a dinamizar e garantir a
corolário do Poder Legislativo. Não obstante, o sua atuação de forma livre e independente, tanto
segundo grupo abarca as que protegem os individualmente quanto como um todo unitário.
Parlamentares individual e subjetivamente. Para Fernandes (2011), compreende o
Gonçalves assevera que o “Legislativo é conjunto de normas constitucionais que estatui
simultaneamente representativo da sociedade e do direitos a Deputados e Senadores, desde as
pluralismo político e o mais frágil de todos os imunidades materiais e formais, até as
Poderes, por ser órgão colegial numeroso, prerrogativas de foro, de serviço militar,
dependente dos jogos políticos, sobretudo do Poder vencimentos e isenção do dever de testemunhar,
Executivo, e mais aberto ao juízo de opinião além das incompatibilidades.
pública.” (2012, p. 1.033) . No que tange às imunidades materiais,
Outorgadas pelo art. 53, a Constituição da configuram-se, segundo a doutrina de Mendes (2009),
República prevê em seu caput que Deputados e como a subtração da responsabilidade da conduta
Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por penal por prática de crime, bem como a inviolabilidade
suas opiniões, palavras e votos. E em seus civil, disciplinar ou política a que um Parlamentar está
parágrafos, o mesmo cânone constitucional traz o sujeito por força de suas opiniões, palavras e votos.
procedimento processual necessário ao julgamento Também é conhecida por inviolabilidade ou
por crimes dos membros do Congresso Nacional. imunidade real, substantiva (SILVA, 2011).
A imunidade parlamentar tem por objetivo Tem como corpo de base o caput do art. 53
permitir a livre manutenção do desempenho do da Constituição Federal ao prever expressamente
ofício dos membros do Legislativo no trato de que Deputados e Senadores são invioláveis, civil e
assuntos que sejam do interesse de toda a penalmente, por suas opiniões, palavras e votos.
coletividade, de modo a afiançar a instituição e Nesse sentir, desde que proferidos em virtude de
reforçar a democracia. suas atribuições parlamentares, no exercício, e
Sua natureza jurídica é doutrinariamente ainda, relacionadas ao mandato, não se restringindo
classificada e individualizada de diversas formas: ao âmbito físico do Congresso Nacional. Pelo
causa de excludente de crime; causa excludente princípio da simetria, tal instrumento se estende
de punibilidade; causa funcional de aos Deputados Estaduais e Vereadores. Estes
irresponsabilidade (MORAES, 2011). Todavia, a últimos, desde que respeitadas os limites de sua
natureza deste instituto deve ser interpretada como circunscrição. Pois, aos demais membros do Poder
a circunstância em que o fato ocorrido deixa de Legislativo, é pacifica a decisão de que, em
produzir os efeitos que normalmente produziria, por qualquer lugar do território nacional estarão
se estar diante de uma garantia cujo caráter é resguardados seus direitos de imunidades
eminentemente constitucional. (FERNANDES, 2011).

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Conforme esclarece o Ministro Celso de situação normal, formada por duas pessoas comuns
Mello, o fundamento da natureza jurídica desse em um caso de dano moral. Ao atingir a honra, a
instituto é se conservar “em consonância com a imagem e/ou a intimidade de um dos envolvidos,
exigência de preservação da independência do por tutelar direitos inerentes à personalidade e
congressista no exercício do mandato resguardar a dignidade da pessoa humana, a sua
parlamentar4”. violação confere ao prejudicado o direito de
Salienta Moraes (2011) que, sem imunidade, resposta, além de indenização pelos danos sofridos.
a cada vez que um Parlamentar de oposição fizesse Pegando o caso supracitado e supondo que
um discurso desfavorável ou contrário ao Governo, um dos envolvidos, na condição de Parlamentar,
poderia este vir a ser processado, o que incorra na mesma prática. Em razão da sua
inviabilizaria o seu trabalho de representante direto prerrogativa, o tratamento agora passa a ser
do povo. Daí a sua importância, pois sua palavra é diferenciado, imunizando-o por excluir o delito, já
livre e o seu voto deve atender aos anseios de sua que este possui inviolabilidade civil, estando
consciência. Abrange igualmente os relatórios e protegido por opinião, palavra e voto, bem como
trabalhos das Comissões, bem como os atos da correspondente responsabilização por perdas e
praticados na Comissão Parlamentar de Inquérito. danos.
Na mão inversa, pacifico é o entender de que
5 ATUAÇÃO PARLAMENTAR: nenhum direito é absoluto, em virtude do princípio
ABUSO E EXCESSO da relatividade. Afinal, tende-se a priorizar o bem
comum, tendo como nexo causal a plena garantia
O panorama das imunidades materiais dos direitos e os seus limites legalmente
apresentado consubstancia-se como um equívoco determinados em função de ações nocivas à
quanto ao instituto da imunidade parlamentar que, coletividade.
historicamente, tem como premissa lógica a Os direitos e garantias fundamentais
proteção da liberdade de atuação, bem como o encontram seus limites em outros direitos,
fortalecimento e a independência do exercício do igualmente consagrados pela Constituição.
Poder Legislativo. Havendo conflito entre dois ou mais direitos ou
A imunidade parlamentar material é garantias, optar-se-á pela harmonização, e assim
compreendida como um benefício necessário evitar a supressão total de uns em relações aos
concedido para o exercício da função de outros.
representante do povo. Entretanto, no contexto Tem-se por abusos e excessos qualquer tipo
atual, inúmeras são as situações em que há de ato inconveniente que exorbite ou lesione a
cometimento do arbítrio no uso desta primordial finalidade constitucionalmente estipulada pelo
prerrogativa constitucional. Constituinte para os membros do Poder Legislativo
Seu escopo não é a proteção pessoal do no exercício de sua função representativa
Parlamentar, abrigando-o em um escudo, muito outorgada pelo povo. É o mau uso do cargo público
menos contribuir para resguardar seus erros, suas de modo a causar dano e/ou aproveitar-se
omissões, seus atos de improbidade administrativa tortuosamente da sua situação de superioridade (DI
e imoralidade, ou ainda o seu descaso para com a PIETRO, 2013).
sua função política. A exorbitância das atribuições ou poderes
A Constituição elenca, no artigo 5.º e seus ultrapassa a fronteira do permitido, do legal,
incisos, os direitos individuais e coletivos, ou seja, reduzindo o alcance da atividade em relação aos
aqueles direitos inerentes ao conceito de pessoa seus desígnios. O excesso na conduta discricionária
humana e da sua personalidade, capazes de garantir do indivíduo amparado pela instituição da imunidade
uma convivência digna, autônoma e igual para todas parlamentar fere a própria Constituição, e ainda, o
as pessoas. Portanto, são direitos indisponíveis, tais poder emanado do povo, pois aos governantes está
como vida, igualdade, dignidade e honra, dentre previsto o dever de desempenhar suas funções sem
outros. se apartar do ideal de que estão exclusivamente
Conforme previsto na Constituição e no investidos para a manutenção da democracia.
Código Civil (Lei n.º 10.406/2002), em uma A título de exemplo, poder-se-ia indicar as

4
MELLO, Celso de. Inq. 510-DF, RTJ 135, p. 514. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/
artigoBd.asp#visualizar>. Acesso em: 24 jan. 2012.

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manifestações dos Deputados Federais Jair vêm transformando as imunidades parlamentares


Bolsonaro (PP-RJ) e Marco Feliciano (PSC-SP), em uma forma de aberração institucional.
que corriqueiramente utilizam desse instituto para Faz-se necessário coibir abusos e excessos,
abrigar seus insultos e destilar sua carga de bem como determinadas atitudes ofensivas ao
preconceito, assim também como o Senador decoro parlamentar, já que se abrigar de maneira
Demóstenes Torres (eleito pelo DEM-GO, do qual desmedida neste direito subjetivo à inviolabilidade,
se desfiliou após denúncias de corrupção), que institui artifício desfavorável ao ideal de uma
apesar da perda do mandato continua imune para sociedade justa e igualitária. Logo, deve o
resguardar seus próprios interesses em detrimento ordenamento se resguardar, devendo o mau
dos interesses do povo. Parlamentar ser coibido sempre que estiver se
Nesse sentido, o Deputado e pastor Marco aproveitando do cargo para ocultar atividades,
Feliciano, que hoje ocupa a Presidência da sendo a sua limitação de interesse público.
Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos
Deputados, atuando exclusivamente como líder 6 ATRIBUIÇÕES PARLAMENTARES:
religioso, corriqueiramente emana uma visão LIMITAÇÕES E DECISÕES DO STF
nitidamente preconceituosa. Segundo reportagem
do jornal Folha de São Paulo5, em 2011, o Deputado Modernamente, fala-se em igualdade
escreveu no Twitter 6 que “a podridão dos substancial, cujo significado envolve o trato
sentimentos dos homoafetivos leva ao ódio, ao igualitário dos iguais e o trato desigual dos
crime, à rejeição”, e também postou que africanos desiguais, tendo como liame, a medida das suas
são amaldiçoados pelo personagem bíblico Noé. desigualdades. Consequentemente faz-se
“Isso é fato”, completou ele. necessário a limitação de tais prerrogativas para o
Em razão de tais declarações, assim como desenvolvimento democrático e o resgate da
tantas outras por ele proferidas à imprensa, não credibilidade da classe política nacional.
possuírem qualquer correlação com o desempenho Importante trabalho no sentido de coibir
do seu mandato, a mesma matéria revela que o abusos e excessos por parte dos membros do
Procurador-Geral da República, Roberto Gurgel, Poder Legislativo vem sendo desenvolvido, ainda
reforçou que o Supremo Tribunal Federal instaure que timidamente, pelo Supremo Tribunal Federal
processo penal contra o Deputado, que já é alvo (STF).
de inquérito na Corte por preconceito e Como guardião precípuo da Constituição cabe
discriminação. “É evidente que há justa causa para ao STF impedir que tal arma democrática venha a
instauração da ação penal, na medida que a se transformar em um simples privilégio ou, ainda,
declaração feita pelo investigado na rede social como se percebe frequentemente, em mero escudo
violou direitos fundamentais elementares e instigou para transgressão da ordem, da moral pública e dos
os demais membros da sociedade, principalmente bons costumes.
seus seguidores, a adotarem semelhante postura”, Protegendo, acima de tudo, a Instituição, é
diz Gurgel em documento protocolado. plausível estabelecer que a imunidade material dos
A Folha7 revelou ainda, que, em sua defesa congressistas seja intrínseca. Logo, depara-se
protocolizada junto ao Supremo Tribunal Federal, constitucionalmente com as formas de limitação
Feliciano reafirmou que paira sobre os africanos funcional, territorial e temporal.
uma maldição divina e procurou justificar a fala Funcionalmente, entende-se que a imunidade
com uma afirmação que, publicamente, tem estará reservada ao exercício do mandato
rechaçado: a de que atrelou seu mandato parlamentar, estando, portanto, “excluídas as
parlamentar à sua crença religiosa. manifestações que não tenham ligação temática
O absoluto descomprometimento em relação com o exercício do mandato parlamentar”, logo,
ao povo que lhe atribuiu o poder, investindo-o como não alcançando matéria alheia ao exercício do
seu representante, exemplifica as distorções que mandato8.

5
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/1260082-procurador-pede-que-stf-abra-acao-criminal-contra-
feliciano.shtml>. Acesso em: 9 mar. 2013.
6
Microblog usado para a troca de textos em até 140 caracteres, além da interação social entre usuários.
7
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/1260082-procurador-pede-que-stf-abra-acao-criminal-contra-
feliciano.shtml>. Acesso em: 9 mar. 2013.
8
Inquérito 1.710-DF de 27 fev. 2002. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/
artigoBd.asp#visualizar>. Acesso em: 24 jan. 2012.

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Já a limitação territorial prevê que a situação somente se modificou com a promulgação


imunidade material está adstrita à circunscrição da Emenda Constitucional n.º 35, de 20 de
nacional, ou seja, não se dá internacionalmente, dezembro do mesmo ano, que alterou o texto
pois esta imunidade abarca toda a extensão normativo do artigo 34. Agora, os crimes comuns
geográfica do país, não devendo extrapolar as suas cometidos antes da diplomação de um Parlamentar
fronteiras9. não podem mais ser suspensos. E, em caso de
Por sua vez, o pressuposto temporal coloca crimes cometidos posteriormente, fica o Supremo
tal inviolabilidade como permanente, absoluta, de incumbido de levar o processo adiante. Contudo,
caráter perpétuo, uma vez que mesmo após o somente há interrupção em caso de o Congresso
termino da legislatura, o Parlamentar não poderá se manifestar em contrário. Deste modo, a
ser responsabilizado ou incriminado, pois a ele possibilidade de se protegerem mutuamente passa
assegura-se, pela força normativa do Instituto, a a ser menor.
inexistência da infração penal e/ou do respectivo Por via de Emenda à Constituição, nos termos
ilícito civil, que perdurará após o término do próprio do § 3.º do art. 60 da Constituição Federal, os
mandato administrativo. próprios Parlamentares limitaram-se em relação
Desde que guarde nexo causal com o aos abusos e excessos da categoria. Afinal, como
exercício do mandato, tal limitação configura-se se sabe, para a opinião pública, esse tipo de
pela existência de um liame entre a manifestação manobra soa quase como uma confissão de culpa.
emitida parlamentarmente e o exercício de sua Importante trabalho no sentido de coibir
função pública, independente de esta se localizar abusos e excessos por parte dos membros do
dentro ou fora do recinto de sua respectiva Casa Poder Legislativo vem sendo desenvolvido, ainda
Legislativa, alcançando também a divulgação e que timidamente, pelo Supremo Tribunal Federal.
cobertura da imprensa 10 . Haverá, assim, É pacifica a interpretação do STF de que
aplicabilidade total dessa prerrogativa. Sendo,
ainda, inadmissível a possibilidade de renúncia da A imunidade material prevista no art. 53,
imunidade parlamentar material, pois não constitui caput, da Constituição não é absoluta, pois
somente se verifica nos casos em que a
uma garantia de ordem estritamente subjetiva, e
conduta possa ter alguma relação com o
sim de ordem pública, institucional. exercício do mandato parlamentar. Embora a
Tal possibilidade de análise e eventual atividade jornalística exercida pelo querelado
restrição aos excessos não descaracterizam o não seja incompatível com atividade política,
caráter protetivo dispensado pelo Constituinte há indícios suficientemente robustos de que
originário ao livre e independente exercício dos as declarações do querelado, além de
membros do Poder Legislativo, sustentando, ilesa exorbitarem o limite da simples opinião, foram
por ele proferidas na condição exclusiva de
a Instituição. Pelo contrário, configura-se como jornalista. (Inq. 2.134, Rel. Min. Joaquim
forma de atender tal escopo, uma vez que impede Barbosa, julgamento em 23 mar. 2006,
o exercício do mau Parlamentar, cujo intuito é usar Plenário, Diário da Justiça de 2 fev. 2007.)
deste importante mecanismo de proteção como
escudo. Assim, já ficou decidido que a imunidade
Sobremaneira, nesta linha de sentido, uma material se estende a todo o território nacional, não
importante resposta que se apresenta como forma ficando restrita apenas ao espaço físico da Bancada
de limitação veio dos próprios Parlamentares. Até ou do Congresso e, consequentemente, exige-se
o ano de 2001, era previsto que os membros do que o comportamento guarde qualquer ligação com
Legislativo podiam recorrer ao benefício da o seu exercício, não alcançando manifestações
imunidade mesmo em caso de crime comum. acerca de matéria alheia à função parlamentar.
Automaticamente, a Constituição também Uma possível saída seria submeter o caso à
suspendia os processos movidos contra Deputados respectiva Casa Legislativa, para que além do
Federais ou Senadores da República. A presente parecer deliberativo do Conselho de Ética – órgão

9
Idem. Inq. 1.958, Diário da Justiça de 18 fev. 2004, Rel. para o Acórdão Carlos Britto: “É de se distinguir as situações
em que as supostas ofensas são proferidas dentro e fora do Parlamento.”.
10
Idem. Inq. 1.344, Diário da Justiça de 1.º ago. 2003, Rel. Sepúlveda Pertence. Deliberou não alcançada a imunidade
parlamentar por parte de dirigente de futebol, que também era Deputado Federal, mas atuou como jornalista.

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disciplinar encarregado de zelar pela observância contrário, deve ser censurado, seja com a
dos preceitos de ética e decoro parlamentar – incidência de crime ou de reparação de danos, ou
ficasse o Parlamentar sujeito a imposições ainda, ao menos, na esfera política e disciplinar,
previstas nos termos de suas disposições mediante previsão no Regimento Interno da
regimentais, tais como advertências, cassação da respectiva Casa. A sociedade clama por isso.
palavra, dentre outros. Sem necessariamente vetar Por fim, salienta-se a necessidade de uma
a não incidência de crime ou de qualquer forma de reavaliação abrangente desse instituto, incluindo
reparação de danos. suas formas de interpretação e aplicação, haja vista
Destarte, existem limitações as imunidades que sua essencialidade como figura de suporte ao
parlamentares materiais, pois, ainda que Parlamentar, representante direto do povo, base
moderadamente, o STF vem se posicionando a do ideal democrático, para que assim seja galgado
respeito do tema. O que se faz necessário é fechar no exemplo político e a inviolabilidade parlamentar
o cerco àqueles que invocarem esse instituto prevista na Constituição Federal não mais sirva de
protetivo, cerceando a sua vinculação ao amparo escudo a impunidade.
do Poder Legislativo, para que os maus
Parlamentares não venham se abrigar como REFERÊNCIAS
licença à prática do arbítrio.
ALEIXO, Pedro. Imunidades parlamentares.
7 CONCLUSÕES Belo Horizonte: RBEP, 1961.

Por meio do presente artigo foi possível BRASIL. Constituição Federal (1937).
observar que a inviolabilidade material dos Constituição dos Estados Unidos do Brasil, 1937.
Parlamentares não se restringe à esfera criminal, Rio de Janeiro: Centro Gráfico, 1937.
mas a todos os institutos, tendo em vista, acima de
tudo, garantir independência ao Poder Legislativo BRASIL. Constituição (1988). Constituição da
em face dos outros Poderes do Estado, conforme República Federativa do Brasil. Brasília, DF:
previsão constitucional. Senado, 1988.
Logo, tal tratamento diferenciado ao exercício
da atividade parlamentar deve ser visto como um BRASIL. A Constituição e o Supremo.
todo unitário, levando em conta sempre a sua Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/
finalidade pública e não particular. É indisponível, constituicao/artigoBd.asp#visualizar>. Acesso
até mesmo por se tratar de prerrogativa concedida em: 24 jan. 2012.
visando garantir a independência e o bom
funcionamento da instituição legislativa. BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
Assim, a imunidade parlamentar material visa Institui o Código Civil. Diário Oficial [da]
à proteção de Deputados e Senadores, enquanto e República Federativa do Brasil, Brasília/DF,
exclusivamente, em virtude de serem membros do 11 jan. 2002.
Parlamento. Tem como objetivo a proteção apenas
pela manifestação de suas opiniões, palavras e CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito
votos, e jamais por qualquer ato lesivo ao patrimônio constitucional. 18. ed., rev., atual., e ampl. Belo
público ou privado, bem como o bem estar e os Horizonte: Del Rey, 2012.
interesses da coletividade ou mesmo meramente
individuais. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de
Concomitantemente representativo da teoria geral do estado. 31. ed. São Paulo:
sociedade e do pluralismo político, dentre os demais Saraiva, 2012.
Poderes, é o Legislativo o mais fragilizado.
Entretanto, os limites de alcance desta cautela DIAS, Maria Berenice Dias. A Igualdade
constitucional carecem de ser estudados com mais Desigual. Revista Brasileira de Direito
afinco, com a finalidade de viabilizar a plena Constitucional, n. 2, jul./dez., 2003. p. 50-65.
preservação da independência no exercício
parlamentar de suas atribuições públicas. Pois, o DITADURA Militar no Brasil. Disponível em
exercício egoístico de tal prerrogativa em nada <http://www.suapesquisa.com/ditadura/>.
contribui para o desenvolvimento social. Pelo Acesso em: 5 jun. 2011.

30
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DITADURA Militar no Brasil (1964-1985). In: MORAES, Alexandre de. Direito


Guia do Estudante. Disponível em: <http:// constitucional. São Paulo: Atlas, 2011.
guiadoestudante.abril.com.br/estudar/historia/
ditadura-militar-brasil-1964-1985-650468.shtml>. MOTA, Myriam Becho. História das cavernas
Acesso em: 5 jun. 2011. ao terceiro milênio. 2. ed. São Paulo: Moderna,
2002.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito
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3. ed. rev., atual., e ampl. São Paulo: Forense,
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EDUCAÇÃO DOMICILIAR E O ABANDONO INTELECTUAL

Gislene Sampaio Said1

RESUMO Estado, e levando em consideração a insatisfação


quanto ao instituto educacional regular, cumulado
O presente trabalho tem como objetivo definir se com a possibilidade de os pais conseguirem prover
a Educação Domiciliar poderia levar os pais se uma educação de qualidade que atinja o fim social,
enquadrarem em conduta delituosa tipificada no bem como, que garanta o pleno desenvolvimento
Código Penal, no que tange ao crime de abandono da criança e do adolescente, torna-se relevante
intelectual. Para o desenvolvimento do projeto, foi que se perquira sobre o crime de abandono
utilizada pesquisa bibliográfica, consistindo as intelectual.
principais fontes em livros doutrinários, Sendo assim, o tema merece análise
jurisprudência, e artigos publicados na internet, aprofundada pois, considerando que a legislação
sendo o método do procedimento, monográfico, e brasileira não regulamenta, formalmente, o ensino
o método de abordagem, dedutivo. Analisou-se a domiciliar, os pais que optam por não delegar o
Educação Domiciliar em um contexto histórico, ensino de seus filhos ao Estado veem-se na
bem como uma análise pormenorizada da obrigação de, mesmo contra a sua vontade,
obrigatoriedade de educar em uma instituição de matricular seus filhos em escola.
ensino, instituindo uma relação com o Poder Primeiramente vislumbra-se a evolução da
Familiar. Analisaram-se os princípios reguladores Educação Domiciliar. Posteriormente é feita uma
da Educação Domiciliar. Por fim, constata-se que análise pormenorizada da obrigatoriedade de
a Educação Domiciliar não enquadra os pais em educar em uma instituição de ensino, instituindo
abandono intelectual. uma relação com o Poder Familiar. Logo após,
analisam-se os princípios que coadunam e são
Palavras-chave: Educação Domiciliar. Poder determinantes para a existência da Educação
Familiar. Abandono intelectual. Domiciliar.
Por fim, aborda a caracterização do abandono
intelectual, revelando que os pais homeschoolers
ABSTRACT não se enquadram na conduta delituosa auferida
no Código Penal.

2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA
EDUCAÇÃO DOMICILIAR

Traduzindo do inglês, homeschooling


significa, literalmente: “educação escolar que
acontece no lar” (home = lar; schooling =
1 INTRODUÇÃO educação escolar).
Até meados do século V a.C., conforme
O presente trabalho, que tem como tema a Manacorda apud Schebella (2012), a leitura e a
análise da Educação Domiciliar, no aspecto do escrita eram destinados somente àquelas pessoas
delito estabelecido de abandono intelectual previsto que exercessem alguma atividade de cunho
no Código Penal. Desse modo, partindo do fato de profissional, enquanto que os demais
que no Brasil atualmente a educação provém do conhecimentos eram transmitidos de forma oral,

1
Graduanda em Direito pela Faculdade de Direito Santo Agostinho e membro do Programa Especial de Tutoria
(PET).

33
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visto que se concretizavam por meio de lendas, momento.


histórias, crenças religiosas, dentre outros. Miller (2012) destaca que a eficácia da
Ressalta-se que a educação institucionalizada era educação escolar em casa não era assunto de
destinada somente aos nobres, clérigos e ricos. relevância durante os séculos XVIII e XIX. Cita
Por meio da vida cotidiana, os filhos jovens ainda como exemplo de alunos homeschooled
aprendiam responsabilidades necessárias para seu alguns dos mais conhecidos escritores e inventores
desenvolvimento. O aprendizado estava tal como Thomas Edison, que participou de apenas
intimamente ligado às suas tarefas, sendo como três meses de escola primária, sendo ensinado por
exemplo, a criação de gado, trabalho no campo, sua mãe. Benjamin Franklin, John Wesley, Beatrix
confecção de roupas, construções, dentre outros, Potter, Charles Dickens e Alexander Graham Bell
ao passo que refletiam como fonte principal de são outros exemplos de famosos homeschoolers.
aprendizado. A escola não deve ser considerada como uma
Miller (2012) assim arrematou: evolução da educação fornecida pelos pais, mas
sim como uma contingência que se concretizou na
Na época, as habilidades práticas eram mais esfera da Revolução Industrial pelo qual os pais
essenciais para a sobrevivência do que a (leia-se: mãe e pai), deveriam sair de suas casas e
capacidade de uma pessoa para ler ou
permanecer horas trabalhando, sendo então a
escrever. Embora aprender a ler e escrever
estava disponível, geralmente era ensinado
institucionalização escolar uma resposta à
as crianças apenas o suficiente para lidar demanda da Revolução Industrial. Portanto, a
com os assuntos básicos 2. educação escolar surgiu posteriormente à educação
familiar, mas não de modo evolutivo.
Marrou e Manacorda, apud Schebella No que concerne a respeito da educação na
(2012), revelam que, paulatinamente, foi ocorrendo Idade Moderna, Schebella (2012) tece algumas
o surgimento de instituições ou centros de ensino considerações, merecendo proeminência ao que
que se manifestam em cada época determinada assim prediz:
da história, e que seriam responsáveis por
engendrar, por seu modelo, na formação das A obrigatoriedade do ensino, bem como a
escolas. Todavia, mesmo a educação sendo ascensão da escola ao grau de “instituição
oficialmente responsável pela educação”,
institucionalizada, esta continua a se desenvolver,
modifica drasticamente a organização e a
em seus aspectos gerais, no seio da própria família. lógica que constitui a sociedade, fazendo
Outro aspecto digno de ser notado é que não com que esta seja conformada segundo o
necessariamente o ensino em casa se fazia apenas modelo que se encontra hoje.
pelos pais. Poder-se-ia também contratar um tutor
particular para ensinar em casa. Neste sentido, Desse modo, a Idade Moderna é marcada por
lembrou-se Smith, apud Schebella (2012): mudanças drásticas pelo qual geram impactos e
influências no estilo de educar as crianças.
Nos tempos coloniais, a maioria das pessoas Entrementes, a educação domiciliar aparece no
era ensinada, ou no lar (homeschooled) ou
período moderno com um conceito oficial já definido
em pequenas escolas comunitárias. É justo
dizer que, se você tivesse o dinheiro nos Estados Unidos, que o norte-americano John
necessário, é provável que contrataria um Holt batizou de “Homeschooling”.
tutor particular. As famílias mais abastadas Atualmente, a educação domiciliar é
reconheciam que a melhor forma de educação reconhecida, além dos EUA, no Japão e em vários
era o método tutorial um-a-um ou, como o
conhecemos hoje: homeschooling.
países europeus, tendo já empresas direcionadas
especificamente para a produção de material
Fato é que, seja a educação realizada por utilizado no ensino no lar e organizações de
meio de tutores particulares, seja pelos próprios contribuição, amparo e defesa dos interesses dos
pais, a educação em casa, presente até o século pais e alunos adeptos dessa modalidade
XIX, era a real essência da sociedade daquele dado (SCHEBELLA , 2012).

2
At the time, practical skills were more essential to survival than a person’s ability to read or write. Although learning
to read and write was available, children were usually taught just enough to handle basic affairs (Tradução livre).

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No Brasil, o movimento do Homeshooling Ao se falar em educação, assim conceituou


se encontra ainda tímido, praticamente fictício, vez Ferreira (2004, p. 334) como “o processo de
que a legislação brasileira não contempla de forma desenvolvimento da capacidade física, intelectual
clara e específica sobre a educação domiciliar. e moral da criança e do ser humano em geral,
Desse modo, as famílias brasileiras que optam pela visando à sua melhor integração individual e
Educação em casa, geralmente são denunciadas social.”.
pelo Ministério Público e, muitas vezes, condenados Nas lições de Maciel (2010, p. 115), educar
pelo Órgão do Judiciário ao pagamento de multas significa
e a (re)matricular os filhos em instituição escolar.
Como exemplo, há o caso de um casal de Timóteo, Orientar a criança, desenvolvendo sua
cidade de Minas Gerais, que foi obrigado a personalidade, aptidões e capacidade,
conceder instrução básica ou elementar, ensino
matricular seus filhos em uma instituição de ensino,
em seus graus subsequentes, incluindo a
sob pena de perda do poder familiar. O relato se orientação espiritual, tudo dentro do padrão
acha descrito em texto de Paulina (2012), inserto da condição socioeconômica dos pais.
na Revista Cláudia de março de 2012.
A educação é um direito social, e por social
3 A EDUCAÇÃO E A OBRIGAÇÃO DE deve-se entender, conforme prediz Guimarães
MATRICULAR OS FILHOS NA (2010, p. 267) o “direito positivo autônomo destinado
ESCOLA a prover as necessidades, ao bem-estar e as
relações jurídicas do organismo social, assim como
A Constituição da República Federativa do regular o funcionamento de instituições coletivas.”.
Brasil de 1988 (CRFB/88) concede a plena E como proteger um direito social?
garantia de educação às crianças e adolescentes. Além da garantia constitucional, é necessária
No entanto, tal garantia é passível de ser também a presença do Estado, bem como a participação
vislumbrada na Lei n.º 8.069/90, que dispõe acerca da sociedade, para reivindicar o seu real e efetivo
do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), cumprimento por meio dos Poderes Políticos.
que assim ratificou, em seu artigo 53: Ainda, até mesmo o artigo 5.° da Lei 9.394,
de 20 de dezembro de 1996, a denominada Lei de
Art. 53. A criança e o adolescente têm Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB),
direito à educação, visando ao pleno estabelece o meio de se reivindicar a proteção
desenvolvimento de sua pessoa, preparo desse direito. Assim diz o aludido texto legal:
para o exercício da cidadania e qualificação
para o trabalho, assegurando-se-lhes:
Art. 5.º O acesso ao ensino fundamental é
I - igualdade de condições para o acesso e
direito público subjetivo, podendo
permanência na escola;
qualquer cidadão, grupo de cidadãos,
II - direito de ser respeitado por seus
associação comunitária, organização
educadores;
sindical, entidade de classe ou outra
III - direito de contestar critérios avaliativos,
legalmente constituída, e, ainda, o
podendo recorrer às instâncias escolares
Ministério Público, acionar o Poder Público
superiores;
para exigi-lo.
IV - direito de organização e participação
em entidades estudantis;
V - acesso à escola pública e gratuita O direito à educação, como direito social, não
próxima de sua residência. só possui um caráter de direito, mas como também
Parágrafo único. É direito dos pais ou de obrigação. Observa-se o artigo 208 da
responsáveis ter ciência do processo Constituição da República Federativa de 1988:
pedagógico, bem como participar da
definição das propostas educacionais.
Art. 208. O dever do Estado com a
educação será efetivado mediante a
Desse modo, observa-se que o ECA, diante garantia de:
do artigo mencionado, prevê a asseguração do I - educação básica obrigatória e gratuita
pleno desenvolvimento da criança e do adolescente dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de
para que possa se tornar capaz para o exercício idade, assegurada inclusive sua oferta
gratuita para todos os que a ela não tiveram
da cidadania, bem como qualificada para o acesso na idade própria;
mercado de trabalho por meio da educação. [...]

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O Estatuto da Criança e do Adolescente 4 DO PODER FAMILIAR E A


(ECA), instituído pela Lei 8.069, de 13 de julho de OBRIGAÇÃO DE MATRICULAR OS
1990, dispõe: FILHOS NA ESCOLA

Art. 55. Os pais ou responsáveis têm a No que tange ao poder familiar, vale a
obrigação de matricular seus filhos ou ressalva de que os filhos estarão sujeitos ao poder
pupilos na rede regular de ensino.
dos pais até os seus dezoito anos, salvo se
emancipados. O poder familiar confere aos pais o
Por seu lado, está assim inscrito na LDB: poder de representar e assistir os filhos, mas, claro,
respeitando o princípio do melhor interesse da
Art. 6.º É dever dos pais ou responsáveis
efetuar a matrícula dos menores, a partir dos
criança e o da convivência familiar, vez que, os
seis anos de idade, no ensino fundamental. pais não podem abusar da sua autoridade, sendo o
ECA um meio de equilibrar o exercício do poder
O intuito da obrigatoriedade dos artigos 55 familiar com os princípios supracitados.
do ECA e 6.° da LDB, é que proporcione ao O artigo 226, § 5.° da CF/88 e o Estatuto da
cidadão a garantia de conhecimento a fim de torná- Criança e do Adolescente igualaram pai e mãe na
-lo apto para o mercado de trabalho em uma obrigação de criar e educar, conferindo, portanto,
sociedade em processo de crescente organização de forma igualitária a responsabilidade a ambos.
e cada vez mais competidora e exigente. O ECA assim se manifesta:
Ademais, a Constituição de 1988, a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação e o Estatuto da Art. 22. Aos pais incumbe o dever de
sustento, guarda e educação dos filhos
Criança e do Adolescente, permitem chegar às
menores, cabendo-lhes ainda, no interesse
seguintes conclusões, no que diz respeito à destes, a obrigação de cumprir e fazer
educação, mediante constatou também Horta cumprir as determinações judiciais.
(2012):
O significado desse artigo implica em um rol
Gratuidade: o ensino público em de direitos e obrigações que proporcionam aos
estabelecimentos oficiais é gratuito, em
filhos a sua destinação. Além desse artigo,
todos os seus níveis. A oferta gratuita do
ensino fundamental deve ser também
vislumbra-se a companhia do artigo 1.634 do CC/
assegurada para todos os que a ela não 02 que estabelece outros direitos e deveres aos
tiveram acesso na idade própria [...]. pais.
Obrigatoriedade: o ensino fundamental, O poder familiar, no entanto, não é absoluto,
com duração mínima de oito anos nos pois o não cumprimento de seus deveres implica
estabelecimentos oficiais, é obrigatório, em perda ou suspensão deste, como alude o
inclusive para os que a ela não tiveram
acesso na idade própria [...]. Direito: a
Estatuto em questão. Diz assim:
educação é direito de todos e o acesso ao
ensino obrigatório e gratuito é direito Art. 24. A perda e a suspensão do poder
público subjetivo. Dever: é dever do Estado familiar serão decretadas judicialmente, em
e da família [...]. Responsabilidade: o não procedimento contraditório, nos casos
oferecimento do ensino obrigatório pelo previstos na legislação civil, bem como na
poder público, ou sua oferta irregular, hipótese de descumprimento injustificado
importa responsabilidade da autoridade dos deveres e obrigações a que alude o art.
competente. Comprovada a negligência da 22.
autoridade competente para garantir o
oferecimento do ensino obrigatório, poderá Poderá ocorrer a suspensão do poder familiar,
ela ser imputada pelo crime de se o pai ou a mãe abusarem de sua autoridade,
responsabilidade. faltando para com os deveres a eles inerentes ou
arruinando os bens dos filhos, como apregoa artigo
Com base nos mencionados artigos das 1.637 do Código Civil.
normas supracitadas evidencia-se, em princípio, a Todavia, a extinção do poder familiar,
obrigatoriedade dos pais em matricular seus filhos conforme a doutrina, poderá ser com ou sem a
numa escola regular. responsabilidade dos genitores. Será por ausência

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de responsabilidade, nos casos descritos no artigo o mesmo Estatuto prediz:


1.635 do CC, incisos I ao IV, ou seja, morte dos
pais, emancipação, maioridade e adoção. Por outro Art. 129. São medidas aplicáveis aos pais
lado, será por responsabilidade a extinção do poder ou responsável:
[...]
familiar segundo o disposto nos artigos 1.635, inciso
V - obrigação de matricular o filho ou pupilo
V, e 1638, ambos do Código Civil de 2002, a saber: e acompanhar sua frequência e
o pai ou a mãe que castigarem imoderadamente o aproveitamento escolar.
filho; deixarem o filho em abandono; praticarem
atos contrários à moral e aos bons costumes e; A não realização do mencionado artigo fará
incidirem, reiteradamente, nas faltas previstas no com que os pais incorram no crime de abandono
artigo 1.637 do Código Civil. intelectual que se encontra disposto no artigo 246
É de suma importância fazer uma ressalva do Código Penal (CP), que assim diz:
na extinção com responsabilidade no que se refere
ao “deixar o filho em abandono.”. Dentre as várias Art. 246. Deixar, sem justa causa, de prover
modalidades de abandono, é de se destacar aquela à instrução primária de filho em idade
que é objeto de estudo desse trabalho, do qual se escolar: Pena - detenção, de quinze dias a
alude ao abandono intelectual e está estritamente um mês, ou multa.
relacionado com a obrigatoriedade de matricular
os pupilos em uma instituição escolar. Portanto, Vê-se que o artigo do CP tutela o direito dos
caracterizaria extinção do poder familiar em caráter filhos de receberem o ensino fundamental, sendo
de abandono intelectual, o pai que negligenciar a dever dos pais de promovê-lo, e que ainda poderão
educação ao filho, não lhe garantindo os meios e até mesmo submeter-se à perda do poder familiar
recursos necessários e indispensáveis ao conforme Código Civil de 2002, nos seguintes
desenvolvimento do seu intelecto. termos:
Quanto às obrigações ligadas à educação, são
Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder
facilmente vislumbradas no que tange à
familiar o pai ou a mãe que:
responsabilidade e interesses dos pais para com [...]
os seus filhos. Comprova-se mediante o art. 55 do II - deixar o filho em abandono.
ECA e o art. 6.º da LDB, que visa garantir,
conforme o artigo 205 da Constituição da República Ainda o artigo 129 do Estatuto da Criança e
Federativa de 1988 (CRF/88), o “[...] pleno do Adolescente determina em seu inciso X, a
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o suspensão ou destituição do poder familiar quando
exercício da cidadania e sua qualificação para o os pais não fizerem cumprir suas obrigações
trabalho.”. É insofismável que a educação é a base determinadas no artigo 22 do mesmo Estatuto. E
para a construção da sociedade, pois dignifica o nesse caso só confirma que, na falta da obrigação
homem, sendo este direito fundamental assegurado do dever da educação, estaria suspenso ou
pela própria CRF/88, em seu artigo 1.°, inciso III. destituído o poder dos sobre os filhos.
Desse modo, tendo os pais autoridade sobre A partir do que já fora aqui tratado, permite-
os filhos, e analisada em conjunto com os -se que se chegue à conclusão de que, a priori,
dispositivos da Constituição, do ECA, do CC e da na omissão dos pais, no que tange à sua obrigação
LDB, já comentados, é, de igual modo, fácil a de matricular os filhos em uma escola regular,
percepção das suas responsabilidades, bem como estariam esses submetidos à penalidade da perda
a obrigação de garantir que se cumpra o direito à do poder familiar, disposto no CC, além da
educação de seus filhos. penalidade imposta no CP, por se enquadrar em
Deve-se observar o artigo 22 do ECA, já conduta de abandono intelectual.
citado, que estabelece aos pais o dever de propiciar
o sustento, proteção e educação aos filhos. É 5 PRINCÍPIOS DETERMINANTES DA
determinada a competência a eles (pais) de modo EDUCAÇÃO DOMICILIAR
que, além de serem obrigados a cumprir tais
questões, lhes são impostos, ainda, fazer valer esses No escopo jurídico, é primordial que se
direitos aos seus filhos. invoque a utilização dos princípios, uma vez que
Além dos deveres, tratados anteriormente, fornecem à educação domiciliar suporte,
que são de incumbência dos pais na sua realização, direcionamento e embasamento para que os pais

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possam educar seus filhos sem colocá-los em uma existência e proliferação no ambiente social.
instituição escolar, posto que essa sustentação, Traz também a noção e o respeito à
alteridade, nos fazendo sempre perceber
consagrada na Constituição, tem sua real
que o diferente é necessário.
efetivação e o seu não cumprimento fere os
preceitos de legalidade e constitucionalidade.
Consoante o disposto acima, feriria, pois, o
Posto isto, o primeiro princípio a ser destacado
Estado tal princípio ao impor qualquer
é o princípio da unidade da Constituição, que
obrigatoriedade por parte dos pais em matricular
retrata a análise de forma unificada e não
seus filhos em escolas, aniquilando a grade
independente das normas, ou seja, devem as
curricular que lhes fossem desejáveis, em prol do
normas ser vistas como preceitos interligados em
que consideram um teor “programático ideal”. Isto
um sistema único em conformidade com a
porque a escola estabelece um currículo dogmático
Constituição.
que preza determinados valores abdicando de
Não obstante, atrelado a esse princípio se
outros, em face de querer achar um denominador
encontra o princípio da concordância prática ou
comum ao entender que determinado valor deva
da harmonização. Desse modo, insta ressaltar o
ser menos favorecido ou até mesmo dirimido em
que Mendes apud Aguiar (2012), leciona:
face de outro.
Nesse ângulo, remete entrelaçar aqui o
Consiste, essencialmente, numa
recomendação para que o aplicador das princípio da dignidade da pessoa humana, pois
normas constitucionais, em se deparando tem-se o homem como um fim em si mesmo; e
com situações de concorrência entre bens que, ao introduzir o Estado os alunos a um ensino
constitucionalmente protegidos, adote a de qualidade abaixo do ideal dentre vários aspectos
solução que otimize a realização de todos correlacionados, fere assim, o Estado, a dignidade
eles, mas ao mesmo tempo não acarrete a
daquela criança e/ou adolescente.
negação de nenhum.
Outro princípio a ser ressaltado é o que não
há nulidade sem prejuízo. Neste se encontra a
Sendo assim, vislumbra-se que o estudo da
questão que, embora o Estado, conforme o art.
norma, bem como de seu artigo, devem ser
208 da CF/88, traça os meios para que o direito à
interpretados em consonância com outros artigos,
educação seja efetivado, nada obsta que este
em respeito aos princípios supracitados.
mesmo direito possa ser concretizado por outros
Não se pode deixar de destacar o art. 5.° da
meios de igual parâmetro ou superior, como é o
CF/88, vez que este trata, dentre os vários
caso da Educação Domiciliar.
princípios, do princípio da liberdade, que a seu
O princípio da subsidiariedade merece ser
turno, é um dos mais importantes, pois segundo tal
apreciado. E, nas lições de do Ministro Franciulli
princípio, pode a sociedade se utilizar de outros
Netto, do Superior Tribunal de Justiça (2005), tem
meios, instrumentos e métodos que acharem aptos
os seguintes conceitos:
e capazes a introduzir e gerar conhecimento, a par
da existência da escola regular. Atrelada ao
Em face do princípio da subsidiariedade,
princípio da liberdade, encontra-se o princípio do entre homem e o Estado existem inúmeras
pluralismo político previsto no art. 1.° da CF88, sociedades menores. Se se imaginar um
em seu inciso V. Por este princípio, deve-se círculo de várias esferas concêntricas,
entender que o cidadão é livre para agir da maneira dever-se-á evidenciar que se deve dar
que bem lhe aprouver, agindo assim conforme suas prioridade a sociedades menores. Em outras
escolhas pessoais, sem a interferência de Estado. palavras, as maiores devem abster-se de
realizar aquilo que poderá ser feito pelas
Da mesma forma traduz Fernandes (2011, p. 224):
menores [...] O corolário daí decorrente é o
de que, como a responsabilidade primeva
Por pluralismo político, decorre um da educação dos filhos compete à família e
desdobramento do princípio democrático, como a família antecedeu o Estado, daí
autorizando em uma sociedade a existência
exsurge que ela possui não uma mera
de uma constelação de convicções de
faculdade, mas sim um verdadeiro direito.
pensamento e de planos e projetos de vida,
todos devidamente respeitados. Isso
significa que o Estado não pode Desse modo, insurge tal princípio no fato de
desautorizar nem incentivar nenhum. Todos que o que as unidades menores não puderem fazer,
têm o mesmo direito e liberdade de deleguem para as maiores. Ou seja, família pode

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eventualmente delegar algo ao Estado, mas garantiria a sua legitimidade.


somente naquilo que não forem capazes de fazer. Por fim, ressalta-se o princípio da proteção
Portanto, se a família não tiver condições de integral e do melhor interesse da criança e
executar, que delegue, ou se a criança estiver em adolescente. O primeiro se faz presente na CF/
risco concreto, também deve ocorrer a delegação. 88 em seu art. 227, caput, e no ECA no artigo
Sendo assim, o dever do Estado é um dever 3.º. De início, uma visita ao texto constitucional,
subsidiário. verbis:
Não obstante merece guarida o princípio da
proporcionalidade, que subdivide em três sub-regras: Art. 227. É dever da família, da sociedade e
a) adequação; b) necessidade e; c) proporcionalidade do Estado assegurar à criança, ao
adolescente e ao jovem, com absoluta
em sentido estrito.
prioridade, o direito à vida, à saúde, à
Por adequação deve-se entender a medida alimentação, à educação, ao lazer, à
apta a tingir o fim desejado. Fernandes (2011, p. profissionalização, à cultura, à dignidade,
189), ensina que: ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária, além de colocá-los a
Por necessidade, entende-se uma imposição salvo de toda forma de negligência,
que é posta ao Poder Público para que adote discriminação, exploração, violência,
sempre a medida menos gravosa possível crueldade e opressão.
(de menor ingerência possível) para atingir
um determinado objetivo. Aqui, um ato que Agora, a informação quanto ao que diz o
limita um direito fundamental só será Estatuto da Criança e do Adolescente:
considerado necessário se para realizar seu
objetivo pretendido não haja outra medida
Art. 3.º A criança e o adolescente gozam de
ou ato que limite em menos intensidade
todos os direitos fundamentais inerentes à
(menos gravidade), o direito fundamental a
pessoa humana, sem prejuízo da proteção
ser atingido.
integral de que trata esta Lei, assegurando-
-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas
Quanto à proporcionalidade em sentido as oportunidades e facilidades, a fim de lhes
estrito, somente acontecerá quando constatado que facultar o desenvolvimento físico, mental,
o ato é adequado e necessário. moral, espiritual e social, em condições de
Sendo assim, percebe-se que o Estado, ao liberdade e de dignidade.
impor a sua educação, aniquilando a possibilidade
de os pais a proverem, desrespeita o princípio em O princípio da proteção integral visa garantir
tela, visto que, protegido pela Constituição, garante o respeito à criança e ao adolescente, diante de
direitos fundamentais e harmonização de interesses. sua condição, para que se possa efetivar seu pleno
Ainda e não menos importante, está o desenvolvimento, assegurado tal proteção e
princípio da legalidade, que é a base fundamental respeito em ordem pela família, posteriormente pela
do Estado Democrático de Direito, e se encontra sociedade e por fim, pelo Estado, como prediz o
previsto no art. 5.°, inciso II, da CF/88 e considera art. 227 do Diploma Constitucional.
lícito qualquer ato, desde que não esteja proibido Quanto ao princípio do melhor interesse da
em lei, proibindo assim o poder arbitrário por parte criança e adolescente, também abarcado pelo
do Estado. A arbitrariedade, neste caso, é a feitura mesmo art. 227 da CF/88, já citado, tem previsão,
da lei. ainda, por sua vez, no art. 4.º, caput, e no art. 5.º
No que tange à Educação Domiciliar, a do ECA, que dispõem:
aplicabilidade do princípio da legalidade, diante do
silêncio do legislador pela matéria, vislumbra-se que Art. 4.º É dever da família, da comunidade,
embora não esteja expressamente permitido em da sociedade em geral e do poder público
alguma norma, não se encontra também assegurar, com absoluta prioridade, a
efetivação dos direitos referentes à vida, à
expressamente proibido. Nesse sentido, Aguiar
saúde, à alimentação, à educação, ao
(2013) completa: “Mesmo em casos como esse, esporte, ao lazer, à profissionalização, à
não se pode deixar de caracterizar um fenômeno cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade
social como legal ou ilegal, pois não existem fatos e à convivência familiar e comunitária.
‘alegais’, ou seja, à margem do Direito”. Sendo
assim, a omissão do legislador em conferir expressa Art. 5.º Nenhuma criança ou adolescente
determinação da proibição da Educação Domiciliar será objeto de qualquer forma de negligência,

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discriminação, exploração, violência, se enquadrar no delito em questão apenas se


crueldade e opressão, punido na forma da impedirem que os filhos não tenham acesso à
lei qualquer atentado, por ação ou omissão,
educação. Observa-se que ao se fazer uma análise
aos seus direitos fundamentais.
mais detalhada, o dispositivo em momento algum
obriga que a criança ou o adolescente esteja em
Por meio dos artigos supracitados, percebe- uma instituição escolar, mas sim que seja
-se que este princípio visa a amparar a criança assegurada a instrução primária, seja ela dentro
para que se respeitem os direitos essenciais, tais ou fora do ambiente escolar. Franciulli Netto
como a saúde (ressalta-se tanto a física, a (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2005),
emocional e a intelectual), a educação e outros, explica:
cujo interesse deve ser concedido primeiro dos pais
e caso haja negligência por parte desses, deve o Não há, tampouco, como tipificar a conduta
Estado, então, assegurá-los. dos impetrantes como delito de abandono
Sendo assim, no que tange à Educação intelectual. Pelo contrário, o único “crime”
Domiciliar, o princípio do melhor interesse da criança que se lhes poderia imputar seria, in casu,
e adolescente e o da proteção integral concedem o “desabandono intelectual” [...] Segundo
aos pais homeschoolers total amparo, visto que Celso Delmanto, ao analisar o elemento
impõem aos pais o dever principal de zelar pela objetivo do tipo, “deixar de prover tem a
educação dos filhos; e, secundariamente, o dever significação de não tomar as providências
necessárias. Assim, o agente omite-se nas
passa a ser do Estado.
medidas que podem propiciar instrução
Diante de todo o exposto, é de se constatar
primária (de 1.º grau) de filho em idade
que a Educação Domiciliar está amparada por tais escolar. Para a tipificação impõe-se que a
princípios ora elencados, sendo de extrema conduta seja sem justa causa (elemento
relevância observá-los e respeitá-los. Em normativo). [...] Heleno Cláudio Fragoso
consonância ao exposto, Mello apud Vilella (2013) ensina que o bem jurídico tutelado “através
revela: da figura criminosa em questão é o interesse
do Estado ‘na instrução a ser ministrada
Violar um princípio é muito mais grave que aos menores que constitui aliás, dever
transgredir uma norma. A desatenção ao jurídico dos pais’.” e que se trata “de crime
princípio implica ofensa não apenas a um omissivo puro, pois a conduta consiste em
específico mandamento obrigatório, mas a ‘deixar de prover a instrução primária, sem
todo o sistema de comandos. É a mais grave justa causa, isto é, em omitir as medidas
forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, necessárias para que seja ministrada ao
conforme o escalão do princípio violado, filho instrução de nível primário’.”.
porque representa insurgência contra todo o
sistema, subversão de seus valores
Como se observa, a não matrícula dos filhos
fundamentais, contumélia irremissível a seu
arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura ou pupilos em uma escola regular não implicaria
mestra. em crime de abandono intelectual, visto que só
poderia ocorrer caso os pais ou responsáveis
Portanto, feitas tais considerações, percebe- negligenciassem o provimento da instrução
-se que a Educação Domiciliar não ofende aos intelectual a estes. E, que como foi visto, não é o
Princípios aqui elucidados, mas, muito pelo caso dos pais que optam pela Educação Domiciliar.
contrário, pode-se constatar que, na verdade, tal Portanto, diante de tudo que fora aqui
modalidade de educação contribui para a efetiva explanado, vislumbra-se que a Educação é
implementação dos referidos Princípios. primeiramente um dever dos pais, tendo o Estado
dever de auxiliar; que não apresenta ofensa aos
6 ABANDONO INTELECTUAL E SUA Princípios no campo constitucional e
DESCARACTERIZAÇÃO PERANTE A infraconstitucional e que, portanto, caberia no
EDUCAÇÃO DOMICILIAR ordenamento jurídico brasileiro e que só precisaria
ser regulamentada para que permitisse auferir os
O crime de abandono intelectual se opera no estágios de desenvolvimento do conhecimento da
campo do Direito Penal e está previsto no art. 246, criança e adolescente; e, por fim, a Educação
que já foi estudado. Domiciliar não coloca os pais em crime de
Segundo Greco (2011), os pais só poderiam abandono intelectual.

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7 CONSIDERAÇÕES FINAIS BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro


de 1940. Institui o Código Penal. Diário Oficial
Desde o início da institucionalização da [da] República Federativa do Brasil. Rio de
educação no Brasil percebe-se a presença da Janeiro, DF, 31 dez. 1940 e retificada em 3 jan.
Educação Domiciliar, vez que eram os filhos 1941.
educados ou pelos pais ou por preceptores que
ensinavam nas casas. Posteriormente, com a BRASIL. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990.
promulgação da CF/88, a educação ganhou Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do
proteção no rol dos direitos sociais, tornando-se Adolescente e dá outras providências. Diário
dever e direito de todos, com garantia de acesso. Oficial [da] República Federativa do Brasil.
Com isso, foi estabelecida a obrigatoriedade da Brasília, DF, 16 jul. 1990 e retificada e 27 set.
oferta de ensino e da matrícula em escola regular, 1990.
sendo ratificada e consolidada pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente e pela Lei de Diretrizes BRASIL. Lei 9.394, de 20 de dezembro de
e Bases da Educação. 1996. Estabelece as diretrizes e bases da
O Poder Familiar possibilita aos pais educação nacional. Diário Oficial [da]
representarem ou assistir aos seus filhos. Todavia, República Federativa do Brasil. Brasília, DF,
tal poder, regulado pelo Estatuto da Criança e do 23 dez. 1996.
Adolescente em conjunto com o Código Civil,
costuma ser relacionado à obrigação dos pais de BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
matricularem seus filhos em uma escola regular, Institui o Código Civil. Diário Oficial [da]
sob pena da perda da guarda dos filhos e, ainda, República Federativa do Brasil. Brasília, DF,
de se enquadrarem em conduta tipificada no 11 jan. 2002.
Código Penal, que retrata o abandono intelectual.
No entanto, constatou-se que a Educação BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Mandado
Domiciliar não apresenta nenhuma ofensa aos de Segurança n.º 7.407-DF(2001/0022843-7).
Princípios estudados. Pelo contrário, percebeu-se Ministro Domingos Franciulli Netto. Diário
que o crime de abandono intelectual não enquadra Oficial [da] República Federativa do Brasil,
os pais homeschoolers posto que, tais pais não Diário do Judiciário, Brasília, DF, 21 mar.
deixam de fornecer nenhuma educação aos filho. 2005.
E o art. 246 do CP institui que, para tipificar o crime
em questão, deve o agente apenas deixar de prover FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de
a educação não estabelecendo a obrigatoriedade direito constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro:
em uma instituição regular. Lumen Juris, 2011.

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AGUIAR, Alexandre Magno Fernandes 6. ed. Curitiba: Positivo, 2004.
Moreira. Homeschooling – uma alternativa
constitucional à falência da educação no Brasil. FRANCIULLI NETTO, Domingos. Aspectos
Associação Nacional de Educação Domiciliar constitucionais e infraconstitucionais do ensino
(ANED). Disponível em: <http:// fundamental em casa pela família. Disponível
www.aned.org.br/index.php?id=alt>. Acesso em: em: <http://www.aned.org.br/fileadmin/
12 mar. 2013. Aspectos_Constitucionais.pdf>. Acesso em: 7
mar. 2013.
AGUIAR, Alexandre Magno Fernandes
Moreira. Situação Jurídica no Brasil. Disponível GRECO, Rogério. Curso de direito penal:
em: <http://www.aned.org.br/index.php?id=135>. parte especial. v. III. 8. ed. Rio de Janeiro:
Acesso em: 12 mar. 2013 Impetus, 2011.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da GUIMARÃES, Deocleciono Torrieri.


República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Dicionário técnico jurídico. 10. ed. São Paulo:
Senado, 1988. Rideel, 2010.

41
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HORTA, José Silvério Bahia. Direito à Ed. Abril, mar. 2012. Disponível em: <http://
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publicacoes/cp/arquivos/158.pdf>. Acesso em: filhos/criancas-e-adolescentes>. Acesso em: 27
14 set. 2012. nov. 2012.

MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. SCHEBELLA, Fábio Stopa. Por uma
Poder Familiar. In: MACIEL, Kátia Regina aprendizagem natural: educação domiciliar no
Ferreira Lobo Andrade (Coord.). Curso de contexto mundial. Disponível em: <http://
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teóricos e práticos. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen
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em: 27 out. 2012.
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Curriculum Building: There Are a Lot of Things VILLELA, Fábio Goulart. O princípio da
to Consider When Selecting the Best subsidiariedade e o novo modelo principiológico
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www.sharefaith.com/guide/christian-education/ 475-J do CPC no processo do trabalho.
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em: 18 nov. 2012. downloads/artigos/ direito/
artigo_o_principio_da_subsidiariedade_e_o_
PAULINA, Iraci. Não preciso da escola pra novo_modelo_principiologico_constitucional_de_processo_
educar meus filhos. Revista Cláudia. São Paulo, fabio_goulart.pdf>. Acesso em: 11 mar. 2013.

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CRIME DE EXCESSO DE EXAÇÃO: A INCONGRUÊNCIA DA PENA NA FORMA


QUALIFICADA COM O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

Luciano Carvalho de Almeida1

RESUMO proporcionalidade. Para o desenvolvimento do


presente trabalho foi utilizado o método dedutivo
O legislador de 1940 dispôs sobre o crime de de abordagem. A técnica de coleta de dados foi a
concussão no art. 316 do Código Penal (CP/1940), pesquisa bibliográfica.
tipificando a conduta do agente que, abusando da
função pública, obtém vantagem ilícita. O crime Palavras-chave: concussão, excesso de exação,
de excesso de exação (art. 316, § 1.º) é um tipo qualificadora, princípio da proporcionalidade.
especial do crime de concussão descrito no art.
316 do Código Penal brasileiro, reprimindo a
conduta do funcionário que efetua a cobrança de CRIME OF EXCESS EXACTION: THE
tributo indevido ou que para efetuar a cobrança de INCONGRUITY PEN AS QUALIFIED
tributo devido utiliza de meios vexatórios ou WITH THE PRINCIPLE OF
gravosos não permitidos em lei. A forma qualificada PROPORTIONALITY
do crime de excesso de exação está prevista no §
2.º, apenada a conduta do funcionário público que The legislature of 1940 provided for the crime
desvia em proveito próprio ou alheio aquilo que of concussion in art. 316 of the Penal Code,
recebeu indevidamente. O princípio da criminalizing the conduct of the agent, abusing the
proporcionalidade aplicado ao Direito Penal civil service, gets unfair advantage. The crime of
determina que a pena deve estar proporcional ou excessive exaction (art. 316, § 1) is a special type
adequada à magnitude da lesão do bem jurídico of crime described in article concussion 316 of the
protegido e à periculosidade criminal do agente. Brazilian Penal Code, restraining the conduct of
Sabe-se que as qualificadoras aumentam the employee who performs the collection of tribute
diretamente a pena base em um quantum já or improper to effect the collection of tax due use
delimitado, ou seja, define a pena de acordo com o of means vexatious or burdensome not allowed by
crime praticado e de modo exato. As law. The qualified form of the crime of excessive
qualificadoras, nesse sentido, assimilam o ideal de exaction is provided in § 2, affected the conduct
proporcionalidade na medida em que aumentam o of the public official who deviates in yourself or
quantum da pena-base por conta de o crime ter others what he received improperly. The principle
sido praticado de maneira mais grave. A conduta of proportionality applied to criminal law determines
da exação, na sua forma simples (art. 316, § 1.º, that the penalty must be proportional or appropriate
CP/1940), apresenta como pena a reclusão, de 3 to the magnitude of the injury of the protected legal
(três) a 8 (oito) anos, e multa. Todavia, a sua forma and criminal dangerousness of the agent. It is
qualificada (art. 316, §2º, CP/1940) apresenta known that the qualifying directly increase the
como pena a reclusão, de dois a doze anos, e multa. penalty based on a quantum already delimited,
Pratica-se, pois, uma incongruência em relação à defines the penalty according to the crime
forma qualificada, cuja pena mínima (dois anos) é committed and accurately. The qualifier in this
menor do que a conduta na sua forma simples (três sense, assimilate the ideal proportionality in that
anos). A qualificadora, pois, não cumpre sua função increase the quantum of the penalty based on
básica de aumentar o quantum da pena-base do account of the crime was committed more
crime em relação à sua forma simples, verificando- severely. The conduct of the exaction, in its simplest
-se um gravíssimo atentado ao princípio da form (art. 316, § 1, CP/1940), presented as worth

1
Acadêmico do Nono Período do Curso de Direito da Faculdade de Direito Santo Agostinho e membro do Programa
Especial de Tutoria (PET).

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the imprisonment of three to eight years and a fine. do funcionário público que desvia em proveito
However, its qualified form (art. 316, § 2, CP/ próprio ou alheio o que recebeu indevidamente.
1940) presents as a penalty to imprisonment of two Ocorre que a pena mínima prevista para o
twelve years and a fine. Practice is therefore an crime de excesso de exação, na sua forma simples
inconsistency regarding the qualified form, whose (art. 316, § 1.º, CP/1940) é três anos de reclusão.
minimum sentence (two years) is lower than the Em contrapartida, a pena mínima prevista para o
conduct in its simple form (three years). The crime de excesso de exação, na sua forma
qualifying therefore does not fulfill its basic function qualificada (art. 316, § 2.º, CP/1940) é dois anos
to increase the quantum of the penalty based on de reclusão.
the crime in relation to its simplest form, verifying Discutir-se-á, pois, se a previsão legal de uma
a serious attack on the principle of proportionality. pena mínima menor para o crime de excesso de
For the development of this work we used the exação na sua forma qualificada, em relação à sua
deductive method of approach. The technique of forma simples, fere o princípio da proporcionalidade.
data collection was the literature search. Para o desenvolvimento do presente trabalho
foi utilizado o método dedutivo de abordagem. A
Keywords: concussion, excessive exaction, técnica de coleta de dados foi a pesquisa
qualifying, the principle of proportionality. bibliográfica.

2 EXCESSO DE EXAÇÃO: FORMA


ESPECIAL DO CRIME DE
1 INTRODUÇÃO CONCUSSÃO
Na sociedade contemporânea, gradativamente Os abusos cometidos por aqueles que fazem
afloram as necessidades coletivas, sejam aquelas de parte da Administração Pública são penalmente
importância vital para a estruturação da vida social, combatidos pela legislação pátria.
sejam aquelas necessárias à manutenção da vida em O legislador de 1940 dispõe sobre o crime de
sociedade. concussão no art. 316 do CP:
Em face da satisfação geral e manutenção
das necessidades coletivas, o Estado-Administração, Concussão
juntamente com seus órgãos e cargos públicos, Art. 316. Exigir, para si ou para outrem,
executa e/ou fiscaliza as atividades destinadas a tais direta ou indiretamente, ainda que fora da
fins, geralmente através de indivíduos que detêm função ou antes de assumi-la, mas em razão
cargo ou função pública. dela, vantagem indevida:
Todavia, em alguns casos, funcionários Pena – reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos,
públicos utilizam da atividade pública que exercem e multa.
para benefício próprio ou de terceiros, indo de
encontro ao dever de moralidade e probidade a Estabeleceu-se, em tal dispositivo, a conduta
que estão obrigados. Resta, pois, em alguns casos, do agente que, abusando da função pública, obtém
a punição penal prevista em tipos incriminadores vantagem indevida. Consiste no ato de o
que descrevem as condutas criminosas realizadas funcionário exigir (impor como obrigação)
por funcionário público contra a administração vantagem indevida, para si ou para outrem, em
pública em geral. razão da função pública que exerce.
O legislador de 1940 dispôs sobre o crime de A vantagem indevida mencionada, segundo
concussão no art. 316 do Código Penal (CP/1940), Prado (2011b), é todo benefício ou proveito
tipificando a conduta do agente que, abusando da contrário ao Direito. Atenção deve ser dada para
função pública, obtém vantagem ilícita. o fato de que a doutrina majoritária reconhece que
No § 1.º do mesmo artigo, foi definido o tipo a natureza dessa vantagem deve ser econômica
penal do excesso de exação, que reprime a conduta ou patrimonial. Todavia, Prado (2011b, p. 472) não
do funcionário que efetua a cobrança de tributo se apega a esse entendimento ao afirmar que
indevido, ou que para efetuar a cobrança de tributo
Prevalece o entendimento doutrinário de que
devido utiliza de meios vexatórios ou gravosos não
a vantagem a que se refere o legislador deva
permitidos em lei. ser de natureza econômica ou patrimonial.
A forma qualificada do crime de excesso de Contudo, observa-se que, quando o
exação está prevista no § 2.º, tipificada a conduta legislador quer restringir a vantagem à

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natureza econômica, o faz expressamente, emprega na cobrança meio vexatório ou


conforme se observa na própria descrição gravoso, que a lei não autoriza:
legal do delito de extorsão (art. 158). Assim, Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos,
a vantagem pode ser de natureza não e multa.
patrimonial, v.g., quando o agente exige do
sujeito passivo que lhe conceda uma
Exação, leciona Prado (2011b), representa a
condecoração, por mera vaidade pessoal.
ideia de arrecadação ou cobrança rigorosa de
Assim, a vantagem indevida prevista no tipo tributo ou dívida, alcançando na referida norma a
penal não se limitaria somente àquela de natureza conduta do funcionário que comete excessos no
econômica, podendo ter caráter não patrimonial exercício de tal função. Difere-se da concussão
se o agente exige uma condecoração por conta da propriamente dita já que em princípio a cobrança
função pública que exerce. não visa benefício próprio ou de outrem, mas
Menciona Greco (2012) que se trata de crime recolher aos cofres públicos tributo ou contribuição
próprio, podendo ser sujeito ativo somente o social que sabe ou deveria saber indevida. Convém,
funcionário público, mesmo aquele que, embora pois, destacar a definição legal de tributo e
ainda não esteja exercendo função pública, utiliza- contribuição social.
-se dela para a prática delitiva. Sujeito passivo é o Dispõe o art. 3.º do Código Tributário
Estado, bem como a pessoa física ou jurídica Nacional (CTN) que tributo é “toda prestação
diretamente prejudicada pelo sujeito ativo. pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor
A Administração Pública, afirma Greco nela se possa exprimir, que não constitua sanção
(2012), é o bem juridicamente protegido pelo tipo de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante
penal que prevê o delito de concussão. A norma atividade administrativa plenamente vinculada”.
penal em estudo visa resguardar o regular Abrange tal conceito cinco espécies de tributo a
funcionamento e o prestígio da Administração saber: imposto, taxa, contribuição de melhoria,
Pública, com o objetivo de assegurar a obediência contribuições especiais e empréstimo compulsório.
ao dever de probidade para evitar abusos no Contribuição social, menciona Hugo de Brito
exercício da função pública. Machado, apud Greco (2012), é uma espécie de
A consumação, segundo Greco (2012), se tributo com finalidade constitucionalmente definida,
verifica no instante em que há a exigência da qual seja a intervenção no domínio econômico, o
vantagem indevida, independendo se ela foi obtida interesse de categorias profissionais ou
ou não; trata-se, pois, de crime formal. Assim, caso econômicas, ou a seguridade social.
venha a receber vantagem indevida, tal fato será O crime de excesso de exação, na sua forma
considerado mero exaurimento do crime, que se simples (art. 316, § 1.º, CP/1940), pode ser
consumou no momento de sua exigência. praticado de formas distintas, como destaca Prado
Reconhecendo a natureza formal do crime (2011b, p. 473):
de concussão se posiciona o Supremo Tribunal
Federal: “Crime de concussão: é crime formal, que A conduta típica descrita no art. 316, § 1.º,
se consuma com a exigência. Irrelevância no fato subdivide-se em duas modalidades,
do não recebimento da vantagem indevida” (STF, consistindo a primeira na exigência de
HC 4009/MS, 2.ª Turma, Rel. Min. Carlos Velloso, pagamento de tributo ou contribuição social
que o agente sabe ou deveria saber indevido,
publicado no DJ em 14/03/1997).
e a segunda, no emprego de meios
O principal ponto a se destacar no crime de vexatórios ou gravosos não permitidos em
concussão é a vantagem indevida exigida pelo lei, na cobrança devida de tais receitas.
agente em face da função pública que exerce.
Nesse sentido, o § 1.º do art. 316 do CP traz uma Assim, o agente que pratica a conduta de
modalidade especial do crime de concussão, o excesso de exação realiza a cobrança rigorosa de
excesso de exação: tributo em duas situações: na primeira situação, o
funcionário determina o recolhimento de tributo que
Concussão sabe ou deveria saber indevido; na segunda,
Art. 316. [...]
embora o tributo seja devido, o agente emprega na
Excesso de exação
§ 1.º Se o funcionário exige tributo ou
cobrança meio vexatório ou gravoso, que a lei não
contribuição social que sabe ou deveria autoriza.
saber indevido, ou, quando devido, Meio vexatório ou gravoso, destaca Greco

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(2012), é forma de cobrança que não condiz com respeito à dignidade humana, Capez (2011)
as determinações legais, já que são utilizados meios reconhece que tal princípio aparece insculpido em
constrangedores, humilhantes e que atingem a diversas passagens da Constituição da República
dignidade da pessoa humana para a efetiva Federativa do Brasil (CRFB), ao abolir alguns tipos
realização da cobrança. Aqui o tributo é devido; de sanções (art. 5.º, XLVII), ao exigir a
entretanto, o meio utilizado para recebê-lo é ilegal. individualização da pena (art. 5.º, XLVI), ao indicar
A forma qualificada do crime de excesso de maior rigor para casos de maior gravidade (art.
exação está tipificada no art. 316, § 2.º, do CP, 5.º, XLII, XLIII e XLIV) e ao prever moderação
que traz a seguinte redação: para infrações menos graves (art. 98, I).
Távora e Alencar (2011) afirmam que há
Concussão divergência doutrinária se o princípio da
Art. 316. [...] proporcionalidade é sinônimo do princípio da
Excesso de exação
razoabilidade ou se não se confunde com este.
[...]
§ 2.º Se o funcionário desvia, em proveito
Para os que entendem que são princípios
próprio ou de outrem, o que recebeu distintos, segundo Távora e Alencar (2011), afirma-
indevidamente para recolher aos cofres -se que o princípio da razoabilidade representa uma
públicos. norma jurídica que conduz o jurista a decisões
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, aceitáveis, ao passo que o princípio da
e multa. proporcionalidade representa um procedimento de
interpretação de norma jurídica tendente a
O agente, portanto, desvia, em proveito concretizar um direito fundamental em dado caso
próprio ou alheio, o que obteve indevidamente. concreto.
Prado (2011) ensina que tal disposição Os que analisam os princípios em questão
constitui uma forma qualificada de excesso de como sinônimos, segundo Távora e Alencar (2011),
exação porque o agente, após praticar a conduta observam que a proporcionalidade conjuga três
delitiva descrita no art. 316, § 1.º, do CP, desvia etapas, a saber: necessidade, adequação e
em proveito próprio ou de terceira pessoa o que proporcionalidade em sentido estrito; enquanto a
recebeu de forma ilícita, sem recolher o tributo aos razoabilidade, não. Tais etapas são detalhadas por
cofres públicos: “verifica-se, por conseguinte, que Lenza (2011, p. 151):
a ação típica se desdobra em dois momentos,
consubstanciados no recebimento indevido do Necessidade: por alguns denominada
tributo ou da contribuição social e no posterior exigibilidade, a adoção da medida que
desvio da res.” (PRADO, 2011b, p. 476). possa restringir direitos, só se legitima se
A forma qualificada do excesso de exação indispensável para o caso concreto e não
se puder substituí-la por outra menos
diz respeito a uma cobrança indevida que
gravosa;
supostamente seria recolhida aos cofres públicos, Adequação: também chamado de
mas que o agente utiliza em proveito próprio ou de pertinência ou idoneidade, quer significar
outrem. A consumação do delito, leciona Prado que o meio escolhido deve atingir o objetivo
(2011b), se dá com o efetivo desvio, ainda que não perquirido;
seja integral, já que a falta do desvio em benefício Proporcionalidade em sentido estrito: sendo
a medida necessária e adequada, deve-se
próprio ou de terceiro importaria na prática do
investigar se o ato praticado, em termos de
excesso de exação na forma simples (art. 316, § realização do objetivo pretendido, supera a
1.º, CP). restrição a outros valores
constitucionalizados. Podemos falar em
3 O PRINCÍPIO DA máxima efetividade e mínima restrição.
PROPORCIONALIDADE NA ÓPTICA
CONSTITUCIONAL E PENAL Busca-se, pois, a maior efetividade no
desenvolvimento da atividade normativa de
O princípio da proporcionalidade tem campo aplicação e interpretação da norma jurídica. A
de estudo no direito constitucional. Verificada a razoabilidade, para Távora e Alencar (2011), não
atual tendência de inter-relação dos ramos do assimila objetivamente essas três etapas. Contudo,
Direito, seus reflexos se estendem ao Direito Penal. tem o condão de orientar o intérprete a não aceitar
Além de encontrar assento na exigência de como válidas soluções jurídicas que conduzam a

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absurdos. Em suma, a base teórica de cada caso sejam praticados. Contudo, desfruta de uma
princípio diverge, porém a finalidade da aplicação tutela a certos bens que ficarão sob a guarda do
de cada um é a mesma e os tornam expressões Direito Penal. A atividade de criação normativa
sinônimas. do Direito Penal bem como sua aplicação deve
O princípio da proporcionalidade, então, visa compensar para os membros da coletividade.
à relação custo/benefício da aplicação da norma Trata-se, pois, de um princípio com larga aplicação
ao caso concreto. Lenza (2011, p. 150) reconhece e com campo de atuação polarizado, segundo
a igualdade entre os princípios em questão e afirma Távora e Alencar (2011, p. 70):
que
[...] Tem-se admitido que ele deve ser
[...] o princípio da proporcionalidade ou da tratado como um “superprincípio”,
razoabilidade, em essência, consubstancia talhando a estratégia de composição no
uma pauta de natureza axiológica que aparente “conflito principiológico”. [...] Por
emana diretamente das ideias de justiça, sua vez, deve ser visto também na sua faceta
equidade, bom senso, prudência, da proibição de excesso, limitando os
moderação, justa medida, proibição de arbítrios da atividade estatal, já que os fins
excesso, direito justo e valores afins; e, da persecução penal nem sempre justificam
ainda, enquanto princípio geral do direito, os meios, vedando-se a atuação abusiva
serve de regra de interpretação para todo o do Estado ao encampar a bandeira do
ordenamento jurídico. combate ao crime.

O princípio da proporcionalidade, pois, A aplicação prática do princípio da


assimila aspectos valorativos que coordenam a proporcionalidade busca resolver da forma mais
produção normativa, a interpretação e aplicação razoável possível um eventual conflito entre
da norma, devendo haver proporção entre o meio princípios e evitar excessos relativos à atividade
e a finalidade a que se destina. Essa atividade estatal, destacando o fato de que os fins buscados
normativa deve estar amparada nos valores de pela persecução penal nem sempre são razoáveis
justiça, equidade, bom senso, prudência, em relação aos meios utilizados para tal.
moderação, justa medida, proibição de excesso, Um Direito Penal democrático, leciona
direito justo e valores afins. Capez (2011), não pode conceber excessos na
Observada a amplitude do princípio da atividade punitiva penal. Para que a sociedade
proporcionalidade e levando-se em conta a sua suporte os custos sociais de tipificações que limitam
influência em todo o ordenamento jurídico brasileiro, a prática de determinadas condutas, é necessário
Capez (2011) analisa a aplicação prática de tal que reste demonstrada a utilidade da incriminação
princípio no Direito Penal. para a proteção do bem jurídico que se quer
Ao criar um novo delito, o legislador proteger, bem como a sua relevância em contraste
determina um ônus à sociedade em face da com a natureza e quantidade da sanção cominada.
ameaça de punição que passa a abranger todos os A atividade penal deve ser proporcional e
cidadãos. Capez observa que uma sociedade razoável, devendo preponderar a proteção em
incriminadora limita em demasia a liberdade das detrimento da limitação da prática de certas
pessoas, mas por outro lado esse ônus é condutas. Nesse sentido, o indivíduo deve ser
compensado pela vantagem de proteção do punido na medida em que causou dano à sociedade,
interesse tutelado pelo tipo incriminador. E ou seja, quanto maior o dano causado mais
completa: significativa deverá ser a sua punição.

Para o princípio da proporcionalidade, 4 A FORMA QUALIFICADA DO EXCESSO


quando o custo for maior do que a vantagem,
DE EXAÇÃO E A LESÃO AO PRINCÍPIO
o tipo será inconstitucional, porque
contrário ao Estado Democrático de Direito. DA PROPORCIONALIDADE
Em outras palavras: a criação de tipos
incriminadores deve ser uma atividade Como visto, o crime de excesso de exação
compensadora para os membros da apresenta sua forma qualificada no art. 316, § 2.º,
coletividade (CAPEZ, 2011, p. 39). do CP:

A sociedade vê limitados certos Concussão


comportamentos, em face da cominação da pena Art. 316. [...]

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Excesso de exação crime na sua forma simples e punir o ato criminoso


[...] quando praticado de forma mais gravosa. Logo, a
§ 2.º Se o funcionário desvia, em proveito
determinação das qualificadoras se estrutura nos
próprio ou de outrem, o que recebeu
indevidamente para recolher aos cofres limites do princípio da proporcionalidade, visto que
públicos. tal postulado exige proporção na atividade punitiva
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e as qualificadoras assimilam essa proporção na
e multa. medida em que aumentam a quantidade de pena
quando o crime é praticado de maneira mais grave.
Explica Prado (2011a) que as circunstâncias O tipo penal descrito no art. 316, § 2.º, do
legais podem ser genéricas e especiais, constando CP, é a forma qualificada do excesso de exação.
na parte geral ou na parte especial do CP, O agente desvia aquilo que obteve indevidamente
respectivamente. As circunstâncias legais em razão da função pública que exerce, em proveito
genéricas abrangem as agravantes e atenuantes, próprio ou alheio.
e as causas de aumento e diminuição de pena; e O excesso de exação, na sua forma simples
as circunstâncias legais especiais compreendem (art. 316, § 1.º, CP), comina para o agente a pena
as qualificadoras e as causas de aumento ou de de reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa:
diminuição da pena.
As qualificadoras são circunstâncias legais Concussão
presentes na parte especial do CP. Têm a função Art. 316. [...]
de estipular o quantum do aumento da pena Excesso de exação
quando o crime é praticado de forma mais gravosa. § 1.º Se o funcionário exige tributo ou
contribuição social que sabe ou deveria
Nesse sentido, se posiciona o autor:
saber indevido, ou, quando devido,
emprega na cobrança meio vexatório ou
As qualificadoras não se confundem com gravoso, que a lei não autoriza:
as circunstâncias agravantes. Essas se Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos,
encontram na parte geral do Código Penal e e multa.
não estipulam o quantum do aumento, que
fica a critério do prudente arbítrio judicial;
as circunstâncias qualificadoras, ao Analisando o crime na sua forma simples,
contrário, modificam as margens penais observa-se que tal dispositivo descreve a conduta
prevista no tipo básico (PRADO, 2011b, p. do excesso de exação praticada na forma menos
508). gravosa, já que prevê no art. 316, § 2.º, do CP,
esse mesmo crime praticado de maneira mais
As qualificadoras, então, diferem-se das grave:
circunstâncias agravantes. Enquanto estas se
encontram na parte geral do CP e não estipulam Concussão
um quantum de aumento (já que fica a critério Art. 316. [...]
judicial), as qualificadoras modificam a quantidade Excesso de exação
de pena prevista para o crime na modalidade [...]
§ 2.º Se o funcionário desvia, em proveito
simples. Há, portanto, cominação de nova pena.
próprio ou de outrem, o que recebeu
Todo ato eventual e secundário agregado à indevidamente para recolher aos cofres
figura típica, segundo Capez (2011, p. 472), cuja públicos.
ausência não influencia a sua existência é Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos,
denominado circunstância. Tem, portanto, a função e multa.
de agravar ou abrandar a sanção penal. As
qualificadoras constituem circunstâncias legais Em relação às penas cominadas nas
específicas, com limites mínimo e/ou máximo modalidades do crime de excesso de exação,
diferentes do tipo fundamental. verifica-se uma desproporção no quantum da pena
A resposta do Estado à prática criminosa mínima estabelecida na forma simples em relação
deve ser proporcional ao mal cometido pelo à forma qualificada. Para tanto, destaca Prado que
criminoso. Destaca Greco (2011) a necessidade a majoração da pena culminada para a forma
de se aferir a proporcionalidade das penas. simples culminou numa incongruência quando o
As qualificadoras, como já colocado, possuem crime é praticado de maneira mais grave. Em suas
a função de aumentar o quantum definido para o palavras:

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Acrescenta-se que a pena quanto ao grave e comina-se uma pena maior para tal (em
excesso de exação (§ 1.º) foi majorada de relação ao crime na forma simples), em
seis meses a dois anos de detenção para
atendimento ao princípio da proporcionalidade,
três a oito anos de reclusão, praticando-se
uma incongruência em relação à forma
verifica-se uma lesão a este postulado.
qualificada (§ 2.º), cuja pena mínima (dois Greco (2011) ainda destaca que as penas, de
anos) é menor do que a conduta na sua acordo com a parte final do art. 59 do CP, devem
forma simples (três anos), num gravíssimo ser necessárias e suficientes para a reprovação e
atentado ao princípio da proporcionalidade prevenção do crime, disposição legal que não é
das penas (PRADO, 2011b, p. 477). observada na determinação da pena do excesso
de exação na forma qualificada.
Ocorre que para o excesso de exação As penas desproporcionais trazem a ideia de
praticado na forma simples comina-se pena mínima injustiça. A ideia de proporção é inata ao ser
de reclusão de três anos, ao passo que para o humano. Determinar uma pena mínima menor ao
excesso de exação praticado na forma qualificada crime de excesso de exação na sua forma
comina-se pena mínima de reclusão de dois anos. qualificada em relação à simples rompe com o ideal
Há uma incongruência em relação à forma de proporcionalidade constitucional e penal
qualificada, o que determina um atentado ao buscado pelo Estado Democrático de Direito. Em
princípio da proporcionalidade das penas. suma, a pena deve ser razoável, devendo ser criada
Greco ensina que a proporcionalidade das e aplicada proporcionalmente à magnitude da lesão
penas deverá ser aferida em três planos: legislativo, do bem jurídico tutelado.
judicial e no momento da execução da pena. Ou:
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sobreleva, assim, na parte especial do
código penal, a necessidade de se apurar a
proporcionalidade das penas, que deverá A pena mínima cominada para o crime de
ser aferida em três planos distintos, vale excesso de exação, na forma qualificada, é de dois
dizer, no legislativo, que ocorre quando da anos de reclusão, ao passo que a pena mínima
criação da figura típica; no judicial, que é cominada para o mesmo crime na forma simples é
levado a efeito quando o julgador aplica a três anos de reclusão.
pena ao caso concreto; e no momento da
O princípio da proporcionalidade aplicado ao
execução da pena, quando o agente,
efetivamente, sente os efeitos da sua Direito Penal determina que a pena deve estar
condenação (GRECO, 2011, p. 28-29). proporcional ou adequada à magnitude da lesão
ao bem jurídico protegido e à periculosidade
A incongruência verificada na pena do criminal do agente.
excesso de exação em relação à forma qualificada As qualificadoras, nesse sentido, assimilam
atenta contra o princípio da proporcionalidade em o ideal de proporcionalidade na medida em que
qualquer dos planos em que este deverá ser aumentam o quantum da pena-base por conta de
apurado: a atividade legislativa não se preocupou o crime ter sido praticado de maneira mais
em punir o excesso de exação quando praticado gravosa.
de maneira mais grave; o Judiciário dissemina essa Ocorre que, para a modalidade qualificada
desproporção quando aplica as penas cominadas do crime de excesso de exação (art. 316, § 2.º,
às duas modalidades; e o agente sofre a CP), comina-se uma pena mínima menor do que
consequência de ser punido de maneira mais para o excesso de exação na forma simples (art.
significativa por um quantum de pena maior quando 316, § 1.º, CP).
pratica o crime na forma simples, já que no Assim, não se verifica proporcionalidade na
momento da execução da pena sente efetivamente cominação de penas para o crime de excesso de
os efeitos da sua condenação. exação levando em consideração o fato da
Pelo princípio da proporcionalidade das qualificadora não aumentar a pena base em um
penas, destaca Prado (2011b), deve existir uma quantum superior à pena cominada para o crime
medida de justo equilíbrio entre a atividade na forma simples.
legislativa (abstrata) e a atividade judicial A lesão ao princípio da proporcionalidade se
(concreta). verifica nas três etapas em que tal postulado deve
Ora, se a determinação de uma qualificadora ser analisado: na etapa legislativa, já que o legislador
visa, pois, punir o crime praticado de maneira mais não se preocupou em punir o crime em estudo

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quando praticado de maneira mais grave; na etapa Oficial [dos] Estados Unidos do Brasil.
judicial, visto que o juiz é orientado pela Brasília, DF, 27 out. 1966.
determinação legal tipificada; e na etapa da
execução da pena, momento em que a atividade CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal:
estatal punitiva torna-se efetiva e o agente cumpre parte geral. v. 1. 15. ed. São Paulo: Saraiva,
uma pena maior quando comete o crime de excesso 2011.
de exação na forma simples.
Em suma, há uma incongruência em relação GRECO, Rogério. Curso de direito penal:
à forma qualificada do crime de excesso de parte especial. v.. II. 8. ed. rev. ampl. e atual.
exação, a qualificadora não cumpre sua função Rio de Janeiro: Impetus, 2011.
básica de aumentar o quantum da pena base do
crime em relação a sua forma simples, e o ideal GRECO, Rogério. Curso de direito penal:
constitucional e penal de proporcionalidade buscado parte especial. v. IV. 8. ed. rev. ampl. e atual.
pelo Estado Democrático de Direito é fragilizado. Rio de Janeiro: Impetus, 2012.

REFERÊNCIAS LENZA, Pedro. Direito constitucional


esquematizado. 15. ed. rev. atual. e ampl. São
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da Paulo: Saraiva, 2011.
República Federativa do Brasil. Brasília, DF:
Senado, 1988. PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal
brasileiro: parte geral. v. 1. 10. ed. rev. ampl. e
BRASIL. Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011a.
dezembro de 1940. Código Penal. Diário
Oficial [dos] Estados Unidos do Brasil. Rio PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal
de Janeiro, DF, 31 dez. 1940, retificado em 3 jan. brasileiro: parte especial. v. 3. 7. ed. rev. ampl.
1941. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011b.

BRASIL. Lei n.º 5.172, de 25 de outubro de TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar


1966. Dispõe sobre o sistema tributário nacional Rodrigues. Curso de direito processual penal.
e institui normas gerais de direito tributário 5. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: JusPodivm,
aplicáveis à União, Estados e Municípios. Diário 2011.

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O MEDO E A PENA DE MORTE NA VISÃO DE BECCARIA

“[...] de todas as coisas que movem o


homem, uma das principais é o seu terror
da morte.” (Ernest Becker - A negação da
Morte).

Tiago Barbosa1

RESUMO paper seeks to fear acting as an essential factor


for the usefulness of the death penalty and show
A pena de morte é um tema polêmico que vem how this comes Beccaria punishment as ineffective
se arrastando há séculos. No livro Dos Delitos e for the prevention of crime.
das Penas, Beccaria insere uma visão sobre a
utilidade dessa pena, que para ele é considerada Keywords: death penalty, fear, Beccaria.
como sendo uma punição de pouco impacto na
vida do delinquente e ineficaz para a prevenção
do crime. O medo é um dos sentimentos que se
encontram presentes em todas as pessoas e o 1 INTRODUÇÃO
medo da morte é algo que influencia o homem
desde os primórdios de sua existência. A pena de Esse artigo visa realizar uma análise sobre a
morte perde o seu caráter intimidador no momento pena de morte descrita no livro Dos Delitos e das
em que o medo da morte é atenuado pela crença Penas, de Cessare Beccaria, e sobre a atuação
de vida após a morte. Presente isso, o artigo visa do medo na vida humana. A pena capital, que é
a atuação do medo como fator essencial para a um assunto tão polêmico, ainda hoje é rodeada de
utilidade da pena de morte e mostrar como questões não respondidas, sobre sua utilidade, sobre
Beccaria trata dessa punição como ineficaz para sua necessidade ou sobre a sua validade. Aqui se
a prevenção do crime. interessa discutir não apenas os mesmos assuntos
sobre a pena de morte, que vem sendo discutida
Palavras-chave: pena de morte, medo, Beccaria. no decorrer dos séculos, mas também apresentar
algum pensamento que possa adicionar mais uma
visão sobre a pena de morte.
ABSTRACT Tratar-se-á do medo como fator principal que
influencia em toda a vida, principalmente o medo
The death penalty is a controversial topic that has da morte. Seria o medo da morte capaz de prevenir
been going on for centuries. In the book On Crimes o crime? As pessoas da sociedade não sentem o
and Punishments, Beccaria inserts an insight into verdadeiro medo da morte, o medo que elas
the usefulness of that sentence, which in their book possuem é atenuado por suas crenças e assim esse
is considered to be a punishment of little impact in medo se torna fraco para persuadir a mente
the life of the offender and ineffective for the humana de deixar de cometer delitos. No capítulo
prevention of crime. Fear is a feeling that is present do livro Dos Delitos e das Penas que trata da
in all people and the fear of death is something pena de morte, Beccaria justifica a inutilidade da
that influences the man since the dawn of its aplicação da pena de morte como um evento de
existence. Death penalty loses its character pouco impacto na vida dos criminosos e na vida
intimidating at the time the fear of death is mitigated das pessoas da sociedade. A anunciada impressão
by the belief of life after death. Present this, this fraca que essa pena causa pode ser justificada

1
Acadêmico do Quarto Período do Curso de Direito da Faculdade de Direito Santo Agostinho e membro do Programa
Especial de Tutoria (PET).

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também pela inexistência de um sentimento Como conseguir esse objetivo? Como


inerente a todos, que é o medo. conseguir a recuperação, a ressocialização de um
Primeiramente será apresentada uma visão criminoso através da punição? Como conseguir
geral do livro de Beccaria focando no capítulo que impedir que outras pessoas cometam o mesmo
trata da visão do autor sobre a pena capital. crime? Em seu livro, Beccaria dá algumas direções
Posteriormente, irá se expor o conceito psicológico para a solução do problema com uma visão
e filosófico do medo, como sentimento capaz de filosófica e reflexiva sobre o assunto. Escreve:
motivar ou desmotivar ações humanas. Depois, irá
se discutir sobre a inutilidade da pena de morte As leis, como eu disse anteriormente, são
tratada no livro de Beccaria. E, por fim, será apenas a soma de pequenas porções de
liberdade privada de cada indivíduo e
apresentado o medo da morte como fator
representa a vontade geral que é o agregado
preventivo para o crime e como a falta deste pode das vontades de cada indivíduo. Alguém
acarretar na incompetência da pena capital. algum dia deu a outro alguém o direito de
Espera-se que através desse estudo se lhe tirar a vida? (BECCARIA, 2012, p. 79).
demonstre um novo raciocínio sobre a visão do
medo e da pena de morte. Nada mais justo do que Um dos capítulos desse livro trata da
citar Beccaria, que chegou tão fundo nesse aplicação da pena de morte. Nessa parte do livro,
assunto. No presente artigo não se visa discutir a o autor reflete sobre a utilidade dessa pena e em
implementação da pena de morte no Brasil; mas, uma das passagens desse capítulo do livro ele diz
sim, tratar de uma reflexão sobre a utilidade da (2012, p. 80): “Se eu puder demonstrar que a pena
pena capital como foi questionado no livro Dos de morte não é útil nem necessária, terei ganhado
Delitos das Penas. a causa da humanidade.”. Nesse trecho ele,
evidencia sua descrença na necessidade da pena
2 DOS DELITOS E DAS PENAS de morte na prevenção e na punição dos crimes.
O ser humano, guiado por suas paixões, pode
“Dos delitos e das penas” é o título de um cometer um crime. Porém, também pode motivá-
livro que foi escrito pelo filósofo Cesarie Beccaria -lo a refletir sobre a compensação do crime. Se as
e que viria trazer grande influência nos códigos emoções podem influenciá-lo a cometer o crime,
penais de diversos países. Com certeza, essa é a as emoções também podem influenciá-lo a deixar
obra mais conhecida desse ilustre autor, e que ainda de cometer o crime.
serve de estudo para os iniciantes na vida jurídica.
Nesse livro, Beccaria tratou de esgotar o 3 MEDO
máximo possível o assunto sobre as punições
causadas pelas transgressões ao contrato social. O ser humano é emocional. As emoções são
Se o intuito dessa obra foi modificar o pensamento características que influenciam diretamente na vida
em relação aos delitos e às penas estabelecidas do homem, podendo ser alegria, tristeza, raiva,
na época, indubitavelmente ele conseguiu, pois foi medo e tantos outros que ele expressa. De acordo
a partir de sua obra que se começou a ter uma com Davidoff (2001, p. 369), “emoções são estados
visão mais humanizada sobre o Direito Penal. interiores caracterizados por pensamentos,
A punição começa a se desvincular da ideia sensações, reações fisiológica e comportamento
de vingança da sociedade contra um indivíduo que expressivo específico. Aparecem subitamente e
descumpre a lei e a prejudica, e passa ter um caráter parecem difíceis de controlar.”.
de ressocialização do indivíduo, devolvê-lo à As emoções se fazem presentes em todos
sociedade. os homens. É algo inerente à sua condição de ser.
Em um dos capítulos do livro que trata do A sensação de alegria influencia totalmente o dia
objetivo das penas, Beccaria diz: de uma pessoa, da mesma forma que a tristeza.
Todas as emoções causam um impacto na vida de
O objetivo das penas não é tormentar um um indivíduo. E esse impacto traz consequências
ser sensível ou desfazer um crime já diretas para ele. O medo é o tipo de emoção em
cometido. [...] O objetivo da pena, portanto,
que o impacto causado pode até mesmo paralisar
não é outro que evitar que o criminoso crie
mais danos à sociedade e impedir outros uma pessoa ou gerar uma sensação que faça um
de cometer o mesmo delito (BECCARIA, indivíduo recuar diante de alguma situação.
2012, p. 37). De acordo com Livraga (2013), “o medo é

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um estado psicológico da alma e também um filosófico sobre o tema é o exposto a seguir:


mecanismo instintivo natural que promove a
elevação das defesas.”. Neste caso, o medo é uma Pois em todo homem existe certo grau, sempre
ferramenta útil para o ser humano, fazendo com elevado, de medo, através do qual, ele
concebe o mal que venha a sofrer com sendo
que ele recue na presença de perigo. O autor
o maior de todos. E assim, por uma
completa assim: necessidade natural, ele o esquiva o mais
possível, e supomos que de outro modo não
Por medo aos mares, o homem inventou possa agir. Ora, quando alguém chega a esse
barcos; e por medo dos rios, o homem grau de medo, tudo o que dele podemos
construiu pontes. O medo de ficar congelado esperar é que se salve pela luta ou pela fuga
inspirou-o a fazer roupas, e o das insolações, (HOBBES, 1998, p. 48).
a construir sombrinhas e chapéus
(LIVRAGA, 2013).
Dessa forma, o sentimento de medo pode ser
utilizado para que um indivíduo “fuja” da vontade
Então, pode-se considerar o medo como um de cometer um crime; e, assim, poder calcular se
dos motores da vida, o que impulsiona o homem a sua ação irá ser compensatória.
fazer algo ou deixar de fazê-lo. Tal sentimento é
capaz de modificar a vida, já que muitas pessoas 4 PENA DE MORTE E SUA INUTILIDADE
deixam de efetivar algumas ações pelo simples
medo de tentar. Um indivíduo que tem medo do Primeiramente, deve ser apresentado o
fracasso não tenta uma nova possibilidade de conceito de pena e para isso será utilizado o conceito
emprego. Um indivíduo que tem medo da decepção de Capez que diz que pena é
tem medo de declarar um afeto a alguém.
Igualmente, a pessoa que tem medo de não ser sanção penal de caráter aflitivo, imposta
aceita na sociedade se mantém reclusa dentro de pelo Estado, em execução de uma sentença,
si mesma. Assim, o medo influencia as escolhas ao culpado pela prática de uma infração
que, consequentemente, influenciam a vida. penal, consistente na restrição ou privação
de um bem jurídico, cuja finalidade é aplicar
Segundo Sartre (2008, p. 67), “a fuga, no retribuição punitiva ao delinquente
medo ativo, é tida erradamente como uma conduta (CAPEZ, 2011, p. 385).
racional. Vê-se nela o cálculo, curto, na verdade,
de alguém que quer colocar entre si e o perigo, a Então, a pena é a possibilidade de o Estado
maior distância possível.”. privar um indivíduo de um bem jurídico, na sua
Sartre quis dizer que a recusa de fazer algo totalidade ou parcialmente, e com o objetivo de
perante o medo se dá de forma irracional. As evitar que ele não cometa novos delitos. De acordo
pessoas são motivadas a fugir de alguma coisa que com Bitencourt (2012, p. 128):
lhes pode causar ameaça. Assim, elas podem até
calcular se aquela ação pode lhes trazer algum Pena e Estado são conceitos intimamente
prejuízo. relacionados entre si. O desenvolvimento
Neste caso, deve-se concluir que a punição, do Estado está intimamente ligado ao da
para que tenha eficácia, deve vir carregada de pena. [...] Destaque-se a utilização que o
Estado faz do Direito Penal, isto é, da pena,
algum detalhe que possa motivar uma conduta
para facilitar e regulamentar a convivência
diferente nas pessoas; algo que possa fazê-las dos homens em sociedade.
calcular se vale ou não a pena a sua execução. É
como uma criança, que antes de fazer algo errado, As penas existem desde que o homem vive
calcula e reflete que se um ponto sair de maneira em sociedade, desde as sociedades mais primitivas
inesperada, ela pode sofrer sanção pelos seus pais até a sociedade atual. Assim, sempre que um
e a motivação para essa reflexão parte do medo indivíduo ataca algum bem jurídico, ele deve sofrer
de ser punido. Sendo assim, o medo pode servir uma sanção para que sua conduta não seja
como desmotivação de contrariar as normas. praticada novamente e desmotivar outros
E quando falta esse fator motivacional? Neste indivíduos para que não possam fazer o mesmo.
caso, o crime pode ser cometido e reincidido, A pena de morte ou conhecida também como
resultando em um sentimento de impunidade, o qual pena capital diz ser a rainha das penas e é chamada
demonstra que a punição não consegue provocar quando há crimes ditos como “imperdoáveis” pelo
um sentimento de aversão ao crime. Outro tom grupo social. Há séculos, é utilizada como punição

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e ainda hoje sobrevive em alguns países. O Código (pecado) cometido. De certa forma, o regime
de Hamurabi2, reconhecido como o documento do Estado absolutista, impunha-se uma
pena a quem, agindo contra o soberano,
mais antigo sobre leis penais, tinha em sua
rebelava-se também, em sentido mais que
legislação a aplicação da pena de morte: figurado, contra o próprio Deus.

se alguém tirar um olho de outro, perderá o


Assim, considerava-se que a pena possuía
seu igualmente; se alguém quebrar um osso
de outro, partir-se-lhe-á um também; se o um único objetivo: o de punir um pecador. Com a
mestre de obras não construiu solidamente concepção do Estado e da sua desvinculação com
a casa e esta cair, matando o proprietário, o a religião (laicidade), a pena, em sentido absoluto,
construtor será morto e, se for morto o filho passa ser uma punição para a pessoa que
do proprietário, será morto o filho do contrariava o contrato social. Segundo Bitencourt
construtor.
(2012, p. 132), “a pena tem como fim fazer justiça,
nada mais. A culpa do autor deve ser compensada
Mas, a pena de morte não restringe sua com a imposição de um mal, que é a pena.”. Nesse
utilização só no passado. Ainda no presente é sentido, a pena capital poderia ser utilizada com o
utilizada em alguns países como forma de punição. objetivo de restaurar a ordem perdida e fazer
Países como Estados Unidos, China e Coreia do justiça.
Norte utilizam dessa pena para punir crimes Um dos maiores defensores dessa teoria
considerados imperdoáveis3. absoluta da pena foi Immanuel Kant. Segundo Kant
Assim como o Estado evolui, o Direito Penal (apud BITENCOURT, 2012, p. 135):
também evolui. Então, surgem novos conceitos,
teorias que passam a contribuir para o A pena jurídica, poena forensis, não pode
desenvolvimento dessa ciência. nunca ser aplicada como um simples meio
Segundo Bitencourt (2012, p. 129): de procurar outro bem, nem em benefício
do culpado ou da sociedade; mas deve ser
É possível deduzir que as modernas sempre contra o culpado pela simples razão
concepções do Direito Penal estão de haver delinquido.
vinculadas às ideias de finalidade e função,
o que explica sua estrita relação com as Então, Bitencourt sintetiza a ideia de Kant,
teorias da pena, meio mais característico de segundo a qual o indivíduo que comete um crime
intervenção do Direito Penal.
deve ser punido pela única razão de ter cometido
o crime, pouco importando sobre a utilidade da pena
Dessa forma, essas teorias são utilizadas para para ele ou para a sociedade. Assim, a pena não
basear fundamentos contra ou a favor da utilização tem outra finalidade a não ser a de castigar quem
da pena capital. As duas principais teorias que dão cometeu o delito, excluindo a sua função preventiva
justificativas à utilização da pena são as retributivas da pena.
(absolutas) e as utilitaristas (relativas). A outra teoria a ser apresentada – e a mais
De acordo com Bitencourt, a pena em sentido importante para este estudo – é a teoria utilitarista,
absoluto dá maior entendimento quando analisada também conhecida como relativa ou preventiva da
juntamente como Estado que dá a vida. Segundo pena. Segundo Bitencourt (2012, p. 140):
ele, o Estado absolutista tinha como características
mais significativas a identidade entre o soberano e Para as teorias preventivas, a pena não visa
o Estado, ou seja, rei e Estado eram a mesma retribuir o fato delitivo cometido, e sim
pessoa; a unidade entre moral e direito, Estado e a prevenir sua prática. Se o castigo ao autor
religião e também a afirmativa de que o poder do delito se impõe segundo a lógica das
concedido ao rei era oriundo do próprio Deus. teorias absolutas, somente porque
delinquiu, nas teorias relativas a pena se
Assim, de acordo Bitencourt (2012, p. 131):
impõe para que não volte a delinquir.
A ideia que então se tinha da pena era a de
ser um castigo com o qual se expiava o mal Assim, o foco dessa teoria é a prevenção da

2
Disponível em: <http://www.culturabrasil.org/zip/hamurabi.pdf>. Acesso em: 8 out. 2013.
3
Disponível em: <http://www.amnistia-internacional.pt/dmdocuments/ListadePaisesPenaMorte.pdf>. Acesso em:
25 out. 2013.

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pena, não só voltada para quem delinquiu, mas o homem não só a cometer delitos, mas desmotivá-
também para toda a sociedade, fazendo com que -lo a realizar qualquer tipo de ação. Segundo
a intimidação da pena passe pelo delinquente e Kovács (1992, p. 14), “o medo é a resposta
reflita na sociedade. E, então, observa-se psicológica mais comum diante da morte.”. Porém,
novamente a presença do medo para a efetivação o medo da morte não se apresenta de forma
dessa ação preventiva. Sim, o medo se faz equânime para todos. Para alguns, a morte é só
presente aqui, pois, sem medo, não há intimidação. mais transição. Para outros, a morte é o início de
De acordo com Bitencourt, para as duas teorias, uma nova vida ou a morte é o fim que não necessita
tanto a absoluta quanto a relativa, a pena é de explicação e que a todos estão destinados. E o
considerada como um mal necessário; porém, na que faz a morte ter tantas facetas é o sentido
preventiva, essa necessidade da pena não se baseia sobrenatural dado a ela, a religião e a crença de
na ideia de realizar justiça, mas na função, já vida após a morte diminuem o medo em relação a
referida, de inibir, tanto quanto possível, a prática ela. Segundo Gire (2013):
de novos fatos delitivos.
Portanto, vê-se, claramente, a teoria Algumas culturas, como a hindu, imaginam
utilitarista sendo usada como justificativa do objetivo um padrão circular da vida e da morte, onde
uma pessoa está pensada para morrer e
das penas no livro de Cessare Beccaria. Como
renasce com uma nova identidade. Esta
exemplo, no seguinte trecho: saída e reentrada na vida pode ocorrer várias
vezes. Isto contrasta com a visão cristã
O objetivo da pena, portanto, não é outro onde se acredita que a morte ocorra apenas
que evitar que o criminoso cause mais uma vez. No entanto, os cristãos não
danos à sociedade e impedir a outros de acreditam que tudo cessa com a morte. A
cometer o mesmo delito. Assim, as penas e pessoa perde a sua forma corporal, mas
modos de infligi-las devem ser escolhidos continua em espírito, onde há
de maneira a causar a mais forte e duradoura consequências: os fiéis - fiéis que
impressão na mente de outros, com o mantiveram a fé - são recompensados com
mínimo de tormento no corpo do criminoso alegria eterna no céu, e os pecadores
(BECCARIA, 2012, p. 37). procedem para o inferno, onde há dor e
sofrimento sem fim.
Assim, como supracitado, para Beccaria, as
penas devem ser escolhidas de modo que causem Então, a crença e a religião dão uma saída
forte e duradoura impressão na mente de outros. para morte.
Sendo assim, a pena de morte não cumpre esse O Brasil é um país que possui população, em
papel, pois, ele também diz que a execução de um sua maioria, constituída de pessoas cristãs.
criminoso é um espetáculo momentâneo e, assim, Portanto, a crença de vida após a morte é
a impressão causada na mente dos outros também compartilhada pela maioria dos brasileiros, segundo
é momentânea e incapaz de inibir outras pessoas o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e
a cometerem crime. Beccaria diz que melhor que Estatística 2010. Mesmo que essa concepção de
o medo da morte é o “exemplo contínuo de um vida após a morte venha dividida em uma
homem privado de sua liberdade, condenado a eternidade no paraíso ou eternidade no inferno,
pagar com o seu trabalho, como uma besta de carga ainda assim não deixa de ser outra vida depois
os males que causou à sociedade.” (2012, p. 81). dessa. A existência ainda se faz presente em outro
Desse modo, o medo de morrer é menor do que o
plano, tirando a força do medo da finitude da vida.
medo de se tornar um sofredor durante a vida.
Mas, como o país possui diversidade de crenças,
há também diversas visões sobre a morte, como
5 MEDO DA MORTE COMO PUNIÇÃO
exemplo da reencarnação no espiritismo ou em
religiões indígenas. Ainda no capítulo que trata da
Por que o medo da morte se torna insuficiente
pena de morte, Beccaria diz (2012, p. 85):
para a prevenção do cometimento do crime?
Porque a morte não é enxergada como o fim da
Então, a religião se apresenta na mente dos
vida, ao passo que morrer, para alguns, não é o fim fora da lei, e apresentando quase a certeza
de tudo; morrer, para alguns, não quer dizer deixar da felicidade eterna para um arrependimento
de existir. Então, a morte não causa medo. O medo simples contribui muito para diminuir o
é uma forte arma intimidadora, capaz de desmotivar horror daquela última tragédia.

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Para alguns povos, a crença da vida após a maiores medos da humanidade. Esse medo
morte era utilizada para o propósito de diminuir o proporciona a motivação que a raça humana possui
medo da morte para estimular o heroísmo e assim para poder continuar buscando seu
fazer surgir guerreiros que poderiam lutar sem desenvolvimento e sua sobrevivência nesse mundo
temer o fim da sua existência. Era o caso da vasto e, por que não dizer, no universo.
mitologia nórdica dos povos que habitavam países A morte que tanto intriga o homem é algo
hoje conhecidos como Suécia, Dinamarca, Noruega inevitável e um dia atingirá a todos. Deixar de
e Islândia. Essa mitologia é narrada em forma de existir é uma possibilidade que passa pela cabeça
poesia chamada as Edas, escrita em 1056 e uma e faz refletir sobre o futuro sem o seu ser. A morte
versão em prosa mais moderna, escrita em 1640. chegou até ser reconhecida como a “musa da
Esses dois escritos narram a existência de um filosofia” por Schopenhauer (1788-1860). Esse
paraíso chamado Valhala, no qual os guerreiros que acontecimento, além de intrigante, é bastante
morriam bravamente em batalha eram escolhidos significativo para o ser humano, pois ele é o único
pelo deus Odin para uma vida de festas e animal que tem consciência do fim de sua
comemorações. Ou seja, guerreiros que não existência.
possuíam esse perfil eram considerados inaptos Existe um feriado reservado para os que se
para Valhala. Dessa forma, o medo da morte era foram. Enquanto no Brasil o dia dois de novembro,
tirado para que surgissem guerreiros violentos e dia de finados, é o dia de lembrar com tristeza dos
sedentos por batalhas (BULFINCH, 2002, p. 380- que se foram; no México esse dia é celebrado com
-382). festa e comemorações, baseadas na crença da vida
Assim, sem o medo da morte, a pena de após a morte.
capital se torna inútil, incapaz de prevenir o crime, Os dois acontecimentos que marcam a
pois a crença de viver uma vida após essa, de obter passagem de um indivíduo na terra são o seu
o perdão divino por todos os seus atos retira a força nascimento e sua morte. A morte causa mais
da pena de morte. De acordo com Beccaria (2012, aflição porque deixar de existir é um ponto obscuro
p. 82): diante do seu desconhecimento, porém, a crença
em vida após a morte é a luz que ilumina e afasta
O terror da morte causa uma impressão tão esse medo. Logo, se não há medo da morte, não
leve que não tem força suficiente para
há medo da pena capital, pois o medo desta
resistir ao esquecimento natural dos seres
humanos, mesmos nas coisas mais depende do medo daquela.
essenciais, especialmente quando Alguns indivíduos que cometeram
estimulada pela paixão. atrocidades contra seus semelhantes nunca
pensaram na dor e no sofrimento que causaram,
Desta forma, pode-se afirmar que o medo mas pensam no perdão divino, algo tão precioso
da morte causa pouco ou nenhum impacto na vida para sua crença, para uma vida feliz e eterna após
de um indivíduo. Assim e consequentemente, essa vida, objetivo para o qual os seus
inutiliza a pena capital pela sua incapacidade de arrependimentos são válidos.
prevenir o crime.
REFERÊNCIAS
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
BECKER, Ernest. A negação da morte: uma
Viu-se que o medo é um sentimento capaz abordagem psicológica da finitude humana.
de fazer com que o homem repila seu desejo de Tradução de Luís Carlos do Nascimento Silva.
agir. Ao sentir medo, um indivíduo recua diante Rio de Janeiro: Record, 2007. Título original: The
suas vontades e assim se deixa influenciar por esse denial of death.
sentimento. A incapacidade de fazer algo perante
o medo é, às vezes, tão forte que uma pessoa pode BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de
ficar totalmente impotente e não esboçar nenhuma direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva,
reação ou então suprimir sua vontade interna. O 2012.
medo impede o ser humano de realizar ações que
são, às vezes, tão simples, mas que, diante do BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da
desconhecido, tornam-se tão difíceis de realizar. mitologia: história de deuses e heróis. Tradução
Como visto, a morte é credora de um dos de David Jardim Júnior. 26. ed. Rio de Janeiro:

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Ediouro, 2012. Título original: The age of fable. Censos/Censo_Demografico_2010/


Caracteristicas_Gerais_Religiao_Deficiencia/
CESSARE, Beccaria. Dos delitos e das penas. tab1_4.pdf>. Acesso em: 25 out. 2013.
Tradução de Neury Carvalho Lima. São Paulo:
Hunter Books, 2012. KOVÁCS, Maria Júlia. Morte e
desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do
DAVIDOFF, Linda L. Introdução à Psicólogo, 1992.
psicologia. Tradução de Lenke Peres. 3. ed.
São Paulo: Makron Books, 2001. LIVRAGA, Jorge Angel. O medo. Disponível
em: <http://www.novaacropole.pt/a_medo.html>.
GIRE, James T. How death imitates life: cultural
Acesso em: 3 out. 2013.
influences on conceptions of death and dying.
Disponível em: <http://www.wwu.edu/culture/
SARTRE, Jean-Paul. Esboço para uma teoria
gire.htm>. Acesso em: 11 out. 2013.
das emoções. Tradução de Paulo Neves. Porto
HOBBES, Thomas. Do cidadão. Tradução de Alegre: L&PM, 2008.
Renato Janine Ribeiro. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1998. SANTOS, Carlos. O papel da religiosidade face
à morte. Disponível em: <http://
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA www.academia.edu/1479734/
E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo demográfico O_Papel_da_religiosidade_na_ansiedade_face_a_Morte-
2010. Disponível em: <ftp://ftp.ibge.gov.br/ Carlos_Santos>. Acesso em: 11 out. 2013.

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RESUMOS

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TESTAMENTO VITAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:


uma abordagem acerca do confronto da vida como um bem jurídico indisponível versus o
princípio da dignidade da pessoa humana

Diego Celestino Ferreira1

Segundo os preceitos fundamentais insculpidos na Resolução acendeu entre os operadores do Direito


Constituição da República Federativa do Brasil de uma boa discussão, pois coloca em confronto dois
1988, a vida humana é um bem jurídico indisponível, importantes princípios constitucionais: respeitar a
pois se constitui na origem e sustentáculo de todos dignidade humana através da escolha pela morte
os outros direitos. Assim, deverá ser preservada digna ou preservar a vida como bem que se
pelo seu titular e por todos os demais membros da sobrepõe aos demais em qualquer circunstância?
coletividade, não podendo, portanto, ser abdicada Nesse contexto, o presente trabalho tem por
nem exposta às condições de risco. Exceto objetivo compreender os aspectos jurídicos, quanto
naquelas circunstâncias autorizadas por lei. Em ao reconhecimento e à validade do testamento vital
2012, o Conselho Federal de Medicina (CFM)
no ordenamento jurídico brasileiro, ponderando os
divulgou a Resolução 1.995, que formaliza e
dois princípios constitucionais, quais sejam, a
reconhece o testamento vital, também conhecido
Dignidade da Pessoa Humana e a proteção da vida
como “declaração de vontade antecipada”, o qual
como bem jurídico indisponível. O estudo do tema
possibilita ao paciente que esteja em pleno gozo e
capacidade mental, declarar e registrar a vontade dar-se-á através da pesquisa bibliográfica,
ou não de se submeter a quaisquer tipos de documentos eletrônicos e legislação vigente.
tratamentos médicos, caso esteja diante de um Conclui-se que o testamento vital demonstra um
diagnóstico terminativo. Embora o Conselho grande avanço no ordenamento jurídico brasileiro,
Federal de Medicina tenha reconhecido e pois garante a vontade e autonomia da escolha do
possibilitado ao paciente o testamento vital, esse paciente quanto ao seu tratamento, facultando-lhe
procedimento ainda não está autorizado pela inclusive a garantia de uma morte digna.
legislação vigente. Ao contrário, confronta com a
própria indisponibilidade determinada na Palavras-chave: Testamento vital. Ordenamento
Constituição da República Federativa do Brasil de Jurídico. Vida. Princípio da Dignidade da Pessoa
1988, bem como no Código Civil de 2002. A Humana.

1
Acadêmico do Oitavo Período Matutino do Curso de Direito da Faculdade de Direito Santo Agostinho e membro do
Programa Especial de Tutoria (PET).

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O CONFRONTO ENTRE O UNIVERSALISMO E O MULTICULTURALISMO

Isadora Oliveira de Paula e Silva1

O presente resumo visa o estudo das concepções e para que cada país perceba que a sua cultura possui
universalistas e multiculturalistas no que tange aos deficiências. E, assim, chegar a soluções de como
Direitos Humanos, buscando frisar o embate entre legitimar os Direitos Humanos universalmente sem
posições tão diversas. Além disso, tem por finalidade desrespeitar a cultura de cada país. Outra hipótese
pesquisar as razões que levam cada país seguir uma seria a de resgatar os preceitos de dignidade da
ou outra concepção, e, concomitantemente analisar pessoa humana em cada povo e, a partir daí, definir
as soluções para atenuar tais divergências. Para o que seriam os Direitos Humanos. No
aqueles que defendem o universalismo, os direitos desenvolvimento deste estudo científico, a técnica
humanos são universais e inerentes à própria de pesquisa utilizada será bibliográfica, podendo
humanidade. Todos os países devem obedecer aos
haver, se necessário, a utilização da técnica de
preceitos dos direitos humanos, independentemente
pesquisa documental. As fontes de pesquisas serão
de serem signatários de um Tratado ou não, para
as obras bibliográficas, documentos e páginas
que se efetivem, de fato, a paz e a segurança
eletrônicas. É mister salientar que a tentativa de
internacional. Diferentes destes, os multiculturalistas
pregam um ideal de que a cultura do país é intrínseca legitimar os Direitos Humanos na porção oriental
a ele. Que cada país possui a sua concepção de do globo terrestre encontra uma considerável
paz, dignidade da pessoa humana, ética, moral, resistência, por sua cultura divergir em vários pontos
política. Portanto, os Direitos Humanos são da do ocidente. Acontecimentos recentes como o
diferentes em cada país, não sendo possível da Síria têm mostrado essa resistência diante da
universalizá-los. Frente a isso, faz-se o seguinte tentativa da imposição desses direitos. Dessa
questionamento: quais são as medidas eficazes para maneira, devem-se buscar, de maneira urgente,
que os Direitos Humanos tenham legitimidade em medidas eficazes para a emancipação dos Direitos
todos os países? Uma hipótese seria a realização Humanos.
de um debate intercultural em que cada país exponha
o seu ponto de vista para que haja uma construção Palavras-chave: Universalismo. Multiculturalismo.
do respeito da cultura de um país para com o outro Direitos Humanos. Legitimidade.

1
Acadêmica do Quinto Período Matutino do Curso de Direito da Faculdade de Direito Santo Agostinho e membro do
Programa Especial de Tutoria (PET).

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A DOUTRINA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA ANTE O


PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA PESSOA JURÍDICA

Matheus Medeiros Maia1

A história mostra que a partir do momento em que arbitrário pelo Poder Judiciário. Sem que haja
o homem passou a construir pequenas necessidade, os magistrados desconsideram
comunidades, começou a desenvolver mais bem pessoas jurídicas de forma descomedida e
as suas potencialidades. Em consequência, infundada, lesando direitos destas, bem como de
aumentou sua qualidade de vida. O seus membros. Deve-se ressaltar que a regra é o
desenvolvimento da espécie humana fez com que respeito ao princípio da autonomia da pessoa
as relações econômicas e comerciais se tornassem jurídica, sendo a desconsideração uma
mais complexas. Baseando-se na premissa de que, excepcionalidade a ser utilizada pelo órgão
ao se agrupar, torna-se mais eficiente a consecução judicante em casos pontuais. A desconsideração
de suas finalidades, os seres humanos passaram a não deve enfraquecer o instituto da pessoa jurídica;
se coligar, a fim de alcançar lucros ou atingir seus mas, sim, fortalecê-lo, punindo os que a utilizam
objetivos particulares. Surge, então, o conceito de com má-fé. Por conseguinte, demonstrada a
pessoa jurídica, entendida como “unidade de maneira exagerada com a qual o Poder Judiciário
pessoas naturais ou de patrimônios, que visa à brasileiro aplica a disregard doctrine, a fim de
consecução de certos fins, reconhecida como que seja combatido o uso de má-fé da pessoa
sujeito de direitos e obrigações.” (DINIZ, 2012, p. jurídica sem que haja lesão a direito de seus
264). Porém, pelo fato de a pessoa jurídica ser membros, os magistrados devem minuciosamente
sujeito de direito autônomo, ela acaba sendo investigar e identificar nos casos concretos provas
utilizada para prática de atos fraudulentos, incontestáveis de que houve o abuso de
desviando-se de sua finalidade e lesando credores personalidade, responsabilizando os membros que
e terceiros sem que os seus membros sejam assim atuam, sem que haja abuso por parte do
responsabilizados. Com o fim de combater essa órgão jurisdicional.
prática, o legislador pátrio positivou, no artigo 50
do Código Civil brasileiro de 2002, o instituto da
desconsideração da personalidade jurídica, baseado REFERÊNCIAS
na disregard doctrine, de origem dos Tribunais
norte-americanos. Em síntese, trata-se de uma DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil
prerrogativa atribuída ao Judiciário de brasileiro: teoria geral do direito civil. 29. ed.
desconsiderar episodicamente a personalidade São Paulo: Saraiva, 2012.
jurídica, em casos de desvio de finalidade ou
confusão patrimonial, a fim de alcançar os PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de
membros que abusaram da personalidade direito civil. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense,
autônoma da organização. Todavia, pesquisas 2007.
bibliográficas e jurisprudenciais permitem afirmar
que o instituto da desconsideração, pelo fato de COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito
estar positivado no ordenamento jurídico brasileiro, comercial. v. 1. 16. ed. São Paulo: Saraiva,
vem sendo utilizado de modo desenfreado e 2012.

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Graduando em Direito pela Faculdade de Direito Santo Agostinho e membro do Programa Especial de Tutoria (PET)

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RESENHA

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EUTANÁSIA EM A GUERRA DOS TRONOS

Dandara Tamires Reis e Castro1

1 INTRODUÇÃO é claro, das complexas questões morais envolvidas


e as escolhas tomadas durante e após os
Misericórdia é um sentimento de compaixão, tratamentos, o que tornam ainda mais instigantes
despertado pela desgraça ou pela miséria alheias. a leitura e o pensar.
A expressão misericórdia tem origem latina e é Questões relativas à vida e à morte são
formada pela junção de miserere (ter compaixão), importantes e interessantes por envolverem não
e cordis (coração). “Ter compaixão do coração” apenas a vida, mas por obrigarem o pensar sobre
significa ter capacidade de aproximar seus escolhas mais profundas. As emergências médicas
sentimentos dos sentimentos de alguém, ser dos personagens Bran Stark e Khal Drogo são
solidário com as pessoas. Diante de uma situação janelas para uma análise do termo eutanásia sob a
médica delicada e irreversível, o termo eutanásia óptica da misericórdia em cada situação.
surge sendo a prática pela qual se abrevia a vida
de um enfermo incurável, que se encontra em um 2 SITUAÇÕES MÉDICAS EM WESTEROS
processo de morte, lento e doloroso. E NO MAR DOTHRAKI
A eutanásia representa atualmente um
complexo debate de bioética e do biodireito, Em Westeros, o jovem Brandon Stark escala
envolvendo filosofia, ética, questões jurídicas e uma das torres de Winterfell, quando surpreende
religiosas. Independentemente da motivação para Cersei e Jaime Lannister num ato secreto de
a eutanásia, seja ela legalizada ou não, é
incesto, após tramarem contra Eddard Stark, novo
considerada um assunto controverso, existindo
escolhido para ser A Mão do Rei. Na busca por
sempre prós e contras.
proteger tais segredos, Jaime empurra o jovem Bran
Tão controverso é o tema que pode ser visto
pela janela da torre, deixando o menino aleijado,
em situações fictícias fantasiosas que dão margens
em coma, numa luta entre vida e morte. No mesmo
a análises e ponderações ao se comunicar com o
livro, mais adiante, no Mar Dothraki, o poderoso
leitor. A literatura possui a abertura para uma nova
Khall Drogo é ferido em batalha, algo inicialmente
forma interpretativa em que o leitor pode se deixar
sem importância, mas, por insistência de sua esposa
levar pelas intenções do autor, instigando o pensar.
No livro A Guerra dos Tronos, com nome Daenerys Targaryen, deixa-se ser tratada por uma
original em inglês Game of Thrones, o primeiro curandeira desconhecida até então, a Mirri Mas
livro da série de fantasia épica As Crônicas de Duur. Tal ferimento piora e o faz cair do cavalo,
Gelo e Fogo, escrita pelo norte-americano George que mostra que ele não mais era forte, não mais
R. R. Martin e publicada pela editora americana podia governar. Ele está fraco, prestes a morrer.
Bantam Spectra – com edição brasileira da Assim como Bran Stark, seu fio entre a vida e a
Editora Leya – têm-se dois personagens morte é fino e delicado e, devido à delicadeza e
importantes que enfrentam problemas sérios de necessidade da situação, ambos ficam aos cuidados
saúde, que afetam os demais ao redor, em alguns de especialistas. Bran é cuidado pelo meistre
instigando a misericórdia e em outros motivos Luwin, que serve a casa Stark. Já Drogo,
escusos para a prática da eutanásia. novamente é entregue pela esposa aos cuidados
Essas duas situações médicas em A Guerra obscuros da magia negra da maegi Mirri Mas Duur,
dos Tronos são filosoficamente interessantes, além, na busca por salvá-lo.

1
Graduanda em Direito pela Faculdade de Direito Santo Agostinho e membro do Programa Especial de Tutoria (PET).

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3 ATO DE MISERICÓRDIA EM momentos restantes de dor sem fim, muitos


WESTEROS escolhem encerrar todo e qualquer tratamento que
esteja prolongando a vida, uma vida de dor, e
Jaime Lannister, ao tomar seu café da manhã apressam a morte. Quando viver vai contra os
acompanhado por seus irmãos Cersei e Tyrion, interesses de quem é a vida, talvez seja razoável
comenta sobre a situação de Bran Stark. Por ser pôr fim a ela, conforme entendimento de Luper
ambientada num período semelhante ao medieval, (2010).
os recursos médicos na história não passam de Jaime, ao sugerir ao Eddard Stark que dê ao
orações e “curandeirismo”. Assim, uma criança filho uma “morte boa e limpa”, ele, como cavaleiro
que cai da janela de uma torre, fratura a coluna e do Rei, sempre confiante ao portar sua espada,
está inconsciente, não é nada promissor. Na sugere um golpe decisivo de aço valiriano, através
pequena reunião dos Lannisters, ao chegarem ao da espada da casa Stark, Gelo, para dar um fim
assunto da criança Stark, que se encontra rápido ao sofrimento do garoto e de sua família. E
acamada, o comentário de Jaime é que “poderia não espera que Eddard ordene ao meistre Luwin
pôr fim ao seu tormento. Era o que eu faria se que suspenda os cuidados com Bran de modo que
fosse meu filho. Seria um ato de misericórdia. [...] sua morte seja lenta e gradual.
eu preferiria uma morte boa e limpa.”. Esses diferentes atos de misericórdia
Os leitores sabem bem os motivos correspondem a uma importante distinção: a
escondidos atrás dessa singela demonstração de diferença entre eutanásia ativa e passiva.
misericórdia: se Bran nunca mais acordasse, os
segredos dos gêmeos Lannisters estariam seguros 4 EUTANÁSIA
novamente. O incesto, a traição, as conspirações
e a origem dos três herdeiros do trono. Ao que Alguns, como Cabette (2011), atribuem a
tudo indica, Jaime prefere manter a situação como origem do termo eutanásia a Francis Bacon no ano
está e, de preferência, com a criança curiosa dos de 1623, em sua obra intitulada Historia vitar et
Stark calada. E morta. mortis. Há ainda quem defenda a tese de que a
Diante desses motivos, qualquer um pode origem do termo é ainda mais antiga, que remota
ficar horrorizado. A sugestão de que uma morte ao pensamento estoico, no qual Cícero (106–43
rápida, de retirar a vida de uma criança, com tanto a.C.), na Carta a Ático, já teria empregado a
a viver ainda, seria algo subitamente rejeitada. Caso palavra eutanásia como sinônimo de “morte digna,
Bran acorde, mesmo diante das inúmeras limitações honesta e gloriosa” (ALVES, 2001, p. 27). Mas,
que poderá ter em sua vida, nada o impediria de há notícias do uso do vocábulo desde a época do
ter uma vida boa, de sonhar, de buscar realizar Imperador Augusto. E Sêneca, na Epístola a Lucílio,
seus objetivos, mesmo que alguns não sejam mais também teria usada a palavra para referir-se à “arte
possíveis, como sua teimosia em escalar. Assim, da boa ou doce morte” (ALVES, 2001, p. 27).
certamente não seria um ato de misericórdia acabar Atualmente, a doutrina especializada sobre
com a vida do garoto. Seria algo imoral na o tema tem empreendido algumas classificações
perspectiva dos leitores, ainda mais pelos motivos da eutanásia, normalmente utilizando-se de
escusos disfarçados de misericórdia. distinções binárias.
Porém, mesmo que a sugestão de Jaime Segundo Luper (2010), o termo eutanásia se
tenha um quê negro, imoral e por motivos estende de duas maneiras para os teóricos antigos.
horrendos, vale ser pensada de modo mais geral, Em primeiro plano, ao abandonarem a suposição
levando-se em conta apenas a misericórdia como de que a eutanásia envolve assassinato, fazem a
motivação. É certo que o conceito de misericórdia, distinção entre a ativa que é “o ato de matar que
no sentido de agir com compaixão em razão do beneficia quem morre”, e a passiva, “que beneficia
sofrimento de outra pessoa, é importante diante o indivíduo permitindo que morra.” (LUPER, 2010,
de decisões de vida ou morte. p. 211). Na segunda maneira, é possível fazer uma
Tendo como base essa ideia de misericórdia, distinção entre variedades de eutanásia ativa e
há duas decisões médicas difíceis, em que Jaime passiva em termos da atitude do indivíduo que
tem um raciocínio até defensável em termos morre. A eutanásia, seja ativa ou passiva, é
morais, se não estivesse com os motivos errados, voluntária quando “o indivíduo que morre é
é claro. Nos momentos mais difíceis de uma doença competente para consentir com o ato.”; é
terminal, frente à certeza da morte e todos os involuntária quando “negada competentemente”,

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e não voluntária quando “quem morre não tem humanitária, movida pela misericórdia, sendo que
competência ou não consegue expressar uma sua prática se processa por motivo de solidariedade
atitude sobre a morte.” (LUPER, 2010, p. 211). ou compaixão, cujo intento é o de liberação do
Assim, quando se retira o tratamento sofrimento do doente, envolvendo o próprio autor
necessário para manter a vida de um paciente, é emocionalmente no episódio. O móvel é a piedade
eutanásia passiva, sendo um ato mais lento de que leva o agente à conduta que libera o enfermo
misericórdia do que fornecer ao paciente uma de sua agonia, antecipando o momento de sua
“morte boa e limpa”, ao realizar de forma ativa morte.
alguma ação para encerrar a vida. Carvalho (2001) É possível confundir eutanásia passiva e a
traz uma definição de eutanásia passiva sendo uma ortotanásia. Etimologicamente ortotanásia advém
abstenção da prestação de tratamentos médicos do grego orthós, que significa normal, correta, e
ordinários ou proporcionados – úteis – que poderiam thánatos, morte, designando, portanto, a morte
prolongar a vida do paciente e cuja ausência natural ou correta, no seu tempo, sem abreviação
antecipa a morte. do tempo de vida (eutanásia) e nem prolongamentos
Tem-se outra classificação, que se refere à irracionais do processo de morrer (distanásia).
eutanásia natural e à provocada. Cabette (2011) Do ponto de vista da misericórdia, uma vez
as diferencia da seguinte maneira: a primeira está optado pela morte, é preferível evitar o sofrimento
ligada ao óbito que ocorre sem intervenções de prolongado oriundo de uma morte lenta e dolorosa,
terceiros e sem sofrimento. Já a provocada ou do prolongamento do processo de morrer, sendo
voluntária é aquela que se refere ao uso de alguma certamente o mais misericordioso a fazer,
forma pela qual a conduta humana, seja por parte aparentemente. Essa é a escolha que muitos fazem
de outrem ou do próprio doente, ajuda a terminar pelos seus animais de estimação. Os donos buscam,
com a agonia, amenizando o sofrimento, abreviando assim, dar um fim mais misericordioso e humano,
seu período de vida, comissiva ou omissivamente, algo que, de certa forma, mostra que o conselho
de maneira direta ou indireta. A provocada se de Jaime talvez seja válido. Talvez permitir que
subdivide em autônoma e heterônoma. Na primeira, pacientes com doenças incuráveis, e sofrimento
não há intervenção de terceiros e é conhecida por interminável, possam escolher a eutanásia ativa em
suicídio; já a segunda, ocorre atuação de terceiros vez da passiva seja o mais humano a se fazer.
para a eliminação do sofrimento e da vida do Enquanto a eutanásia passiva, segundo
doente. Tedesco (2012), é moralmente permitida, e
Outra classificação tem lastro na atitude do amplamente praticada, a eutanásia ativa é polêmica.
agente quanto ao curso vital do enfermo, sendo É este autor que traz o que a American Medical
então eutanásia solutiva e eutanásia resolutiva. A Association (Associação Médica Americana) diz
solutiva não apresenta qualquer dilema moral, ético sobre as duas práticas, em uma distinção bem
ou sob o prisma jurídico, sendo apenas a ajuda lúcida. Esse grupo, em 1991, adotou uma política
prestada para a ocorrência de uma boa morte, sem chamada Decisions Near the End of life
que haja o encurtamento do curso vital, sendo (Decisões perto do fim da vida), que permite a
apenas assistência física, moral, espiritual e retirada e a negação de tratamento de suporte à
psicológica ao enfermo. “É o cumprimento do dever vida em respeito à escolha autônoma do paciente,
moral de assistência e solidariedade humana, de mas proíbe tanto a eutanásia ativa quanto o suicídio
modo que nada pode haver de reprovável em tal assistido por um médico. Essa proibição se justifica
conduta.” (CABETTE, 2011, p. 21). com base na diferença moral importante entre
Na eutanásia resolutiva, atua-se de forma a matar e deixar morrer. “A ideia é que, embora
reduzir o tempo do curso vital no suposto interesse possa haver casos em que seja permitido deixar
do doente, com seu consentimento ou de seus alguém morrer, matar está numa categoria
representantes, consentimento este marcado pela totalmente diferente em termos morais.”
espontaneidade e livre consciência. Ainda há (TEDESCO, 2012, p. 116).
autores que subdividem a resolutiva em três: Cabette define a eutanásia ativa sendo
libertadora ou terapêutica, eugênica ou “aquela que se pratica através de atos que ajudam
selecionadora e a eutanásia econômica. Para este o doente a morrer, buscando com isso aliviar ou
estudo cabe apenas falar sobre a libertadora, que eliminar seu sofrimento” (p. 23), e ainda a subdivide
é segundo Cabette “genuinamente uma espécie de em direta ou indireta, de acordo com o fim
eutanásia” (2011, p. 22), sendo caracteristicamente almejado pelo autor. A eutanásia ativa direta é a

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que busca principalmente a diminuição do lapso foram presentes de seu pai, jamais derrotado em
temporal de vida do enfermo por meio de atos batalha, líder nato. Contudo, em um combate teve
positivos, comissivos, que o ajudam a morrer. Já a um ferimento, que a princípio não era nada a se
eutanásia ativa indireta tem duas finalidades, sendo importar, mas a pedido de sua esposa, entrega-se
a primeira diminuir o sofrimento e ao curandeirismo da maegi Mirri Mas Duur. O
concomitantemente reduzir o tempo de sofrimento ferimento piora, e a gravidade da situação é
e vida. É perceptível que a eutanásia ativa indireta retratada pela queda do cavalo, o que mostra toda
pode ser vista como a eutanásia pura, genuína, em sua fraqueza. Uma vez que um khal que não pode
que se procura agir com misericórdia, aliviando o montar, não pode liderar.
sofrimento físico e psíquico do enfermo, sempre Desesperada e cega aos avisos dos
realizando o abreviamento da vida. companheiros de sangue de Drogo, Daenerys
Rachels (1975) argumenta, em conformidade novamente confia seu amado sol-e-estrelas à
com Jaime Lannister, no artigo Active and Passive magia da maegi. Drogo é salvo, mas à custa de
Euthanasia (Eutanásia passiva e ativa), que o ato uma vida, a vida do filho de Daenerys, ainda em
direto da eutanásia ativa pode ser uma escolha seu ventre. A criança que foi profetizada como o
misericordiosa. Proibi-la, enquanto a passiva, é Garanhão que Montará o Mundo, e, o homem
permitida é optar e impor, ao sancionar, uma linha que sobrevive ao acordo, não é mais o poderoso
de ação que causa e prolonga ainda mais o khal Drogo. É um vegetal, com olhar perdido. Tão
sofrimento. Rachels argumenta ainda que matar e vegetal que até Sor Jorah Mormont observa:
deixar morrer são atos de equivalência moral. “Parece gostar do calor” (p. 534) enquanto Drogo
Analisando, em conformidade com Tedesco está deitado ao sol sem expressão e com moscas
(2012), de forma sistêmica, não há distinção moral ao seu redor. Ainda vive, mas não é a mesma vida
entre matar e deixar morrer, pois ambas são ações de antes. Considerando a condição do marido como
que levam a uma avaliação detalhada sobre as permanente com os dizeres da maegi, Daenerys
circunstâncias de cada caso em questão, mas têm toma uma decisão de misericórdia, sufoca o marido
como objetivo a morte. com uma almofada.
Filósofos contemporâneos, como Brock A maioria dos leitores se compadece da
(1992) não veem diferença entre matar e deixar situação e não se horroriza com a atitude da
morrer um enfermo, sendo que a retirada do khaleesi, mas ela realiza um assassinato
tratamento médico é causar a morte de forma premeditado a um ser humano indefeso. Cruel fora
intencional, assim como matar. Logo, por a do mundo ficcional? Sim. Mas, como então
eutanásia passiva ter a morte como intenção, trata- Daenerys não é julgada como vilã, assassina, pelos
-se de um ato de matar, tanto quanto a eutanásia leitores?
ativa. A situação de Drogo não difere de casos reais
Ao longo da leitura, e só de pensar na situação e graves, de lesões cerebrais traumáticas e doenças
de Bran sem conhecer as circunstâncias, é fácil degenerativas, que afetam a mente ao ponto de o
notar que sua deficiência, mesmo grave, não chega enfermo não ser mais a pessoa que era, e fica
a justificar sua morte por misericórdia, ao contrário mais clara quando comparada à de Bran Stark. A
da situação do segundo personagem a ser indignação frente à sugestão de Jaime Lannister,
analisada. para que usem uma espada para matar o garoto
lhe dando uma morte boa e limpa, tem como base
5 A ESPERA PELO RETORNO DA VIDA a esperança da vida ainda a ser vivida por Bran,
ALÉM DO MAR ESTREITO mesmo com dificuldades. A situação de Drogo é
bem diferente.
Mais à frente, no mesmo livro, A Guerra dos Para Drogo, não há esperanças, tanto que
Tronos, Daenerys Targaryen age, por misericórdia, diante da pergunta da khaleesi “Quando [ele]
num ato admirável e aceitável como legítimo e voltará a ser como era?”, Mirri Mas Duur responde
única opção, na visão de muitos leitores, diante das “quando o sol nascer no ocidente e se puser no
circunstâncias particulares do caso de Khal Drogo, oriente. Quando os mares secarem e as montanhas
seu marido. Têm-se agora novas questões a serem forem sopradas pelo vento como folhas. Quando
pensadas e ponderadas. seu ventre voltar a ganhar vida para dar à luz um
Outrora, Khal Drogo fora temido, invencível, filho vivo. Então, e não antes, ele regressará.” (p.
cujo cabelo nunca fora cortado, os sinos presos 534).

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Mesmo em uma obra literária e ficcional, circunstância, ainda mais quando se trata do
algumas dessas palavras remetem ao impossível, processo de morrer alheio, pois, matar ou deixar
ao nunca. Khal Drogo nunca voltará a ser o que morrer, independente da escolha, o que não se
era e é por isso que Daenerys age daquela forma. espera é o prolongamento do sofrer alheio.

6 CONCLUSÕES REFERÊNCIAS

O ponto importante a ser analisado é que a ALVES, Ricardo Barbosa. Eutanásia, bioética
aceitação da eutanásia refere-se à situação e e vidas sucessivas. Sorocaba: Brazilian Books,
circunstâncias particulares de cada caso. Uma 2001.
solução, segundo Rosenvald (2009), é aplicar a
técnica de proporcionalidade, deixando para, no AMERICAN MEDICAL ASSOCIATION.
caso concreto, dar contornos efetivos ao direito à Council on Ethical and Judicial Affairs.
morte digna (boa e limpa), dependendo das Decisions Near the End of Life. Journal of the
circunstâncias concretas. Assim, o Biodireito alerta American Medical Association. Redding
que o paradigma válido para toda ciência é o de (Califórnia, USA), n. 276, 1992, p. 2.229-2.233.
que o conhecimento deve estar sempre a serviço
da humanidade, respeitando a dignidade do ser BROCK, Dan W. Voluntary active euthanasia.
humano. Hastings Center Report. New York, v. 22, n. 2,
O estado de Khal Drogo, apesar de ser mar./ abr. 1992, p. 10-22.
também uma enfermidade, era diferente do estado
de Bran Stark. As características morais e CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e
emocionais envolvidas diferem tanto quanto a ortotanásia: comentários à Resolução 1.805/06
gravidade médica. Mesmo diante das diferenças, CFM. Aspectos éticos e jurídicos. Curitiba:
as respostas não são fáceis, pois envolvem Juruá, 2009. 1.ª reimpressão em 2011.
decisões profundas e radicais. Argumentos éticos
e valores hão de ser usados para justificação pró CARVALHO, Gisele Mendes de. Aspectos
ou contra. Contudo, é necessária a análise real do jurídico-penais da eutanásia. São Paulo:
contexto para balizar e fundamentar as decisões. IBCCrim, 2001.
É certo que a eutanásia continuará a suscitar
grande polêmica e inúmeras ponderações LUPER, Steven. A filosofia da morte.
filosóficas, morais, jurídicas e religiosas, pois o tema Tradução Cecilia Bonamine. São Paulo: Madras,
é complexo. 2010.
Quanto aos personagens, Bran Stark se
recupera do coma, e mesmo com a impossibilidade MARTIN, George R. R. A guerra dos tronos.
de andar, tem uma vida repleta de aventuras. Tradução de Jorge Candeias. São Paulo: Leya,
Daenerys também segue sua vida, sempre se 2010.
lembrando de seu sol-e-estrelas, mas com
saudades em vez de arrependimentos. A história RACHELS, James. Active and passive
segue seu curso e se mantém tão impressionante euthanasia. New England Journal of
nos quesitos ficcionais fantásticos quanto nas Medicine. Massachusetts (UK), v. 292, n. 2, 9-
tramas morais, filosóficas, psicológicas de cada 1-1975, p. 78-80.
personagem.
Todo o livro A Guerra dos Tronos apresenta ROSENVALD, Nelson. Direito civil: teoria
uma linguagem acessível e há originalidade desde geral. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
a narração, que a cada capítulo se concentra em
terceira pessoa limitada a centrar em um único TEDESCO, Matthew. Seria um ato de
personagem. Não há maniqueísmo e os misericórdia: escolha entre a vida e a morte em
personagens travam lutas interiores a todo instante, Westeros e para lá do mar estreito. In:
além das exteriores, o que aproxima ainda mais o JACOBY, Henry. A guerra dos tronos e a
leitor, o instigando a imaginar e pensar como agiria filosofia. Tradução de Patrícia Azeredo. Rio
em cada momento e circunstância. de Janeiro: BestSeller, 2012. (Coleção Cultura
Pensar e ponderar em cada momento e Pop, 1).

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