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STEFAN ZWEIG

O livro do xadrez

tradução
SILVIA BITTENCOURT

posfácio
MARIANA HOLMS
Sumário

Capa
Folha de rosto
Sumário
O livro do xadrez

POSFÁCIO
Xadrez: imaginar, relembrar e enxergar saídas de um jogo e um mundo polarizados

NOTAS
SOBRE O AUTOR
CRÉDITOS
No grande vapor de passageiros que à meia-noite zarparia de Nova York para Buenos
Aires reinava o vaivém agitado que costuma anteceder as partidas. Visitantes
aglomeravam-se para acompanhar os amigos; com seus quepes de lado, mensageiros de
telegramas berravam nomes pelos salões; malas e flores sassaricavam de lá para cá;
crianças corriam, curiosas, subindo e descendo as escadas, enquanto a orquestra tocava
sem parar. No convés superior, um tanto afastado do tumulto, eu conversava com um
conhecido quando flashes espocaram duas ou três vezes ao nosso lado — aparentemente,
alguma personalidade que repórteres ainda entrevistavam e fotografavam pouco antes da
partida. Meu amigo olhou a cena e sorriu: “O senhor tem uma ave rara a bordo, o
Czentovic”. Ao notar, pela expressão do meu rosto, que o nome não me dizia nada, ele
explicou: “Mirko Czentovic, o campeão mundial de xadrez. Ele participou de torneios nos
Estados Unidos de costa a costa, e agora vai à Argentina em busca de novos triunfos”.
De fato, eu me lembrava desse jovem campeão mundial e até mesmo de alguns
detalhes de sua carreira meteórica; e meu amigo, que lia os jornais com mais atenção do
que eu, podia complementá-los com uma série de anedotas. Havia cerca de um ano que de
repente Czentovic se vira ao lado dos mais reconhecidos mestres da arte do xadrez, como
Alekhine, Capablanca, Tartakower, Lasker, Bogoliubov; desde o aparecimento do
menino-prodígio Reshevsky, de sete anos,1 no torneio de xadrez de Nova York de 1922,
nunca a admissão de um completo desconhecido nessa seleta confraria causara tamanho
alvoroço, pois as qualidades intelectuais de Czentovic jamais poderiam prenunciar
carreira tão deslumbrante. Logo vazou que, na vida privada, esse mestre enxadrista era
incapaz de escrever, em qualquer língua, uma única frase sem erros ortográficos; além
disso, como um de seus colegas irritados debochara, indignado, “sua ignorância se
estendia equânime e universal a todas as áreas”. Filho de um barqueiro eslavo da região
setentrional do Danúbio, extremamente pobre, cuja única barcaça certa noite fora
abalroada por um vapor carregado de cereais, aos doze anos, depois da morte do pai, o
menino foi acolhido por piedade pelo padre daquela região remota; e o bom padre
esforçou-se com afinco para compensar, com aulas particulares noturnas, o que aquela
criança taciturna, apática e de testa larga não conseguia aprender na escola do vilarejo.
Mas os esforços foram em vão. Mirko olhava sem compreender as letras que lhe
haviam sido explicadas cem vezes; também para os assuntos mais simples faltava a seu
cérebro moroso qualquer capacidade de retenção. Com catorze anos ainda precisava da
ajuda dos dedos quando tinha de fazer contas; ler um livro ou um jornal significava para o
adolescente um esforço redobrado. A despeito disso, não se podia de modo algum dizer
que Mirko fizesse corpo mole ou fosse rebelde. Ele obedecia às ordens, buscava água,
cortava lenha, ajudava no campo, arrumava a cozinha e executava, consciencioso apesar
da lentidão irritante, todo serviço solicitado. Porém, o que mais aborrecia o bom padre
naquele rapaz estranho era sua total indiferença. Ele não fazia nada que não lhe fosse
pedido, nunca perguntava nada, não brincava com outros meninos e não procurava por
sua conta uma ocupação, a não ser que lhe ordenassem expressamente; assim que
terminava as tarefas domésticas, Mirko sentava-se no quarto com aquele olhar vazio de
ovelha no pasto, sem o menor interesse pelos acontecimentos ao redor. Enquanto à noite,
em meio a baforadas em seu cachimbo rústico, o padre jogava com o sargento local suas
três partidas habituais de xadrez, o menino tolo de mechas loiras agachava-se a seu lado,
mudo, e olhava com pálpebras pesadas, aparentemente sonolento e indiferente, o
tabuleiro quadriculado.
Numa noite de inverno, imersos em suas partidas cotidianas, os dois jogadores
ouviram os sininhos de um trenó vindo do vilarejo, tocando rápido e cada vez mais perto.
Um camponês com um gorro coberto de neve irrompeu, dizendo que sua velha mãe estava
prestes a morrer e que o padre deveria se apressar para lhe dar a extrema-unção. O
religioso seguiu-o sem hesitar. O sargento, que ainda não terminara seu copo de cerveja,
acendeu um novo cachimbo antes de ir embora e já se preparava para calçar as botas altas
e pesadas quando percebeu o olhar de Mirko grudado no tabuleiro com a partida
interrompida.
“Então, quer terminá-la?”, brincou, com a certeza absoluta de que o jovem sonolento
não saberia mover adequadamente uma única peça. O menino olhou-o tímido, assentiu
com a cabeça e ocupou o lugar do padre. Depois de catorze lances o sargento foi vencido
e, além disso, precisou admitir que sua derrota não se devia de modo algum a uma jogada
de acidental displicência. A segunda partida não foi diferente.
“Pela jumenta de Balaão!”, exclamou surpreso o padre ao voltar, explicando para o
sargento, menos familiarizado com a Bíblia, que dois mil anos antes já havia acontecido
milagre semelhante, quando uma criatura muda de repente encontrara a língua da
sabedoria. Apesar do adiantado da hora, o bom padre não conseguiu se conter e desafiou
seu fâmulo semianalfabeto para um duelo. Mirko também o venceu com facilidade. Ele
jogava devagar, resoluto e imperturbável, sem levantar uma única vez a testa larga do
tabuleiro. Apesar disso, jogava com uma segurança incontestável; nos dias que se
seguiram, nem o sargento nem o padre ganharam dele uma só partida que fosse. O padre,
que mais do que ninguém era capaz de avaliar o atraso do pupilo nas outras áreas, quis
saber até onde iria aquele talento único e singular se confrontado com adversários mais
competentes. Depois de mandar o barbeiro do vilarejo cortar os cabelos fulvos e
desgrenhados de Mirko, para tornar o rapaz minimamente apresentável, o padre o levou
em seu trenó para a aldeia vizinha. No café da praça principal havia um canto reservado a
um grupo de enxadristas aficionados, aos quais o próprio padre não se equiparava, como
sabia por experiência. Não foi pequeno o espanto naquela roda quando o religioso
empurrou para dentro do café o menino de quinze anos com cabelos loiros como palha e
bochechas vermelhas que vestia pelo avesso o casaco de pele de carneiro e calçava botas
altas e pesadas. O jovem permaneceu de pé num canto, desconcertado, com seus olhos
tímidos e abatidos, até que o chamaram para uma das mesas. Mirko perdeu a primeira
partida, pois na casa do bom padre nunca se deparara com a chamada defesa siciliana. Na
segunda ele empatou com o melhor jogador. A partir da terceira e da quarta, derrotou
todos eles, em sequência.
Ora, raramente ocorrem eventos expressivos em pequenas cidades de uma província
eslava meridional; por isso, para os respeitáveis cidadãos ali reunidos, o aparecimento
súbito desse campeão campesino tornou-se uma sensação instantânea. Decidiram por
unanimidade que o menino-prodígio deveria ficar na cidade até o dia seguinte, para que
pudessem reunir os outros membros do clube de xadrez, e sobretudo avisar em seu castelo
o conde Simczic, um entusiasta do jogo. O padre olhava para seu protegido com um
orgulho totalmente novo, mas apesar da alegria de sua descoberta não queria perder a
missa dominical obrigatória, e portanto dispôs-se a deixar Mirko na cidade para uma
nova prova. O jovem Czentovic foi alojado no hotel, às custas do grupo do xadrez, e nessa
noite viu pela primeira vez um vaso sanitário. Na tarde do dia seguinte, um domingo, a
sala estava lotada. Sentado rigidamente por quatro horas diante do tabuleiro, Mirko
venceu um jogador atrás do outro, sem pronunciar palavra nem desviar os olhos. Então
lhe propuseram uma partida simultânea. Foi preciso um tempo até que aquele menino
ignorante compreendesse que, numa partida simultânea, ele teria de enfrentar sozinho e
ao mesmo tempo vários jogadores. Contudo, assim que entendeu essa variante do jogo,
Mirko familiarizou-se rápido e, andando devagar de mesa em mesa com seus sapatos
pesados e barulhentos, venceu sete das oito partidas.
Começou então uma grande discussão. Apesar de não pertencer à cidade no sentido
estrito, o novo campeão inflamara vivamente o orgulho dos habitantes. Talvez a
cidadezinha, cuja existência no mapa quase ninguém notara até então, pudesse pela
primeira vez ter a honra de exibir ao mundo um homem famoso. Um empresário de nome
Koller, que em geral intermediava apenas cançonetistas e cantoras para o cabaré da
guarnição local, prontificou-se a cuidar do jovem, desde que por um ano contribuíssem
com um auxílio para que ele tivesse em Viena uma formação qualificada na arte do xadrez,
junto a um renomado mestre que ele conhecia. O conde Simczic, que nunca em sessenta
anos de partidas diárias de xadrez confrontara adversário tão peculiar, providenciou o
montante de imediato. Foi nesse dia que começou a carreira surpreendente do filho do
barqueiro.
Depois de meio ano, Mirko dominava todos os segredos da técnica do xadrez, mas
tinha uma estranha limitação, que seria muito comentada e ridicularizada entre os
especialistas. Czentovic jamais conseguia memorizar uma única partida — ou jogar às
cegas, como se diz entre os conhecedores. Faltava-lhe por completo a capacidade de
projetar o tabuleiro no espaço ilimitado da fantasia. Ele sempre precisava ter à mão, e
diante dos olhos, o quadrado preto e branco com as sessenta e quatro casas e trinta e duas
peças; mesmo quando já era famoso no mundo todo, se queria reconstruir a partida de um
mestre ou encontrar a solução de um problema, para visualizar de maneira clara a posição
servia-se sempre de um xadrez de bolso dobrável que levava consigo. Essa característica,
em si irrelevante, revelava sua falta de imaginação e era calorosamente discutida em
grupos restritos, assim como acontece entre os músicos no caso de um virtuoso ou
maestro excepcional se mostrar incapaz de tocar ou reger sem dispor da partitura diante
dos olhos. Mas essa estranha particularidade não atrasou de modo algum a estupenda
ascensão de Mirko. Com dezessete anos ele já ganhara uma dúzia de prêmios; com
dezoito, o campeonato húngaro; com vinte, por fim, conquistara o campeonato mundial.
Os mais ousados campeões, vezes sem conta superiores a Mirko em talento intelectual,
imaginação e audácia, sucumbiram igualmente à sua lógica dura e fria, como Napoleão se
rendeu ao pesado Kutuzov, e Aníbal, a Fábio Cunctatório — que, conta Lívio, na infância
também mostrava traços de indolência e imbecilidade. Foi assim que, pela primeira vez,
ele invadiu a ilustre galeria dos campeões de xadrez, que reunia em suas fileiras os mais
variados expoentes de superioridade intelectual — filósofos, matemáticos, naturezas
capazes de calcular, idealizar e criar —, um completo estranho ao mundo erudito, um
jovem camponês moroso, monossilábico, do qual nem os repórteres mais astutos
conseguiam tirar uma única palavra que valesse a pena ser publicada. Se era inegável que
Czentovic privava os jornais de tiradas espertas, ele logo lhes fornecia abundantes
anedotas sobre sua pessoa, pois assim que levantava do tabuleiro, na condição de mestre
sem precedentes, passava a ser uma figura irremediavelmente grotesca e quase cômica;
apesar da veste preta solene, da gravata pomposa com um alfinete de pérola um pouco
chamativo e das unhas feitas com esmero, em comportamento e modos ele continuava o
mesmo camponês limitado do vilarejo, ocupado em varrer a sala do padre. Desajeitado e
absolutamente tosco, procurava, para diversão e raiva de seus pares, extrair de seu
talento e seu renome todo dinheiro possível. Viajava por toda parte, hospedando-se nos
hotéis mais baratos; jogava nos clubes mais deploráveis — contanto que pagassem seus
honorários —; expunha a cara em anúncios de sabão e, sem dar a mínima à zombaria dos
adversários, cientes de que ele era incapaz de escrever três frases corretas, até vendeu seu
nome para uma Filosofia do xadrez, escrita por um estudantezinho da Galícia a soldo de
um editor bom de negócios. Como acontece com todas as naturezas obstinadas, faltava-
lhe senso de ridículo; desde a vitória no torneio mundial, considerava-se o homem mais
importante do mundo. A consciência de ter vencido todos esses oradores brilhantes,
exímios escritores, deslumbrantes no campo deles, e sobretudo o fato de ter ganhado mais
dinheiro do que eles transformaram sua insegurança original numa presunção fria,
expressa na maioria das vezes sem nenhuma fineza.
“Mas como tão galopante sucesso não perturbaria cabeça tão vazia?”, concluiu meu
amigo, que acabara de me confiar algumas amostras clássicas da prepotência infantil de
Czentovic. “Como um jovem camponês de vinte e um anos, oriundo do Banato, não teria
um surto de vaidade ao ganhar de repente, numa semana, mais do que todo o vilarejo
amealhava num ano derrubando árvores e trabalhando duro? E isso apenas deslocando
umas peças sobre um tabuleiro de madeira. Além disso, diacho, é ou não fácil se
considerar um grande homem quando não se tem a menor ideia de que um dia existiu um
Rembrandt, um Beethoven, um Dante ou um Napoleão? Em seu cérebro limitado, o
garoto só retém uma coisa: que há meses ele não perde uma única partida de xadrez. E
como não imagina haver no mundo outros valores além de xadrez e dinheiro, tem todos os
motivos para estar satisfeito consigo mesmo.”
As observações de meu amigo só aguçavam minha curiosidade. Tipos monomaníacos,
com uma ideia fixa, sempre me fascinaram, pois quanto mais limitado é o campo de
interesse de uma pessoa, mais próxima ela está do infinito; são esses tipos aparentemente
alheios à realidade que constroem, em sua especialidade, uma miniatura estranha e
completamente única do mundo — ao modo dos cupins. Por isso não escondi minha
intenção de, ao longo dos doze dias de viagem até o Rio de Janeiro, examinar de perto tal
espécime de limitação intelectual tão particular.
“Mas o senhor não terá muita sorte”, meu amigo me preveniu. “Que eu saiba, ninguém
conseguiu arrancar nada de Czentovic, nenhum traço de sua psique. Atrás de toda a sua
limitação abissal, esse camponês perspicaz esconde uma esperteza ímpar, a de não baixar
a guarda. E isso mediante o mero expediente de evitar qualquer conversa, salvo com seus
conterrâneos, com o pessoal de seu meio, que encontra em pequenas estalagens. Se
percebe a presença de uma pessoa instruída, ele se encaramuja; assim, ninguém pode se
gabar de ter ouvido dele uma única palavra estúpida ou de ter conseguido medir a
extensão supostamente ilimitada de sua ignorância.”
De fato, meu amigo tinha razão. Nos primeiros dias de viagem, foi totalmente
impossível me aproximar de Czentovic sem ser inconveniente, o que não é do meu feitio.
Às vezes ele caminhava pelo convés superior, mas sempre com as mãos cruzadas nas
costas, orgulhoso, naquela pose de Napoleão em sua célebre imagem; além disso, sempre
cumpria sua volta peripatética pelo convés tão apressado e impaciente que seria preciso
correr atrás dele para abordá-lo. Por outro lado, jamais aparecia nas festas, no bar, no
salão de fumantes; como o comissário de bordo me segredou, ele passava a maior parte do
dia na cabine, treinando ou recapitulando partidas de xadrez num enorme tabuleiro.
Passados três dias, irritou-me constatar que sua hábil técnica de defesa pudesse
resistir à minha determinação de me aproximar. Nunca havia tido a oportunidade de
conhecer um mestre de xadrez em pessoa, e quanto mais me esforçava para personificar
tal tipo, mais inimaginável me parecia uma atividade cerebral que girava a vida inteira
exclusivamente em torno de um espaço de sessenta e quatro casas pretas e brancas.
Conhecia por experiência própria a atração misteriosa desse “jogo dos reis”, que de todos
aqueles inventados pelo homem é o único que escapa, soberano, à tirania do acaso, e cujos
prêmios são atribuídos apenas ao intelecto, ou melhor, a certo talento intelectual. Mas
denominar o xadrez um jogo já não é proceder a uma redução ofensiva? Ele também não é
uma ciência, uma técnica, uma arte, não flutua entre essas categorias como o túmulo de
Maomé entre o céu e a Terra, não é uma ligação única de todos os pares opostos —
antiquíssimo mas eternamente novo, mecânico em sua estrutura mas só eficaz por meio
da fantasia, limitado no espaço rigidamente geométrico e ao mesmo tempo infinito em
suas combinações? Não está em permanente evolução, ao mesmo tempo que segue estéril,
pensamento que não leva a nada, matemática que nada calcula, arte sem obras,
arquitetura sem substância, e mesmo assim é mais constante em sua existência do que
todos os livros e obras? Não é o único jogo que pertence a todos os povos e todos os
tempos, e ninguém sabe qual deus o trouxe ao mundo para dar cabo da monotonia, afiar
os sentidos e expandir a alma? Onde nele é o começo e onde é o fim? Qualquer criança
consegue aprender suas regras básicas, qualquer diletante pode arriscar; e ainda assim
esse jogo consegue, dentro de um quadrado limitado e inalterável, criar mestres
incomparáveis, pessoas com um talento direcionado só para o xadrez, gênios específicos,
nos quais visão, paciência e técnica são igual e exatamente distribuídas, como no caso de
um matemático, um poeta, um músico, mas apenas numa outra disposição e combinação.
Nos tempos antigos de paixão pela fisiognomonia, talvez um Gall tivesse dissecado o
cérebro dos mestres enxadristas em busca de determinada dobra na massa cinzenta do
cérebro, certo músculo enxadrístico ou protuberância enxadrística, presentes de forma
mais acentuada do que em outros crânios. E como o caso de um Czentovic teria atraído tal
fisiognomonista, uma vez que aquele gênio específico parece encapsulado numa apatia
intelectual absoluta, qual um único fio de ouro em toneladas de minério sem valor! Em
princípio, eu compreendia que um jogo tão excepcional, tão genial, precisasse engendrar
seus próprios matadores, mas era difícil, ou mesmo impossível, imaginar a vida de uma
pessoa mentalmente ativa, mas para a qual o mundo se reduz ao movimento entre preto e
branco, uma pessoa em busca de triunfos na vida num mero vaivém, em movimentos para
a frente e para trás de trinta e duas peças, para quem, no caso de uma nova abertura,
avançar o cavalo em vez do peão significa uma proeza e a obtenção de um mísero pedaço
de imortalidade numa nota de rodapé de algum livro técnico — um ser humano, um ser
intelectual, que ao longo de dez, vinte, trinta, quarenta anos, dedica, sem enlouquecer,
toda a força de seu pensamento à ridícula missão de acuar um rei de madeira no canto de
um tabuleiro!
Pela primeira vez esse fenômeno, esse gênio insólito, ou esse tolo enigmático, estava
fisicamente bem perto de mim, a seis cabines de distância no mesmo navio, e eu, cuja
curiosidade por questões mentais sempre descambava para uma espécie de paixão, tinha a
desventura de não conseguir me aproximar dele. Comecei a imaginar os mais absurdos
estratagemas: provocá-lo em sua vaidade, simulando uma entrevista para um jornal
importante, ou pegá-lo em sua ganância, propondo-lhe um torneio lucrativo na Escócia.
Por fim, lembrei que a melhor técnica dos caçadores para atrair o galo silvestre consistia
em imitar seu grito; o que poderia ser mais eficaz do que chamar a atenção de um mestre
de xadrez se não jogar uma partida, eu e alguém mais?
Nunca fui, porém, um jogador que pudesse ser levado a sério, e isso pela simples razão
de que encarava o xadrez com leveza, visando exclusivamente minha diversão; quando me
sento por uma hora diante do tabuleiro, não o faço para quebrar a cabeça, pelo contrário,
jogo para relaxar a mente. Eu “jogo” xadrez no sentido estrito da palavra, enquanto os
outros, os verdadeiros enxadristas, “austeram” o xadrez, para cunhar um neologismo
atrevido na língua alemã, algo que Hitler proibira. Bem, assim como para o amor, também
para o xadrez um parceiro é imprescindível, e eu ainda não sabia se havia a bordo, além de
nós dois, outros aficionados. Para tirá-los de suas tocas, montei uma armadilha bem
primitiva no smoking room, postando-me diante de um tabuleiro com minha mulher — que
jogava de modo ainda mais precário do que eu —, agindo como um caçador de pássaros.
De fato, antes de completarmos seis jogadas, alguém que passava parou, e um outro pediu
permissão para assistir; finalmente apareceu o parceiro desejado, que me desafiou para
uma partida. Chamava-se McConnor e era um engenheiro civil escocês que, como eu
ouvira falar, havia feito fortuna com poços de petróleo na Califórnia; era um homem
robusto, com queixo forte e duro, quase quadrado, dentes grandes e um rosto bem corado,
cuja vermelhidão pronunciada provavelmente se devia, pelo menos em parte, ao consumo
excessivo de uísque. Os ombros bastante largos, atléticos até, infelizmente se faziam
notar no jogo, como uma pista de seu temperamento, pois esse Mister McConnor
pertencia àquele grupo de homens bem-sucedidos que consideravam uma derrota, ainda
que no jogo mais banal, um insulto à sua autoestima. Acostumado a se impor sem levar em
consideração os outros, e mal-acostumado por seu sucesso, esse self-made man maciço
estava tão imbuído de sua superioridade que qualquer resistência o provocava como uma
insubordinação absurda ou mesmo uma ofensa. Quando perdeu a primeira partida,
irritou-se e começou a explicar pormenorizada e autoritariamente que aquilo se devia a
uma desatenção momentânea; na terceira, atribuiu seu fracasso ao barulho na sala
vizinha; nunca perdia uma partida sem logo exigir uma revanche. No início, essa
obstinação agressiva me divertiu; depois, aceitei-a como um efeito colateral inevitável a
meu verdadeiro propósito de atrair o campeão mundial para nossa mesa.
No terceiro dia obtive sucesso, ainda que parcial. Não sei se Czentovic nos observou
do convés superior, através da escotilha em frente ao tabuleiro, ou se por acaso nos
honrou com sua presença no smoking room — de todo modo, assim que entrou e viu
diletantes como nós jogando, desautorizados a praticar sua arte, sem querer deu um passo
para mais perto e lançou dessa distância calculada um olhar examinador sobre a partida.
Era a vez de McConnor. A jogada lhe pareceu a prova cabal de que seria bem pouco digno
do interesse de um mestre acompanhar nossos esforços amadores. Com o mesmo gesto
com o qual, numa livraria, descartaríamos, sem ao menos folhear, um romance policial
ruim que nos fosse oferecido, ele se afastou da nossa mesa e deixou o smoking room.
“Pesou na balança e achou leve demais”, pensei, um pouco agastado com aquele olhar frio
e insultuoso, e para de algum modo aliviar meu desagrado, disse a McConnor:
“Parece que sua jogada não entusiasmou muito o campeão.”
“Que campeão?”
Expliquei-lhe que aquele senhor que acabara de passar por nós, com um olhar de
reproche para nosso jogo, era o campeão mundial de xadrez Czentovic. Acrescentei que
nós dois resistiríamos e, sem sofrimento, nos resignaríamos com aquele ilustre desprezo;
afinal, quem pode pode, quem não pode se sacode. Para minha surpresa, meu comentário
fortuito exerceu um efeito totalmente inesperado sobre McConnor. No mesmo instante
ele se exaltou, esqueceu nossa partida, e sua competitividade se manifestou às claras.
Disse que não fazia a menor ideia de que Czentovic estivesse a bordo e que precisava se
bater contra ele, sem falta. Que nunca na vida enfrentara um campeão mundial, a não ser
uma vez, numa partida simultânea com mais quarenta pessoas; que tal evento fora
emocionante ao extremo, e que ele quase ganhara. Perguntou se eu conhecia o campeão de
xadrez pessoalmente. Respondi que não. Se não queria abordá-lo e convidá-lo. Disse que
não, justificando que, pelo que ouvira dizer, Czentovic não era muito acessível. Além
disso, por que um campeão mundial jogaria conosco, diletantes de terceira categoria?
Bem, essa coisa de jogadores de terceira categoria eu não deveria ter dito a um homem
tão competitivo como McConnor. Abespinhado, ele se inclinou para trás na cadeira e,
ríspido, declarou que, de sua parte, não podia aceitar que Czentovic recusasse a
solicitação cordial de um cavalheiro, e que ele mesmo cuidaria disso. Perguntou-me como
era o campeão mundial, e após uma breve descrição minha, abandonando nosso tabuleiro
com indiferença, com uma impaciência incontrolável, ele logo foi ao encalço do homem
no convés superior. Mais uma vez senti que seria impossível deter aqueles ombros largos
enquanto estivessem determinados a fazer alguma coisa.
Esperei um tanto apreensivo. Uns dez minutos depois, McConnor voltou; não parecia
muito animado.
“E então?”, perguntei.
“O senhor tinha razão”, ele respondeu, com uma leve irritação. “Não é um cavalheiro
muito agradável. Apresentei-me, explicando quem sou. Ele nem me estendeu a mão.
Tentei convencê-lo de como todos a bordo ficaríamos orgulhosos e honrados se jogasse
uma partida simultânea contra nós. Mas ele não se comoveu; sentia muito, mas tinha
compromissos contratuais com seus agentes que o proibiam terminantemente de jogar
sem honorários. Seu cachê mínimo era duzentos e cinquenta dólares por partida.”
Ri. “Jamais imaginaria que mover peças da casa preta para a branca fosse um negócio
tão lucrativo. Espero que o senhor tenha recusado com a mesma cordialidade.”
McConnor, contudo, permaneceu absolutamente sério. “A partida está marcada para
amanhã à tarde, às três horas. Aqui no smoking room. Espero que não sejamos
massacrados com muita facilidade.”
“Como? O senhor aceitou os duzentos e cinquenta dólares?”, exclamei, perplexo.
“Por que não? C’est son métier. Se por acaso eu tivesse dor de dente e houvesse um
dentista a bordo, eu não esperaria que ele me tirasse o dente de graça. O homem tem toda
a razão de cobrar um preço alto; em qualquer área, os verdadeiros especialistas são os
melhores homens de negócio. E no que me diz respeito, quanto mais claro um negócio,
melhor. Prefiro pagar em cash do que aceitar misericórdia de um senhor Czentovic e
ainda ter de lhe agradecer no final. Além disso, no nosso clube já perdi mais de duzentos e
cinquenta dólares numa noite, e nem joguei com um campeão mundial. Para jogadores ‘de
terceira categoria’ não é nenhuma vergonha ser derrubado por um Czentovic.”
Divertiu-me perceber como ferira a autoestima de McConnor com as inocentes
palavras “jogadores de terceira categoria”. No entanto, como em sua ambição descabida
ele estava disposto a pagar por aquela diversão dispendiosa, eu não tinha nada contra; ele
enfim me proporcionaria o acesso ao objeto de minha curiosidade. Falamos do evento
iminente com os quatro ou cinco senhores que até então haviam se declarado jogadores de
xadrez e, para sermos perturbados o mínimo possível por frequentes transeuntes,
reservamos de antemão para o match não apenas a nossa, mas também as mesas vizinhas.
No dia seguinte, nosso pequeno grupo compareceu, sem faltar ninguém, na hora
combinada. A cadeira do meio, em frente ao mestre, foi evidentemente cedida a
McConnor, que, agitado, descarregava o nervosismo acendendo um charuto atrás do
outro e não tirava os olhos do relógio. Mas o campeão mundial — como eu previra depois
do relato de meu amigo — deixou-nos esperando por uns bons dez minutos, o que, aliás,
fez sua chegada angariar atenção ainda maior. Ele se aproximou da mesa tranquilo e
sereno. Sem se apresentar — “Vocês sabem quem eu sou e quem vocês são não me
interessa”, era o que parecia sugerir essa indelicadeza —, começou a dar instruções
práticas com a aridez de um especialista. Como seria impossível uma partida simultânea a
bordo, dada a escassez de tabuleiros, sugeriu que todos nós, juntos, jogássemos contra
ele. Depois de cada jogada, ele se sentaria numa mesa afastada, para não perturbar nossa
discussão. Assim que completássemos a jogada, como lamentavelmente não tínhamos à
mão um relógio de mesa, deveríamos bater num copo com uma colher. Ele propôs dez
minutos como tempo máximo para cada lance, a menos que quiséssemos outro arranjo.
Como alunos envergonhados, concordamos com cada proposta, é evidente. No sorteio
das cores, Czentovic ficou com as pretas; ele respondeu à primeira jogada ainda de pé e
logo dirigiu-se ao local de espera que havia sugerido, onde passou a folhear uma revista,
impassível.
Não faz muito sentido falar sobre a partida. Ela terminou obviamente do jeito que
deveria terminar, com uma derrota avassaladora nossa ainda no vigésimo quarto lance.
Que um campeão mundial de xadrez arrase sem dificuldade meia dúzia de jogadores
medianos, se tanto, era, em si, pouco surpreendente; o que nos aborreceu, na verdade, foi
o jeito arrogante com o qual Czentovic nos fez sentir que havíamos sido liquidados com
um pé nas costas. Toda vez ele dava uma espiada no tabuleiro e passava por nós
indiferente, como se fôssemos peças de xadrez, de madeira, sem vida, e esse gesto
desrespeitoso lembrava involuntariamente o olhar de esguelha que lançamos a um cão
sarnento quando lhe atiramos um naco de comida. Penso que, se fosse minimamente
delicado, ele poderia nos ter chamado a atenção para nossos erros ou nos incentivado com
uma palavra gentil. Nem no final do jogo, no entanto, essa desumana máquina de xadrez
pronunciou uma única sílaba, e depois de dizer “xeque-mate” ficou imóvel na frente da
mesa, à espera de que nos manifestássemos sobre uma eventual segunda partida.
Desamparado como costumamos ficar diante de uma tremenda grosseria, eu já havia me
levantado — sugerindo com o gesto que, pelo menos da minha parte, o prazer de nosso
contato terminava ali, com aquela transação em dólar concluída — quando, para minha
irritação, McConnor, a meu lado, disse com voz bem rouca: “Revanche!”.
Espantou-me o tom desafiador; de fato, nesse momento McConnor mais parecia um
boxeador antes do golpe do que um cavalheiro cordial. Se esse era o tipo desagradável de
tratamento que Czentovic queria nos dar ou apenas sua ambição patologicamente
irritável, de qualquer forma McConnor estava fora de si. Com o rosto vermelho até a raiz
dos cabelos e as narinas dilatadas, ele transpirava de modo visível, e dos lábios contraídos
salientava-se uma ruga em direção ao maxilar proeminente que lhe conferia uma
aparência de lutador. Preocupado, reconheci em seus olhos aquele lampejo de paixão
incontrolável que só costuma tomar as pessoas na mesa da roleta, quando na sexta ou
sétima vez, sempre com a aposta dobrada, não sai a cor certa. Soube então que esse
homem ambicioso e obcecado jogaria, jogaria e jogaria, fazendo apostas simples ou
dobradas o tempo necessário até vencer pelo menos uma vez, mesmo que isso custasse
toda a sua fortuna. Se Czentovic aguentasse, encontraria em McConnor uma mina de
ouro, da qual poderia extrair alguns milhares de dólares até Buenos Aires.
Czentovic permaneceu impassível. “Por favor”, respondeu com cordialidade. “Agora
os senhores jogam com as pretas.”
A segunda partida não foi diferente, a não ser pela chegada de alguns curiosos que não
só engrossaram nosso círculo como também o deixaram mais animado. McConnor fitava
o tabuleiro como se quisesse magnetizar as peças com seu desejo de vitória. Senti que ele
também teria sacrificado mil dólares pelo grito de “mate!” contra aquele adversário
insensível. O curioso é que um tanto de sua obstinada excitação passou
inconscientemente para nós. Cada lance era discutido de modo muito mais apaixonado do
que antes, e toda vez um segurava o outro no último momento, antes de concordarmos
com o lance e darmos o sinal para Czentovic voltar ao tabuleiro. Aos poucos chegamos à
décima sétima jogada, quando, para nossa própria surpresa, o jogo pareceu
inacreditavelmente vantajoso para nós, pois tínhamos conseguido levar o peão da coluna
c até a penúltima casa, a c2; precisávamos apenas avançá-lo para c1 para promovê-lo a
dama. Para ser sincero, não estávamos muito tranquilos com aquela chance óbvia demais;
todos, sem exceção, suspeitávamos que Czentovic, com uma visão muito mais clara da
conjuntura, tivesse nos empurrado de propósito até aquela vantagem que aparentemente
havíamos conquistado, como um anzol de pesca. A despeito das discussões acaloradas e
das investigações coletivas, não conseguimos detectar a armadilha. Por fim, quase no
limite do tempo para concluir o lance, decidimos ousar. McConnor já tocava o peão para
movê-lo para a última casa quando de repente sentiu alguém agarrar seu braço e
sussurrar, baixinho e com ênfase: “Pelo amor de Deus! Não!”.
Todos nos viramos espontaneamente. Um senhor de uns quarenta e cinco anos, cujo
rosto fino e incisivo já me chamara a atenção no convés superior, sobretudo por sua
estranha palidez, branca como giz, devia ter se aproximado nos últimos minutos,
enquanto estávamos concentrados no problema. Percebendo nosso olhar, ele acrescentou
apressado:
“Se o senhor promover o peão a dama agora, ele vai capturá-la imediatamente
movendo o bispo para c1, então o senhor deve recuar o cavalo… Mas em seguida ele irá
com o peão passado dele para d7, ameaçará sua torre e, mesmo que o senhor dê xeque com
o cavalo, o senhor perderá, e depois de nove ou dez jogadas estará liquidado. É quase a
mesma posição que Alekhine introduziu contra Bogoliubov em 1922, no grande torneio de
Piestany.”
Espantado, McConnor largou a peça e, não menos perplexo do que todos nós, fitou
aquele anjo inesperado que caíra do céu para ajudar. Alguém que conseguia calcular um
mate com antecedência de nove jogadas deveria ser um especialista de primeira linha,
talvez até mesmo um concorrente ao título a caminho do mesmo torneio; seu
aparecimento súbito, sua intervenção num momento tão crítico era quase sobrenatural.
McConnor foi o primeiro a se recompor:
“O que o senhor aconselharia?”, sussurrou, excitado.
“Não avançar de imediato, mas desviar primeiro! Sobretudo, afastar o rei da coluna
ameaçada, de g8 para h7. Provavelmente, então, ele passará a atacar pela outra ala. Mas o
senhor fará a defesa levando a torre de c8 para c4; isso vai custar a ele dois movimentos do
peão e, assim, sua vantagem. Então teremos peão passado contra peão passado e, se o
senhor se mantiver devidamente na defensiva, conseguirá um empate. Mais do que isso
não será possível tirar daí.”
Mais uma vez ficamos surpreendidos. Tanto a precisão como a rapidez de seus
cálculos eram perturbadoras; era como se estivesse lendo as jogadas num livro impresso.
De qualquer modo, graças à sua intervenção, a chance inesperada de levar nossa partida
contra um campeão mundial para um empate parecia mágica. Desviamo-nos todos para o
lado, para dar-lhe uma visão mais livre do tabuleiro. McConnor perguntou de novo:
“Então o rei de g8 para h7?”
“Com certeza! O importante é escapar!”
McConnor obedeceu, e batemos no copo. Czentovic aproximou-se com seu passo
sempre inalterável e avaliou nosso lance. Então moveu o peão na ala do rei de h2 para h4,
exatamente como previra nosso colaborador desconhecido. E de novo este sussurrou,
animado:
“A torre para a frente, a torre para a frente, de c8 para c4, daí ele precisará primeiro
cobrir o peão. Mas isso não o ajudará em nada! O senhor atacará com o cavalo de c3 para
d5, sem se preocupar com o peão passado dele, e o equilíbrio estará restabelecido. A
pressão toda agora é no ataque, e não na defesa.”
Não entendemos a que ele se referia. Para nós, o que dizia era grego. Porém, como já
estava dominado, McConnor jogou sem refletir, como lhe fora ordenado. Batemos de
novo no copo para chamar Czentovic. Pela primeira vez ele não se decidiu num instante,
mas fitou, tenso, o tabuleiro. Suas sobrancelhas juntaram-se involuntariamente. Até que
ele fez justo a jogada que aquele desconhecido havia anunciado e virou-se para sair. Antes
de se afastar, aconteceu uma coisa nova e inesperada. Czentovic levantou os olhos e
examinou nosso grupo; pelo visto, queria descobrir quem é que de repente lhe oferecia
resistência tão vigorosa.
A partir desse momento, nossa excitação aumentou desmedidamente. Se até então
havíamos jogado sem uma esperança substancial, agora a ideia de quebrar a fria
presunção de Czentovic provocava um calor que nos corria pelas veias. No entanto, logo
nosso novo amigo comandava o lance seguinte, e pudemos chamar Czentovic de volta —
meus dedos tremiam quando bati a colher no copo. E assim aconteceu nosso primeiro
triunfo. Czentovic, que até então só jogara de pé, hesitou, hesitou, e acabou por sentar-se.
Sentou-se vagaroso, pesadão; entretanto, com essa atitude, já do ponto de vista físico
estava suspensa aquela relação de cima para baixo entre ele e nós. Nós o havíamos
obrigado, pelo menos no âmbito espacial, a se dirigir a nós no mesmo plano. Fleumático,
ele refletiu por longos momentos com os olhos abaixados sobre o tabuleiro, de modo que
era quase impossível perceber as pupilas sob as pálpebras pesadas; naquela reflexão
intensa, a boca foi se abrindo aos poucos, conferindo a seu rosto redondo uma expressão
meio estúpida. Czentovic pensou por alguns minutos, até que fez sua jogada e se levantou.
Nosso amigo já sussurrava:
“Um lance de espera! Bem pensado! Mas não caia nessa! Force a troca, de qualquer
jeito, force a troca, pois daí chegamos a um empate e nem Deus poderá ajudá-lo.”
McConnor obedeceu. Nas jogadas seguintes, começou entre os dois um vaivém para
nós incompreensível — já havia muito fôramos reduzidos a meros figurantes. Depois de
umas sete jogadas, após uma longa reflexão, Czentovic ergueu os olhos e declarou:
“Empate!”.
Por um momento o silêncio foi total. De repente podíamos ouvir o marulhar das ondas
e o jazz vindo do rádio do salão; escutávamos cada passo no convés superior e o sibilar
baixo e fino do vento que entrava pelas frestas das escotilhas. Nenhum de nós respirava,
tudo acontecera repentinamente, e todos ainda estávamos assustados diante daquela
situação inverossímil: um desconhecido impusera sua vontade ao campeão mundial, numa
partida já quase perdida. McConnor recostou-se na cadeira num movimento brusco, a
respiração contida soltou-se perceptivelmente dos lábios num “Ah!” satisfeito. Eu, de
minha parte, observava Czentovic. Já na última jogada pareceu-me que empalidecera.
Mas ele sabia se controlar. Permaneceu em sua rigidez aparentemente impassível e,
enquanto arrumava com as mãos calmas as peças do tabuleiro, perguntou, como quem não
quer nada:
“Os senhores desejam uma terceira partida?”
Czentovic lançou a questão com objetividade, como se estivesse fazendo um negócio.
Porém, saltou aos olhos que nesse momento ele não tenha fitado McConnor, mas tenha se
voltado, de modo direto e penetrante, a nosso salvador. Qual um cavalo que reconhece um
cavaleiro novo e melhor pela maneira firme de montar, ele parecia ter reconhecido nas
últimas jogadas o verdadeiro adversário. Sem querer, seguimos seu olhar e observamos,
tensos, o desconhecido. Contudo, antes que este pudesse refletir ou mesmo responder,
McConnor, em seu entusiasmo competitivo, já gritava, triunfante, em sua direção:
“Sem dúvida! Mas agora o senhor tem de jogar sozinho contra ele! O senhor contra
Czentovic!”
Então aconteceu uma coisa inesperada. O desconhecido, que curiosamente ainda
fitava, tenso, o tabuleiro arrumado, assustou-se, pois todos os olhares se voltaram
animados para ele. Sua expressão era de desconcerto.
“De jeito nenhum, senhores”, balbuciou, com uma visível apreensão. “Isso é
totalmente impossível… Está completamente fora de cogitação… Faz vinte, não, faz vinte
e cinco anos que me sentei a última vez diante de um tabuleiro de xadrez e… E só agora
vejo como me comportei de modo inconveniente, intrometendo-me no jogo dos senhores
sem pedir permissão… Perdoem, por favor, a minha impertinência… De jeito nenhum
quero continuar atrapalhando.” Antes de conseguirmos nos recompor da surpresa, ele já
se retirava, deixando a sala.
“Mas não é possível!”, retumbou o temperamental McConnor, batendo com o punho
na mesa. “É absolutamente inacreditável que esse homem não tenha jogado xadrez por
vinte e cinco anos! Ele calculou cada lance, cada resposta, antecipando cinco, seis
jogadas. Ninguém consegue isso sem mais nem menos. Está fora de questão, não acham?”
Com a última pergunta, McConnor se dirigira involuntariamente a Czentovic. Mas o
campeão mundial permanecia frio, inabalável.
“Não sou capaz de fazer um julgamento. De todo modo, aquele senhor jogou de
maneira interessante, pouco convencional; por isso dei-lhe de propósito uma chance.” E
então, levantando-se com indiferença, acrescentou, sempre de modo objetivo:
“Caso o senhor ou os senhores desejem mais uma partida amanhã, estou à disposição a
partir das três horas.”
Não conseguimos conter um leve sorriso. Sabíamos que não havia hipótese de
Czentovic ter sido generoso ao dar uma chance a nosso colaborador desconhecido e que
sua observação não passava de uma desculpa ingênua para mascarar seu fracasso. Assim,
mais forte tornou-se nosso desejo de ver humilhado aquele orgulho inabalável. Nesse
momento, nós, passageiros pacíficos e tranquilos, fomos tomados por um espírito bélico
feroz e urgente, pois a ideia de que em nosso navio, no meio do oceano, os louros da
vitória pudessem ser arrebatados do campeão de xadrez — um recorde que seria
disparado para o mundo inteiro por todas as agências de telégrafo — nos fascinava como
um desafio. Acrescente-se a isso a atração pelo misterioso, vinda da intervenção
inesperada de nosso salvador num momento crítico, e o contraste entre sua modéstia
quase temerosa e a autoconfiança inabalável do especialista. Quem era esse
desconhecido? Será que o acaso trouxera à luz um gênio do xadrez ainda não descoberto?
Ou será que um mestre famoso não queria nos revelar seu nome por algum motivo
secreto? Excitados, discutimos todas as possibilidades: mesmo as hipóteses mais ousadas
não nos pareciam ousadas o bastante para conciliar a timidez enigmática e a confissão
surpreendente do desconhecido, de inequívoca habilidade para jogar. Numa questão,
porém, estávamos de acordo: não abdicaríamos do espetáculo de um novo combate.
Decidimos tentar de tudo para que no dia seguinte nosso colaborador jogasse uma partida
contra Czentovic, ao passo que McConnor se comprometia a assumir os riscos materiais
dos dois. Por meio de um comissário de bordo descobrimos que o desconhecido era
austríaco, e assim, na condição de seu conterrâneo, recebi a incumbência de levar-lhe
nosso pedido.
Não demorou e logo encontrei o homem que fugira tão depressa. Ele estava no convés
superior, deitado numa espreguiçadeira, lendo. Antes de me aproximar, pude observá-lo.
A cabeça bem delineada descansava sobre a almofada numa atitude de leve fadiga; de
novo chamou-me a atenção a estranha palidez do rosto relativamente jovem, cujas
têmporas eram emolduradas por cabelos impressionantemente brancos. Não sei por quê,
mas tive a sensação de que aquele homem envelhecera de repente. Mal cheguei perto e ele
se levantou, apresentando-se de modo cordial, com nome e sobrenome — que eu conhecia
bem, pois pertencia a uma ilustre e tradicional família austríaca. Lembrei-me de que um
portador desse sobrenome pertencera ao círculo mais íntimo de Schubert e de que
também o médico particular do antigo imperador descendia dessa família. Quando
transmiti ao dr. B. nosso pedido para que aceitasse o desafio de Czentovic, seu espanto
foi palpável. Era evidente que não tinha ideia de que havia confrontado um campeão
mundial, ou mesmo o mais bem-sucedido e renomado daqueles tempos. Por algum
motivo, aquela informação pareceu mexer com o homem, pois ele perguntou repetidas
vezes se eu tinha certeza de que o adversário era de fato um célebre campeão mundial.
Logo vi que esse detalhe facilitava minha missão e, percebendo sua sensibilidade,
considerei aconselhável omitir que os riscos materiais de uma eventual derrota ficariam
por conta de McConnor. Depois de hesitar por um longo tempo, o dr. B. se declarou afinal
disposto a jogar, mas pediu expressamente que eu avisasse aos demais senhores que não
depositassem demasiada esperança em sua capacidade.
“Porque”, acrescentou com um sorriso vago, “na verdade não sei se sou capaz de jogar
corretamente uma partida de xadrez, conforme as regras. Acredite, por favor, não se
tratava de modo algum de falsa modéstia quando afirmei que desde os tempos de ginásio,
há mais de vinte anos, não tocara em nenhuma peça do jogo. E mesmo naquela época eu
era considerado um jogador sem nenhum talento especial.”
Ele disse isso de um jeito tão natural que não tive a menor dúvida de sua sinceridade.
Entretanto, não pude deixar de manifestar meu assombro por ele ter conseguido lembrar,
com precisão, de combinações específicas dos mais variados mestres; afirmei que pelo
menos em teoria ele deveria ter se ocupado do jogo. O dr. B. sorriu mais uma vez daquele
modo particularmente sonhador.
“Foi muita dedicação! Posso dizer que só Deus sabe quanto me ocupei com o xadrez.
Mas isso aconteceu sob circunstâncias bem especiais, totalmente singulares. Foi uma
história complicada, que na melhor das hipóteses poderia servir como uma pequena
contribuição para esta nossa linda e grandiosa época. Se o senhor tiver meia hora de
paciência…”
Ele indicou a espreguiçadeira ao lado. Aceitei de bom grado o convite. Não havia
ninguém perto de nós. O dr. B. tirou os óculos de leitura, deitou-se de lado e começou:
“O senhor foi muito gentil ao dizer que, como vienense, meu sobrenome lhe era
familiar. Suponho, porém, que não tenha ouvido falar do escritório de advocacia que eu
tocava com meu pai, e depois sozinho, pois não trabalhávamos com causas que a imprensa
levasse a público e por princípio evitávamos novos clientes. Na realidade, o nosso não era
mais, propriamente, um escritório de advocacia, nós nos limitávamos exclusivamente ao
aconselhamento jurídico, e sobretudo à administração do patrimônio de grandes
mosteiros, com os quais meu pai, antigo deputado do partido clerical, mantinha relações.
Além disso — agora que a monarquia pertence à história, podemos falar do assunto —,
administrávamos os fundos de alguns membros da família real. Essa ligação com a corte e
com o clero — meu tio havia sido médico particular do imperador, um outro fora abade
em Seitenstetten — remontava já a duas gerações; só precisávamos mantê-la, e era uma
atividade tranquila, ou melhor, silenciosa, que nos havia sido atribuída por essa confiança
herdada que não exigia nada além de discrição e confiabilidade, qualidades que meu
falecido pai possuía no mais alto grau; ele de fato conseguiu resguardar para seus clientes,
tanto nos anos de inflação como naqueles de crise, valores patrimoniais consideráveis.
Quando Hitler subiu ao poder na Alemanha e começou a assaltar os bens da Igreja e dos
mosteiros, várias negociações e transações que visavam pelo menos salvar do confisco os
bens móveis passaram por nossas mãos, vindas também do outro lado da fronteira; e nós
dois estávamos mais a par de certas negociações políticas secretas da cúria e da família
imperial do que vinha a público. A discrição do escritório — nem placa havia na porta — e
nosso cuidado em evitar círculos monarquistas em Viena ofereciam uma proteção segura
contra investigações indesejadas. De fato, em todos aqueles anos, nenhuma autoridade da
Áustria suspeitou que os mensageiros secretos da família imperial sempre buscavam e
entregavam sua correspondência mais importante em nosso modesto escritório no quarto
andar.
“No entanto, antes de armarem suas tropas contra o mundo, os nazistas começaram a
organizar outro exército, também perigoso e treinado, em todos os países vizinhos: a
legião dos desfavorecidos, dos preteridos, dos ressentidos. Em toda repartição, em toda
empresa instalaram-se suas ‘células’; em qualquer função, até no escalão superior, nos
aposentos particulares de Dollfuss e Schuschnigg,2 encontravam-se postos de escuta e
espiões. Mesmo em nosso escritoriozinho eles tinham um homem, como vim a saber,
infelizmente tarde demais. Era de fato um funcionário deplorável e sem talento,
contratado por recomendação de um padre só para dar ao escritório a aparência de uma
firma regular; na realidade, nós o solicitávamos para simples entregas de mensagens, para
atender o telefone e organizar a papelada, os documentos totalmente sem importância e
inofensivos. Ele jamais teve permissão para abrir a correspondência; eu mesmo escrevia à
máquina as cartas importantes, sem deixar cópias; levava para casa os documentos e
marcava reuniões secretas exclusivamente no priorado do mosteiro ou no consultório de
meu tio. Graças a essas medidas preventivas, esse espião não tinha acesso a casos
importantes; devido a um acaso infeliz, porém, esse rapaz ambicioso e vaidoso deve ter
percebido que desconfiávamos dele e suspeitou que coisas interessantes acontecessem por
suas costas. Talvez durante uma ausência minha, um dos mensageiros tenha falado
imprudentemente de ‘Sua Majestade’ em vez de ‘o Barão Fern’, como era o combinado, ou
o patife deve ter aberto cartas sem permissão — de toda forma, antes que eu pudesse
desconfiar, ele recebeu de Munique ou Berlim a incumbência de nos vigiar. Só bem mais
tarde, quando eu já estava na prisão havia muito tempo, lembrei-me de que sua
negligência inicial no serviço havia se transformado, nos últimos meses, num entusiasmo
repentino, e que ele se oferecera várias vezes, quase de modo impertinente, para levar
minha correspondência ao correio. Não posso me eximir de certa imprudência, mas os
grandes diplomatas e militares do mundo também não foram enganados perfidamente
pela horda hitlerista? Uma particularidade mostrou de modo bastante claro a dedicação
precisa e afetuosa que a Gestapo vinha dirigindo à minha pessoa: na mesma noite em que
Schuschnigg renunciou e um dia antes de Hitler entrar em Viena, fui preso pelos homens
da SS. Felizmente, assim que ouvi no rádio o discurso de despedida de Schuschnigg,
consegui queimar os papéis mais importantes; os demais documentos, como os
comprovantes de depósito no exterior dos bens dos mosteiros e de dois arquiduques,
enviei-os para meu tio por intermédio de minha velha e confiável governanta, escondidos
numa cesta de roupa — no último minuto antes de os sujeitos martelarem na minha
porta.”
O dr. B. interrompeu seu relato para acender um charuto. Sob a luz da chama, percebi
um movimento nervoso no canto direito de sua boca, o qual já havia chamado minha
atenção e, como pude observar, se repetia em curtos intervalos. Era um movimento
rápido, pouco mais forte do que um sopro, mas que dava a seu rosto uma inquietação
singular.
“O senhor imagina que agora eu provavelmente vá lhe falar do campo de concentração
para onde foram transportados todos aqueles que se mantiveram fiéis à nossa velha
Áustria, das humilhações, dos martírios e das torturas que lá sofri. Nada semelhante
aconteceu. Eu pertencia a outra categoria. Não fui enxotado para junto daqueles infelizes
nos quais os nazistas desabafavam, com humilhações físicas e psicológicas, seu
ressentimento acumulado, mas fui alocado junto a outro grupo, bem pequeno, do qual
esperavam arrancar dinheiro ou informações importantes. É óbvio que a Gestapo não
tinha nenhum interesse especial na minha modesta pessoa. Mas eles devem ter tomado
conhecimento de que éramos os testas de ferro, os administradores e os confidentes de
seus adversários mais renitentes; e o que esperavam tirar de mim era algum material
comprometedor: a respeito dos mosteiros, cujo patrimônio queriam provar que fora
transferido, da família imperial e de todos aqueles que se empenharam e se sacrificaram
pela monarquia na Áustria. Eles imaginavam — e na verdade com razão — que recursos
consideráveis daqueles fundos que haviam passado por nossas mãos estavam escondidos,
inacessíveis à sua voracidade; por isso me apanharam logo no primeiro dia, para arrancar
de mim esses segredos com seus métodos já comprovados. Gente da minha categoria, de
quem deveria se extrair material importante ou dinheiro, não foi removida para o campo
de concentração, mas recebeu um tratamento especial. Talvez o senhor se lembre de que
nosso chanceler e também o barão Rothschild, de cujos parentes esperavam arrancar
milhões, não foram absolutamente transferidos para campos de prisioneiros, atrás de
cercas de arame farpado. Com tratamento aparentemente preferencial, foram
transportados para um hotel, o Hotel Metropole, que também era o quartel-general da
Gestapo, e lá cada um recebeu um quarto particular. Também a mim, um homem
insignificante, foi dada essa distinção.
“Um quarto particular num hotel — isso soa extremamente humano, não é verdade?
Mas, pode acreditar em mim: eles não nos destinaram, de modo algum, um tratamento
mais humano, mas apenas um tratamento mais sofisticado, no qual nós, os ‘notáveis’, não
éramos amontoados em grupos de vinte numa barraca fria, mas alojados num hotel, num
quarto individual razoavelmente aquecido. A pressão com a qual queriam arrancar de nós
o ‘material’ necessário deveria funcionar de modo mais sutil do que pauladas brutas ou
torturas físicas: com o isolamento mais requintado possível. Não nos fizeram nada — só
nos deixaram num completo vazio, pois é sabido que não existe nada no mundo que cause
tanta pressão na alma humana como o nada. Ao nos prenderem num vácuo absoluto,
isolados, num quarto hermeticamente fechado para o mundo exterior, não exerciam
aquela pressão por fora, com bordoadas e frio, mas por dentro, uma pressão que acabasse
por escancarar nossa boca. À primeira vista, o quarto a mim destinado não me pareceu
nada desconfortável. Ele tinha uma porta, uma mesa, uma cama, uma poltrona, uma
bacia, uma janela gradeada. Mas a porta permanecia trancada dia e noite; sobre a mesa
não havia um livro, um jornal, uma folha de papel, um lápis; a janela dava para um muro
de concreto; em volta de mim ou mesmo em meu próprio corpo ergueu-se o nada absoluto.
Fui desprovido de todos os objetos: do relógio, para que eu não soubesse as horas; do
lápis, para que eu não pudesse escrever; da faca, para que eu não pudesse cortar os pulsos;
até a menor distração, como um cigarro, me foi proibida. Além do guarda, que não falava
uma palavra e não podia responder a nenhuma pergunta, nunca vi rosto humano,
tampouco ouvi voz humana; os olhos, os ouvidos, nenhum sentido recebia alimento algum
da manhã até a noite, da noite até a manhã; ficava comigo mesmo, com meu corpo e os
quatro ou cinco objetos mudos, mesa, cama, janela e bacia, desesperançosamente
sozinho; vivia como um mergulhador numa redoma no oceano negro desse silêncio, um
mergulhador desconfiado de que o cabo que o liga ao mundo exterior estivesse rompido e
de que ele jamais seria resgatado dessa profundidade silenciosa. Não havia nada para
fazer, para ouvir, para ver, por todo lado estava o nada, ininterruptamente, um completo
vazio de espaço e tempo. Andava de lá para cá, e também meus pensamentos, de lá para
cá, de lá para cá, sempre. Mas até os pensamentos, mesmo que pareçam irrelevantes,
precisam de um ponto de apoio, caso contrário começam a girar e a circular inutilmente
em torno de si; tampouco eles suportam o nada. Esperava por alguma coisa, da manhã até
a noite, e nada acontecia. Esperava de novo e de novo. Nada acontecia. Esperava,
esperava e esperava, pensava, pensava e pensava, até doerem as têmporas. Nada
acontecia. Ficava sozinho. Sozinho. Sozinho.
“Por catorze dias vivi fora do tempo e fora do mundo. Se nesse período tivesse
estourado uma guerra, eu não teria tomado conhecimento; meu mundo consistia apenas
em mesa, porta, cama, bacia, poltrona, janela e parede, e eu sempre fitava o mesmo papel
de parede; de tanto olhar para ele, cada linha de seu padrão em zigue-zague se fixou na
dobra mais profunda do meu cérebro, como que cravada por um cinzel de ferro. Então
finalmente começaram os interrogatórios. A pessoa era chamada de repente, sem saber se
era dia ou noite. Era chamada e conduzida por uns corredores, sem saber para onde ia;
então esperava em algum lugar, sem saber onde, até se encontrar de repente em frente a
uma mesa, em torno da qual alguns homens uniformizados estavam sentados. Sobre a
mesa havia um monte de papéis: documentos cujo conteúdo a pessoa desconhecia; daí
começavam as perguntas, as verdadeiras e as falsas, as claras e as traiçoeiras, aquelas
para disfarçar e aquelas para enganar; enquanto a pessoa respondia, dedos desconhecidos
e maldosos folheavam os papéis cujo conteúdo ela ignorava; e dedos desconhecidos e
maldosos registravam alguma coisa num auto, e não se sabia o que escreviam. Para mim,
no entanto, o pior desses interrogatórios era que eu jamais conseguia adivinhar e avaliar o
que os homens da Gestapo sabiam realmente dos casos no meu escritório e o que queriam
tirar de mim. Como já lhe contei, na última hora eu enviara a meu tio, por meio da
governanta, os documentos de fato incriminadores. Mas será que ele os recebera? Ou
não? E o que aquele funcionário do escritório lhes revelara? Quantas cartas teriam sido
interceptadas, o que eles já teriam conseguido extrair de algum clérigo imprudente dos
mosteiros que defendíamos? E perguntavam e perguntavam. Quais títulos eu comprara
para tal mosteiro, com quais bancos me correspondia, se conhecia ou não fulano e sicrano,
se havia recebido cartas da Suíça ou de Steenookkerzeel.3 Como eu jamais conseguia
avaliar o que eles haviam apurado, eu sentia o peso de uma responsabilidade monstruosa a
cada resposta. Se admitisse alguma coisa que lhes era desconhecida, talvez mandasse
alguém desnecessariamente para o matadouro; se negasse muita coisa, poderia prejudicar
a mim mesmo.
“Mas o interrogatório não era o pior. O pior era voltar para o meu nada, para o mesmo
quarto com a mesma mesa, a mesma cama, a mesma bacia, o mesmo papel de parede.
Assim que me encontrava sozinho comigo mesmo, tentava reconstituir o que deveria ter
respondido de forma mais prudente e o que deveria dizer na próxima vez para desviar a
suspeita que eu talvez tivesse despertado com alguma observação impensada. Pensava,
refletia, analisava e revia meu próprio depoimento, cada palavra que dissera ao juiz de
instrução; recapitulava cada pergunta que haviam feito e cada resposta que eu dera;
tentava imaginar o que eles poderiam ter anotado, mas isso eu jamais poderia avaliar e
saber. Impulsionados naquele espaço vazio, porém, esses pensamentos não paravam um
só instante de girar na minha cabeça, e giravam, giravam, sempre em novas combinações,
e assim ia até eu pegar no sono. Toda vez que eu voltava de um interrogatório da Gestapo,
meus próprios pensamentos assumiam implacavelmente a tortura da arguição, da análise
e do tormento — e talvez de forma ainda mais cruel, pois as sessões pelo menos
terminavam depois de uma hora, e meus pensamentos não cessavam, impulsionados pelo
martírio insidioso da solidão. Ao meu redor, apenas a mesa, o armário, a cama, o papel de
parede, a janela, nenhuma distração, nenhum livro, nenhum jornal, nenhum rosto
desconhecido, nenhum lápis para anotar alguma coisa, nenhum fósforo para brincar,
nada, nada, nada. Só então percebi como o sistema do quarto de hotel fora
diabolicamente concebido, como era psicologicamente criminoso. Talvez no campo de
concentração o sujeito tivesse de transportar pedras em carretas até as mãos sangrarem e
os pés congelarem, talvez fosse encarcerado em meio ao fedor e o frio, com duas dúzias de
pessoas. Mas teria visto outras caras, teria a oportunidade de ver um campo, uma carreta,
uma árvore, uma estrela, alguma coisa para poder olhar, enquanto no quarto o sujeito
tinha sempre o mesmo ao redor, sempre o mesmo, o terrível mesmo. Não havia nada que
pudesse me desviar de meus pensamentos, minhas alucinações, minhas recapitulações
doentias. E isso era exatamente o que eles pretendiam — eu deveria sufocar cada vez mais
nos meus pensamentos, até ser estrangulado e não conseguir nada além de finalmente
cuspir, depor, declarar tudo que quisessem e finalmente entregar o material e as pessoas.
Pouco a pouco, percebi como meus nervos começaram a ceder sob a pressão horrível do
nada e, consciente do perigo, forcei-os até quase arrebentá-los para encontrar ou inventar
alguma distração. Para manter a mente ocupada, tentei recitar e reconstituir tudo que
aprendera de cor na vida, o hino nacional, cantigas da infância, o Homero do ginásio, os
parágrafos do código civil. Depois tentei fazer contas, somar, dividir números aleatórios;
mas no vazio minha memória não tinha qualquer capacidade de retenção. Não conseguia
me concentrar em nada. Era sempre o mesmo pensamento que passava e flamejava: O que
eles sabem? O que não sabem? O que eu disse ontem e o que devo dizer na próxima vez?
“Essa situação na verdade indescritível durou quatro meses. Ora, é fácil escrever
‘quatro meses’: só onze letras! É fácil pronunciar essas palavras: quatro meses — quatro
sílabas. Numa fração de segundo os lábios articulam o som: quatro meses! Mas ninguém
pode descrever, medir, ilustrar, nem para si mesmo, quanto dura um tempo quando não há
espaço nem tempo; e não dá para explicar para ninguém como isso corrói e destrói a
pessoa, esse nada, nada, nada em torno dela, esse estado permanente de mesa, cama,
bacia e papel de parede, e sempre o silêncio, sempre o mesmo guarda que empurra — sem
ao menos levantar os olhos — a comida para dentro, sempre os mesmos pensamentos que
giram no nada em torno da pessoa, até que ela enlouquece. Por alguns sinais, percebi,
apreensivo, que a desordem se instalava em meu cérebro. No começo, durante os
interrogatórios, eu estava bem interiormente, depunha de forma tranquila e pensada.
Pensar duas vezes sobre o que devia ou não falar ainda funcionava. Depois, eu só
conseguia balbuciar, mesmo as frases mais simples, pois enquanto depunha fitava
hipnotizado a pena que tomava notas, como se eu quisesse correr atrás das minhas
próprias palavras. Sentia que minha força diminuía, que cada vez mais se aproximava o
momento no qual, para me salvar, eu diria tudo que sabia, ou até mais, trairia doze
pessoas e seus segredos para escapar do sufoco desse nada, conseguindo com isso apenas
um instante de repouso. Até que, numa noite, isso realmente aconteceu: quando o guarda
me trouxe a comida, num momento de sufoco, gritei: ‘Leve-me para o interrogatório!
Quero contar onde estão os documentos e o dinheiro! Vou falar tudo, tudo!’. Por sorte ele
já não podia mais me ouvir. Talvez nem quisesse me ouvir.
“Nessa situação de extremo sofrimento, aconteceu então um imprevisto que me
ofereceu salvação, pelo menos por um tempo limitado. Foi no final de julho, num dia
escuro, nublado e chuvoso: lembro exatamente desse detalhe, pois a chuva batia contra o
vidro do corredor por onde eu era levado para o interrogatório. Precisei esperar na
entrada da sala. Sempre precisávamos esperar antes de nos apresentar: também essa
espera fazia parte da técnica. Primeiro acabavam com nossos nervos com a chamada e a
saída repentina da cela, no meio da madrugada, e depois, quando já nos sentíamos
preparados para o interrogatório, com a razão e a determinação afiadas para a
resistência, deixavam-nos esperando, esperando inutilmente, uma hora, duas horas, três
horas, para cansar o corpo e fragilizar a alma. Deixaram-me esperando por um tempo
particularmente longo nessa quinta-feira, 27 de julho, duas horas inteiras de pé na
antessala; também lembro precisamente dessa data por um motivo especial: na antessala
onde tive que esperar em pé durante duas horas — naturalmente sem poder me sentar —
havia um calendário na parede; não sei explicar ao senhor como eu, na minha fome de
coisas impressas, escritas, encarei na parede este único número, estes poucos caracteres,
‘27 de julho’; era como se meu cérebro os devorasse. Continuava esperando, esperando e
olhando para a porta na expectativa de que se abrisse, e ao mesmo tempo refletia sobre o
que os inquisidores poderiam me perguntar dessa vez, já sabendo que me perguntariam
alguma coisa bem diferente do que eu previa e para a qual me preparara. Apesar de tudo,
no entanto, o tormento da espera ali de pé foi ao mesmo tempo uma benesse, um prazer,
pois pelo menos aquela sala era diferente da minha, um pouco maior, com duas janelas em
vez de uma, e sem a cama, sem a bacia, sem a mesma fenda no parapeito da janela, que
observara milhões de vezes. A porta tinha uma pintura diferente, uma outra poltrona
estava encostada na parede, à esquerda havia um arquivo de documentos, assim como um
cabideiro, no qual estavam pendurados três ou quatro casacos militares molhados, os
casacos dos meus torturadores. Eu tinha então uma coisa nova, uma coisa diferente para
observar, finalmente uma coisa diferente para os meus olhos famintos, que se agarravam,
ávidos, a cada detalhe. Notava cada dobra dos casacos; observei, por exemplo, uma gota
suspensa numa das golas molhadas e, mesmo que lhe pareça ridículo, esperei com uma
excitação absurda se a gota finalmente se soltaria, escorrendo pela dobra, ou se resistiria
à força da gravidade, permanecendo suspensa por mais tempo. Sim, fiquei contemplando
a gota por vários minutos, como se minha vida dependesse dela. Então, quando ela
finalmente escorreu, voltei a contar os botões dos casacos; oito numa sobrecapa, oito na
outra, dez na terceira, e daí comparei de novo as lapelas; todas essas coisas insignificantes
e ridículas tocavam, envolviam e apanhavam meus olhos famintos com uma avidez que
não consigo descrever. E de repente meu olhar se fixou, paralisado, num detalhe. Percebi
um volume no bolso lateral de um dos casacos. Aproximei-me e acreditei ter reconhecido
na forma retangular daquela protuberância o que aquele bolso inchado escondia: um livro!
Meus joelhos começaram a tremer: um LIVRO! Fazia quatro meses que não pegava um, e só
a imagem de um deles já era inebriante e entorpecedora: um livro no qual podíamos ver
palavras enfileiradas, linhas, páginas e folhas, no qual podíamos ler, seguir e levar para o
cérebro outros pensamentos, pensamentos novos, desconhecidos, que distraíssem.
Hipnotizados, meus olhos fixaram-se na pequena protuberância que aquele livro formava
dentro do bolso; eles ardiam sobre aquele ponto insignificante, como se quisessem
queimar e abrir um buraco no casaco. Por fim, não consegui conter minha avidez;
involuntariamente, me aproximei. Bastava a ideia de poder ao menos tocar um livro
através do tecido do casaco e meus dedos arderam até as unhas. Quase sem perceber,
cheguei ainda mais perto. Por sorte o guarda não reparou em meu comportamento sem
dúvida estranho; talvez lhe tivesse parecido natural que uma pessoa, depois de ficar duas
horas em pé, ereta, quisesse se encostar um pouco na parede. Eu já estava, enfim, bem
perto do casaco e havia posto de propósito as mãos para trás, de modo que elas pudessem
tocá-lo discretamente. Apalpei o tecido e de fato senti um objeto retangular, um objeto
que era flexível e estalava baixinho — um livro! Um livro! E, como um tiro, uma ideia
penetrou em mim: roube o livro! Talvez dê certo, você pode escondê-lo na cela e depois
ler, ler, ler, finalmente ler! Mal havia penetrado em mim, essa ideia teve o efeito de um
veneno poderoso; de uma só vez meus ouvidos começaram a zunir e o coração a bater
forte, minhas mãos congelaram e não me obedeciam. Depois de um primeiro momento de
inércia, porém, fui me aproximando silenciosa e sorrateiramente para mais perto do
casaco e, com as mãos atrás das costas, empurrei o livro cada vez mais para o alto, para
fora do bolso, sem desviar os olhos do guarda. Pois bem: um toque, uma puxada leve e
cuidadosa e de repente eu tinha na mão aquele livro pequeno, pouco volumoso. Só então
me assustei com o que fizera. Era um passo sem volta, porém. Mas onde guardá-lo?
Empurrei-o por trás das costas para dentro da calça, na altura do cós, e de lá desci aos
poucos para o quadril, para que ao andar eu pudesse segurá-lo na costura da calça, como
um militar. Agora eu faria o primeiro teste. Afastei-me do cabideiro, um passo, dois
passos, três passos. Deu certo. Era possível segurar o livro enquanto andava, bastava
pressionar a mão no cós com força.
“Em seguida veio o interrogatório. A arguição exigiu de mim um esforço maior do que
nunca, pois ao responder eu não estava concentrado no depoimento, mas em sustentar o
livro sem chamar atenção. Por sorte dessa vez o interrogatório acabou logo, e pude levar o
livro para o meu quarto em segurança — não quero deter o senhor com tantos detalhes,
mas em determinado momento, no meio do corredor, ele deslizou perigosamente e
precisei simular um forte ataque de tosse para me curvar e empurrá-lo de novo até o cós.
Mas como foi bom o momento em que retornei ao meu inferno, finalmente sozinho, mas
não mais sozinho!
“O senhor deve estar imaginando que eu logo peguei o livro e o examinei, pondo-me a
lê-lo imediatamente. De jeito nenhum! Primeiro quis desfrutar o prazer de ter um livro
comigo, o prazer artificialmente retardado e que excitava meus nervos de modo sublime,
imaginando que tipo de livro deveria ser aquele que eu havia roubado: de preferência com
a mancha compacta, com muitas, muitas letras, e muitas, muitas folhas finas, que
demandassem muito tempo de leitura. Também desejava uma obra que me exigisse
intelectualmente, nada superficial, nada fácil, mas com a qual pudesse aprender, decorar,
poesia, de preferência — que sonho ousado! —, Goethe ou Homero. Finalmente, contudo,
não pude conter meu desejo, minha curiosidade. Estirado na cama para que o guarda não
me flagrasse, caso de repente abrisse a porta, puxei, tremendo, o volume que estava sob o
cós.
“Num primeiro momento tive uma decepção e até mesmo certa raiva feroz: capturado
de modo extremamente perigoso e guardado com uma expectativa ardente, o livro nada
mais era do que um repositório para jogadores de xadrez, uma coleção de cento e
cinquenta partidas de mestres. Se não estivesse trancado, preso, nesse primeiro momento
de cólera eu teria arremessado o livro por alguma janela aberta, pois o que deveria fazer, o
que poderia fazer com aquele negócio absurdo? No ginásio, por enfado, tentara às vezes
jogar xadrez, como fazia a maioria dos meninos. Mas de que me servia esse troço teórico?
É impossível jogar xadrez sem um parceiro e muito menos sem peças, sem tabuleiro.
Aborrecido, folheei as páginas para quem sabe descobrir alguma coisa que eu pudesse ler,
uma introdução, instruções; não encontrei nada além de meros esquemas quadrados de
partidas isoladas de mestres e, embaixo, sinais para mim incompreensíveis, a1-a2, Cf1-
Cg3, e assim por diante. Tudo isso me pareceu uma espécie de álgebra que eu não
conseguia decifrar. Só aos poucos descobri que as letras a, b e c eram empregadas nas
fileiras longitudinais e os números de 1 a 8, nas transversais, e que eles determinavam a
posição respectiva de cada peça; assim, aqueles esquemas puramente gráficos ganhavam
pelo menos uma linguagem. Talvez, pensei, eu pudesse construir na minha cela algum tipo
de tabuleiro e depois tentar repetir essas partidas; como uma revelação celestial, meu
lençol me pareceu mais ou menos quadriculado. Dobrado corretamente, ele podia formar
sessenta e quatro casas. Escondi o livro embaixo do colchão e rasguei só a primeira
página. Comecei então a modelar as peças do xadrez a partir das pequenas migalhas que
guardara de pão, sem dúvida de modo ridiculamente imperfeito, o rei, a rainha e assim
por diante; depois de um esforço tremendo, consegui afinal reconstruir sobre o lençol
quadriculado a posição reproduzida no livro. Quando tentei repassar a partida inteira,
porém, fracassei totalmente com minhas ridículas peças de migalhas de pão, sendo que a
metade delas eu escurecera com poeira para diferenciá-las. Nos primeiros dias,
confundia-me o tempo todo; cinco vezes, dez vezes, vinte vezes eu precisei recomeçar a
mesma partida. Mas quem na face da Terra dispunha, como eu, um escravo do nada, de
tanto tempo mal aproveitado e inútil? E a quem se oferecia tamanha ambição e paciência?
Depois de seis dias eu jogava a partida até o final, sem nenhum erro; depois de oito dias eu
nem precisava mais das migalhas sobre o lençol para materializar as posições do livro; e
depois de mais oito dias também o lençol quadriculado tornou-se dispensável;
automaticamente, os sinais antes abstratos, a1, a2, c7, c8, converteram-se na minha cabeça
em posições visuais, plásticas. A mudança mostrou-se completamente bem-sucedida: eu
projetara dentro de mim o tabuleiro e suas peças, e aquelas simples fórmulas me bastavam
para ter uma visão clara da posição de cada peça, assim como uma simples partitura é
suficiente para um músico treinado ouvir todas as vozes e sua harmonia. Passados outros
catorze dias, eu já era capaz de decorar e repetir sem esforço cada partida do livro — ou,
conforme o jargão técnico, jogar às cegas; só então comecei a entender a vantagem
descomunal que meu roubo atrevido me proporcionara. De uma só vez eu tinha uma
atividade — talvez sem sentido, inútil, se o senhor preferir assim, mas que destruía o nada
ao meu redor; com cento e cinquenta partidas de torneios, possuía uma arma
extraordinária contra a monotonia esmagadora do espaço e do tempo. Para preservar o
estímulo da minha nova atividade, a partir de então passei a dividir bem o meu tempo:
duas partidas de manhã, duas à tarde e, à noite, uma breve revisão das quatro. Assim
estava preenchido o meu dia, que antes se estendia como uma gelatina amorfa, e eu me
mantinha ocupado sem me cansar, pois o xadrez possui uma qualidade fantástica: ao
concentrar a energia intelectual num campo estreitamente limitado, mesmo no caso do
esforço mental mais fatigante ele não esgota o cérebro; antes, aguça sua agilidade e seu
vigor. Aos poucos, já na repetição mecânica das partidas dos campeonatos, começou a
despertar em mim uma compreensão artística e prazerosa. Aprendi a entender as
sutilezas, as ciladas e a perspicácia no ataque e na defesa; assimilei a técnica de prever,
combinar e contra-atacar de forma imediata, e logo passei a reconhecer, sem falhar, o
toque pessoal de cada mestre na condução da partida, assim como identificamos a voz de
um poeta já nos primeiros versos. O que começou como mera ocupação para preencher o
tempo tornou-se um prazer, e as figuras dos grandes estrategistas do xadrez — Alekhine,
Lasker, Bogoliubov e Tartakower — entraram na minha solidão como companheiros
queridos. Uma variedade infinita animava, todos os dias, minha cela silenciosa, e a
regularidade dos exercícios devolveu à minha capacidade de pensar a segurança então
abalada; senti o cérebro renovado e, devido à constante disciplina de refletir, até mesmo
mais afiado. Nos interrogatórios, sobretudo, ficou evidente que passei a pensar de modo
mais claro e conciso; inconscientemente, aperfeiçoei no tabuleiro minha defesa contra
falsas ameaças e truques disfarçados. A partir desse momento não me expus mais nos
interrogatórios; até senti que os homens da Gestapo passaram a me encarar com certo
respeito. Como viam todos os outros desmoronar, talvez se perguntassem em segredo de
qual fonte misteriosa eu tirava força para uma resistência tão inabalável.
“Esse tempo afortunado, no qual repeti sistematicamente, dia a dia, as cento e
cinquenta partidas daquele livro, durou cerca de dois meses e meio a três. Até que,
inesperadamente, cheguei a um impasse. Deparei-me de repente com o nada. Depois de
jogar cada uma das partidas vinte ou trinta vezes, elas perderam o encanto da novidade,
da surpresa; esgotara-se aquela força antes tão emocionante, tão estimulante. Qual é o
sentido de reproduzir mais uma vez, e mais uma, partidas que já conhecia havia muito,
lance por lance? Assim que fazia a abertura de uma partida, a sequência já vinha
automaticamente — nenhuma surpresa, nenhuma emoção, nenhum problema. Para ter
uma ocupação, para criar o esforço e a distração para mim indispensáveis, eu precisaria
na verdade de outro livro, com outras partidas. No entanto, como isso era impossível, só
havia uma saída nessa odisseia: em vez de repetir as velhas partidas, eu precisava criar
outras. Tinha de tentar jogar comigo mesmo, ou melhor, contra mim mesmo.
“Não tenho ideia até que ponto o senhor já refletiu a respeito do estado da mente no
chamado jogo dos jogos. Mas mesmo uma reflexão breve basta para deixar claro que, no
caso do xadrez, um jogo puramente intelectual, descolado do acaso, é um absurdo querer
jogar contra si mesmo. No fundo, o atrativo do xadrez baseia-se unicamente no fato de
que sua estratégia se desenvolve em dois cérebros distintos, de que nessa guerra as peças
pretas não conhecem as manobras das brancas e tentam sempre adivinhá-las e frustrá-las,
enquanto as peças brancas, por sua vez, almejam superar as pretas e reagir a suas
intenções secretas. Se pretas e brancas formassem uma só pessoa, o resultado seria um
estado absurdo no qual um único cérebro deveria ao mesmo tempo saber e não saber
alguma coisa; no qual ele poderia, na condição de parceiro jogando com as peças brancas,
esquecer imediata e completamente o que ele um minuto antes quisera e planejara como
parceiro jogando com as peças pretas. Tal pensamento duplo pressupõe na verdade uma
completa divisão da consciência, um ligar e desligar da função cerebral, como se o cérebro
fosse um aparelho mecânico; no xadrez, portanto, querer jogar contra si mesmo é como
querer pular sobre a própria sombra.
“Bem, para resumir, no meu desespero tentei por meses realizar essa
impraticabilidade, esse absurdo. Para não cair na pura loucura ou num marasmo
intelectual completo, não tive escolha senão esse contrassenso. Devido a essa situação
terrível, fui obrigado a pelo menos tentar essa divisão — um eu de peças pretas e outro de
peças brancas — a fim de não ser esmagado pelo pavoroso nada ao meu redor.”
O dr. B. inclinou-se para trás na espreguiçadeira e fechou os olhos por um minuto. Era
como se lutasse para reprimir uma lembrança perturbadora. De novo no canto esquerdo
de sua boca aquele movimento rápido que ele não conseguia controlar. Em seguida,
endireitou-se na espreguiçadeira.
“Então — até este ponto espero ter lhe contado tudo de modo relativamente
compreensível. Lamento, mas não tenho certeza se poderei lhe explicar o resto também
de forma clara. Essa nova ocupação exigia uma tensão do cérebro tão absoluta que era
impossível qualquer autocontrole. Eu lhe disse que, na minha opinião, já é um disparate
querer jogar xadrez contra si mesmo; até esse absurdo, contudo, ainda teria uma mínima
chance de funcionar se eu tivesse um tabuleiro de xadrez real na minha frente, pois a
realidade do tabuleiro permite certo distanciamento, uma extraterritorialidade material.
Diante de um tabuleiro real, com peças reais, é possível instituir intervalos para reflexão,
colocar-se fisicamente ora de um lado, ora de outro, e assim enxergar a situação ora do
ponto de vista das peças pretas, ora do ponto de vista das brancas. Mas obrigado, como
no meu caso, a projetar num espaço imaginário essas batalhas contra mim mesmo — ou
melhor, comigo mesmo —, eu era forçado a manter na minha consciência um registro
claro das posições das peças nas sessenta e quatro casas e, além disso, calcular até o final
não apenas a representação momentânea como também os possíveis lances seguintes dos
dois parceiros; para ser mais preciso — e sei como tudo isso soa absurdo —, eu tinha de
imaginar duas, três vezes, não, seis, oito, doze vezes, para cada um dos meus eus, para o
eu das pretas e o eu das brancas, sempre quatro ou cinco lances com antecedência. Nesse
jogo realizado num espaço abstrato da fantasia, eu precisava — perdoe-me exigir do
senhor refletir sobre essa loucura —, como jogador das brancas, calcular com
antecedência quatro ou cinco lances e fazer o mesmo como jogador das pretas; ou seja,
combinar antecipadamente, de certo modo com dois cérebros, o cérebro das brancas e o
cérebro das pretas, todas as situações resultantes da evolução da partida. Mesmo essa
autofragmentação, porém, não era o aspecto mais perigoso do meu confuso experimento,
mas sim o fato de que, ao inventar partidas por minha conta, eu poderia perder o chão de
uma só vez e cair num vazio. A mera repetição das partidas dos torneios, como eu fizera
nas semanas anteriores, não passava de uma atividade de repetição, mera recapitulação
de matéria dada, e, como tal, não cansava tanto como se tivesse que decorar poemas ou
artigos de leis; havia sido uma atividade limitada, disciplinada, e por isso um exercitium
mentalis extraordinário. As duas partidas que praticava de manhã e as duas da tarde
representavam uma carga de trabalho que eu executava sem qualquer inquietação; elas me
restituíam uma ocupação normal, e, além disso, quando me enganava no decurso do jogo
ou hesitava, ainda tinha no livro um apoio. Essa atividade só fora tão saudável e
tranquilizadora para meus nervos abalados porque na repetição de partidas alheias não
era eu que jogava; para mim era indiferente se as pretas ou as brancas vencessem; afinal,
eram Alekhine ou Bogoliubov que lutavam pelo título de campeão, e minha pessoa, minha
razão, minha alma aproveitavam apenas como espectadoras, como especialistas, as
peripécias e as belezas de cada partida. A partir do momento em que tentei jogar contra
mim, porém, comecei a me desafiar inconscientemente. Os meus dois eus, o eu das pretas
e o eu das brancas, tinham que competir um com o outro e era um desafio, uma
impaciência para vencer, para ganhar; como eu das pretas, ficava ansioso frente a cada
lance que o eu das brancas faria. Cada um dos meus dois eus triunfava quando o outro
cometia um erro e, ao mesmo tempo, se irritava com a própria falta de habilidade.
“Tudo isso parece sem sentido, e, de fato, tal esquizofrenia artificial, tal divisão da
consciência, acrescida de uma perigosa excitação, seria inconcebível no caso de uma
pessoa normal, num estado normal. Mas não esqueça que eu fora violentamente
arrancado de toda normalidade, era um prisioneiro, detido inocentemente, havia meses
torturado de maneira sofisticada, por meio da solidão, uma pessoa que queria havia muito
tempo descarregar a raiva acumulada. Mas como eu não tinha nada além dessa disputa
absurda contra mim mesmo, minha raiva, meu desejo de vingança dirigiram-se num
frenesi para esse jogo. Algo em mim queria manter a razão, mas eu só tinha em mim esse
outro eu, que eu podia combater; assim eu me empurrava durante o jogo para uma
excitação quase maníaca. No início, ainda pensava de modo tranquilo e refletido, instituía
intervalos entre uma e outra partida para descansar do esforço; porém, pouco a pouco
meus nervos debilitados não me permitiam mais esperar. Assim que o eu das brancas fazia
uma jogada, o eu das pretas já avançava arrebatado; assim que uma partida terminava, eu
já me desafiava para uma próxima. Toda vez que um dos meus dois eus do xadrez era
vencido pelo outro, ele exigia revanche. Impossível conjecturar quantas partidas joguei
contra mim mesmo, tamanha a minha insaciabilidade ao longo dos últimos meses naquela
cela — talvez mil, talvez mais. Era uma obsessão contra a qual não conseguia me
defender; de manhã cedo até a madrugada, só pensava em bispo, peão, torre e rei, em a, b,
c, em xeque-mate e roque; precipitava-me para aquele quadrado quadriculado com todo o
meu ser e minhas emoções. A alegria de jogar transformou-se em anseio de jogar, o anseio
de jogar transformou-se em pressão de jogar, uma mania, uma raiva frenética que invadia
não apenas as horas de vigília, mas também, aos poucos, o meu sono. Eu só conseguia
pensar em xadrez, em movimentos do xadrez, nos problemas do xadrez; às vezes
despertava com a testa molhada e me dava conta de que tinha continuado a jogar no sono,
inconscientemente; quando sonhava com pessoas, seus movimentos eram exclusivamente
os movimentos do bispo, da torre, o avanço e o recuo do salto do cavalo. Mesmo quando
era interrogado, não conseguia pensar com precisão em minha responsabilidade; tenho a
sensação de que nos últimos interrogatórios devo ter me expressado de modo confuso,
pois os inquisidores se olhavam com estranheza. Na realidade, enquanto perguntavam e
discutiam, eu só esperava ser reconduzido à minha cela, para continuar meu jogo, meu
jogo insano, uma nova partida e mais uma e mais uma. Qualquer interrupção se
transformava num transtorno; até o quarto de hora em que o guarda arrumava a cela ou os
dois minutos em que aparecia com a comida torturavam minha impaciência febril; podia
acontecer de a tigela com a refeição ainda estar intocada à noite, pois eu havia esquecido
de comer. Minha única sensação física era uma sede terrível; deve ter sido a febre desse
pensar e jogar permanentes; esvaziava a garrafa em dois goles, importunava o guarda
para trazer mais e no momento seguinte já sentia de novo a boca seca. Depois, minha
excitação aumentava durante o jogo — e eu não fazia nada além disso, da manhã até a
madrugada —, de tal modo que não conseguia sentar calmamente nem por um momento;
enquanto refletia sobre a partida, andava sem cessar de lá para cá, cada vez mais rápido e
mais rápido e mais rápido, de lá para cá, de cá para lá, de lá para cá, e ficava cada vez mais
exaltado sempre que a decisão da partida se aproximava; a ambição de ganhar, de vencer,
de vencer a mim mesmo, tornou-se aos poucos uma espécie de cólera; eu tremia de
impaciência, pois sempre um eu do xadrez em mim achava o outro muito lento. Um
instigava o outro; mesmo que lhe pareça ridículo, eu começava a me insultar, gritando
‘mais rápido, mais rápido’ ou ‘para a frente, para a frente’, quando um eu em mim não
respondia ao outro rápido o bastante. É claro que hoje sei muito bem que esse meu estado
era uma forma absolutamente patológica de hiperirritabilidade mental, para a qual não
encontro outro nome além deste ainda desconhecido da medicina: uma intoxicação pelo
jogo de xadrez. Por fim, essa obsessão monomaníaca começou a atacar não apenas meu
cérebro mas também meu corpo. Emagreci, passei a dormir agitado e perturbado, e ao
acordar precisava sempre de um esforço dobrado para abrir minhas pálpebras de chumbo;
às vezes me sentia tão fraco, minhas mãos tremiam tanto que, à noite, quando tocava num
copo, só conseguia levá-lo aos lábios a muito custo; porém, mal o jogo começava, era
invadido por uma força selvagem: andava com os punhos cerrados de lá para cá, de cá
para lá, e às vezes, como se ela atravessasse uma névoa vermelha, ouvia minha própria voz
gritando para si mesma, rouca e má, ‘xeque!’ ou ‘mate!’.
“Nem eu mesmo consigo relatar como esse estado pavoroso e indescritível levou à
crise. Só sei que certa manhã tive um despertar diferente do normal. Meu corpo, por
assim dizer, descolara-se de mim, e eu descansava suave e agradavelmente. Um cansaço
denso e bom, que eu não conhecia havia meses, pousava sobre minhas pálpebras de forma
tão calorosa e benfazeja que, de início, eu não conseguia me decidir por abrir os olhos. Por
minutos permaneci deitado, já acordado, apreciando essa pesada apatia, esse repouso
morno, com os sentidos em um entorpecimento delicioso. De repente tive a sensação de
ouvir vozes atrás de mim, vozes humanas e vivas, vozes que sussurravam, diziam palavras
— o senhor não pode imaginar meu encantamento, pois fazia meses, quase um ano, que
não ouvia outras palavras além daquelas duras, cortantes e perversas vindas do banco dos
juízes. ‘Você está sonhando’, dizia para mim mesmo. ‘Você está sonhando! Não abra os
olhos de jeito nenhum! Deixe o sonho durar mais um pouco, senão você verá de novo a
maldita cela ao seu redor, a cadeira, a bacia, a mesa e o papel de parede com o mesmo
padrão de sempre. Você está sonhando — continue a sonhar!’
“Mas a curiosidade falou mais alto. Abri os olhos devagar, com cuidado. E um milagre:
eu estava em outro quarto, mais amplo e espaçoso do que minha cela no hotel. Uma janela
sem grades deixava entrar a luz livremente e permitia ver as árvores, árvores verdes
balançando ao vento, em vez do muro de concreto; as paredes brilhavam brancas e lisas, o
teto branco e alto erguia-se acima de mim; eu estava deitado de verdade numa cama nova
e desconhecida, de fato não era um sonho, vozes sussurravam atrás de mim. Surpreso,
sem querer devo ter me mexido de modo brusco, pois logo ouvi atrás de mim alguém se
aproximar. Uma mulher chegou de mansinho, uma mulher com touca branca no cabelo,
uma enfermeira, uma freira. Fui tomado por um arrepio de deleite: fazia um ano que não
via uma mulher. Olhei atentamente aquela doce aparição, e deve ter sido um momento
selvagem e extático, pois a figura que se aproximou me tranquilizava, determinada,
dizendo: ‘Calma! Fique calmo!’. Mas eu só escutava a sua voz — era um ser humano quem
falava? Havia realmente na Terra alguém que não me interrogasse, não me atormentasse?
E ainda por cima, por um milagre inacreditável, uma voz feminina suave, cálida, quase
terna. Olhei sôfrego para sua boca, pois nesse ano infernal nunca vira uma pessoa falar
com outra de forma bondosa. Ela me dirigiu um sorriso — sim, ela sorria; ainda havia
pessoas que sorriam com amabilidade —, depois pôs o dedo sobre os lábios, advertindo-
me, e se afastou, quieta. Mas não consegui obedecer à sua ordem. Ainda não tinha
contemplado aquele milagre o bastante. Tentei me endireitar na cama para continuar
olhando para ela, olhando o milagre de existir um ser humano bondoso. Quando quis me
apoiar no canto da cama, não consegui. Onde costumava ficar minha mão, os dedos e as
articulações, senti uma coisa desconhecida, um chumaço grosso, grande e branco,
aparentemente um curativo volumoso. Observei a coisa desconhecida, branca e espessa,
na minha mão, de início sem entender, mas depois, aos poucos, comecei a compreender
onde eu estava e a refletir sobre o que poderia ter acontecido comigo. Alguém devia ter
me machucado ou eu mesmo ferira a mão. Estava num hospital.
“Ao meio-dia chegou o médico, um senhor mais velho e simpático. Ele conhecia o
nome da minha família e mencionou meu tio, o médico particular do imperador, de forma
tão respeitosa que fui logo invadido pela sensação de que ele queria o meu bem. Em
seguida ele me fez diversas perguntas, inclusive uma que me surpreendeu — se eu seria
matemático ou químico. Afirmei que não.
“‘Estranho’, ele murmurou. ‘Quando tinha febre, o senhor sempre gritava fórmulas
esquisitas: c3, c4. Nenhum de nós conhecia.’
“Perguntei o que acontecera comigo. Ele sorriu de maneira peculiar.
“‘Nada de grave. Uma crise nervosa aguda’ — e acrescentou baixinho, depois de lançar
um olhar cuidadoso ao redor: ‘Afinal, bem compreensível. Desde 13 de março, não é
verdade?’.
“Acenei que sim.
“‘Com esse método, não é de admirar’, murmurou. ‘O senhor não é o primeiro. Mas
não se preocupe.’ Do jeito como me sussurrava, tranquilizando-me, e por seu olhar
apaziguador, percebi que estava em boas mãos.
“Dois dias depois, o amável doutor me explicou com franqueza o que ocorrera. O
guarda me ouviu gritar na cela e de início pensou que eu estivesse brigando com algum
invasor. Assim que apareceu na porta, porém, parti para cima dele, furioso, gritando
‘Mova de uma vez, seu patife, seu covarde!’, ou coisa assim, agarrando seu pescoço e, por
fim, atacando-o com tal fúria que ele precisou pedir ajuda. Quando me arrastaram, nesse
estado colérico, para o exame médico, eu consegui me soltar, pulei até a janela do
corredor, quebrei o vidro e machuquei a mão — o senhor pode ver a cicatriz profunda
aqui. Segundo o doutor, passei as primeiras noites no hospital com uma febre cerebral,
mas então ele já me diagnosticava como tendo recuperado os sentidos por completo. ‘Sem
dúvida’, acrescentou baixinho, ‘prefiro não avisar aqueles senhores, senão o levam de
novo para lá. O senhor pode confiar em mim, farei o melhor possível.’
“Não sei o que esse médico solícito reportou a meus algozes. De todo modo, ele
conseguiu o que queria: minha libertação. Pode ser que tenha me declarado incapaz ou
talvez eu já me tivesse tornado desinteressante para a Gestapo, pois Hitler havia ocupado
a Boêmia e, com isso, o caso da Áustria estava encerrado. Assim, só precisei assinar o
compromisso de deixar a pátria dentro de catorze dias, e esses catorze dias foram tão
cheios, com os milhares de formalidades de que um cidadão do mundo de outrora
necessitava para sair do país — documentos militares, da polícia, do fisco, passaporte,
visto, atestado médico —, que não tive tempo de refletir sobre o ocorrido. Ao que parece,
forças reguladoras agem misteriosas em nosso cérebro e desligam-no automaticamente
quando podem se tornar incômodas e perigosas para a alma, pois sempre que eu queria
voltar a pensar nos meus tempos de cela, a luz se apagava em meu cérebro; só depois de
várias semanas, na verdade só aqui no navio, encontrei coragem para pensar sobre o que
acontecera comigo.
“E agora o senhor entenderá por que me comportei de modo tão inadequado e
provavelmente incompreensível com seus amigos. Eu estava passando pelo salão de
fumantes quando vi seus amigos sentados diante do tabuleiro de xadrez; sem querer,
fiquei paralisado de espanto e pavor. Tinha me esquecido por completo que é possível
jogar xadrez num tabuleiro real, com peças reais, e que nesse jogo duas pessoas bem
diferentes se sentam, de fato, uma de frente à outra. Na verdade, precisei de alguns
minutos para lembrar que o que aqueles jogadores faziam era no fundo o mesmo jogo que
eu, em minha impotência, experimentara contra mim mesmo, durante meses. Os códigos
com os quais eu me ocupara em meus exercícios perversos eram apenas substitutos e
símbolos para aquelas peças de marfim; minha surpresa ao constatar que aquele
movimento das peças sobre o tabuleiro era o mesmo de minha imaginação, no espaço do
pensamento, deve ter sido semelhante à de um astrônomo que calcula um planeta novo
sobre o papel, servindo-se de métodos complicadíssimos, e depois o enxerga de forma real
no céu, como uma estrela branca, clara e substancial. Fitei o tabuleiro como se estivesse
preso a ele por um ímã, e ali vi meus esquemas, cavalo, torre, rei, rainha e peões como
peças reais, feitas de madeira entalhada; para ter uma visão geral da partida, precisei
deslocá-la de meu mundo abstrato de códigos para o das peças em movimento. Pouco a
pouco invadiu-me a curiosidade de observar um jogo real entre dois parceiros. E assim
ocorreu aquela intromissão constrangedora, deixando de lado toda educação. Mas aquela
jogada errada de seu amigo me acertou o coração como uma punhalada. Agi
instintivamente, foi um ato impulsivo, como quando, sem pensar, agarramos uma criança
que se inclina sobre um peitoril. Só mais tarde me culpei pela grave indelicadeza de ter me
intrometido.”
Apressei-me em garantir ao dr. B. como nos alegráramos e agradecíamos ao acaso tê-
lo conhecido, e como, para mim, depois de tudo que me confiara, seria duplamente
interessante vê-lo no dia seguinte naquele torneio improvisado. O dr. B. se inquietou.
“Não, não espere muito. Para mim será apenas um teste… Um teste para ver se eu… Se
sou capaz de jogar uma partida normal de xadrez, uma partida num tabuleiro de verdade,
com peças concretas e um adversário real… Pois agora tenho ainda mais dúvidas se
aquelas centenas ou talvez milhares de partidas que joguei estavam de acordo com as
regras ou se não foram apenas um xadrez dos sonhos, um xadrez que jogamos num estado
febril, sim, um jogo febril no qual, como sempre acontece nos sonhos, pulamos várias
etapas. O senhor não exigirá de mim, espero, que eu me atreva a oferecer resistência a um
campeão de xadrez, ainda mais ao primeiro do mundo. O que me interessa e intriga é
apenas a curiosidade retrospectiva de verificar se o que eu jogava na cela ainda era xadrez
ou se já era loucura, se naquele tempo eu me encontrava pouco antes ou já depois do
terrível abismo — só isto, nada além disso.”
Nesse instante, o gongo anunciando o jantar retumbou na outra extremidade do navio.
Devemos ter conversado por quase duas horas — o dr. B. me relatou tudo de forma muito
mais minuciosa do que resumo aqui. Agradeci-lhe com cordialidade e me despedi. Ainda
não havia atravessado todo o convés quando ele me alcançou e acrescentou, claramente
nervoso, até mesmo gaguejando:
“Mais uma coisa! Por favor, avise logo os outros, para que depois eu não pareça
grosseiro: vou jogar só uma partida… Ela vai ser o ponto final de uma história antiga —
um desfecho, não um recomeço… Não gostaria de sucumbir uma segunda vez àquela febre
ardente de jogar, da qual só consigo lembrar com horror… Aliás… Aliás, o médico também
me advertiu naquela ocasião… Foi taxativo. Qualquer um que tenha sido acometido por
uma mania fica para sempre em perigo, e uma vez intoxicado pelo jogo de xadrez, mesmo
estando curado, o melhor é não se aproximar de um tabuleiro… Então o senhor entende:
só essa partida, como um teste para mim mesmo, e nada mais.”
Na hora combinada, às três em ponto, estávamos reunidos no smoking room. Nosso
círculo crescera, comportava mais dois entusiastas da arte dos reis, dois oficiais do navio
que pediram dispensa do serviço de bordo especialmente para assistir ao torneio. Dessa
vez Czentovic não nos deixou esperando como na véspera, e, depois do sorteio
obrigatório das cores, iniciou-se a memorável partida desse Homo obscurissimus contra o
famoso campeão mundial. Pena que ela tenha sido jogada só para nós, espectadores de
uma incompetência a toda prova, e que seu andamento não tenha sido registrado nos
anais do xadrez, como tampouco foram registradas as improvisações de piano de
Beethoven. Nas tardes seguintes, até tentamos reconstruir a partida, em vão; durante o
jogo, talvez tenhamos voltado a atenção, entusiasmados, aos dois jogadores e não ao
andamento da partida. O contraste psicológico entre eles ficava cada vez mais visível na
postura física de ambos. Mais experiente, Czentovic permanecia imóvel como um tijolo,
com os olhos abaixados sobre o tabuleiro, fixos, sem dele desviar; para ele, refletir parecia
ser um esforço físico, que exigia de todos os órgãos extrema concentração. Já o dr. B. se
movimentava de modo inteiramente descontraído e despreocupado. Como puro diletante,
no sentido mais bonito da palavra, aquele para quem o jogo só proporciona o deleite — o
diletto —, ele estava completamente à vontade, conversava conosco nos primeiros
intervalos, explicando os lances, acendia lépido o cigarro e só quando era sua vez olhava
para o tabuleiro, por um minuto. Parecia prever cada jogada do adversário.
Os lances de abertura de praxe sucederam-se rapidamente. Só na sétima ou oitava
jogada pareceu se delinear um plano em especial. Czentovic prolongou seus intervalos de
reflexão; assim, notamos que começava a se instalar uma batalha pela superioridade. Para
falar a verdade, a evolução gradual do jogo, como toda partida de torneio, foi para nós,
leigos, uma enorme decepção. Quanto mais as peças se entrelaçavam umas nas outras,
formando um estranho ornamento, mais impenetrável nos figurava a verdadeira situação
da partida. Não conseguíamos perceber o que os jogadores tinham em mente, nem qual
dos dois se encontrava realmente em vantagem. Só percebíamos que cada peça se
deslocava como uma alavanca para arrebentar o front inimigo, mas não conseguíamos —
já que no caso dos grandes jogadores cada movimento era calculado com vários lances de
antecedência — reconhecer a intenção estratégica daquele ir e vir sobre o tabuleiro. Aos
poucos, somou-se a isso um cansaço paralisante, devido sobretudo às pausas
intermináveis em que Czentovic ficava deliberando, e que começaram a provocar uma
irritação perceptível também em nosso amigo. Observei preocupado que, quanto mais a
partida se arrastava, mais agitado ele se mexia na cadeira, fosse para acender um cigarro
atrás do outro, fosse para pegar um lápis e anotar alguma coisa. Então de novo pedia uma
água mineral, que bebia sôfrego, copo após copo; era evidente que fazia combinações cem
vezes mais rápido do que Czentovic. Cada vez que o campeão, depois de considerações
sem fim, se decidia por mover uma peça com sua mão pesada, nosso amigo sorria como
alguém que vê confirmado algo havia muito esperado e já revidava. Com a mente
trabalhando a jato, ele decerto antecipava todas as possibilidades do adversário; por isso,
quanto mais a decisão de Czentovic demorava, mais crescia sua impaciência, e, enquanto
esperava, sua boca se comprimia num esgar aborrecido e quase hostil. Mas Czentovic não
se deixava pressionar de modo algum. Refletia, teimoso e calado, e quanto mais o campo
se esvaziava, mais tempo duravam suas pausas. Na quadragésima segunda jogada, depois
de duas horas e quarenta e cinco minutos, estávamos todos já exaustos, sentados em torno
da mesa do torneio e quase indiferentes à partida. Um dos oficiais já se afastara, outro
pegara um livro para ler e só erguia os olhos por um momento quando uma peça mudava
de lugar. Mas de repente, numa jogada de Czentovic, o inesperado aconteceu. Assim que
o dr. B. percebeu que Czentovic pegaria o cavalo para movê-lo para a frente, ele se
encolheu como um gato antes do pulo. Seu corpo inteiro começou a tremer e, mal
Czentovic concluiu o lance com o cavalo, ele avançou com a dama de modo ríspido e
gritou, triunfante: “Pronto! Acabou!”. Em seguida inclinou-se para trás, cruzou os braços
sobre o peito e dirigiu a Czentovic um olhar desafiador. Uma luz intensa brilhou de
repente em suas pupilas.
Nós nos debruçamos, por reflexo, sobre o tabuleiro para entender a jogada anunciada
de modo tão triunfal. À primeira vista, nenhuma ameaça direta era evidente. A declaração
de nosso amigo devia se referir a movimentos que nós, diletantes de raciocínio curto,
ainda não havíamos alcançado. Czentovic foi o único que não se mexeu com aquele
anúncio desafiador; permaneceu imperturbável na cadeira, como se tivesse ignorado o
grito ofensivo de “Acabou!”. Nada aconteceu. Como todos nós, sem perceber,
segurávamos a respiração, ouvimos de repente o tique-taque do relógio que fora posto em
cima da mesa para controlar o intervalo entre as jogadas. Passaram-se três minutos, sete
minutos, oito minutos — Czentovic não se mexia, mas tive a sensação de que, devido a um
esforço interno, suas narinas largas estavam ainda mais dilatadas. Para nosso amigo, essa
espera muda pareceu tão insuportável como para nós. Com um sobressalto, ele se
levantou e começou a andar de lá para cá no smoking room, primeiro devagar, depois cada
vez mais depressa. Todos o olhávamos com certo espanto, mas ninguém estava mais
preocupado do que eu, pois reparei que seus passos, apesar da intensidade do ir e vir,
percorriam sempre o mesmo trajeto na sala; era como se estivesse andando no meio de um
quarto vazio e toda vez batesse numa barreira invisível que o obrigava a voltar. Percebi,
estremecendo, que em seu inconsciente esse ir e vir reproduzia a extensão de sua antiga
cela; nos meses de cárcere, ele devia ter andado de lá para cá exatamente assim, como um
animal trancado na jaula, exatamente assim, com as mãos contraídas e os ombros
afundados; assim, e só assim, ele devia ter andado mil vezes de lá para cá, com o brilho
vermelho da loucura em seu olhar fixo e febril. Sua capacidade de raciocinar, porém,
parecia totalmente intacta, pois de vez em quando, impaciente, ele se voltava para a mesa,
para ver se Czentovic havia tomado uma decisão. Mas passaram-se nove, dez minutos.
Até que afinal aconteceu o que nenhum de nós esperava. Devagar, Czentovic levantou a
mão pesada, que até então estava rígida sobre a mesa. Todos aguardávamos ansiosos a sua
decisão. Contudo, ele não fez nenhuma jogada; com um movimento resoluto do dorso da
mão, ele empurrou todas as peças para fora do tabuleiro. Levamos um momento para
compreender: Czentovic desistira da partida. Capitulara para não levar um xeque-mate
na nossa frente. O improvável acontecera, o campeão mundial, o campeão de inúmeros
torneios rendera-se diante de um desconhecido, um homem que não havia tocado um
tabuleiro de xadrez por vinte ou vinte e cinco anos. Nosso amigo, um anônimo, um
incógnito, vencera o mais forte enxadrista do planeta numa luta aberta.
Em nossa excitação, sem perceber havíamos nos levantado, um depois do outro.
Tínhamos a sensação de que deveríamos dizer ou fazer alguma coisa para dissipar nosso
alegre sobressalto. Em sua quietude, Czentovic era o único imóvel. Só depois de uma
pausa demorada ele ergueu a cabeça e se dirigiu a nosso amigo com um olhar pétreo.
“Mais uma partida?”, perguntou.
“Naturalmente”, respondeu o dr. B. com um entusiasmo que me desagradou, e antes
que eu conseguisse lembrá-lo de sua intenção de jogar apenas uma partida ele se sentou e
começou a reposicionar as peças com uma precipitação doentia. Movimentou-as com
tanta impetuosidade que um peão escorregou de seus dedos trêmulos e caiu no chão duas
vezes; meu desconforto, já embaraçoso frente à sua excitação anormal, transformou-se
numa espécie de medo, pois uma nítida exaltação tomara conta daquela pessoa antes tão
quieta e tranquila. O tique na boca voltava com mais frequência, seu corpo estremecia
como se sacudido por uma febre repentina.
“Não!”, sussurrei-lhe. “Agora não! Para hoje é suficiente! É muito cansativo para o
senhor!”
“Cansativo! Ah!” — exclamou, rindo alto e maliciosamente. “Eu poderia ter jogado
nesse meio-tempo dezessete partidas em vez de ficar neste marasmo! A única coisa
cansativa é resistir ao sono neste ritmo! Então! O senhor pode começar a jogar!”
Ele dirigiu essas últimas palavras a Czentovic num tom áspero, quase grosseiro. O
campeão encarou-o de um jeito sereno e equilibrado, mas sua expressão pétrea
assemelhava-se a um punho cerrado. Algo novo se instalara entre os dois jogadores, uma
tensão perigosa, um ódio ardente. Não eram mais dois parceiros querendo treinar sua
capacidade por diversão, mas dois inimigos que haviam jurado liquidar um ao outro.
Czentovic hesitou por um longo tempo até fazer o primeiro lance, e tive a sensação de que
ele hesitara de propósito. Era evidente que aquele estrategista experimentado já
descobrira que, com sua lentidão, cansava e irritava o adversário. Assim, esperou não
menos do que quatro minutos para fazer a mais normal e simples abertura, avançando o
peão do rei as duas casas habituais. Imediatamente nosso amigo o bloqueou com seu peão
do rei, e o adversário repetiu a pausa interminável e quase insuportável, como um raio
forte que cai e nos faz esperar pelo trovão com o coração aos saltos, mas o trovão não
vem, não vem. Czentovic não se mexia. Ele pensava quieto e, como eu sentia cada vez com
mais certeza, com uma lentidão cruel; e com isso eu tinha bastante tempo para observar o
dr. B. O homem estava no terceiro copo de água, e involuntariamente lembrei que ele me
contara de sua sede febril na cela. Esboçavam-se claramente todos os sintomas de uma
excitação doentia; vi sua testa tornar-se úmida, e mais vermelha e acentuada a cicatriz na
sua mão. Mas ele ainda se controlava. Só depois da quarta jogada, quando Czentovic
demorava a se decidir, ele perdeu a compostura e ralhou de supetão:
“Jogue de uma vez!”
Czentovic ergueu os olhos friamente. “Pelo que sei, combinamos dez minutos para
cada lance. Por princípio, não jogo com menos tempo.”
O dr. B. mordeu os lábios; percebi que batia, agitado, a sola do sapato contra o chão, e
eu mesmo fiquei ainda mais nervoso, com o pressentimento de que uma espécie de loucura
fermentava dentro dele. De fato, um segundo incidente aconteceu na oitava jogada. O dr.
B., que esperava de modo cada vez mais descontrolado, não conseguiu segurar sua tensão;
mexia-se de um lado para outro e inconscientemente começou a tamborilar os dedos na
mesa. De novo Czentovic levantou sua cabeçorra rústica.
“O senhor poderia parar de bater na mesa? Isso me atrapalha. Não consigo jogar
assim.”
“Ah!”, o dr. B. deu uma risadinha breve. “Percebe-se.”
O rosto de Czentovic ficou vermelho. “O que o senhor quer dizer com isso?”,
perguntou incisivo, zangado.
O dr. B. deu outra risadinha curta e maldosa. “Nada. Só que seu nervosismo salta aos
olhos.”
Czentovic calou-se e abaixou a cabeça. Passados sete minutos ele fez seu lance, e a
partida continuou se arrastando nesse ritmo mortal. Czentovic petrificava-se, por assim
dizer, cada vez mais; por fim, começou a usar o máximo do tempo permitido até se decidir
por um movimento, e de um intervalo para outro o comportamento de nosso amigo ficava
cada vez mais estranho. Parecia que ele se ausentara da partida, ocupado com alguma
coisa bem diferente. Deixou de andar de lá para cá, permanecendo sentado em seu lugar,
inerte. Com os olhos fixos e quase insanos mirando o vazio, murmurava sem cessar para si
mesmo palavras incompreensíveis; ou ele estava se perdendo em combinações infinitas ou
desenvolvendo outras partidas — e esta era a minha suspeita mais profunda —, pois toda
vez que Czentovic enfim movia uma peça, tínhamos que trazer o dr. B. de volta de sua
alienação. Ele então passou a precisar de alguns minutos para tomar pé da situação; cada
vez mais perseguia-me a suspeita de que, na verdade, já havia muito que ele se esquecera
de Czentovic e de todos nós, tomado por essa modalidade fria de loucura que poderia a
qualquer momento ser extravasada com violência. De fato, no décimo nono lance, a crise
estourou. Mal Czentovic moveu sua peça, o dr. B., sem olhar direito para o tabuleiro,
avançou seu bispo três casas e deu um berro tão alto que todos estremecemos:
“Xeque! Xeque ao rei!”
Olhamos de imediato para o tabuleiro, na esperança de ver uma jogada especial. Mas
depois de um minuto aconteceu o que ninguém esperava. Czentovic levantou a cabeça
bem devagar e nos encarou — o que nunca fizera até então —, um por um. Parecia
saborear com gosto alguma coisa; aos poucos, um sorriso satisfeito e claramente
sarcástico se delineou em seus lábios. Só depois de desfrutar até o fim o seu triunfo, para
nós ainda incompreensível, ele se dirigiu a nós com uma falsa cortesia.
“Lamento, mas não vejo xeque algum. Algum dos senhores por acaso vê o meu rei em
xeque?”
Olhamos para o tabuleiro e em seguida, apreensivos, para o dr. B. A casa do rei de
Czentovic estava protegida do bispo por um peão — e qualquer criança podia reconhecer
isso —, impossibilitando um xeque ao rei. Ficamos desconcertados. Será que, em sua
irritação, nosso amigo acabara movendo erroneamente uma peça, uma casa para a frente
ou para trás? Alertado por nosso silêncio, também o dr. B. olhou fixo para o tabuleiro e
começou a gaguejar forte:
“Mas o rei deveria estar em f7… Aqui ele está errado, totalmente errado… O senhor
jogou errado! Tudo está errado nesse tabuleiro… O peão deveria estar em g5 e não em g4…
Essa é outra partida… É outra…”
De repente ele parou. Eu agarrara seu braço com força, ou melhor, eu o beliscara tão
forte no braço que mesmo em seu delírio ele pareceu ter sentido. Virou-se e me olhou
fixamente, como um sonâmbulo.
“O que… O que o senhor quer?”
Eu não disse nada além de “Remember!”, enquanto passava o dedo ao longo da cicatriz
em sua mão. Ele seguiu involuntariamente meu movimento, e seus olhos vidrados fitaram
a linha vermelha como sangue. Então começou a tremer, e um arrepio tomou-lhe todo o
corpo.
“Pelo amor de Deus”, sussurrou, com os lábios pálidos. “Eu disse ou fiz alguma tolice…
Será que voltei a…?”
“Não”, sussurrei. “Mas o senhor precisa interromper a partida imediatamente, está
mais do que na hora. Lembre-se do que o médico lhe disse!”
O dr. B. se levantou de modo abrupto. “Peço desculpas por meu erro estúpido”,
afirmou com a amabilidade de antes, inclinando-se para Czentovic. “É um total absurdo o
que eu disse. É óbvio que esta partida é sua.” Virou-se para nós. “Também peço desculpas
aos senhores. Mas eu os havia prevenido de que não deveriam esperar muito de mim.
Perdoem-me o espetáculo lastimável. Essa foi minha última partida de xadrez.”
Ele se curvou e saiu do mesmo jeito modesto e misterioso como aparecera na véspera.
Só eu sabia por que aquele homem nunca mais tocaria um tabuleiro de xadrez, enquanto
os outros ficaram sem entender, meio confusos, com a vaga sensação de que tinham
escapado por pouco de algo incômodo e perigoso. “Damned fool”, resmungou McConnor,
decepcionado. Czentovic foi o último a levantar da cadeira, e ainda lançou um olhar sobre
a partida não acabada.
“Pena”, ele disse, num tom generoso. “O ataque nem foi tão mal planejado. Na
verdade, para um diletante, esse senhor tem um talento excepcional.”
POSFÁCIO
Xadrez: imaginar, relembrar e enxergar saídas de um
jogo e um mundo polarizados

O livro do xadrez é a última novela de Stefan Zweig. No meticuloso processo de despedida


da vida, o escritor mais traduzido e um dos mais amados de sua época enviou de
Petrópolis duas cópias datilografadas da novela a seus editores no Brasil e na Argentina, e
outras duas aos Estados Unidos (uma delas deveria ser encaminhada à Suécia, onde
surgiria mais tarde o livro em alemão). Isso aconteceu em 21 de fevereiro de 1942, véspera
do dia em que Zweig e sua companheira, Charlotte, se suicidaram. Esse texto é um legado
de seu autor ao mundo que insiste em se repetir.
Referindo-se ao jogo que dá nome à novela, seu autor utiliza uma espécie de epíteto:
“espetáculo de um novo combate”.4 Tal formulação aproxima o xadrez das artes visuais e
performáticas e reconhece a importância de quem o contempla — observadores e
espectadores — como integrante da partida. A narrativa abarca três molduras com
espaços distintos — um navio, uma aldeia, um quarto —, por onde acompanhamos um
narrador austríaco a observar dois protagonistas: Mirko Czentovic, campeão mundial de
xadrez, personagem que intriga pela apatia e pela ignorância, contraditórias ao jogo que
domina, e o dr. B., anônimo intruso, um estranho e um enigma que, deixando-se conhecer,
torna-se “nosso amigo”.
Num artigo sobre a novela, Juliana Perez5 ressalta o contraste entre ambientes
abertos, luminosos, e ambientes fechados, numa configuração espacial que culmina
sempre em um não lugar. Na redução dos espaços representados, acompanhamos a
movimentação sutil das personagens e de seus olhos em busca de saída: liberdade da
condição social, fuga da tortura, relativa segurança ou reconhecimento do lugar que
desejam ocupar ou preservar. Para Mirko, o xadrez foi a maneira de sair de uma aldeia
anônima e da tutela do padre que o acolhia em sua orfandade, à qual se somava a falta de
estímulo e ambição. Para o dr. B., o jogo representou uma sobrevida, o escape
imaginativo do confinamento e da tortura psicológica a que fora submetido pela Gestapo,
a polícia secreta nazista.
Narrador e enxadristas embarcam em um navio que segue de Nova York para Buenos
Aires em meio à Segunda Guerra Mundial. Um dos jogadores, rumo a um torneio
internacional de xadrez; o outro, a uma nova etapa do exílio, depois de fugir da Áustria
dominada por Hitler. Klemens Renoldner, organizador da edição alemã revisada e
comentada da novela, pergunta se, em determinado momento, ao citar o Rio de Janeiro
em vez da capital argentina, Zweig não teria cometido um ato falho.6 Mesmo sem
resposta, a pergunta evidencia a permeabilidade dessa narrativa imbuída de elementos
pessoais e objetivos da realidade vivida ou conhecida pelo autor no período da escrita. São
nomeadas, por exemplo, personalidades políticas da época, instâncias do regime nazista
e, principalmente, o Hotel Metropole. Embora a personagem do dr. B. seja ficcional, o
lugar onde ele ficou confinado existiu e foi transformado pela Gestapo em quartel, prisão,
local de torturas e terror para os cidadãos vienenses que desafiavam a norma ditatorial.7
O alvoroço do embarque de Mirko Czentovic desperta a curiosidade do narrador pela
estranheza das anedotas sobre as limitações intelectuais do campeão. Cria-se uma
armadilha para tentar observar aquela “ave rara” de perto ou, de certa forma, encurralá-la
e perscrutar sua maneira de jogar, pensar e se comportar. A caracterização de Czentovic,
longe de destacar atributos relacionados ao “espírito” humano (Geist), como imaginação,
curiosidade, desejo ou vontade, aproxima-o do campo semântico animal: “ave rara”, uma
“jumenta de Balaão”, um “cavalo” que reconhecerá um cavaleiro experiente.
Quanto ao jogo dos reis, ele é comparado a arte, ciência, esporte, duelo e batalha; o
xadrez se torna palco do confronto entre Mirko Czentovic e o dr. B., que se acirra no
momento em que Partie [partida] torna-se Kampf [combate]. A novela ilustra, assim, a
violência da guerra, o fenômeno da polarização, da sede de destruição do outro, que pode
levar inclusive à autodestruição. A clarividência de Alberto Dines, jornalista e intelectual
que dedicou trinta anos de pesquisa à biografia de Stefan Zweig, ressoa no mundo de hoje
e indica a pertinência de novas leituras dessa novela:
com a parábola sobre o jogo dos jogos, Stefan passa em revista tudo o que o horroriza na guerra: Hitler não é um
caso isolado de insanidade, o nacional-socialismo é um projeto político baseado na estupidez, Czentovic não é uma
pessoa mas uma entidade. Ainda não se conhecem robôs, mas Zweig consegue preconizá-los na figura do campeão,
máquina de jogar, mente sem ideias.8

Ao tacanho Czentovic, não só faltam ideias como sentimentos. Ao longo da narrativa,


porém, a ausência de sentimentos se transforma no exercício de uma indiferença
controlada que mascara a crueldade e o prazer diante do sofrimento alheio e da
destruição do outro, que é visto como uma ameaça.
Quando B. conta sua história de confinamento e tortura psicológica diante do vazio e
da frieza do governo que o escrutina, ele deixa de ser visto como “Homo obscurissimus”,
tornando-se “nosso amigo”. O pronome “nosso” não deixa de ecoar talvez a voz amigável
do próprio escritor, também austríaco, vienense e exilado na América do Sul, que se
exercitava em partidas de xadrez seguindo os lances do livro Die hypermoderne
Schachpartie, de Savielly Tartakower. Nas palavras de Dines, “para enganar o ócio e
aliviar a tensão, usa um manual com as partidas dos grandes mestres e disputa sem
parceiro. [...] Xadrez é exercício e estímulo mental, também forma figurada de viver”.9
O dr. B., depois de meses preso e lançado no Nada de seu quarto de hotel, à espera
interminável dos interrogatórios, é consumido pelo vazio do entorno e vivencia uma
espécie de inanição mental. Seus olhos sentem fome, ele conta, “fome de coisas impressas,
escritas”;10 e para se nutrir ele tenta relembrar, recitar e reconstituir o que havia
aprendido de cor: o hino nacional, cantigas da infância, Homero, parágrafos do código
civil. Mas continuava faltando um suporte material para seus pensamentos, um lugar de
onde eles pudessem se alçar. Ao roubar um livro, B. saboreia o momento de expectativa,
fantasiando o conteúdo do exemplar. Seu entusiasmo se prolonga a ponto de o ritmo de
leitura também provocar em nós uma espécie de ansiedade. Seu desejo é que se trate de
uma obra “nada superficial” e “nada fácil”, algo com que possa aprender alguma coisa e
decorá-la. Sua melhor fantasia seria encontrar no livro… poesia! Texto para ser repetido,
sentido, compreendido e incorporado, que saciasse sua fome e preenchesse o vazio do
isolamento, transcendendo a visão do mundo material, do quarto do Metropole com
mesa, cama, pia, papel de parede… o nada do mesmo.
Mas justamente por meio desse livro o dr. B. reencontra o xadrez, que não jogava
havia duas décadas. Apesar da frustração de se deparar com fórmulas, códigos da
movimentação das peças pelos campos do tabuleiro, a saída de B. é devorar o livro.
Enquanto prisioneiro, ele modela peças de um xadrez improvisado com migalhas de pão
— alimento de seus olhos — até desenvolver a habilidade de jogar “às cegas”.
Sobre o nexo entre fantasia, jogo e arte, Sigmund Freud, no texto “O poeta e o
fantasiar”,11 refere-se ao brincar da criança como uma coisa séria, que se opõe somente à
realidade e, na fase adulta, é substituído pelo humor, pela arte e pela literatura como
formas de realização de desejos constrangedores e socialmente interditados. No caso de
B., o xadrez surge como atividade criadora, possibilitando-lhe encenar no espaço
imaginário aquilo que não lhe é permitido no real: movimentar-se quando está confinado,
atacar e defender-se quando o sentimento e a condição de impotência lhe são impostos. Se
Czentovic não é capaz de jogar às cegas, a B. só resta essa forma de atuar. Talvez por isso,
quando o campeão duvida da própria capacidade de destruir B. no jogo, ele tenta fazê-lo
na realidade, exaurindo o oponente já emocionalmente desestabilizado.
O dr. B., por não conseguir escapar da cela e do escrutínio da Gestapo, joga contra si
mesmo um “jogo realizado num espaço abstrato da fantasia”,12 no qual realiza
simultaneamente sua vitória e sua derrota. Segue partida após partida, pois, sendo
vencedor e vencido, quer sempre virar o jogo e cobra-se a revanche. Assim, o torturado dá
vazão a uma violência que se volta contra ele mesmo na circunstância da cela, com
palavras duras e xingamentos alucinados, com um estilhaço de vidro com que se corta no
ápice da crise. O surto de B. e sua lesão acabam por levá-lo a um hospital, no qual o
médico responsável reconhece seu sobrenome e lhe concede uma “liberação” dos
procedimentos investigativos extenuantes. Renoldner observa que seria difícil não pensar
a crise psicótica do dr. B. e o estilhaçamento de um vidro como um espelhamento do
colapso depressivo de Zweig no verão de 1941.13 O crítico também levanta a hipótese da
figuração de uma tentativa de suicídio de B., que poderia ter tentado quebrar a janela,
jogar-se ou ferir os pulsos. Afinal, “que aspecto tem exatamente a cicatriz vermelha na
mão do dr. B.?”.14
A sensação de claustrofobia, de impotência, de isolamento e desamparo perpassa as
diferentes camadas e espaços da narrativa: o navio, a origem de Mirko, a primeira partida
do grupo de passageiros contra o campeão, o cárcere de B., o embate dos protagonistas.
Todas as personagens procuram uma saída; talvez até o narrador curioso, de quem pouco
se sabe, mas que não parece inclinado a aproveitar sossegadamente sua viagem de navio e
em vez disso se empenha em criar uma estratégia para observar Czentovic de perto.
Para B., o lugar de salvação pelo livro e pelo jogo torna-se, segundo Juliana Perez, um
não lugar.15 No relato de sua prisão, B. nota um engajamento emocional progressivo no
jogo: “A alegria de jogar transformou-se em anseio de jogar, o anseio de jogar
transformou-se em pressão de jogar, uma mania, uma raiva frenética que invadia não
apenas as minhas horas de vigília, mas também, aos poucos, o meu sono”.16 No navio, a
espera e o desgaste de energia para se manter protegido e atento aos lances do oponente o
tornam vulnerável, passível de ser manipulado e abatido pelo adversário, que
instrumentaliza a dor do outro para exercer seu domínio — não necessariamente
ganhando a partida, mas levando o adversário ao limite de sua capacidade emocional.
O advogado preso, que utilizou o jogo como um instrumento de defesa e de fuga
daquela realidade claustrofóbica e extenuante, se fortalecia contra seus torturadores,
reagindo com clareza e perspicácia aos interrogatórios, mas colocava-se em perigo ao
cindir sua consciência em dois eus adversários. Czentovic também tem uma mudança de
postura: de peão indiferente, cumpridor de ordens, apático e indolente, serve-se de sua
morosidade e quase ausência de características. Alguma sensibilidade o campeão invicto
teria adquirido para perceber o descontrole de B. e atuar com a frieza e o cinismo de um
torturador. Menos instruído, criativo ou simpático, não se importa em ser inferior ao
concorrente, desde que possa destruí-lo, desmoralizá-lo ou fazê-lo desistir.
Mesmo parecendo “uma desumana máquina de xadrez”, ele se posicionava de forma
altiva diante dos oponentes, cavalheiros que fracassavam em jogar contra o campeão:
“passava por nós indiferente, como se fôssemos peças de xadrez, de madeira, sem vida”.17
Diante da capitulação final do dr. B., sua atitude é um falso lamento que reforça sua
pretensa superioridade frente ao “diletante”. Dois momentos, anteriores à precipitação e
à capitulação de B., serviriam de contraponto aqui: tanto a Gestapo quanto Czentovic se
surpreendem com a resistência que o advogado lhes oferece; evidencia-se isso também a
partir do olhar. O prisioneiro passa a ser olhado com respeito nos interrogatórios quando
se mostra mais consciente e preparado, e Mirko levanta o olhar do tabuleiro para o novo
oponente somente quando vê o primeiro lance estratégico do intruso em sua partida
contra os enxadristas “de terceira classe” do navio (McConnor, o narrador e outros). A
maneira de olhar, portanto, respeitosa ou desprezível, determina o tipo de relação que se
estabelece não só com o outro, mas também consigo. Nas anedotas sobre sua origem, ao
derrotar enxadristas mais experientes da cidade vizinha, Mirko é olhado com respeito
pelo padre que cuidava dele, e até inflama vivamente o “orgulho dos habitantes”, embora
nem pertencesse àquele lugar. (Aqui, o menino eslavo analfabeto ensejaria uma menção
irônica ao pintor austríaco frustrado que prometeu erigir um reino alemão milenar sobre
os ideais de povo e pátria.)
A escassez de diálogo — condição do jogo de xadrez e da sobrevivência dos jogadores
— é contornada pela observação, pelo movimento do olhar, pelo olhar fixo ou pela
indiferença com que (não) se olha. O psicanalista argentino Juan-David Nasio esclarece a
diferença entre o olhar e a visão com o exemplo da apreciação de uma pintura:
o ato de olhar é um ato que não é para fora. “Ver” é de nós para a imagem, o olhar é um circuito interno em nós. É um
circuito que não tem objeto externo em que se praticar. [...] Olhar não é olhar um objeto. Um quadro não é olhado, é
visto. Mas, se o quadro me deslumbra, estou num momento de pulsão escópica.18

Um momento comparável a esse na novela de Zweig é quando o dr. B. diz ter visto no
navio um grupo de pessoas ao redor de um tabuleiro de xadrez e não pôde se conter, pois
esquecera-se completamente de que era possível jogar com outras pessoas. Para B., essa
cena não estaria no domínio da visão, mas do olhar. Ela desencadeia a lembrança do jogo
solitário à espera dos interrogatórios e confere ao advogado a oportunidade de contar sua
história. Depois de ouvi-la, o narrador torna-se especialmente atencioso com B. nas
partidas finais contra Czentovic. Ele monitora seus sintomas de estresse (os gestos
inquietos, a sede, a movimentação num cubículo imaginário e as provocações ásperas
lançadas contra o oponente) e, de certa maneira, encontra um jeito de acudir o amigo no
momento da crise.
Mirko Czentovic, por sua vez, também nota a ansiedade e a vulnerabilidade do dr. B. e
apela para a defasagem entre a realidade (o tabuleiro de madeira) e a capacidade
imaginativa do adversário. Mirko usa o máximo de tempo disponível para cada decisão e
movimento de peça, prolongando a partida ao limite do suportável, e impele o
deslocamento completo de B. para a esfera da fantasia. O advogado toma por realidade os
lances que ocorrem em sua imaginação. Ele alucina (ou prevê) um desfecho e dá um passo
em falso.
Isso oferece ao mestre enxadrista a oportunidade de desmoralizar o anônimo
diletante, apontando o que se vê e não aquilo que se pode olhar. O leitor depende dos
olhos do narrador, que não reconstroem a linha de raciocínio do dr. B., mas se detêm em
seus sinais manifestos corporalmente. A ansiedade de ver o adversário dominando a
partida, o afã de derrotá-lo de uma vez por todas, fragiliza o jogador ao ponto de ele não
resistir até o final do jogo. Há que suportar a espera de cada lance para poder ver a queda
real do rei, para que o esforço de resistência não seja em vão e o corpo físico de quem
resiste não seja entregue à ruína (também do esquecimento).
Com os olhos fixos e quase insanos mirando o vazio, murmurava sem cessar para si mesmo palavras
incompreensíveis; ou ele estava se perdendo em combinações infinitas ou desenvolvendo outras partidas — e esta
era a minha suspeita mais profunda —, pois toda vez que Czentovic enfim movia uma peça, tínhamos que trazer o
dr. B. de volta de sua alienação. [...]
Mal Czentovic moveu sua peça, o dr. B, sem olhar direito para o tabuleiro, avançou seu bispo três casas e deu um
berro tão alto que todos nós estremecemos:
“Xeque! Xeque ao rei!”
Olhamos de imediato para o tabuleiro, na esperança de ver uma jogada especial. Mas depois de um minuto
aconteceu o que ninguém esperava. Czentovic levantou a cabeça bem devagar e nos encarou — o que nunca fizera
até então —, um por um.19

No olhar do público, também movido pela expectativa do resultado, experimentamos um


pouco do sentimento de frustração do dr. B. quando ele descobre o conteúdo do livro
roubado na prisão, sobre o qual tinha fantasiado tanto. “Nosso amigo”, tão imerso em
seus próprios pensamentos e em suas partidas imaginadas, ficou cego para a realidade,
ausentando-se dela, fugindo das etapas morosas daquele jogo interminável. Quando
declara o desejado final da partida, B. mal olha o tabuleiro. É então que a fria máquina de
jogar olha, não para o tabuleiro, não para B., mas para os espectadores do combate. Os
mesmos senhores, que na condição de jogadores de xadrez não teriam merecido uma
mirada sequer, são interrogados por esse olhar como a um júri da partida, lentamente, um
por um. Czentovic precisa de testemunhas que atestem a insanidade do jogador
atormentado. Acontece que a história particular de B. é de conhecimento apenas do
narrador. Só ele compreende o que se passa e só ele poderia, de alguma maneira,
reconhecer, legitimar e acolher o sofrimento de B., possibilitando que mais uma vez a
vítima da tortura se reconhecesse como alguém que sofre e precisa se poupar, cuidar de
sua saúde.
O narrador nos diz: “Eu não disse nada além de ‘Remember!’”,20 e é curioso que a
formulação contenha a palavra “nada” — esse nada que significava o vazio do quarto no
Metropole é aqui substituído e preenchido pela memória. A novela escrita em alemão no
exílio retrata um processo de desterro, também de exílio, e apresenta um importante
ponto de fuga na palavra em inglês. Ela retira o dr. B. do fluxo de pensamento torturante e
do solilóquio enxadrístico, e a partir dela toda essa experiência é evocada ao mesmo
tempo, mas a uma distância segura proporcionada pelo idioma estrangeiro. A tragicidade
da condição do dr. B. é ter vivenciado uma “esquizofrenia artificial”, uma “divisão da
consciência”, tentando cindir sua cabeça em duas mentes adversárias; mas, além disso, ele
procurou se apartar da realidade corporal que o cercava, criando um espaço imaginário
para se mover: ele aparta a mente de seu corpo, depois provoca uma ruptura na
consciência, como se dela surgissem duas mentes. São cortes profundos, talvez um
reflexo da condição “mutilada” do exilado. Numa carta escrita em Petrópolis ao amigo
Felix Braun, em 21 de novembro de 1941, Stefan Zweig usa uma metáfora afim ao contexto
da novela: “Os outros queimaram o navio atrás de si, se americanizaram, até desistiram da
sua língua — eu estou muito velho para tudo isso”.21 Por isso, “lembrar”, tanto na novela
como na constelação de sua obra de exílio, seria uma forma de recuperar o nexo de
eventos ou de uma existência que se desconfigurou ou ficou cindida.
Quando Zweig escreveu O livro do xadrez, havia concluído seu livro de memórias O
mundo de ontem (1942), para o qual aventara o título “Três vidas”,22 considerando as
guerras como rupturas em sua biografia, mas ele mesmo percebeu que sua obra
memorialística fora escrita em um contínuo. Ele partiu da ideia das quebras para criar
uma narrativa que servisse de amálgama das fases de vida. Em paralelo, o perfil
inacabado do filósofo Montaigne também se pautava por questões do autor com relação à
ideia de uma unidade subjetiva a ser protegida do mundo exterior, dos conflitos políticos
violentos de seu tempo. O gesto de costurar as vidas e reafirmar um núcleo íntimo do
sujeito configura provavelmente um percurso de reflexões que culminaria em O livro do
xadrez e na admissão cabal da contradição desses eus que duelam e quase enlouquecem o
protagonista exilado.
A lembrança como palavra de ordem do narrador emerge como possibilidade não só de
acordar o indivíduo de seu transe (ou pesadelo), mas também como forma de ancorá-lo no
presente, fora daquele quarto e do domínio nazista. Tomando certa liberdade de
associação, “remember” (mesmo advindo de um processo morfológico distinto) ressoa a
palavra inglesa, algo incomum, “re-member”, que significa “reconstituir ou reunir aquilo
que foi desmembrado”. Se avançarmos nessa trilha, a memória poderia simbolicamente,
no contexto da novela, reintegrar o sujeito cindido e apartado de seu passado, permitindo
a nosso amigo não sucumbir à fantasia, não colapsar e se desligar do presente em que vive.
O chamado do narrador à lembrança do trauma parece ser aqui o que apazigua a tensão
entre os dois eus de B., para que ele próprio não se destrua na tentativa de cessar o
sofrimento e a dor da contradição interna.
Na derradeira partida de xadrez, não acompanhamos o desenvolvimento dos lances
nem seu fim potencial. O que nosso amigo enxerga ou antevê, apesar de não nos ser
narrado, poderia ter sido visto não só por ele. Em seu conhecimento vívido do xadrez, das
partidas históricas, em sua capacidade de previsão tão acurada, manifesta-se uma espécie
de cegueira momentânea ou um excesso de visão. Nas palavras de Nasio, “somos
enceguecidos pela luz — o eu não vê mais — e, ao mesmo tempo, somos mais lúcidos do
que nunca, no inconsciente”.23 Talvez B. tenha visto muito além e reagido de acordo com
esse futuro como se ele fosse dado na realidade daquele presente, ou talvez tenha
fantasiado segundo a premissa de Freud, segundo a qual “o desejo utiliza uma
oportunidade no presente para projetar, segundo um modelo do passado, uma imagem do
futuro”.24 Fantasia ou revelação é uma questão de tempo e de suportar a passagem
excruciante dos dias.
Ainda que Czentovic tivesse conseguido imaginar o fim previsto por B. naquela
partida, ele nos convida a todos a olhar para o tabuleiro, verificar a posição das peças e
avaliar a configuração do campo de batalha.
Olhamos para o tabuleiro e em seguida, apreensivos, para o dr. B. […] Alertado por nosso silêncio, também o dr. B.
olhou fixo para o tabuleiro e começou a gaguejar forte […]. Eu não disse nada além de “Remember!”, enquanto
passava o dedo ao longo da cicatriz em sua mão.25

O tabuleiro, a palavra “remember” e a cicatriz desempenhariam a função de anteparo para


o olhar luminoso e ao mesmo tempo cego de B., serviriam de índices para que ele se
localizasse no mundo material, que diferiria do “nada”, do “não lugar”. Seriam índices do
espaço físico, linguístico e de seu próprio corpo, que resgatam o dr. B. de sua imaginação
febril. Perdendo-se nas projeções aceleradas da sua partida mental, ele é constrangido
pelo oponente real e pela perplexidade dos observadores do espetáculo.
A importância desses anteparos é crucial para a manutenção da sanidade, ainda que
fragilizada, do enxadrista diletante. Antonio Quinet, outro psicanalista que investigou a
questão do olhar, diz que “[um]a barra sobre o olhar é a condição da estabilidade e da
constância da realidade que vejo. O olhar, como o Sol e como a morte, não pode ser
olhado de frente”.26 Relembrando o final do escritor e a intensificação do estado febril do
dr. B., seria cabível no âmbito da novela a aproximação entre uma consciência excessiva
do olhar e o perigo da morte.
Poderíamos dar mais um passo com Quinet quando ele comenta a pintura Os
embaixadores (1533) e esboçar um último paralelo com a novela. Na tela de Hans Holbein,
observa-se o perfeito equilíbrio de forças entre os dois cavalheiros retratados com vestes
pomposas e cercados pela multitude de objetos científicos expostos em detalhe. Se
fitarmos desavisadamente o espaço no chão que separa os homens, flagramos uma
mancha atravessada, incompreensível. A surpresa de notar apenas posteriormente o
sinistro motivo seria um sinal de que nossa atenção ignora o grotesco quase colado sobre
o quadro, como se não pertencesse a ele. Ao decodificar a figura transgressora,
reconhecemos uma caveira anamórfica na diagonal, que estava lá nos olhando antes
mesmo que a víssemos.27
Lembremos da surpresa e do constrangimento do dr. B. no instante em que ele se dá
conta de que no tabuleiro físico seu xeque estava impedido por um peão. Sua noção de
jogo tinha sido construída em bases puramente lógicas e foi confrontada com o jogo
“real”, sendo flagrada na precipitação de seu último lance. Soberano na previsibilidade
das formas, seu olhar dominava o jogo, até que o mundo material se impôs como uma
força mortífera que vem de baixo e surpreende o enxadrista desprevenido, concentrado
em seu próprio olhar. Aquele peão que protegia o rei de Czentovic seria a caveira no
quadro do tabuleiro que atua em duas dimensões, pois nem B. nem o leitor veem o peão,
sendo ambos surpreendidos na ânsia pela vitória daquele que se tornou “nosso amigo”.
Mirko Czentovic e o dr. B. são introduzidos na novela como polos distintos.
Czentovic, ligado a tarefas materiais, imediatas e práticas, como se sofresse de um déficit
da capacidade intelectual e imaginativa; B. ocupando o polo da cultura e da educação. No
confronto entre os dois, porém, percebemos que o primeiro se vale de certo refinamento
em seu modo de afetar o outro. O cordial dr. B. se descontrola, reagindo agressivamente
com provocações. Antes, sozinho na cela do Metropole, sem poder depositar sobre outra
pessoa sua angústia e sua raiva, ele direcionava contra si mesmo esses sentimentos.
Ambas as personagens se deslocam para o polo oposto de sua caracterização inicial.
A ambiguidade das duas personagens e seu deslocamento reativo podem ser lidos
como um importante alerta da novela para um aspecto da condição humana e da própria
narrativa histórica. Cultura e barbárie são permeáveis. No regime nacional-socialista, as
formas de barbárie são perversamente civilizadas no sentido de seu aparato burocrático,
linguístico, tecnológico, social. Quem tentou escapar ao seu jugo, na Europa ou no Brasil,
tampouco esteve a salvo da violência social e psicológica que sobrevêm ao indivíduo
ameaçado, sendo também dilacerantes seu esquecimento e sua perda de identificação
consigo. Desse modo, a novela escaparia a uma dicotomia moralizante, assim como, ao
fim, seu escritor também parece tentar escapar em sua despedida.
Zweig conduz a leitura no sentido da empatia pelo dr. B. por sua postura gentil e
cautelosa, por sua coragem não heroica e sua condição inquestionável de vítima, mas a
narrativa não abre mão do reconhecimento das contradições internas e, talvez, de uma
ética da alteridade, na qual é preciso suportar a visão do real, olhar atentamente saídas
possíveis, enxergar o outro e não se perder nesse olhar.

MARIANA HOLMS
Notas

1. Aqui há uma confusão do autor, Samuel Reshevsky nasceu em 1911 e tinha onze anos de idade em 1922. (N.E.)
2. Engelbert Dollfuss (1892-1934) e Kurt Edler von Schuschnigg (1897-1977) foram os últimos chanceleres da
Áustria antes da anexação do país à Alemanha nazista, em 1938. (N.T.)
3. Pequena cidade da Bélgica onde Zita, mulher de Carlos I, último imperador austríaco, viveu entre 1929 e 1940.
(N.T.)
4. Cf. p. 27 desta edição.
5. Juliana P. Perez, “‘Remember’: Nicht-Orte in Stefan Zweigs Schachnovelle”. Em: KRAUSZ, Luis S.; PEREZ,
Juliana P. (Orgs.). Übergänge: Mitteleuropa im Werk jüdischer Autoren. Leipzig: Hentrich & Hentrich, 2020, p.
90.
6. Klemens Renoldner, “Anhang: Editorische Notiz, Anmerkungen, Literaturhinweise, Nachwort”. Em: ZWEIG,
Stefan. Schachnovelle. Edição anotada. Leipzig: Reclam, 2013, p. 108.
7. Ibid., p. 114.
8. Alberto Dines, Morte no paraíso. Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p. 443.
9. Ibid., p. 418.
10. Cf. p. 39 desta edição.
11. Sigmund Freud, “O poeta e o fantasiar”. Em: FREUD, Sigmund. Arte, literatura e os artistas. Trad. Ernani
Chaves. Belo Horizonte: Autêntica, 2015, pp. 53-66.
12. Cf. p. 47 desta edição.
13. Klemens Renoldner, op. cit., p. 155.
14. Klemens Renoldner, op. cit., p. 156.
15. Juliana P. Perez, op. cit., p. 96.
16. Cf. p. 49 desta edição.
17. Cf. p. 20 desta edição.
18. Juan-David Nasio, O olhar em psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995, p. 91.
19. Cf. p. 63 desta edição.
20. Cf p. 64 desta edição.
21. Stefan Zweig, “Briefe an Felix Braun”. Em: FITZBAUER, E. (Org.). Stefan Zweig. Spiegelung einer
schöpferischer Persönlichkeit. Viena: Bergland Verlag, 1959, p. 93.
22. Cf. carta de Stefan Zweig a Ben Huebsch, escrita no final de julho de 1941. (Briefe 1932-1942. Org. de Von
Knut Beck e Jeffrey B. Berlin. Frankfurt: S. Fischer, v. 4, 2005.)
23. Juan-David Nasio, op. cit., p. 32.
24. Sigmund Freud, op. cit., p. 59.
25. Cf. p. 64 desta edição.
26. Antonio Quinet, Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p. 46.

27. Ibid., p. 148.


Stefan Zweig nasceu em Viena, em 1881, em uma família judia abastada. Romancista,
biógrafo, poeta e tradutor, foi um dos escritores de maior êxito na Europa dos anos 1930,
amplamente traduzido antes da Segunda Guerra Mundial. Com a ascensão do nazismo,
Zweig foi obrigado a emigrar para Londres e depois para Nova York, estabelecendo-se
por fim no Brasil, onde cometeu suicídio ao lado da esposa em 1942 na cidade de
Petrópolis. Entre suas numerosas obras, destacam-se Brasil, país do futuro (1941) e
Autobiografia: O mundo de ontem (1942).
Copyright da tradução © 2021 Editora Fósforo Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode
ser reproduzida, arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio sem a permissão expressa e
por escrito da Editora Fósforo.

EDITORAS Rita Mattar e Juliana de A. Rodrigues ASSISTENTES EDITORIAIS Mariana Correia Santos e Cristiane
Avelar PREPARAÇÃO Ibraíma Dafonte Tavares LIBERAÇÃO DA PREPARAÇÃO Maria Emilia Bender REVISÃO
Eduardo Russo e Paula B. P. Mendes PRODUÇÃO GRÁFICA Jairo da Rocha CAPA Alles Blau
ILUSTRAÇÃO DA CAPA Fabrizio Lenci PROJETO GRÁFICO DO MIOLO Alles Blau EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Página Viva VERSÃO DIGITAL Marina Pastore
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Zweig, Stefan, 1881-1942


O livro do xadrez [livro eletrônico] / Stefan Zweig ; tradução Silvia Bittencourt ; posfácio Mariana Holms. --
São Paulo : Fósforo, 2021.
ePub

Título original: Schachnovelle


ISBN 978-65-89733-35-5

1. Ficção austríaca I. Holms, Mariana. II. Título.


CDD-At833
21-77175

Índice para catálogo sistemático:


1. Ficção : Literatura austríaca At833

Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427

Editora Fósforo
Rua 24 de Maio, 270/276
10o andar, salas 1 e 2 — República
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ousadia e precisão estilística, ela lança mão de um sujeito coletivo e indeterminado,
que ocupa o lugar do eu para dar luz a um novo gênero literário, no qual recordações
pessoais se mesclam à grande História, numa evocação do tempo única. Nascida em
1940, em uma pequena cidade no interior da França, Ernaux pertence a uma geração
que veio ao mundo tarde demais para se lembrar da guerra, mas que foi receptora
imediata das recordações e mitologias familiares daquele tempo. Uma geração que
nasceu cedo demais para estar à frente de Maio de 68, mas que ainda assim viu
naquelas manifestações a possibilidade dos mais jovens de uma liberdade que por
pouco não pode gozar. Finalista do International Booker Prize e vencedor dos prêmios
Renaudot na França e Strega na Itália, Os anos é uma meditação filosófica poderosa e
uma saborosa crônica de seu tempo. Pela prosa original de Ernaux, vemos passar seis
décadas de acontecimentos, entre eles a Guerra da Argélia, a revolução dos costumes,
o nascimento da sociedade de consumo, as principais eleições presidenciais francesas,
a virada do milênio, o 11 de Setembro e as inovações tecnológicas, signo sob o qual
vivemos até hoje.

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