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Memória da eletricidade 58 Por Lívia Cunha O Setor Elétrico / Fevereiro de 2010

Padrões brasileiros
Até a segunda metade do século XIX, os modelos de tensão e frequência existentes no Brasil ora
seguiam as referências europeias, ora as americanas, em virtude do custo, local ou procedência
dos equipamentos fornecidos. Essa diversidade só deixou de existir a partir da década de 1960,
quando as medidas foram uniformizadas por meio de leis e decretos. Conheça esse processo.

Depois que as técnicas de geração, transmissão e distribuição de energia foram aprimoradas,


passou-se a gerar energia elétrica alternada para suprir as necessidades da população a partir
de geradores como este, de uma usina hidrelétrica do início do século XX.
O Setor Elétrico / Fevereiro de 2010

Em geral, padrões são definidos por produtos alemães. As principais frequências em


aqueles que regulam um determinado setor a questão e que eram usadas no Brasil eram a de 50
partir, principalmente, da utilização de produtos ou Hz e a de 60 Hz. Sendo, de modo geral, 60 ciclos o
serviços pelos consumidores finais. Sua definição adotado pelos americanos e 50 pelos europeus.
depende dos interesses envolvidos neste processo; O engenheiro eletricista e ex-diretor da divisão
do período histórico em que tal fato acontece; do de potência do Instituto de Eletrotécnica e Energia
impacto que esta definição deve ter; e do custo da da Universidade de São Paulo (IEE/USP), Duílio
criação de um padrão, que unifica e uniformiza Moreira Leite, explica que no Brasil “inicialmente
produtos, conceitos e mentalidades. Criar um padrão foram adotadas as duas frequências, cuja escolha
passa não só pelo estabelecimento de normas e dependia dos geradores comprados para as usinas
modelos para a indústria seguir, mas, sobretudo, por geradoras”. Essas diferenças eram percebidas até
uma mudança de mentalidade da população, técnica mesmo nas duas principais cidades brasileiras.
ou leiga, para se adequar às alterações. No caso do Rio de Janeiro, por exemplo, o
Quando as primeiras e pequenas usinas de fornecimento era feito em 50 Hz, enquanto em São
geração de energia elétrica se instalaram no Paulo, em 60 Hz. Isso até meados do século XX.
Brasil, na segunda metade do século XIX, não Mas isso não só aconteceu com a frequência.
havia padrões nacionais, fosse para frequência, As tensões elétricas utilizadas dependiam mais da
tensão ou tipo de corrente adotada. Os modelos, instalação, do fornecimento da empresa elétrica e
inclusive, demoraram muitos anos até que fossem dos equipamentos que utilizariam a fonte elétrica.
estabelecidos e, mais importante, seguidos. Porque, Ambas as questões foram uniformizadas no Brasil
cabe lembrar aqui, que, no Brasil, há leis e decretos na segunda metade do século XX, quase 100 anos
que “pegam”, quando são seguidos e cumpridos após o início do setor no País.
como a legislação determina, e outros que “não
pegam”, quando a população continua a viver Primórdios
como se aquelas leis não existissem.
Até que esse hiato entre a elaboração de uma A energia elétrica chegou ao Brasil primeiro
legislação que regulamentasse e estabelecesse para fornecimento de iluminação pública, mais
padrões de funcionamento no País e o efetivo eficiente do que as anteriormente adotadas, como
cumprimento, o setor elétrico brasileiro se gás ou querosene, em um período histórico que o
desenvolveu e consolidou. Da criação da primeira País fazia parte do grupo de pioneiros mundiais
hidrelétrica brasileira, a usina de Ribeirão do na aplicação de energia elétrica. Isso foi graças ao
Inferno, na cidade de Diamantina, em Minas interesse do imperador Dom Pedro II, um entusiasta
Gerais, no ano de 1883, até a década de 1970, da ciência, pela nova tecnologia surgida depois da
quando efetivamente os padrões se tornaram chamada Segunda Revolução Industrial, quando
modelos institucionalizados, muito aconteceu. a eletricidade se firmou como principal fonte
Até as décadas de 1960 e 1970, a utilização de energética, em detrimento das máquinas a vapor.
determinada frequência elétrica, por exemplo, Em 1879, Dom Pedro II inaugurou o primeiro
era definida pelas máquinas usadas em cada serviço de iluminação elétrica permanente do País,
empreendimento e não por um padrão nacional. o da antiga estação da Corte, hoje chamada de
Cada interessado adotava o utilizado pelos Estação Dom Pedro II, na estrada de ferro Central
países que vendiam os equipamentos. Assim, foram do Brasil, na cidade do Rio de Janeiro, então
estabelecidos os primeiros padrões estaduais. Quem capital federal. Nela, segundo o artigo A energia
comprasse máquinas motrizes dos Estados Unidos elétrica no Brasil, foram instaladas seis lâmpadas
para instalar em uma pequena usina geradora, que, de arco voltaico tipo Jablockhoff, que substituíram
no início, também era distribuidora e transmissora, 46 bicos de gás. Depois dessas, em 1881, 16
teria padrões diferentes daqueles que adquirissem outras lâmpadas foram instaladas no Campo da
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Aclamação, hoje Praça da República, também elétrica correta. Como o Brasil tem dimensões
no Rio de Janeiro, com energia fornecida de um territoriais, até que isso se tornasse uma verdade no
locomóvel com dois dínamos. País, muito tempo e trabalho foram necessários.
Em seguida, em 1883, a cidade de Campos
dos Goytacazes, litoral norte fluminense, foi a Frequência elétrica
primeira cidade sul-americana a receber iluminação
elétrica pública. O imperador inaugurou naquele A frequência elétrica é uma grandeza física
município uma máquina térmica acionadora por que indica quantos ciclos a corrente elétrica
três dínamos com potência de 52 kW, que era completa em um segundo. Se ela não for a
capaz de fornecer energia para 39 lâmpadas de correta, os equipamentos elétricos não funcionam
duas mil velas cada. Considerando que a lâmpada ou funcionam de modo inadequado. Quando as
elétrica foi inventada por Thomas Alva Edison em empresas de eletricidade começaram a se instalar
1879, podemos perceber como o Brasil, de fato, no Brasil, elas funcionavam de acordo com as
era pioneiro na aplicação dessa tecnologia e seus máquinas importadas, projetadas para determinada
experimentos eram contemporâneos aos dos demais frequência. As advindas da Alemanha funcionavam
países desenvolvedores de técnicas, equipamentos e em 50 Hz, e as americanas em 60 Hz.
conceitos relativos à eletricidade. O engenheiro Duílio Leite explica a origem
Mas a definição de padrões se fez mais dessas diferenciações: “sempre houve duas
importante só depois que a energia passou a frequências para o sistema de potência, 50 Hz
ser gerada no País em usinas, que ampliavam na Europa e 60 Hz na América do Norte (Estados
a capacidade produtiva e potencializavam Unidos e Canadá)”. A origem, no primeiro caso,
a distribuição. A primeira usina de geração conta Duílio, é que “os europeus sempre pensaram
hidrelétrica para uso privado também é de 1883. no sistema métrico, múltiplos e submúltiplos de
Ela, a Usina do Ribeirão do Inferno, aproveitava as 10 (como no caso do metro, decímetro, centímetro,
águas do afluente do rio Jequitinhonha, localizado etc.). Por isso, pensaram que o segundo deve
na cidade de Diamantina, em Minas Gerais. ter 100 meios ciclos ou 50 ciclos”, surgindo aí a
Seis anos depois, em 1889, no ano da definição da frequência em 50 Hz, porque ela é
Proclamação da República, foi inaugurada a dependente de tempo em segundos.
primeira hidrelétrica para serviço de utilidade Por sua vez, “os americanos pensaram que, como
pública também em Minas Gerais, mas, dessa vez, a frequência depende do tempo e o sistema do tempo
no município de Juiz de Fora. A usina, chamada sexagesimal é universal, a hora tem 60 minutos, o
de Marmelos-Zero, foi instalada no rio Paraibuna, minuto tem 60 segundos, portanto, o segundo deve
próxima à estrada União-Indústria, que ligava a ter 60 ciclos. Parece lógico, não?”, questiona o ex-
cidade de Petrópolis, no Estado do Rio de Janeiro, a diretor da divisão de potência do IEE/USP.
Juiz de Fora. Em Marmelos-Zero foram instalados Mas não só dessas duas faixas de frequência
dois geradores monofásicos de 125 kW cada, com vivia o mundo e, em especial, o Brasil. A adoção
tensão de 100 V e frequência de 60 Hz. de uma frequência para o intercâmbio energético
Com a instalação de usinas, a energia gerada dentro de um mesmo país era imprescindível, mas
no País passou a atender, gradativamente, a mais como o Brasil é territorialmente muito grande,
tipos de consumidores. A iluminação pública, os as faixas de frequência adotadas até a metade do
transportes públicos, o fornecimento para empresas século XX eram diversas, como apresenta o livro
e, por último, o atendimento a residências. Aos Energia elétrica no Brasil. Além da divisão entre 60
poucos, a energia elétrica foi se tornando parte da Hz e 50 Hz, havia cidades como Curitiba, no Estado
vida das pessoas, mas, para que o fornecimento do Paraná, que adotava a frequência de 42 Hz.
pudesse atingir cada vez mais consumidores, a Outros exemplos da pluralidade brasileira eram as
geração tinha que aumentar e os equipamentos a cidades de Jundiaí, em São Paulo, e de Petrópolis,
serem beneficiados por essa energia tinham que no Rio de Janeiro, que utilizavam 40 Hz e 125 Hz,
seguir um mesmo padrão de grandezas elétricas. respectivamente.
Assim, as máquinas tinham que estar Na Europa, no mesmo período, de acordo com
preparadas para receber a tensão exata de o livro, coexistiram até 11 frequências diferentes.
fornecimento, caso contrário, poderiam não Na Alemanha, a frequência utilizada era de 50 Hz.
funcionar e, inclusive, oferecer risco aos usuários e Assim, as cidades brasileiras que importavam mais
deveriam estar também de acordo com a frequência equipamentos alemães utilizavam essa frequência
Memória da eletricidade 62

como padrão, como era o caso da então capital


brasileira, a cidade do Rio de Janeiro.
O documento Companhias interligadas
da região Centro-Sul, da São Paulo Light, de
1964, explicitava os problemas que poderiam
ser causados pela variação dessa grandeza e a
utilização de frequência abaixo do padrão. Diz ele
que “experiências realizadas na França mostraram
que 1% de abaixamento na frequência determinou
abaixamento de 0,7% na carga e 1% na diminuição
na tensão diminuiu a carga em 1,6%”.
Experimentos na zona de concessão da empresa
mostraram, em 1964, que “procurando reduzir o
consumo de água, o Despacho de Carga da São
Paulo Light realizou experiências que indicaram
que com o abaixamento de 60 ciclos por segundo
para 59 há uma queda de aproximadamente 3% na
Nos primórdios da geração de energia elétrica para geração instantânea. Destes, podemos considerar
utilização humana, eram utilizados dínamos e baterias,
que produziam energia em corrente contínua, como este que cerca de 1% foi devido à queda de tensão
dínamo de capacidade de geração de 310 A a 7 V
ou 2.170 W, quando rotacionado a 1.400 RPM. que acompanha o abaixamento de frequência
e os outros 2% devidos à queda de frequência
As correntes elétricas propriamente”.
Quando as empresas de produção de energia
As primeiras experiências de geração de energia elétrica foram feitas por elétrica começaram a crescer e a incorporar outras
meio de corrente contínua. Antes da instalação de usinas geradoras, a fonte de pequenas usinas, começou um processo próprio
fornecimento da eletricidade provinha de baterias e dínamos elétricos. Estes são de unificação para que elas pudessem fazer um
aparelhos que geram corrente contínua convertendo energia mecânica em elétrica, intercâmbio energético. Não só a definição de um
através de indução eletromagnética, enquanto aqueles são dispositivos que padrão de frequência era importante para interligar
armazenam energia química e a disponibiliza em forma de energia elétrica. e conectar usinas e sistemas, era necessário que a
Nesse período, no final do século XIX, fosse no Brasil ou no restante do frequência fosse mantida o mais constante possível
mundo, as instalações que eram abastecidas com energia elétrica a recebiam de para uma melhor eficiência de funcionamento das
maneira limitada, normalmente, durante só um determinado período do dia e a geradoras.
fonte geradora precisava estar a uma curta distância da consumidora. Isso porque,
quando se aumentavam as distâncias, eram registradas muitas perdas elétricas, A padronização
já que a técnica não estava aprimorada. Era o período inicial de exploração da
eletricidade enquanto fonte energética. Só depois do desenvolvimento comercial Essa necessidade de padronização de frequência
da corrente alternada e de inauguradas as primeiras usinas geradoras com maior ficou ainda mais clara quando o Grupo Light
capacidade instalada, gerar, transmitir e distribuidor energia elétrica a um número decidiu interligar as usinas do Rio de Janeiro e
maior de pessoas se tornou possível. de São Paulo. Acontece que uma parte estava em
A transmissibilidade da corrente alternada, que permite que a energia seja 50 Hz e a outra em 60 Hz. A solução provisória
transmissível e transportável a grandes distâncias com baixas perdas, contribuiu adotada foi a criação da estação inversora de
para que a utilização da eletricidade fosse desenvolvida. O século XX, que frequência de Aparecida, no Estado de São Paulo,
viu o início, o desenvolvimento e diversas crises de eletricidade, foi marcado mas próxima ao Rio de Janeiro, para fazer a
pela dominação da corrente alternada sobre a contínua. Entretanto, é possível mudança da frequência de um Estado para o outro.
encontrar importantes circuitos alimentados por corrente contínua que não Ela dispunha de um conversor de frequência com
tenham o fornecimento provindo de baterias elétricas. É o caso do linhão de Usina potência de 50 MW.
Hidrelétrica de Itaipu, que tem metade da sua geração em corrente contínua. Antes disso, entretanto, o governo federal
“O Brasil tem a linha de mais alta tensão em corrente contínua - existe só mais publicou o Decreto-Lei nº 852, de 11 de novembro
uma no mundo (em 600 kV) e certamente a de maior potência (metade da potência de de 1938, para padronizar a frequência em todo
Itaipu - a que coube ao Paraguai). Está prevista outra linha também em 600 kV para o território nacional em 50 ciclos por segundo.
mandar para o sudeste a energia das usinas em construção no rio Madeira”, pontua Deu um prazo, improrrogável, de oito anos para
o engenheiro eletricista e ex-diretor da Divisão de Potência do Instituto de Energia e o cumprimento dessa disposição. O engenheiro
Eletrotécnica da Universidade de São Paulo (IEE/USP) Duílio Moreira Leite. eletricista e historiador Gildo Magalhães conta que
esse decreto não foi obedecido e essa questão foi A lei dispôs sobre a unificação de frequência da
se arrastando até a década de 1960, quando foi, de corrente elétrica no País e dizia que o emprego de
fato, estabelecido o padrão de 60 Hz. frequência seria progressivo, definido pelo MME.
Há registros de uniformizações estaduais, A partir de 1965, a Light iniciou o processo
como a que aconteceu no Rio Grande do Sul. A de conversão de frequência na área do Rio de
Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), Janeiro que levou sete anos, concluído em 1971,
concessionária daquele Estado, cerca de quatro sendo que ela tinha como prazo até 1973. Além
anos após a data do primeiro decreto-lei, alterou disso, o Estado do Rio Grande do Sul, que alterou
a frequência adotada nas poucas cidades rio- sua frequência com o decreto-lei de 1938 e 26
grandenses que operavam em 60 Hz para 50 anos depois, pela lei de 1964, teve que modificar
Hz, a exemplo de Caxias do Sul, Garibaldi, novamente seus sistemas, aderindo ao novo padrão
Tupanciretã e Rio Grande. Por outro lado, algumas por completo em 1978, depois de um trabalho de
concessionárias de outros Estados, em especial do conversão de frequência, iniciado em 1969 pela
Centro-Sul, continuaram a operar em 60 ciclos por Eletrobrás, Eletrosul e CEEE.
segundo. Conforme o folheto explicativo da CEEE, A lei determinava ainda que nenhuma nova
a frequência foi mantida “devido principalmente às instalação de geração de distribuição de energia
dificuldades criadas pela Segunda Guerra Mundial elétrica para serviços públicos ou de utilidade
e, depois de terminado o conflito, continuaram a pública seria autorizada sem que operasse ou
expandir-se na mesma frequência”. pudesse operar em 60 Hz, salvo em circunstâncias
O engenheiro eletricista e mecânico, ex-diretor excepcionais. Um caso excepcional a ser citado foi
presidente da Light e ex-diretor de Operação de da Usina Hidrelétrica de Itaipu, empreendimento
Sistemas da Eletrobrás José Marcondes Brito de binacional construído pelo Brasil e Paraguai, no rio
Carvalho acrescenta que o Decreto nº 41.019, de Paraná, em território pertencente aos dois países.
26 de fevereiro de 1957, estabelecia no artigo 46 O fato é que o Paraguai, bem como os demais
que, “nos serviços de energia elétrica será adotada países do cone sul latino americano (Bolívia,
a corrente alternada, trifásica, sendo admitida, Chile, Argentina e Uruguai), utiliza como padrão a
enquanto não for unificada a frequência no País, frequência em 50 Hz. Como o Brasil divide metade
as frequências de 50 e 60 ciclos por segundo, de da energia gerada pela binacional com o país
acordo com a zona em que estiverem instaladas”. vizinho, a definição de como essa energia seria
A delimitação das zonas de frequências ficaria a produzida foi uma questão polêmica, das muitas,
critério do Conselho Nacional de Águas e Energia envolvendo a obra da usina.
Elétrica (CNAEE), órgão extinto do Ministério A historiadora Ivone Teresinha Carletto de
de Minas e Energia que deu origem à Agência Lima, autora de Itaipu: as faces de um mega
Nacional de Energia Elétrica (Aneel). projeto de desenvolvimento, explica que “a questão
Dessa forma, é possível perceber que da frequência não havia sido contemplada
definitivamente não havia uma frequência pelo Tratado de Itaipu. Para uma barragem das
unificada no País. “A interligação dos diversos proporções de Itaipu, com investimentos grandiosos
sistemas para um aproveitamento mais racional e consequências econômicas igualmente relevantes,
de energia gerada exigiu uma solução definitiva esse fator era de vital importância”. Como o
para este problema da unificação da frequência. Brasil tinha maior aporte financeiro e seria o que
Esta situação já trazia preocupações ao governo, consumiria maior parte da energia a solução mais
desde 1954, quando instituiu o Plano Nacional de prática seria o Paraguai mudar de frequência.
Eletrificação”, relembra Brito. Contudo, por pressão política, o povo paraguaio
O fato é que a frequência de 60 Hz tinha uma considerava uma questão de supremacia nacional
predominância cada vez mais acentuada no País, não se submeter ao desejo brasileiro, e também
notadamente em áreas de grande desenvolvimento uma medida econômica, pois o país pretendia
industrial e econômico, como São Paulo e ainda construir outra usina com a Argentina,
outras cidades da região Centro-Sul. Este fator, que utiliza a mesma frequência padrão. Assim,
entre outros, levou o governo federal a adotar ficou definido que Itaipu teria duas frequências.
esta frequência como padrão. Foi então com a Uma metade, referente à energia brasileira, seria
publicação, pelo presidente Castelo Branco, da gerada em corrente alternada em 60 Hz, enquanto
Lei nº 4.454, de 6 de novembro de 1964, que a a outra metade, referente ao Paraguai, seria em
frequência de 60 ciclos por segundo foi adotada. 50 Hz. Como já tinha ficado acertado pelo tratado
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O engenheiro Duílio Leite lembra que, nesse


F. Garcia Photo - Arquivo Público Mineiro

período, “a escolha de padrão 60 Hz para o


Brasil foi pela predominância dos equipamentos
industriais nessa frequência em todo o país. Havia
poucos aparelhos eletrodomésticos que usavam
motores e o custo para os usuários de energia era
pequeno. Muitos funcionavam não tão bem em
outra frequência, mas o usuário não percebia”.
Quando foi estabelecida a lei que determinava
a frequência brasileira tal como é hoje, em 1964,
o País vinha de um período de industrialização
acentuada, do governo de Juscelino Kubitschek,
de 1956 a 1961, e acabaria por entrar em período
conhecido como Milagre Econômico, entre 1969
e 1973, durante o regime militar, quando o Brasil
experimentaria um período de grande crescimento
econômico, puxado, mais uma vez, pelas indústrias
e pelo crescimento populacional.

Tensão

Já na questão do padrão de tensão de


A primeira usina de geração elétrica brasileira estava localizada em Minas Gerais, mesmo Estado
distribuição, o processo se deu de forma um pouco
desta subestação de energia elétrica localizada na cidade de Uberaba, do início do século XX.
diferente. A tensão elétrica inicialmente dependia da
companhia distribuidora, que, até a desverticalização
do setor elétrico brasileiro, era realizada pela mesma
empresa que gerava a energia. Nesse período, o que
determinava a tensão, segundo Duílio, era o custo.
de construção da geradora, a sobra da energia Isso porque “quanto maior fosse a tensão, menores
que o país guarani não consumisse seria vendida seriam os custos da distribuição e menores também
ao Brasil. A energia então gerada em 50 Hz é os custos para os consumidores nas suas instalações
convertida e transmitida em corrente contínua e, residenciais ou industriais”.
próxima ao centro de consumo é então convertida Em São Paulo, por exemplo, existiam três
em corrente alternada na frequência de 60 Hz, faixas de tensão: 208 V/120 V, na região central
pronta para ser transmitida e distribuída aos da cidade, onde há uma instalação subterrânea;
consumidores brasileiros. 230 V/115 V, o chamado sistema híbrido; e 220
V/ 127 V. Nas regiões em que havia consumidores
Influências residenciais e industriais na mesma área, a São
Paulo Light adotava um sistema híbrido que
É importante ressaltar mais uma vez que fornecia energia trifásica em 230 V e monofásica
a vitória da frequência de 60 Hz sobre a de 50 em 115 V ou 230 V. Nesse ponto, Duílio relata
ciclos por segundo se deveu também à tardia que “os transformadores trifásicos ou bancos de
industrialização brasileira. Depois do fim do ciclo transformadores monofásicos tinham um ponto
do café, em 1930, desenvolvido sobretudo no central em um dos secundários que não era o
Estado de São Paulo, e do início da industrialização neutro. Deste enrolamento ou deste transformador
de base, no mesmo período, com Getúlio Vargas, com ponto central saíam as alimentações para as
concentrada também nessa unidade federativa, residências e do conjunto de transformadores (ou
diversos empreendimentos industriais foram de um transformador trifásico) saíam as tensões
desenvolvidos. Isso contribuiu para que a demanda trifásicas para as oficinas e fábricas”.
energética dessa região fosse mais acentuada, Algumas fábricas recebiam, então, os dois
concentrando um maior número de usinas, sistemas: 230 V/115 V, para iluminação, e 230 V,
empresas e empreendimentos que utilizavam trifásico, para as máquinas. Essas diversas faixas
máquinas motrizes, tais como os motores. de distribuição, entretanto, geravam confusão e
alguns choques aconteciam. Especialmente quando ainda hoje fazer instalação de iluminação, por
uma pessoa pegava um fio direto do trifásico (em exemplo, toda em 220 V e ter tomadas em 110
230 V) e um terra e aplicava a um novo circuito, V/127 V ou 220 V”.
com cerca de 180 V entre fase e neutro. Isso gerava Como todas as residências recebem 220 V,
a queima de lâmpadas e de pequenos aparelhos a tensão residencial depende mais da instalação
monofásicos. feita nas casas, do que do fornecimento. Apesar
Por conta disso, em muitas cidades, por escolha disso, pode-se dividir algumas cidades por maior
da distribuidora local, foram usadas as soluções utilização de determinada faixa de tensão. “Sobre
220 V/110 V ou 220 V monofásico, 220 V/127 o uso domiciliar de energia elétrica, a alimentação
V ou ainda 208 V/120 V. Essas diferentes faixas depende da carga a ser atendida. Na maior parte
geravam para o consumidor comum residencial do País, nas residências, a ligação monofásica
uma diferença na duração e no rendimento prevalece, na tensão de 127 V, como é o caso do
das lâmpadas, além de redução da vida útil de Rio de Janeiro, São Paulo, Belém, Belo Horizonte,
funcionamento dos eletrodomésticos. Só que alguns Corumbá, Cuiabá, Curitiba, Foz do Iguaçu, Porto
desses problemas não são percebidos pelas pessoas Alegre, Salvador e Santarém. A tensão de 220 V é
leigas, não conhecedoras dos processos elétricos. usada em Brasília, Florianópolis, Fortaleza, Recife
Para tentar criar um padrão, otimizar o e São Luís”, pontua o ex-presidente da Light, José
fornecimento, melhorar o rendimento dos Brito de Carvalho.
equipamentos e a eficiência energética deles, a A diferença de utilização de tensão fornecida pelas
Eletrobrás nomeou, na década de 1970, uma comissão distribuidoras ao longo do País - por exemplo, mais
para escolher um modelo brasileiro de tensão. Essa instalações em Estados do Nordeste em 220 V enquanto
comissão culminou na publicação, pelo presidente no Centro-Sul se concentra mais circuitos em 110 V/127
Emílio Garrastazu Médici, do Decreto nº 73.080, de 5 V - pode ser explicado, para Gildo Magalhães, por dois
de novembro de 1973, que regulamentou os serviços fatores: um cultural e outro econômico.
de energia elétrica e estabeleceu os padrões de tensões Isso porque, para ele, em lugares que há mais
nominais para novas instalações. influência europeia e que, por isso, antigamente
De acordo com o texto legal, ficou estabelecido adquiria-se mais equipamentos fabricados naquele
que, para transmissão e subtransmissão em corrente continente, encontra-se mais facilmente instalações
alternada, as tensões poderiam ser de 750 kV, 500 de 220 V, já que é o modelo adotado em alguns
kV, 230 kV, 138 kV, 69 kV, 34,5 kV e 13,8 kV. Já países do outro lado do Atlântico. Por outro lado, a
para distribuição primária de corrente alternada em instalação em 220 V é, em teoria, mais econômica,
redes públicas, as tensões padrões deveriam ser de por isso, é possível que esse tipo de sistema tenha
34,5 kV ou 13,8 kV; e, por fim, para distribuição sobressaído em regiões em que há um percentual
secundária de corrente alternada em redes públicas, maior de pessoas mais pobres.
poderiam ser 380 V/ 220 V, 220 V/ 127 V, em redes Por fim, hoje a Eletropaulo, concessionária que
trifásicas a quatro fios, três fases e um neutro, e atende à cidade de São Paulo, vem procurando
230 V/ 115 V, em redes monofásicas a três fios. substituir os sistemas 230 V/115 V por 220 V/127
A solução mais econômica encontrada pela V e em outras cidades do Estado de São Paulo
Eletrobrás, de 380 V/ 220 V, era adotada na Europa as companhias distribuidoras padronizaram aos
e foi adotada em muitos Estados, “mas não se poucos o 220 V/127 V.
pode, de uma hora para outra, trocar a tensão onde
havia um número muito maior de consumidores, Pesquisa
em São Paulo, principalmente”, opina o engenheiro
• “A energia elétrica no Brasil” – Bertanha Grupos
eletricista Duílio Moreira Leite. Geradores
Apesar da definição de valores de tensão a • “Energia elétrica no Brasil” – Ed. Biblioteca do Exército
• “Companhias interligadas da região centro-sul” – IV
serem seguidos, para o engenheiro eletricista e
Reunião – Palestras proferidas na Usina Henry Borden –
historiador Gildo Magalhães, não se pode afirmar, Light São Paulo – 1964
na verdade, que há uma padronização no País, • “Fornecimento de energia elétrica em tensão secundária de
porque é possível encontrar diferentes Estados distribuição – instruções gerais” – Eletropaulo – 1986
• “Fornecimento de energia elétrica – tensão de
e regiões com instalações em tensões diferentes.
subtransmissão 88/138 kV” – Eletropaulo – 1988
Apesar de “todos recebermos 220 V em casa, em • “Itaipu: as faces de um mega projeto de desenvolvimento”
duas linhas, que têm diferença de 110 V cada uma – Ivone Teresinha Carletto de Lima – Ed. Germânica
• “CEEE: a questão da frequência” – Serviço de Relações
para o neutro e de 220 V entre elas, é possível
Públicas – 1966

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