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Eu sou maior do que o meu sofrimento

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Há pessoas de tal forma encerradas no seu sofrimento


que, num momento de crise, podem sentir-se
desesperadas, parecendo-lhes que o suicídio é a única
saída. Dois homens e uma mulher contam ao Expresso
como o facto de terem recebido ajuda na hora certa
evitou a sua morte

texto Maria João Bourbon

uando, em 1938, as tropas de Hitler invadiram a Áustria,


a vida do judeu Viktor Frankl mudou para sempre. O
neuropsiquiatra austríaco seria enviado poucos anos
depois para Auschwitz, na Polónia, e a mulher grávida
para um campo de concentração distinto. No livro “O
Homem em Busca de Um Sentido” revela como o desejo
de reencontrar a mulher o ajudou a sobreviver aos
campos de concentração nazis e de que forma superou
o confronto com a realidade que se seguiu quando, já
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em liberdade, se apercebeu que a mulher estava morta
— através de outro sonho, que passava por explicar ao
mundo qual tinha sido o seu método para sobreviver e
encontrar um sentido no sofrimento extremo. “A busca
de sentido por parte do Homem é a motivação essencial
da sua vida”, mas “o verdadeiro sentido da vida tem de
ser descoberto no mundo e não dentro dos homens e da
sua psique, como se fosse um sistema fechado”,
escreveu. “Quanto mais uma pessoa se esquece de si
própria — entregando-se a uma causa ou ao amor de
outra pessoa — mais humana se torna e mais se efetiva
ou atualiza.”

O livro é destacado por Hugo Bacelo como uma pequena


parte de um longo processo de autoconhecimento e de
acompanhamento psicológico que o ajudou a sair de
uma depressão de dez anos. Aos poucos, foi
encontrando motivos que dão sentido à sua existência e
que vai tentando alcançar, o melhor que consegue:
desenvolvimento pessoal, voluntariado, estudar os
temas que lhe interessam, fazer atividade física... “E
talvez tenha culminado no facto de ter voltado à Igreja:
tenho agora essa esperança que advém da fé.”

Mas nem sempre pensou assim. Durante mais de duas


décadas esteve longe desta visão do mundo e da vida.
Introvertido e inteligente (o primeiro da família a
terminar um curso superior), em criança sentia-se a
ovelha negra numa família expansiva de Ermesinde.
“Como era reservado não obtinha aquela aprovação dos
mais velhos — recebia-a apenas por ser bom na escola,
mas não era igual”, recorda. Já o irmão, dez anos mais
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velho e “muito extrovertido”, recebia-a. “Sentia que não
me compreendiam, pela minha maneira de ser”, diz,
acrescentando que teve uma infância triste. “Mas até
certo ponto era tolerável.”

Foi na puberdade que as coisas se complicaram.


Começou a desejar o que não conseguia: o respeito dos
rapazes e a admiração das raparigas. “Tinha um
desempenho miserável nos dois”, admite o jovem de 32
anos. “Não me sentia integrado, por ser tímido,
inseguro, desajeitado, magrinho com uma cabeça
grande, com borbulhas e um penteado estranho. Não me
sentia bem com a minha figura nem com aquilo que
vestia.” Era gozado e chegou a ser vítima de “algum
bullying, esporadicamente”.

Todos esses episódios e emoções se foram acumulando


até que, aos 15 ou 16 anos, começou a desenvolver uma
depressão. Pela primeira vez considerou o suicídio.
“Sentia que não tinha valor. A escola era tudo o que
conhecia, por isso achava que se não conseguia ter
sucesso naquela microssociedade não servia para nada.”
No 11º ano quis desistir. Ainda pensou em trabalhar,
mas mudou de área para Ciências e voltou ao 10º.
Apesar de estar numa nova turma, “a situação era
idêntica”. Acabou por se isolar. Aos 18 anos, voltou a
apaixonar-se e, mais uma vez, não foi correspondido.
“Sentia-me imensamente triste e a sofrer, não
conseguia lidar com o facto de nunca ter tido uma
namorada nem com tudo o resto”, recorda. “Tinha
apenas sucesso na parte racional da vida. Não sentia a
aprovação dos meus pais, do meu irmão, dos meus
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colegas... Parecia que não conseguia ser pessoa. Só
queria ir dormir e não acordar.”

Considerado um desafio de saúde pública, o suicídio é a


15ª causa de morte no mundo, provocando mais óbitos
do que o cancro da mama, a malária, os homicídios ou
os acidentes de viação

Tentou o suicídio, mas sobreviveu. Já nessa altura era


acompanhado por uma psicóloga, amiga de uma prima
com quem falava muito, que lhe dava consultas
gratuitas — uma vez que os seus pais não tinham
dinheiro para as pagar — e que, em alturas mais críticas,
chegou a discutir o seu caso com um psiquiatra,
nomeadamente para saber qual a medicação mais
adequada a dar-lhe.

Só quando entrou no curso de Bioengenharia, em Vila


Real, é que teve pela primeira vez uma boa experiência
social. Tinha um grupo de amigos e foi também nessa
altura que começou a namorar. Viveu aí dois anos, mas
terminaria o curso no Porto. “Desperdicei tudo.” Passava
muito tempo em casa, a jogar, voltou a ter dificuldade
em integrar-se e terminou o relacionamento com a
namorada. Ainda assim, dava-lhe alguma estabilidade
pensar que ela ainda gostava de si — até ao dia em que
ela lhe disse que tinha namorado. “Passei tanto tempo a
lamentar coisas que não conseguia e, quando as tive,
agi de forma tão arrogante que as perdi. Caiu-me tudo
em cima.” Primeiro, chorou como nunca tinha chorado.
Depois, ficou sem reação. “E decidi muito racionalmente,
sem emoção, suicidar-me.”

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Como “não queria deixar pontas soltas”, quis antes
devolver alguns pertences da namorada e de alguns
amigos. Entrou no autocarro com essa intenção, mas
sairia de lá ‘tocado’ por “um evento aleatório e sem
significado”. Sentada ao seu lado, uma mulher
divorciada começou a contar-lhe como tivera uma vida
difícil. Hugo não se lembra bem das palavras, mas
recorda-se da sua conclusão: apesar de tudo, ela disse-
lhe que valia a pena viver. Não saiu da viagem mudado,
mas a conversa plantou em si “uma semente” e
“gradualmente” acabou por desistir da ideia de suicídio.

Aos poucos, foi iniciando um processo de


autoconhecimento que o ajudaria a sair da depressão:
ia lendo um livro, vendo um vídeo, uma palestra... Os
resultados que conseguia no doutoramento também
contribuíram para lhe dar mais confiança. E tinha a
bagagem das consultas de psicologia. “Fez diferença ter
alguém com quem falar, que tivesse alguma coisa para
me dizer. Se eu falasse daquelas coisas com os meus
pais, poderiam ter empatia, mas provavelmente não
saberiam como agir. A psicóloga dava-me oportunidade
para pensar, refletir, construir.”

Hoje, quando pensa no que tentou fazer, sente-se


aliviado por não o ter feito. “Mas também sinto tristeza,
o sofrimento que enfrentei ficou marcado a ferro quente.
Agora consigo falar sobre isso, a ferida está cicatrizada,
mas deixa alguma sensibilidade.” A sua personalidade
não mudou radicalmente (integra-se mais nos grupos
que frequenta, embora não seja “uma diferença
escandalosa”), mas aceita-se como é. “Sei que tenho
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coisas a melhorar, outras pessoas com a minha idade
estão mais avançadas do que eu nesses domínios, mas
são outras pessoas. É outra situação. Limito-me a ver:
estou melhor do que estava na semana passada?”

Um fenómeno multifacetado

Considerado um desafio de saúde pública, o suicídio é a


15ª causa de morte no mundo, provocando mais óbitos
do que o cancro da mama, a malária, os homicídios ou
os acidentes de viação. Na Europa há uma média anual
de 10 suicídios por 100 mil habitantes. Em Portugal
ocorrem 7 a 9 suicídios por 100 mil habitantes por ano,
mas o número poderá ser maior, entre 10 a 13, uma vez
que a qualidade do registo do suicídio é “pouco fiável”,
realça o médico psiquiatra Ricardo Gusmão. Já o número
de tentativas de suicídio pode ser até 30 vezes superior
ao de mortes por suicídio.

Ainda assim, “é um evento epidemiologicamente raro,


aleatório e altissimamente variável com a geografia”,
sublinha o também professor de saúde mental na
Universidade do Porto. Em Portugal existem fortes
assimetrias entre Norte e Sul, com estudos a referirem
“taxas dez vezes superiores a sul do Tejo face às do
Norte” e outros a mostrarem que no Alentejo há zonas
com “taxas superiores a 40 suicídios por 100 mil
habitantes, em linha com as mais elevadas do mundo”,
acrescenta Sofia Tavares, psicóloga e professora auxiliar
na Universidade de Évora, que estuda o fenómeno na
região.

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Sendo multifacetado, este é um comportamento que
envolve fatores de risco individuais, familiares,
comunitários e sociais, podendo ser determinado por
aspetos antropológicos, psicológicos e sociais, que
muitas vezes atuam em simultâneo. Mas “nunca
podemos dizer que o evento A levou ao comportamento
X”, apenas apontar fatores que contribuem para
aumentar o risco, referem os psiquiatras Sónia Farinha
Silva e Paulo Barbosa.

À cabeça surge a doença mental, presente em mais de


90% das pessoas que morrem por suicídio. Destas, mais
de 60% tinham uma doença afetiva, na maioria dos
casos depressão. Além disso, “os homens com mais de
45 anos, especialmente nas últimas décadas de vida,
morrem mais por suicídio”, indicam os dois médicos da
Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo (ULSBA). Mas
vários estudos mostram que mais mulheres o tentam —
embora Ricardo Gusmão, que estudou o fenómeno em
Lisboa, defenda que a distribuição por sexo é
semelhante. “O que acontece é que os homens são mais
agressivos na escolha e implementação dos métodos.”

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A exposição ao suicídio de pessoas próximas ou de
figuras públicas, histórias de abuso físico ou sexual,
doenças graves ou incapacitantes, acontecimentos
traumáticos recentes, situações de vulnerabilidade
(como pobreza ou desemprego) e o isolamento ou a falta
de apoio social podem também aumentar o risco de
ideação ou de comportamentos suicidas. E “uma pessoa
que já tentou o suicídio tem um risco acrescido de o
voltar a fazer”, realçam os médicos da ULSBA. “Um risco
que é maior nas semanas e meses seguintes e que se
vai esbatendo à medida que o tempo passa, mas que é
aumentado face ao resto da população.”

Todos esses acontecimentos de vida, experiências


precoces e características pessoais podem interagir até
um ponto em que a pessoa se sente encurralada,
desesperada, parecendo que não tem soluções para lidar
com as adversidades e para dar a volta aos seus
problemas. E desencadear uma síndrome de crise
suicidária, sempre limitada no tempo e diagnosticável.
“Em termos psicopatológicos esta é caracterizável por
vivências de encurralamento e desesperança em
associação com desorganização afetiva, descontrolo
cognitivo, hiperexcitabilidade e retraimento social”,
detalha Ricardo Gusmão.

“Há uma imagem que nós, médicos, por vezes usamos:


estas pessoas, nessas alturas, ficam com uma espécie
de visão em túnel”, acrescentam os psiquiatras da
ULSBA. “Todas as outras alternativas além do suicídio
parecem demasiado difíceis e inalcançáveis. Este acaba
por ganhar peso em relação ao resto, porque a pessoa
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está num grande sofrimento e incapaz de tomar boas
decisões num momento de stresse.”

São momentos de maior vulnerabilidade, que podem


levar uma pessoa a olhar para determinados
acontecimentos como limite. No entanto, realça Sofia
Tavares, as perturbações psicológicas não são
diretamente proporcionais aos acontecimentos de vida.
“Senão, apenas quem vive acontecimentos traumáticos
e críticos se perturbaria. E isso não é verdade. As
perturbações não decorrem dos acontecimentos
(embora haja pessoas para quem a vida é muito
exigente), mas das perspetivas e interpretações que
estas constroem sobre eles”, explica, realçando que o
trabalho da psicologia e da psicoterapia passa pela
reconstrução desses significados de forma que as
pessoas consigam ver-se a si e às exigências da vida de
outra forma.

“Olha para mim”

O dia 27 de agosto de 2018 ficará para sempre gravado


na memória de Cláudia de Sousa Lima. Num instante, a
sua vida deu uma volta de 180°. Sempre tivera aquilo
que considerava ser uma vida feliz — uma infância em
Almada “onde a família, o amor e a amizade estiveram
sempre presentes”, “um núcleo forte de amigos” em
Lisboa, um marido que era o seu “melhor amigo”, um
filho “muito desejado” e uma vida familiar “cheia de
planos e construções”. Mas numa fração de segundo
muito mudaria.

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Naquele dia, quando regressava a Lisboa de carro com
o marido e o filho de 13 meses, depois de terem passado
o fim de semana no Alentejo, um acidente tirou-lhe o
chão. Cláudia sobreviveu, mas o marido e o filho não.
Ainda hoje se lembra bem de todos os sons, barulhos,
imagens associadas a esse dia. Recorda-se de acordar,
no meio do acidente, e de ninguém a ajudar. “Num
acidente daquela dimensão eu nem tinha bem noção do
estado do meu carro”, reconhece. “Até posso perceber
que o cenário pudesse não ser o melhor. Mas ninguém
me ajudou.” À exceção de um senhor, camionista, que
telefonou aos seus pais, de férias no Gerês, e pediu para
virem ter com ela.

A dado momento, chega uma ambulância para a levar


ao hospital. Seguiu nela, com a certeza de que o
Emanuel (ou Manel, como todos lhe chamavam) estava
morto, mas sem saber se o filho estaria vivo. Ao fim de
algum tempo, acabaria por ser informada que o coração
do Zé Maria não aguentara. “Honestamente, tive zero
acompanhamento no hospital. E, depois de tudo o que
aconteceu, o hospital dá-me alta para eu ir para casa.
No próprio dia.”

Chegada a casa, tentou “automaticamente” matar-se.


Mas a sua mãe, que estava ao seu lado, disse-lhe:
“Pensa naquilo que tu me vais fazer a mim.” Aquelas
palavras fizeram-na parar. “A dor que eu sinto, por ter
perdido um filho, é tão grande que não quero que a
minha mãe passe pelo mesmo. Não quero.”

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Imediatamente se apercebeu que precisava de ajuda.
Além de ter decidido viver em casa dos pais “durante
uns tempos”, começou a ser acompanhada por uma
psicóloga e por um psiquiatra, que se coordenam entre
si. “Cheguei a ir à psicóloga três vezes por semana e ao
psiquiatra de três em três meses”, diz a jovem de 38
anos, acrescentando que hoje a frequência é menor.

Na altura do acidente há já um mês que não trabalhava


e, por isso, teve direito ao subsídio de desemprego
durante um ano. Mas depois recebeu “zero apoio do
Estado”. “Responderam-me que como estava no centro
de emprego não tinha direito a baixa. Quem é que, no
seu perfeito juízo, passado um ano de um acidente
destes está capaz?” Sentiu-se a sufocar. Como se já
estivesse cercada e “o Estado estivesse a apertar [esse
cerco] ainda mais”, diz. “Se os meus pais não tivessem
dinheiro para pagar as consultas eu tinha sido engolida
por este sistema: sem família, trabalho, dinheiro...”

O sofrimento de uma pessoa que verbaliza uma intenção


de se suicidar ou tenta fazê-lo nunca deve ser
minimizado, dizendo-se que apenas quer chamar a
atenção

Agarrou-se à Baby by Pikis, uma marca de roupa para


crianças que tinha decidido lançar com o marido na
altura em que Zé Maria nasceu. Inicialmente motivada
pelo pai, que insistia para que não largasse o projeto, e
pelo dinheiro que já tinha investido em tecidos para a
estação seguinte, foi assim que, no período mais difícil
da sua vida, começou a fazer crescer a marca. “Foi

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realmente uma tábua de salvação.” Não só a ligava mais
ao marido e ao filho como a mantinha ocupada, deixando
menos espaço “para a cabeça pensar noutras coisas”.

A marca, aliada ao apoio incondicional dos pais e à


presença dos amigos, foram cruciais. Tal como o apoio
psicológico e psiquiátrico: “não me ajudaram, salvaram-
me!” Cláudia diz que nunca mais tentou suicidar-se, mas
houve alturas em que pensou nisso “milhares de vezes”.
“O meu psiquiatra dizia-me que iria ouvir uma voz a
dizer ‘faz’ e que tinha de ter outra voz a contrariá-la. E
é realmente um clique que nos dá no cérebro e que nos
diz que é muito mais fácil ir por aquele caminho. Nem
sei explicar como acontece. Mas foi importante saber
que iria ouvir uma voz a sugerir formas de me tentar
matar. Tudo o que eles fizeram foi ajudar-me a criar
estratégias e ferramentas para eu conseguir lidar com
isto. E, felizmente, consegui sempre ter uma voz
superior, muito mais positiva, que me diz o contrário.”

Como é que uma pessoa que chegou a um ponto


extremo em que a vida não parece fazer sentido
consegue reorganizar-se emocionalmente? Cláudia não
tem a certeza. “Acho que com terapia e
acompanhamento conseguimos encaixar as coisas e
entrar dentro de uma suposta normalidade que para
mim nunca vai ser normal.” Hoje já vive novamente
sozinha, tem um emprego além da Baby by Pikis e
espera, um dia, voltar a ter uma vida ‘normal’. “É um
processo.” Reconhece que quando alguém tem uma
perda muito grande tem tendência para criar
mecanismos que a liguem mais a estas pessoas. “Se
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calhar por isso é que a Baby by Pikis começou a fazer
tanto sentido: quanto mais eu provar, mais ligada a eles
vou estar... O amor salva tudo — parece um cliché, mas
é verdade.” E dá outro exemplo: “No instante em que
sei o que é perder um filho não quero isso para os meus
pais. Acho que é esse o clique que me dá quando a
minha mãe me diz aquilo: ‘O que é que tu me vais fazer?
Olha para mim’.”

Uma pessoa em risco suicidário quase sempre sente-se


só e desligada. “O ato que pondera concretizar surge-
lhe como algo seu, sem consequência para terceiros, ou
até, frequentemente, como vantajoso para esses
terceiros para os quais deixará de ser um fardo”,
contextualiza o psiquiatra Ricardo Gusmão. “O
conhecimento de que, pela consumação do suicídio
presente, poderá haver a partilha do sofrimento,
desesperança e encurralamento, no futuro, por alguém
que amamos ou que sentimos como inocente, introduz
um novo ângulo no processo de decisão. De repente, o
sentimento de inutilidade cede e emerge uma utilidade
pela contenção.”

Estar atento aos sinais

A tatuagem que tem no braço é uma homenagem ao


primo e ao tio, que já cá não estão: a linha de um
batimento cardíaco que esmorece nas pontas,
terminando com o nome de cada um. Duas marcas que
a vida se encarregou de lhe deixar na alma e na pele, a
primeira na infância e outra há menos de dois anos.

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Os primeiros anos da sua vida foram passados num
bairro diferente daquele no qual hoje vive em Évora,
num grande pátio em torno do qual a família da mãe
vivia. “Começou logo mal marcada. O meu primo faleceu
quando tínhamos três anos.” Hoje Carlos tem 28, mas
não apagou esse dia da memória. O que evoca é talvez
fruto do que lhe contam: enquanto os dois brincavam, o
primo deixou cair uma caneta dentro do poço que havia
no pátio, tentou apanhá-la e caiu. Quando os bombeiros
lá chegaram já não havia nada a fazer.

O tio, que para ele era como um pai, vivia fora do bairro.
Também foi com ele e com a mulher que cresceu —
passava os fins de semana em casa deles, porque os
pais trabalhavam — e a sua morte, em outubro de 2020
com um cancro no pulmão que se alastrou rapidamente,
foi muito dura para si. Era o tio, que também fora
futebolista e treinador, que o acompanhava nos treinos
e nos jogos de futebol em miúdo, era com ele que
passava férias. Era com ele que conversava, via-o como
um exemplo a seguir. “Ele dava tudo a toda a gente. O
campo onde treinava era a dois minutos de casa, mas
se havia miúdos do outro lado da cidade cujos pais não
os podiam levar aos treinos ia buscá-los e levá-los —
chegasse a casa a que horas chegasse”, recorda. Carlos
acompanhava-o nessas andanças e hoje, como treinador
de futsal, faz o mesmo. “Acabou por ter o papel de pai.”

Não que não vivesse com o pai biológico, mas a relação


era diferente. “O meu pai tinha uma rotina de chegar a
casa, tomar banho, ficar no sofá, jantar e deitar-se cedo,
porque no dia seguinte trabalhava. Nunca falávamos
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muito.” Além disso, a relação entre os dois nem sempre
foi estável — embora hoje se deem bem. Ao fim de
semana, o pai ia para o café, bebia e quando chegava a
casa por vezes batia na mãe. E só quando Carlos tinha
18 anos é que a mãe conseguiu pôr um ponto final.
Nessa altura o pai foi viver para a Suíça, onde tem
família, e Carlos continuou a viver em Évora com a mãe
e o irmão mais novo.

A partida do tio foi muito dura para si. Já antes não


andava bem, tinha muitos ataques de ansiedade e uma
ambição e perfeccionismo na vida que muitas vezes o
levavam ao limite. Ficava “de rastos” quando não
conseguia alcançar determinados objetivos que tinha no
futsal, no trabalho ou noutras áreas da vida. Já nessa
altura tinha acompanhamento psicológico. Houve um
período em que se afastou do futsal, não andava bem.
“Bastava um treino em que as coisas não corriam como
planeado e começava a perguntar-me onde tinha
falhado. Mandava-me abaixo, ficava a remoer.” Pouco
tempo depois, o tio morreu. Acabou por regressar aos
campos, porque isso o ajudava a espairecer, mas
quando a pandemia entrou em força em Portugal o país
parou. “Foi quando fiz o que fiz.”

Carlos recorda bem esse dia. Estava em casa em


teletrabalho, sozinho, tinha muito tempo para pensar.
Há algum tempo que tinha pensamentos suicidas,
idealizava muitas vezes a melhor forma de o fazer. Via-
se sem alternativas, não encontrava um sentido para a
vida. “Às vezes andava tão cansado e frustrado que

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sentia que precisava de uma pausa — e pensava que
talvez essa pausa fosse definitiva.”

Um dia, um problema no trabalho deixou-o de tal forma


irritado que ficou fora de si. “Recebi um e-mail de um
cliente, com o qual a relação não era fácil, a culpabilizar-
me de um erro que não era responsabilidade minha.
Fiquei de tal maneira irritado que até liguei à psicóloga,
que me tentou acalmar.” Não conseguiu apaziguar-se,
perdeu o controlo. E agarrou a solução que tinha mais à
mão para tentar tirar a própria vida. Vinte minutos
depois a namorada e a tia apareceram em casa e
chamaram os bombeiros, que o levaram para as
urgências do hospital: “Foi horrível.” Saiu de lá dois dias
depois com uma receita para tomar medicação e uma
carta para ir a uma consulta de psiquiatria — o que fez.
“Ainda hoje não sei se foi a psicóloga que avisou a minha
mãe.”

“As perturbações não decorrem dos acontecimentos,


mas das perspetivas e interpretações que as pessoas
constroem sobre eles”, explica a psicóloga Sofia Tavares

Hoje continua a ser acompanhado pelo mesmo


psiquiatra e psicóloga, que se coordenam entre si, e
toma medicação que o ajuda a ficar mais ativo durante
o dia e a dormir melhor à noite. “Tomo sempre tudo
direitinho.” Nota que uma parte de si está melhor, por
ser acompanhado por profissionais de saúde mental. Vai
tentando procurar novos desafios para ir superando.
“Nem todos são ultrapassados, tal como no desporto não
ganho sempre”, reconhece. “Mas penso: não te vais

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embora porque agora tens que superar isto.” E quer
encontrar grupos nos quais possa participar, contando a
sua história, para ajudar outras pessoas que estejam a
passar por situações semelhantes.

Não quer isto dizer que os pensamentos suicidários


tenham desaparecido. Há momentos em que se sente
mais vulnerável e regressam. “Se andar bem
acompanhado estou bem. Nos momentos em que estou
com a minha namorada, no futsal ou a trabalhar sinto-
me bem.” Mas quando se depara com acontecimentos
mais desafiadores e teme não conseguir corresponder às
suas expectativas “torna-se mais difícil”. É como se
tivesse duas vozes contraditórias na cabeça, uma a
puxá-lo para a vida e outra a dizer-lhe “para acabar com
o cansaço”. “Se lhe der atenção e estiver mais
vulnerável, nesses momentos parece que aquela voz
tem sentido.” A verdade é que hoje tem estratégias que
antes não tinha para lidar com ela. As estratégias iniciais
que a psicóloga e o psiquiatra lhe davam para se acalmar
nesses momentos de crise muitas vezes não funcio-
navam. “Então perguntaram-me: ‘Com quem te sentes
à vontade para falar nisto?’ ‘Com a minha mãe, a minha
namorada e o meu patrão — além da psicóloga.’ ‘Então,
quando te sentires assim, pára o que estiveres a fazer e
liga a uma dessas pessoas.’” É aquilo que faz.

Habitualmente, o domínio das tentativas de suicídio é


um terreno de ambivalência. “A pessoa quer morrer,
mas não quer completamente, ou quer viver mas
alguma coisa a puxa para a morte”, explica Ricardo
Gusmão. Na verdade, “o que as pessoas querem não é
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propriamente morrer, é parar de sofrer”, acredita Sofia
Tavares. O facto de se sentirem apoiadas por familiares,
amigos ou outras pessoas da comunidade (além da
autoestima, capacidade de resolver problemas, acesso a
cuidados de saúde, entre outros), pode contribuir para
evitar que uma pessoa tente o suicídio, notam Paulo
Barbosa e Sónia Farinha Silva. E de que forma é que
quem está próximo pode ajudar quem está nessa
situação?

Em primeiro lugar, o sofrimento de uma pessoa que


verbaliza uma intenção de se suicidar ou tenta fazê-lo
nunca deve ser minimizado, dizendo-se que apenas quer
chamar a atenção. “E existem sinais que uma pessoa vai
dando que nos podem levar a pensar que não está bem.
São normalmente muito simples e podemos resumi-los
como ‘a pessoa não está a comportar-se da maneira
habitual’”, especificam. “Uma pessoa que anda mais
isolada, anda a dormir muito ou pouco, tem alterações
na alimentação, anda mais ansiosa, imprudente, não vê
soluções para os problemas ou que fala a dado momento
sobre a morte, morrer ou não fazer falta... Tudo isto
deve levar um familiar, amigo ou colega de trabalho a
perguntar se está tudo bem. Esta não é uma pergunta
invasiva e pode ser a porta de entrada para uma
conversa sincera sobre a pessoa precisar de ajuda. E
pode ser que, ao longo da conversa, possa chegar o
momento de perguntar: ‘Tens pensamentos suicidas?
Como posso ajudar-te? Vamos procurar a ajuda de um
psiquiatra, psicólogo?’ É isto que precisamos para pôr
estas pessoas em segurança: conseguir que elas tenham

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acesso a ajuda, o mais cedo possível, num momento de
crise.”

Linhas de apoio em situação de crise ou de emergência

SOS Voz Amiga

16h-24h: 213 554 545, 912 802 669, 963 524 660
21h-24h (linha verde gratuita): 800 209 899

Conversa Amiga

15h-22h: 808 237 327, 210 027 159

Vozes Amigas de Esperança de Portugal

16h-22h: 222 080 707

Voz de apoio

21h-24h: 225 506 070

Outros contactos

NÚMERO NACIONAL DE EMERGÊNCIA MÉDICA: 112


SNS24: 808 24 24 24

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