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Musicologia[s]
3
A SÉRIE DIÁLOGOS COM O SOM
Partimos do pressuposto de que, à frente das pesquisas, na sua maioria com base
empírica, estão os pensamentos daqueles que se ocupam de olhar as várias temáticas
de um determinado campo do saber. São esses olhares, nas suas mais diversas pers-
pectivas, que alimentam as discussões e propulsionam cada área de conhecimento.
Nesse sentido, pretendemos contribuir para estimular a reflexão e a atuação crítica
em contextos culturais diversos, tendo a música como elemento concatenador.
Sob essa concepção, cada volume da série Diálogos com o Som abarca uma temá-
tica pré-definida, cujos textos, de caráter ensaístico, retratam as ideias de autores
convidados que, na atualidade, estão pensando o tema proposto pela coordenação
editorial. A série poderá trazer ainda traduções inéditas e/ou textos representativos
da temática proposta em cada volume.
Musicologia[s]
M987 Musicologia[s]/Organizadores Edite Rocha, José Antônio Baêta
Zille. - Barbacena, MG : EdUEMG , 2016.
259 p. -- (Série Diálogos com o Som. Ensaios ; v.3)
ISBN 978-85-62578-68-7
Projeto gráfico
EdUEMG
Maíra Santos
EDITORA DA UNIVERSIDADE DO
Capa ESTADO DE MINAS GERAIS
Roger Canesso Coordenação
Revisão Vice-Reitor
Língua portuguesa: Cibele Imaculada da Silva José Eustáquio de Brito
Tradução: Boris Tejeda Suñol Chefe de Gabinete
Finalização: Aline Azevedo Eduardo Andrade Santa Cecília
Organizadores
Edite Rocha • José Antônio Baêta Zille
Autores
Edite Rocha
Antonio Ezquerro-Esteban
Flavio Barbeitas
Mário Vieira de Carvalho
Ângelo Nonato Natale Cardoso
Juan Pablo González
Diósnio Machado Neto
Beatriz Magalhães Castro
Márcio Páscoa
Maria Alice Volpe
Pablo Sotuyo Blanco
Paulo Castagna
VOLUME 3
Apontamentos críticos
sobre tendências atuais na
Etnomusicologia brasileira
Ângelo Nonato Natale Cardoso
N
o decorrer de sua história, como ocorre em qualquer área, a
etnomusicologia vem apresentando modificações significativas tanto
no campo de atuação e na metodologia desenvolvida quanto nas
concepções teóricas e até no próprio nome. Por vezes, uma mudança leva a
outra, em decorrência da escolha de procedimentos metodológicos inovadores
que, como se verá mais adiante, ocasiona alterações no delineamento da área e
em sua definição. Em certa medida, novos direcionamentos são adotados pela
etnomusicologia em função de convergências acadêmicas, de ponderações e
procedimentos analíticos que, em épocas distintas, norteiam os estudiosos. No
Brasil, atualmente, entre os etnomusicólogos e em trabalhos etnomusicológicos
publicados, também se notam tendências importantes a serem consideradas.
No presente ensaio, pretendo discutir questionamentos concernentes a essas
tendências, procurando inferir suas prováveis origens e problemas delas
consequentes.
nem sempre são coerentes sob a ótica do necessário rigor acadêmico. Equívocos
e deturpações são algumas das consequências observadas em pesquisas que têm
esses objetivos como princípios.
A frase transcrita no subtítulo desta seção, como já disse, parece implicar reação
à metodologia utilizada no início das pesquisas de campo da Vergleichende
Musikwissenchaft, que negligenciava a visão êmica. E pode, ainda, ser interpretada
de duas formas: de um lado, a fala do nativo deve constituir um recurso a mais para
os estudos e interpretações do pesquisador; de outro, o trabalho do pesquisador
deve ser “um reflexo do pensamento autóctone”, “um porta-voz da fala nativa”,
já que “a palavra final deve ser dada pelo dono da terra”.5 Equivocadamente, a
segunda interpretação tem imperado no discurso de alguns etnomusicólogos.
4 Kenneth Pike desenvolveu, na área da linguística, uma abordagem, que denominou de tagmêmica, em
que se aninham duas perspectivas: a ética e a êmica. A primeira diz respeito à visão do pesquisador, e a
segunda refere-se ao pensamento autóctone. A proposição de Pike, estendida a outras áreas, chegou à
etnomusicologia. Para mais informações sobre a abordagem tagmêmica, ver HEADLAND, 2000.
5 Falas comuns no meio etnomusicológico.
Para tanto, impõe-se que o pesquisador prime pela coerência e isenção em suas
interpretações. Comumente, alguns etnomusicólogos alegam que isenção total
não existe, o que é um fato. Quando, porém, seu trabalho já se inicia ou se deixa
impregnar da “missão” de defender, reparar, incluir e enfatizar a relevância dos
grupos em estudo e seus respectivos fazeres culturais a qualquer custo, o preço
a pagar pode ser a falta de coerência, a omissão de informações ou, até mesmo,
a inexistência de veracidade em sua pesquisa em relação à realidade do objeto
estudado. Para se evitar que isso ocorra, é preciso utilizar com mais frequência
um recurso pouco empregado em pesquisas etnomusicológicas: a abordagem
quantitativa.
dominada.
Considerações finais
Considerar as características sonoras do fato musical como algo menos
importante que os demais eventos que o compõem, como se pode inferir pela
escassez de referências a elas em alguns trabalhos etnomusicológicos, talvez se
constitua uma reação à ênfase atribuída a essas peculiaridades no início das
pesquisas desenvolvidas nessa área. De fato, são frequentes, na fala e em trabalhos
etnomusicológicos, interpretações que parecem encontrar seu fundamento na
reação a negligências, equívocos, desvios e incoerências detectados no modo de
se conduzir a etnomusicologia em décadas passadas. Contudo, apenas essa razão
não se justifica, visto que, se os pesquisadores não se embasam em mecanismos
científicos para o desenvolvimento de suas conjecturas, os resultados por eles
obtidos, possivelmente, hão de conter novas negligências, novos equívocos,
novos desvios e novas incoerências.
11 Característica musical constituída de duas ou mais linhas musicais que se “complementam” como
numa engrenagem, já que os eventos sonoros de ambas, em certa medida, não ocorrem simultaneamente.
Assemelha-se ao hoqueto.
trabalho que ele desenvolve com um grupo e aos resultados por ele obtidos –
sua formação vai muito além de apenas uma pesquisa localizada; injusta, por se
referir a pesquisadores de forma generalizada, quando o que se vê é que a maioria
deles se mostra engajada e preocupada com questões éticas que envolvem uma
pesquisa de campo; anacrônica, pois a pesquisa de campo, bem como tudo que
a envolve, inclusive a relação do pesquisador com o grupo pesquisado, vem
mudando consideravelmente ao longo dos anos e pode desviar o foco do objetivo
etnomusicológico, já que pode transformá-lo em trabalho social, o que vai além
do escopo dessa ciência. Ainda considerando a reparação como argumento,
ressalto a incoerência que se revela na reação dos que apontam os saberes de
tradição europeia como imposição, mas se rejubilam com a criação da Lei nº
11.645, que torna obrigatório, no Brasil, o ensino das culturas afro-brasileira e
indígena. Tal posicionamento representa um equívoco, porque conhecimento
algum deve ser julgado em função da cultura que o gerou, mas, sim, em função de
sua aplicabilidade ao contexto em que é utilizado. A reparação não deve constituir
critério para determinação da efetividade de qualquer tipo de conhecimento.
Referências
BLACKING, John. The problem of musical description. In: BYRON, Reginald
(Ed.). Music, culture and experience; selected papers of John Blacking. Chicago:
University of Chicago Press, 1995. p. 54-72.
CARDOSO, Ângelo Nonato Natale. A linguagem dos tambores. 2006. 402f. Tese
(Doutorado em Música)-Programa de Pós-Graduação em Música, Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 2006.
MOLINO, Jean. Facto musical e semiologia da música. In: SEIXO, Maria Alzira
(Org.). Semiologia da música. Lisboa: Veja, 1975. p. 109-164.
PEGG, Carole; MYERS, Helen. Ethnomusicology. In: SADIE, Stanley (Ed.). The
New Grove Dictionary of Music and Musicians. 2. ed. London: Macmillan
Publishers, 2001. v. 8. p. 367-370.