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Revista Crítica de Ciências Sociais 

127 | 2022
Número não temático

Butler, Judith (2021), A força da não-violência


Pedro Fidalgo

Edição electrónica
URL: https://journals.openedition.org/rccs/12955
DOI: 10.4000/rccs.12955
ISSN: 2182-7435

Editora
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

Edição impressa
Data de publição: 1 maio 2022
Paginação: 193-196
ISSN: 0254-1106
 

Refêrencia eletrónica
Pedro Fidalgo, «Butler, Judith (2021), A força da não-violência», Revista Crítica de Ciências Sociais
[Online], 127 | 2022, publicado a 22 junho 2022, consultado a 29 junho 2022. URL: http://
journals.openedition.org/rccs/12955 ; DOI: https://doi.org/10.4000/rccs.12955
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Butler, Judith (2021), A força da não-violência. Lisboa: Edições 70, 166 pp.
Tradução de Hugo Barros [ed. orig. 2020]

Amplamente conhecida pelo seu trabalho e “escorregadios”. Isto porque a definição


sobre género – que nos anos 1990 abalou do que constitui um ato de violência e a
os entendimentos rígidos sobre o corpo e identificação de quem ou o que é violento
a identidade e deu lugar à consolidação de são construções sociopolíticas exercidas
uma reflexão queer sobre a forma como num quadro de referência influenciado por
fazemos os géneros1 –, Judith Butler apre- relações de poder. Neste contexto, a autora
senta agora um importante contributo para aponta o Estado como detentor do mono-
o conhecimento no campo dos estudos da pólio da violência legítima, e as instituições
paz, das violências e das resistências. como tendo um poder desproporcional em
Publicado em português em março de relação aos seus eventuais críticos e opo-
2021 pela Edições 70, A força da não-vio- sitores. Transportando a discussão sobre
lência é uma fascinante reflexão no campo violência para o campo da epistemologia,
da filosofia política sobre os fenómenos da Butler abstém-se de apresentar tipologias,
violência e da não-violência, desenvolvida reconhecendo a dificuldade de estabelecer
em articulação com a análise de problemas o limite entre a violência e a não-violência,
centrais da contemporaneidade. propondo antes uma reinterpretação des-
Organizado em quatro capítulos, o livro tes conceitos.
arranca com uma crítica ao individualismo A violência deve ser definida, nesta inter-
e um apelo ao reconhecimento das formas pretação butleriana, como um ataque à
de vida como inerentemente interdepen- interdependência social que carateriza
dentes. Butler desafia os limites do corpo a vida: um ataque às pessoas mas, acima
como circunscrição da esfera pessoal, de tudo, um ataque aos vínculos ou laços
alargando-a às relações e aos laços sociais sociais que nos unem neste sistema de
indispensáveis à experiência viva, não só interdependência (p. 24). Na prática,
humana, mas de todas as formas de vida. o alcance do termo é muito abrangente
Este entendimento de uma “interdepen- e vai desde atos de fala que ferem o outro,
dência social” complexa (p. 25) permite ao golpe como clímax da violência, até à
diluir os limites entre o “eu” e “o outro” violência das estruturas sociais, económi-
antropológicos levando a autora a propor cas e legais, apontando para o racismo,
que, de facto, “a violência contra o outro a heterocisnormatividade e o classismo
é […] violência contra si mesmo, algo sistémicos.
que se torna claro quando reconhecemos Butler recorre ao conceito de enlutabi-
que a violência ataca a interdependência lidade – anteriormente explorado pela
viva que é, ou deveria ser, o nosso mundo autora em Precarious Life: The Power
social” (p. 31). of Mourning and Violence2 – para refle-
Butler reconhece que os conceitos de vio- tir sobre desigualdades sociais. Num
lência e de não-violência são contestados modelo de sociedade desigual em termos

1
Ver, por exemplo: Butler, Judith (1993), Bodies that Matter: On the Discursive Limits of “Sex”.
New York/London: Routledge; Butler, Judith (1999), Gender Trouble: Feminism and the Subversion
of Identity. New York/London: Routledge [ed. orig. 1990].
2
Butler, Judith (2006), Precarious Life: The Powers of Mourning and Violence. New York: Verso
[ed. orig. 2004].
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de enlutabilidade, isto é, em que certas não-violência em articulação com as ideias


vidas são mais valorizadas do que outras, de autores como Michel Foucault, Frantz
coexistem nas sociedades vidas enlutáveis Fanon, Walter Benjamin, Robert Cover,
e inlutáveis, respetivamente enquadradas Étienne Balibar, Sigmund Freud e Albert
como dignas e indignas de luto. Einstein. Recorrendo à teoria psicanalítica
A enlutabilidade é, para a autora, um prin- de Freud, bem como à correspondência
cípio intimamente articulado com as lógicas desse autor com Einstein, Butler enquadra
de desigualdade, uma vez que “orienta a a violência e a não-violência como fenó-
organização social da saúde, alimentação, menos simultaneamente sociopolíticos e
alojamento, emprego, vida sexual e cívica” psíquicos (p. 142). A autora faz também
(p. 57). Exemplos de fenómenos de violên- uso da teoria de Freud – e particularmente
cias – efeito deste sistema de distribuição do conceito de “pulsões de morte” (p. 132)
desigual da enlutabilidade das vidas – são: – na sua relação com a guerra, para pensar
a violência policial letal contra pessoas a violência tanto num plano inter-relacio-
negras (e particularmente mulheres negras) nal como nas relações internacionais.
nos Estados Unidos da América, a recusa Superar o efeito destrutivo inerente à psi-
de prestação de auxílio a pessoas refu- que e aos vínculos sociais implica redire-
giadas no mar Mediterrâneo na Europa, cionar este potencial destrutivo para algo
ou mesmo o elevadíssimo número de que não “o outro” e não “eu próprio”.
vítimas de feminicídios na América Latina. A sugestão da autora é que este seja dire-
Uma vez que o mundo é um “campo cionado contra a própria destrutividade,
de forças da violência” (p. 20), a autora travando uma guerra contra a guerra, uma
enquadra a não-violência sempre como intolerância contra a intolerância, uma
um exercício crítico, assente num reco- insurgência contra a tirania. Este redire-
nhecimento da interdependência social cionamento corresponde ao “pacifismo
que impele para uma prática coletiva de militante” proposto por Einstein,3 à “lei
resistência motivada pelo reconhecimento do amor” de Mahatma Gandhi,4 ou o que
da injustiça social. Neste sentido, este Butler chama agora de “ética e política da
conceito não se limita a posições passivas não-violência” (p. 91).
perante a vulnerabilidade, mas antes a Butler reflete sobre a condição de vulne-
tomadas de posição éticas e políticas rabilidade, concluindo que uma política
que se materializam em experiências de informada pela vulnerabilidade terá que
resistência, como greves, paralisações, ter em conta que as pessoas vulneráveis
boicotes, assembleias públicas, petições, são ambivalentes na sua condição. O facto
entre outras, que questionam a legitimi- de se encontrarem desproporcionalmente
dade de instituições ou de um regime, expostas às violências não implica passi-
como é o caso da greve geral ou de formas vidade, pelo contrário, coexiste e impele
de resistência antirracista (p. 118) – e, à resistência. A autora é crítica de uma
acrescentaríamos, queer. visão das pessoas vulneráveis como meros
Ao longo do livro, Butler desenvolve um recetáculos de violências, apontando para o
manifesto para uma ética e política da arquétipo das pessoas que sofrem e lutam.

3
Nathan, Otto; Norden, Heinz (orgs.) (2017), Einstein on Peace. New York: Pickl Partners
Publishing, p. 125.
4
Weinberg, Arthur; Weinberg, Lila (orgs.) (2002), The Power of Nonviolence: Writings by Advocates
of Peace. Boston: Beacon Press, p. 45.
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No entender da autora, políticas centradas o caráter ambivalente dos vínculos sociais,


na vulnerabilidade proporcionam um a resistência tomará as formas de “um amor
merecido “alívio” da sua precariedade enfurecido, [um] pacifismo militante, [uma]
(p. 156), mas aponta sobretudo a neces- não-violência agressiva e [uma] persistência
sidade de estas políticas serem articuladas radical” (p. 164).
com um esforço de transformação das Tal política apresenta-se certamente com
estruturas de poder. um caráter utópico inultrapassável, que a
Para as transformar, Butler impele-nos para autora reconhece no final do livro. Uma
um caminho político de uma ação coletiva, igualdade radical constitui, no entanto,
informada pela ética da não-violência um “novo imaginário” (p. 164) – além
e apontada para uma igualdade radical do informado pelos “fantasmas” raciais e
(p. 164). Um caminho que abandone uma heterocissexistas (p. 39), pelas lógicas de
perspetiva individualista, própria do neoli- guerra e pela violência estatal –, que pode
beralismo, e reconheça o caráter interdepen- ser a base para a construção de novas
dente das vidas humanas, bem como a sua e reforçadas solidariedades.
interdependência com as vidas não-huma-
nas e os sistemas vivos, incluindo a terra e Pedro Fidalgo
a natureza (p. 161). Com frequência, dado Revisto por Alina Timóteo

Pedro Fidalgo
Investigador Júnior no Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra | Mestrando na Faculdade
de Economia, Universidade de Coimbra
Colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal
Contacto: pedrofidalgo@ces.uc.pt
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7729-122X

https://doi.org/10.4000/rccs.12955

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