Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
2008
Downloaded from: Biblioteca Digital da Produção Intelectual - BDPI, Universidade de São Paulo
Miriam Dolhnikoff
DOSSIÊ
Miriam Dolhnikoff*
O processo de construção do Estado nacio- O objetivo deste texto é recolocar essa dis-
nal no Brasil, no decorrer do século XIX, envol- cussão em outros termos. Esta pesquisa deriva de
veu uma série de fatores complexos, incluindo trabalho anterior no qual foi analisada a organiza-
perspectivas diferentes sobre qual deveria ser seu ção institucional do Estado brasileiro no século
perfil institucional. Nesse contexto, a opção pela XIX, de modo a averiguar a forma de inserção das
monarquia constitucional foi a derrota da repúbli- elites provinciais no jogo político. Utilizando o
ca, mas sem que a elite política abdicasse, pelo arcabouço conceitual da ciência política e uma vasta
menos em seu discurso, da adoção de um governo pesquisa documental, de modo a examinar não
representativo. O modelo de monarquia vinha da apenas o discurso dos políticos, mas também a
13
IMPÉRIO E GOVERNO REPRESENTATIVO: uma releitura
Esse mecanismo retiraria qualquer caráter de re- guinte. Autores como Bernard Manin, Hanna Pitkin
presentação do governo. O governo representati- e Giovani Sartori ressaltam o caráter elitista dos
vo, assim, não expressaria efetivamente a vontade governos representativos organizados na Inglater-
popular, e a Câmara eletiva deixava de ser o espa- ra, França e Estados Unidos, nos quais prevaleci-
ço de formulação de políticas nacionais (Holanda, am restrições e controles estranhos às democraci-
1985; Faoro, 1987; Barman, 1985). as modernas. Também não se tratava de uma emu-
Aceitar a hipótese de que a representação lação das democracias antigas. Como aponta
política era uma realidade no regime monárquico, Bernard Manin, o governo representativo se opu-
tendo em vista os modelos vigentes no século XIX, nha à democracia ateniense justamente porque
é vantajoso na medida em que coloca novas ques- selecionava uma elite que se acreditava capaz de
tões para a pesquisa sobre o período: Qual era sua agir de acordo com o interesse nacional, a partir
especificidade, em comparação com seus de restrições à participação.
congêneres europeus e norte-americano? Qual era No Brasil, acabou prevalecendo um arranjo
o peso da Câmara dos Deputados na formulação peculiar que combinava características dos mode-
da política nacional? Essa última pergunta é de los inglês e francês. Da França vieram a divisão
14
Miriam Dolhnikoff
entre cidadãos ativos e passivos, sendo que só os distintas, uma de legitimação, outra de decisão.
primeiros tinham direito de voto, e a eleição em Considerando que o número de eleitores de se-
duas fases, onde os votantes votavam nos eleito- gundo grau no Brasil era muito inferior ao de vo-
res que, por sua vez, votavam nos deputados. Da tantes (cada 40 votantes escolhiam um eleitor, se-
França e da Inglaterra veio o voto censitário. Da gundo lei aprovada em 1846), provavelmente, se
França e da Inglaterra veio a monarquia constitucio- tomarmos apenas os eleitores de segundo grau, o
nal bicameral, com uma câmara eletiva temporária padrão de participação no Brasil não se apresenta-
e outra vitalícia. Também da França veio o modelo ria tão superior ao padrão europeu. De todo modo,
de monarquia constitucional no qual a nomeação dele não se distanciava e não se pode negar que,
do ministério pelo rei não precisava corresponder mesmo com função apenas de legitimação, o voto
à maioria parlamentar. Dos Estados Unidos veio, a de primeiro grau era uma forma de incluir setores
partir da década de 30, a inspiração federativa que mais amplos da população no jogo político.
tornava os deputados representantes dos interes- Na concepção de cidadania política preva-
ses provinciais. lecente no século XIX, a exclusão do escravo tam-
Uma vez que as restrições à cidadania obe- bém se tornava natural. Como aponta José de
deciam ao espírito da época, o eleitorado brasilei- Alencar, sua incapacidade política derivava, antes
ro não estava fora dos padrões do período. No que de tudo, da incapacidade civil,
diz respeito ao universo de votantes, conforme
aponta José Murilo de Carvalho, 13% da popula- ... antes de cidadão, o homem é pessoa. Dessa
qualidade depende o título de membro da co-
ção total (excluindo os escravos) tinham direito de munhão. Desde, pois, que o indivíduo se acha
voto, de acordo com o recenseamento de 1872. privado da atividade de seu direito civil, fica vir-
tualmente impedido de exercer o direito políti-
Em torno de 1870, na Inglaterra, eram apenas 7%, co (Alencar, 1997, p.89).
na Itália, 2%, e, na Holanda, 2,5% (Carvalho,
2001). Mas é preciso tomar com cuidado essas O escravo estava fora da sociedade civil e,
comparações. No Brasil, as eleições eram realiza- portanto, não cabia considerá-lo como membro da
das em dois graus (votantes escolhiam eleitores sociedade política. O mesmo problema foi enfren-
que, por sua vez, escolhiam deputados e senado- tado nos Estados Unidos. Madison, por exemplo,
res), seguindo-se o modelo adotado na França re- advogava que o escravo sequer deveria ser
volucionária. Como aponta Rosanvallon, o voto contabilizado no cálculo da população que deve-
de primeiro grau tem uma natureza distinta do de ria servir de base para estabelecer o número de
15
IMPÉRIO E GOVERNO REPRESENTATIVO: uma releitura
o escravo contava como três quintos de uma pessoa. necessário para o equilíbrio dos poderes na medi-
No Brasil, como se sabe, os libertos, pela da em que é a condição para evitar abusos. Assim,
Constituição de 1824, tinham direito de voto. Uma o veto do Executivo à lei promulgada pelo
vez libertado, o ex-escravo adquiria cidadania ci- Legislativo é um exemplo de interferência que ga-
vil e, conseqüentemente, a possibilidade de cida- rante o controle necessário para que o Legislativo
dania política. É bem verdade que o liberto pode- não abuse de seu poder. A interferência de um
ria ser apenas votante, mesmo que preenchesse os poder sobre outro era condição para evitar o abuso
requisitos para ser eleitor ou candidato, mas isso de poder e no século XIX, e a dissolução da câma-
se justificava pelo fato de que era aceitável que ra eletiva era aceita como forma de interferência
houvesse limites para que o portador de cidadania legitima. Como aponta Constant,
civil gozasse também de direitos políticos. As
mulheres livres, por exemplo, desfrutavam de ci- ... elevaram-se reclamações contra o direito de
dissolver as assembléias representativas, direito
dadania civil, mas não política, uma vez que eram atribuído, tanto por nosso ato constitucional
consideradas intelectualmente limitadas. O mesmo [Constant se refere à França] como pela consti-
tuição da Inglaterra, ao depositário do poder su-
valia para o liberto, com o seu passado de escravo. premo. [...] Nenhuma liberdade, sem dúvida,
pode existir num grande país sem assembléias
O interessante é que, nesse ponto, o liberto era con- fortes, numerosas e independentes; mas essas
siderado mais apto do que qualquer mulher, mes- assembléias não são isentas de riscos, e no inte-
resse da própria liberdade, cumpre preparar
mo branca e pertencente à elite, pois nem direito de meios infalíveis para prevenir seus desvios
ser votante ela tinha. A restrição ao liberto, além (Constant, 2005, p.31).
disso, restringia-se a uma geração, pois o filho do
ex-escravo tinha plenos direitos políticos, desde que A dissolução era coerente com a represen-
preenchesse os requisitos constitucionais. tação, uma vez que obrigatoriamente eram
Além da escravidão e as restrições ao direi- convocadas novas eleições para deputados no prazo
to de voto, a existência do Poder Moderador tem de alguns meses, de modo que a dissolução signi-
sido argumento para negar o caráter representativo ficava o funcionamento essencial do governo re-
da monarquia brasileira, pois supostamente con- presentativo: no conflito entre Executivo e
centraria a iniciativa política nas mãos do impera- Legislativo, a decisão voltava às mãos do eleitor.
dor, principalmente porque, com sua atribuição Caberia a ele, através do voto, reconduzir ao parla-
de dissolver a Câmara, podia, através da fraude mento os deputados da legislatura dissolvida, afir-
eleitoral, garantir a eleição de deputados fiéis ao mando, assim, sua preferência pela política por
CADERNO CRH, Salvador, v. 21, n. 52, p. 13-23, Jan./Abr. 2008
ministério nomeado por ele. No entanto, o gover- eles defendida, ou renovar a Câmara de modo a
no representativo era condizente também com a modificar a tendência predominante.
presença do Poder Moderador. A opção pelo quar- Pode-se argumentar que as eleições não eram
to poder era uma solução, entre outras, para uma livres no Brasil, devido à fraude e à violência. Mas
questão presente em todas as monarquias consti- é preciso relativizar o papel da fraude como empe-
tucionais representativas do século XIX: definir o cilho para a representação. A fraude eleitoral não
papel do rei em um governo representativo, dada era exclusividade brasileira. Era amplamente pra-
a natureza hereditária e irresponsável do cargo. ticada nos países que constituíram o berço desse
Antes de continuar o argumento, é útil lem- tipo de governo. Basta lembrar dos burgos podres
brar que a interferência de um poder sobre o outro da Inglaterra. Como observa Wanderley Guilher-
é da natureza dos governos representativos. A di- me dos Santos,
visão de poderes, com atribuições definidas pela com o sistema representativo, e com essa
institucionalização [da participação política via
Constituição, e a independência entre eles não era eleição] na Inglaterra, nos Estados Unidos, vie-
e não é entendida como ausência de interferência, ram, como vieram no Brasil no século XIX, [...] a
violência, a corrupção endêmica, a fraude, a com-
já que sempre foi considerada como um elemento pra de votos (Santos, 1998).
16
Miriam Dolhnikoff
A fraude e a violência obviamente influen- sem assim considerados por aqueles que repre-
ciavam a representação, mas é preciso qualificá-las sentavam.
para compreender até que ponto a comprometiam. Por outro lado, é preciso avaliar se, no fun-
Dois elementos devem ser considerados para pen- cionamento efetivo do regime, o quarto poder não
sar a fraude no contexto do governo representati- acabava sendo um obstáculo à representação, na
vo brasileiro. Em primeiro lugar, sua extensão. É medida em que resultasse no constrangimento da
difícil, quase impossível, medir o quanto a fraude liberdade de decisão dos deputados. No entanto,
contaminava o processo eleitoral. O famoso livro a dificuldade do Executivo, em determinados mo-
de Belisário Soares de Souza, O sistema eleitoral mentos, para conseguir a aprovação de seus proje-
no Império, publicado em 1872, apresenta um tos na Câmara (como a Lei do Ventre Livre pro-
quadro no qual a fraude parece ser onipresente. mulgada em 1871 e a dos Sexagenários de 1886)
No entanto, é preciso considerar que Belisário es- evidencia que, mesmo sob a ameaça de dissolu-
creveu seu livro com um propósito: a defesa de ção, os deputados impunham resistência à vonta-
uma nova legislação eleitoral que eliminasse a fi- de do imperador. Além disso, o alto custo político
gura dos votantes, com o argumento de que se tra- da dissolução provavelmente funcionava como um
tava de homens ignorantes e, portanto, sujeitos a freio para que ela não fosse praticada com freqüên-
todo tipo de manipulação. Sem querer menospre- cia. Como nota Sérgio Buarque de Holanda, era
zar a dimensão da fraude naqueles tempos, é licito um “recurso extremo, que a própria carta de 1824
supor que ela não tinha magnitude de ordem a só admite em casos de exceção [...] e é de supor
comprometer inteiramente o processo eleitoral, uma que seu uso seguido e indiscriminado poderia
vez que este foi um instrumento importante de ameaçar a própria segurança do sistema.”
estabilidade do regime. A eleição periódica de de- (Holanda, 1985, p.11). O autor dá como exemplo
putados era reconhecida pelos atores como forma a situação de 1862, quando um ministério conser-
de garantir que a vontade nacional fosse ouvida na vador foi derrubado por moção de desconfiança
formulação de políticas, de modo que foi possível aprovada na Câmara, com apenas um voto de dife-
manter a monarquia constitucional por quase um rença. O ministério liberal que o substituiu teria
século sem grandes abalos institucionais. de enfrentar, assim, uma câmara dividida, na qual
Um segundo ponto a considerar em relação contava com o apoio apenas de cerca de metade
à fraude diz respeito aos esforços empreendidos dos deputados. A solução seria a dissolução, mas
pela elite imperial no seu combate. Uma profusão o imperador decidiu não fazê-lo, apesar das difi-
17
IMPÉRIO E GOVERNO REPRESENTATIVO: uma releitura
18
Miriam Dolhnikoff
los seus representantes. Ao seguir, nesse ponto, o ral que se tornaria a lei de 1846, da seguinte forma:
modelo liberal, o regime brasileiro incorporava um
grande poder de interferência da Câmara sobre os Mas se com este expediente se evitava o mal das
corvéias, outro mal maior pareceu a comissão
demais poderes. O Executivo, por exemplo, não dever daí derivar. Ela capacitou-se que semelhan-
poderia realizar seus programas de governo sem o te divisão não faria senão enviar ao corpo repre-
sentativo notabilidades de aldeia, em vez de ver-
assentimento dos deputados. dadeiras notabilidades provinciais.2
O debate parlamentar evidencia também a
existência da preocupação da elite política com a O mesmo argumento seria utilizado em 1855
qualidade da representação nacional, no sentido por aqueles que eram contra a Lei dos Círculos,
de torná-la eficaz e no sentido de definir seu con- então em discussão. Só que, dessa feita, a maioria
teúdo quanto ao grau de representatividade. Essa dos deputados optou pelo voto distrital.
preocupação manifestou-se de forma mais expres- No Brasil, ao contrário de outros países, a
sa na discussão sobre a legislação eleitoral. Foram legislação eleitoral do império caminhou no senti-
basicamente três os temas que mobilizaram os par- do de ampliar as restrições e não o eleitorado. A
lamentares quanto a esse item: a fraude eleitoral, a lei de 1846 indexou em prata os valores exigidos
representação das minorias e o que chamavam de para votar e ser eleito. A lei de 1875 tornou mais
incompatibilidades. Os três temas respondiam a rigoroso o processo de qualificação dos eleitores, e
preocupações de fundo, referentes à efetividade a lei de 1881 eliminou a eleição em duas fases,
do governo representativo: o tipo de representa- excluindo os votantes, e introduziu a exigência de
ção que deveria prevalecer e a independência en- ser alfabetizado.
tre os poderes. Os três temas freqüentaram os de- Na medida em que, no século XIX, a quali-
bates parlamentares desde pelo menos 1828 e, entre dade da representação era considerada resultado
outras leis, as opções adotadas materializaram-se da qualidade do eleitor, os políticos brasileiros
em quatro mais importantes: a lei de 1846, que apostaram na gradativa diminuição do eleitorado
afirmava os princípios de cidadania consagrados como forma de combater a fraude. Um eleitor anal-
na constituição de 1824, a lei de 1855, que adota- fabeto e, portanto, mal informado e pobre era mais
va o voto distrital e definia a inelegibilidade de vulnerável às artimanhas daqueles que procura-
detentores de determinados cargos públicos (in- vam manipular as eleições. Quando, em 1846, o
compatibilidade), a lei de 1875, que introduziu o deputado Andrada Machado apresentou o projeto
título de eleitor, e a lei de 1881, que modificou os de reforma eleitoral elaborado pela comissão da
19
IMPÉRIO E GOVERNO REPRESENTATIVO: uma releitura
No que se refere às incompatibilidades, pre- distrito grande, ou seja, do voto provincial. Aque-
servar a independência entre os poderes era a ques- les que estavam preocupados com a representação
tão central. A Câmara, como instância eletiva que da diversidade batiam-se pelo distrito pequeno.
conferia representação ao regime através da eleição Na concepção de representação do século
dos seus membros, deveria ser protegida da inter- XIX, cabia aos representantes, ao mesmo tempo,
ferência de integrantes de outros poderes que defender os interesses dos seus eleitores e aquilo
porventura se elegessem deputados. Assim, a par- que consideravam constituir os interesses de toda a
tir de 1855, uma série de leis foi promulgada de- nação. Muitas vezes, havia contradição entre os dois
clarando impedidos de se candidatar aqueles que campos, sendo que, no Brasil, a defesa dos interes-
tivessem cargos importantes no Judiciário e no ses dos eleitores se confundia com a defesa dos
Executivo. interesses provinciais que, assim, eram às vezes
Por fim, a representação das minorias foi vistos como em oposição ao interesse nacional.
fonte de intenso debate, acompanhando preocu- As bancadas tendiam a defender os interes-
pações que norteavam também os legisladores eu- ses da província que representavam quando o tema
ropeus e norte-americanos. Como o sistema pro- lhes dizia respeito diretamente. Para que o novo
porcional ainda não era usual na Europa, tendo arranjo institucional fosse fiador da unidade, era
sido introduzido só no final do século XIX, a pre- preciso que as elites provinciais reconhecessem,
ocupação em garantir a eleição das minorias tinha nas suas bancadas, um efetivo meio de defesa de
de ser resolvida dentro do sistema majoritário. Em seus interesses no interior do Estado (mesmo que
1855, no debate que resultou na promulgação da nem sempre conseguissem aprovar medidas con-
Lei dos Círculos, os parlamentares optaram, não dizentes com suas demandas), o que se evidencia
sem muita discussão, pela adoção do voto distrital no fato de que o número de deputados de cada
em substituição ao que chamavam de voto provin- província se tornou a medida do seu grau de in-
cial, consagrado na Constituição de 1824. No en- fluência na política nacional. Uma representação
tanto, o voto provincial também era distrital, já enviada pela Assembléia Legislativa de São Paulo
que cada província elegia um número fixo de de- ao governo central, em 1841, reflete claramente essa
putados e cada eleitor votava em tantos nomes concepção, quando, ao protestar contra os rigores
quantos deputados compunham a bancada de sua do recrutamento forçado que sofria a população
província, sempre pelo sistema majoritário. No paulista, propõe que
esforço de garantir a representação minoritária sem
CADERNO CRH, Salvador, v. 21, n. 52, p. 13-23, Jan./Abr. 2008
voto proporcional, a proposta era que o voto fosse ... o número de recrutas exigidos para a forma-
ção do exército do Império seja repartido pelas
por distritos pequenos, ao invés do grande distri- províncias na proporção do número dos deputa-
to provincial. dos que cada uma delas envia à Assembléia Ge-
ral. Sendo um princípio inegável de justiça que
Aqueles que a defendiam consideravam essa os ônus devem ser proporcionais às vantagens
que se colhem do contrato social, e estas vanta-
uma forma mais eficiente para garantir a eleição de gens relativas à parte que cada uma das provín-
minorias no sistema majoritário, uma vez que bas- cias toma na decisão dos negócios gerais, o que
fica evidente pelo número de deputados que no-
taria ter poder local para ser eleito, enquanto uma meia, parece que semelhante regra deve ser ado-
circunscrição ampla, como a província, favorece- tada como a mais justa.4
ria o candidato melhor articulado politicamente e,
assim, tornaria quase impossível a eleição de can- A representação paulista reconhecia, desse
didatos de grupos minoritários. modo, que o grau de influência das províncias nas
No Brasil, aqueles que defendiam a eleição decisões do governo central era determinada pelo
dos melhores, mais sábios e mais ilustrados como
única forma de o parlamento formular de modo 4
Anais da Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo.
competente a vontade nacional eram a favor do 1840/1841.
20
Miriam Dolhnikoff
número de deputados que elegia. A representação proporção alguma razoável quando uma só pro-
víncia influi no parlamento brasileiro tanto como
na Câmara tinha, assim, conteúdo territorial. dez outras?Não direi mesmo tanto, e sim mais do
Essa concepção de representação esteve pre- que dez outras, por isso que os vinte representan-
tes destas não se ligam entre si, têm interesses
sente na discussão do voto distrital em 1855. Os divergentes, não têm a força de seu número.6
defensores do voto distrital (distrito pequeno) ar-
gumentavam que o distrito grande favorecia a exis- A representação dos eleitores convivia, no
tência de bancadas provinciais coesas. O que sig- Brasil, com uma representação de caráter nacional.
nificava que as províncias com maior número de Os deputados eram representantes da nação, se-
deputados imporiam seus interesses aos demais, guindo, aqui, a concepção burkeana: cabia a eles
enquanto o voto por distrito pequeno resultaria identificar o bem comum e legislar de acordo com
em bancadas fragmentadas, favorecendo a negoci- ele. Claro está que o que cada qual considerava ser
ação ao invés da imposição dos interesses de um o bem comum variava de acordo com diversos que-
setor apenas. Pimenta Bueno fazia a defesa do voto sitos: extração social, origem provincial, filiação
distrital alegando que as grandes províncias tinham partidária, etc., e, por essa razão, o debate parla-
força, através do parlamento, de fazer valer seus mentar assumia papel crucial no enfrentamento entre
interesses frente o governo central, em detrimento posições e na formulação da política nacional. Em
das pequenas províncias, com bancadas menores: conseqüência, era preocupação central a garantia de
eleição de representantes portadores de virtude que
O que vemos porém no Brasil? Vemos a par de os habilitasse a atuar de acordo com o interesse
pequenas províncias outras consideráveis, que
relativamente são grandes Estados, Estados pre- nacional, definido por eles próprios.
ponderantes, que têm interesses distintos e opos- Dessa tensão resultava que o mesmo deputa-
tos, como que nacionalidades diversas, com for-
ças desproporcionadas e capazes de entrar em do, em determinado momento, pautava sua atua-
luta com o governo central e por em dúvida a ção tendo em vista os interesses de sua província e,
indivisibilidade do império. [...] Este é nosso es-
tado, inconveniente e perigoso: e como sobre ele em outros, aquilo que considerava ser o interesse
influi o atual sistema eleitoral? Tende a corrigir e nacional. Obviamente, essa última posição era, em
neutralizar esses inconvenientes e perigos ou a
reforçá-los? Enquanto as eleições continuarem a geral, tomada quando interesses específicos de sua
ser feitas por províncias, como atualmente são, a
resposta não pode ser duvidosa.5 província não estavam em jogo. A tensão ocorria na
medida em que essa oscilação gerava expectativas
Ao apontar o papel das bancadas parlamen- opostas no interior do debate. Por exemplo, em 1850,
tares na representação dos interesses provinciais ao exercer sua atribuição de controle da
A província de Minas tem na câmara dos depu- A suscetibilidade dos honrados membros depu-
tados 20 representantes e no senado 10, tem pois tados por Pernambuco foi tal que até se acusou o
uma representação igual a de 10 províncias do meu honrado amigo, deputado pela Bahia e au-
Brasil, tanto em uma como noutra câmara, pois tor do projeto, de se deixar eivar do espírito do
que na câmara dos deputados a província do provincialismo na questão de que se trata. Se
Amazonas tem 1, Espírito Santo 1, Paraná 1, Santa pode haver acusação de espírito de
Catarina 1, Goiás 2, Mato Grosso 2, Piauí 2, provincialismo a este respeito não cabe certa-
Sergipe 2, Pará 3, Alagoas 5, ao todo 10 provínci- mente àqueles que votam contra o adiamento e
as com 20 deputados. (...) Ora, haverá, porventura, em favor do projeto, pertencentes como são a di-
5
Anais do Senado, sessão de 18 de julho de 1855. 6
Ibidem idem.
21
IMPÉRIO E GOVERNO REPRESENTATIVO: uma releitura
versas províncias, mas sim aos ilustres deputa- interesses dos representados e o espaço de formu-
dos por Pernambuco, que reconhecendo que são
ilegais essas leis de sua província, entretanto lação de políticas nacionais. Sua função precípua
querem que elas permaneçam.7 era formular as leis às quais todos, do rei ao mais
humilde dos brasileiros, teriam de se submeter.
A acusação de provincialismo, lançada de
O Poder Moderador, a fraude eleitoral, a
parte a parte, funcionava como desqualificação da
escravidão e o voto censitário não eram incompatí-
posição do oponente, mas fazia sentido justamen-
veis com o modelo de representação política do
te porque as bancadas mobilizavam-se para defen-
século XIX. Ao contrário, como se procurou de-
der os interesses de suas províncias, de modo que
monstrar, com exceção do Poder Moderador, esta-
a Câmara dos Deputados se tornava a instância no
vam presentes nas experiências européias de go-
interior da qual as elites regionais podiam intervir
verno representativo (fraude e voto censitário) e
na política nacional. Ao mesmo tempo, contudo,
norte-americanas (fraude e escravidão). E estavam
estavam compenetrados de sua condição de repre-
presentes porque não afrontavam a forma pela qual
sentantes da nação, situação bem sintetizada por
se pensava, então, a cidadania e a representação.
D. Manoel de Assis Mascarenhas, deputado pelo
O Poder Moderador, apesar de restrito às experi-
Rio de Janeiro:
ências brasileira e portuguesa, também não falsea-
É verdade, senhores, que nós somos representan-
va a monarquia constitucional representativa, tal
tes da nação, mas também é verdade que deve- qual o modelo prevalecente no período.
mos mais particularmente advogar os interesses
de nossas províncias porque estamos de ordiná- No Brasil, o desafio de construir um gover-
rio mais habilitados para conhecermos dos inte- no representativo centrou-se na forma de organi-
resses delas. Portanto, não se deve censurar que
um deputado da Bahia, por exemplo, ou do Rio zar as instituições, de modo a adaptar os modelos
de Janeiro, proponha a revogação de um ato da conhecidos à realidade específica do país. Os po-
assembléia provincial de Pernambuco que ele
entende que vai de encontro não só à Constitui- líticos brasileiros acalentaram projetos distintos,
ção, mas também aos interesses da província que tendo em vista concepções diversas de represen-
o honrou com os seus votos para ter assento nesta
casa.8 tação e diferentes interesses projetados na ordem
institucional. A opção por um governo represen-
A Câmara dos Deputados, como órgão de tativo permitiu trazer para o interior do Estado as
representação por excelência, era vista como o ins- disputas de interesses entre os diversos setores da
trumento pelo qual o povo participava do governo elite.
do país. Seus representantes lá estavam para de- No processo de construção do Estado brasi-
CADERNO CRH, Salvador, v. 21, n. 52, p. 13-23, Jan./Abr. 2008
fender seus interesses. Mas uma das tensões bási- leiro, a Câmara dos Deputados viabilizou a relação
cas dos governos representativos está no fato de de legitimidade entre população e governo, por ser
que o representante é também governo e, por isso, eletiva, e tornou-se espaço de negociação de confli-
tem com o representado uma relação de imposi- tos através da formulação institucional de políticas.
ção. O representante é, dessa forma, sempre um Cumpriu, assim, o papel que suas congêneres cum-
agente da localidade que o elegeu, como também priram na Europa e Estados Unidos.
um governante da nação, “his duty is to pursue
both local and national interest, the one because
(Recebido para publicação em janeiro de 2008)
He is a representative, the other because his job as (Aceito em março de 2008)
representative is governing the nation” (Pitikin,
1967, p.218). Assim, a Câmara de Deputados era,
ao mesmo tempo, o espaço de representação dos REFERÊNCIAS
BARMAN, Roderick. Brazil. The forging of a nation (1798-
7
Anais da Câmara dos Deputados, sessão 23/5/1850. 1852). Stanford: Stanford University Press, 1988
8
Ibidem, idem. BUENO, José Antônio Pimenta. Direito público brasileiro
22
Miriam Dolhnikoff
e análise da constituição do Império. In: KUGELMAS, MANIN, Bernard. Los principios del gobierno representa-
Eduardo (Org.) Marquês de São Vicente. São Paulo: Edi- tivo. Madrid: Alianza Editorial, 1998.
tora 34, 2002.
NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. 5.ed. Petrópolis:
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. Rio de Vozes, 1988.
Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
NICOLAU, Jairo Marconi. As distorções nas representa-
CONSTANT, Benjamin. Escritos de política. São Paulo: ções dos estados na Câmara dos Deputados brasileira.
Martins Fontes, 2005. Dados: revista de ciências sociais, Rio de Janeiro, IUPERJ,
v.40, n.3, 1997.
DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do fede-
ralismo no Brasil. São Paulo: Globo, 2004. NORTON, Philip. Representation of interests: the case of
the British House of Commons. COPELAND, Gary W.;
FAORO, Raymundo. Os donos do poder. 7.ed. Rio de Ja- PATTERSON, Samuel C. (Ed.) Parliaments in the modern
neiro: Globo, 1987. world. 4.ed. Michigan: University of Michigan, 1997.
HESPANHA, Antonio Manuel. Guiando a mão invisível. PITKIN, Hanna. The concept of representation. Los
Direitos, Estado e lei no liberalismo monárquico portugu- Angeles: University of California Press, 1967.
ês. Coimbra: Livraria Almedina, 2004
ROSANVALLON, Pierre. La consagración del ciudadano.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Do Império à República. San Juan: Instituto Mora, 1999.
História geral da civilização brasileira. 4.ed. São Paulo:
Difel, 1985. T.2, v.5. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A anomalia demo-
crática: adolescência e romantismo na história política.
LAMOUNIER, Bolívar. Da Independência a Lula. São Pau- Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, Anpocs,
lo: Augurium Editora, 2005 v.13, n.36, 1998. [online].
MADISON, James; HAMILTON, Alexander; JAY, John. SARTORI, Giovanni. A teoria da representação no Esta-
Os artigos federalistas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, do representativo moderno. Belo Horizonte: Faculdade de
1993. Direito da UFMG, 1962.
23
RESUMOS, ABSTRATCS, RÉSUMÉS
IMPÉRIO DE GOVERNO EMPIRE OF REPRESENTATIVE L’EMPIRE DU GOUVERNEMENT
REPRESENTATIVO: uma releitura GOVERNMENT: rediscussion REPRÉSENTATIF: une nouvelle lecture