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Mamelucos: ambíguos por origem e vocação.

Márcia Silva de Souza – (UEFS)1

1. Considerações Iniciais

O conjunto de manuscritos que serão apresentados no decorrer desse trabalho,


Documentos de Mamelucos – Tomo I, compõem um dos acervos do Corpus Eletrônicos
de Documentos Históricos do Sertão (CE-DOHS)2, considerados fontes escritas de
grande valia para os estudos de sincronias passadas. Pois, refletem uma escrita de
indivíduos não brancos, que ocuparam uma posição relativamente alta na sociedade
colonial e tiveram acesso à escrita. Sendo um corpus não somente escasso, mas de
natureza arqueológica. (MATTOS e SILVA, 2002).
A base documental do acervo, Documentos de Mamelucos – Tomo I, feita por
Cardoso (2019)3 é composto pelo mameluco Lourenço de Brito Correa, bisneto de
Diogo Álvares e a índia Paraguaçu, o que possibilitou o acesso à educação e a ofícios
administrativos destinado à elite colonial (SANTANA, 2012). Lourenço de Brito
Figueredo, filho de Lourenço de Brito Correa, teve caminhos acadêmico e políticos
parecidos com o seu pai. E do mameluco paulista, Domingos Jorge Velho, responsável
por capturar o zumbi dos Palmares.
Os manuscritos de Lourenço de Brito Correa são compostos por onze cartas e
uma memória, escritos entre 1659 e 1662, Lourenço de Brito Figueredo por onze cartas,
escritas entre 1669 e 1671 e Domingos Jorge Velho uma carta, escrita em 1694. Para
uma melhor especificidade do material (cf. quadro 1), a seguir, organizado a partir das
questões do paleógrafo Armando Petrucci (2003).

1
Mestranda em Estudos Linguísticos, Programa Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da Universidade
Estadual de Feira de Santana.
2
O CE-DOHS é a versão eletrônica do DOHS, do Projeto Vozes do Sertão em dados: história, povos e
formação do português brasileiro (processo CNPq 401433/2009-9), coordenado pelas professoras
doutoras Zenaide de Oliveira Novais Carneiro e Mariana Fagundes de Oliveira Lacerda faz parte do
Núcleo de Estudos de Língua Portuguesa (NELP), desde 2012, do Departamento de Letras e Artes (DLA)
da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). http://www.uefs.br/cedohs.

3
Através de pesquisas em dezenas de acervos públicos, privados, nacionais e internacionais, no qual
consultou mais de cinco mil documentos. Um trabalho custoso de identificação de escreventes, que
contou com várias teses e dissertações escritas por historiadores.
Quadro 1: Dados dos documentos4 – Século XVII
Acervo Quem O que Quando Onde Para quem Escolaridade Fonte
Outeiro da
Domingos Jorge Velho Carta 15.07.1694 Barriga D. Pedro II ----------5 AHU_ACL_CU_015, Cx. 17\Doc.1674 (1)
Carta 12.06.1659 Bahia Sua Majestade AHU_ACL_CU_005, Cx. 15\Doc.1738 (1)
Carta 15.06.1659 Bahia Sua Majestade AHU_ACL_CU_005, Cx. 15\Doc.1739 (1)
Carta 14.09.1660 Bahia Sua Majestade AHU_ACL_CU_005, Cx. 16\Doc.1818_1819 (1)
Carta 27.04.1661 Bahia Sua Majestade AHU_ACL_CU_017-1, Cx. 5\Doc. 850 (1)
Documentos de Mamelucos – Tomo I

Carta 12.05.1661 Bahia Sua Majestade AHU_ACL_CU_005, Cx.15\Doc.1795 (1)


Lourenço de Brito Carta 13.05.1661 Bahia Sua Majestade Culto AHU_ACL_CU_005, Cx. 16\Doc. 1870 (1)
Correa Carta 31.03.1662 Bahia Sua Majestade AHU_ACL_CU_005, Cx. 16\Doc. 1846 (1)
Carta 23.05.1662 Bahia Sua Majestade AHU_ACL_CU_005, Cx. 16\Doc. 1862_1863 (1)
Carta 20.09.1662 Bahia Sua Majestade AHU_ACL_CU_005, Cx. 16\Doc. 1888 (1)
Carta 26.09.1662 Bahia Sua Majestade AHU_ACL_CU_005, Cx. 17\Doc. 1935 (1)
Memória 23.05.1662 Bahia Sua Majestade AHU_ACL_CU_005, Cx. 16\Doc.1862_1863 (1)
Carta 04.04.1669 Bahia Sua Majestade AHU_ACL_CU_005, Cx. 20\Doc.2298_2299 (1)
Carta 09.04.1669 Bahia Sua Majestade AHU_ACL_CU_005, Cx. 20Doc. 2301 (1)
Lourenço de Brito Carta 12.04.1669 Bahia Sua Majestade AHU_ACL_CU_005, Cx. 20\Doc. 2304 (1)
Figueredo Carta 16.04.1669 Bahia Sua Majestade AHU_ACL_CU_005, Cx. 20Doc. 2305 (1)
Carta 17.04.1669 Bahia Sua Majestade AHU_ACL_CU_005, Cx. 20\Doc. 2306 (1)
Carta 15.07.1669 Bahia Sua Majestade Culto AHU_ACL_CU_005, Cx. 20Doc. 2314_2315 (1)
Carta 08.07.1669 Bahia Sua Majestade AHU_ACL_CU_005, Cx. 20Doc. 2352 a 2354 (1)
Carta 24.06.1670 Bahia Sua Majestade AHU_ACL_CU_005, Cx. 20\Doc. 2370 (1)
Carta 15.08.1671 Bahia Sua Majestade AHU_ACL_CU_005, Cx. 21\Doc. 2435 (1)
Carta 12.03.1671 Bahia Sua Majestade AHU_ACL_CU_005, Cx. 22\Doc. 2522 (1)
Carta 13.05.1671 Bahia Sua Majestade AHU_ACL_CU_005, Cx. 2\Doc. 176 (1)
Fonte: autor

4
Documentos em fase de edição semidiplomática.
5
A respeito da escolarização de Domingos Jorge Velhos, não há notícias, levanta-se a hipótese que não teve acesso regular à escola.
Os manuscritos descritos no quadro 1, foi localizado no Arquivo Público Nacional
Torre do Tombo e através do Projeto Resgate, instalou-se em 1995, em Portugal, no
Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), cujo acervo evidencia cinco séculos da presença
portuguesa no mundo6. Segundo Lobo (2009, p.322), “trata-se do arquivo que concentra
o maior acervo documental relativo ao Brasil colonial fora do território brasileiro”.
Dentre as dificuldades encontradas na localização desses manuscritos destaca-se o
obstáculo apontado por Petrucci (1999), a “raridade” em localizar documentos de
sincronias passadas dos segmentos sociais menos privilegiados. Tendo em vista, que a
escrita era restrita a brancos pertencente à elite econômica e social da época. Esses
documentos são de mamelucos, ou seja, descendentes de filho de português com índia
ou filho de um casal que o pai ou a mãe já era mameluco. Os quais, tiveram acesso a
escrita, por ocuparem uma posição considerada alta na sociedade colonial.
O mameluco Lourenço de Brito Correia e Lourenço de Brito Figueredo são
considerados cultos, pois ocuparam posições alta e receberam títulos como Fidalgo da
Casa Real, além de ser parentes do Caramuru recendo influência política e econômica.
Os manuscritos desses redatores podem trazer indícios do português popular falado na
época, ou até mesmo, pistas de uma escrita indígena. Considerando que esses indivíduos
nem só resultou do encontro de duas culturas distintas, a Portuguesa e a Indígena, mas
viveram entre elas.
Os dados dos documentos estão organizados atendendo a proposta de Petrucci
(2003) para quem, para qualquer tempo histórico, quem trabalha com a Cultura Escrita
deve responder a um conjunto mínimo de questões.

¿Qué? En qué consiste el texto escrito, qué hace falta transferir al


código gráfico habitual para nosotros, mediante la doble operación de
lectura y transcripción;
¿Cuándo? Época en que el texto en sí fue escrito en el testimonio que
estamos estudiando;
¿Dónde? Zona o lugar en que se llevó a cabo la obra de transcripción;
¿Cómo? Com qué técnicas, com qué instrumentos, sobre qué
materiales, según quémodelos fue escrito ese texto;
¿Quién lo realizo? Aqué ambiente sociocultural pertenecía el ejecutor
y cuál era ensutiempoy ambiente la difusión social de la escritura.
¿Para qué fue escrito ese texto? Cuál era la finalidad específica de esse
testimonio en particular y, además, cuál podia ser en su época y en su
lugar de producción la finalidad ideológica y social de escritura.

6
Brasil (1548-1825), Angola (1610-1975), Moçambique (1608-1975), Paraguai (1618-1823), Cabo Verde
(1602-1975), Argentina (1778-1825) e dentre outros.
As questões descritas acima – quem, quando, onde, o tipo de texto e para quê são
necessárias para tornar melhores os “maus dados” a que se refere Labov nos estudos de
mudança linguística. Nesse trabalho concentrarei, quem são os redatores, quando foi
escrito e para quê foi escrito. Com objetivo de conhecer as particularidades dos
manuscritos e dos redatores., apresenta-se levantamento de aspectos sócio-históricos
dos mamelucos, sujeitos multifacetados, que viveram entre duas culturas distintas e
foram personagens importantes na formação do português brasileiro.

O corpus: Documentos de Mamelucos – Tomo I

Os manuscritos são datados do século XVII e pertencentes a redatores cujo perfil


sociocultural fora identificado por fontes historiográficas como: capitão, sargento-mor,
comandante da companhia de soldados e governador interinamente. Para estabelecer um
contraste com os manuscritos dos mamelucos escolarizados, este acervo contém uma
carta do bandeirante e sertanista paulista Domingos Jorge Velho. De quem ainda não
descobrimos a sua formação escolar. Mas, a origem humilde de sua família faz levantar
a hipótese de que não houve acesso regular à escola.
Há, ainda, registros históricos que atestam ser o Domingos Jorge Velho falante
de uma língua “tupi”, não dominando a língua portuguesa. Por ser sertanista, a sua
presença dentro do interior baiano se configura um dado importante para entender que
português chegava no interior, se havia diferenças para a língua portuguesa situada na
costa brasileira, e o contraste entre o acesso ou não da escolarização por indivíduos que
tiveram um processo de aquisição linguística semelhante. Tendo em vista que,

o uso da língua portuguesa estivesse restrito ao espaço público, pois


era aprendido por aqueles que frequentavam a escola e era usado
apenas nos documentos escritos. Tinha assim um caráter mais oficial
que público. No âmbito do privado, ou seja, no espaço doméstico,
usava-se a língua geral, que se tornou ‘hegemônica, difundindo-se por
todas as camadas sociais e irradiando-se do privado para o público’.
(VILLALTA, 1997, p.339)

Domingos Jorge velho, por ser mameluco, sertanista paulista, natural da


Capitania de São Vicente acredita-se que era falante do tupi, dando a importância que
foi uma língua muito falada pelos bandeirantes e mamelucos paulistas, na qual se
manteve até o século XVIII. Sendo consolidada a língua portuguesa no território
paulista, a partir do Diretório pombalino estabelecido em 1758, por determinação do
governo de Marquês de Pombal. Porém, Monteiro (1995), refuta a ideia de que
Domingos Jorge Velho falava apenas o tupi. O autor afirma que o referido bandeirante
“não apenas falava como também escrevia em português” (p. 164). Ainda sustenta que,
o domínio da língua portuguesa, no período colonial, em São Paulo era considerado
altamente prestigiado e uma respeitável especialização dos sertanistas.
Os indícios a respeito do uso da língua tupi, por Domingos Jorge Velho são
atestados desde a carta escrita pelo bispo pernambucano, em 1697, no qual relata que:

Este homem é um dos maiores selvagens com que tenho topado:


quando se avistou comigo trouxe consigo língua, porque nem falar
sabe, nem se diferença do mais bárbaro Tapuya mais que em dizer que
é Cristão, e não obstante o haver se casado de pouco lhe assistem sete
Indias Concubinas. ( ENNES, 1938, p. 373)

A hipótese de que Domingos Jorge Velho falasse apenas o tupi, porém a um


problema para essa possibilidade, devido a existência de documentos com assinatura do
seu próprio cunho e de documentos cujo o texto tem sido atribuído ao bandeirante.
Como uma carta7 que redigiu para o rei D. Pedro II tratando das condições da expedição
dos Palmares e acerca da conveniência de se assentar os paulistas nas terras dos
Palmares. As fontes históricas nos revelam tanto a possibilidade de Domingos Jorge
Velho falar a língua tupi como também a língua portuguesa. Configurando informações
de grande valia para entender que português chegava no interior baiano, além de trazer
pistas do português falado pelos mamelucos.
Na seção a seguir, disserto sobre a formação dos mamelucos e sua ambiguidade
linguística, social e cultural. Entendendo o processo histórico da formação da língua
brasileira no período colonial para conhecer a diversidade linguística, os estratos sociais
e étnicos e a instrução social daquela época. E assim, compreender a importância desses
manuscritos descritos no quadro 1 para estudo da história e formação do português
brasileiro.

Os mamelucos no processo de colonização


No início do século XVI, chega ao Brasil Diogo Álvares, conhecido como
Caramuru8, um dos primeiros habitantes brancos do Brasil, aqui chegado,
provavelmente como náufrago. Diogo Álvares casou-se com a índia Paraguaçu, filha de
7
Local de depósito do documento: Arquivo Histórico Ultramarino/Conselho Ultramarino Pernambuco
(AHU_ACL_CU_015, Cx. 17\Doc. 1674)
um grande guerreiro e chefe tupinambá da Bahia, algumas fontes relatam que mais tarde
em uma viagem à França, Paraguaçu foi batizada pelo nome de Catarina. O convívio
com os indígenas possibilitou que o Caramuru aprendesse as línguas e costumes, do
qual tornou-se sujeito importante para às primeiras autoridades civis portuguesas, como
o governador geral, Tomé de Souza e os primeiros jesuítas, prestando diversas
informações preciosas sobre os índios.
Diogo Álvares, fundador de uma descendência biologicamente mestiça, soube
sobreviver e administrar as duas identidades em beneficio das culturas que representam,
apresentando os valores da civilização europeia e os ensinamentos dos cristianismos aos
habitantes da terra. Dessa união teve filhos, netos e bisnetos, etc. constituindo se não a
primeira, mas uma das primeiras famílias desenvolvidas a partir do processo de
miscigenação.
Os mamelucos9, sujeitos que resultou do encontro dessas duas culturas distintas,
carregaram a ambiguidade em seus traços físicos e culturais, dos quais não foram vistos
com bons olhos pelos jesuítas. O padre José de Anchieta considerava-os de “caráter
duvidoso”, além de rejeita-los devido a propagação no sertão e aldeamento de ideias
difamatórias contra à catequese, os jesuítas e padres. Essas ações resultaram na
desestruturação e no decréscimo populacional dos aldeamentos, deixando-os
despovoados e índios revoltados, suscitando guerras contra as tropas do Estado do
Brasil.
As ideias propagandas pelos mamelucos objetivava que os indígenas tivessem a
liberdade para a manutenção dos seus costumes gentílicos, enquanto os jesuítas através
da catequese descontruíam elementos culturais e sociais, a fim de tornar bons cristãos,
súditos ao rei e à igreja, como afirma Fabricio Santos:

A ênfase da missão passou a incidir mais sobre a mudança de


“costumes” do que sobre a conversão ou o aprendizado da doutrina.
Era necessário, para os jesuítas, que os índios abandonassem a
antropofagia, o nomadismo, a poligamia e outros aspectos
fundamentais de sua cultura para que pudessem ser considerados,
verdadeiramente, cristãos. (...) Os aldeamentos foram uma solução
pensada a partir dessa necessidade de controle sobre os povos
indígenas. Os índios aldeados eram proibidos de praticar antropofagia,
guerrear sem licença do governador e recorrer aos seus líderes

8
Segundo Cardoso (2011), Diogo Álvares foi nomeado como Caramuru, “homem de fogo” em linguagem
tupi-guarani, por sua habilidade com o seu mosquete, arma de fogo que trouxe do Velho Mundo.
9
O termo mameluco no Brasil foi usado desde o século XVI para designar os indivíduos mestiços que
possuíam ascendência indígena e portuguesa.
religiosos tradicionais, cujas atribuições foram sendo paulatinamente
incorporadas pelos próprios jesuítas. (SANTOS, 2014, p. 36-37).

Muitos aldeamentos foram despovoados, o que gerou descontentamento e


revolta por parte dos jesuítas. Segundo Cardoso (2015), “por volta de 1591, o padre
João Vicente, residente do aldeamento de Santo Antônio, compareceu à mesa do
visitador Heitor Furtado de Mendonça para denunciar alguns mamelucos”, (p.109). A
chegada do Tribunal do Santo Oficio nas terras do Brasil, tinha como interesse combater
os diversos desvios e heresias que pudesse ameaçar a fé católica.
Os mamelucos custeados pelos colonos usavam-se de artifícios para convencer
os índios a descer para as fazendas do senhor dos engenhos e em troca poderiam
continuar praticando os seus ritos e costumes, em vez de continuar no aldeamento e
abdicar de seus hábitos e da sua cultura. Essa prática fez com que o padre João Vicente
denunciasse muitos mamelucos ao processo Inquisitorial, no qual gerou muitas
denúncias, processos e confissões.
Esses relatos nos revelam as heresias que foram praticadas por esses indivíduos,
até mesmo pela qual maneira a Inquisição avaliou seus crimes e seus penitentes e como
lidou com as práticas gentílicas durante a colonização brasileira. Além de mostrar
formas de reelaboração e resistência construída pelos povos indígenas a partir da
exploração colonial e da catequização, nos quais conseguiram impor limites à
colonização cristã.
Os mamelucos foram indivíduos ambíguos e complexos, viveram entre as duas
culturas, portuguesa e indígena, no sertão andavam nus e sujeitos antropofagia, lutando
ao lado dos índios contras as tribos rivais e europeus. Enquanto no território colonizado,
tinha a fé católica no seu coração, confessando e benzendo como indivíduos
cristianizados, confessando para o visitador Heitor Furtado Mendonça, as suas práticas
heréticas.
Essa ambivalência mameluca, nos revelam como esses sujeitos carregavam em
si a complexidade dessas duas culturas insignes. Afinal, quem era os mamelucos? Ribas
(2011), responde essa questão com a seguinte afirmação:

Ora nascidos e criados em aldeias indígenas e depois passados às


povoações, ora nascidos e criados nas povoações e passados às
aldeias, e ainda alguns nascidos e criados nas povoações. O mameluco
era, pois, um ser duplo, meio índio, e também português pela metade:
ele era híbrido. Híbrido em seu corpo biológico. Híbrido em seu corpo
cultural. (RIBAS, 2011, p. 508).

Viveram entre dois mundos, alternados entre o território colonizado e o sertão,


ora nus e antropófagos, ora vestidos e armados para caçar índios. No território
colonizado viviam a fé católica e no sertão, cantavam, bailavam e tomavam seu cauim 10.
Os mamelucos era os mais aptos para tal tarefa, pois carregavam em si características
indígenas fenotípicas, além de conhecer línguas indígenas e formas de sobrevivência em
terras diversas. A atuação dos mamelucos foi indispensável no processo de colonização,
foram eles que adentraram nos sertões, tiveram contato com os diferentes grupos,
negociaram com alguns e confrontaram outros nas guerras de conquistas e
aprisionamento.
Esse deslocamento entre a vila e o sertão, o ir e vir dos mamelucos denunciava o
pertencimento aos dois mundos. A incoerência de suas atitudes acabava por revelar,
como era a fronteira incerta entre as culturas europeia e a ameríndia. Essa ambiguidade
entre o ser mameluco, bebedores do sangue de Cristo e do cauim, levaram muitos a
comparecerem à mesa do santo Oficio para confessar as suas culpas.
Outro aspecto relevante sobre os mamelucos é que muitos era batizados pelos
indígenas como é o caso de Domingos Fernandes Nobre 11, que se passou a chamar
Tomacaúna. Essa prática revelam o estabelecimento de alianças entre os mamelucos e
indígenas, além do sentimento de pertencimento sendo-lhes permitindo participar de
rituais e modo de vidas dos índios. Percebe-se a dualidade dos mamelucos, ao mesmo
tempo em que colaboravam para colonização também a limitava. Como salienta
Cardoso:

Em alguns contextos trocavam as armas por índios para os levarem


cativos às vilas e engenhos da Costa. Em outros momentos as doações
parecem ser propositalmente guiadas por um sentimento de inimizade
para com os brancos da sociedade colonial, provavelmente àqueles
que, de alguma forma, contrariavam os interesses de seus patrões, que,
muitas vezes, também eram seus pais, pois mesmo que estivessem
inseridos na dinâmica da colonização, com todas as suas contradições,
em algumas situações sua identidade indígena sobrepunha-se.
(CARDOSO, 2015, p. 159).

10
Bebida preparada e consumida pelos índios, feito à base de mandioca.
11
Mameluco nascido em Pernambuco. Confessou ao visitador que, entre os 18 e 36 anos, conviveu com
os índios completamente afastado das crenças católicas, vivendo como gentio. E que pecou com suas
afilhadas o “pecado da carne”. (Cardoso, 2011, p. 161).
Na documentação dos processos inquisitoriais há indícios de que nem só no
sertão os mamelucos mantiveram práticas indígenas, mas também nos engenhos e
fazendas, o mameluco Álvaro Rodrigues12, senhor de engenho e fazendas foi
denunciado por manter hábitos indígenas em suas fazendas e também permitir os índios
conservarem ritos e costumes, tais como ter mais de uma mulher.
Os processos inquisitoriais marcam essa dualidade dos mamelucos, no sertão se
comportam como silvícolas e guerreiros incapazes de demonstrarem seu temor contra
tribo, como é o caso do mameluco Tamacaúna. Em outras ocasiões, assumia como
feiticeiros e derrubava a valentia de seus opositores, enquanto na vila admitia seu lado
europeu e afirmava aos inquisidores que nunca deixou a fé e ter arrependido da vida
errante que levou no sertão.
Essa ambiguidade que os mamelucos carregavam em si, desde sua origem
revelam características importantes da função social que esses sujeitos tiveram na
formação da língua brasileira. Pois, assim como eles viviam dois mundos, vila e sertão,
muitos também falavam as duas línguas, portuguesa e indígena. Como é o caso de
Domingos Jorge Velho, que fontes históricas revelam que o mameluco falava o tupi e
documentos como a carta descrita no quadro 1, mostra que o sertanista também falava e
escrevia a língua portuguesa.
São essas características que mostram a importância da edição 13 desses
manuscritos trazidos no quadro 1, para tentar entender que português é esse que os
mamelucos falavam e que chegava no sertão. Os aspectos sócio-históricos tão são
primordiais para compreendemos o processo de formação do português brasileiro. A
seguir, discorro quem são os redatores desses manuscritos e o assunto abordado nas
cartas.

Domingos Jorge Velhos

No século XVII, os bandeirantes 14 faziam expedições pelo sertão em busca de


territórios não colonizados pelos portugueses. Adentravam ao sertão para descer índios
para os engenhos, capturar índios e usar em suas próprias fazendas ou vende-los como

12
Processo nº 16897.
13
Os documentos estão sendo editados de acordo com as Normas de Transcrição de documentos Escritos
e Impressos do PHPB (Para História do Português Brasileiro). E o tipo de edição é semidiplomática, pois
preservas as características linguísticas, deixando o texto o mais fiel possível.
14
Homens que participavam das bandeiras e entradas - eram principalmente paulistas, que, entre os
séculos XVI e XVII atuaram na captura de escravos fugitivos, destruição de quilombos, aprisionamento
de indígenas, mapeamento de territórios e na procura de pedras e metais preciosos. (Franco, 1989)
escravos. Assim fez, o mameluco paulista, Domingos Jorge Velho, ficando conhecido
como o fervoroso caçador de índio e também foi responsável pela captura de Zumbi de
Palmares. Através de acordo, firmou termos e condições com o governador de
Pernambuco, João da Cunha Sotto Mayor, para conquistar, destruir e extinguir
totalmente os negros dos Palmares. Foram firmados 16 capítulos 15, estipulando
condições e remunerações futuras para o mameluco Jorge Velho. Segue alguns deles:

1) Eram concedidos a Domingos Jorge Velho dois quintais de pólvora


e chumbo para realizar a primeira entrada. As munições seriam
colocadas no rio São Francisco à custa da Fazenda Real. Jorge Velho
não poderia mais pedir, futuramente, munições ao Governador, nem
ele teria obrigação de dá-la. 2) O governador mandava 600 alqueires
de farinha, entre milho e feijão, para os moradores se acomodarem
melhor. Além disso, seriam enviados 200 alqueires de dois em dois
meses a postos na vila das Alagoas, que deveriam ser enviados pelos
índios de Domingos Jorge Velho. 3) O governador deveria dar mais
mil cruzados da Fazenda real, envolvendo, nessa quantia, armas de
fogo e outros apetrechos para a campanha. (ENNES, p. 238).

Após firmar o compromisso, o mameluco partiu satisfeito, providos de munições


que o governador havia fornecido. O governador de Pernambuco escreve para o
Conselho Ultramarino relatando o encontro com os enviados dos paulistas. Porém, o
mesmo não abordou os capítulos firmados de forma detalhada com Domingos Jorge
Velho. Após a bem-sucedida guerra que invadiu o mocambo do Macaco e matou
Zumbi, entre 1694 e 1695, iniciou-se uma outra batalha, dessa vez escrita, entre o
governador de Pernambuco, Caetano Melo e Castro, e o mameluco Domingos Jorge
Velho.
A razão da batalha foi a invalidação dos capítulos firmados entre o governador
Sotto Mayor, no qual Caetano Melo e Castro alegava que os paulistas não satisfizeram
suas obrigações. Mas o esforço do governador pernambucano fracassou, Domingos
Jorge Velho, em carta16 ao Conselho Ultramarino datada de 15 julho de 1694,
“conseguiu antecipar a movimentação do governador, impondo condições para
continuar na guerra e concluir a destruição dos Palmares” (Dario Filho, 2019, p. 307).
Reconhecendo o papel fundamental que os sertanistas paulistas desenvolviam naquela
guerra, o D. Pedro II e o Procurador da Fazenda asseguraram a validade dos capítulos
firmados, fazendo poucas alterações.

15
Os capítulos se encontram em: ENNES, Ernesto. As Guerras nos Palmares. Documento Nº 34, p. 238-
241.
16
Essa carta está descrita no quadro 1 e em fase de edição pela autora do texto.
A carta de Domingos Jorge Velho escrita de Outeiro de Barriga, em 15 de julho
de 1964, é uma importante fonte para tentar entender que português chegava no interior,
levando em consideração seu contato direto com as duas línguas, portuguesa e tupi.
Além, do contraste entre os mamelucos Lourenço de Brito Correa e Lourenço de Brito
de Figueredo escolarizados e Domingos Jorge Velho que não há notícia sobre sua
escolarização. De acordo com registros históricos, não dominava o português, era
falante de uma língua “tupi”. Acredita-se que larga convivência com os índios, embora
pautada pela violência e pela escravidão, contribui para o uso corriqueiro da língua geral
e muitos hábitos da população indígena.

Lourenço de Brito Correa

Lourenço de Brito Correa, nasceu aproximadamente em 1590, em Salvador,


proprietário de terras e escravos da Bahia que, por desavenças políticas, cruzou o
Atlântico algumas vezes e viu a cidade de Lisboa pelas grades da prisão do Limoeiro
(SANTANA, 2012). Lourenço morreu em Lisboa, no ano de 1665. Teve acesso à
educação e a ofícios administrativos destinados à elite colonial, por ser bisneto do
caramuru, Diogo Álvares Correia. Governou a Bahia temporariamente em 1641, e por
questões políticas brigou com o seu contemporâneo Bernardo Vieira Ravasco, motivo
que o levou preso.
Lourenço de Brito foi uns dos combatentes mais aguerridos na expulsão dos
holandeses da cidade de Salvador. As experiências militares e ao clima tropical foram
indispensáveis para aconselhar o seu superior para enfrentamentos dos batavos em
Pernambuco. Seus escritos são direcionados ao rei, para dar informações ou fazer
queixas, principalmente de Bernardo Vieira Ravasco. Como a carta descrita no quadro
1, datada do dia 26 de setembro de 1662, sobre os altos salários de Bernardo Vieira
Ravasco. Os manuscritos de Lourenço de Brito Correa são fontes importantes para
perceber a relação entre aquisição de língua imperfeita e a norma de escolarização do
qual o mameluco teve.

Lourenço de Brito Figueiredo

Nasceu na primeira metade do século XVII, filho de Lourenço de Brito Correa e


da neta do Caramuru, Maria de Figueiredo Mascarenhas, teve uma carreira acadêmica e
política parecida com ao do seu pai. Atuando contra à invasão holandesa e recebeu
título de fidalgo da Casa Real e cavaleiro da ordem.
Lourenço de Brito de Figueredo foi preso, em Lisboa, junto com seu pai, o qual
acabou falecendo ao lado do seu filho, sem conhecer os reais motivos de ter sido
afastado dos seus parentes e propriedades. Lourenço de Brito Figueiredo retornou ao
Brasil após a morte do pai e foi recompensado pelas agruras de ter sido preso e
embarcado por motivos políticos, com o advento de D. Pedro I ele recebeu a Provedoria
Mor da Fazenda Real do Brasil por herança. Segundo Santana,
prender e embarcar os mais problemáticos para uma cadeia do outro
lado do Atlântico e executar manobras para que a tramitação do
processo de julgamento dos seus desafetos fosse ainda mais demorada
foi uma das muitas práticas que o segundo vice-rei do Brasil lançou
mão para garantir a sua governabilidade. A sua tarefa como vice-rei
não poderia mais uma vez ser ameaçada por uma suspeita de que os
fidalgos da Bahia, liderados por um antigo agitador, armavam uma
conjuração para retirá-lo do seu posto. (Santana, 2012, p. 78).

O Conde Óbidos desconfiava que Lourenço de Brito Correa e seu filho estava
reunindo com alguns militares descontentes com o governo para retirá-lo contra o seu
posto. Porém, esses escritos nunca foram vistos. As cartas de Lourenço de Brito de
Figueredo mencionadas no quadro 1, são relacionados aos seus ofícios e à invasão
holandesa. Cartas avisando cargos que estão vagos, sobre pagamentos aos ordenados,
rematações de dízimo e dentre outras. Sendo manuscritos importantes para estudar a
história da Bahia, do Brasil e o processo de aquisição de língua imperfeita.

Considerações Finais

Sabendo da importância de contextualização sócio-histórica dessa população,


possibilitando aclarar sobre o perfil social dos escreventes, os fatores propícios a
difusão da escrita, como também questões ligadas ao contato linguístico. Os
manuscritos descritos no quadro 1 são documentos que estão em fase de edição
semidiplomática e dos quais possibilitará garimpar aspectos que podem contribuir para
entendimento da formação sócio-histórica do português brasileiro.
Os redatores Lourenço de Brito Correa e Lourenço de Brito de Figueredo são
descentes do Caramuru, escolarizados, viveram no mundo e na cultura dos portugueses,
enquanto Domingos Jorge Velho, um bandeirante paulista que vivem entre dois
mundos, sertão e vila. Viveu mais no sertão do que na vila, aprendeu a língua tupi e de
acordo com alguns documentos também sabia falar e escrever em português. São
documentos raros e carregados de complexidades dos quais tornarão uma importante
fonte de estudo sobre a escrita mameluca e também aspectos relacionados a cultura
desses indivíduos.
Além desses manuscritos revelarem o papel exercido pelos mamelucos no
período colonial, sendo obrigados a respeitar as condutas cristãos, porém as mesmas
autoridades que controlavam os mamelucos exigiam uma conduta diferente da vivida na
vila. Nas terras colonizadas, deveriam ser cristãos exemplares, enquanto estava no
sertão exerciam conduta ambígua, ora se aproximava dos gentios para ganharem
confiança, ora guerreava contra os índios.

Referências

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