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JULES MICHELET

tradução: Luiz Fernando Serra Moura Correia

HISTÓRIA
DA FRANÇA

TOMO III - Livros V e VI

(anos 1270 a 1380)

1ª edição
Rio de Janeiro - 2014
Luiz Fernando Serra Moura Correia
HISTÓRIA DA FRANÇA
TOMO TERCEIRO - LIVROS V e VI
(Paris – 1837)

Por Monsieur Michelet,


Professor Suplente à Faculdade de Letras, Professor
à Escola Normal, Chefe da Seção Histórica
dos Arquivos do Reino
*
Tradução: Luiz Fernando Serra Moura Correia
(Rio de Janeiro – 2014)

MICHELET, Jules (1798-1874)


Editor: Luiz Fernando Serra Moura Correia (Prefixo editorial 915812)
Ilustradores: Rodolfo Guilherme P. Moura Correia e Maria Fernanda P. Moura Correia
Capa: Eduardo III da Inglaterra presta homenagem a Filipe VI em 1329. Iluminura extraída das Grandes Crônicas de Jean de Froissart.

Assunto: História da Europa (código ISBN 940)


Idioma: português
Suporte: e-book
Formato: azw3
1ª edição – 2014 – Rio de Janeiro
ISBN 978-85-915812-4-5

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução, transmissão de partes ou da totalidade deste livro, armazenamento, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito do editor. Direitos
exclusivos desta edição reservados por Luiz Fernando Serra M oura Correia. Permitida a disponibilização para venda pela Amazon em formato digital, consoante termos e condições do KDP.
NOTA DO TRADUTOR - EDITOR

Sobre este volume, escreveu o Autor, em seu prefácio no Tomo I:

“A Idade Moderna começa com Felipe, o Belo, com o rebaixamento do papado, com o tapa em Bonifácio VIII”.

Este Tomo III se ocupará, dentre outros temas, do importante reinado de Filipe o Belo, a concentração dos poderes na “nova divindade” que é a realeza, a luta
contra o Papado e a consequente dissolução da Ordem do Templo, o rebaixamento da nobreza feudal e a paulatina conquista de liberdades pelas cidades que nutrem e
fazem crescer a burguesia.

E entenderemos porque Michelet afirmou:

“A tirania, na Idade Média, começou pela liberdade. Tudo começa por ela”.

Este Tomo também vai se ocupar dos primeiros anos da Guerra dos Cem Anos.

Como é de domínio daqueles que puderam ler os dois Tomos precedentes, mantive a sistemática de inserção de Notas do Tradutor (NT), as ilustrações feitas pelos
meus filhos Rodolfo e Maria Fernanda, o emprego das segundas pessoas do singular e plural. Como antes, para a vasta maioria das passagens em latim e grego, fui buscar
sua tradução em fontes não originais, isto é, em traduções feitas majoritariamente em inglês[1], francês ou português.

Uma novidade, porém: ao contrário dos Tomos I e II, não removi os hiperlinks das referências às fontes de informação que citei.

Agradeço o interesse da Profª Drª Amélia Polónia, Diretora do Departamento de História e de Estudos Políticos e Internacionais (DHEPI) da Universidade do
Porto, Portugal, que buscou me auxiliar em uma ou outra dúvida quanto à existência de institutos jurídicos no Direito Medieval português.

Menção legal: a obra original em francês encontra-se em domínio público, tanto sob a legislação da República Francesa (Código de Propriedade Intelectual,
artigo L. 123-1: L'auteur jouit, sa vie durant, du droit exclusif d'exploiter son œuvre sous quelque forme que ce soit et d'en tirer un profit pécuniaire. Au décès
de l'auteur, ce droit persiste au bénéfice de ses ayants droit pendant l'année civile en cours et les soixante-dix années qui suivent ), quanto a da República
Federativa do Brasil (art. 41, lei nº 9.610/98: Os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subseqüente ao de
seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil), sendo considerada, portanto, obra nova (artigos 7º, inciso XI, 14 e 41 da lei nº 9.610/98).

Rio de Janeiro, verão-outono de 2014.

Luiz Fernando Serra Moura Correia


Tradutor e Editor
(editor_luizfernando@hotmail.com)
TÁBUA DE MATÉRIAS
LIVRO V
Capítulo I – Vésperas Sicilianas

1270-1282. Filipe o Ousado


Carlos d’Anjou , chefe da Casa da França.
Esforços dos Papas para escapar ao jugo francês
João de Prócida.
Ele passa da Espanha à Sicília e à Constantinopla.
1282. Massacre dos Franceses na Sicília
D. Pedro, rei de Aragão, socorre os Sicilianos.
1285. Morte de Carlos d’Anjou.
Filipe o Ousado morre na Espanha
1299. A Sicília fica para o rei Frederico, Nápoles para os descendentes de Carlos d’Anjou.

Capítulo II – Filipe o Belo. Bonifácio VIII. 1285 a 1304.

1285. FILIPE O BELO.


Administração.
1288-1291. Parlamento
Centralização monárquica. Juristas.
Fiscalidade.
1293-1300. O dinheiro e a astúcia.
Filipe chamado pelos Flamengos.
O conde de Flandres e sua filha detidos em Paris.
Expulsão dos Judeus, alteração das moedas; maltôte.
1295-1304. Disputas entre Bonifácio VIII e Filipe o Belo.
1300. O Jubileu
O Papa favorece os inimigos da França; represálias de Filipe.
Ruptura a respeito do Languedoc.
1301. Filipe manda raptar o bispo de Pamiers.
1302. Bula fictícia; queimada em Paris.
Filipe apoiado pelos Estados-Gerais.
Revolta dos Flamengos.
Derrota de Courtrai.
1303. Sequência da luta contra o Papa.
Nogaret em Anagni.
Retorno do Papa à Roma; sua morte.
Bento XI morre subitamente.
1304. Vitórias de Zierikzee e de Mons-en-Puelle.
Miséria do povo.

Capítulo III – O ouro. O Fisco. Os Templários.

O Ouro.
O Fisco.
A Alquimia.
A Feitiçaria.
O Judeu.
1305. Bertrand de Gott (Clemente V).
1306. Perseguições contra Bonifácio VIII.
O Templo.
Poderio, privilégios do Templo.
Cerimônias.
Acusações dirigidas contra essa Ordem.
Riqueza dos Templários.
Eles fazem a guerra aos cristãos.
Razões da Casa da França.
Filipe o Belo arruinado ataca os Templários.
Os monges e os nobres os abandonam.
Eles se recusam a se reunir aos Hospitalários.
Os chefes da Ordem presos em Paris.
1307. Instrução do processo.
Capítulo IV – (Sequência) Destruição da Ordem do Templo. 1307 a 1314.

1307. Oposição do Papa


A instrução continua.
1307. Confissões obtidas sob torturas.
1308. Adesão dos Estados do Reino da França às perseguições.
Dificuldades suscitadas pelo Papa.
O Papa se refugia em Avignon.
Concessões mútuas.
1309. Comissão Pontifícia. Fraqueza do Grão-Mestre.
1310. Perseguições contra a memória de Bonifácio.
Defesa dos Templários impedida.
Protesto dos Templários.
Interesse que eles provocam.
Consulta do Papa em favor deles.
Concílio provincial ocorrido em Paris.
Suplício de cinquenta e quatro Templários.
1311. A Ordem do Templo suprimida em toda a cristandade.
Compromissos entre o Papa e o Rei.
1312. Concílio de Viena.
Condenação dos místicos beguinos e franciscanos.
Abolição do Templo.
Fim do processo de Bonifácio VIII.
1314. Execução dos chefes da Ordem.
Causas da queda do Templo.

Capítulo V – Sequência do reinado de Filipe o Belo. Seus três filhos. Processos. Instituições. 1314 a 1328.

O diabo.
Processos atrozes.
1314. Morte de Filipe o Belo.
Atividade e educação de Filipe o Belo.
Ele lida com a Universidade.
Instituições.
Ordenações contraditórias.
Hipocrisia desse governo.
Ataques contra a nobreza.
Confederação da nobreza do norte e do leste.
Luís X; reação feudal.
Luta dos barões e dos juristas.
1315. Novas leis sobre as moedas.
Ordenação para a libertação dos servos.
1316- FILIPE O LONGO
Aplicação da Lei Sálica.
As cidades armam-se.
Tentativa de reforma dos pesos e das medidas.
Regramentos de finanças.
1316-1322. O Parlamento se constitui.
A Monarquia se constitui.
1320. Pastores.
Os Judeus e os leprosos.
1322-1328 - CARLOS IV, o Belo.
Eduardo II, rei da Inglaterra, destronado por sua mulher, Isabela da França.
1328. Morte de Carlos IV.

LIVRO VI

Capítulo I – A Inglaterra. Filipe de Valois. 1328 a 1349.

1328. Coroação de FILIPE DE VALOIS.


A Inglaterra sob Eduardo III.
Flandres, Inglaterra: espírito mercantil.
Rotas do comércio depois das Cruzadas.
Comércio da Inglaterra.
Caráter guerreiro e mercantil do século XIV.
Caráter oposto da França.
Primeiros anos do reino de FILIPE VI.
Guerra de Flandres. Batalha de Cassel.
1329. Processo de Roberto do Artois.
1332. Roberto foge para Flandres; depois, para a Inglaterra.
1333. Perseguições contra sua família.
1336. Ordenações sobre os impostos e sobre as mercadorias.
Relação de Filipe VI com o Papa.
Descontentamento geral.
Eduardo III põe de pé sua autoridade.
Guerra indireta entre a França e a Inglaterra.
Emigração dos operários flamengos para a Inglaterra.
1337. Revolta dos Gantenses. Jacquemart Artevelde.
Ordens e preparativos de Eduardo III.
Exército feudal e mercenário de Filipe VI.
1338. Os Ingleses em Flandres.
Eduardo III, vigário imperial.
1339. Os Ingleses na França.
Eduardo III, rei da França.
1340. Batalha da Eclusa.
A guerra de Flandres sem resultados.
1341. Guerra da Bretanha. Blois e Montfort.
1342. Filipe VI apoia Carlos de Blois; Eduardo III apoia João de Montfort.
1345. Eduardo III perde Montfort e Artevelde de uma só vez.
1346. Eduardo III ataca a Normandia.
Os Ingleses queimam Saint-Germain, Saint-Cloud, Boulogne.
Filipe VI os persegue.
Batalha de Crécy.
Cerco de Calais.
Persistência de Eduardo III; seus sucessos na Escócia e na Bretanha.
Tentativas de Filipe para levantar o cerco de Calais.
1347. Tomada de Calais; dedicação de seis burgueses.
Calais povoada por Ingleses.
Os mercenários, os infantes substituem as tropas feudais.
Humilhação do Papa, do Imperador, do rei e da nobreza.
Abatimento moral; espera pelo fim do mundo; mortalidade.
1348. A Peste negra.
Mistiscimo da Alemanha; os Flagelantes.
Boccaccio; prólogo do Decameron.
Sequência da peste.
1349-1350. O rei torna a se casar; ele adquire Montpellier e o Delfinado.
Bodas e festas.
1350. Morte de Filipe VI.

Capítulo II – João. Batalha de Poitiers. 1350 a 1356.

Laura, Petrarca.
O século XIV obstina-se na sua fidelidade ao passado.
1350. Coroação de JOÃO.
Criação da Ordem da Estrela.
Carlos da Espanha, Carlos de Navarra.
1350-1359. Rápidas variações das moedas.
Estados-Gerais sob Filipe de Valois e sob João.
1355. Gabela votada pelos Estados. Resistência da Normandia e do conde Harcourt.
O conde de Harcourt é decapitado.
1356. O Príncipe de Gales devasta o sul.
Batalha de Poitiers.
O rei prisioneiro.

Capítulo III – (Sequência) Estados-Gerais. Paris. Jaqueria. 1356 a 1364.

1356. O delfim Carlos. O preboste dos comercerciantes, Étienne Marcel.


Paris.
1357. Estados-Gerais.
Estados-Provinciais.
Roberto Le Coq e Étienne Marcel.
Desastres da França.
Carlos o Mau em Paris.
1358. Novos Estados; o delfim regente do Reino.
Revolta de Paris.
Assassinato dos marechais de Champagne e da Normandia.
Reino de Marcel.
A Champagne, o Vermandense pelo delfim.
Estados da Língua d'Oil em Compiègne.
Sofrimentos do camponês.
Jaqueria.
Carlos o Mau, capitão de Paris.
Marcel se apoia em Carlos o Mau e tenta entregar-lhe Paris.
Marcel assassinado.
1359. O delfim entra em Paris.
Negociações com os Ingleses.
Suas propostas rejeitadas pelos Estados.
Eduardo III na França.
Os Ingleses às portas de Paris.
1360. Tratado de Bretigny.
Desolação das províncias cedidas.
Resgate do rei.
O rei em liberdade; suas primeiras ordens.
Ordenação em favor dos Judeus.
1360-1363. Miséria, devastação, mortalidade.
Os Tard-Venus.
1362. João reúne a Borgonha e a Champagne ao domínio da Coroa.
1363. Ele vai pregar a cruzada na Inglaterra.
1364. Morte do rei João em Londres.

Capítulo IV – Carlos V. 1364 a 1380. Expulsão dos Ingleses.

1364. CARLOS V, o Sábio.


O Inglês, o Navarrense, as Companhias.
Bertrand Duguesclin.
Batalha de Cocherel.
1365. Batalha de Auray; morte de Carlos de Blois.
Ordenações de Carlos V.
Guerra de Don Enrique de Transtâmara contra seu irmão Don Pedro o Cruel.
1366. Duguesclin à testa das Companhias.
O Papa extorquido em Avignon.
Don Pedro deixa a Espanha; é restabelecido pelos Ingleses.
1367. Batalha de Najara; Duguesclin prisioneiro.
As Companhias, mal pagas, lançam-se sobre a França.
Duguesclin recupera a liberdade.
1368. O Midi descontente com os Ingleses.
1369. Defecções.
O príncipe de Gales é citado pela Corte dos Pares.
Duguesclin recoloca Don Enrique sobre o trono de Castela; Don Pedro derrotado na batalha de Montiel.
Carlos V confisca a Aquitânia.
1370. Os Ingleses cruzam a França; morte de João Chandos.
Carlos V se reconcilia com o rei de Navarra e o rei da Escócia.
O príncipe de Gales toma Limoges de assalto.
Duguesclin condestável.
O duque da Bretanha toma o partido dos Ingleses; ele é expulso pelos Bretões.
1370-1373. O rei de Castela envia uma frota para Carlos V.
Tomada de La Rochelle.
Os Ingleses derrotados em todos os lugares.
O duque de Lancaster cruza de novo a França.
1374. Os Gascões se entregam à França.
1376. A Inglaterra deseja a paz; o bom parlamento.
Morte do príncipe de Gales.
1377. Morte de Eduardo III; Alice Perrers.
Carlos V casa seu irmão, o duque da Borgonha, com a herdeira de Flandres.
1378. O rei de Navarra trata com os Ingleses; Carlos V o previne.
A França reerguida na opinião da Europa.
Monumentos de Carlos V. Bastilha, Hôtel Saint-Paul.
Vida privada de Carlos V.
Astrólogos.
Sabedoria de Carlos V; sua previdência.
Mau estado das finanças do rei; poderio dos Judeus.
Riqueza, jurisdição do clero.
Regalias, anattum, reservas.
Corrupção da Igreja.
Grande cisma. Urbano VI, Clemente VII.
Carlos V não consegue fazer seu Papa ser reconhecido pela cristandade.
1379. Revoltas do Languedoc.
Revoltas de Flandres.
Revoltas da Bretanha.
1380. Morte de Duguesclin.
Morte de Carlos V.
Seu governo
Caráter prosaico do século XIV.
Froissart. João, o bom pastor etc.
Situação difícil e contraditória na qual se encontra a cristandande. Loucura de Carlos VI e da maioria dos príncipes desta época.
A era nacional da França é o século XIV. Os Estados-Gerais, o Parlamento, todas as nossas grandes instituições,
começam ou se regularizam. A burguesia aparece na revolução de Marcel, o camponês na Jaqueria, a própria França na guerra
dos Ingleses.

Esta locução: Um bom Francês, data do décimo-quarto século.

Até aqui, a França era menos França que cristandade. Dominada, assim como todos os outros estados, pela feudalidade
e pela Igreja, ela permanecia obscura e como que perdida nessas grandes sombras... O dia, vindo pouco a pouco, ela própria
começa a se entrever.

Mal saída dessa poética noite da Idade Média, ela já é aquilo que vedes: povo, prosa, espírito crítico, anti-simbólica.

Aos padres e aos cavaleiros sucedem-se os juristas; depois da fé, a lei.

O neto de São Luís deita a mão sobre o Papa e destrói o Templo. A cavalaria, esta outra religião, morre em Courtrai,
em Crécy, em Poitiers.

A crônica sucede à epopéia. Uma literatura se forma, já moderna e prosaica, mas verdadeiramente francesa: sem
símbolos, poucas imagens; não é senão graça e movimento.

Nosso velho Direito possuía alguns símbolos, algumas fórmulas poéticas. Esta poesia não comparece impunemente ao
tribunal dos juristas. O Parlamento, este grande prosador, a traduz, a interpreta e a mata.

De resto, o Direito francês fora, em todo tempo, menos dominado pelo simbolismo que aquele de qualquer outro povo.
Esta verdade, por ser negativa na forma, nem por isso é menos fecunda. Não temos nenhum pesar ao longo do caminho pelo
qual a isso chegamos. Para apreciar o gênio austero e a maturidade precoce de nosso Direito, bastou-nos colocar à sua face o
direito poético das nações diversas, opor a França ao mundo.

Desta vez, então, o simbólico do Direito. – Nele procuraremos o movimento, a dialética, enquanto nosso drama
nacional será melhor atado. Aguardemos o século XVI.
LIVRO V
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Capítulo I

Vésperas Sicilianas
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O filho de São Luís, Filipe o Ousado, voltando desta triste cruzada de Túnis, depositou cinco ataúdes nos jazigos de
Saint-Denis[2]. Fraco, ele próprio moribundo, via-se herdeiro de quase toda sua família. Sem falar do Valois, que lhe vinha
pela morte de seu irmão João Tristão, seu tio Alphonse legava-lhe todo um reino no sul da França (Poitou, Auvérnia,
Toulouse, Rouergue, Albigense, Quercy, Agenês, Condado Venaissino). Enfim, a morte do conde de Champagne, rei de
Navarra, que não tinha senão uma filha, colocou esta rica herdeira entre as mãos de Filipe que a fez desposar seu filho.

Através de Toulouse e Navarra, através do Venaissino, este grande poder olhava na direção do sul, na direção da
Itália e da Espanha. Mas, todo poderoso que fosse, o filho de São Luís não era o verdadeiro chefe da Casa da França. O
cabeça desta Casa era o irmão de São Luís, Carlos d’Anjou. A história da França, nesta época, é aquela do rei de Nápoles e
da Sicília. A de seu sobrinho, Filipe III (o Ousado), não passa de uma dependência.

Carlos usara e abusara de uma fortuna inaudita. Caçula (cadete, cadet) da França, ele se fizera conde da Provença,
rei de Nápoles, da Sicília e de Jerusalém; mais que rei, senhor e dominador dos Papas. Podia ser-lhe dirigida a palavra que
foi dita ao famoso Ugolino. “Que me falta?”, perguntava o tirano de Pisa. “Nada além da cólera de Deus”[3].

Vimos como ele enganara a piedosa simploriedade de seu irmão para desviar a cruzada de seu objetivo, a fim de
colocar um pé na África e tornar Túnis vassala. Ele foi o primeiro a retornar desta expedição realizada por sua sugestão e em
seu favor; e conseguiu voltar a tempo para lucrar com a tempestade que destruiu os navios dos cruzados, o que lhe permitiu
recolher os destroços sobre os rochedos da Calábria, as armas, as vestes, as provisões. Ele friamente exerceu contra seus
companheiros, seus irmãos da cruzada, o direito de destroço (NT: vide Tomo II, Livro III, sobre a Bretanha), que dava ao
senhor dos baixios tudo aquilo que o mar aí lançasse.

Foi assim que ele recolhera o grande naufrágio do Império e da Igreja. Durante quase três anos, ele agiu, na Itália,
como se fosse o Papa, não admitindo que um outro fosse nomeado após Clemente IV que, por vinte mil moedas de ouro de
renda que os Franceses lhe prometeram, entregara não somente as Duas Sicílias, mas a Itália inteira. Carlos fizera com que o
nomeassem senador de Roma e vigário imperial na Toscana. Piacenza (Placência), Cremona, Parma, Modena, Ferrara, Reggio
e mesmo, posteriormente, Milão, o haviam aceito por senhor, assim como diversas cidades e vilas do Piemonte e da Romanha
(Romagna). Toda a Toscana o escolhera como pacificador. “Matai-os todos”, dizia esse pacificador aos Guelfos de Florença,
quando perguntavam-lhe o que deveria ser feito dos Gibelinos prisioneiros[4].

Mas a Itália era por demais pequena. Ele não se encontrava satisfeito. De Siracusa, ele mirava a África e de Otranto,
o império grego. Já ele concedera a mão de sua filha ao pretendente latino de Constantinopla, ao jovem Filipe, imperador sem
império.

Os Papas tinham motivos para se arrependerem de sua própria vitória sobre a Casa da Suábia. O vingador deles, seu
caríssimo filho, assentara-se entre eles e sobre eles. Tratava-se, daí para frente, de saber como poderiam escapar desta
terrível amizade. Eles sentiam, com pavor, a força irresistível, a atração maligna que a França exercia sobre si. Eles
desejavam, um pouco tarde, despertar os laços de afeição da Itália e reuni-la a si. Gregório X tentava acalmar as facções que
seus antecessores haviam instigado tão cuidadosamente; ele pedia que se suprimisse os nomes de Guelfos e de Gibelinos. Os
Papas sempre haviam combatido os imperadores da Alemanha e de Constantinopla; Gregório declarou-se amigo dos dois
impérios: ele proclamou a reconciliação da igreja grega e conseguiu dar fim ao grande interregno da Alemanha, mandando, ao
menos, nomear um imperador tal e qual, um simples cavaleiro cuja magra e calva figura com cotovelos proeminentes
deixavam os príncipes-eleitores mais seguros contra esse título de Imperador, outrora tão formidável. Esse pobre imperador
foi, portanto, Rodolfo de Habsburgo; sua Casa foi a Casa da Áustria, fundada pelos Papas contra a Casa da França.

O plano de Gregório X era o de conduzir, ele próprio, a Europa à cruzada, acompanhado de seu novo Imperador, de
reerguer, desta forma, o Império e o Papado. Nicolau III, romano e da Casa de Orsini, tinha um outro projeto: ele desejava
fundar, em favor dos seus, um reino central da Itália. Ele colheu o momento quando Rodolfo vinha de obter sua grande vitória
sobre o rei da Boêmia fazendo com que Carlos se sentisse intimidado por Rodolfo. O rei de Nápoles, que não sonhava senão
com Constantinopla, sacrificou o título de senador de Roma e de vigário imperial e, neste ínterim, Nicolau assinava
secretamente com Aragão e os Gregos uma liga para derrubá-lo.

Conjuração de fora, conjuração de dentro. Os Italianos acreditavam-se mestres nesse gênero. Eles sempre
conspiraram, raramente obtiveram sucesso; mas, para esse povo artista, uma tal empresa era uma obra de arte com a qual se
deleitavam, um drama sem ficção, uma tragédia real. Eles aí procuravam o efeito do drama. Eram necessários numerosos
espectadores, uma ocasião solene, uma grande festa, por exemplo; o teatro sempre fora um templo, o momento, aquele da
Consagração (da hóstia)[5].

A conjuração, da qual falaremos, foi algo bem diferente daquela dos Pazzi, dos Olgiati. Não se tratava de desferir
uma punhalada e de se fazer matar matando um homem, o que, ademais, jamais serve para alguma coisa. Era necessário
revolver o mundo e a Sicília, conspirar e negociar, encorajar uma pela outra, a liga e a insurreição; era mister sublevar um
povo e contê-lo, organizar toda uma guerra sem que parecesse que se a estivesse organizando. Esta empresa, tão difícil,
também era, de todas, a mais justa: tratava-se de expulsar o estrangeiro.

A cabeça dura que concebeu esta coisa grandiosa e a conduziu a seu objetivo, uma cabeça friamente ardorosa,
duramente teimosa e astuciosa, tal como se encontra no Midi da França, foi a de um Calabrês, um médico[6]. Este médico era
um senhor da corte de Frederico II e senhor da ilha de Procida e, como médico, ele fora amigo e confidente de Frederico e de
Manfredo. Para agradar a esses livres pensadores do século XIII, era necessário ser médico, árabe ou judeu. Ia-se a eles pela
escola de Salerno melhor do que pela Igreja. Verdadeiramente, essa escola ensinava a seus adeptos algo além das inocentes
prescrições que ela nos legou nos seus versos leoninos[7].

Após a ruína de Manfredo, Procida se refugiou na Espanha. Examinemos qual era a situação dos diversos reinos
espanhóis, o que deles se poderia esperar contra a Casa da França.

Inicialmente, a Navarra, o pequeno e venerável berço da Espanha cristã, estava sob a mão de Filipe III. O último rei
nacional chamara os Mouros contra os Castelhanos e, depois, os Franceses. Seu sobrinho, Henrique, conde de Champagne,
não possuindo senão uma filha, recomendou, quando nos estertores da morte, esta criança ao rei da França que, como
dissemos, a deu a seu filho. Filipe III, que vinha de herdar Toulouse, encontrava-se bem próximo da Espanha. Ele não tinha,
aparentemente, senão que descer dos portos dos Pirineus[8], na sua cidade de Pamplona, e tomar o caminho de Burgos.

Mas a experiência provara que não se toma a Espanha assim. Ela guarda mal a sua porta; porém, pior para aquele que
entra. O velho rei de Castela, Alfonso X, sogro e cunhado do rei da França, desejou em vão deixar seu reino aos filhos de seu
primogênito que, pelo lado materno, eram descendentes de São Luís. Alfonso não possuía boa reputação entre seu povo, nem
como Espanhol, nem como cristão. Grande sábio, entregue às más ciências da alquimia e da astrologia, ele sempre se trancava
com seus judeus[9] para falsificar moeda (Ferreras, anno 1281, t. IV, p. 323 da trad.) ou leis, de modo a alterar, com uma
pitada romana, o direito gótico[10]. Ele não amava a Espanha; sua mania era a de se fazer Imperador. E a Espanha deu-lhe o
troco. Os Castelhanos deram-se a si próprios para rei, conforme o direito dos Godos, o segundo filho de Alfonso, Sancho o
Bravo, o Cid daqueles tempos[11]. Deserdado por seu pai, ameaçado pelos Franceses e pelos Mouros ao mesmo tempo,
excomungado pelo Papa por ter desposado uma parente, Sancho fez frente a tudo e guardou sua mulher e seu reino. O rei da
França fez grandes ameaças, reuniu um grande exército, tomou a oriflama, entrou na Espanha até Salvatierra quando, então,
deu-se conta que não possuía nem víveres, nem munições, e não pôde avançar. A crônica (da abadia) de São Maglório, após
ter contado a morte de São Luís, opõe-lhe a de seu triste filho: “En Espagne et à Sauveterre, Alla son fils folie querre ”
(1276)[12].

Era uma época gloriosa para a Espanha. O rei de Aragão, D. Jaime, filho do rei trovador que morreu em Muret
defendendo o conde de Toulouse, vinha de conquistar dos Mouros os reinos de Maiorca e de Valência. D. Jaime tinha, tal é a
ênfase espanhola, ganho trinta e três batalhas, fundado ou retomado duas mil igrejas. Mas, contava-se que ele tinha ainda mais
amantes que igrejas. Ele recusava ao Papa o tributo prometido por seus predecessores e ousara casar seu filho D. Pedro com a
própria filha de Manfredo, o último rebento da Casa da Suábia.

Os reis de Aragão, sempre guerreando contra Mouros ou cristãos, tinham necessidade de serem amados por seus
homens e, de fato, o eram. Lede o retrato que deles traçou o bravo e ingênuo Ramón Muntaner, historiador soldado, como eles
faziam correta justiça, como aceitavam os convites de seus súditos, como comiam em público perante todo mundo, aceitando,
diz Ramón, o que lhes era oferecido, frutas, vinho ou outra coisa, e não opondo dificuldades para tudo saborear[13]. Muntaner
esquece uma coisa: é que esses reis tão populares não eram renomados por sua lealdade. Eram montanheses matreiros de
Aragão, verdadeiros Almogávares, semi-Mouros, pilhando amigos e inimigos.

Foi inicialmente para o jovem rei D. Pedro que se apresentou o fiel servidor da Casa da Suábia, ao lado da filha de
seus senhores, a rainha Constância. O Aragonês recebeu Procida bem, deu-lhe terras e senhorias. Mas ele acolheu friamente
seus conselhos contra a Casa da França; as forças eram por assaz desproporcionais. O ódio da cristandade contra esta Casa
tinha necessidade de aumentar mais. Ele preferiu recusar e aguardar, deixando o aventureiro agir, mas sem se comprometer.
Para evitar qualquer suspeita de conivência, Procida vendeu seus bens da Espanha e desapareceu. Não se soube o que lhe
ocorrera.

Ele havia partido secretamente, em hábito de franciscano. Este humilde disfarce também era o mais seguro, pois esses
monges corriam o mundo: eles pediam, mas viviam de pouco e, em todos os lugares, eram bem recebidos. Gente de espírito,
de ardil, de facúndia, eram discretamente encarregados de muitas comissões mundanas. A Europa estava repleta de sua
atividade. Mensageiros e pregadores, por vezes diplomatas, eles eram, então, o que hoje são os correios e a imprensa. Procida
assim tomou o imundo traje dos Mendicantes e se foi humildemente ao mundo, pés nus, procurar inimigos contra Carlos
d’Anjou.

Os inimigos não faltavam. O difícil era colocá-los de acordo, fazê-los agir de concerto e a tempo. Inicialmente, ele
vai para a Sicília, para o próprio vulcão da revolução, vê, escuta e observa. Os sinais da erupção próxima eram visíveis,
raiva concentrada, efervescência surda e o murmúrio e o silêncio. Carlos esgotava esse infeliz povo para poder subjugar
outro. Tudo estava pleno de preparativos e de ameaças contra os Gregos. Procida passa à Constantinopla, adverte Paléologo,
fornece-lhe informes precisos. O rei de Nápoles já fizera passar três mil homens a Dirráquio (NT: Durrës, na Albânia). Ele
seguiria com cem galeras e quinhentos meios de transporte. O sucesso do acontecimento era certo, eis que Veneza não temia
dele participar. Ela dava quarenta galeras com seu Doge, que ainda era Dandolo. A quarta cruzada seria renovada. Paleólogo,
desorientado, não sabia o que fazer. “O que fazer? Dai-me dinheiro que vos encontrarei um defensor que não tem dinheiro mas
que tem armas” (Ferretus vicentinus, apud Muratori, IX, 952).

Procida levou consigo um secretário de Paleológo, o conduziu à Sicília, mostrou-o aos barões sicilianos, depois ao
Papa, a quem secretamente viu no castelo de Soriano. O imperador grego desejava, antes de tudo, a assinatura do Papa com o
qual estava novamente reconciliado. Mas Nicolau hesitava em embarcar numa empreitada tão grande. Procida deu-lhe
dinheiro. Segundo outros, bastou-lhe lembrar a este pontífice, Romano e Orsini de nascimento, uma palavra de Carlos
d’Anjou. Quando o Papa desejou dar sua sobrinha Orsini ao filho de Carlos d’Anjou, este dissera: “Ele acredita que por ter
meias-calças púrpuras o sangue dos seus Orsini pode se misturar ao sangue da França?” (G. Villani, p. 270).

Nicolau assinou, mas logo morreu. Toda a obra parecia rompida e destruída. Carlos se encontrava mais poderoso que
nunca. Ele conseguiu ter um Papa para si. Ele expulsou do conclave os cardeais gibelinos e fez nomear um Francês, um antigo
cônego de Tours, servil e trêmula criatura de sua Casa. Era fazer-se Papa ele mesmo. Ele tornou a ser senador de Roma;
dispôs todas as suas guarnições nas propriedades da Igreja. Desta vez, o Papa não podia lhe escapar e o guardava consigo em
Viterbo, jamais perdendo-o de vista. Quandos os infelizes Sicilianos vieram implorar a intervenção do Papa junto a seu rei,
viram seu inimigo próximo de seu juiz, o rei sentando-se ao lado do Papa. Os deputados da Sicília, que entretanto eram um
bispo e um monge, foram, em resposta, jogados numa masmorra.

A Sicília não tinha a aguardar qualquer piedade de Carlos d’Anjou. Esta ilha, metade árabe, apoiara teimosamente os
amigos dos Árabes, Manfredo e sua Casa. Todo insulto que os vencedores pudessem fazer contra o povo Siciliano não lhes
parecia senão represálias. Conhece-se a petulância dos Provençais, sua brutal jovialidade. Se apenas ainda houvesse antipatia
nacional e insolência da conquista, o mal poderia ter diminuído. Mas o que ameaçava aumentar, pesar cada dia mais, era um
primeiro, um inábil ensaio de administração, a invasão da fiscalidade, a aparição da finança no mundo da Odisséia e da
Enêida. Esse povo de trabalhadores e de pastores guardara, sob toda dominação estrangeira, alguma coisa da antiga
independência. Até aí, houvera isolamento nas montanhas, liberdades no deserto. Mas eis que o Fisco explora toda a ilha.
Curioso viajante, ele mensura o vale, escala a rocha, estima o pico inacessível. O coletor monta sua mesa sob o castanheiro da
montanha ou persegue e registra o guardador de cabras errante nas cornijas das rochas, entre as lavas e as neves.

Tratemos de desemaranhar a queixa da Sícilia nesta floresta de barbarismos e de solecismos através da qual a
caudalosa eloquência do cronista Bartolomeo di Neocastro espuma e se precipita: “O que dizer de suas invenções inauditas?
de seus decretos sobre as florestas? da absurda interdição da costa? do exagero inconcebível do produto dos rebanhos?
Quando tudo perecia de languidez sob o pesado calor do outono; não importa, o ano sempre fora bom, a colheita abundante...
Ele repentinamente cunhava uma moeda de prata pura e, por um denário siciliano fazia-se pagar trinta... Nós acreditávamos ter
recebido um rei do Pai dos Pais, mas recebemos o Anti-Cristo”[14].

“Era obrigatório”, diz um outro, “apresentar o mesmo número de cabeças no rebanho, ao final do ano; e, no outro,
mais jovens que o rebanho poderia produzir. Os pobres trabalhadores choravam. Era um terror universal entre os vaqueiros,
os cabreiros, entre todos os pastores. Eram responsabilizados por suas abelhas, mesmo do enxame que o vento carregara. Era-
lhes proibida a caça e, depois, iam, em segredo, colocar peles de cervos e de gamos em suas choças a fim de terem o direito
de confiscar. Todas as vezes que agradasse ao rei bater moeda nova, soava-se a trombeta em todas as ruas; e, de porta em
porta, era necessário entregar o dinheiro...” (Nic. Specialis, apud Muratori).

Eis a sorte da Sicília depois de tantos séculos. Foi sempre a vaca nutriz esgotada do leite e do sangue extraídos por
um senhor estrangeiro. Ela não teve independência e vida forte senão sob o domínio de seus tiranos, os Dionísios e os Gélons.
Apenas eles a tornaram formidável para o estrangeiro. Depois, sempre escrava... E, de início, era nela que se decidiam todas
as querelas do mundo antigo: Atenas e Siracusa, a Grécia e Cartago, Cartago e Roma; enfim, as guerras servis. Todas essas
batalhas solenes do gênero humano foram combatidas à vista do Etna, como um julgamento de Deus perante o altar. Depois,
vêm os Bárbaros, Árabes, Normandos, Alemães[15]. A cada vez, a Sicília espera e deseja; a cada vez, ela sofre; ela vira e se
revira como Encélado sob o vulcão. Fraqueza, desarmonia incurável de um povo de vinte raças sobre quem pesa, tão
pesadamente, uma dupla fatalidade de história e de clima.

Tudo isso não se mostra melhor senão através da bela e indolente lamentação com a qual Falcando começa sua
história[16]: “Eu gostaria, meu amigo, agora que o rude inverno cedeu a um sopro mais suave, eu gostaria de te escrever e te
dirigir alguma coisa amável, como premissas da primavera. Mas a lúgubre notícia me faz prever novas tempestades; meus
cantos se transformam em lástimas. Em vão o céu sorri, em vão os jardins e os bosquedos me inspiram uma alegria inoportuna,
e o concerto renovado dos pássaros me obriga a retomar o meu. Não posso ver sem lágrimas a próxima desolação de minha
boa ama-de-leite, a Sicília... – A qual abraçarão com o jugo ou com a honra! Procuro em silêncio e não sei o que escolher... –
Vejo que, na desordem de um tal momento, nossos Sarracenos são oprimidos. Não vão eles secundar o inimigo? ... ó, se todos,
Cristãos e Sarracenos, se acordassem para eleger um rei!... – Que, a oriente da ilha, nossos salteadores sicilianos em boa hora
combatessem os bárbaros entre o fogo e as lavas do Etna. São eles também de fogo e sílex. Mas o interior da Sicília, mas o
grotão que honra nossa bela Palermo, seria coisa ímpia, monstruosa, que ela fosse maculada com o aspecto dos bárbaros...
Nada espero dos Apulianos (Puglia), que amam apenas a novidade. Mas tu, Messina, cidade poderosa e nobre, pensas então
em te defender, em repelir o estrangeiro do estreito? Desgraça a ti, Catânia! Nunca, à força de calamidades, tu pudeste
satisfazer e dobrar a fortuna. Guerra, peste, torrentes inflamadas do Etna, tremores de terra e ruínas; não te falta senão a
servidão. Adiante, Siracusa, sacode a paz, se puderes; esta eloquência com a qual te enfeitas, emprega-a para reerguer a
coragem dos teus. De que te serve teres te libertado dos Dionísios... Ah! Quem nos devolverá nossos tiranos!... Dirijo-me
agora a ti, ó Palermo, cabeça da Sicília! Como te passas em silêncio e como te louvar dignamente!...”. Mas, depois que
Falcando evocou a bela Palermo, ele não pensou mais em outra coisa, esqueceu os bárbaros e todos os seus temores. Ei-lo,
então, a descrever insaciavelmente a voluptuosa cidade, seus palácios fantásticos, seu porto, seus maravilhosos jardins,
sedosas amoreiras, laranjeiras, limoeiros, canas-de-açúcar. Ei-lo perdido nos frutos e nas flores. A natureza o absorve, ele
sonha, ele esqueceu tudo. Creio ouvir na sua prosa o eco da poesia preguiçosa, sensual e melancólica do idílio grego: “Eu
cantarei na gruta, tendo-te em meus braços e olhando os rebanhos que vão passando sobre as margens do mar da Sicília”[17].

Era segunda-feira, 30 de março de 1282, a segunda-feira de Páscoa. Na Sicília, já era verão e, como diríamos entre
nós, dia de São João, quando o calor já é pesado e a terra úmida e quente desaparece sob a erva e a erva sob as flores. A
Páscoa é um sensual momento nessas terras. Finda a Quaresma, finda está a abstinência; a sensualidade desperta ardente e
rude, aguçada pela devoção. Deus teve sua parte; os sentidos, agora, reclamam a sua. A mudança é brusca: cada flor
desabrocha da terra, toda beleza brilha. É uma triunfante erupção de vida, uma revanche da sensualidade, uma insurreição da
natureza.

Neste dia, então, nesta segunda-feira de Páscoa, todos e todas subiam, pela bela colina, de Palermo a Monreale, para
ouvir as vésperas. Os estrangeiros estavam lá para estragar a festa. Uma aglomeração tão grande de homens não deixava de
inquietá-los. O vice-rei proibira os Sicilianos de portarem armas e com elas se exercitarem, como era o costume naqueles
dias. Talvez, ele tivesse notado a afluência dos nobres; em efeito, Procida tivera a destreza de reuni-los em Palermo, mas era
necessária a ocasião. Um Francês a forneceu melhor que Procida pudesse desejar: esse homem chamado Drouet[18] detém
uma bela jovem da nobreza que seu noivo e toda sua família escoltavam à igreja. Ele revista o noivo e não encontra armas;
depois, ele desconfia que a jovem as tivesse debaixo de seu vestido e enfia a mão por baixo dele. Ela desmaia de susto. O
Francês foi, no mesmo instante, desarmado e morto com sua própria espada. Um brado se ergue: “À morte, à morte, os
Franceses!”[19]. Em todos os lugares, eles são degolados. Conta-se que as casas francesas estavam previamente
assinaladas[20]. Aquele que não conseguisse pronunciar o “c” ou “ch” italiano (ceci, ciceri) era morto no mesmo
instante[21]. Desnudou-se as mulheres sicilianas para procurar em seu seio uma criança francesa.

Foi necessário um mês inteiro para que as outras cidades, seguras pela impunidade de Palermo, imitassem seu
exemplo. A opressão igualmente pesara. Igual foi também a vingança e, às vezes, houve no povo uma caprichosa
magnanimidade[22]. Mesmo em Palermo, o vice-rei, surpreendido em sua casa, fora ultrajado, mas não assassinado; desejava-
se devolvê-lo a Aigues-Mortes. Em Catalafimi-Segesta, os habitantes pouparam seu governador, o honesto Porcelet[23], e o
deixaram partir com sua família. Talvez fosse já o temor das vinganças de Carlos d’Anjou. O povo já havia resfriado e
desencorajado, tal é a volubilidade meridional. Os habitantes de Palermo enviaram ao Papa dois religiosos para rogar graça.
Esses deputados de Palermo não ousaram dizer outra coisa que não fossem essas palavras das litanias: “Agnus Dei, qui tollis
peccata mundi, miserere nobis” (NT: Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo, tende piedade de nós) . E eles as
repetiram por três vezes. O Papa respondeu pronunciando, também por três vezes, esse versículo da Paixão: “Ave, rex
Judæorum, et dabant ei alapam” (NT: Salve rei dos Judeus, e deram-lhe um tapa) . Messina não teve melhor sucesso junto a
Carlos d’Anjou. Ele respondeu a seus enviados que todos eram traidores da Igreja e da Coroa e aconselhou-os a bem se
defenderem, como pudessem[24].

A gente de Messina se apressou em aproveitar do aviso. Tudo foi preparado para opor uma resistência desesperada.
Homens, mulheres e crianças, todos carregavam pedras e conseguiram erguer uma muralha em três dias, repelindo,
bravamente, os primeiros ataques. Deste acontecimento, resta uma cançãozinha: “Ah! não é um grande dó das mulheres de
Messina, vê-las descabeladas e carregando pedras e cal?... Quem desejar destruir Messina, que Deus lhe dê moléstia e
trabalho”[25].

Era, porém, tempo do Aragonês chegar. O príncipe matreiro inicialmente mantivera-se observando, deixando os
riscos aos Sicilianos. Estes, irrevogavelmente comprometidos pelos massacres, D. Pedro desejava ver como iriam sustentar
esses atos irrefletidos. Não obstante, ele se mantinha na África, na companhia de um exército, e fazia frouxamente a guerra aos
infiéis. Esse exército causara inquietação ao rei da França e ao Papa, mas D. Pedro deixou o primeiro tranquilo, pretextando a
guerra contra os Mouros e, para melhor enganá-lo, tomou-lhe dinheiro emprestado; mesmo de Carlos d’Anjou ele obteve
empréstimo (G. Villani, 59, p. 277). Os barões do soberano de Aragão não puderam abrir, senão no mar, as ordens seladas
que ele lhes dera, e nelas mencionava-se apenas a guerra na África[26]. Foi apenas ao cabo de alguns meses, quando recebeu
duas embaixadas dos Sicilianos, que ele se decidiu e passou à Sicília[27].

O Aragonês lançou seu desafio a Carlos d’Anjou na frente de Messina, mas não se apressou em se colocar face a face
com seu terrível inimigo. Como bom toureador, ele picou, mas iludiu o touro. Somente despachou, para segurança da cidade,
alguns de seus salteadores almogávares, lestos e sóbrios pedestres que, em três dias, fizeram os seis de distância entre
Palermo e Messina[28]. A esquadra catalã, sob o comando do calabrês Rogério de Lauria (Ruggero di Lauria) era um seguro
ainda mais eficaz. Ela devia ocupar o estreito, esfaimar Carlos d’Anjou, fechar-lhe o retorno. O rei de Nápoles desconfiava,
com razão, das suas forças marítimas. Ele cruzou o estreito à noite, sem poder levar nem suas tendas, nem suas provisões. Pela
manhã, os Messinenses, maravilhados, não viram mais inimigos. E não tiveram outra a coisa fazer senão pilhar o campo
inimigo abandonado às pressas.

A se acreditar em Muntaner, os Catalães não possuíam senão vinte e duas galeras contra as noventa de Carlos
d’Anjou. Destas, havia dez de Pisa, que foram as primeiras a fugir, quinze de Gênova, que as seguiram. Os Provençais, súditos
de Carlos, possuíam vinte, que não se comportaram de outra forma. As quarenta e cinco restantes pertenciam a Nápoles e à
Calábria; elas se acreditaram perdidas e lançaram-se à costa. Mas os Catalães as perseguiram, as tomaram e aí mataram seis
mil homens. Os vencedores, afastados pela tempestade, encontraram-se, ao raiar do Sol, à frente do farol de Messina.

“Quando o dia chegou, eles se apresentaram à frente da torrezinha. As pessoas da cidade, vendo um grande número
de velas, exclamaram assustadas: ‘Ah, Senhor! Ah, meu Deus! O que é isso? É a frota do rei Carlos que, depois de ter pego as
galeras do rei de Aragão, vem contra nós”.

“O rei estava de pé, pois se levantava constantemente ao alvorecer do dia, seja no verão ou no inverno; ele ouviu o
barulho e perguntou a causa: ‘Por que esses gritos em toda a cidade?’ – ‘Senhor, é a frota do rei Carlos que retorna ainda mais
considerável por ter tomado nossas galeras”.
“O rei ordenou um cavalo e saiu do palácio seguido de apenas dez pessoas. Ele correu ao longo da costa, onde
encontrou uma multidão de homens, mulheres e crianças desesperadas. Ele a todos encorajou, dizendo: ‘Boa gente, nada
temei! São nossas galeras que trazem a frota do rei Carlos’. E repetia essas palavras correndo sobre a praia do mar; e toda
essa gente exclamava: ‘Queira Deus seja assim!’. O que mais poderia dizer-vos enfim? Todos os homens, mulheres e crianças
de Messina corriam para perto dele e o exército de Messina também o seguia. Chegando na Fonte de Ouro, o rei, vendo se
aproximar uma tão grande quantidade de velas insufladas pelo vento das montanhas, refletiu um momento e disse para si
mesmo: ‘Deus, que para cá me conduziu, não me abandonará, e nem a esse infeliz povo; graças sejam-Lhe dadas!”.

“Enquanto vagava nesses pensamentos, um vaso armado, empavesado com as armas do senhor rei de Aragão e
conduzido por En Cortada, veio na direção do rei, que o via abaixo da Fonte de Ouro, as flâmulas à frente da cavalaria. Se
todos aqueles que lá estavam com o rei foram transportados pelo júbilo ao perceberem esse vaso com seu pavilhão, é coisa
que não se precisa perguntar. O vaso fez terra, En Cortada desembarcou e disse ao rei: ‘Senhor, eis vossas galeras; elas vos
trazem aquelas de vossos inimigos. Nicotera foi tomada, queimada e destruída e nela morreram mais de duzentos cavaleiros
franceses’. Ante essas palavras, o rei apeou do cavalo e se ajoelhou. Todo mundo seguiu seu exemplo. Eles começaram a
entoar, todos juntos, o Salve Regina. Eles louvaram Deus e deram-Lhe graças por esta vitória, pois ela não pertencia a eles,
mas apenas a Deus. Enfim, o rei respondeu a En Cortada: ‘Sede bem vindo’. Ele, em seguida, disse-lhe para voltar sobre seus
passos e dizer àqueles que se encontravam à frente da aduana para se aproximarem louvando a Deus, no que foi obedecido;
então, as vinte e duas galeras entraram primeiro, arrastando, atrás de si, mais de quinze galeras, barcos ou transportes; e foi
assim que fizeram sua entrada em Messina, empavesadas, o estandarte hasteado, e arrastando sobre o mar os estandartes
inimigos. Jamais fomos testemunha de uma alegria parelha. Dir-se-ia que o céu e a terra haviam se confundido; e, ao meio de
todos esses gritos, escutava-se os louvores a Deus, à Senhora Santa Maria e à toda a corte celeste. Quando fomos à aduana, à
frente do palácio do rei, lançamos brados de júbilo; e a gente do mar e a gente da terra a eles responderam, mas com uma
força tamanha que, podeis acreditar em mim, podia-se ouvir da Calábria” (Ramón Muntaner, c. 63, trad. de M. Buchon).

Carlos d’Anjou, da praia, viu o desastre da sua frota. Ele viu incendiarem, sem poder defendê-los, esses vasos
outrora construídos para a conquista de Constantinopla. Conta-se que ele mordia de raiva o cetro que tinha à mão; e que
repetia a palavra que já antes dissera quando tomou conhecimento dos primeiros massacres: “Ah, Sire Dieu, moult m’avez
offert à surmonter! Puisqu’il Vous plaît de me faire fortune mauvaise, qu’il Vous plaise aussi que la descente se fasse à petits
pas e doucement” (NT:Ah, Senhor Deus, muito me ofertastes para superar! Pois que Vos apraz fazer-me má fortuna, que
também Vos agrade que a descida se faça a pequenos passos e vagarosamente)[29].

Mas logo o orgulho levou embora esta resignação. Carlos d’Anjou, já velho e pesado, propôs ao jovem rei de Aragão
decidir a querela por um combate singular, no qual tomariam parte cem cavaleiros dos dois reinos. O Aragonês aceitou uma
proposta tão favorável ao mais fraco e que lhe dava tempo[30]. Os dois reis providenciaram se encontrar em Bordeaux, no dia
15 de maio de 1283, onde combateriam sob a proteção do rei da Inglaterra. Na época indicada, D. Pedro, viajando em boa
montaria à noite e guiado por um comerciante de cavalos que conhecia todas as estradas e todos os portos (pors) dos Pirineus,
chegou, ele e mais dois, a Bordeaux, no próprio dia da batalha, e protestou, perante um notário, que o rei da França, estando
próximo de Bordeaux com suas tropas, não havia segurança para si. Enquanto o notário escrevia, o rei fez o percurso do
torneio, depois esporeou seu cavalo, e fez, sem parar, quase cem milhas sobre a estrada de Aragão.

Carlos d’Anjou, assim zombado, preparou um novo exército na Provença. Mas, antes que estivesse de volta a
Nápoles, o almirante Rogério de Lauria dera-lhe o golpe mais sensível. Ele veio desfilar, com quarenta e cinco galeras, à
frente do porto de Nápoles, para afrontar Carlos o Coxo, o filho de Carlos d’Anjou. O jovem príncipe e seus cavaleiros não
suportaram tamanho ultraje e saíram com trinta e cinco galeras que possuíam no porto. Ao primeiro choque, foram derrotados
e presos. Carlos d’Anjou chegou no dia seguinte. “Por que ele não está morto?”, exclamou quando relataram-lhe o cativeiro de
seu filho[31]. Ele se deu, a título de consolação, o enforcamento de cento e cinquenta Napolitanos.

O rei de Nápoles fora rudemente batido com este último golpe. Sua atividade o abandonava. Ele perdeu o verão a
negociar, por intermédio do Papa, um acordo com os Sicilianos. No inverno, ele fez novos preparativos que, entretanto, não
lhe serviram. A vida escapava-lhe, assim como a esperança da vingança. Ele morreu com a piedade e o sentimento de
segurança de um santo, dando-se por testemunho que não fizera a conquista do reino da Sicília senão para a glória da Igreja (7
de janeiro de 1285).

Entrementes, o Papa, completamente Francês de nascença e de coração, declarara D. Pedro destituído de seu reino de
Aragão (1283), assegurando as indulgências da cruzada a quem quer que o enxotasse. No ano seguinte, ele adjudicou esse
reino ao jovem Carlos de Valois, segundo filho de Filipe o Ousado, rei da França. Foi, de fato, uma verdadeira cruzada. A
França não guerreava há muito tempo. Todo mundo desejou dela participar, inclusive a própria rainha e muitas damas nobres.
O exército viu-se o mais forte que jamais saíra da França desde Godofredo de Bouillon. Os Italianos o estimaram em vinte mil
cavaleiros e quatro mil infantes. As frotas de Gênova, de Marselha, de Aigues-Mortes e de Narbonne, deviam seguir as praias
da Catalunha e secundar as tropas terrestres. Tudo prometia um sucesso fácil. D. Pedro encontrava-se abandonado de seu
aliado, o rei de Castela, e de seu próprio irmão, o rei de Maiorca. Seus súditos vinham de formar uma irmandade contra si.
Ele se viu reduzido a alguns almogávares, com os quais ocupava as posições inatacáveis, observando e inquietando o inimigo.
A vila de Elna opôs alguma resistência e tudo foi aí cruelmente massacrado. Girona resistiu mais. O rei da França, que fizera
voto de tomá-la, obstinou-se e aí perdeu um precioso tempo. Pouco a pouco, o clima começou a fazer sua influência maléfica.
Febres eclodiram no exército. O desencorajamento aumentou pela derrota do exército naval; o almirante vencedor, Rogério de
Lauria, praticou crueldades medonhas sobre os prisioneiros. Era necessário considerar a retirada, mas todo mundo estava
doente; os soldados acreditavam-se perseguidos pelos santos cujos túmulos haviam ultrajado e violado. Todas as passagens
estavam ocupadas. Os almogávares, atraídos pelo butim, cresciam em número a olhos vistos. O rei retornava moribundo sobre
uma padiola, entre seus cavaleiros debilitados. A chuva caía em torrentes sobre este exército de doentes. A maior parte ficou
pela estrada. O rei atingiu Perpignan, mas para morrer. Não mais lhe restava uma polegada de terra na Espanha.

O novo rei, Filipe o Belo, encontrou uma maneira de armar o rei de Castela contra seu aliado de Aragão. O filho de
Carlos d’Anjou obteve sua liberdade graças a um perjúrio. A Sicília e seus novos reis, cadetes (caçulas) da Casa de Aragão,
viram-se abandonados pelo ramo primogênito que, inclusive, tomou armas contra si. Entretanto, o neto de Carlos d’Anjou,
filho de Carlos o Coxo, foi aprisionado pelos Sicilianos, assim como seu pai o fora. Um tratado se seguiu (1299), segundo o
qual o rei Frederico devia manter a ilha durante sua vida; mas seus descendentes a guardaram durante mais de um século.

Essa monarquia de Nápoles, tão mal obtida, não foi de todo derrubada mas, ao menos, mutilada e humilhada. Houve
alguma reparação pelos mortos. Escreveu um cronista que morreu por volta de 1300: “O piedoso Carlos (o filho), hoje
reinando, construiu uma igreja Carmelita sobre os túmulos de Conradino e daqueles que com este morreram” (Ricobald.
Ferrar. sub. finem, apud Muratori, IX).
Capítulo II
Filipe o Belo. Bonifácio VIII.

1285 a 1304.

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“Eu fui a raiz da má planta que cobre toda a cristandade com sua sombra. De planta má, mau fruto...

“Tive por nome Hugo Capeto. De mim nasceram esses Luíses, esses Filipes, que desde há pouco reinam na França.

“Eu era filho de um açougueiro de Paris[32], mas quando os antigos reis faltaram, menos um, que tomou o hábito
cinza[33], encontrei-me a segurar as rédeas; e eu tinha tantos amigos e tamanha força, que a coroa viúva caiu para meu
filho[34]. Dele saiu essa raça na qual os mortos se tornam relíquias[35].

“Tanto quanto o grande dote provençal não os privava da vergonha, pouco valiam; aos menos, faziam eles pouco
mal”[36].

“Mas, desde então, eles avançaram por força e por mentira e, depois, por penitência, tomaram a Normandia e a
Gasconha”.

“Carlos passou na Itália e, depois, por penitência, degolou Conradino. – Ainda por penitência, ele mandou São
Tomás para o céu”.

“Um outro Carlos logo sairá da França. Sem armas, salvo a lança do perjúrio, a lança de Judas, ele sai. E com ela
golpeia Florença no ventre”[37].

“O outro, cativo no mar, faz tráfico e mercado de sua filha; o corsário, ao menos, não vende senão o estrangeiro”[38].

“Mas eis quem apaga o mal feito e a fazer... Eu o vejo entrar em Anagni, coroado com a flor-de-lis!... Vejo o Cristo
cativo na pessoa de seu vigário; vejo-o zombado uma segunda vez; sua sede é novamente saciada com fel e vinagre. Ele é
posto à morte entre bandidos”[39].

Esta furiosa invectiva gibelina, repleta de verdades e de calúnias, é a reclamação do velho mundo moribundo contra
esse jovem mundo feio que o sucede. Este começa por volta de 1300: abre-se pela França, pela odiosa figura de Filipe o
Belo.

Quando a monarquia francesa fundada por Filipe Augusto e Filipe o Belo findou em Luís XVI, ela, ao menos, teve um
consolo em sua morte: pereceu na glória imensa de uma jovem república que, no seu primeiro ensaio de força, venceu toda a
Europa e a renovou. Mas esta pobre Idade Média, Papado, Cavalaria, Feudalidade, sob qual mão pereceram? Sob a mão do
procurador, do bancarroteiro, do falsário de moeda.

A reclamação é escusável: esse novo mundo é feio. Se é mais legítimo que aquele a quem substituiu, que olho, ainda
que fosse o de Dante, poderia descobri-lo naquela época? Ele nasce sob as rugas do velho Direito Romano, da antiga
fiscalidade imperial. Ele nasce advogado, usurário; ele nasce gascão, lombardo e judeu.

Neste sistema moderno, o que mais nos irrita contra a França, sua primeira representante, é sua perpétua contradição,
sua duplicidade de instinto, a hipocrisia ingênua, se posso dizer, com a qual vai testemunhando e, vez por vez, alternando seus
dois princípios, romano e feudal. A França é, então, um jurista em armadura, um procurador coberto de ferro; ela emprega a
força feudal para executar as sentenças dos Direitos Romano e Canônico.

Filha obediente da Igreja, ela se apodera da Itália, da própria Igreja; se golpeia a Igreja, o faz como sua filha, como
que obrigada, em consciência, a corrigir sua mãe.
O primeiro ato do neto de São Luís fora o de excluir os sacerdotes da administração da justiça, de proibir-lhes todo
tribunal, não somente no parlamento do rei e em seus domínios, mas também nos dos senhores (1287). “Foi ordenado, pelo
conselho do senhor rei, que os duques, condes, barões, arcebispos e bispos, abades, capítulos, colégios, cavaleiros (milites)
e, em geral, todos aqueles que possuam jurisdição temporal na França, escolham laicos para os cargos de bailios
(magistrados, juízes), prebostes e oficiais de justiça; que, de forma alguma, nomeiem clérigos para essas funções, a fim de
que, se faltarem (delinquirem) em qualquer coisa, seus superiores possam puni-los severamente (com sevícias). Se houver
clérigos nos supramencionados ofícios, que deles sejam afastados. – Idem, foi ordenado que todos aqueles que, após o
presente parlamento, tenham ou tiverem causa na corte do senhor rei, e perante os juízes seculares do reino, constituam
procuradores laicos. Registrado neste dia, no parlamento de Todos-os-Santos, ano do Senhor 1287”[40].

Filipe o Belo tornou o parlamento completamente laico. É a primeira separação expressa das ordens civil e
eclesiástica; digamos melhor: é a fundação da ordem civil.

Os sacerdotes não se conformaram. Parece que tentaram forçar o parlamento para retomarem seu assento. Em 1289, o
rei proíbe “a Filipe e a João, porteiros do parlamento, deixarem entrar qualquer dos prelados na câmara sem o prévio
consentimento dos mestres (presidentes)”.

Constituído pela exclusão do elemento estrangeiro, este corpo se organizou (1291) pela divisão do trabalho, pela
repartição das funções diversas. Uns deveriam receber os requerimentos e despachá-los, outros tiveram o encargo dos
inquéritos. Os dias de sessão foram fixados, as rejeições determinadas, assim como as funções dos oficiais do rei. Um grande
passo se fez na direção da centralização judiciária. O parlamento de Toulouse foi suprimido, os apelos e embargos do
Languedoc foram doravante levados a Paris (D. Vaissette, ‘Hist. du Languedoc’, liv. XXVIII, c. 21, p. 72) ; as grandes causas
deviam ser decididas com mais calma, longe dessa terra passional que carregava as marcas de tantas e tantas revoluções.

O parlamento rejeitou os sacerdotes. Ele não tarda a agir contra os mesmos. Em 1288, o rei proíbe que qualquer
judeu seja detido à vista de requisição de um padre ou monge, sem que antes se tenha informado o senescal ou o bailio acerca
do motivo da detenção e sem que ao detido seja apresentada cópia do mandado que a determinou. Ele modera a tirania
religiosa sob a qual gemia o Midi: ele proíbe ao senescal de Carcassonne aprisionar quem quer que seja em razão do só
pedido dos inquisidores (Ordenações, p. 317, 322). Sem dúvida, essas concessões eram interesseiras: o judeu era coisa do
rei; o herético, seu súdito, seu talhável[41], não poderia ser extorquido por ele se já o tivesse sido pela Inquisição. Mas não
nos prendamos tão estritamente ao motivo. A Ordenação parece honorável àquele que a assinou. Nela entrevê-se, com prazer,
a primeira luz da tolerância e da eqüidade religiosa.

No mesmo ano de 1291, o rei desferiu na Igreja um golpe mais ousado. Ele limitou, enfraqueceu, este terrível poder
de absorção que, pouco a pouco, teria feito passar todas as terras do reino às pessoas de mãos-mortas[42]. Mortas, de fato,
para vender ou doar, as mãos dos padres e dos monges eram bem abertas para receber e tomar. Ele aumentou para três, quatro
ou seis vezes a renda que devia pagar o adquirente eclesiástico em compensação dos direitos de transmissão que o estado
perdia: assim, toda doação de imóveis feita às igrejas aproveitou, desde então, ao rei. O Rei, esse novo Deus do mundo civil,
entrou na partilha das doações pias junto com Jesus Cristo, com Nossa Senhora e os santos.

Eis para a Igreja. A feudalidade, completamente armada e guerreira que era, nem por isso foi menos atacada. Dela
própria se desprende o princípio que deve arruiná-la. Este princípio é a realeza como suzerania feudal. São Luís diz
expressamente nos seus Assentamentos (Établissements), livro II, c. 27: “Se aucun se plaint en la court le roy de son saignieur
de dete que son saignieur li doie, ou de promesses, ou de convenances que il li ait fetes, li sires n’aura mie la cour: car nus
sires ne doit estre juges, ne dire droit en sa propre querelle, selonc droit escrit en Code, Ne quis in suâ causâ judicet, en la loi
unique qui commence Generali; el rouge, et el noir, etc.” (NT: Se alguém, na Corte do Rei, reclama contra seu senhor de
dívida que lhe deve seu senhor, ou de promessas, ou de acordos que ele lhe tenha feito, seu senhor não terá lugar na corte:
pois nenhum senhor deve ser juiz, nem administrar o direito em sua própria causa, de acordo com o que está escrito no
Código: ‘Ninguém julgará em sua própria causa’, na lei única que começa em Generalli, em vermelho e em preto etc..”).
Os Assentamentos de São Luís foram feitos para os domínios do rei. Beaumanoir[43], nos Costumes do Beauvoisis, num livro
feito para os domínios de um dos filhos de São Luís, Roberto de Clermont, progenitor da Casa de Bourbon, escreve, no
reinado de Filipe o Belo, que o rei tem direito de baixar decretos, não somente para os seus domínios, mas para todo o reino.
É preciso ver, no próprio texto, com qual destreza ele apresenta esta opinião escandalosa e paradoxal![44]

Filipe o Ousado facilitara aos plebeus a aquisição dos bens feudais. Ele ordenou às pessoas da justiça “não molestar
os não-nobres que adquirirão as coisas feudais”. O não-nobres, não podendo saldar os serviços nobres vinculados aos feudos,
era necessário o consentimento de todos os senhores feudais, de grau em grau, até o rei. Filipe III reduziu a três o número de
senhores mediatos cujo consentimento era exigido.

A tendência desta legislação se explica facilmente quando se sabe quais foram os conselheiros dos reis nos séculos
XIII e XIV, quando se conhece a classe à qual pertenciam.

O camareiro (chambellan), o conselheiro de Filipe o Ousado, foi o barbeiro ou cirurgião de São Luís, o turonense
Pierre de la Brosse. Seu irmão, bispo de Bayeux, partilhou seu poder e, também, sua ruína. De la Brosse acusara a segunda
mulher de Filipe III de haver envenenado um filho do primeiro casamento. O partido dos senhores, à cabeça do qual estava o
conde do Artois, sustentou que o favorito caluniava a rainha e que, além disso, vendia aos Castelhanos os segredos do rei
(Guill. Nagiac., 532. – Chron. de Saint-Denis, p. 107. – Mariana, XIV, p. 616; Sism. VIII, 277). De la Brosse convenceu o
rei a interrogar uma beguina ou mística de Flandres. A facção dos senhores opôs a ela os dominicanos, geralmente inimigos
dos místicos. Um dominicano levou ao rei uma caixinha onde se viu, ou se acreditou ver, as provas da traição do camareiro. A
instrução de seu processo foi feita secretamente e não houve dificuldade em julgá-lo culpado. Os chefes do partido da
nobreza, o conde do Artois, uma multidão de senhores, quiseram assistir à sua execução.

À testa dos conselheiros de São Luís, coloquemos Pierre de Fontaines (ou Desfontaines), autor do “Conselho a meu
amigo”, livro em grande parte traduzido das leis romanas. De Fontaines, nativo do Vermandois, era aí o bailio, no ano de
1253. Nós o vemos, em seguida, entre os Mestres do parlamento de Paris. Nesta qualidade, ele pronuncia um julgamento em
favor do rei contra o abade de Saint-Benoît-sur-Loire (1260), depois um outro, e sempre favoráveis ao rei, contra os
religiosos do bosque de Vincennes. Nesses julgamentos, nós o encontramos assinando após o chanceler da França (Dupuy,
‘Différent de Boniface VIII’, p. 615). Ele se intitula Chevalier (Cavaleiro), o que, desde esta época, não prova grande coisa.
Essa turma da toga longa cedo tomou o título ridículo de Chévaliers-ès-lois (Cavaleiros em Leis).

Nada também indica que Filipe de Beaumanoir, bailio de Senlis, autor deste grande livro dos Costumes do
Vermandois, tenha sido da grande nobreza. A Casa de mesmo nome é uma família bretã, e não picarda, que aparece nas
guerras dos Ingleses, no século XIV, mas que não consegue demonstrar sua filiação além do século XV.

Os dois irmãos Marigny, tão poderosos no reinado de Filipe o Belo, tinham Le Portier como verdadeiro nome de
família (Dupuy, ‘Templiers’, 1751, p. 45, nota) . Eles eram Normandos e compraram em seu país a terra de Marigny. O mais
célebre deles, camareiro e tesoureiro do rei, capitão da Torre do Louvre, é chamado Coadjutor e governador de todo o reino
da França. “Ele era”, disse um contemporâneo, “como um segundo rei, e tudo se fazia de acordo com sua vontade”[45]. Não
somos tentados a suspeitar desse testemunho de exagero, quando sabemos que Marigny mandara colocar sua estátua no Palácio
de Justiça, ao lado daquela do rei (v. Félibien, ‘Histoire de Paris’).

Aos ministros de Filipe o Belo, é preciso acrescentar dois banqueiros florentinos, a quem, sem dúvida, se deve em
grande parte atribuir as violências fiscais desse reinado. Aqueles que conduziram os grandes e cruéis processos de Filipe o
Belo foram o chanceler Pierre Flotte, que teve a honra de ser morto, tal e qual um cavaleiro, na batalha de Courtrai, da qual
falaremos, e seus colegas ou sucessores Plasian e Nogaret. Este último, que obteve uma celebridade tão trágica, nascera em
Caraman, no Lauraguês (Lauragais), no Languedoc. Seu avô, a se crer nas invectivas de seus inimigos, tinha sido queimado
vivo como herético. Nogaret foi inicialmente professor de Direito em Montpellier, depois juiz-mor (juge-mage) de Nîmes. A
família Nogaret, tão orgulhosa no século XVI sob o nome Épernon, não era ainda nobre em 1372, nem de uma, nem da outra
linhagem. Pouco após esta expedição ousada onde Guilherme Nogaret foi deitar a mão sobre o Papa, ele se tornou chanceler e
guarda dos selos. Filipe o Longo revogou as doações que lhe haviam sido feitas por seu pai, Filipe o Belo; mas Nogaret não
foi envolvido na proscrição de Marigny. Temia-se, certamente, levar descrença aos seus atos judiciários, que tinham uma
enorme importância para a realeza.

Esses juristas, que haviam governado os reis ingleses desde o século XII e, no XIII, os soberanos São Luís, Alfonso
X e Frederico II, foram, no reinado do neto de São Luís, os tiranos da França. Esses cavaleiros-em-direito, essas almas de
chumbo e de ferro, os Plasian, os Nogaret, os Marigny, procederam com uma horrível frieza em sua imitação servil do Direito
Romano e da fiscalidade imperial. Os Pandectas[46] eram sua Bíblia, seu Evangelho. Nada os perturbava desde que pudessem
responder, à torto ou à direita, ‘Scriptum est...” (NT: ‘Está escrito...’). Com textos, citações, interpretações e falsificações,
eles destruíram a Idade Média, o Pontificado, a feudalidade, a cavalaria. Eles foram ousadamente realizar uma apreensão de
corpo no Papa Bonifácio VIII; eles queimaram a própria Cruzada nas pessoas dos Templários.

Esses cruéis demolidores da Idade Média são, custa confessá-lo, os fundadores da ordem civil nos tempos modernos.
Eles organizam a centralização monárquica. Lançam nas províncias os bailios, os senescais, os prebostes, os auditores, os
tabeliões, os procuradores do rei, os mestres e pesadores de moeda. As florestas são invadidas pelos fiscais da mata
(verdiers), os gruiers reais[47]. Toda essa gente vai trapacear, desencorajar, destruir as jurisdições feudais. No centro desta
vasta teia de aranha assenta-se o conselho dos juristas sob o nome de Parlamento (fixado em Paris em 1302). Pouco a pouco,
tudo para aí virá se amortecer sob a autoridade real. Este direito laico é sobretudo o inimigo do direito eclesiástico. Se
necessário, os juristas chamarão a si os burgueses. Estes mesmos não são coisa melhor, mesmo que mendiguem o
enobrecimento, ainda que ao custo de perseguirem a nobreza.

Esta criação do governo custava muito caro. Não temos aqui os detalhes suficientes, mas sabemos que os sargentos
dos prebostes, quer dizer, os executores, os agentes desta administração tão tirânica em seu nascimento, eram, inicialmente, o
sargento a cavalo três soldos parisienses e, mais tarde, seis soldos; o sargento a pé dezoito denários, etc.. Eis aí um exército
judiciário e administrativo. Oportunamente, virão as tropas mercenárias. Filipe de Valois terá, de uma só vez, vários milhares
de arbaleteiros genoveses. De onde tirar as somas enormes que tudo isso deve custar? A indústria ainda não nascera. Esta
sociedade nova se encontra já tomada do mal do qual morrera a sociedade antiga: ela consome sem produzir. A indústria e a
riqueza devem sair, a longo prazo, da ordem e da segurança. Mas esta ordem é tão custosa de estabelecer, que se pode
duvidar, durante muito tempo, se ela não aumenta as misérias que devia curar.

Uma circunstância agrava infinitamente esses males. O senhor da Idade Média pagava seus servidores em terras, em
produtos da terra; grande e pequenos, eles tinham lugar à sua mesa. O soldo era o repasto do dia. A imensa máquina do
governo real que traz seu movimento complicado em substituição aos mil movimentos naturais e simples do governo feudal,
esta máquina, apenas o dinheiro sonante pode dar-lhe a impulsão. Se este elemento vital faltar à nova realeza, ela vai perecer,
a monarquia se dissolverá, e todas as partes tornarão a cair no isolamento, na bárbarie do governo feudal.

Não é culpa desta forma de governo se ele é ávido e faminto. A fome é sua natureza, sua necessidade, o próprio fundo
de seu temperamento. Para satisfazê-la, é preciso que se empregue, vez por vez, a astúcia e a força. Há, aqui, um único
príncipe, como no velho romance, mestre Renard e mestre Isengrin.

É justo reconhecer que este rei, por sua natureza, não gosta da guerra; ele prefere qualquer outro meio para tomar: a
compra, a usura. De início, ele trafica, ele troca, ele compra; o forte pode assim, honestamente, esfolar os amigos fracos. Por
exemplo: desde que se desesperou por não conseguir tomar a Espanha com as bulas do Papa, ele, ao menos, comprou o
patrimônio do ramo cadete de Aragão, a boa cidade de Montpellier, a única que restara ao rei Jaime (‘Hist. du Languedoc’,
liv. XXVIII, c. 30, p. 76). O príncipe, distinto e bem instruído nas leis, não se fez escrúpulo em adquirir desta forma a última
veste de seu pródigo amigo, pobre arrimo de família que vendia seus bens peça a peça, e ao qual, sem dúvida, acreditava
poder tirar a direção em virtude da lei romana: Prodigus et furiosus.[48]

No norte, ele adquiriu Valenciennes, que a ele se deu (1293). E, sem dúvida, ainda houve dinheiro envolvido nisto.
Valenciennes o aproximava da rica Flandres, tão boa para tomar por ser rica e por ser aliada dos Ingleses. Do lado da França
inglesa, ele comprara do necessitado Eduardo I o Quercy, terra medíocre, seca e montanhosa, mas de onde se descia para a
Guiana. Eduardo, à ocasião, encontrava-se atrapalhado nas guerras de Gales e da Escócia, onde não ganhava senão a glória.
Seria muito, é verdade, fundar a unidade britânica, fechar-se na ilha. Eduardo, para isso, fez esforços heróicos e também
cometeu incríveis barbáries. Mas em vão ele conseguiu quebrar as harpas de Gales, matar os bardos, fazer perecer o rei
David com o suplício dos traidores e transportar para Westminster o paládio da Escócia, a famosa pedra de Scone [49]; ele
não pôde nada terminar na ilha, nem no continente. Cada vez que Eduardo olhava na direção da França e desejava a ela
passar, tomava conhecimento de alguma nova má notícia do Border escocês ou das Marchas de Gales, algum novo movimento
de Llywelyn ou de Wallace [50]. Este último, chefe heróico dos clãs[51], era encorajado por Filipe o Belo, o rei-procurador
que nada mais tinha a fazer senão ficar parado: bastava-lhe voltar a atiçar seus cães de caça da Escócia contra Eduardo. Ele o
deixava, com prazer, se imortalizar nos desertos de Gales de Northumberland, instruía o processo contra ele à sua vontade e o
condenava por abandono da causa.

Assim, quando Filipe o Belo o viu ocupado em conter a Escócia sob o reinado de João Balliol[52], ele o citou para
responder pelas piratarias dos seus Gascões sobre os nossos Normandos. Ele citou esse rei, esse conquistador, para vir se
explicar perante aquilo a que chamava de “o tribunal dos pares”. Ele o ameaçou, depois o agradou, ofereceu-lhe uma princesa
da França pelo preço de uma submissão fictícia, de um penhor que tudo acomodaria. O arranjo foi que o Inglês abriu suas
praças, que Filipe as guardou e, então, este retirou suas ofertas. Esta grande província, este reino da Guiana, ele foi
escamoteado pela França.
Eduardo reclamou em vão. Ele pediu e obteve contra a Filipe a aliança do rei dos Romanos, Adolfo de Nassau, a dos
duques da Bretanha e do Brabant, dos condes de Flandres, de Bar e de Gueldres. Ele humildemente escreveu aos seus súditos
da Guiana, pedindo-lhes perdão por ter consentido no penhor[53]. Mas, muito ocupado na Escócia, ele mesmo não foi à
Guiana, e seu partido provou reveses. Filipe tinha por si o Papa (Bonifácio VIII), que lhe devia a tiara e que, para dar-lhe um
aliado, desligou o rei da Escócia dos juramentos que prestara ao rei da Inglaterra. Enfim, ele agiu tão bem, que os Flamengos,
descontentes de seu conde, o chamaram em socorro (Oudegherst, ‘Chron. de Flandres’, c. 131, f. 214) . Para sustentar a
guerra, os dois reis contavam com Flandres. A gorda Flandres era a tentação natural desses governos vorazes. Para todo esse
mundo de barões, de cavaleiros, que os reis da França desmamavam das cruzadas e das guerras privadas[54], Flandres era
seu sonho, sua poesia, sua Jerusalém. Todos estavam prontos para empreender uma jubilosa peregrinação às lojas de
Flandres, às especiarias de Bruges, aos finos tecidos de Ypres, às tapeçarias de Arras.

Parece que Deus fez esta boa Flandres, que a situou entre todos, para ser devorada por uns ou outros. Antes que a
Inglaterra fosse esta coisa colossal que hoje vemos, Flandres já era uma Inglaterra, mas já quão inferior e mais incompleta!
Tecelões sem lã, soldados sem cavalaria, mercadores sem marinha. E, hoje, essas três coisas, rebanho, cavalos, marinha, são
justamente o nervo da Inglaterra; são a matéria, o veículo e a defesa de sua indústria.

Não é tudo. Esse nome, FLANDRES, não significa um povo, mas uma reunião de vários países muito diferentes, uma
coleção de tribos, de aldeias, de vilas. Nada pode ser menos homogêneo. Sem falar da diferença de raça e de língua, sempre
houve ódio de cidade à cidade, da cidade ao campo, ódio de classes, ódio de ofícios, ódio entre o soberano e o povo[55].
Num país onde a mulher herdava e comunicava a soberania, o soberano era frequentemente um marido estrangeiro. A
sensualidade flamenga, a materialidade desse povo de carne, aparece na precoce indulgência dos Costumes de Flandres para a
mulher e para o bastardo[56]. A mulher flamenga trouxe, assim, pelo casamento, senhores de todas as nações, um
Dinamarquês, um Alsaciano; depois, um vizinho do Hainaut, depois um príncipe de Portugal, então Franceses de diversos
ramos: Dampierre (Bourbon), Luís de Mâle (Capeto), Filipe o Ousado (Valois); enfim, Áustria, Espanha, de novo Áustria. Eis
agora (NT: 1837) Flandres sob o reinado de um Saxão (Coburgo).

Flandres se queixava do conde francês, Gui Dampierre. Filipe se ofereceu como protetor aos Flamengos. Gui se
dirigiu aos Ingleses e quis conceder sua filha Filipa ao filho de Eduardo. Esse casamento contra o rei da França não podia,
segundo a lei feudal, ocorrer sem o assentimento do rei da França, suzerano de Gui Dampierre. Filipe, entretanto, não
reclamou; declarou hipocritamente que, sendo padrinho da jovem, ele não poderia deixá-la cruzar o canal sem antes abraçá-la
(Oudegherst, ‘Chron. de Flandres’, c. 130, f. 218. Sism. VIII, 496) . Recusar seria declarar a guerra cedo demais. Vir para a
França seria arriscar permanecer em Paris. Gui veio e, de fato, ficou. O pai e a filha foram detidos na torre do Louvre. Filipe
arrebatou de Eduardo seu aliado e sua mulher, como fizera com a Guiana. O conde, na sequência, escapou, é verdade, mas a
jovem morreu, para grande prejuízo de Filipe, que tinha interesse em guardar tal refém e a quem se acusou da morte da mesma.

Eduardo acreditava ter amotinado todo o mundo contra seu desleal inimigo. O imperador Adolfo de Nassau, pobre
principezinho apesar de seu grande título, teria prazeirosamente guerreado às expensas de Eduardo, como outrora Otto por
João e, como mais tarde, Maximiliano por Henrique VIII, a cem escudos por dia. Os condes de Savóia, de Auxerre, de
Montbeliard, Neuchâtel, aqueles do Hainaut e de Gueldres, o duque do Brabant, os bispos de Liége e de Utrecht, o arcebispo
de Colônia, todos prometiam atacar Filipe, todos recebiam o dinheiro inglês e todos permaneceram tranquilos, com exceção
do conde de Bar: Eduardo os pagava para agir, Filipe para se repousarem.

A guerra se fazia assim, sem ruído, nem batalha. Era uma luta de corrupção, uma batalha de dinheiro, onde um
aguardava a ruína do outro para ver quem primeiro seria arruinado. Era preciso dar aos amigos, dar aos inimigos. Débeis e
miseráveis eram os recursos dos reis de então para suportar tais despesas. Eduardo e Filipe, é verdade, expulsaram os judeus
e ficaram com seus bens[57]; mas o judeu é escorregadio, ele não se deixa pegar. Ele se escoava da França e encontrava um
jeito de levá-los. O rei da França, que possuía banqueiros italianos como ministros, foi aconselhado, sem dúvida por eles, a
extorquir os Italianos, os Lombardos que exploravam a França e que eram como uma variedade da espécie judia. Depois, para
mais seguramente pegar todo aquele que comprava e que vendia, o rei tentou, pela primeira vez, esse triste meio tão
empregado no século XIV: a alteração da moeda (Leblanc, ‘Traité des monnaies’, p. 202). Era um imposto fácil e tácito, uma
bancarrota secreta, ao menos nos primeiros momentos. Mas, logo, todos dela se aproveitavam: todos pagavam suas dívidas
com moeda fraca. O rei aí ganhava menos que a multidão de devedores sem fé. Enfim, recorreu-se a um meio mais direto, o
imposto universal da maltôte (Guill. Nangiac, ann. 1296, p. 51).

Este nome vil, encontrado pelo povo, foi desafiadoramente aceito pelo próprio rei. Era um último meio, uma
invenção pela qual, se restasse ainda alguma substância, algum pouco a sorver do tutano do povo, podia-se daí sugá-lo[58].
Mas tinha-se dificuldade em apertar e torcer. O paciente estava tão seco, que a nova máquina não podia espremer quase nada.
O rei da Inglaterra também nada conseguia tirar dos seus: sua angústia o desesperava; num dos seus parlamentos, ele foi visto
a chorar.

Entre este rei esfaimado e este povo ético havia, entretanto, alguém rico. Este “alguém” era a Igreja. Arcebispos e
bispos, cônegos e monges, antigos monges de São Bento, monges novos ditos mendicantes, todos eram ricos e rivalizavam em
opulência. Todo este mundo tonsurado crescia com as bençãos do céu e com a gordura da terra. Era um pequeno povo feliz,
obeso e reluzente no meio do grande povo esfomeado que começava a olhar aquele de través.

Os bispos alemães eram príncipes e recrutavam exércitos. A igreja da Inglaterra possuía, narra-se, a metade das
terras da ilha. Ela tinha, em 1337, setecentos e trinta mil marcos de renda. Hoje, é verdade, o arcebispo de Canterbury não
recebe, por ano, senão hum milhão e duzentos mil francos, e aquele de York oitocentos mil. Quando a Restauração preparava a
expedição da Espanha, em 1822, soubemos que o arcebispo de Toledo mandava distribuir, todo dia, à porta de suas fazendas e
de seus palácios, dez mil sopas e o de Sevilha seis mil[59].

O confisco da Igreja foi o pensamento dos reis depois do século XIII, a causa principal das suas lutas contra os
papas; toda a diferença foi que os protestantes tomaram, enquanto os católicos se fizeram dar. Henrique VIII empregou o
cisma, Francisco I a Concordata.

Qual deles, então, no século XIV, o rei ou a Igreja, devia doravante explorar a França? essa era a questão. Já quando
Filipe impôs ao povo o terrível imposto da maltôte, quando alterou as moedas, quando despojou os Lombardos, súditos ou
banqueiros da Santa Sé, ele atingiu Roma direta ou indiretamente; ele a arruinava, ele cortava seus víveres[60].

Bonifácio usou, enfim, de represálias. Em 1296, na sua bula Clericis Laicos[61], ele declara excomungados de fato
todo sacerdote que pagar, todo laico que exigir, subvenção, empréstimo ou doação, sem a autorização da Santa Sé; e isto sem
que qualquer ranque social ou qualquer privilégio pudesse excepcioná-la. Ele assim anulava um privilégio importante de
nossos reis que, totalmente excomungados que estivessem como reis, podiam sempre, em sua capela, e a portas fechadas,
atender à missa e comungar.

No mesmo momento, sob pretexto da guerra da Inglaterra, Filipe proibia a exportação de ouro, prata, armas, dinheiro
etc. Era esbofetear Roma bem mais que a Inglaterra.

Nada de mais misticamente altivo, de mais paternalmente hostil, que a bula em resposta à proibição de Filipe: “Na
doçura de um inefável amor (Ineffabilis amoris dulcedine sponso suo), a Igreja, unida ao Cristo, seu esposo, Dele recebeu os
dons, as graças mais amplas, especialmente a dádiva da liberdade. Ele desejou que a adorável esposa reinasse, como mãe,
sobre os povos fiéis. Quem, então, não temerá ofendê-la, provocá-la? Quem não sentirá que ofende o Esposo na pessoa da
esposa? Quem ousará atentar contra as liberdades eclesiásticas, contra seu Deus e seu Senhor? Sob qual escudo ele se
esconderá, para que o martelo do poder do alto não o reduza a pó e a cinza?... Ó, meu filho! Não fecha, jamais, o ouvido à voz
paternal, etc...”.

Ele, em seguida, incentiva o rei a bem examinar sua situação: “Tu não consideraste com prudência as regiões e os
reinos que circundam o teu, as vontades daqueles que os governam, nem, talvez, os sentimentos dos teus súditos nas diversas
partes dos teus estados. Ergue os olhos à tua volta, e vê, e reflete. Considera que os reinos dos Romanos, dos Ingleses, da
Espanha, te circundam de todos os lados; considera o poder dos mesmos, sua bravura, a quantidade de seus habitantes, e tu
claramente reconhecerás que não era o tempo, que não era o dia de atacar, de ofender à nós e à Igreja por meio de tais
estocadas... Julga tu próprio quais devem ser as considerações da sé apostólica quando, nestes dias mesmo em que estávamos
ocupados do exame e da discussão dos milagres que são atribuídos a teu avô de gloriosa memória, tu nos enviaste tais dádivas
que provocam a cólera de Deus e merecem, não digo apenas a nossa indignação, mas a da própria Igreja...”

“Em qual tempo teus ancestrais, e mesmo tu, recorrestes à ajuda desta Sé, sem que vossa petição não houvesse sido
ouvida? E se uma grave necessidade novamente ameaçasse teu reino, não somente a Santa Sé te acordaria as subvenções dos
prelados e das pessoas eclesiásticas mas, se o caso o exigisse, te estenderia as mãos até aos cálices, até às cruzes e aos vasos
sacros, ao invés de não defender eficazmente um tal reino, que é tão caro à Santa Sé e que a esta foi, por muito tempo,
devotado... Nós então exortamos tua Serenidade Real, a rogamos e a engajamos a receber com respeito os remédios que uma
mão paternal te oferece, a aquiescer com os conselhos salutares para ti e para teu reino, a corrigir teus erros, e a não deixar,
de forma alguma, tua alma ser seduzida por um falso contágio. Conserva nossa benquerença e aquela da Santa Sé, conserva um
bom renome entre os homens, e não nos force a recorrer a outros remédios, a remédios inusitados; mesmo quando a justiça a
isso nos forçasse e nos fosse um dever, nós não os ministraríamos senão com lamento e apesar de nós” (Dupuy, ‘Différ.’, p.
17-19).

Essas graves palavras, que misturam suavidade e ameaças, deviam causar impressão. Nenhum pontífice jamais fora,
até aí, mais parcial para nossos reis que Bonifácio. A Casa da França o fizera Papa, é verdade; mas, em retorno, ele a fazia
rainha, tanto quanto estivesse nele fazê-la. Ele chamara para a Itália Carlos de Valois e, enquanto aguardava o advento do
império latino de Constantinopla, ele o criara Conde da Romagna, capitão do patrimônio de São Pedro, senhor da Marche de
Ancona. Ele obteve para os príncipes franceses o trono da Hungria; ele fez o que pôde para levá-los ao trono imperial e ao de
Castela. Em 1298, escolhido por árbitro entre os reis da França e da Inglaterra, ele tentou reaproximá-los por casamentos e,
por uma sentença provisória, adiou as restituições que Filipe devia ao Inglês.

O Papado, todo caduco que já fosse, ainda aparecia como árbitro do mundo. Bonifácio VIII fora chamado para julgar
entre a França e a Inglaterra, entre a Inglaterra e a Escócia, entre Nápoles e Aragão, entre os imperadores Adolfo de Nassau e
Alberto d’Áustria. Não era isso o suficiente para o Papa se iludir a respeito de sua verdadeira força?

A enfatuação foi ao cúmulo quando, no ano de 1300, Bonifácio prometeu remissão dos pecados a todos aqueles que
viessem visitar, durante trinta dias, as igrejas dos Santos Apóstolos. Esse Jubileu lembrava, de uma só vez, aquele dos Judeus
e as festas seculares da Roma pagã. Sabe-se que o Jubileu Moisaico, ocorrendo a cada cinquenta anos, devia levar a liberdade
aos escravos, as terras alienadas ao seu primeiro possuidor; ele, o Jubileu, devia anular a história e desfazer o tempo, por
assim dizer, em nome do só Eterno. A antiga Roma, sob um outro ponto de vista diferente, tomou emprestada dos Etruscos a
doutrina das Eras (‘Hist. Rom.’, I, 73, t.); mas não era para reconhecer a mobilidade desse mundo, a mortalidade dos
impérios. Roma se acreditava Deus, ela se julgava imortal e invencível e, no início de cada século, solenizava sua eternidade.

No ano 1300, a fé ainda era grande. A turba foi prodigiosa em Roma [62]. Contava-se os peregrinos por centenas de
milhares e, logo, não havia mais como contar. Nem as casas, nem as igrejas, foram suficientes para recebê-los; eles
acamparam pelas ruas e praças, sob abrigos construídos às pressas, sob telhados, sob tendas e sob a abóbada do céu. Poder-
se-ia afirmar que o tempo, tendo terminado, o gênero humano vinha perante seu Juiz no vale de Josafá.

Para que se possa avaliar o efeito desse prodigioso espetáculo, é preciso ver ainda Roma, toda caída que é, é preciso
vê-la durante a Semana Santa e na gloriosa festa de Páscoa. Quase se esquece, nesses grandes dias, que essa é a triste Roma, a
viúva de duas antiguidades.

Qualquer que tenha sido o motivo de Bonifácio VIII, fiscal ou político, eu não o quero mal por esta bela invenção do
Jubileu. Estou certo que milhares de homens devem ter-lhe agradecido de coração. Quem não gostaria de poder, desta forma,
colocar uma pedra sobre o caminho do tempo, encontrar um ponto de parada em sua vida, entre os arrependimentos do
passado e as esperanças de um futuro melhor ou menos lamentável? Quem não gostaria de, por um momento, subindo por esta
brutal escarpa, frear-se um tempo e tomar um pouco de fôlego ao meio-dia, nel mezzo cammin di nostra vita[63]? Todos nós
temos grande necessidade de um repouso a meio caminho, precisamos todos de uma estação, de um jubileu.

E por que deveríamos zombar dessas eras cândidas que acreditavam que se podia fugir do mal mudando-se de lugar,
viajar do pecado à santidade, deixar o diabo com a túnica que despimos para tomarmos aquela do peregrino? E, então, não é
alguma coisa poder escapar às influências dos lugares, dos hábitos, de se apatriar, de se orientar para uma nova vida? Acaso
não existe um poder maligno de enfatuação e cegueira nesses lugares onde o coração se prende, sejam eles a Charmettes de
Jean-Jacques, ou a Pinada de Byron, ou este lago de Aachen no qual, segundo a tradição, Carlos Magno foi enfeitiçado?[64]

Não nos espantemos se nossos avós tanto amaram as peregrinações, se atribuíram à visita de santuários longínquos
uma virtude de regeneração. “O ancião, todo branco e encanecido, se separa dos lugares onde seguiu sua estrada e de sua
família alarmada, que se vê privada de um pai querido. – Velho, fraco e sem fôlego, ele se arrasta como pode, ajudado por sua
boa-vontade, ainda que esteja completamente alquebrado pelos anos, pela fadiga do caminho. – Ele vem à Roma para aí ver o
semblante Daquele que, lá do alto, ele muito aguarda rever no céu...” (Petrarca, sonn. 14).

Mas há os que não chegam, que ficam pelo caminho... A maioria dos nossos leitores aqui se lembra do pequeno
quadro de Robert, a peregrina romana sentada na campanha árida: ela nem vê seus pés ensanguentados, nem seu rebento sobre
seus joelhos, sedento e ofegante, enquanto mira a colina abençoada que plana no horizonte distante: Monte di joia!...
E quando o fim da viagem é Roma, então! Quando, na renovação do século, no momento solene em que soa uma hora
da vida do mundo, alcançamos a grande cidade e que vemos esses monumentos, essas velhas tumbas que, até então, delas
somente se ouvira falar e celebrar, quando as vemos e as tocamos, e que nos encontramos contemporâneos de todos os
séculos, e dos cônsules e dos mártires, vamos de estação em estação, do Coliseu ao Capitólio, do Panteão a São Pedro e, após
termos revivido toda a história, após termos visto toda morte e toda ruína, partimos em marcha de volta à pátria, de volta ao
túmulo natal, mas com menos arrependimentos e previamente consolados para morrer.

A Igreja, como esses milhares de homens que vinham visitá-la, encontrou neste Jubileu do ano 1300 o ponto sublime
e culminante de sua vida histórica. A queda começou a partir daí. Nesta multidão encontrava-se os homens temíveis que iriam
abrir um mundo novo. Uns, frios e impiedosos políticos, como o historiador Giovanni Villani; outros, tristonhos e soberbos,
como Dante, que também estava prestes a fazer seu próprio Jubileu: o Papa chamara a Roma todos os vivos; o poeta
convocou, em sua Commedia, todos os mortos, fez a revista do mundo findo, o separou e o julgou; a Idade Média, assim como
a antiguidade, compareceu à sua frente e nada lhe foi escondido. A palavra do santuário foi dita e profanada. O selo foi
arrebatado, quebrado: jamais foi novamente encontrado. A Idade Média vivera; a vida é um mistério que perece assim que
consegue se revelar. A revelação foi a Divina Commedia, a catedral de Colônia, as pinturas do Campo Santo de Pisa. A arte
vem, assim, terminar, fechar uma civilização, coroá-la, enterrá-la gloriosamente no túmulo.

Não acusemos o Papa, este octogenário, velho advogado nutrido nas artimanhas e nas mais prosaicas intrigas[65], por
ter se deixado vencer pela grandeza da poesia desse momento, quando viu o gênero humano reunido em Roma e de joelhos
perante si... Há, além disso, um sombrio poder de vertigem nesta cidade trágica. Os soberanos de Roma, seus Imperadores,
frequentemente pareciam loucos. E, mesmo no século XIV, Cola de Rienzo, o filho de uma lavadeira, tornando-se tribuno de
Roma, não girava sua espada para a três partes do globo senão dizendo: “Aqui e ali, também acolá, pertencem a mim”[66].

Por mais forte razão, o Papa se achava o senhor do mundo. Quando Alberto d’Áustria se fez Imperador pela morte de
Adolfo de Nassau, Bonifácio, indignado, pôs a coroa sobre sua própria cabeça, pegou uma espada e exclamou: “Sou eu quem
é César, sou eu quem é o Imperador, sou eu quem defenderei os direitos do Império”. No Jubileu de 1300, ele se mostrou a
toda essa multidão de todas as nações com as insígnias imperiais: ele mandou levarem à sua frente uma espada e o cetro sob o
globo do mundo, enquanto um arauto bradava: “Aqui há duas espadas: Pedro, tu vês aqui teu sucessor; e vós, ó Cristo! olhai
vosso vigário!”. Ele assim explicava as duas espadas que estavam no lugar onde Jesus Cristo participou da Ceia com seus
apóstolos.

Essa jactância pontifícia devia perpetuar a guerra dos dois poderes, eclesiástico e civil. A luta, que parecia
terminada com a Casa da Suábia, foi retomada por aquela da França. Guerra de idéias, não de pessoas, de necessidade, não de
vontade. O piedoso Luís IX a inicia, o sacrílego Filipe IV a continua.

“Reconhecer dois poderes e dois princípios”, diz Bonifácio na sua magnífica bula Unam sanctam, “é ser herético e
maniqueísta”. Mas o mundo nasceu maniqueísta e como tal morrerá; ele sempre sentirá em si a luta dos dois princípios. Nós
mui desejaríamos não acreditar nesta dualidade, mas a encontramos em qualquer lugar, inclusive em nós mesmos... O que
procuras tu? a paz. É sempre a mesma palavra no mundo desde que, há seis ou oito mil anos, existe um mundo. Mas o homem
é e sempre será dúplice: ele sempre terá em si o Papa e o Imperador[67].

A paz! Ela está na harmonia, sem dúvida; mas, de época em época, ela foi procurada na unidade. A partir do segundo
século, Santo Ireneu escreveu, contra os Gnósticos, seu livro “Da unidade do princípio do mundo”: De Monarchiâ. É também
o título do livro de Dante: De Monarchiâ: Da unidade do mundo social[68].

O livro de Dante é bizarro. Sua fórmula é a paz. Como condição do desenvolvimento, a paz sob um monarca único.
Este monarca, tudo possuindo, nada poderá desejar e, portanto, é impecável. O que causa o mal é a concupiscência; onde não
houver limite, o que desejar? qual concupiscência poderá daí nascer?[69] Tal é a argumentação de Dante. Resta a provar que
este ideal possa ser real, que este real seja o povo romano, que, enfim, o povo romano[70] tenha transmitido sua soberania ao
imperador da Alemanha.

Este livro é um belo epitáfio gibelino para o Império Alemão, e este, em 1300, não é mais exclusivamente a
Alemanha mas, doravante, todo império, toda realeza; é o poder civil em qualquer região, sobretudo na França. Os dois
adversários agora são a Igreja e a filha primogênita da Igreja. Dos dois lados, pretensões sem limites, dois infinitos que se
encaram. O rei, se não for o único rei, é, ao menos, o maior rei do mundo; desde São Luís, ele é o mais reverenciado. Filho
primogênito da Igreja, ele deseja ser mais velho que sua mãe: “Antes que houvesse clérigos”, diz, “o rei tinha a guarda do
reino da França”[71].

A briga já havia se iniciado à ocasião dos bens da Igreja. Mas havia outros motivos de irritação. Bonifácio decidira
entre Filipe e Eduardo, não como amigo e pessoa privada, mas como Papa. O conde do Artois, indignado da parcialidade do
pontífice pelos Flamengos, arrancou a bula papal das mãos do legado e a jogou no fogo. Em represália, Bonifácio favoreceu
Alberto d’Áustria contra Carlos de Valois, que tinha pretensões em relação à coroa imperial. De seu lado, Filipe pôs a mão
sobre os regalos de Laon, de Poitiers e de Reims. Ele acolhia os inimigos mortais de Bonifácio, os Colonna, esses bravos
Gibelinos, esses chefes dos bandidos romanos contra os Papas.

A explosão teve lugar a respeito de um bem mal adquirido que, há um século, era objeto de disputa entre o Papa e o
rei. Eu falo desse despojo ensangüentado do Languedoc. Bonifácio VIII pagou por Inocente III. A homenagem feudal de
Narbonne, feita diretamente ao rei pelo visconde, era vivamente reclamada pelo arcebispo (1300). O arcebispo quis chegar a
bons termos com o rei, mas o Papa o ameaçou de excomunhão se ele tratasse sem a permissão da Santa Sé. Ele citou o homem
do rei perante a corte papal e, mais, ameaçou Filipe se este não desistisse do condado de Melgueil, no qual os oficiais do rei
espoliavam a igreja de Maguelone (Dupuy, ‘Différ.’, p. 9).

Não foi tudo: o Papa, apesar de Filipe, criara, neste perigoso Languedoc, às portas do conde de Foix e do rei de
Aragão, um novo bispado tirado da diocese de Toulouse, o bispado de Pamiers. Ele nomeara bispo um homem seu, Bernard
de Saisset. Foi justamente esse Saisset quem o Papa enviou ao rei para lembrá-lo de sua promessa de partir em cruzada, bem
assim para intimá-lo a devolver à liberdade o conde de Flandres e sua filha. Tais palavras não se diziam impunemente a
Filipe o Belo.

Este Saisset, que falava tão ousadamente, já tivera sido apontado ao rei, pelo bispo de Toulouse, como o autor de um
vasto complô que tiraria todo o Midi dos Franceses. Saisset pertencia à família dos antigos viscondes de Toulouse[72]. Ele
era o amigo de todos os homens distintos, de toda a nobreza municipal desta grande cidade[73]. Ele sonhava com a fundação
de um reino do Languedoc[74] em benefício do conde de Foix ou do conde de Comminges, que descendia dos Raimundos de
Toulouse, tão lamentados por seus antigos súditos[75].

Esses grandes senhores do Midi não tinham nem as forças, nem o amor do país, nem a altiva coragem que uma tal
empreitada demandava. O conde de Comminges persignou-se ao ouvir propostas tão ousadas: “Este Saisset é antes um diabo
que um homem”, ele disse[76]. O conde de Foix encenou um papel mais odioso. Ele recebeu as confidência de Saisset para
transmiti-las ao rei pelo bispo de Toulouse[77]. Soube-se por ele que Saisset se encarregara de pedir para o filho do conde de
Foix a filha do rei de Aragão, o qual, dizia ele, era seu amigo (ibidem, primeira testemunha, p. 634). Ele também dissera:
“Os Franceses jamais farão bem mas, antes, muito mal ao país” (ibid., p. 645). Ele não desejava terminar, com o conde de
Foix, as disputas de seu bispado, a menos que este senhor se acordasse com os condes de Armagnac e de Comminges e, assim,
reunisse toda a região sob sua influência.

Atribuía-se a Saisset várias palavras picantes contra o rei: “Vosso rei da França”, ele dizia, “é um falsificador de
moedas. Seu dinheiro nada é senão excremento... Este Filipe o Belo não é nem homem, nem mesmo um animal: é uma imagem
e nada mais (Ibid., 22ª testemunha, p. 648 e 23ª, p. 649)... Os pássaros, conta a fábula, tomaram o duque por rei, grande e
belo pássaro, é verdade, mas o mais vil de todos. A pega veio um dia se queixar ao rei do gavião e o rei nada respondeu (nisi
quod flavit). Eis vosso rei da França: é o mais belo homem que se pode ver, mas ele não sabe senão olhar as pessoas[78]... O
mundo, hoje, está como morto e destruído por causa da malícia dessa corte (ibid., 22ª testemunha, p. 648)... Mas São Luís me
disse, mais de uma vez, que a monarquia da França pereceria naquele que fosse o décimo rei a partir de Hugo Capeto (ibid., p.
633 e 21ª testemunha, p. 648. Vide também p. 651).

Dois comissários de Filipe, um laico e um padre, vindo ao Languedoc para iniciar uma instrução contra Saisset, este
compreendeu seu perigo e desejou se salvar em Roma. Mas os homens do rei não lhe deram tempo, prendendo-o à noite em
sua cama, e o carregaram para Paris com seus servidores, os quais foram postos sob tortura. Ao mesmo tempo, o rei escreveu
ao Papa, não para se justificar por ter violado os privilégios da Igreja, mas para requerer a degradação do bispo antes de
matá-lo. A carta do rei respira uma estranha sede de sangue: “O rei requer ao soberano pontífice ministrar tal remédio,
exercer seu devido ofício, de tal sorte que este homem de morte (dictus vir mortis), cuja vida emporcalha inclusive o lugar em
que mora, que o prive de toda ordem, o despoje de todo privilégio clerical, e que o senhor rei possa, deste traidor de Deus e
dos homens, deste homem afundado na profundidade do mal, endurecido e sem esperança de correção, que o rei possa, pela
via da justiça, fazer um excelente sacrifício a Deus. Ele é tão perverso, que todos os elementos devem-lhe faltar na morte, pois
que ele ofende a Deus e a todas as criaturas”[79].
O Papa reclamou o bispo de volta, declarou suspenso o privilégio que os reis da França tinham de não serem
excomungados e convocou o clero da França a Roma para o 1º de novembro do ano seguinte. Enfim, dirigiu ao rei a bula
Ausculta fili (NT: “Escuta, filho”): “Escuta, meu filho, os conselhos de um pai terno”. O Papa começava por essas palavras
irritantes, das quais seus adversários souberam muito bem se aproveitar: “Deus nos constituiu, ainda que indignos, acima dos
reis e dos reinos, impondo-nos o jugo da servidão apostólica para arrancar, destruir, dispersar, dissipar e para edificar e
plantar, sob Seu nome e por Sua doutrina...” (‘Preuves du différend’, p. 48-52) . De resto, a bula era, sob forma paternal, uma
recapitualação de todos as razões do Papa e da Igreja.

O chanceler Pierre Flotte se encarregou de levar a resposta ao Papa, segundo a qual o rei não soltaria seu prisioneiro,
que o enviaria apenas à guarda do arcebispo de Narbonne, que o ouro e o dinheiro não mais sairiam da França e que os
prelados não iriam, de forma alguma, a Roma. Foi um rude insulto para o Papa, ainda triunfante de seu Jubileu, quando este
pequeno advogado zarolho[80] veio falar-lhe tão livremente. A altercação foi violenta. O Papa o olhou do alto: “Meu poder”,
ele disse, “encerra os dois”. Pierre Flotte respondeu por meio de um ácido distinguo: “Sim, mas vosso poder é verbal, o do
rei é real” (Dupuy, ‘Hist. du Différ.’, p. 11). O gascão Nogaret, que viera com Pierre Flotte, não pôde se conter e falou, com a
violência e o ímpeto meridional, sobre a própria conduta do Papa (Ibidem). Eles assim saíram de Roma, enraivecidos em seu
ódio de advogados contra os padres, tendo ultrajado o Papa e seguros de morrer se não se prevenissem.

Para sublevar todo mundo contra Bonifácio, era necessário tirar algumas proposições bem claras e bem chocantes da
açucarada tagarelice onde a corte de Roma adorava afogar sua intenção. Eles, então, entre si combinaram fabricar uma brutal
pequena bula onde o Papa cruamente expressasse todas as suas pretensões. Ao mesmo tempo, faziam correr uma falsa resposta
à falsa bula, onde o rei falva ao Papa com uma violência e uma grosseria populista. Esta resposta, bem entendido, não estava
destinada a ser enviada, mas devia ter dois efeitos: primeiro, ela degradava o poder sacrossanto contra o qual lançava-se
impunemente esta lama. Depois, ela indicava que o rei se sentia forte, o que é, de fato, o meio de sê-lo.

“Bonifácio, bispo, servo dos servos de Deus, a Filipe, rei dos Francos: teme Deus e observa Seus comandos. Nós
queremos que saibas que tu nos é submisso no temporal, como no espiritual; que a colação dos benefícios e das prebendas não
pertence, de forma alguma, a ti; que, se tens a guarda dos benefícios vacantes, é para seus frutos reservá-los aos sucessores.
Que, se tu conferiste algum deles a alguém, nós declaramos inválida esta colação e, se ela tiver sido executada, nós a
revogamos, declarando heréticos todos aqueles que pensam de outra maneira. Dado em Latrão, nas nonas de dezembro, no ano
VII de nosso pontificado”. É a data da bula Ausculta fili (Dupuy, ‘Preuves’, p. 44).

“Filipe, pela graça de Deus, rei dos Franceses, a Bonifácio, que se dá por Papa, pouca ou nenhuma saudação. Que tua
mui grande fatuidade saiba que não estamos submetidos a ninguém no temporal; que a colação das igrejas e das prebendas
vacantes nos pertence pelo direito real; que seus frutos são a nós; que as colações, feitas e a fazer por nós, são válidas para o
passado e para o porvir; que manteremos a posse delas de todo nosso poder, e que temos por loucos e insensatos aqueles que
acreditarem de outra forma”.

Essas estranhas palavras, que teriam, um século antes, armado todo o reino contra o rei, foram bem recebidas pela
nobreza e pelo povo das cidades. Deu-se, então, um passo a mais: comprometeu-se a nobreza contra o Papa. No dia 11 de
fevereiro de 1302, na presença do rei e de uma multidão de senhores e de cavaleiros, entre o povo de Paris, a pequena bula
foi queimada e esta execução foi, na sequência, alardeada ao som de trompas por toda a cidade[81]. Ainda faltam duzentos
anos para que um monge alemão venha a fazer, com sua autoridade privada, aquilo que Pierre Flotte e Nogaret agora fazem em
nome do rei da França.

Mas era necessário engajar todo o reino na querela. Fez-se, então, algo inusitado. O Papa convocara os prelados a
Roma para o 1º de novembro; o rei convocou os Estados para o 10 de abril; não apenas os estados do clero e da nobreza, não
mais os estados do sul, como São Luís reunira, mas o estados do sul e do norte, os estados das três ordens, clero, nobreza e
burguesia das cidades. Esses Estados-Gerais de Filipe o Belo são a era nacional da França, sua certidão de nascimento. E ela
foi, assim, batizada na basílica de Notre-Dame, onde se reuniram esses primeiros Estados. Tal como a Santa Sé, nos tempos
de Gregório VII e de Alexandre III, se apoiara no povo, o inimigo da Santa Sé agora chama o povo para si. Esses burgueses,
prefeitos, administradores e magistrados municipais, cônsules das cidades, sob qualquer forma humilde e servil que tenham
vindo, de início, repetir as palavras do rei e dos nobres, são, todavia, a primeira aparição do povo.

Pierre Flotte abriu os Estados (10 de abril de 1302) de uma forma hábil e ousada. Ele atacou as primeiras palavras
da bula Ausculta fili: “Deus nos constituiu acima dos reis e dos reinos...”. Depois, ele perguntou se os Franceses podiam, sem
covardia, se submeter a que seu reino, sempre livre e independente, fosse assim colocado na vassalagem do Papa. Era
confundir, engenhosamente, a dependência política, tocar a fibra feudal, despertar o desprezo do homem de armas contra o
sacerdote. O fervente conde do Artois, que já antes, das mãos do legado papal, arrancara e rasgara a bula Ausculta, tomou a
palavra e disse que, se conviesse ao rei tolerar ou calar-se com as iniciativas do Papa, os senhores não o fariam (Dupuy,
‘Hist. du Diff.’, p. 12). Essa bajulação brutal, sob forma de liberdade e de ousadia, foi aplaudida pelos nobres. Ao mesmo
tempo, fez-se com que assinassem e selassem uma carta em língua vulgar, não ao Papa, mas aos cardeais. A carta, por certo,
fora previamente escrita pelos cuidados do chanceler, pois era datada de 10 de abril, o mesmo dia em que os Estados foram
reunidos. Nesta longa epístola, os senhores, após terem desejado aos cardeais “contínuo crescimento da caridade, do amor e
de todas as boas venturas que fossem de seu desejo”, declararam que, quanto aos males que “aquele que, no presente, está no
trono do governo da Igreja”, diz terem sido cometidos pelo rei, eles não desejam, “nem eles, nem as universidades, nem o
povo do reino, receberem nem correção, nem pena, por outro foro que não seja o do nosso mencionado Sire, o Rei”. Eles
acusam “aquele que, no presente, está no trono do governo da Igreja” de extrair muito dinheiro da conferência e colação dos
arcebispos, bispos e outros benefíciários, com o que os próprios povos, que lhes são submissos, são gravados e extorquidos; e
nem os prelados podem dar seus benefícios aos nobres clérigos e a outros bem-nascidos e bem instruídos de suas dioceses,
por cujos antecessores as igrejas foram fundadas (idem, ‘Preuves’, p. 60-62). Os senhores, certamente com toda a alegria de
seus corações, assinaram essa última expressão, onde o hábil redator insinuava que os benefícios, fundados em sua maioria
por seus ancestrais, deviam ser dados a seus caçulas (cadetes) ou às suas criaturas, assim como se fazia na Inglaterra,
sobretudo depois da Reforma. Era anexar à derrota do Papa a devolução de bens imensos dos quais os senhores, nas eras de
fervor religioso, se despojaram em favor da Igreja[82].

A carta dos burgueses foi calcada na dos nobres, se julgarmos pela resposta dos cardeais. Mas ela não nos foi
conservada, seja porque não foi digna de ser levada em conta, seja porque temeu-se que a última das três ordens pudesse,
mais tarde, tirar vantagem da linguagem ousada que se lhe permitiu usar nesta ocasião.

A carta dos membros do clero é, bem ao contrário, moderada e suave. De início, ela é dirigida ao Papa: Sanctissimo
patri ac domino suo carissimo (NT: Santíssimo padre e senhor dos seus caríssimos). Eles expõem as razões do rei e
reclamam sua independência quanto ao temporal. Eles alegam que fizeram tudo o que puderam para suavizá-lo e que
suplicaram-lhe permitir que fossem lançados aos pés da beatitude apostólica. Mas que a resposta vinda do rei e dos barões
era a de que não lhes seria permitido sair do reino. Eles diziam estar vinculados ao rei por seu juramento de fidelidade à
conservação de sua pessoa, de suas honras e liberdades, àquela dos direitos do reino, “sobretudo porque vários de nós
possuímos ducados, condados, baronias e outros feudos no dito Reino”[83]. Enfim, nesta necessidade extrema, eles
recorreram à providência de Sua Santidade, “com palavras repletas de lágrimas e de soluços cheios de choro, implorando sua
clemência paternal, etc.[84]

Esta última carta, tão diferente da outra, contém, entretanto, o grande motivo da nobreza: “Os prelados não tem mais o
quê dar, nem mesmo o quê devolver, aos nobres, cujos ancestrais fundaram as igrejas”[85].

Enquanto a luta assim se encaminhava contra o Papa, uma grande e terrível notícia complicou o embaraço. Os
Estados haviam se reunido no dia 10 de abril. Mas, no dia 21 de março, o massacre das Vésperas Sicilianas fora renovado em
Bruges. Quatro mil Franceses foram degolados nesta cidade.

A nobreza estava reunida nos Estados. Bastava apenas fazê-la cavalgar na direção de Flandres, completamente
animada da cólera com a qual já se encontrava, toda inchada de orgulho feudal, e de fazer-lhe ganhar uma batalha sobre os
Flamengos que também fosse uma vitória sobre o Papa. Pierre Flotte, tão envolvido nesta causa, não podia perder o rei de
vista. Tão chanceler e homem de toga longa que fosse, ainda assim montou a cavalo na companhia dos homens de armas.

Os Flamengos, que tinham chamado os Franceses, foram cruelmente punidos. A malquerença mútua desabrochara
desde o primeiro dia. Eduardo (rei da Inglaterra), tendo abandonado o conde às suas próprias forças para fazer frente à
William Wallace, os Franceses o empurraram de praça em praça e o persuadiram a entregar-se a Filipe, que o trataria bem. O
bom tratamento, no entanto, foi o de ingressar na prisão do Louvre, onde já sua filha fora morta.

O rei dos Franceses não tinha nada mais a fazer senão tranquilamente tomar posse de Flandres. Ele mesmo sequer
suspeitava da importância de sua conquista. Quando ele trouxe a rainha consigo para ver essas ricas e famosas cidades de
Gant (Gand, Gent) e de Bruges, eles ficaram ofuscados, espantados, mesmerizados. Os Flamengos foram à frente, em número
grandioso, curiosos de ver um rei. Eles vieram bem vestidos[86], grandes e gordos, carregados de pesadas correntes de ouro,
acreditando prestar honras e agradar ao seu novo senhor. Foi tudo ao contrário: a rainha não os perdoou por serem tão
corajosos, às mulheres menos ainda: “Aqui”, ela disse com desprezo, “não percebo senão rainhas”[87].
O governador real Châtillon cuidou de curá-los deste orgulho, desta riqueza insolente. Ele negou-lhes suas eleições
municipais e retirou-lhes a direção de seus próprios negócios: era o mesmo que colocar os ricos contra si. Depois, ele
golpeou os pobres, fazendo incidir um imposto de um quarto sobre o salário quotidiano do trabalhador. O Francês,
acostumado a vexar nossas pequenas comunas, não sabia qual risco havia em colocar em movimento esses prodigiosos
formigueiros, esses formidáveis zangões de Flandres. O leão coroado de Gant, que dorme aos joelhos da Virgem, dormia mal
e despertava com frequência[88]. O sino de Rolando soava para o motim mais frequentemente que para o fogo. – Roland!
Roland! tintement, c’est incendie! volée, c’est soulèvement! (NT: Rolando! Rolando! tinido, é incêndio! repicado, é
sublevação)[89].

Não era difícil prever: o povo começava a falar baixo, a se reunir ao cair do dia[90]. Não havia vinte anos que as
Vésperas Sicilianas tinham ocorrido.

De início, trinta mestres de ofícios vieram se queixar, em Châtillon, que as obras ordenadas pelo rei não estavam
sendo pagas (Villani, l. VIII, c. 54, p. 82). O grande senhor, habituado aos direitos de corvéia e de provisão, achou a
reclamação insolente e os mandou prender. O povo em armas os libertou e, para grande temor dos ricos que se declararam a
favor da gente do rei, matou alguns homens. A questão foi levada ao Parlamento: eis o parlamento de Paris que julga Flandres,
como mui recentemente julgara o rei da Inglaterra.

O parlamento decidiu que os mestres de ofícios deviam retornar à prisão. Entre os chefes encontravam-se dois
homens amados pelo povo: o deão dos açougueiros e aquele dos tecelões. Este último, Peter Kœnig (Pedro o Rei) era um
homem pobre e de péssima aparência, pequeno e zarolho, mas um homem líder, um rude orador das ruas[91]. Ele arrastou o
povo dos ofícios para fora de Bruges, fê-los massacrar os Franceses nas cidades e castelos vizinhos. Então, à noite,
retornaram para suas casas. Correntes foram estendidas para impedir os Franceses de correrem a cidade ; cada burguês
encarregou-se de furtar ao cavaleiro alojado em sua casa sua sela e suas rédeas. No dia 21 de março de 1302, toda a gente do
povo pôs-se a bater em seus caldeirões[92]; um açougueiro foi o primeiro a dar o golpe, os Franceses foram, em todo lugar,
atacados e massacrados. As mulheres eram as mais furiosas a lançá-los pelas janelas; ou, então, eram conduzidos aos
mercados, onde eram degolados. O massacre durou três dias: mil e duzentos cavaleiros e dois mil sargentos a pé aí
pereceram.

Após isso, era obrigatório vencer. O povo de Bruges marchou a princípio sobre a cidade de Gant, na esperança que
esta grande cidade se unisse a eles. Mas os Gantenses foram retidos pelos grandes industriais[93], talvez, também, pela inveja
de Gant contra Bruges. Os Brugenses não tiveram por si senão os de sua própria terra e os de Ypres, Écluse, Newport,
Berghes, Furnes e Gravelines, que os seguiram voluntariamente ou por força. Eles puseram à testa de suas milícias um filho do
conde de Flandres; e um de seus netos, que era clérigo, desfez-se do hábito para bater-se com eles (Sism. IX, 96, G. Villani, l.
VIII, c. 55, p. 384).

Eles estavam em Courtrai, quando o exército francês veio acampar defronte. Esses artesãos, que jamais haviam
combatido em campo aberto, teriam, talvez, recuado com prazer. Mas a retirada era muito perigosa numa grande planície e
perante toda esta cavalaria. Eles então aguardaram corajosamente. Cada homem pousara à sua frente, à terra, seu guttentag ou
estaca ferrada. Sua divisa era bela: Scilt und vriendt, “meu amigo e meu escudo”. Eles desejaram comungar juntos e
mandaram dizer a missa. Mas como não podiam todos receber a eucaristia, cada homem se abaixou, pegou um pouco de terra e
a colocou na boca[94]. Os poucos cavaleiros mandaram seus cavalos de volta e, ao mesmo tempo em que assim se faziam
infantes, eles tornaram cavaleiros os chefes dos ofícios. Todos sabiam que não havia graça a esperar. Repetia-se que o
governador Châtillon chegava com tonéis cheios de cordas para estrangulá-los[95]. Dizia-se que a rainha recomendara aos
Franceses que, quando matassem os porcos flamengos, não poupassem as leitoas flamengas[96].

O condestável Raul de Nesle propunha contornar os Flamengos e isolá-los de Courtrai. Mas o primo do rei, Roberto
do Artois, que comandava o exército, disse-lhe brutalmente: “Tendes vós medo desses coelhos ou tendes vós o pêlo deles?”.
O condestával, que desposara uma filha do conde de Flandres, sentiu o ultraje e orgulhosamente respondeu: “Sire, se vierdes
para onde irei, ireis muito depois!”. Ao mesmo tempo, ele se lançou às cegas à testa dos cavaleiros no meio de uma nuvem de
poeira de julho (11 de julho de 1302). Todos, esforçando-se em segui-lo e temendo ficar na retaguarda, os últimos
empurravam os primeiros que, por sua vez, ao se aproximarem dos Flamengos, encontraram o que normalmente se encontra em
qualquer canto desta região cortada por valas e canais: uma vala de cinco braças de largura[97]. Os cavaleiros aí caíram, aí
se amontoaram e, sendo a vala em forma de meia-lua, não havia meio de escaparem pelos lados. Toda a cavalaria da França
veio nela se enterrar: Artois, Châtillon, Nesle, Brabant, Eu, Aumale, Dammartin, Dreux, Soissons, Tancarville, Viena, Melun,
um grande número de outros senhores e, também, o chanceler Pierre Flotte que, indubitavelmente, não esperava perecer em tão
gloriosa companhia.

Os Flamengos matavam como queriam esses cavaleiros atirados da sela; eles calmamente os escolhiam na vala.
Quando as couraças resistiam, eles as abalavam com malhos de chumbo ou ferro[98]. Eles tinham entre si um bom número de
monges operários (Meyer, 77) que se encarregaram, em boa consciência, deste fardo sangrento. Apenas um só desses monges
pretendia ter esmagado quarenta cavaleiros e 1400 infantes[99]; evidentemente, o monge se vangloriava. Quatro mil esporas
douradas (um outro diz setecentas) foram dependuradas na catedral de Courtrai. Triste despojo que levou desgraça à cidade:
oitenta anos depois, Carlos VI viu as esporas e mandou massacrar todos os habitantes.

Esta terrível derrota, que exterminara toda a vanguarda do exército da França, quer dizer, a maioria dos grandes
senhores, esta batalha que abria tantas sucessões, que fazia cair tantos feudos para menores sob a tutela do rei, enfraqueceu
sem dúvida, por um breve momento, seu poder militar, mas nada retirou de seu vigor contra o Papa. Em um sentido, a realeza
estava até mais fortificada: quem sabe se o Papa não teria encontrado uma maneira de virar contra o rei alguns desses grandes
feudatários que haviam firmado, é verdade, a famosa carta, mas que, retornando da guerra de Flandres, voltando ricos e
vencedores, teriam menos a temer do monarca?

O Papa renunciava em confundir os dois poderes, como, até então, parecia fazê-lo. Mas, quando se tomou
conhecimento, em Roma, da derrota de Filipe em Courtrai, a corte pontifícia mudou de linguagem: um cardeal escreveu ao
duque da Borgonha que o rei estava excomungado por ter proibido os prelados de irem a Roma, que o Papa não podia
escrever a um excomungado, que era necessário, antes de tudo, que o rei fizesse penitência. Neste ínterim, entretanto, os
prelados, aderindo ao Papa pela derrota do rei, partiram para Roma ao número de quarenta e cinco. Era como uma deserção
em massa da igreja galicana. O rei perdia, de uma só vez, todos os seus bispos, tal como vinha de perder quase todos os seus
barões em Courtrai[100].

Esse governo de indivíduos da lei exibiu um vigor e uma atividade extraordinários. No dia 23 de março, uma grande
Ordenação muito popular foi proclamada para a reforma do reino. O rei nela prometeu boa administração, justiça igual,
repressão da venalidade, proteção aos eclesiásticos, consideração aos privilégios baroniais, garantia das pessoas, dos bens,
dos costumes (Ord., I, p. 354). Ele prometia a suavidade e assegurava a força. Ele reergueu o Chatêlet[101] e sua polícia
armada, seus sargentos; sargentos a pé, sargentos a cavalo, sargentos comuns, sargentos-patrulha (Ord., I, p. 352).

Os dois adversários, prestes a se chocar, não quiseram deixar nada atrás de si. Eles sacrificaram tudo no interesse
desta grande luta. O Papa se acomodou com Alberto d’Áustria e o reconheceu como Imperador: era-lhe necessário alguém
para opor ao rei da França. O rei comprou a paz aos Ingleses pelo enorme sacrifício da Guiana (20 de maio). Qual não deve
ter sido sua dor quando lhe foi necessário entregar a seu inimigo esta rica região, este reino de Bordeaux (Rymer, Act. Publ.,
II, p. 923, 934. Sism., IX, 107).

Mas é que se fazia preciso vencer ou morrer[102]. No dia 12 de março de 1303, o próprio homem do rei, o sucessor
de Pierre Flotte, este ousado gascão chamado Nogaret, leu e assinou um furioso manifesto contra Bonifácio[103]:

“O glorioso príncipe dos apóstolos, o bem-aventurado Pedro, falando em espírito, nos disse que, assim como nos
tempos antigos, também no futuro, viriam falsos profetas que maculariam a estrada da verdade e que, em sua avareza, em suas
falaciosas palavras, nos negociariam, a exemplo desse Balaão que amou o salário da iniqüidade. Balaão teve por corretivo e
advertência um animal que, tomando a voz humana, proclamou a tolice do falso profeta... Essas coisas anunciadas pelo Pai e
Patriarca da Igreja, nós as vemos, agora, realizadas ao pé da letra. De fato, na cadeira do bem-aventurado Pedro, senta-se este
mestre das mentiras que, embora Mal-fazendo de toda forma, se faz chamar Boni-fácio[104] Ele não entrou pela porta no
curral do Senhor, nem como pastor e obreiro mas, antes, como ladrão e salteador.... O verdadeiro marido ainda vivente
(Celestino V), ele não temeu estuprar a Esposa com um abraço criminoso. O verdadeiro marido, Celestino, não consentiu com
este divórcio. Em efeito, como dizem as leis humanas: nada mais contrário ao consentimento que o erro... Não se pode casar
aquele que, enquanto vive o marido digno, maculou um casamento com adultério. Ora, como aquilo que se perpetra contra
Deus é uma falta e uma injúria contra todos e que, em um crime tão grande, admite-se ao testemunho o primeiro que
comparece, mesmo a mulher, mesmo uma pessoa infame, Eu então, assim como o animal que, pela virtude do Senhor, tomou a
voz do homem perfeito para repreender a tolice do falso profeta prestes a amaldiçoar o povo abençoado, eu vos dirijo minha
súplica, ó mui excelente Príncipe, senhor Filipe, rei da França pela graça de Deus, para que, a exemplo do anjo que
apresentou a espada nua a este amaldiçoador do povo de Deus, vós, que estais ungido para a execução da justiça, oponhais a
espada contra este outro e mais funesto Balaão e o impedi de consumar o mal que ele prepara para o povo”.
Nada ficou decidido. O rei ainda tropegava. Ele permitiu a três bispos justificarem a proibição que ele fizera aos
prelados. O Papa enviou um legado, sem dúvida para sondar o clero da França, e ver se o rei desejava mudar. Mas nada se
moveu. O rei disse ao legado que tomaria por árbitros os duques da Bretanha e da Borgonha: era o mesmo que lisonjear a
nobreza e com ela se assegurar; de resto, ele nada mais cedia. Então, o Papa dirigiu ao legado uma bula na qual declarava que
o rei incorrera na excomunhão por ter impedido os prelados de se apresentarem em Roma.

O legado deixou a bula e fugiu. O rei prendeu dois padres que lhe foram apresentados com o legado e a bula, bem
assim os eclesiásticos que a copiaram. A bula estava datada de 16 de abril. Dois meses após (dia a dia), os dois advogados
que sucederam à Pierre Flotte agiram contra Bonifácio: Plasian acusou e Nogaret executou. O primeiro, na presença dos
barões reunidos nos Estados, no Louvre, requisitou a presença de Bonifácio no próximo encontro do conselho e apelou ao rei.
Às acusações precedentes, Plasian acrescentou a de heresia[105]. O rei subscreveu o apelo e Nogaret partiu para a Itália.

Para sustentar esse passo, o rei não se contentou com o assentimento coletivo dos Estados. Ele redigiu cartas
individuais aos prelados, às igrejas, às cidades, às universidades; essas cartas foram levadas, de província em província, pelo
visconde de Narbonne e pelo próprio acusador, por Plasian[106]. O rei roga e requer consentirem com o concílio: Nos
requirentes consentire (Dupuy, ‘Pr.’, p. 110). Não teria sido seguro recusar à face do rosto do acusador. Ele reuniu mais de
setecentas adesões (Dupuy, ‘Hist. du Diff.’, p. 19). Todo mundo subscrevera, mesmo aqueles que, no ano anterior, após a
derrota do rei na Batalha de Courtrai, tinham, apesar do rei, se apresentado perante o Papa: o sequestro dos bens temporais
dos quarenta e cinco bastou para convertê-los ao partido do rei. Salvo Cîteaux, que o Papa ganhara por um favor recente
(Dupuy, ‘Preuves’, p. 85) e que se dividiu, todos deram a Plasian cartas de adesão ao concílio.

Os corpos mais favorecidos pelos Papas se declararam a favor do rei: a Universidade de Paris, os dominicanos da
mesma cidade, os menores[107] da Turânia. Alguns, como um prior de Cluny e um Templário, aderiram, mas sub
protestationibus (Dupuy, ‘Pr.’, p. 134-137).

O Papa ainda causava-lhes muito medo. Era preciso, em troca, que o rei escrevesse cartas pelas quais ele, a rainha e
os jovens príncipes comprometiam-se a proteger tal ou qual que aderisse ao concílio (Ibid., p. 113-114) . Era como uma
segurança mútua que o rei e os corpos do reino prestavam-se neste momento de perigo (vide todos esses atos em Dupuy, ‘Pr’,
112-180).

No dia 15 de outubro, Bonifácio declarou por uma bula que apenas ao Papa cabia convocar um concílio. Ele
respondeu às acusações de Plasian e de Nogaret, particularmente à censura de heresia. Nesta ocasião, ele disse: “Quem nunca
ouviu dizer que, não digo na nossa família, mas no nosso país natal, na Campânia, não tenha existido um herético?[108]”. Era
um ataque indireto a Plasian e a Nogaret, que eram precisamente das regiões albigenses. Dizia-se, mesmo, que o avô de
Nogaret havia sido queimado.

Os dois acusadores sabiam muito bem tudo o que tinham a temer. O encarniçamento do Papa contra Pierre Flotte
devia ter-lhes demonstrado: antes da Batalha de Courtrai, Bonifácio havia, no discurso aos cardeais, atribuído tudo a ele,
anunciando que se reservava o direito de puni-lo espiritual e temporalmente[109]. Significava abrir ao rei um espaço para
terminar a querela através do sacrifício do chanceler. Este perecera em Courtrai; porém, quão a mais seus dois sucessores não
tinham a temer o pior, após suas audaciosas acusações! Desta forma, desde o 7 de março, cinco dias antes da primeira
requisição dirigida a Bonifácio, Nogaret fizera com que o rei lhe desse poderes ilimitados, uma verdadeira carta-branca
(carte-blanche), para tratar e para fazer tudo o que fosse necessário[110]. Ele partiu para a Itália com esta arma,
pessoalmente interessado a dela se servir para destruir o Papa. Rapidamente, dirigiu-se a Florença para encontrar o banqueiro
do rei da França, o qual devia dar-lhe todo o dinheiro que solicitasse. Nogaret tinha consigo o gibelino dos gibelinos, o
proscrito e a vítima de Bonifácio, um homem votado à danação pela morte do Papa, Sciarra Colonna, homem precioso para
um golpe. Este rei dos montanheses sabinos, dos banditi da campanha romana, tanto não tinha dúvidas sobre o que o Papa
teria feito de si que, uma vez, quando caíra nas mãos dos corsários, ele remou para os mesmos durante vários anos, ao invés
de dizer seu nome e correr o risco de ser vendido a Bonifácio (Petrarca, Epist. 4, l. II, ad. famil., ap. Dupuy, ‘Hist. du Diff.’,
p. 6).

Após a bula de 15 de agosto, devia-se acreditar que Bonifácio iria lançar a sentença que pusera tantos reis para fora
do trono e declarar os súditos de Filipe desvinculados de seus juramentos em relação ao mesmo. Reconciliado com o
Imperador Alberto d’Áustria, o Papa sabia muito bem a quem destinar a França. Ele iria, talvez, renovar contra a Casa de
Capeto a trágica história da Casa da Suábia. A bula, efetivamente, estava pronta desde o dia 5 de setembro. Era necessário a
ela antecipar-se e enfraquecer esta arma que estava nas mãos papais, notificando-lhe o apelo ao concílio, notificação esta que
deveria ser feita em Anagni, na sua cidade natal, dentro da qual se refugiara com seus parentes, amigos, ao meio de um povo
que vinha de arrastar na lama o lírio (fleur-de-lys) e a bandeira da França[111]. Nogaret não era homem de guerra, mas tinha
dinheiro. Ele entrou em entendimentos em Anagni e, por dez mil florins (nós temos o recibo de quitação – Dupuy, ‘Pr.’, 608-
610), ele se assegurou de Supino, capitão de Ferentino, cidade inimiga de Anagni. “Supino comprometeu-se pela vida ou
morte do mencionado Bonifácio”[112]. Então, Colonna e Supino, com trezentos cavaleiros e muitas pessoas a pé, clientes ou
soldados da França, introduziram Nogaret em Anagni aos brados de “Morra o Papa, viva o Rei da França!” (“Muoia papa
Bonifacio, è viva il Rè di Francia!”. Villani VIII, c. 63). A comuna fez soar o sino, mas ela tomou por capitão exatamente um
inimigo de Bonifácio[113], que deu a mão aos assaltantes e pôs-se a pilhar os palácios dos cardeais, os quais, por sua vez, se
salvaram pelas latrinas. O povo de Anagni, não podendo impedir a pilhagem, pôs-se também a pilhar em conjunto. O Papa,
prestes a ser forçado em seu palácio, obteve um momento de trégua e mandou advertir a comuna que, então, se desculpou.
Então, esse homem tão orgulhoso dirigiu-se ao próprio Colonna. Mas este desejava que o Papa abdicasse e se entregasse à sua
discrição. “Ai de mim”, disse Bonifácio, “eis aí palavras duras!”[114]. Neste ínterim, seus inimigos tinham queimado uma
igreja que defendia o palácio. O sobrinho do Papa abandonou seu tio e tratou os termos de rendição por si próprio. Este
último golpe quebrou o velho papa. Este homem de oitenta e seis anos pôs-se a chorar[115]. Neste momento, as portas são
arrebentadas, as janelas são quebradas, a turba penetra. Ameaça-se, ultraja-se o ancião. Ele nada responde. Ele é pressionado
a abdicar. “Eis meu pescoço, eis minha cabeça”, ele diz.

Segundo Villani, ele teria dito ante a aproximação de seus inimigos: “Traído como Jesus morrerei, mas morrerei
Papa”. E teria vestido o manto de São Pedro, posto a coroa de Constantino sobre a cabeça e ocupado suas mãos com as
chaves de Pedro e o báculo papal[116].

Conta-se que Colona bateu no rosto do ancião com sua manopla de ferro[117]. Nogaret dirigiu-lhe palavras que
valiam por um gládio: “Ó tu, débil Papa, confessa e conhece a bondade do meu senhor o rei da França que, ainda que longe
esteja do teu reino, te guarda e te protege por mim” (‘Chron. de S. Denis’, ap. Dupuy, ‘Pr.’, p. 191) . O Papa respondeu com
coragem: “Tu és de família herética; é de ti que eu aguardo o martírio” (Dupuy, ‘Hist. du Diff.’, p. 23).

Colonna teria, de boa vontade, assassinado Bonifácio; o homem da lei o impediu (Cartas justificativas de Nogaret –
“Lettres justificatives de Nogaret”. Dupuy, ‘Pr.’, p. 248). Esta brusca morte muito o comprometeria. Era preciso que o
prisioneiro não morresse entre suas mãos. Mas, por outro lado, não era possível, de forma alguma, conduzi-lo até à
França[118]. Bonifácio recusava-se a comer, temendo ser envenenado. Essa recusa durou três dias, ao fim dos quais o povo
de Anagni, dando-se conta do pequeno número de estrangeiros, sublevou-se, expulsou os Franceses e libertou seu Papa.

Era muito tarde. O ancião fora mortalmente batido. Ele foi conduzido até à praça, chorando como uma criança. “Ele
agradeceu a Deus e ao povo a sua libertação, e disse: Boa gente, vistes como meus inimigos arrebataram-me todos os meus
bens e aqueles da Igreja. Eis-me, aqui, pobre como Jó. Digo-vos, em verdade, que nada tenho para comer, nem para beber. Se
houver alguma boa mulher que deseje me fazer esmola de pão ou de vinho, ou de um pouco d’água à falta de vinho, darei a
benção de Deus e a minha. Quem quer que me traga a menor coisa para servir às minhas necessidades, eu o absolverei de
qualquer pecado... Todo o povo se pôs a gritar: Viva o Santo Padre! As mulheres correram em turba para o palácio para
levarem pão, vinho ou água; não encontrando jarras ou vasos, elas os derramavam em grande quantidade numa arca, no quarto
do Papa... Qualquer um podia entrar e falar com o Papa, como com qualquer pobre”[119].

“O Papa concedeu ao povo a absolvição de todo pecado, salvo a pilhagem dos bens da Igreja e dos cardeais. Quanto
àquilo que era seu, ele não se importou. Foi-lhe devolvida, entretanto, alguma coisa. Ele, em seguida, protestou, na frente de
todos, que desejava fazer a paz com os Colonna e todos os seus inimigos. Então, ele partiu para Roma com uma grande
multidão de gente armada”. Mas quando chegou a São Pedro e que não foi mais sustentado pelo sentimento do perigo, o medo
e a fome com os quais sofrera, a perda de seu dinheiro, a insolente vitória de seus inimigos, esta humilhação infinita de um
poder infinito, tudo isso voltou-lhe de uma só vez: sua cabeça octogenária não aguentou e ele perdeu o ânimo e o espírito.

Ele se confiara aos Orsini como inimigos dos Colonna. Mas ele ainda foi, ou acreditou ter sido, preso por aqueles,
seja porque desejassem esconder do povo o escândalo de um papa herético, seja porque se entendessem com os Colonna para
mantê-lo prisioneiro, Bonifácio, tendo desejado sair para se refugiar junto a outros barões, os dois cardeais Orsini barraram-
lhe a passagem e o fizeram voltar. A demência mental tornou-se raiva e, desde então, ele rejeitou qualquer alimento. Ele
espumava e rilhava os dentes. Enfim, um de seus amigos, Jacobo de Pisa, tendo-lhe dito “Santo Padre, recomendai-vos a
Deus, à Virgem Maria e recebei o corpo de Cristo”, Bonifácio deu-lhe um tapa e gritou, misturando as duas línguas: ‘Allonta
de Dio et de Sancta Maria, nolo, nolo’ (NT: ‘Afasta Deus e a Santa Maria, eu não, eu não’). Ele expulsou dois irmãos
menores que traziam-lhe o viático e, ao cabo de uma hora, expirou sem comunhão, nem confissão. Desta forma, comprovava-
se a frase que seu antecessor Celestino a ele dissera: “Tu subiste como uma raposa, tu reinarás como um leão, tu morrerás
como um cão” (Dupuy, ‘Pr.’, p. 196).

Foram encontrados outros detalhes, mas ainda mais suspeitos, numa peça onde se respira um ódio furioso e que
parece ter sido fabricada pelos Plasian e pelos Nogaret para que corresse entre o povo, imediatamente após o evento: “A
vida, estado e condição do Papa Malefácio, contados por pessoas dignas de fé: no dia 9 de outubro, o Faraó, sabendo que sua
hora se aproximava, confessou que possuía demônios familiares que o obrigaram a cometer todos os seus crimes. O dia e a
noite que se seguiram, escutou-se tantos trovões, tantas horríveis tempesdades, viu-se uma tal quantidade de pássaros negros
que soltavam pavorosos crocitos, que todo o povo consternado gritava: ‘Senhor Jesus, tende piedade, tende piedade, tende
piedade de nós’. Todos afirmavam que eram os demônios do inferno que vinham procurar a alma desse Faraó. No dia 10,
como se lhe contassem o que se passara e o aconselhassem a meditar sobre sua alma... ele, envolvido pelo demônio, furioso e
rilhando os dentes, lançou-se sobre o padre como que para devorá-lo. O padre fugiu a todas pernas até à igreja... Depois, sem
dizer palavra, ele se virou para o outro lado... Como era carregado até sua cadeira, ele foi visto a lançar os olhos sobre a
pedra de seu anel e a se lamentar: ‘Ó vós, espíritos malignos aprisionados nesta pedra, vós que me seduzistes... por que me
abandonais agora?’. E ele lançou longe seu anel. Seu mal e sua raiva crescendo, endurecido na sua iniqüidade, ele confirmou
todos os seus atos contra o rei da França e seus servidores e os publicou novamente... Seus amigos, para acalmar suas dores e
mágoas, fizeram-lhe ser conduzido o filho do mestre Jacques de Pisa, que ele outrora adorava abraçar, como que para se
glorificar no pecado... mas, à vista da criança, ele lançou-se sobre ela e, se não fosse dali retirado, ter-lhe-ia arrancado o
nariz com os dentes. Finalmente, o mencionado Faraó, cingido de torturas pela vingança divina, morreu no dia 12, sem
confissão, sem marca de fé: e, neste dia, houve tantos trovões, tempestades, dragões no ar vomitando chamas, tantos
relâmpagos e prodígios, que o povo romano acreditava que toda a cidade seria lançada no abismo”[120].

Dante Alighieri, malgrado sua violenta invectiva contra os carrascos do pontífice, indica-lhe seu lugar no inferno. No
canto XIX do Inferno, Nicolau II, mergulhado do pescoço para baixo nas chamas, o escuta falar e exclama: “És tu, então, já
em pé, caído de lá de cima? És tu, então, Bonifácio? Por muitos anos, a sentença tem errado. Estás, então, suficientemente
saciado daquilo que não temeste criminosamente roubar da bela Esposa para nela fazer ruína?”[121].

O sucessor de Bonifácio, Bento XI, homem de baixa extração, mas de um grande mérito, que os Orsini haviam feito
virar Papa, não se sentia muito forte em sua entronização. Ele recebeu de boa graça as felicitações do rei da França, as quais
foram trazidas por Plasian, pelo próprio acusador do último papa. Filipe sentia que seu inimigo não estava realmente morto
que não pudesse desferir algum novo golpe, conduzindo a guerra ao exagero: ele remeteu ao Papa um memorando contra
Bonifácio, que podia se passar por uma ácida sátira da corte de Roma[122]. Ele escreveu para si próprio, com a ajuda de seu
pessoal jurista, uma Súplica do povo da França ao Rei contra Bonifácio (Supplication du pueuble de France au Roy contra
Boniface). Este ato importante, redigido em língua vulgar, era mais um apelo do rei ao povo que uma súplica do povo ao
rei[123].

Bento, ao contrário, parece ter inicialmente desejado abafar esta grande questão, perdoando a todos aqueles que nela
estavam envolvidos, com exceção de Nogaret. Mas perdoá-los significaria declará-los culpados. E esta clemente ofensiva
mancharia o rei, os Colonna, os prelados que não se renderam à intimação de Bonifácio.

Filipe, então acabado pela guerra de Flandres, tinha muito a temer. A melhor parte dos cardeais se recusava a aderir
à sua convocação para o concílio. O Papa tornava-se ameaçador. O rei desejava receber a absolvição que inicialmente
desdenhara. Tivesse ele pedido seriamente, seríamos tentados a disso duvidar, quando se vê que a solicitação foi levada ao
Papa por Plasian e Nogaret. Este último se fizera provavelmente dar esta missão para romper um arranjo que não poderia ser
feito senão em prejuízo a si. A só escolha de um tal embaixador era sinistra. O Papa explodiu e lançou uma furiosa bula de
excomunhão: “Flagitiosum scelus et scelestum flagitium quod quidam sceleratissimi viri, summum audentes nefas in personam
bonæ memoriæ Bonifacii P. VIII...” (NT: Tanto mais chocante a maldade e o amaldiçoado crime quanto foram perpetrados
por certos homens amaldiçoados que, nefastamente, ofenderam a pessoa e a boa memória do Papa Bonifácio VIII).

Esta bula parecia incluir o rei. Ela foi entregue no dia 7 de junho de 1304. No dia 4 de julho, Bento estava morto.
Conta-se que uma jovem de véu, que se dava por irmã laica do convento de Santa Petronilha, em Perúgia, veio apresentar-lhe,
à mesa, um cesto de figos-em-flor[124]. Ele os comeu sem desconfiança, sentiu-se mal e morreu em alguns dias. Os cardeais,
temendo mui facilmente encontrar o culpado, não fizeram nenhuma investigação.

Esta morte veio no momento certo para Filipe. A guerra de Flandres o levara ao limite. Ele não pudera impedir, em
1303, que os Flamengos invadissem a França, queimassem Térouanne e sitiassem Tournai[125]. Não havia como salvar esta
cidade senão pedindo uma trégua, pondo em liberdade o velho Guy que, entretanto deveria retornar à prisão, se a paz não se
fizesse e mantivesse. O ancião agradeceu seus corajosos Flamengos, abençoou seus filhos e veio a morrer, com oitenta anos,
na sua prisão de Compiègne.

Em 1304, ao mesmo momento em que o Papa tão convenientemente morria, Filipe fazia um esforço desesperado para
terminar a guerra. Ele extorquira algum dinheiro vendendo privilégios, sobretudo no Languedoc, favorecendo, assim, as
comunas do Midi para esmagar aquelas do Norte. Ele contratou Genoveses e, com suas galeras, ganhou uma batalha naval à
frente de Zierikzee (agosto). Os Flamengos nem por isso se sentiram abatidos. Eles se acreditavam ao número de sessenta mil.
Era a Flandres completa pela primeira vez; todas as milícias das cidades estavam reunidas, as de Gant e de Bruges, aquelas
de Ypres, de Lille e de Courtrai. À testa delas estavam três filhos do velho conde, seu primo Guilherme de Juliers e vários
barões dos Países-Baixos e da Alemanha. Filipe, tendo forçado a passagem do rio Lys (rio Leie em holandês), os encontrou
em Mons-en-Puelle, num formidável cinturão de carruagens e carroças e contra eles enviou, não mais seus homens
(gendarmerie), mas andarilhos infantes Gascões (Meyer, folio, 104) que, durante todo o dia, sob um sol ardente, os
mantiveram em alerta, sem comer, nem beber; os víveres estavam dentro das carroças. Este jejum os exasperou, eles perderam
a paciência e, ao entardecer, lançaram-se, todos juntos, sobre os Franceses. Estes últimos já nem mais pensavam nos
Flamengos: o rei estava desarmado e dirigia-se à sua mesa. De início, essa carga de javalis derrubou tudo. Mas, quando os
Flamengos entraram nas tendas, e que viram tantas boas coisas para tomar, não houve mais jeito que os fizesse permanecer
juntos, pois todos queriam fazer a mão. Neste ínterim, os Franceses se reagruparam: a cavalaria esmagou os saqueadores que
aí deixaram seis mil homens mortos.

O rei foi sitiar Lille, não duvidando da submissão dos Flamengos. Ele ficou muito espantado ao ver os sessenta mil
retornarem como se não houvessem perdido um só homem. “Chove Flamengos”, ele dizia. Os grandes da França, que não se
inquietavam em bater-se contra esses desesperados, aconselharam o rei a tratar com eles. Era necessário entregar-lhes seu
conde, filho do velho Guy, e prometer ao neto o condado de Rethel, herança de sua mulher. Filipe guardava a Flandres
francesa e recebia duzentas mil libras.

Mas nada estava terminado: não fora especificado se ele a guardaria como penhor do tratado ou como aquisição;
quanto ao dinheiro, ele não o recebeu. Por outro lado, a questão com o Papa estava mais estragada que arrumada. Era uma
triste alegria a súbita morte de Bento XI[126].

Uma fome, um imprudente aumento do valor máximo dos cereais ou sua requisição, tudo isso excitava o povo.
Começava-se a falar. Um intelectual da universidade falou alto e foi enforcado. Uma pobre beguina de Metz, que fundara uma
ordem de religiosas, recebeu uma revelação dos castigos e punições que o céu reservava aos reis maus. Carlos de Valois a
mandou enforcar e, para obrigá-la a dizer que essas profecias eram sopradas pelo diabo, fez com que queimassem seus pés
(Contin. Nangii, p. 57). Mas todo mundo acreditou na revelação quando viu-se, no ano seguinte, um cometa aparecer com um
brilho assustador[127].

Filipe o Belo retornava vencedor e arruinado. Ele se apresentou na catedral Notre-Dame, entre o povo faminto e as
maldições em voz baixa. Ele entrou a cavalo na igreja e, para agradecer a Deus por ter escapado quando os Flamengos o
surpreenderam, devotamente dedicou a Nossa Senhora sua efígie equestre e armada com todos os paramentos. Ela podia ainda
ser vista na Notre-Dame, pouco tempo antes da Revolução, ao lado do colossal São Cristóvão.

Nogaret não se esqueceu de si próprio; ele também triunfou à sua maneira. Temos um recibo, por ele assinado,
provando que seus rendimentos foram elevados de quinhentas para oitocentas libras (D. Vaissette, ‘Hist. du Languedoc’, t.
IX, nota XI, p. 117).
Capítulo III
O ouro. O Fisco. Os Templários.
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“O ouro”, disse Cristóvão Colombo, “é uma coisa excelente. Com ouro, forma-se tesouros. Com ouro, faz-se tudo o
que se deseja neste mundo. Faz-se, inclusive, chegar as almas ao paraíso”[128].

A época onde chegamos deve ser considerada como a do advento do ouro. Ele é o Deus do mundo novo no qual
entramos. Filipe o Belo, mal tendo subido ao trono, exclui os sacerdotes dos seus conselhos para neles fazer entrar os
banqueiros[129].

Guardemo-nos de falar mal do ouro. Comparado à propriedade feudal, a terra, o ouro é uma forma superior da
riqueza. Coisa pequena, móvel, cambiável, divisível, fácil de manipular, fácil de esconder, é já a riqueza sutilizada; eu ia
dizer “espiritualizada”. Tanto quanto a riqueza foi imóvel, o homem, por ela fixado à terra e como que enraizado, não possuía
outra locomoção senão sobre a gleba na qual rastejava. O proprietário era uma dependência do solo; a terra levava o homem.
Hoje, é bem ao contrário, ele conduz a terra, concentrada e resumida pelo ouro. O dócil metal serve a qualquer transação; ele
segue, fácil e fluido, toda circulação comercial, administrativa. O governo, obrigado a agir longe, rapidamente, de mil
maneiras, tem por meio principal de ação os metais preciosos. A súbita criação de um governo, no início do século XV, cria
uma necessidade imediata, infinita, de prata e de ouro.

Sob Filipe o Belo, o fisco, este monstro, este gigante, nasce disforme, esfaimado, cheio de dentes. Ele grita ao nascer,
como o Gargântua de Rabelais: “Comida! Bebida!”. A criança terrível, cuja fome atroz não pode ser saciada, comerá, em caso
de necessidade, a carne e beberá o sangue. É o cíclope, o ogro, a gárgula devoradora do Sena. A cabeça do monstro se chama
Grão-Conselho (Grand-Conseil), suas longas garras estão no Parlamento, o órgão digestivo é a Câmara de Contas. O único
alimento que pode apaziguá-lo é exatamente aquele que o povo não pode encontrar-lhe. Fisco e povo não tem outro brado
senão “ouro”.

Vede, em Aristófano, como o cego e inerte Pluto é perseguido por seus adoradores. Estes provam-lhe que ele é o
Deus dos Deuses. E todos os deuses a ele cedem. Júpiter confessa que morre de fome sem ele[130], Mercúrio deixa seu ofício
de deus, põe-se a serviço de Pluto, gira o espeto e lava sua louça.

Esta entronização do ouro no lugar de Deus se renova no século XIV. A dificuldade é extrair esse ouro preguiçoso
dos redutos obscuros onde dorme. Esta história do thesausurus seria curiosa desde o tempo onde se mantinha escondido sob o
dragão de Cólquida, das Hespérides ou dos Nibelungos, desde seu sono no templo de Delfos, no palácio de Persépolis.
Alexandre, Cartago, Roma, o despertam e o sacodem[131]. Na Idade Média, ele dorme já nas igrejas ou, para melhor
repousar, toma a forma sacra de cruzes, mantos, relicários. Quem será assaz ousado para tirá-lo de lá, assaz clarividente para
percebê-lo na terra para dentro da qual adora fugir? Qual mágico evocará, profanará, esta coisa sagrada que vale todas as
coisas, esse todo-poder cego que dá a natureza?

A Idade Média não podia tão cedo alcançar a grande idéia moderna: o homem sabe criar a riqueza, ele transforma
uma vil matéria em objeto precioso, dando-lhe a riqueza que ele tem em si, aquela da forma, da arte, aquela de uma vontade
inteligente. Ele inicialmente procurou a riqueza menos na forma que na matéria. Ele se encarniçou sobre esta matéria,
atormentou a natureza com um amor furioso, pediu-lhe aquilo que se pede a quem se ama, a vida mesmo, a imortalidade[132].
Mas, malgrado as maravilhosas fortunas dos Lúlio e dos Flamel[133], o ouro tantas vezes encontrado não aparecia senão para
fugir, sempre deixando o soprador sem fôlego; ele fugia, fundia impiedosamente e, consigo, a substância do homem, sua alma,
sua vida, deixadas no fundo do caldeirão[134].

Então, o desafortunado, cessando de esperar no poder humano, renegava a si mesmo, abdicava todo bem, alma e
Deus. Ele invocava o mal, o Diabo. Rei dos abismos subterrâneos, o Diabo era, sem dúvida, o monarca do ouro. Vede, em
Notre-Dame de Paris, e em tantas outras igrejas, a triste representação do pobre homem que vende sua alma pelo ouro, que se
enfeuda ao Diabo, se ajoelha perante a Besta e beija sua garra aveludada...

O Diabo, perseguido com os Maniqueístas e os Albigenses, expulso, como eles, das cidades e aldeias, vivia, então,
no deserto. Ele cabalava sobre a pradaria com as feiticeiras de Macbeth. A feitiçaria, aborto repugnante das velhas religiões
vencidas, tinha isso, entretanto, de ser um chamado, não somente à natureza, como era o caso da alquimia, mas já à vontade, à
vontade maligna, ao diabo, é verdade. Era um industrialismo doente que, não podendo tirar da vontade os tesouros que contém
sua aliança com a natureza, tentava ganhar, pela violência e pelo crime, aquilo que somente o trabalho, a paciência, a
inteligência, podem dar.

Na Idade Média, aquele que sabe onde está o ouro, o verdadeiro alquimista, o verdadeiro feiticeiro, é o judeu; ou o
semi-judeu, o Lombardo[135]. O judeu, o homem imundo, o homem que não pode tocar nem comida e nem mulher sem que as
mesmas não sejam queimadas, o homem do ultraje sobre quem todo mundo escarra[136], é a ele que é preciso se dirigir.

Imunda e prolífica nação que, acima de todas as outras, teve a força multiplicadora, a força que engendra, que
fecunda à vontade as ovelhas de Jacó ou os sequins de Shylock[137]. Durante toda a Idade Média, perseguidos, expulsos,
novamente chamados, eles eram o indispensável intermediário entre o Fisco e a vítima do Fisco, entre o agente e o paciente,
bombeando o ouro de baixo para, com um feio esgar de rosto, entregá-lo em cima, ao Rei... Mas sempre sobrava-lhes alguma
coisa... Pacientes, indestrutíveis, eles venceram pelo tempo[138]. Eles resolveram o problema de volatilizar a riqueza;
libertados pela letra de câmbio, eles agora são livres, eles são senhores; de bofetadas em bofetadas, ei-los no trono do
mundo[139].

Para que o pobre homem se dirija ao judeu, para que ele se aproxime dessa sombria casinha tão mal afamada, para
que fale a este homem que, segundo se diz, crucifica as criancinhas (vide as ‘Ballades’ publicadas por M. Francisque Michel),
não é preciso nada além da horrível pressão do Fisco. Entre o Fisco, que deseja sua moela e seu sangue, e o diabo, que quer
sua alma, ele tomará o judeu por meio.

Quando, então, ele tinha esgotado seus últimos recursos, quando seu leito fora vendido, quando sua mulher e seus
filhos deitados à terra tremiam de febre ou clamavam por pão, então, cabeça baixa e mais curvado do que se carregasse
troncos de madeira, ele se dirigia lentamente na direção da odiosa casa e ficava na frente da porta, por muito tempo, antes de
bater. O que dizia o cristão? “Pelo amor de Deus?” O judeu O matou, teu Deus. “Por piedade?” Qual cristão jamais teve
piedade do judeu? Não bastam apenas palavras. É preciso uma garantia. E o que pode dar aquele que nada tem? O judeu dir-
lhe-á calmamente: Meu amigo, conformemente às ordenações do Rei, nosso Senhor, eu não posso emprestar nem contra roupa
ensaguentada, nem contra ferro de arado... (Ordonn. I, 36). Não. Como garantia, eu nada mais quero além de vós mesmo. Eu
não sou dos vossos, meu direito não é o direito cristão. É um direito mais antigo (in partes secanto). Vossa carne responderá.
Sangue por ouro, assim como vida por vida. Uma libra da vossa carne, a qual vou alimentar com meu dinheiro, uma libra
somente da vossa bela carne![140]... O ouro que o assassino do Filho do Homem empresta não pode ser outra coisa que um
ouro homicida, anti-humano, antidivino ou, como se dizia naqueles tempos, Anti-Cristo. Eis aí o ouro Anticristo, como antes
nos mostrava Aristófano em Pluto, o Anti-Júpiter.

Este Anticristo, este Anti-Deus, deve despojar Deus, quer dizer, a Igreja; a igreja secular, os padres, o Papa; a igreja
regular, os monges, os Templários.

A morte escandalosamente repentina de Bento XI fez a Igreja cair nas mãos de Filipe o Belo; ela o possibilitou,
mesmo, fazer um Papa, tirar o papado de Roma e trazê-lo para a França para, nesta masmorra, fazê-lo trabalhar em seu
benefício, ditar-lhe bulas lucrativas, explorar a infalibilidade papal, fazer do Espírito Santo o escriba e o cobrador para a
Casa da França.

Após a morte de Bento XI, os cardeais se trancaram em conclave em Perúgia. Mas as duas facções, a francesa e a
anti-francesa, estavam tão bem equilibradas, que não havia meios de se chegar a um resultado. Os habitantes da cidade, em sua
impaciência, em sua fúria italiana de ver um Papa feito em Perúgia, não encontraram outro remédio senão imporem a fome aos
cardeais. Estes, então, concordaram que uma das facções designaria três candidatos e que a outra escolheria. Coube ao partido
francês escolher e ele apontou um Gascão, Bertrand de Gott, arcebispo de Bordeaux. Bertrand se mostrara, até aí, como
inimigo do rei, mas sabia-se que ele era, antes de tudo, amigo de seus próprios interesses e, com base nisso, esperava-se logo
convertê-lo.

Filipe, instruído por seus cardeais e munido de suas cartas, deu encontro ao futuro eleito perto de Saint-Jean-
d’Angély, numa floresta. Bertrand para aí correu cheio de esperança. Villani fala dessa entrevista secreta como se a tivesse
presenciado. É preciso ler esta narrativa de uma maligna ingenuidade:

“Eles ouviram a missa juntos e juraram-se segredo. Então, o rei começou a parlamentar, em belas palavras, para
reconciliá-lo com Carlos de Valois. Em seguida, ele lhe disse: ‘Vê, Arcebispo, tenho em meu poder fazer-te Papa, se eu
quiser; é por esta razão que vim a ti pois, se tu me prometeres fazer seis graças que te pedirei, assegurar-te-ei esta dignidade;
e vê aqui que te provarei ter tal poder’. E o rei mostrou-lhe as cartas e delegações de um e do outro colégio. O Gascão, cheio
de cobiça, vendo assim, repentinamente, que dependia inteiramente do rei fazê-lo Papa, lançou-se, como tomado de júbilo, aos
pés de Filipe e disse: ‘Meu Senhor, vejo agora que tu me amas mais que qualquer outro homem que vive, e que desejas me
entregar o bem pelo mal. Tu deves ordenar e eu devo obedecer e, sempre, à tua disposição estarei’. O rei o ergueu, beijou-lhe
a boca em sinal de paz, e disse-lhe: ‘As seis graças especiais que te peço são as seguintes: a primeira, que tu me reconcilies
perfeitamente com a Igreja e que me faças ser perdoado pelo malfeito que cometi ao prender o Papa Bonifácio. A segunda, que
tu me dês a comunhão, a mim e aos meus. A terceira, que tu me acordes os décimos do clero em meu reino, por cinco anos, a
fim de auxiliar nas despesas feitas na guerra de Flandres. A quarta, que tu destruas e anules a memória do Papa Bonifácio. A
quinta, que tu outorgues a dignidade de cardeal ao mestre (messer) Jacobo e ao mestre Piero della Colonna, que tu os
reintegres e que, com eles, tu nomeies cardeais alguns amigos meus. Para a sexta graça e promessa, reservo-me falar em tempo
e lugar, pois é coisa grande e secreta’. O arcebispos prometeu tudo por juramento sobre o Corpus Domini (NT: o Corpo do
Senhor, a hóstia eucarística) e, ainda, deu por reféns seu irmão e dois de seus sobrinhos. O rei, de sua parte, prometeu e
jurou que o faria ser eleito Papa”[141].

O Papa de Filipe o Belo, confessando altivamente sua dependência, declarou que desejava ser entronizado em Lyon
(14 de novembro de 1305). Esta coroação, que iniciava o cativeiro da Igreja, foi dignamente solenizada: no momento em que o
cortejo passava, uma muralha repleta de espectadores desmoronou, feriu o rei e matou o duque da Bretanha. O Papa foi
derrubado, a tiara caiu e, oito dias depois, durante um banquete do Papa, sua gente e aquela dos cardeais se desentenderam e
um irmão do Papa foi morto.

No entanto, a vergonha do mercado que se fez do papado tornava-se pública. Clemente[142] pagava em moeda
sonante, dando em pagamento aquilo que a si não pertencia, exigindo décimos do clero: décimos para o rei da França,
décimos para o conde de Flandres para que ele se quitasse com o rei, décimos para Carlos de Valois para uma cruzada contra
o império grego. O motivo da cruzada era estranho: este pobre império, no entender do Papa, era débil e não protegia
suficientemente a cristandade contra os infiéis.

Clemente, tendo pago, acreditava estar quite e não ter mais nada a fazer além de usufruir como adquirente e
proprietário, usando e abusando. Assim como um barão fazia cavalgadas ao longo de suas terras para exercer seu direito de
hospitalidade e de provisão[143], Clemente pôs-se a viajar pela Igreja da França. De Lyon, ele se encaminhou na direção de
Bordeaux, mas por Mâcon, Bourges e Limoges a fim de devorar mais regiões[144]. Ele ia, tomando e comendo, de bispado em
bispado, com um exército de familiares e servidores. Aonde quer que esta nuvem de gafanhotos se abatesse, o local ficava
limpo. Anterior arcebispo de Bordeaux, o rancoroso pontífice retirou de Bourges sua primazia sobre a capital da Guiana. Ele
se estabeleceu na casa de seu inimigo, o arcebispo de Bourges, como um coletor de impostos (garnisaire) ou comedor de
ofício (mangeur d’office)[145] e, de tal forma aí se hospedou, que o deixou arruinado de cima a baixo: esse primaz das
Aquitânias estaria morto de fome se não tivesse ido à catedral, entre seus cônegos, receber das distribuições eclesiásticas a
porção côngrua[146].

Nos roubos de Clemente, a melhor parte sempre era para uma mulher que extorquia o Papa, como ele à Igreja. Ela era
a verdadeira Jerusalém para onde ia o dinheiro da cruzada. A bela Brunissende Talleyerand de Périgord [147] custava-lhe,
segundo se dizia, mais que a Terra Santa.

Clemente logo seria cruelmente incomodado neste doce gozo dos bens da Igreja. Os décimos em perspectiva não
respondiam às necessidades reais do Fisco Real. O papa ganhou tempo dando-lhe os judeus, autorizando o rei colhê-los. A
operação se fez num único dia, com um segredo e uma tamanha prontidão que muito fazem honra aos servidores fiscais do rei.
Contava-se que nenhum judeu escapara. Não contente de vender seus bens, o rei se encarregou de perseguir seus devedores,
declarando que seus lançamentos bastavam como títulos de crédito, que os apontamentos de um judeu eram, em sua opinião,
dignos de fé.

O judeu, não rendendo o suficiente, o rei caiu sobre o cristão. Ele também alterou as moedas, aumentando o título e
diminuindo o peso: com duas libras pagava-se oito. Mas, quando se tratava de receber, ele não recebia sua própria moeda
senão por um terço; duas bancarrotas em sentido inverso. Todos os devedores lucraram com a ocasião. Essas moedas de
diverso valor sob o mesmo título davam causa a numerosas querelas. Ninguém se entendia, era uma Babel. A única coisa em
que o todo o povo estava de acordo (eis aí um povo!) era para a revolta. O rei conseguiu se salvar no Templo e o povo o teria
seguido, se não tivesse parado no caminho para se divertir pilhando a casa de Étienne Barbet, um financista a quem se atribuía
a alteração das moedas. O motim terminou assim. O rei mandou enforcar centenas de homens nas árvores das estradas em
torno de Paris e o temor o reaproximou dos nobres. Ele devolveu-lhes o direito ao combate judiciário ou, melhor dito, a
impunidade. Era uma derrota para o governo real. O rei dos juristas abdicava a lei para reconhecer as decisões da força.
Triste e dúbia posição, tanto em legislação, como em finanças. Empurrado da igreja aos judeus, dos judeus às comunas, das
comunas flamengas ele voltava a cair sobre a igreja.

O melhor dos tesouros de Filipe, seu patrimônio a ser explorado, o fundo sobre o qual contava, era seu Papa. Se ele o
havia comprado, este Papa, se ele o empanturrava com roubos e pilhagens, não era para que deixasse de se servir mas, ao
contrário, para daí também tirar partido, para dele arrancar, como o Judeu, uma libra de carne sobre o membro que mais lhe
conviesse escolher.

Havia um meio infalível de apertar e pressionar o Papa, um poderoso espectro, a saber, o processo de Bonifácio VIII.
O que o rei pedia a Clemente era, nada mais, nada menos, que o suicídio do papado: se Bonifácio fosse herético e falso papa,
os cardeais que o haviam escolhido eram falsos cardeais. Bento XI e Clemente, também eleitos por eles, seriam, por sua vez,
falsos papas e sem direito; e não somente eles, mas todos aqueles a quem tivessem confirmado ou outorgado as dignidades
eclesiásticas; não somente as escolhas que tivessem feito, mas os atos de qualquer espécie que tivessem praticado. A Igreja
encontrar-se-ia amarrada num encadeamento de ilegalidades sem fim. Por outro lado, se Bonifácio tivesse sido verdadeiro
papa, ele seria, como tal, infalível, suas sentenças subsistiriam e Filipe o Belo restaria condenado.

À pena entronizado, Clemente teve de ouvir a áspera e imperiosa requisição de Nogaret, que ordenava-lhe perseguir
seu antecessor. Mal concluído o comércio, o Diabo exigia seu pagamento. A servidão do homem vendido começava; esta
alma, uma vez garroteada pelos liames da injustiça, tendo recebido o arreio e o bridão, devia ser miseravelmente cavalgada
até à danação.

Ao invés de, desta forma, matar o papado de direito, Clemente teria preferido abandoná-lo de fato. De uma só vez,
ele criou doze cardeais devotados ao rei da França, os dois Colonna e dez Franceses ou Gascões. Estes doze, unidos ao que
restava dos outros doze da mesma facção, de cuja nomeação ficou surpreso Celestino, asseguravam eternamente, para o rei da
França, a eleição dos papas futuros. Clemente assim constituía o papado entre as mãos de Filipe; concessão enorme e que,
entretanto, não bastou.

Ele acreditou que dobraria seu senhor dando um passo a mais. Ele revogou a bula de Bonifácio, a bula Clericis
laicos, que fechava a bolsa do clero ao rei. A bula Unam sanctam continha a gloriosa e sublime expressão da supremacia
pontifícia. Clemente a sacrificou e, ainda assim, não foi o suficiente.

Ele estava em Poitiers, inquieto e doente de corpo e de espírito. Filipe o Belo veio encontrá-lo com novas
exigências. Era-lhe necessário um grande confisco, um confisco da mais rica das ordens religiosas, da Ordem do Templo. O
papa, cerrado entre esses dois perigos, tentou desviar Filipe cobrindo-lhe de todos os favores que estivessem no poder da
Santa Sé: ele ajudou seu filho Luís o Turbulento (Louis Hutin) a se estabelecer em Navarra, ele declarou seu irmão Carlos de
Valois chefe da cruzada. Ele tratou, enfim, de se assegurar da proteção da Casa d’Anjou, liberando o rei de Nápoles de uma
dívida enorme com a Igreja, canonizando um de seus filhos, adjudicando a outro o trono da Hungria.

Filipe recebia sempre, mas não relaxava o abraço. Ele cercava o papa com acusações contra o Templo. Ele
encontrou, na própria casa de Clemente, um Templário que acusava a Ordem. Em 1306, o rei, desejando-lhe enviar
comissários para obter uma decisão, o desgraçado papa deu, para não recebê-lo, a mais ridícula desculpa: “baseados no
conselho dos médicos, nós iremos, no começo de setembro, tomar algumas drogas preparatórias e, na seqüência, um purgativo
que, segundo os supramencionados médicos, deve, com a ajuda de Deus, nos ser muito útil”[148].

Essas lamentáveis tergiversações duraram muito tempo. E teriam durado para sempre, se o Papa não tivesse
subitamente tomado conhecimento que o rei mandava deter, em todo lugar, os Templários, e que seu confessor, monge
dominicano e grande inquisidor da França, procedia contra eles sem aguardar autorização.

O que era então o Templo? Tentemos explicá-lo em poucas palavras:

Em Paris, o cinturão do Templo compreendia todo o grande quarteirão, triste e mal povoado, que dele conservou o
nome[149]. Correspondia a um terço da Paris de então. À sombra do Templo, e sob sua poderosa proteção, vivia uma
multidão de servidores, familiares, afiliados e, também, pessoas condenadas, pois as casas da Ordem possuíam direito de
asilo. O próprio Filipe o Belo o invocara quando, em 1306, foi perseguido pelo povo sublevado. Restava, ainda, à época da
Revolução, um monumento desta ingratidão real, a larga torre com quatro torreões, construída em 1222, e que serviu de prisão
a Luís XVI[150].

O Templo de Paris era o centro da Ordem, seu tesouro; os capítulos gerais ocorriam aí. Desta casa dependiam todas
as províncias da Ordem: Portugal, Castela e Leão, Aragão, Maiorca, Alemanha, Itália, Apúlia e Sicília, Inglaterra e Irlanda.
No norte, a Ordem Teutônica[151] tivera sua origem no Templo, assim como, na Espanha, outras ordens militares
posteriormente se formaram de seus destroços. A imensa maioria dos Templários era de Franceses, particularmente os Grãos-
Mestres. Em várias línguas, designava-se os cavaleiros por seu nome francês: Frieri del Tempio , φρεριοι του Τεμπλου
(Sismondi, ‘Rép. Italiennes’, IV, 265. ‘Pachymer. hist. Andronic.’, l. V, c. 12, t. XIII, p. 235).

O Templo, como todas as ordens militares, derivava de Cîteaux. O reformador de Cîteaux, São Bernardo, com a
mesma pluma que utilizava para comentar o Cântico dos Cânticos, deu aos cavaleiros sua regra entusiasta e austera. Esta regra
era o exílio e a guerra santa até à morte. Os Templários deviam sempre aceitar o combate, fosse ele de um contra três, jamais
pedir quartel (NT: misericórdia) , de forma alguma pagar resgate, nem um pedaço de muralha, nem uma polegada de terra.
Eles não esperavam repouso. Não se lhes permitia passar para ordens menos austeras (Dupuy, ‘Preuves’, p. 115).

“Ide felizes, ide em paz”, disse-lhes São Bernardo, “expulsai com um coração intrépido os inimigos da cruz de Cristo
e sede seguros que, nem a vida, nem a morte, poderão vos colocar fora do amor de Deus que está em Jesus. Em todo perigo,
tornai a dizer a vós mesmos a palavra: Vivos ou mortos, nós somos ao Senhor... Gloriosos os vencedores, felizes os
mártires”[152].

Eis o rude esboço que ele nos oferece da figura do Templário: “Cabelos tonsurados e desgrenhados, sujos de poeira;
enegrecido como ferro, enegrecido pelo clima e pelo sol... Eles amam os cavalos fogosos e rápidos, mas não adornados,
malhados ou caparados... O que encanta nesta turba, nesta torrente que corre para a Terra Santa, é que não vedes senão
celerados e ímpios. Cristo faz de um inimigo o seu campeão; do perseguidor Saulo faz um São Paulo...”. Depois, num
eloqüente itinerário, ele conduz os guerreiros penitentes de Belém ao Calvário, de Nazaré ao Santo Sepulcro.

O soldado tem a glória, o monge o repouso. O Templário abjurava um e outro. Ele reunia o que as duas vidas têm de
mais duro: os perigos e as abstinências. A grande questão da Idade Média foi a guerra santa, a Cruzada; o ideal da cruzada
parecia realizado na Ordem do Templo: era a Cruzada tornada fixa e permanente, a nobre representação desta cruzada
espiritual, desta guerra mística que o cristão sustenta, até à morte, contra o inimigo interior[153].

Associados aos Hospitalários[154] na defesa dos santos locais, deles diferiam porque a guerra era mais
particularmente o objetivo de sua instituição[155]. Uns e outros prestavam os maiores serviços. Qual não devia ser a alegria
do peregrino que viajava na estrada poeirenta de Jaffa a Jerusalém e que, a todo momento, acreditava ver desabarem sobre si
salteadores árabes, quando encontrava um cavaleiro e reconhecia a caridosa cruz vermelha sobre o manto branco da Ordem
do Templo! Em batalha, as duas ordens forneciam, alternativamente, a vanguarda e a retaguarda. Colocava-se no meio os
cruzados recém-chegados e pouco habituados às guerras da Ásia: os cavaleiros os cercavam, os protegiam ‘como uma mãe a
seu filho’, no dizer orgulhoso de um deles[156]. Esses auxiliares passageiros (NT: duques, condes, reis etc.) ordinariamente
reconheciam assaz mal essa devoção, servindo menos os cavaleiros que os atrapalhando. Orgulhosos e ardorosos em sua
chegada, bem certos que um milagre se faria propositadamente em seu favor, eles não deixavam de romper as tréguas;
arrastavam os cavaleiros para perigos inúteis, conseguiam bater-se e partiam, deixando-lhes o peso da guerra e os acusando
de tê-los mal apoiado. Os Templários formavam a vanguarda em Mançura (Almançora), no Egito, quando esse jovem louco do
conde do Artois teimou em perseguir os inimigos e, apesar dos conselhos dos Templários, lançou-se para dentro da cidade; os
cavaleiros o seguiram por honra e foram todos mortos (NT: vide Capítulo VIII, Livro IV, Tomo II, da ‘História da França’,
já por mim traduzido e publicado).

Acreditava-se, com razão, não ser jamais possível fazer o suficiente em favor de uma ordem tão devota e útil. Os
privilégios mais magníficos foram-lhe acordados. De início, eles não podiam ser julgados senão pelo Papa; mas, um juiz
colocado tão longe e tão alto não era nunca reclamado; assim, os Templários eram juízes em suas próprias causas. Eles
também podiam ser aí testemunhas, tamanha era a fé que se tinha em sua lealdade. Era-lhes proibido conceder qualquer de
suas comendadorias ante a solicitação dos nobres ou dos reis. Não pagavam direitos, nem tributos, nem pedágios.

Todo mundo, naturalmente, desejava participar de tais privilégios. O próprio Inocente III desejou ser afiliado à
Ordem; Filipe o Belo pediu em vão...

Mas, não tivesse a Ordem esses grandes e magníficos privilégios, ainda assim a multidão teria a ela se apresentado.
Na imaginação das pessoas, o Templo tinha um atrativo de mistério e de vago terror. As recepções ocorriam nas igrejas da
Ordem, à noite e portas fechadas, e os membros inferiores eram delas excluídos. Dizia-se que se o próprio rei da França lá
penetrasse, dali não mais sairia.

A forma de recepção fora tomada de empréstimo dos ritos dramáticos e bizarros, dos mistérios com os quais a igreja
antiga não temia cercar as coisas santas. O recipiendário era inicialmente apresentado como um pecador, um mau cristão, um
renegado. A exemplo de São Pedro, ele negava; a negação, nesta pantomima, expressava-se por um ato: cuspir na cruz[157]. A
Ordem se encarregava de reabilitar esse renegado, de erguê-lo tanto mais alto quanto mais profunda fosse sua queda, assim
como, na Festa dos Loucos ou Idiotas (fatuorum), o homem oferecia à Igreja, que devia regenerá-lo, a homenagem mesmo de
sua imbecilidade, de sua infâmia. Essas comédias sacras, cada dia menos compreendidas, tornavam-se cada vez mais
perigosas, mais aptas a escandalizar uma era prosaica, que não via além da letra e perdia o sentido do símbolo.

Elas tinham aqui um outro perigo: o orgulho do Templo podia deixar nessas formas um equívoco ímpio. O
recipiendário podia acreditar que, para além do cristianismo vulgar, a Ordem revelar-lhe-ia uma religião mais alta, abrir-lhe-
ia um santuário por trás do santuário. Este nome do TEMPLO não era sagrado somente para os cristãos. Se para estes
expressava o Santo Sepulcro, ele lembrava aos judeus e aos muçulmanos o Templo de Salomão[158]. A idéia do TEMPLO,
mais elevada e mais geral que aquela da própria Igreja, planava de alguma sorte por cima de qualquer religião: a Igreja é
datada e o Templo não. Contemporâneo de todas as eras, o Templo era como um símbolo da perpetuidade religiosa. Mesmo
após a destruição dos Templários, o Templo subsiste, ao menos como tradição, nos ensinos de uma porção de sociedades
secretas, até mesmo na dos Rosacruzes, até mesmo na dos Francos-Maçons[159].

A Igreja é a casa do Cristo, o Templo aquela do Espírito Santo. Os gnósticos tinham como sua grande festa não o
Natal ou a Páscoa, mas o Pentecostes, o dia onde o Espírito desceu. Até que ponto essas antigas seitas subsistiram até à Idade
Média? Os Templários foram a elas afiliados? Tais questões, malgrado as engenhosas conjecturas dos modernos,
permanecerão para sempre obscuras, dada a insuficiência de dados[160].

Essas doutrinas interiores do Templo parecem querer, ao mesmo tempo, se mostrar e se esconder. Crê-se reconhecê-
las seja nos emblemas estranhos esculpidos nos portais de algumas igrejas, seja no último ciclo épico da Idade Média, nesses
poemas onde a cavalaria depurada não é mais que uma odisséia, uma viagem heróica e pia para a procura do Graal. Chamava-
se assim o santo cálice que recolheu o sangue do Salvador[161]. A simples visão deste cálice prolonga a vida em quinhentos
anos. Somente as crianças podem se aproximar dele sem morrer. Cercando o Templo que o guarda, velam, em armas, os
Templistas ou Cavaleiros do Graal[162].

Esta cavalaria mais que eclesiástica, este frio e puríssimo ideal que foi o fim da Idade Média e seu último sonho,
encontrava-se, por sua própria altivez, estranha à toda realidade, inacessível à toda prática. O Templista permaneceu nos
poemas, figura enevoada e quase divina. O Templário afundou na brutalidade.

Eu não desejaria me associar aos perseguidores dessa grande Ordem. O inimigo dos Templários os passou a limpo
sem desejá-lo; as torturas pelas quais ele arrancou-lhes as confissões vexatórias parecem, na verdade, uma presunção de
inocência. Somos tentados a não acreditar nos desgraçados que se acusam nas dificuldades. Se houve nódoas, somos tentados
a não mais vê-las, carbonizadas que foram pelas chamas das fogueiras.

Subsistem, entretanto, graves confissões obtidas sem a questão[163] e as torturas. Mesmo os pontos que não foram
provados, nem por isso são menos verossímeis para quem conhece a natureza humana, para quem considera seriamente a
situação da Ordem nos seus últimos tempos.

Era natural que o relaxamento se introduzisse entre os monges-guerreiros, entre os cadetes (caçulas) da nobreza que
corriam as aventuras distantes da cristandade, com frequência longe dos olhos de seus chefes, entre os perigos de uma guerra
de morte e as tentações de um clima fervente, de uma região de escravos, da luxuriante Síria. O orgulho e a honra os
sustentaram tanto quanto houve esperança pela Terra Santa. Apreciemo-los por terem resistido por tanto tempo, quando, a
cada cruzada, sua esperança era tão tristemente desapontada, quando todo vaticínio mentia, que os milagres prometidos
sempre se adiavam. Não havia semana que o sino de Jerusalém não soasse a aparição dos Árabes na planície desolada. Cabia
sempre aos Templários, aos Hospitalários, montar a cavalo e sair das muralhas... Por fim, eles perderam Jerusalém, depois
São João d’Acre. Soldados desamparados, sentinelas perdidas, devemos mesmo ficar espantados se, ao anoitecer desta
batalha de dois séculos, seus braços tombaram?
A queda é grave após grandes esforços. A alma, alçada tão ao alto no heroísmo e na santidade, cai bem pesada à
terra... Doente e amarga, ela mergulha no mal com uma fome selvagem, como para se vingar por ter acreditado.

Tal parecia ter sido a queda do Templo. Tudo o que houvera de santo na Ordem tornou-se pecado e nódoas. Após ter
ido do homem a Deus, ela se virou de Deus para a Besta[164]. As piedosas ágapes, as fraternidades heróicas, cobriram os
monges de acusações de amores sujos[165]. Eles esconderam a infâmia colocando-se mais à frente dela. E o orgulho também
encontrava sua conta: este povo eterno, sem família nem descendência carnal, recrutado pela eleição e pelo temperamento,
fazia questão de exibir seu desprezo pela mulher[166], bastando-se a si próprio e não amando nada que estivesse fora de si.

Assim como se passavam sem mulheres, eles também se passavam sem padres, pecando e se confessando entre
si[167]. E também se passaram sem Deus. Eles tentaram as superstições orientais, a magia sarracena. Inicialmente simbólica,
a negação tornou-se real e abjuraram um Deus que não dava a vitória, tratando-O como um aliado infiel que os traía, O
ultrajaram e cuspiram sobre a cruz.

Seu verdadeiro deus, ao que parece, tornou-se a própria Ordem, e eles adoraram o Templo e os Templários, seus
chefes, como Templos vivos. Eles simbolizaram, pelas cerimônias mais imundas e mais repugnantes, a devoção cega, o
abandono completo da vontade. A Ordem, fechando-se assim, caiu numa feroz religião de si mesma, num satânico egoísmo: o
que há de soberanamente diabólico no diabo é o fato dele adorar-se.

Eis aí, dir-se-á, apenas conjecturas. Mas elas jorraram mui naturalmente de um boa quantidade de confissões obtidas
sem recurso à tortura, particularmente na Inglaterra[168].

Que isso fosse o caráter geral da Ordem ou que os estatutos tenham se tornado expressamente vergonhosos e ímpios,
é algo que estou longe de afirmar. Tais coisas não se escrevem. A corrupção entra numa Ordem por conivência mútua e tácita.
As formas subsistem, mudando de sentido, e pervertidas por uma má interpretação que ninguém confessa em alto som.

Mas, mesmo quando essas infâmias, essas impiedades, tivessem sido universais na Ordem, elas não teriam bastado
para levar à sua destruição. O clero as teria coberto e abafado, como tantas outras desordens eclesiásticas. A causa da ruína
do Templo foi que ele era muito rico e por demais poderoso. Houve uma outra causa mais íntima, mas eu a contarei na hora
apropriada.

À medida que o fervor das guerras santas diminuía na Europa, à medida que ia-se menos à cruzada, doava-se ainda
mais ao Templo para desencargo de consciência. Os afiliados da Ordem eram inumeráveis. Bastava pagar dois ou três
denários por ano. Muitas pessoas ofereciam todos os seus bens, suas próprias pessoas. Dois condes da Provença desta forma
se entregaram a ela. Um rei de Aragão legou seu reino (Alfonso o Batalhador, 1131-1132), mas o reino não consentiu.

Pode-se julgar o número prodigioso das possessões do Templários pelo das terras, fazendas, fortes e ruínas que, em
nossas cidades ou nos nossos campos, ainda carregam o nome do Templo. Diz-se que possuíam mais de nove mil mansões na
cristandade[169]. Numa única província da Espanha, no reino de Valença, eles tinham dezessete praças-fortes. Eles
compraram, dinheiro sonante, o reino de Chipre, que não puderam, é verdade, manter.

Com tamanhos privilégios, com tantas riquezas e tão extensas possessões, era muito difícil permanecerem
humildes[170]. Ricardo Coração de Leão, moribundo, disse: “Deixo minha avareza para os monges de Cîteaux, minha luxúria
para os monges cinza, minha soberba para os Templários”.

Ante a falta de muçulmanos, essa milícia inquieta e indomável guerreava contra os cristãos. Eles fizeram a guerra ao
rei de Chipre e ao príncipe de Antióquia. Destronaram o rei de Jerusalém Henrique II e o duque da Croácia. Devastaram a
Trácia e a Grécia. Todos os cruzados que retornavam da Síria não falavam senão das traições dos Templários, de seus laços
com os infiéis[171]. Eles estavam notoriamente em relações com os Assassinos da Síria (vide Hammer, ‘Hist. des Assassins’,
trad. por MM. Hellert e Larounais); o povo observava com pavor a analogia de suas vestes com aquela dos sectários do
Velho da Montanha . Eles haviam acolhido o Sultão em suas casas, permitido o culto maometano, advertido os infiéis da
chegada de Frederico II (Dupuy, p. 5-6). Em suas rivalidades furiosas contra os Hospitalários, eles chegaram mesmo a lançar
flechas no Santo Sepulcro[172]. Assegurava-se que haviam matado um chefe muçulmano que desejava se converter ao
cristianismo para não mais pagar-lhes tributo.

A Casa da França, particularmente, acreditava ter muito a reclamar dos Templários. Eles haviam matado Roberto de
Brienne em Atenas, se recusado a ajudar pagar o resgate de São Luís[173] e, em último lugar, se declarado a favor da Casa de
Aragão contra a de Anjou.

Entretanto, a Terra Santa fora definitivamente perdida em 1191 e a cruzada terminara. Os cavaleiros retornavam
inúteis, formidáveis, odiosos. Eles traziam consigo, para o centro desse reino esgotado e sob os olhos de um rei famélico, um
monstruoso tesouro de cento e cinquenta mil florins de ouro e, em prata, a plena carga de dez mulas[174]. O que iriam fazer,
em plena paz, com tantas forças e riquezas? Não estariam eles tentados a criarem para si uma soberania no Ocidente, como os
Cavaleiros Teutônicos o fizeram na Prússia, os Hospitalários nas ilhas do Mediterrâneo e os Jesuítas no Paraguai[175]? Se os
Templários tivessem se unido aos Hospitalários, nenhum rei do mundo teria conseguido resistir-lhes[176]. Não havia lugar
onde não tivessem praças-fortes. Eles estavam aliados a todas as famílias nobres. Eles não eram no total, é verdade, além de
quinze mil cavaleiros; mas eram homens aguerridos ao meio de um povo que não o era mais, desde a cessação das guerras
privadas dos senhores feudais. Eram cavaleiros admiráveis, os rivais dos Mamelucos, tão inteligentes, lestos e rápidos quanto
a maciça cavalaria feudal era pesada e inerte. Podiam ser vistos, em qualquer lugar, cavalgando orgulhosamente seus
admiráveis cavalos árabes, seguidos, cada um, de um escudeiro, de um pajem, de um servo d’armas, sem contar os escravos
negros. Eles não podiam variar suas vestimentas, mas possuíam preciosas armas orientais com um aço de fina têmpera e
ricamente damasquinadas.

Eles bem conheciam sua própria força. Os Templários da Inglaterra ousaram dizer ao rei Henrique III: “Vós sereis
rei, tanto quanto fordes justo”. Na boca deles, esta palavra era uma ameaça. Tudo isso dava a pensar a Filipe o Belo.

Filipe não perdoara a muitos deles por não terem subscrito o apelo contra Bonifácio senão com reserva, sub
protestationibus. Eles recusaram o pedido de admissão do rei na Ordem: não só o haviam recusado mas, dupla humilhação, o
haviam servido. Filipe devia-lhes dinheiro[177]. O Templo era uma espécie de banco, como frequentemente o eram os
templos da antiguidade (vide Mitford, ‘The History of Greece’) . Quando, em 1306, Filipe encontrou um asilo junto aos
Templários contra o povo sublevado, esta foi para ele, sem dúvida alguma, uma ocasião para admirar esses tesouros da
Ordem; os cavaleiros eram muito confiantes, muito orgulhosos, para dele esconderem qualquer coisa.

A tentação era grande para o rei[178]. Sua vitória de Mons-en-Puelle o arruinara. Já obrigado a entregar a Guiana,
ele também o fora a largar a Flandres flamenga. Seu desgaste pecuniário era extremo e, entretanto, era-lhe necessário extinguir
um imposto contra o qual a Normandia se sublevara. O povo encontrava-se já tão irritado, que se proibiu a reunião de mais de
cinco pessoas. O rei não podia sair desta situação desesperada senão por algum grande confisco. Ora, tendo os judeus sido
expulsos, o golpe não podia ser desferido senão sobre os sacerdotes ou sobre os nobres; ou, então, sobre uma ordem que
pertencesse a uns e a outros mas que, por isso mesmo, não pertencendo exclusivamente nem a estes, nem àqueles, não seria
defendida por ninguém. Longe de serem defendidos, os Templários foram antes atacados por seus defensores naturais. Os
monges os perseguiram. Os nobres, os maiores senhores da França, deram por escrito sua adesão ao processo.

Filipe o Belo fora educado por um dominicano e tinha por confessor um dominicano. Durante muito tempo, esses
monges tinham sido amigos dos Templários, a ponto, mesmo, de se engajarem a solicitar a cada moribundo que confessavam
um legado para o Templo[179]. Mas, pouco a pouco, as duas ordens tornaram-se rivais. Os Dominicanos possuíam uma ordem
militar deles, os Cavalieri Gaudenti[180], que não teve grande progresso. A esta rivalidade acidental deve-se adicionar uma
causa fundamental do ódio: os Templários eram nobres, os dominicanos, os Mendicantes, eram em grande parte andarilhos,
embora em suas Ordens Terceiras contassem com laicos ilustres e, mesmo, reis.

Tanto nos Mendicantes, como nos juristas conselheiros de Filipe o Belo, havia contra os nobres, contra os homens
d’armas, os cavaleiros, um fundo comum de malquerença, um levedo de ódio nivelador. Os juristas deviam odiar os
Templários como monges e os dominicanos os detestavam como homens d’armas, como monges mundanos que reuniam os
benefícios da santidade e o orgulho da vida militar. A Ordem de São Dominique (ou São Domingos), inquisidora desde seus
nascimento, podia ter se acreditado obrigada em consciência a destruir, em seus rivais, os descrentes, duplamente perigosos
pela importação das superstições sarracenas e por suas ligações com os místicos ocidentais, os quais desejavam apenas
adorar o Espírito Santo.

O ataque não foi imprevisto, como querem alguns. Os Templários tiveram tempo de vê-lo chegar[181]. Mas o orgulho
os destruiu: eles sempre acreditaram que ninguém ousaria.

De fato, o rei hesitava. Ele tentara, inicialmente, meios indiretos. Por exemplo, ele solicitara ser admitido à Ordem.
Se tivesse sido aceito, ele teria se feito Grão-Mestre, a exemplo de Ferdinando o Católico para as ordens militares da
Espanha, aplicado os bens do Templo em seu interesse e a Ordem teria sido conservada.

Desde a perda da Terra Santa, e mesmo anteriormente, deu-se a entender aos Templários que seria urgente reuni-los
aos Hospitalários[182]. Reunidos a uma ordem mais dócil, o Templo teria apresentado pouca resistência aos reis.

Mas eles não quiseram ouvir. O Grão-Mestre Jacques de Molay, pobre cavaleiro da Borgonha, mas velho e bravo
soldado que vinha de se cobrir de honras no Oriente pelos últimos combates que os cristãos aí ofereceram, respondeu, é
verdade, que São Luís outrora propusera a reunião das duas ordens, mas que o rei da Espanha não consentira; que para que os
Hospitalários fossem reunidos aos Templários, seria necessário que eles muito se emendassem; que os Templários tinham
sido mais exclusivamente fundados para a guerra[183]. Ele findou com essas palavras altivas: “Encontra-se muita gente que
desejaria retirar dos religiosos seus bens, ao invés de a eles doar... Mas se esta união das duas ordens for feita, esta Religião
será tão forte e tão poderosa, que bem poderá defender seus direitos contra qualquer pessoa do mundo” (ibidem, p. 181).

Enquanto os Templários resistiam tão orgulhosamente a qualquer concessão, os maus boatos iam se fortificando. Eles
mesmos para isso contribuíram. Um cavaleiro dizia a Raul (Raoul) de Presles, um dos homens mais graves do tempo: “Que no
capítulo-geral da Ordem, havia uma coisa tão secreta que, se para sua desgraça, alguém a visse, mesmo que fosse o rei da
França, nenhum temor de tormento (tortura) impediria os membros do capítulo de matá-lo, segundo seu poder”[184].

Um Templário recentemente admitido protestara contra a forma de recepção perante o oficial de Paris[185]. Um
outro foi disto se confessar a um franciscano que deu-lhe por penitência jejuar todas as sextas-fetas, durante um ano, sem
camisa (Ibid, p. 241). Um terceiro, enfim, que era da casa do Papa, “ingenuamente confessou todo o mal que reconhecera em
sua Ordem, na presença de um cardeal, primo seu, o qual, no mesmo instante, escreveu o depoimento” (Dupuy, p. 13).

Ao mesmo tempo, fazia-se correr rumores sinistros sobre as prisões terríveis onde os chefes da Ordem mergulhavam
os membros recalcitrantes. Um dos cavaleiros declarou “que um de seus tios havia entrado na Ordem são e alegre, com cães e
falcões; ao cabo de três dias, estava morto”[186].

O povo acolhia avidamente esses rumores pois achava os Templários muito ricos e pouco generosos[187]. Ainda que
o Grão-Mestre, em seus interrogatórios, vanglorie a munificência da Ordem, uma das acusações levantada contra esta opulenta
corporação era “que as esmolas não se faziam como convinha”[188].

As coisas estavam maduras. O rei convocou a Paris o Grão-Mestre e os chefes; ele os afagou, os cobriu de gentilezas,
os embalou. Eles vieram morder a linha como os protestantes no dia de São Bartolomeu.

O rei tinha acabado de aumentar seus privilégios[189]. Ele rogara ao Grão-Mestre que aceitasse ser padrinho de um
de seus filhos. No dia 12 de outubro de 1307, Jacques de Molay, designado por ele com outras nobres pessoas, segurara seu
manto no enterro da cunhada de Filipe (Baluze, Pap. Aven., p. 590-1). No dia 13 (NT: uma sexta-feira), ele foi detido com os
cento e quarenta Templários que estavam em Paris. No mesmo dia, sessenta deles o foram no Beaucaire, além de uma
multidão de outros por toda a França. Procurou-se assegurar o assentimento do povo e da Universidade[190]. No dia mesmo
da detenção, os burgueses foram chamados pelas paróquias e pelas confrarias ao jardim do rei na Cité; os monges aí
pregaram. Pode-se julgar a violência dessas pregações populares pela contida na carta real que correu por toda a França:

“Uma coisa amarga, uma coisa deplorável, uma coisa horrível de se pensar, terrível de escutar! coisa execrável de
perversidade, detestável de infâmia!... Um espírito dotado de razão se compadece e se confunde em sua compaixão, vendo
uma natureza que se auto-exila para fora dos limites da natureza, que esquece seu princípio, que desconhece sua dignidade,
que, pródiga de si, assimila-se aos animais desprovidos de razão; o que digo? que ultrapassa a brutalidade dos próprios
animais...” (Dupuy, p. 196-197). Julgue-se com qual terror e arrebatação uma tal carta foi recebida por qualquer alma cristã.
Era como um som da trombeta do Juízo Final.

Seguia-se, então, a indicação sumária das acusações: negação, traição da cristandade em benefício dos infiéis,
iniciação desprezível, prostituição mútua; enfim, o cúmulo do horror: cuspir na cruz[191]!

Tudo isso fora denunciado por Templários. Conta-se que dois cavaleiros, um Gascão e um Italiano, ambos na prisão
por seus malfeitos, teriam revelado todos os segredos da Ordem (Baluze, ‘Pap. aven.’, p. 99-100).

O que mais instigava a imaginação eram os rumores estranhos que corriam sobre um ídolo que os Templários teriam
adorado. As narrativas variavam. Segundo alguns, era uma cabeça com barbas longas; outros diziam tratar-se de uma cabeça
com três faces. Ela ainda possuiria olhos brilhantes. De acordo com uns, seria o crânio de um homem; outros o substituíam por
um de gato[192].

Fossem ou não verdadeiros esses rumores, Filipe o Belo não perdeu tempo. No dia mesmo da detenção, ele veio, de
sua própria pessoa, se estabelecer no Templo com seu tesouro e seu Tesouro das Cartas, com um exército de juristas para
lavrar, registrar e inventariar. Esta bela colheita o fizera subitamente rico.
Capítulo IV

(Sequência)

Destruição da Ordem do Templo.

1307 a 1314.
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O espanto do Papa foi extremo quando soube que o rei se passava dele na perseguição de uma ordem que não podia
ser julgada senão pela Santa Sé. A cólera fez-lhe esquecer sua servilidade ordinária, sua posição precária e dependente no
meio dos estados do rei. Ele suspendeu os poderes dos juízes ordinários, arcebispos e bispos, aqueles mesmos dos
inquisidores.

A resposta do rei é rude. Ele escreve ao Papa: que Deus detesta os tíbios, que esses vagares são uma espécie de
conivência com os crimes dos acusados, que o Papa deveria antes incentivar os bispos. “Seria uma grave injúria aos prelados
retirar-lhes o ministério que recebem de Deus. Eles não merecem tal ultraje; eles não o suportarão; o rei não poderá tolerá-lo
sem violar seu juramento... Santo Padre, qual é o sacrilégio que ousará vos aconselhar menosprezar aqueles que Jesus Cristo
envia ou, mesmo, o próprio Jesus[193]? Se forem suspensos os inquisidores, a questão nunca terminará... O rei não tomou a
coisa em mãos como acusador, mas como campeão da fé e defensor da Igreja, do que deve prestar contas a Deus”[194].

Filipe deixou o Papa acreditar que ia entregar-lhe os prisioneiros em mãos: ele apenas se encarregava de guardar os
bens para aplicá-los no serviço da Terra Santa (25 de dezembro de 1307). Seu objetivo era obter que o Papa devolvesse aos
bispos e aos inquisidores seus poderes, os quais haviam sido por ele, Papa, suspensos. O rei enviou setenta e dois Templários
a Poitiers e mandou partir de Paris os principais da Ordem, mas não os deixou avançar além de Chinon. O Papa se contentou;
ele obteve as confissões daqueles de Poitiers. Ao mesmo tempo, ele levantou a suspensão dos juízes ordinários, reservando-se
somente o julgamento dos chefes da Ordem.

Este frouxo proceder não podia satisfazer o rei. Se a coisa se arrastasse assim, em voz baixa, se fosse perdoada,
como no confessionário, não haveria como manter os bens dos Templários. Desta forma, enquanto o Papa imaginava tudo
manter em suas mãos, o rei mandava proceder, em Paris, por seu confessor, inquisidor-geral da França. Rapidamente foram
obtidas cento e quarenta confissões por torturas; o ferro e o fogo foram empregados[195]. Essas confissões, uma vez
divulgadas, o Papa não podia mais ajeitar a coisa. Ele enviou dois cardeais a Chinon para perguntar aos chefes, ao Grão-
Mestre, se tudo aquilo era verdade; os cardeais os persuadiram a confessar e eles a isso se resignaram[196]. O Papa, em
efeito, os reconciliou e os recomendou ao rei. Ele acreditava tê-los salvo.

Filipe o deixava falar e seguia seu caminho. No início de 1308, ele fez prender, por seu primo, o rei de Napóles,
todos os Templários da Provença[197]. Na Páscoa, os estados do reino foram reunidos em Tours. O rei fez com que lhe fosse
endereçado um discurso singularmente violento contra o clero: “O povo do reino da França dirige ao rei urgentes... Que ele se
lembre que o príncipe dos filhos de Israel, Moisés, o amigo de Deus a quem o Senhor falava face a face, vendo a apostasia
dos adoradores do bezerro de ouro, disse: Que cada um tome o gládio e mate seu irmão...”. Ele não foi, para isto, pedir o
consentimento de seu irmão Aarão, feito sumo-sacerdote por ordem de Deus... Por que, então, o rei cristianíssimo não
procederia igualmente, mesmo contra todo o clero, se o clero assim errasse ou apoiasse aqueles que erram?”[198]

Apoiando esse discurso, vinte e seis príncipes e senhores se constituíram acusadores e deram procuração para agir
contra os Templários perante o Papa e o Rei. A procuração é firmada pelos duques da Borgonha e da Bretanha, pelos condes
de Flandres, de Nevers e da Auvérnia, pelo visconde de Narbonne, pelo conde Talleyrand de Périgord. Nogaret ousadamente
assina entre Lusignan e Coucy (Dupuy, p. 235).
Dupuy conta que, armado dessas adesões, o rei “foi a Poitiers, acompanhado de uma enorme multidão de pessoas,
que eram seus procuradores, e que mantivera ao seu lado para receber seus pareceres a respeito de dificuldades que pudessem
advir” (Dupuy, p. 31).

Chegando, ele humildemente beijou os pés do Papa. Mas este logo viu que nada obteria. Filipe não podia aguardar
nenhuma circunspecção. Era-lhe necessário tratar rigorosamente as pessoas para poder manter os bens. O Papa, fora de si,
desejava sair da cidade, escapar ao seu tirano; quem sabe se não teria até fugido da França? Mas ele não era homem de partir
sem seu dinheiro. Quando se apresentou às portas com suas mulas, suas bagagens, suas bolsas, não pôde passar e viu que era,
não menos que os Templários, um prisioneiro do rei. Várias vezes, ele tentou fugir, sempre inutilmente. Parecia que seu todo-
poderoso mestre se divertia com os tormentos desta alma miserável que ainda se debatia.

Clemente então ficou e pareceu se conformar. Ele entregou, em 1º de outubro de 1308, uma bula dirigida aos
arcebispos e bispos. Esta peça é singularmente breve e precisa, contra o hábito da corte de Roma. É evidente que o Papa
escreveu contra sua vontade e que alguém segurou-lhe a mão. Alguns bispos, segundo esta bula, haviam escrito que não sabiam
como deviam ser tratados os acusados que se obstinavam a negar e aqueles que se retrataram de suas confissões. Disse o
Papa: “essas coisas não foram deixadas sem solução pelo direito escrito (jura scripta), do qual sabemos que vários dentre
vós têm pleno conhecimento; para o presente, não entendemos necessário fazer um novo direito para este caso, e desejamos,
portanto, que vós procedeis segundo o exige o direito”.

Havia, aqui, uma perigoso dubiedade. Jura scripta deveria ser entendido como Direito Romano, Direito Canônico ou
regulamentos da Inquisição?

O perigo era tanto mais real, que o rei não se soltava dos prisioneiros para enviá-los ao Papa, como o fizera esperar.
Na entrevista, ele ainda o agradou e prometeu-lhe os bens para consolá-lo por não ter recebido os prisioneiros; esses bens
deviam ser reunidos àqueles que o Papa designaria[199]. Era pegá-lo pelo seu ponto fraco; Clemente estava muito inquieto
acerca do que seria feito desses bens[200].

O Papa devolvera (05 de julho de 1308) aos juízes ordinários, arcebispos e bispos, seus poderes um instante
suspensos. Ainda no dia 1º de agosto, ele escrevia que se podia seguir o Direito comum. E, aos 12, ele remetia a questão a
uma comissão. Os comissários deviam instruir o processo na província de Sens, em Paris, bispado dependente de Sens.
Outros comissários foram nomeados para fazer outro tanto nas outras partes da Europa: para a Inglaterra, o arcebispo de
Canterbury, para a Alemanha, aqueles de Mainz, de Colônia e de Tréveris (Trier). O julgamento devia ser pronunciado no
prazo de dois anos, fora da França, em Viena, no Delfinado, em terras do Império.

A comissão, composta principalmente de bispos[201], era presidida por Gilles d’Aiscelin, arcebispo de Narbonne,
homem suave e fraco, de muitas letras e de pouca coragem. O rei e o Papa, cada um por seu lado, acreditavam que este homem
era a si. O Papa acreditou acalmar o descontentamento de Filipe com mais segurança ao juntar à comissão o confessor do rei,
monge dominicano e grande inquisidor da França, aquele que começara o processo com tanta violência e audácia.

O rei não reclamou. Ele tinha necessidade do Papa. A morte do imperador Alberto d’Áustria (1º de maio de 1308)
oferecia à Casa da França uma alta perspectiva. O irmão de Filipe, Carlos (Charles) de Valois, cujo destino era tudo pedir e
nada ganhar, portou-se como candidato ao Império. Se tivesse sido bem sucedido, o Papa para sempre se tornaria servidor e
servo da Casa da França. Clemente escreveu ostensivamente em favor de Carlos de Valois e, secretamente, contra o mesmo.

Desde então, não havia mais segurança para o Papa nas terras do rei. Ele conseguiu sair de Poitiers e lançou-se para
dentro de Avignon (março de 1309). Ele se comprometara a não deixar a França e, desta forma, não violava, apenas iludia,
sua promessa. Avignon era a França, mas não era a França. Era uma fronteira, uma posição mista, uma espécie de asilo, como
Genebra foi para Calvino e Ferney para Voltaire. Avignon dependia de vários e de ninguém. Era terra do Império, um velho
município, uma república sob dois reis: o rei de Nápoles, como conde da Provença e o rei da França, como conde de
Toulouse, possuíam, cada um, uma metade de Avignon. Mas o Papa ia ser bem mais rei que ambos, ele, cuja estadia atrairia
muito dinheiro para esta pequena cidadezinha.

Clemente acreditava-se livre, mas arrastava sua corrente. O rei o prendia pelo processo de Bonifácio. Mal
estabelecido em Avignon, ele toma conhecimento que Filipe mandara-lhe levar, pelos Alpes, um exército de testemunhas. À
sua testa, marchava este capitão de Ferentino, este Reinaldo de Supino que, no caso de Anagni, fora o braço direito de
Nogaret. A três léguas de Avignon, as testemunhas caíram numa embosca que lhes fora preparada. Reinado se salvou a duras
penas em Nîmes e mandou lavrar ato, pela gente do rei, dessa armadilha (Dupuy, ‘Differ.’, p. 288).

O Papa escreveu bem rápido para Carlos de Valois rogando-lhe acalmar seu irmão. Ele escreveu ao próprio rei (23
de agosto de 1309) que, se as testemunhas foram retardadas em seu caminho, não era sua culpa, mas do próprio pessoal do rei,
que deveria ter provido a segurança delas (ibid, p. 295, 293-4). Filipe reprovava-lhe adiar indefinidamente o exame das
testemunhas, velhas e doentes, e aguardar que estivessem mortas. Contava-se que os partidários de Bonifácio tinham matado
ou torturado testemunhas; uma delas fora encontrada morta em seu próprio leito. O Papa respondeu que não sabia de nada
disso e que sabia apenas que, durante esse longo processo, as questões dos reis, dos prelados, do mundo inteiro, dormiam e
aguardavam. Uma das testemunhas, que diziam ter desaparecido, encontrava-se precisamente na França e com Nogaret.

O rei imputara ao Papa certas cartas injuriosas. O Papa respondeu que elas eram, pelo latim e pela ortografia,
manifestamente indignas da corte de Roma e, então, as mandou queimar. Quanto à persecução de seus autores, uma
experiência recente provou que esses processos súbitos contra personagens importantes têm uma triste e perigosa
origem”[202].

Esta carta do Papa era, no entender do rei, uma humilde e tímida profissão de independência, uma revolta de joelhos.
A alusão aos Templários, que a finaliza, indica suficientemente a esperança que o Papa coloca no embaraço no qual este
processo devia jogar Filipe.

A comissão pontifícia, reunida no dia 07 de agosto de 1309, no bispado de Paris, fora entravada por muito tempo. O
rei tinha tanta vontade de ver os Templários justificados quanto o Papa de condenar Bonifácio. As testemunhas de acusação
contra Bonifácio eram maltratadas em Avignon, as testemunhas de defesa, no caso dos Templários, eram torturadas em Paris.
Os bispos em nada obedeciam à comissão pontifícia e a esta não enviavam, de forma alguma, os prisioneiros[203]. Todo dia,
a comissão assistia a uma missa, depois se reunia; um meirinho gritava à porta da sala: “Se alguém desejar defender a ordem
da milícia do Templo, basta se apresentar”. Mas ninguém aí se apresentava. A comissão retornava no dia seguinte, sempre
inutilmente.

Enfim, tendo o Papa, por uma bula (13 de setembro de 1309), aberto a instrução do processo contra Bonifácio, o rei
permitiu, em novembro, que o Grão-Mestre do Templo fosse conduzido perante os comissários[204]. O velho cavaleiro
demonstrou, inicialmente, muita firmeza. Ele disse que a Ordem era privilegiada da Santa Sé e que lhe parecia muito chocante
que a igreja romana desejasse subitamente proceder à sua destruição, quando ela, igreja, suspendera a deposição do
imperador Frederico II durante trinta e dois anos.

Ele ainda disse que estava pronto para a defesa da Ordem, segundo seu poder e capacidade; que veria a si mesmo
como um miserável, se não defendesse uma Ordem da qual recebera tanta honra e mais; apenas, porém, temia não ter
sabedoria e reflexão o suficiente para a questão; que era prisioneiro do rei e do Papa e que não possuía senão quatro denários
para dispender para a defesa e nenhum outro conselho senão o de um irmão-servente[205]; que, de resto, a verdade se
mostraria, não somente pelo testemunho dos Templários, mas pelo dos reis, príncipes, prelados, duques, condes e barões, em
todas as partes do mundo.

Se o Grão-Mestre assim se colocasse como defensor da Ordem, ele emprestaria uma grande força à defesa e, sem
dúvida, comprometeria o rei. Os comissários o incentivaram a refletir de forma mais madura e fizeram-lhe ler seu depoimento
perante os cardeais. Este depoimento não provinha diretamente dele mesmo; por pudor ou por algum outro motivo, ele
remetera os cardeais a um irmão-servente, a quem encarregara de falar por si (ibid, p. 242). Mas, desde que se encontrou
perante a comissão, e que o pessoal da igreja leu-lhe, em alto e bom som, essas tristes confissões, o idoso cavaleiro não pôde
ouvir com sangue frio tais coisas ditas à queima-roupa. Ele fez o sinal da cruz e disse que, fossem os senhores
comissários[206] do Papa outras pessoas, ele teria algo a mais a acrescentar-lhes. Os comissários responderam que não eram
pessoas a dispensar uma oferta de batalha. – “Não é isso que quero dizer”, disse o Grão-Mestre, “mas que agradasse a Deus
que, num tal caso, pudéssemos observar contra os perversos os costumes dos Sarracenos e dos Tártaros, decapitando-lhes a
cabeça ou cortando-os ao meio”[207].

Esta resposta fez os comissários saírem de sua calma ordinária. Eles responderam com uma fria dureza: “Aqueles
que a Igreja considera heréticos, ela os julga heréticos e abandona os obstinados ao tribunal secular”.

O homem de Filipe o Belo, Plasian, assistia à esta audiência sem ter sido para ela chamado. Jacques de Molay,
temeroso da impressão que suas palavras haviam produzido sobre esses sacerdotes, acreditou que valia mais se confiar a um
cavaleiro[208]. Ele pediu permissão para conferenciar com Plasian; este o incentivou, como amigo, a não se deixar destruir e
o convenceu a pedir um adiamento até à sexta-feira seguinte. Os bispos concederam-lhe e, de bom coração, mais tempo dar-
lhe-iam[209].

Na sexta-feira, Jacques de Molay reapareceu, mas completamente mudado. Sem dúvida, Plasian o trabalhara em sua
prisão. Quando lhe foi expressamente perguntado se desejava defender a Ordem, ele respondeu que não e apenas rogou aos
comissários escreverem ao Papa para que viesse, o quanto antes, à sua presença. O Grão-Mestre acrescentou, com a
ingenuidade da impaciência e do medo: “Eu sou mortal, os outros também; não temos a nosso dispor senão o momento
presente”[210].

O Grão-Mestre, abandonando assim a defesa, dela tirava a unidade e a força que ela poderia receber de si. Ele pediu
somente para dizer três palavras em favor da Ordem. Primeiro, que não havia nula outra igreja onde o serviço divino se
fizesse mais honradamente que naquelas dos Templários. Em segundo lugar, que não tinha conhecimento de nenhuma outra
Religião onde se fizesse mais caridade e esmolas que a Religião do Templo; que aí se dava, três vezes por semana, esmola a
qualquer um que viesse. Por fim, que não era de seu conhecimento a existência de qualquer outra gente que tivesse vertido
mais sangue pela fé cristã e que fosse mais temida pelos infiéis; que, em Mançura, o conde do Artois os pusera na vanguarda,
e que se ele os tivesse ouvido...

Então, uma voz repentinamente se ergueu: “Sem a fé, tudo isso de nada serve à salvação”.

Nogaret, que lá se encontrava, tomou assim a palavra: “Eu ouvi dizer que, nas crônicas que estão em Saint-Denis, foi
escrito que, ao tempo do sultão da Babilônia, o Grão-Mestre de então e os outros grandes da Ordem prestaram homenagem a
Saladino, e que o mesmo Saladino, tomando conhecimento de uma grande derrota dos cavaleiros do Templo, publicamente
dissera que isto lhes ocorrera como castigo por um vício infame e por sua prevaricação contra a sua própria Lei”.

O Grão-Mestre respondeu que jamais ouvira dizer coisa parelha; que sabia somente que o Grão-Mestre de então
mantivera as tréguas porque, de outra forma, não poderia guardar tal ou qual castelo. Jacques de Molay findou por
humildemente pedir aos comissários e ao chanceler Nogaret permitirem-lhe ouvir a missa e ter sua capela e seus capelões.
Eles lhe prometeram, louvando sua devoção.

Assim, começavam, ao mesmo tempo, os dois processos do Templo e de Bonifácio VIII. Eles apresentavam o
estranho espetáculo de uma guerra indireta do rei e do Papa. Este último, forçado pelo rei a processar Bonifácio, era vingado
pelos depoimentos dos Templários contra a barbárie com a qual os servidores do rei haviam dirigido os primeiros
procedimentos. O rei desonrava o Papado, o Papa desonrava a realeza. Mas o rei tinha a força; ele impedia os bispos de
enviar aos comissários do Papa os Templários prisioneiros e, ao mesmo tempo, lançava sobre Avignon nuvens de testemunhas
que eram arrebanhadas na Itália. O Papa, de alguma sorte sitiado por elas, estava condenado a ouvir os mais terríveis
depoimentos contra a honra do Pontificado.

Várias testemunhas confessaram sua própria infâmia e detalhavam com extensão quais abominações tinham em
comum com Bonifácio (ibid. p. 525). Uma das confissões menos repugnantes, de todas aquelas que podemos traduzir, é que
Bonifácio mandara matar seu antecessor; ele teria dito a um desses miseráveis: Não reapareça diante de mim sem que antes
tenhas matado Celestino (ibid., p. 530). O próprio Bonifácio teria organizado um sabat, um sacrifício ao diabo (ibid., p. 537).
O que é mais verossímil neste velho jurista italiano, neste compatriota de (Pietro) Aretino e de Maquiavel, é que fosse
incrédulo, ímpio e cínico em suas palavras... Algumas pessoas, tendo medo numa tempestade e dizendo que era o fim do
mundo, ele teria dito: O mundo sempre foi e sempre será. – Senhor, asseguram-nos que haverá uma ressurreição? – Já vistes
alguma vez alguém ressuscitar?

Um homem, tendo-lhe trazido figos da Sicília, dizia-lhe: “Se eu tivesse morrido na minha viagem, Cristo teria tido
piedade de mim”. Ao que Bonifácio teria respondido: “Vá! eu sou muito mais poderoso que teu Cristo; eu posso dar
reinos”[211].

Ele falava de todos os mistérios com um assustador sacrilégio. Ele dizia da Virgem: “Non credo in Mariolâ, Mariolâ,
Mariolâ” (NT: Não creio em Mariazinha, Mariazinha, Mariazinha [212]). E também: “Não acreditamos, igualmente, nem na
jumenta, nem no seu burrinho”[213].

Essas horríveis bufonarias não são bem provadas. O que o foi melhor, e que talvez tenha sido mais funesta a
Bonifácio, foi sua tolerância. Um inquisidor da Calábria dissera: “Creio que o Papa favorece os heréticos, pois ele não nos
permite mais exercer nosso ofício” (ibid. p. 546). – Em outro caso, são os monges que fazem processar seu abade por heresia;
ele é condenado pela inquisição. Mas o Papa zomba disso: “Vós sois uns idiotas”, ele lhes diz, “vosso abade é um homem
sábio e pensa melhor que vós: ide e crede como ele crê” (ibid, p. 533).

Após todos esses testemunhos, era preciso que Clemente V suportasse, face à face, a insolência de Nogaret (16 de
março de 1310). Ele veio em pessoa a Avignon, mas acompanhado de Plasian e de uma boa escolta de homens armados. Foi,
para este pequeno Lutero do século XIV, seu triunfo, sua dieta de Worms, com esta diferença que Nogaret, tendo por si o rei e
a espada, era o opressor de seu julgador.

Nos numerosos factums (memoriais) que ele já lançara, encontra-se a substância daquilo que ele podia dizer ao
Papa: é uma mistura de humildade e de insolência, de servilismo monárquico e de republicanismo clássico, de erudição
pedantesca e de audácia revolucionária. Eu errei em compará-lo a Lutero. A amargura de Nogaret não lembra as belas e
ingênuas cóleras do bom homem de Wittemberg, no qual havia, juntos, uma criança e um leão; é, antes, a bile amarga e
requentada de Calvino, este ódio à quarta potência...

No seu primeiro factum, Nogaret declarara que não o deixaria manter as coisas assim. A ação contra a heresia, ele
diz, não se extingue pela morte, morte non extinguitur. Ele pedia que Bonifácio fosse exumado e queimado.

Em 1310, ele muito deseja se justificar; mas é que uma boa alma teme a falta, mesmo onde falta não há; assim fizeram
Jó, o apóstolo e Santo Agostinho... Em seguida, ele sabe de pessoas que, por ignorância, estão escandalizadas por sua causa;
ele teme, se não se justificar, que essas pessoas sofram a danação se pensarem mal dele, Nogaret. Eis porque ele suplica,
pede, postula e requer como de direito (“requiert comme droit”), com lágrimas e gemidos, mãos juntas, joelhos à terra...
Nesta humilde postura, ele pronuncia, à guisa de justificativa, uma terrível invectiva contra Bonifácio: não há menos de
sessenta títulos de acusação.

“Bonifácio”, ele ainda afirma, “tendo declinado o julgamento e repelido a convocação do concílio, era, por só isso,
contumaz e condenado”. Nogaret não tinha um minuto a perder para cumprir seu mandato. Ante a falta do poder eclesiástico ou
civil, fazia-se assaz necessário que o corpo da Igreja fosse defendido por um católico qualquer; “todo católico é obrigado a
expor sua vida pela Igreja. Eu, então, Guilherme (Guillaume) Nogaret, homem privado, e não apenas homem privado, mas
cavaleiro, obrigado, por dever de cavalaria, a defender a república, foi-me permitido, foi-me imposto, resistir ao sobredito
tirano pela verdade do Senhor – Idem, assim como deve ser que cada um seja obrigado a defender sua pátria, a ponto de
merecer recompensa se, nesta defesa, for necessário matar seu pai [214], era-me legítimo, que digo?, era-me obrigatório
defender minha pátria, o reino da França, que tinha a temer a devastação, o gládio, etc.

Pois, então, porque Bonifácio seviciava a Igreja e a si mesmo more furiosi (NT: como um louco furioso), foi
extremamente necessário atar-lhe os pés e as mãos. Não era isso um ato inimigo, bem ao contrário...

Mais eis quem é mais forte. Foi Nogaret quem salvou a vida de Bonifácio e ainda salvou a de um de seus sobrinhos.
Ele não deixou darem de comer ao Papa, senão por pessoas em quem este confiasse. Assim, Bonifácio libertado, foi-lhe dada
a absolvição. Em Anagni mesmo, Bonifácio pregou para uma grande multidão que, tudo o que lhe ocorrera por meio de
Nogaret ou seu pessoal, viera-lhe do próprio Senhor”.

Neste ínterim, o processo dos Templários começara com grande barulho, apesar da deserção do Grão-Mestre. No dia
28 de março de 1310, os comissários mandaram trazer, para o jardim do bispado, os cavaleiros que declararam desejar
defender a Ordem: a sala não poderia abrigar todos pois eram quinhentos e quarenta e seis. A eles leu-se, em latim, os artigos
de acusação. Desejou-se, em seguida, lê-los em francês. Mas eles exclamaram que era o bastante tê-los ouvido em latim e que
não se preocupassem em traduzir tamanhas torpezas para a língua vulgar[215]. Como eram por demais numerosos, para evitar
o tumulto, foi-lhes dito para constituírem procuradores, para nomearem alguns dentre si que falariam pelos outros. Todos
teriam desejado falar, tanto haviam retomado a coragem. Eles ironicamente exclamaram: “Nós também não deveríamos ser
torturados senão por procuradores”[216]. Eles portanto constituíram dois deles, um cavaleiro, irmão Raynaud de Pruin, e um
padre, irmão Pierre de Boulogne, procuradores da Ordem junto à corte pontifícia. Alguns outros foram-lhes adjungidos.

Em seguida, os comissários mandaram colher, em todas as casas de Paris que serviam de prisão aos
Templários[217], os depoimentos daqueles que desejassem defender a Ordem. Foi uma luz tenebrosa que penetrou nas prisões
de Filipe o Belo. Dali saíram vozes estranhas: algumas orgulhosas e rudes, outras piedosas, exaltadas, várias ingenuamente
dolorosas. Um dos cavaleiros disse somente: “Eu não pude, sozinho, eu mesmo, litigar contra o Papa e o rei da França”[218].
Alguns dão por depoimento uma prece à Virgem Maria: “Maria, estrela dos mares, conduza-nos ao porto da salvação...”[219].
Mas a peça mais curiosa é um protesto em língua vulgar onde, após ter sustentado a inocência da Ordem, os cavaleiros nos
dão a conhecer sua humilhante miséria, o triste cálculo de suas despesas[220]. Estranhos detalhes e que fazem um cruel
contraste com a soberba e a riqueza tão cantadas e decantadas desta Ordem! ... Os infelizes, contra sua pobre paga de doze
denários por dia, eram obrigados a pagar a passagem d’água para irem sofrer seus interrogatórios na Cité (l’Île de la Cité) e,
ainda, a também dar dinheiro ao homem que abria ou trancava suas correntes.

Enfim, os defensores apresentaram um ato solene em nome da Ordem. Neste protesto singularmente forte e ousado,
eles declaram não poder se defender sem o Grão-Mestre ou perante qualquer outra corte que não fosse o Conselho-Geral. Eles
sustentam: “Que a Religião do Templo é santa, pura e imaculada perante Deus e seu Pai[221]. A instituição regular, a
observância salutar, sempre aí estiveram e aí ainda estão em vigor. Todos os irmãos não têm senão uma profissão de fé que,
em todo o universo, foi e é sempre observada por todos, desde a fundação (da Ordem) até o dia presente. E quem diz ou
acredita de outra forma, erra totalmente, peca mortalmente”. Era uma afirmação bem ousada de sustentar que todos tivessem
permanecido fiéis às regras da fundação primitiva; que não havia nulo desvio, nula corrupção. Mesmo quando o justo peca
sete vezes por dia[222], esta Ordem soberba via-se pura e sem pecado. Uma tal confiança dava calafrios.

Eles não pararam por aí. Pediam, ainda, que os irmãos apóstatas fossem postos sob boa guarda até que se julgasse se
eles haviam prestado um verdadeiro testemunho.

Eles também queriam que nenhum laico assistisse aos interrogatórios. Nenhuma dúvida, em efeito, que a presença de
um Plasian, de um Nogaret, não intimidasse os acusados e os juízes.

Eles findavam por dizer que a comissão pontifícia não podia ir mais avante: “Pois, enfim, não estamos em lugar
seguro; estamos e sempre estivemos sob o poder daqueles que sugerem coisas falsas ao senhor rei. Todos os dias, por eles ou
por outros, de viva voz, por cartas ou mensagens, nos advertem para não nos retratarmos dos falsos testemunhos que nos foram
extraídos pelo temor pois, do contrário, seremos queimados”[223].

Alguns dias depois, novo protesto, mas ainda mais vigoroso, menos apologético que ameaçador e acusador: “Este
processo”, dizem, “foi repentino, violento, iníqüo e injusto; não é nada além de violência atroz, intolerável erro... Nas prisões
e nas torturas, muitos e muitos são mortos; outros restarão enfermos pelo resto de suas vidas; vários foram constrangidos a
mentir contra si mesmos e contra sua Ordem. Essas violências e esses tormentos arrebataram totalmente o livre arbítrio, é
dizer, tudo o que o homem pode ter de bom. Quem perde o livre arbítrio, perde todo o bem, ciência, memória e
intelecto[224]... Para empurrá-los à mentira, ao falso testemunho, eram-lhes exibidas cartas donde pendiam os selos do rei e
que lhes garantiam a conservação de seus membros, da vida, da liberdade; prometia-se prover cuidadosamente, de sorte que
tivessem boas rendas pelo resto de suas vidas; assegurava-se-lhes, ademais, que a Ordem estava condenada sem remédio...”.

Ainda que habituados estivessem, naquela época, à violência dos procedimentos inquisitoriais, à imoralidade dos
meios comumente empregados para fazer os acusados falarem, era impossível que tais palavras não revoltassem os corações!
Mas o que gritava mais que as palavras, era o compadecedor aspecto dos prisioneiros, seus rostos pálidos e emagrecidos, as
marcas hediondas das torturas... Um deles, Humberto (Humbert) Dupuy, a décima-quarta testemunha, fora torturado três vezes,
mantido por trinta e seis semanas no fundo de uma torre infecta, à pão e água. Um outro fora pendurado pelos genitais. O
cavaleiro Bernardo (Bernard) Dugué (de Vado), cujos pés foram postos à frente de um fogo ardente, exibia dois ossos que lhe
tinham caído dos calcanhares[225].

Eram cruéis espetáculos. Os próprios juízes, completamente juristas que fossem, e sob seus secos hábitos de
sacerdotes, estavam comovidos e sofriam. Quão mais não sofria e não se comovia o povo que, todo dia, via esses desgraçados
atravessarem a água por barca a fim de se apresentarem na Cité, no palácio episcopal, onde se reunia a comissão! A
indignação crescia contra os acusadores, contra os Templários apóstatas. Um dia, quatro destes últimos se apresentam perante
a comissão, ainda mantendo suas barbas, mas levando seus mantos à mão. Eles os jogam aos pés dos bispos e declaram que
renunciam ao hábito do Templo. Mas os juízes não os viram senão com desgosto e lhes disseram que, doravante, fizessem o
que bem desejassem[226].

O processo tomava um rumo incômodo para aqueles que o haviam iniciado com tanta precipitação e violência. Os
acusadores caíam, pouco a pouco, na situação dos acusados. Todo dia, os depoimentos destes revelavam as barbáries e as
torpezas da primeira instrução. A intenção do processo tornava-se visível. Atormentara-se um acusado para obrigá-lo a dizer
a quanto montava o tesouro trazido da Terra Santa. Um tesouro, era ele um crime, um título de acusação?

Quando se pensa no imenso número de afiliados que o Templo possuía entre o povo, nas relações dos cavaleiros com
a nobreza da qual todos saíram, não se pode duvidar que o rei não estivesse receoso de ter ido tão longe. O objetivo
vergonhoso, os meios atrozes, tudo fora desmascarado. O povo, perturbado e inquieto em sua crença desde a tragédia de
Bonifácio VIII, não iria se sublevar? Na revolta das moedas, o Templo fora suficientemente forte para proteger Filipe o Belo;
hoje, todos os amigos do Templo estavam contra ele...

O que agravava ainda mais o perigo, é que, nas outras regiões da Europa, as decisões dos concílios eram favoráveis
aos Templários[227]. Eles foram declarados inocentes, em 17 de junho de 1310, em Ravena, em 1º de julho em Mainz, em 21
de outubro em Salamanca. Desde o início do ano, podia-se prever esses julgamentos e a perigosa reação que se seguiria em
Paris. Era necessário preveni-la, refugiar-se na audácia. Fazia-se imperativo, a qualquer preço, tomar o processo em mãos,
apressá-lo, asfixiá-lo.

No mês de fevereiro de 1310, o rei se arranjara com o Papa, declarando submeter-se a ele para o julgamente de
Bonifácio VIII (‘Différent, Preuves’, 296-9) . Em abril, ele exigiu em troca que Clemente nomeasse, para o arcebispado de
Sens, o jovem Marigny, irmão do famoso Enguerrand, verdadeiro rei da França no reinado de Filipe o Belo. No dia 10 de
maio, o arcebispo de Sens reuniu, em Paris, um concílio provincial e fez aí comparecerem os Templários. Eis, então, dois
tribunais que julgam ao mesmo tempo os mesmo acusados, em virtude de duas bulas do Papa. A comissão alegava que a bula
atribuía-lhe o julgamento[228]. O concílio se reportava à bula precedente, que devolvera aos juízes ordinários seus poderes
de início suspensos (Dupuy, p. 44, nota). Não resta ato algum deste concílio, nada além dos nomes dos que o compunham e o
nome daqueles que mandaram queimar seus registros.

Ainda no dia 10 de maio, domingo, dia quando a comissão estava reunida, os defensores da Ordem se apresentaram
diante do arcebispo de Narbonne e dos outros comissários pontifícios para levar seu apelo. O arcebispo de Narbonne
respondeu que um tal pedido não interessava nem a ele e nem a seus colegas; que ele e os comissários não se imiscuiriam
nisso, pois não era em seu tribunal que se devia suplicar; que, se desejassem falar em defesa da Ordem, seriam escutados com
prazer.

Os pobres cavaleiros suplicaram que, ao menos, fossem conduzidos ao concílio para entregarem seu apelo, dando-
lhes dois notários que lavrariam ato autêntico; eles rogaram à comissão, suplicaram, mesmo, aos notários presentes. Em seu
apelo, que leram em seguida, eles se punham sob a proteção do Papa nos termos mais patéticos: “Pedimos aos santos
Apóstolos, nós a ele pedimos ainda uma vez, e é como última instância que nós a ele pedimos”[229].

Todo o socorro que lhes deu este Papa sobre o qual contavam e ao qual se recomendavam como a Deus, foi uma
tímida e frouxa consulta onde ele tentava de avanço interpretar a palavra relapso, para saber se essa palavra devia ser
aplicada àqueles que tivessem retratado suas confissões: “De alguma sorte, parece contrário à razão julgar tais homens como
relapsos... Nessas coisas duvidosas, é preciso restringir e moderar as penas”[230].

Os comissários pontifícios não ousaram fazer valer esta consulta. Eles responderam, no entardecer de domingo, que
provavam grande compaixão pelos defensores da Ordem e pelos outros irmãos, mas que a questão da qual se ocupava o
arcebispo de Sens e seus sufragantes era uma outra que não a deles; que não sabiam o que se fazia nesse concílio; que, se a
comissão estava autorizada pela Santa Sé, o arcebispo de Sens também o estava; que uma não tinha nenhuma autoridade sobre
a outra; que, à primeira vista (coup d’œil), eles nada tinham a objetar ao arcebispo de Sens; que, todavia, deliberariam[231].

Enquanto os comissários deliberavam, eles tomaram conhecimento que cinquenta e quatro Templários iam ser
queimados: apenas e somente um dia bastou para que ficassem convencidos, de forma exaustiva, o arcebispo de Sens e seus
sufragantes. Sigamos, passo a passo, a narrativa dos notários da comissão pontifícia, em sua simplicidade terrível.

“Na quarta-feira, 12, durante o interrrogatório do irmão João Bertaldi (Jean Bertaud)[232], veio ao conhecimento
dos comissários que cinquenta e quatro Templários iam ser queimados[233]. Eles encarregaram o preboste da igreja de
Poitiers e o arquidiácono de Orléans, clérigo do rei, de irem dizer ao arcebispo de Sens e seus sufragantes para deliberaram
maduramente e para adiar, visto que os irmãos mortos na prisão afirmavam, contra risco de suas próprias almas (segundo
diziam), que eram falsamente acusados. Se esta execução tivesse lugar, ela impediria os comissários de procederem em seu
ofício, vez que os acusados, de tal forma apavorados, perderiam todo seu bom senso[234]. Em acréscimo, um dos comissários
os encarregou de intimar o arcebispo sobre o fato dos irmãos Raynaud de Pruin, Pierre de Boulogne, padre, Guillaume de
Chambonnet e Bertrand de Sartiges, cavaleiros, terem interposto um recurso perante os comissários”.

Havia aí uma grave questão de jurisdição. Se o concílio e o arcebispo de Sens reconhecessem a validade de um
apelo levado perante a comissão papal, eles confessariam a superioridade deste último colegiado e as liberdades da igreja
galicana restariam comprometidas. Além disso, obviamente, as ordens do rei pressionavam; o jovem Marigny, tornado súbita
e propositadamente arcebispo, não tinha tempo para disputas. Ele se ausentou para não receber os enviados da comissão;
depois, alguém (não se sabe quem) colocou em dúvida que os delegados falassem em nome da comissão; Marigny também
duvidou e tudo ficou como antes[235].

Os Templários conduzidos no domingo perante o concílio, tinham sido julgados na segunda-feira (11 de maio); uns,
que confessaram, eram postos em liberdade; outros, que sempre negaram, eram aprisionados pelo resto da vida; aqueles que
retratavam suas confissões, eram declarados relapsos. Estes últimos, ao número de cinquenta e quatro, foram degradados no
mesmo dia pelo bispo de Paris e entregues ao braço secular. Na terça-feira (12 de maio), eles foram queimados vivos na porta
Santo Antônio (porte Saint-Antoine). Esses desgraçados haviam variado nas prisões, mas de forma alguma variaram nas
chamas: eles protestaram até o fim sua inocência. A multidão estava muda e como imbecilizada de estupor[236].

Quem acreditaria que a comissão pontifícia teria coragem de se reunir no dia seguinte, de continuar este inútil
processo, de interrogar enquanto se queimava?

“Na quarta-feira, 13 de maio, perante os comissários, foi trazido o irmão Aimeri de Villars-le-Duc, barba raspada,
sem manto nem túnica do Templo, idoso, como dizia, de cinquenta anos, tendo servido na Ordem por oito anos como irmão-
servente e vinte anos como cavaleiro. Os senhores comissários explicaram-lhe os artigos sobre os quais devia ser interrogado.
Mas a mencionada testemunha, pálida e completamente apavorada, depondo sob juramento e ao risco de sua alma, pedindo, se
mentisse, morrer subitamente, e ser, de alma e corpo, repentinamente engolido pelo inferno, batendo-se no peito com os
punhos, fletindo os joelhos e erguendo as mãos na direção do altar, disse que todos os erros imputados à Ordem eram de
completa falsidade, ainda que tivesse confessado alguns deles entre as torturas às quais fora submetido por Guilherme
(Guillaume) de Marcillac e Hugo (Hugues) de Celles, cavaleiros do rei. Ele acrescentava, entretanto, que, tendo visto
cinquenta e quatro cavaleiros serem levados sobre carroças para serem queimados , os quais não tinham desejado confessar
os mencionados erros e, TENDO OUVIDO DIZER QUE ELES HAVIAM SIDO QUEIMADOS , ele, que temia, se fosse
queimado, não ter forças o suficiente e paciência, ele estava pronto a confessar e a jurar por temor, perante os comissários ou
outros, todos os erros imputados à Ordem, a inclusive dizer, se desejassem, que ele matara Nosso Senhor[237]... Ele
suplicava e conjurava os retromencionados comissários, e a nós, notários presentes, a nada revelar ao pessoal do rei o que
vinha de dizer, temendo, dizia ele, que se disso tomassem conhecimento, ele fosse entregue ao mesmo suplício que os
cinquenta e quatro Templários... – Os comissários, vendo o perigo que ameaçava os depoentes se continuassem a ouvi-los
durante este terror[238] e, ainda, movidos por outras causa, resolveram suspender (a sessão) pelo momento”.

A comissão parece ter ficado comovida com essa cena terrível. Apesar de enfraquecida pela deserção de seu
presidente, o arcebispo de Narbonne, e do bispo de Bayeux, que não vinham mais às sessões, ela tentou salvar, se ainda fosse
tempo, os três principais defensores.

“Na segunda-feira, 18 de maio, os comissários pontifícios encarregaram o preboste da igreja de Poitiers e o


arquidiácono de Orléans de irem encontrar, de sua parte, o venerável pai em Deus, o senhor arcebispo de Sens e seus
sufragantes, para reclamar os defensores Pierre de Boulogne, Guillaume de Chambonnet e Bertrand de Sartiges, de sorte que
pudessem ser trazidos, sob boa guarda, todas as vezes que o pedissem para a defesa da Ordem”. Os comissários tiveram o
cuidado de acrescentar: “Que não desejam causar nenhum embaraço ao arcebispo de Sens e a seu concílio, mas somente
desejam aliviar suas consciências...”[239].

“Ao entardecer, os comissários se reuniram em Sainte-Geneviève (Santa Genoveva), na capela de Santo Elói, e
receberam os cônegos que vinham da parte do arcebispo de Sens. O arcebispo respondia que havia dois anos[240] que o
processo começara contra os cavaleiros acima nominados, como membros particulares da Ordem; que ele desejava terminá-lo
segundo a forma do mandato apostólico. Que, de resto, ele compreendia não estar de forma alguma a embaraçar os
comissários em seu ofício”[241]. Gigantesca zombaria!

“Tendo os enviados do arcebispo de Sens se retirado, conduziu-se à frente dos comissários os cavaleiros Raynaud de
Pruin, Chambonnet e Sartiges, os quais anunciaram que Pierre de Boulougne havia sido separado deles sem que soubessem o
porquê, acrescentando que eram todos gente simples, sem experiência, além disso, que estavam estupefatos e perturbados, de
forma que não podiam nada falar ou ditar para a defesa da Ordem sem o conselho do dito Pierre. Razão pela qual suplicavam
aos comissários fazê-lo vir, ouvi-lo e saber como e porque ele fora separado deles, e se ele desejava persistir na defesa da
Ordem ou abandoná-la. Os comissários ordenaram ao preboste de Poities e a Jehan de Teinville que, no dia seguinte,
trouxessem o retrocitado irmão à sua presença” (ibidem, 71, verso).

No dia seguinte, via-se que Pierre de Boulougne não comparecera. Mas uma turba de Templários viera dizer que
abandonava a defesa. No sábado, a comissão, também abandonada por um de seus membros, adiou seus trabalhos para o dia 3
de novembro seguinte.

Na data aprazada, os comissários eram ainda menos, encontrando-se reduzidos a três. O arcebispo de Narbonne
deixara Paris para o serviço do rei. O bispo de Bayeux estava ao lado do Papa da parte do rei. O arquiácono de Maguelone
estava doente. O bispo de Limoges pusera-se a caminho para vir, mas o rei mandara-lhe dizer que era preciso ainda adiar até
o próximo parlamento[242]. Os membros presentes mandaram, portanto, perguntar à porta da sala se alguém tinha alguma
coisa a dizer a favor da Ordem do Templo. Ninguém se apresentou.

No dia 27 de dezembro, os comissários retomaram os interrogatórios e novamente solicitaram os dois principais


defensores da Ordem. Mas o primeiro de todos, Pierre de Boulogne, desaparecera. Seu colega, Raynaud de Pruin, não podia
mais responder porque, segundo se alegava, fora degradado pelo arcebispo de Sens. Vinte e seis cavaleiros, que já haviam
antes prestado juramento para depor, foram retidos pelo pessoal do rei e não puderam se apresentar.

É uma coisa admirável que, ao meio dessas violências e em um tal perigo, se tenha encontrado um certo número de
cavaleiros para sustentar a inocência da Ordem; mas essa coragem foi rara. A maior parte estava sob a impressão de um
profundo terror[243].

A destruição dos Templários era perseguida com encarniçamento em todos os lugares, nos concílios
provinciais[244]; nove cavaleiros também tinham acabado de ser queimados vivos em Senlis. Os interrogatórios tinham lugar
sob o terror das execuções. O processo era abafado nas chamas... A comissão continuou suas sessões até o dia 11 de junho de
1311. O resultado de seus trabalhos foi consignado num registro que findou com essas palavras: “Para acréscimo de
precaução, nós guardamos o mencionado Processo, redigido pelos notários em ato autêntico, no tesouro de Notre-Dame de
Paris, de modo a não ser exibido a ninguém, salvo contra apresentação de cartas especiais de Vossa Santidade”[245].

Em todos os Estados da cristandade, suprimiu-se a Ordem como inútil ou perigosa. Os reis tomaram os bens ou os
deram a outras Ordens. Mas os indivíduos foram acomodados: o tratamento mais severo que sofreram foi o de serem
aprisionados em monastérios, com frequência em seus próprios conventos. Foi a única pena à qual foram condenados, na
Inglaterra, os chefes da Ordem que se obstinavam em negar.

Os Templários foram condenados na Lombardia e na Toscana, justificados em Ravena e em Bolonha [246]. Em


Castela, foram considerados inocentes. Aqueles de Aragão, que possuíam praças-fortes, para dentro delas se lançaram e
opuseram resistência, principalmente em seu famoso forte de Monzón[247]. O rei de Aragão tomou esses fortes e eles não
foram mais maltratados. Criou-se a Ordem de Montesa, onde eles ingressaram em multidão. Em Portugal, eles recrutaram as
ordens de Avis e de Cristo. Não era na Espanha, em face dos Mouros, na terra clássica da cruzada, que se podia sonhar em
proscrever os velhos defensores da cristandade[248].

A conduta dos outros príncipes em relação aos Templários era uma sátira à de Filipe o Belo. O Papa condenou esta
suavidade; ele reprovou aos reis da Inglaterra, de Castela, de Aragão e de Portugal não terem empregado torturas. Filipe o
endurecera, seja dando-lhe parte dos despojos, seja abandonando-lhe o julgamento de Bonifácio. O rei da França decidira-se
a ceder algum pouco sobre este último ponto. Ele via tudo mudar à sua volta. Os estados sobre os quais ele estendia sua
influência pareciam perto de escapar. Os barões ingleses desejavam derrubar o governo dos favoritos de Eduardo II, que os
mantinha humilhados perante a França. Os Gibelinos da Itália chamavam o novo imperador, Henrique de Luxemburgo, para
destronar o neto de Carlos d’Anjou, o rei Roberto, grande douto e pobre rei, que não era hábil senão em astrologia. A Casa da
França arriscava perder sua ascendência na cristandade. O Império, que se acreditava morto, ameaçava reviver. Dominado
por esses temores, Filipe permitiu a Clemente declarar que Bonifácio não era herético[249], assegurando, todavia, que o rei
agira sem malignidade, que ele mais tivera, como um outro Sem, escondido a vergonha, a nudez paternal... O próprio Nogaret
foi absolvido à condição de partir para a cruzada (se houver cruzada) e servir, por toda a sua vida, na Terra Santa;
aguardando que isso ocorra, ele fará tal ou qual peregrinação. O continuador de Nangis malignamente acrescenta uma outra
condição: que Nogaret fará do Papa o seu herdeiro (Contin. Guill. de Nangis, ad. ann. 1311).
Ele estava assim comprometido. O rei, cedendo a respeito de Bonifácio, o Papa abandonou-lhe os Templários. Ele
entregava os vivos para salvar um morto. Mas este morto era o próprio papado.

Esses arranjos feitos em família, restava fazê-los serem aprovados pela Igreja. O concílio de Viena abriu-se no dia
16 de outubro de 1312; concílio ecumênico para o qual se apresentaram mais de trezentos bispos; mas ele foi ainda mais
solene pela gravidade das matérias que pelo número de assistentes.

De início, devia-se falar da libertação dos santos lugares. Todo concílio tratava disso, todo príncipe tomava a cruz e
todos permaneciam em casa. Não era nada além de um meio de extrair dinheiro[250].

O concílio tinha a regrar duas grandes causas, aquela de Bonifácio e a outra do Templo. Desde o mês de novembro,
nove cavaleiros haviam se apresentado aos prelados oferecendo-se, corajosamente, para defender a Ordem e declarando que
mil e quinhentos ou dois mil dos seus estavam em Lyon ou nas montanhas vizinhas, todos preparados para apoiá-los.
Assustando-se com esta declaração ou, antes, com os interesses que poderiam ser inspirados pela devoção dos nove, o Papa
mandou prendê-los[251].

A partir de então, ele não mais ousou reunir o concílio, mantendo os bispos inativos durante todo o inverno nesta
cidade estrangeira, longe de seus países e de seus negócios, esperando, sem dúvida, vencê-los pelo enfado e vencê-los um a
um.

O concílio tinha ainda um objeto, a repressão aos místicos, beguinos e franciscanos espirituais. Foi uma coisa muito
triste ver perante o papa de Filipe o Belo, aos joelhos de Bertrand de Gott, o piedoso e entusiasta Ubertino, o primeiro autor
conhecido de uma Imitação de Jesus Cristo[252]. Toda a graça que ele pedia para si e para seus irmãos, os Franciscanos
reformados, era a de que não fossem forçados a ingressar nos conventos pouco rigorosos, muito ricos, onde não se
encontrassem pobres o suficiente tal como desejavam.

A Imitação, para esses místicos, era a caridade e a pobreza. Na obra mais popular desse tempo, na Lenda Dourada,
um santo dá tudo o que tem, mesmo sua camisa; ele não guarda senão seu Evangelho. Mas, chegando ainda um outro pobre, o
santo também dá o Evangelho... Nesta lenda ousada, a religião exibe-se imolada às obras, a fé à caridade[253].

A pobreza, irmã da caridade, era o amor e o ideal dos Franciscanos, seu sublime desejo[254]. Eles aspiravam a nada
possuir. Mas isto não é tão fácil, como se crê. Eles mendigavam, eles recebiam; o próprio pão de cada dia, não é isso uma
posse? E quando os alimentos eram assimilados, misturados à sua carne, podia-se dizer que não pertencessem a eles?... Vários
se obstinavam em negar[255]. Bizarro esfoço para escapar vivo às condições da vida, às servidões da matéria, para
conquistar e antecipar aqui embaixo a independência de um espírito puro.

Isto podia parecer ou sublime ou risível; mas, à primeira olhadela, não se via o perigo. Entretanto, fazer da pobreza
absoluta a lei do homem não significava condenar a propriedade? precisamente como, na mesma época, as doutrinas da
fraternidade ideal e do amor sem limite anulavam o casamento, esta outra base da sociedade civil?

À medida que a autoridade se ia, que o padre tombava no espírito dos povos, a religião, não estando mais contida nas
formas, se propagava em misticismo[256]. O Cristianismo saíra do amor e, em seu enfraquecimento, parecia doente de amor.

Os Pequenos Irmãos (fraticelli) punham em comum os bens e as mulheres. Eles diziam que, na aurora da era da
caridade, não se podia guardar nada para si mesmo. Na Itália, onde a imaginação é impaciente, no Piemonte, região de
energia, eles conseguiram fundar, sobre uma montanha, a primeira cidade verdadeiramente fraternal[257]. Eles aí sustentaram
um sítio, sob seu chefe, o bravo e eloquente Dulcino. Sem dúvida, havia alguma coisa neste homem: quando foi preso e
destrinchado com tenazes em brasa, sua bela Margareta recusou todos os cavaleiros que desejavam salvá-la desposando-a e
preferiu partilhar este tenebroso suplício (ibidem).

As mulheres, nesta época, tinham um enorme lugar na história da religião. Os grandes santos são mulheres: Santa
Brigite (NT: ou Brígida da Suécia) e Santa Catarina de Siena. Os grandes heréticos são também mulheres. Em 1310, em 1315,
vemos mulheres da Alemanha ou dos Países-Baixos ensinarem que a alma aniquilada no amor do Criador pode deixar o corpo
para fazer o que desejar, sem se preocupar (Cont. G. de Nangis, ap. Spicileg., III, 63). Já (1300) uma inglesa viera à França
persuadida que era o Espírito Santo encarnado para a redenção das mulheres; nela não se acreditava senão de boa-vontade;
era bela e de suaves palavras[258].
Qualquer que fosse a boa intenção dessas pregadoras, havia muita sensualidade em tudo isso. Mas o amor só não é
perigoso sob a forma voluptuosa? também não o é nas abstinências? O mistiscismo mais puro dos Franciscanos não era menos
alarmante[259]. O Papa, defensor da Igreja, da sociedade e do senso comum, devia condenar sua sublime mas por demais
rigorosa e absurda lógica, sua caridade, sua pobreza absoluta. O ideal devia ser condenado, o ideal das virtudes cristãs!

Coisa dura e odiosa de dizer! Quão mais chocante então, quando a condenação partia da boca de um Clemente V ou
de um João XXII. Ainda que mortas estivessem as consciências desses Papas, eles devem ter se perturbado e sofrido quando
lhes foi necessário julgar e proscrever esses desgraçados sectários, esta louca santidade cujo todo crime era querer ser pobre,
jejuar, chorar de amor, ir-se, pés nus, pelo mundo, encenar, inocentes comediantes, o drama tocante de Jesus[260].

A causa dos Templários foi retomada na primavera. O rei deitou a mão sobre Lyon, o asilo deles. Os burgueses o
haviam chamado contra seu arcebispo; esta cidade imperial era negligenciada pelo Império e ela convinha muito bem ao rei,
não somente como o nó dos rios Saône e Ródano, a ponta da França no leste, a cabeça da estrada na direção dos Alpes ou da
Provença mas, sobretudo, como asilo de descontentes, como ninho de heréticos. Filipe aí manteve uma assembléia de
notáveis. Depois, ele veio ao Concílio com seus filhos, seus príncipes e um grande cortejo de soldados armados; ele se
estabeleceu ao lado do Papa, um pouco mais abaixo.

Até aí, os bispos haviam se mostrado muito pouco dóceis: eles insistiam em querer ouvir a defesa dos Templários.
Os prelados da Itália, menos um só, aqueles da Espanha, os da Alemanha e da Dinamarca, os da Inglaterra, da Escócia e da
Irlanda, os próprios Franceses, súditos de Filipe (salvo os arcebispos de Reims, de Sens e de Rouen), declararam que não
podiam condenar sem ouvir[261].

Foi preciso, portanto, que, após ter reunido o Concílio, o Papa dele se passasse. Ele reuniu seus bispos mais seguros
e alguns cardeais e, neste consistório, aboliu a ordem de sua autoridade pontifícia[262]. A abolição foi em seguida
pronunciada na presença do rei e do concílio. Nenhuma reclamação se ouviu.

É preciso reconhecer que este processo era daqueles que não se podia julgar. Ele abraçava toda a Europa; os
depoimentos eram milhares, os documentos inumeráveis, os procedimentos haviam variado nos diferentes Estados. A única
coisa certa era que a Ordem tornara-se doravante inútil e, além do mais, perigosa. Pouco honoráveis que tivessem sido os
motivos secretos, o Papa agiu sensatamente. Ele declara, em sua bula explicativa, que as informações não são suficientemente
seguras, que não tem o direito de julgar, mas que a Ordem é suspeita: ordinem valdè suspectum (NT: a ordem é muito
suspeita)[263]. Clemente XIV, séculos depois, não agiu diferentemente em relação aos Jesuítas.

Clemente V assim se esforçou em cobrir de honra a Igreja. Ele falsificou secretamente os registros de
Bonifácio[264], mas não revogou, perante o concílio, senão uma das bulas deste Papa, a Clericis laïcos, aquela que em nada
tocava a doutrina, mas que impedia o rei de tomar dinheiro emprestado do clero.

Desta forma, essas grandes querelas de idéias e de princípios recaíram nas questões de dinheiro. Os bens do Templo
deviam ser empregados na libertação da Terra Santa e dados aos Hospitalários[265]. Acusou-se, mesmo, esta Ordem de ter
comprado a abolição do Templo. Se o fez, ela foi bem enganada. Um historiador assegura que ela foi antes empobrecida. João
XXII lamentava-se, em 1316, que o rei se ressarcia pela guarda dos Templários tomando os próprios bens dos
Hospitalários[266]. Em 1317, os Hospitalários ficaram muito felizes em dar a quitação final aos administradores reais dos
bens do Templo. O Papa se afligia, em 1309, por não ter recebido senão um pouco do mobiliário, nem mesmo o suficiente
para cobrir os custos de suas despesas. Mas, no final, ele não teve motivo algum para se queixar[267].

Restava uma triste parte da sucessão do Templo, a mais embaraçosa de todas. Eu falo dos prisioneiros que o rei
guardava em Paris, particularmente do Grão-Mestre. Escutemos, sobre esse trágico evento, a narrativa do historiador
anônimo, do continuador de Guilherme de Nangis:

“O Grão-Mestre da ora em diante Ordem do Templo e três outros Templários, o Visitador da França e os Mestres da
Normandia e da Aquitânia, sobre os quais o Papa se reservara o direito de pronunciamento definitivo[268], compareceram
perante o arcebispo de Sens, e uma assembléia de outros prelados e doutores em direito divino e em direito canônico foi
convocada para Paris, sob a ordem do Papa, pelo bispo de Albano e por dois outros cardeais legados, especialmente para este
fim. Como os quatro retromencionados confessassem, pública e solenemente, os crimes dos quais eram acusados e, como
perserverassem nessa confissão e parecessem desejar nela perseverar até o fim, após madura deliberação do conselho, na
praça do pátio de Notre-Dame, na segunda-feira após São Gregóro, eles foram condenados a serem aprisionados para sempre
e escondidos. Estando os cardeais a acreditar terem posto fim à causa, eis que, repentinamente, sem que se pudesse aguardar,
dois dos condenados, o Mestre d’Ultramar e o Mestre da Normandia, defendendo-se obstinadamente contra o cardeal que
acabara de falar e contra o arcebispo de Sens, tornam a renegar suas confissões e todos os seus reconhecimentos precedentes,
sem guardar qualquer reserva, para grande espanto de todos. Os cardeais os enviaram ao preboste de Paris, que se encontrava
presente, para guardá-los até que pudessem melhor e mais plenamente deliberarem no dia seguinte. Mas, desde que este rumor
chegou aos ouvidos do rei, que então estava em seu palácio real, tendo ele se comunicado com os seus, sem chamar os
clérigos, mandou, por um conselho prudente, no entardecer do mesmo dia, queimá-los vivos numa ilhazinha do Sena, entre o
Jardim Real e a Igreja dos Irmãos Hermitas de Santo Agostinho. Eles pareceram suportar as chamas com tanta firmeza e
resolução, que a constância de sua morte e suas negações finais encheram a multidão de admiração e de estupor. Os dois
outros foram trancafiados como determinavam suas sentenças”[269].

Esta execução, na opinião dos juízes, foi evidentemente um assassinato. O rei, que, em 1310, tinha ao menos reunido
um concílio para mandar matar os cinquenta e quatro, aqui desdenhou qualquer aparência de direito e não empregou senão a
força bruta. Não havia sequer a desculpa do perigo, da razão de Estado (raison d’État), aquela do Salus Populi que ele
inscrevia sobre suas moedas[270]. Não! Ele considerou a negação do Grão-Mestre como um ultraje pessoal, um insulto à
realeza tão comprometida nesta causa. Ele o abateu, sem dúvida alguma, como “reum lesæ Majestatis” (NT: acusado de lesa-
majestade)[271]

Agora, como explicar as variações do Grão-Mestre e sua negação final? Não nos parece que, por fidelidade
cavaleiresca, por orgulho militar, ele tenha pago qualquer preço pela honra da Ordem? que a soberba Ordem do Templo tenha
despertado no derradeiro momento; que o velho cavaleiro deixado sobre a brecha, como último defensor, tenha desejado, com
perigo de sua alma, tornar para sempre impossível o julgamento do porvir sobre esta obscura questão?

Pode-se dizer que os crimes reprovados à Ordem fossem particulares a tal província do Templo, a qual Casa, e que a
Ordem era inocente. Que Jacques de Molay, após ter confessado como homem, e por humildade, pudesse negar como Grão-
Mestre.

Mas há outra coisa a dizer. O principal título de acusação, a negação da Cruz, repousava sobre um equívoco[272].
Eles podiam reconhecer que haviam negado sem serem efetivamente apóstatas. Esta negação, vários o declaram, era
simbólica; era uma imitação da negação de São Pedro, uma dessas piedosas comédias com as quais a Igreja antiga cercava os
atos mais sérios da religião, mas cuja tradição começava a se perder no século XIV[273]. Que esta cerimônia possa ter sido,
por vezes, executada com uma leviandade culpável ou, mesmo, com uma derrisão ímpia, era o crime de alguns e não a regra
da Ordem.

Esta acusação foi, entretanto, o que destruiu o Templo. Não foi a infâmia dos hábitos e costumes: ela não era geral; de
outra forma, como supor que os Templários teriam feito ingressar na Ordem seus parentes mais próximos? Não façamos uma
tal injúria à natureza humana. Não foram a heresia e as doutrinas gnósticas: verdadeiramente, os cavaleiros preocupavam-se
muito pouco com os dogmas. A verdadeira causa de sua ruína, aquela que pôs todo o povo contra eles, que não lhes deixou um
só defensor entre tantas famílias nobres às quais pertenciam, foi esta monstruosa acusação de terem renegado e cuspido sobre
a cruz. Esta acusação é justamente aquela que foi reconhecida e confessada pela maioria esmagadora. A simples enunciação
do fato distanciava deles todo o mundo: cada um se persignava e não desejava escutar mais nada.

Assim, a Ordem que representara, no mais alto grau, o gênio simbólico da Idade Média, morreu de um símbolo não
compreendido. Este evento não é senão um episódio da guerra eterna que sustentam, um contra o outro, a letra e o espírito, o
espírito e a letra, a poesia e a prosa. Nada é mais cruel e ingrato que a prosa no momento quando desconhece as vetustas e
veneráveis formas poéticas dentro das quais cresceu.

O simbolismo oculto e suspeito do Templo nada podia esperar à ocasião em que o simbolismo pontifício, até então
reverenciado no mundo inteiro, estava, ele mesmo, sem poder. A grande poesia mística do Unam sanctam, que fizera vibrar
todo o século XII, não dizia mais nada aos contemporâneos de Pierre Flotte e de Nogaret. Nem a pomba, nem a arca, nem a
túnica sem costura, todos esses inocentes símbolos não podiam mais defender o papado[274]. O gládio espiritual estava
gasto. Uma idade prosaica e fria começava, que não sentia mais o corte[275].

O que há de trágico aqui, é que a Igreja foi morta pela Igreja. Bonifácio foi menos estapeado pela manopla de
Colonna que pela adesão dos galicanos ao chamado de Filipe o Belo. O Templo é perseguido pelos inquisidores e abolido
pelo Papa; os depoimentos mais graves contra os Templários são os dos sacerdotes[276]. Nula dúvida que o poder de
absolver que os chefes da Ordem usurpavam tenha feito dos eclesiásticos seus irreconciliáveis inimigos[277].

Quais fossem sobre os homens de então as impressões desse grande suicídio da Igreja, as inconsoláveis tristezas de
Dante as cantam o bastante. Tudo que se acreditara e reverenciara, papado, cavalaria, cruzada, tudo parecia findo. A Idade
Média é já uma segunda antiguidade que é preciso, com Dante, procurar entre os mortos. O último poeta da era simbólica
viveu o suficiente para poder ler a prosaica alegoria do Romance da Rosa. A alegoria mata o símbolo, a prosa a poesia.
Capítulo V

Sequência do reinado de Filipe o Belo.


Seus três filhos. Processos. Instituições.
1314 a 1328.

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O fim do processo do Templo foi o começo de vinte outros. Os primeiros anos do décimo-quarto século não são
senão um longo processo. Essas hediondas tragédias perturbaram as imaginações, amedrontaram as almas. Houve como que
uma epidemia de crimes. Suplícios atrozes, obscenos, que eram eles próprios crimes, os puniam e os provocavam.

Mas, tivessem os crimes faltado, esse governo de toga longa, de julgadores, ainda assim não poderia parar
facilmente, uma vez que estava em plena ânsia de julgar. O humor militante do pessoal do rei, tão terrivelmente despertado
pelas campanhas contra Bonifácio e contra o Templo, não podia mais se passar de guerras. Sua guerra, sua paixão, era um
grande processo, um grande e terrível processo, de crimes medonhos dignamente punidos por enormes suplícios. Nada nele
faltava, se o culpado fosse uma figura distinta. O popular então aprendia a reverenciar a toga; o burguês ensinava seus filhos a
tirarem o capuz perante os Messires[278], a desaparecerem ao virem sua mula quando, ao anoitecer, pelas ruazinhas da Cité,
eles retornavam atrasados de algum famoso julgamento[279].

As acusações vieram aos montes; eles não tiveram do quê se queixar: envenenamentos, adultérios, falsidades,
feitiçaria sobretudo. Esta última estava misturada a todas e era a atração e o horror. O juiz vibrava sobre sua cadeira quando
eram levadas ao tribunal as peças de convicção, filtros, amuletos, sapos, gatos negros, imagens espetadas de agulhas... Havia
nessas causas uma violenta curiosidade, um acre prazer de vingança e de medo. Ninguém se saciava. Mais se queimava, mais
mandavam para queimar.

Acreditaríamos graciosamente que esse tempo era o do reino do Diabo, não fossem as belas ordenações que
apareciam por intervalos e fazem a parte de Deus... O homem é violentamente disputado pelos dois poderes. Crê-se assitir ao
drama de Bartolo: o homem perante Jesus, o Diabo acusador, a Virgem defensora. O Diabo reclama o homem como coisa sua,
alegando a imemorial posse. A Virgem prova não haver prescrição e demonstra que o outro abusa da interpretação dos
textos[280].

A Virgem tem forte parte nesta época. O Diabo é do século e reúne as características deste, as pérfidas empreitadas:
ele as possui do Judeu e do alquimista, do escolástico e do jurista.

A feitiçaria (diablerie), como ciência, tinha, desde então, pouco progresso a fazer. Ela se apresenta como arte. A
demonologia dava luz à bruxaria. Não era o bastante distinguir e classificar as legiões de diabos, deles conhecer os nomes, as
profissões, os temperamentos[281]; era necessário aprender fazê-los servir às necessidades do homem. Até então, estudara-se
os meios de expulsá-los; doravante, procurava-se fazê-los vir. Este pavoroso povo de tentadores cresceu sem medida. Cada
clã da Escócia, cada grande Casa da França, da Alemanha, quase todo homem, tinha o seu. Eles acolhiam todos os pedidos
secretos que não se podia fazer a Deus, escutavam tudo aquilo que não se ousava dizer... podia-se encontrá-los em qualquer
lugar[282]. Seu vôo de morcego escurecia quase toda a luz e o dia de Deus. Haviam sido vistos a agarrar, em pleno dia, um
homem que acabara de comungar e que se fazia proteger, círios acesos, por seus amigos[283].

O primeiro desses grosseiros processos de feitiçaria, onde não havia, dos dois lados, senão pessoas desonestas, é
aquele de Guichard, bispo de Troyes, acusado de ter, por engenho e malefício, ocasionado a morte da mulher de Filipe o Belo.
Esta pérfida mulher, que recomendara o degolamento dos Flamengos (vide mais acima), é também aquela que, segundo uma
tradição mais célebre que segura, mandava levar, à noite, estudantes para a torre de Nesle, os quais eram lançados às águas do
Sena após ter deles se servido[284]. Rainha de direito da Navarra, condessa da Champagne, ela desejava mal ao bispo que,
numa questão financeira, salvara um homem a quem ela odiava. Ela fazia o que podia para destruir Guichard. Inicialmente, ela
conseguira expulsá-lo do Conselho e o forçara a residir na Champagne (Arquivos, Secão Hist., J. 438). Depois, ela jurara que,
ou perderia seu condado da Champagne, ou ele seu bispado. Ela o perseguia por sabe-se lá qual reparação. Guichard então
pediu a uma bruxa um meio de se fazer amar pela rainha e, depois, um meio para fazê-la morrer. Ele foi à noite, segundo se
contou, à morada de um eremita para maleficiá-la e enfeitiçá-la com um filtro. Produziu-se, com a assistência de uma parteira,
uma rainha de cera que foi batizada Joana (Jeanne), tendo padrinho e madrinha; então, a figura de cera foi espetada com
agulhas. Entretanto, a verdadeira Joana não morria. O bispo retornou mais de uma vez à ermida, esperando melhor sucesso. O
eremita se apavorou, se salvou e contou tudo. A rainha morreu pouco depois [285]. Mas, seja porque nada pôde ser provado,
seja porque Guichard tinha muitos amigos na Corte, seu processo se arrastou. Ele foi mantido na prisão[286].

O Diabo, entre outros ofícios, exercia aquele de alcoviteiro. Conta-se que um monge encontrou uma forma de macular
toda a Casa de Filipe o Belo. As três princesas, suas noras, esposas de seus três filhos, foram denunciadas e presas[287].
Deteve-se, ao mesmo tempo, dois irmãos, dois cavaleiros Normandos que estavam vinculados ao serviço das princesas. Estes
dois desgraçados confessaram, sob tortura, que já há três anos pecavam com suas jovens amantes, “inclusive nos mais santos
dias”[288]. A piedosa confiança da Idade Média, que não temia trancar uma grande dama com seus cavaleiros no perímetro de
um castelo, numa estreita torre, a vassalagem que obrigava os jovens rapazes a um dever feudal de cuidados os mais doces e
suaves, era uma perigosa provação para a natureza humana quando a religião fraquejava[289]. O Petit Jehan de Saintré, este
conto ou história do tempo de Carlos VI, não relata senão muito bem tudo isso.

Fosse ou não verdadeira a falta, a punição foi atroz. Os dois cavaleiros, conduzidos à praça do Martroi, próximo ao
olmo Saint-Gervais[290], foram aí esfolados vivos, castrados, decapitados, pendurados pelas axilas. Assim como os padres
procuravam suplícios infinitos para vingar Deus, o rei, este novo deus do mundo, jamais conseguia encontrar penas
suficientemente majestosas para satisfazer sua majestade ultrajada[291]. Duas vítimas não bastaram. Foram procurados
cúmplices. Pegou-se um porteiro real do palácio, depois muitos outros, homens e mulheres, nobres ou andarilhos; uns foram
lançados ao Sena, outros postos secretamente à morte.

Das três princesas, uma só escapou. Filipe o Longo, seu marido, não conseguia encontrá-la culpada; ademais, ter-lhe-
ia sido preciso devolver o Franco-Condado que ela trouxera em dote. Para as duas outras, Margarida e Branca, esposas de
Luís o Turbulento e de Carlos o Belo, as mesmas foram vergonhosamente tonsuradas e jogadas numa fortaleza. Luís, quando
de sua ascensão ao trono, mandou estrangular a sua (15 de abril de 1315) a fim de poder se casar novamente. Branca, mantida
só na prisão, foi bem mais infeliz[292].

Uma vez nesta via de crimes, o ímpeto tendo sido dado às imaginações, qualquer morte é vista como envenenamento
ou malefício. A mulher do rei foi envenenada, sua irmã também. O imperador Henrique VII o será pela hóstia. O conde de
Flandres quase não escapou de sê-lo por seu próprio filho. Conta-se que Filipe o Belo o foi por seus ministros, por aqueles
que mais perdiam com sua morte; e não somente Filipe, mas seu pai, morto trinta anos antes. Com muito gosto, remontar-se-ia
mais acima a fim de se encontrar outros crimes (Continuadores de Guil. de Nangis, anos 1304, 1308, 1313, 1315, 1320, pgs.
68, 61, 67, 68, 70, 77, 78).

Todos esses rumores apavoravam o povo. Eles desejaram acalmar Deus e fazer penitência. Entre as fomes e as
bancarrotas das moedas, entre as vexações do diabo e os suplícios do rei, eles se iam pelas cidades, chorando, urrando, em
imundas procissões de penitentes nus, flagelantes obscenos; pérfidas devoções que conduziam ao pecado[293].

Era este o triste estado do mundo quando Filipe e seu Papa partiram para, finalmente, encontrar seus respectivos
julgamentos. Narra-se que Jacques de Molay, de dentro de sua fogueira, adiara, pelo prazo de um ano, o comparecimento de
ambos perante Deus[294]. Clemente partiu primeiro. Pouco antes, ele vira, em sonho, todo seu palácio em chamas. “Desde
então”, conta seu biógrafo, “ele não foi mais feliz e nem durou muito”[295].

Sete meses depois, foi a vez de Filipe. Ele morreu em sua casa de Fontainebleau e foi enterrado ao lado de
Monaldeschi, na igrejinha de Avon.

Alguns o fazem morrer numa caçada, derrubado por um javali. Dante, com sua verve de ódio, não encontra palavras
suficientemente baixas para dizer: “Ele morrerá duma pancada de porco, o falsificador de moedas!”[296].

Mas o historiador francês contemporâneo nada fala desse acidente. Ele diz que Filipe extinguiu-se sem febre, sem
mal visível, para grande espanto dos médicos[297]. Nada indicava que fosse morrer tão cedo; ele não tinha senão quarenta e
seis anos. Esta bela e silenciosa figura exibia-se impassível ao meio de tantos acontecimentos. Acreditava-se ele secretamente
atingido pela maldição de Bonifácio ou do Grão-Mestre? ou, então, o tivesse sido pela confederação dos nobres do reino que
se formou contra si no próprio ano de sua morte? Os barões e os nobres o haviam seguido às cegas contra o Papa; eles não
haviam escutado uma palavra em favor de seus irmãos, os cadetes da nobreza: eu falo dos Templários. As medidas adotadas
contra seus direitos de justiça e de cunhagem de moedas os fizeram perder a paciência. No fundo, o rei dos juristas, o inimigo
da feudalidade, não possuía outra força militar a se opor a ele senão a própria força feudal. Era um círculo vicioso do qual
não podia mais sair. A morte o tirou dos negócios.

Qual parte ele realmente teve nos grandes acontecimentos de seu reino, ignora-se. Somente, ele é visto a percorrer o
reino sem cessar. Nada se faz de grande, para o bem ou para o mal, que ele não esteja presente: em Courtrai e em Mons-en-
Puelle (1302, 1304), em Saint-Jean-d’Angély, em Lyon (1305), em Poitiers e em Viena (1308, 1313).

Este príncipe parece ter sido metódico e regular. Nenhum traço de despesas privadas. Ele se sentava para contar com
seu tesoureiro a cada vinte e cinco dias.

Filho de uma Espanhola, educado pelo dominicano Egidio de Roma (Egidio Romano ou Gilles de Rome), da Casa de
Colonna, ele tinha evidentemente alguma coisa do sóbrio espírito de São Dominique, assim como São Luís possuía a
suavidade mística da Ordem de São Francisco. Egidio escrevera para seu aluno um livro, De Regimine Principum Doctrina
(NT: Da Doutrina do Governo do Príncipe), e não teve dificuldade para inculcar-lhe o dogma do direito ilimitado dos
reis[298].

Filipe fizera-se traduzir a Consolação de Boécio[299], os livros de Vegécio sobre a arte militar [300] e as cartas de
Abelardo e Heloísa[301]. Os infortúnios universitários e amorosos deste célebre professor, tão maltratado pelos sacerdotes,
eram um texto popular no meio desta grande guerra do rei contra o clero. Filipe o Belo apoiava-se na Universidade de
Paris[302]; ele afagava esta turbulenta república e ela o apoiava. Enquanto Bonifácio procurava se ligar aos Mendicantes
(Bulæus, III, 511, 516, 595), a Universidade os perseguia através de seu famoso doutor João Pica-Asno (Pungens-asinum),
campeão do rei contra o Papa[303]. À ocasião em que os Templários foram presos, Nogaret reuniu todo o povo universitário
no Templo, mestres e colegiais, teólogos e artistas, para ler-lhes o ato de acusação. Um tal corpo era uma grande força para
se ter a favor; e dentro da capital. Assim, o rei nada sofreu quando Clemente V elevou as escolas de Orléans para o nível de
Universidade, criando, desta forma, uma rival à sua Universidade de Paris[304].

Este reinado é a época de enraizamento para a Universidade. Nele se funda mais colégios que em todo o século XIII e
os mais célebres colégios[305]. A mulher de Filipe o Belo, malgrado sua péssima reputação, funda o colégio de Navarra
(1304), este seminário de galicanos donde saíram d’Ailly, Gerson e Bossuet. Os conselheiros de Filipe o Belo, que também
tinham muito a expiar, constituem fundações semelhantes. O arcebispo Gilles d’Aiscelin, o débil e servil juiz dos Templários,
fundou este terrível colégio, a mais pobre e a mais democrática das escolas universitárias, este Monte-Agudo, onde o espírito
e os dentes, segundo o provérbio, eram igualmente pontudos[306]. Neste, educava-se, sob a inspiração da fome, os pobres
escolares, os pobres mestres[307], que tornaram ilustres o nome de Capetos[308]; débil alimentação, mas amplos privilégios:
não dependiam, para a confissão, nem do bispo de Paris, nem mesmo do Papa (ibidem).

Que Filipe o Belo tenha sido ou não um homem maligno ou um péssimo rei, não se pode desprezar, em seu reino, a
grande era da ordem civil na França, a fundação da monarquia moderna. São Luís é ainda um rei feudal. Pode-se mensurar por
uma simples palavra todo o caminho que se fez de um a outro. São Luís reuniu os deputados das cidades do sul, Filipe o Belo
aqueles dos Estados da França. O primeiro baixou regramentos para seus domínios, o segundo ordenações para o reino. Um
colocou como princípio a supremacia da justiça real sobre aquela dos senhores, o apelo ao rei, e tenta moderar as guerras
privadas pela quarentena (quarentaine) e pelo asseguramento ou garantia (asssurement)[309]. Sob Filipe o Belo, o apelo
ao rei se encontra tão bem firmado, que o mais independente dos grandes feudatários, o duque da Bretanha, solicita, como
graça singular, ser isento dele (Ord., 1, p. 329). O Parlamento de Paris escreve pelo rei ao mais distante dos barões, ao conde
de Comminges, este pequeno rei dos altos Pirineus, as seguintes palavras que, um século antes, não seriam sequer
compreensíveis: “Em todo o Reino, o conhecimento e a punição do porte d’armas não pertence senão a nós” (Olim.
Parliamenti, III, folio CXXXIV. Arquivos, Seção Judiciária).

No início desse reinado, a nova tendência se anuncia fortemente. O rei deseja excluir os sacerdotes da justiça e dos
cargos municipais[310]. Ele protege os judeus[311] e os heréticos, aumenta o imposto real sobre as amortizações, sobre as
aquisições de imóveis pelas igrejas[312]. Ele proíbe as guerras privadas, os torneios. Esta proibição, motivada pela
necessidade que o rei tem de seus homens para a guerra de Flandres, é frequentemente reiterada[313]; uma vez, mesmo, o rei
ordena a seus prebostes prenderem aqueles que forem aos torneios[314]. A cada campanha, era-lhe necessário fazer a prensa
e reunir, apesar dela, esta indolente cavalaria que pouco se preocupava com as questões do rei e do reino[315].
Este governo inimigo da feudalidade e dos sacerdotes não possuía outra força militar senão os senhores, nem outro
dinheiro senão pela Igreja. Daí, várias contradições, mais de um passo atrás.

Em 1287, o rei permite aos nobres perseguir seus servos fugitivos nas cidades. Talvez, de fato, ele tivesse
necessidade de cessar esse grande movimento do povo para as cidades, de impedir a deserção dos campos[316]. As cidades
teriam absorvido tudo e todos; a terra restaria deserta, como aconteceu no Império Romano.

Em 1290, o clero arrancou ao rei uma carta exorbitante, inexeqüível, que teria matado a monarquia. Os principais
artigos eram que os prelados julgariam os testamentos, os legados, as doações, que os bailios e a gente do rei não
permaneceriam sobre as terras da Igreja, que os bispos somente poderiam prender os eclesiásticos, que os clérigos não
demandariam de forma alguma em corte laica para as ações pessoais, ainda quando fossem a isso obrigados por cartas do rei
(seria a impunidade dos padres); que os prelados não pagariam (imposto) pelos bens adquiridos por suas igrejas; que os
juízes locais não conheceriam questões envolvendo os dízimos, quer dizer, que apenas o clero julgaria os abusos fiscais do
próprio clero[317].

Em 1291, Filipe o Belo atacara violentamente a tirania da Inquisição no sul (Hist. du Lang., l. XXVIII, c. 22, p. 72).
Em 1298, no início da guerra contra o Papa, ele secunda a intolerância dos bispos, ordena aos senhores e aos juízes reais a
eles entregarem os heréticos para que os condenassem e os punissem sem direito a apelo[318]. No ano seguinte, ele promete
que os bailios não vexarão mais as igrejas com coletas violentas; eles não coletarão senão de um domicílio por vez[319], etc.

Era também necessário satisfazer os nobres. Ele lhes concedeu uma ordenação contra seus credores, contra os
usurários judeus[320]. Ele garantiu seus direitos de caça. Os coletores reais não explorarão mais as sucessões dos bastardos e
dos aubanos nas terras dos senhores que possuam a alta-justiça (haut-justice): “A menos”, acrescenta prudentemente o rei,
“que seja constatado por pessoa idônea que nós temos bom direito em perceber”[321].

Em 1302, após a derrota de Courtrai, o rei ousou muito. Ele tomou, para cunhar moedas, a metade de toda a louça de
prata[322] (os bailios e pessoal do rei deviam dar tudo); ele tomou os bens dos prelados que haviam partido para Roma[323];
enfim, ele se impôs sobre os nobres batidos e humilhados em Courtrai: o momento era bom para fazê-los pagar (Ord., I, 330;
fim de 1302).

Em 1303, durante a crise, quando Nogaret tinha acusado Bonifácio (12 de março), quando a excomunhão podia, de
um momento a outro, desabar sobre a cabeça do rei, ele promete tudo o que desejavam. Em sua ordenação de reforma (fim de
março), ele se comprometia com os nobres e prelados a nada obter ou adquirir em suas terras[324]. Todavia, ainda aí, ele
colocava uma reserva que anulava tudo: “Salvo nos casos que tocam ao nosso direito real”[325] . Na mesma Ordenação,
encontrava-se um regramento relativo ao parlamento; entre os privilégios, a organização do corpo que devia destruir
privilégios e privilegiados[326].

Nos anos que se seguem, ele permite aos bispos ingressarem no Parlamento. Toulouse recupera sua justiça municipal;
os nobres da Auvérnia obtém que se respeite seus julgamentos, que os oficiais do rei sejam reprimidos etc. Enfim, em 1306,
quando a revolta das moedas força o rei, que não podia contar com os burgueses, a procurar abrigo no Templo, ele devolve
aos nobres a solução de batalha, a prova pelo duelo à falta de testemunhas[327].

A grande causa dos Templários (1308-9) o força ainda a relaxar a mão. Ele renova as promessas de 1303, regula a
contabilidade dos bailios, promete não mais taxar os censitários (arrendatários) dos nobres, põe ordem nas violências dos
senhores, promete aos Parisienses moderar seu direito de presa (droit de prise) e de provisão (droit de pourvoierie), aos
Bretões, de cunhar boa moeda, aos Poitevinos, de destruir os fornos dos falsificadores de moedas. Ele confirma os privilégios
de Rouen. Repentinamente caridoso e esmoler[328], ele desejava empregar o direito (droit) de chambellage para casar as
jovens nobres pobres[329]; ele doava liberalmente aos hospitais as palhas que eram utilizadas para forrar os abrigos reais em
suas frequentes viagens.

A hipocrisia deste governo não é mais notável senão nos casos das moedas. É curioso seguir, de ano em ano, as
mentiras, as tergiversações do real falsificador. Em 1295, ele alerta o povo que vai cunhar uma moeda “na qual, talvez, faltará
alguma coisa para o título ou o peso, mas que indenizará aqueles que sofrerem perdas; sua querida esposa, a rainha Joana de
Navarra, muito deseja que as rendas da Normandia estejam vinculadas a este fim”[330]. Em 1305, ele manda anunciar pelas
ruas, ao som de trombetas, que sua nova moeda é tão boa quanto aquela de São Luís (Ord., I, 429). Ele várias vezes mandara
que os falsificadores de moedas mantivessem segredo das falsificações. Mais tarde, ele manda espalhar que suas moedas
haviam sido adulteradas por outros e ordena destruir os fornos nos quais se cunhara falsa moeda (Ord. I, 451). Em 1310 e
1311, temendo a comparação com as moedas estrangeiras, ele proibe sua importação. Em 1311, ele proibe pesar ou testar as
moedas reais[331] (Ord. I, 481, 16 de maio de 1311).

Nula dúvida que, em tudo isso, o rei não estivesse convencido de seu direito, que não considerasse como um atributo
de seu todo-poder aumentar, a seu bel-prazer, o valor das moedas. O cômico é ver este todo-poderoso, esta divindade,
obrigada a enganar a desconfiança do povo; a religião nascente da Monarquia já possui seus incrédulos.

Enfim, a própria Realeza parece duvidar de si. Esta confiante potência, tendo chegado ao cabo da violência e do
ardil, faz uma confissão implícita de sua fraqueza; ela faz um apelo à liberdade. Viu-se com quais palavras ousadas o rei se
fez endereçar a famosa Súplica do povo da França ao Rei contra Bonifácio e nos discursos dos deputados dos Estados de
1308. Mas nada é mais notável que os termos da Ordenação pela qual ele confirma a libertação dos servos do Valois,
concedida por seu irmão: “Visto que toda criatura humana, que é formada à imagem de Nosso Senhor, deve geralmente ser
livre por direito natural, e que em nenhum país esta liberdade e privilégio devem ser apagados e obscurecidos pelo jugo da
servidão, que é tão odioso, que os homens e as mulheres que habitam nos mencionados países são reputados mortos desde
vivos e que, ao fim de suas dolorosas e reles existências estão tão estreitamente atados e ligados, que os bens que Deus
emprestou-lhes neste século, eles não podem, em suas últimas vontades, dispor nem comandar...” (Ord. XII, 387, ann. 1311).

Essas palavras deviam soar mal aos ouvidos feudais. Elas pareciam um requisitório contra a servidão, contra a
tirania dos senhores. O lamento que jamais ousara se erguer, sequer em voz baixa, eis que ele reluzia e caía de cima como uma
condenação. O rei, tendo dado cabo de todos os seus inimigos com a ajuda dos senhores, não demonstrava nenhuma deferência
para estes. No dia 13 de junho de 1313, o rei os proibiu de cunhar qualquer moeda até que obtivessem cartas reais que os
autorizassem (Ord., I, p. 5-22, art. 14).

Esta Ordenação foi o cúmulo. Qualquer que fosse o terror que o rei pudesse lhes inspirar após a causa do Templo, os
nobres decidiram-se a tudo arriscar e a tomar partido. A maioria dos senhores do Norte e do Leste (Picardia, Artois, Ponthieu,
Borgonha e Forez) formou uma confederação contra o rei: “A todos aqueles que verão e ouvirão essas presentes cartas, os
nobres e os comuns da Champagne, por nós, pela região de Vermandois e pelos nossos aliados e coadjuvantes que estejam
em todos os pontos do reino da França, saudações! Saibam que, como o mui excelente e mui poderoso príncipe, nosso mui
estimado Sire, Filipe, pela graça de Deus, rei da França, criou e aumentou várias talhas, subvenções, exações, mudanças de
moedas, e várias outras coisas que foram feitas, pelas quais o nobres e os comuns foram muito penalizados e empobrecidos...
E não parece que elas tenham tornado em honra e proveito do rei, nem do reino, nem em defesa do bem comum. A respeito de
tais prejuízos, nós, várias vezes, requeremos e, humilde e devotamente, suplicamos ao dito Sire rei que bem desejasse essas
coisas desfazer e abandonar; a respeito do que o rei nada fez. E, ainda neste presente ano corrente, no ano 1314, o mencionado
nosso Sire o rei fez imposições indevidas, não somente sobre os nobres, como também aos comuns do reino, e subvenções
pelas quais esforçou-se em cobrar; tal coisa não podemos sofrer nem apoiar em boa consciência, pois assim perderíamos
nossas honras, privilégios e liberdades; e nós, e aqueles que após virão... Juramos e prometemos por nossos votos, lealmente
e de boa-fé, por nós e nossos herdeiros, aos condados de Auxerre e de Tonnere, aos nobres e aos comuns dos mencionados
condados, seus aliados e coadjuvantes, que nós, contra o que tange à subvenção do presente ano, e em relação a todos os
outros danos e novidades indevidamente feitos e a fazer, para o tempo presente e para o porvir, que o rei da França, nossos
senhores, ou outros que o desejarem fazer, nós os ajudaremos e os socorreremos às nossas próprias expensas e custas...”[332].

Este ato parecia uma resposta às perigosas palavras do rei sobre os servos. O rei denunciava os senhores, estes o rei.
As duas forças que haviam se unido para despojar a Igreja, agora se acusavam uma à outra perante o povo, que ainda não
existia como povo, e que não podia responder.

O rei, sem defesas contra esta confederação, se dirigiu às cidades. Ele chamou seus deputados para virem se
consultar consigo sobre a questão das moedas (1314). Esses deputados, dóceis às influências reais, pediram que o rei
impedisse os barões, durante onze anos, de cunhar moeda, para que ele próprio fabricasse a boa, sobre a qual nada
ganharia[333].

Filipe o Belo morreu no meio desta crise (1314). A ascensão de seu filho, Luís X, tão propriamente denominado
Turbulento (Hutin – desordem, turbulência, tumulto), é uma reação violenta do espírito feudal, local, provincial, que deseja
quebrar a unidade ainda fraca, uma exigência de desmembramento, uma reclamação do caos[334].

O duque da Bretanha deseja julgar sem apelo; também o Tesoureiro de Rouen. Amiens não quer mais que os
sargentos do rei façam aprazamentos nas terras dos senhores e nem que os presbotes tirem qualquer prisioneiro de sua
jurisdição. Borgonha e Nevers exigem que o rei respeite a justiça feudal, que não mais erga seus pendões nas torres e nas
barreiras dos senhores (Ord. I, 551 e 592, 561-567 e 625, 572).

O pedido comum dos barões é que o rei não tenha mais relação direta com seus homens. Os nobres da Borgonha se
encarregam de punir seus próprios oficiais. A Champagne e o Vermandois proíbem ao rei mandar citar perante o tribunal os
vassalos inferiores (Ord. I, 559, 8º; 574, 5º; 554, 2º).

As províncias mais distantes uma da outra, o Périgord, Nîmes e a Champagne se unem para reclamar que o rei deseja
taxar os arrendatários dos nobres (Ord. I, 562, 2º).

Amiens desejava que os bailios nem prendessem, nem tomassem, senão após condenação. A Borgonha, Amiens,
Champagne, pedem unanimemente o restabelecimento da solução de batalha, do combate judiciário[335].

O rei não adquirirá mais nenhum feudo, nem clientes, nas terras dos senhores, na Borgonha, em Tours e em Nevers,
tanto quanto na Champagne (salvo em caso de sucessão ou confisco)[336].

O jovem rei outorga e assina tudo. Há apenas três pontos a respeito dos quais hesita e deseja adiar. Os senhores da
Borgonha reclamam contra o rei a jurisdição sobre as praias e margens, as estradas e os lugares consagrados. Os da
Champagne duvidam que o rei tenha o direito de conduzi-los à guerra fora de suas províncias. Aqueles de Amiens, com a
violência picarda, requerem sem volta que, todos os nobres possam guerrear uns contra os outros, não se submeter a
tréguas, mas cavalgar, ir, vir e estar armados para a guerra, confiscar e indenizar uns aos outros ... a essas exigências
insolentes e absurdas, o rei apenas responde: “Mandaremos ver os registros de Monsenhor São Luís e conceder aos
mencionados nobres duas pessoas honestas, tais como as nomearemos de nosso próprio juízo, para saber e inquerir
diligentemente da verdade do mencionado artigo”[337].

A resposta era suficientemente hábil. Pois eles, os nobres, exigiam que se voltasse aos bons costumes de São Luís;
mas se esqueciam que São Luís se esforçara para impedir as guerras privadas. Todavia, por este nome de São Luís, eles não
compreendiam outra coisa senão a antiga independência feudal, o contrário do governo quase-legal, venal e chicaneiro de
Filipe o Belo.

Os nobres destruíam, peça a peça, todo esse governo do falecido rei. Mas eles não o tinham por morto até que
conseguissem matar seu alter ego, seu prefeito do palácio, Enguerrand de Marigny, que, nos últimos anos, fora coadjuvante e
regente do reino , que se fizera erguer uma estátua no Palácio, ao lado daquela do rei. Seu verdadeiro nome era Le Portier;
mas ele adquiriu, junto com uma terra, o nome de Marigny. Este Normando, personagem gracioso e cauteloso[338], mas
aparementemente não menos silencioso que seu senhor, não deixou nenhum ato seu; aparentemente, ele não escrevia e nem
falava. Ele fez com que os Templários fossem condenados por seu irmão, a quem fizera, propositadamente para isto,
Arcebispo de Sens. Sem dúvida, ele teve a parte principal nas querelas do rei com os Papas; mas nisso ele se houve tão bem,
que passou como responsável por ter deixado Clemente V escapar de Poitiers[339]. O Papa, provavelmente, era-lhe grato; e,
de outra parte, ele conseguiu convencer o rei que o Papa ser-lhe-ia mais útil em Avignon, numa aparente independência, que
num cativeiro que teria revoltado o mundo cristão[340].

Foi no Templo, no lugar mesmo onde Marigny instalara seu amo para despojar os Templários, que o jovem rei Luís o
Turbulento veio escutar a acusação solene feita contra Marigny. O acusador era o irmão de Filipe o Belo, este violento Carlos
de Valois, homem tumultuoso e medíocre que se portava como chefe dos barões [341]. Nascido tão próximo do trono da
França, ele correra toda a Cristandade para encontrar um para si, enquanto um insignificante cavaleiro da Normandia reinava
ao lado de Filipe o Belo. Não é de se espantar se Carlos estava tomado pelo ódio e pela raiva.

Não teria sido difícil para Marigny defender-se, caso se desejasse ouvi-lo. Ele nada fizera além de ser o pensamento,
a consciência de Filipe o Belo. Era, para o jovem rei, como se estivesse julgando a alma de seu próprio pai. Assim, ele
desejava apenas distanciar Marigny, relegá-lo à ilha de Chipre e reconvocá-lo mais tarde. Para destruí-lo, era necessário que
Carlos de Valois recorresse à grande acusação da época, da qual ninguém conseguia se livrar: descobriu-se, ou supôs-se
descobrir, que a mulher ou a irmã de Marigny, para provocar sua libertação ou enfeitiçar o rei com malefícios, mandara fazer,
por um tal Jacques de Lor, determinados e pequenos bonecos: “O mencionado Jacques, jogado na prisão, se enforca de
desespero e, na sequência, sua mulher e as irmãs de Enguerrand são postas na prisão; e o próprio Enguerrand, julgado na
presença dos cavaleiros, é enforcado em Paris, no cadafalso dos ladrões. Entretanto, ele não reconheceu nenhum dos
retromencionados malefícios e apenas disse que, a respeito das exações e alterações de moeda, não fora o único autor... eis
porque sua morte, a respeito da qual muitos não conceberam completamente as causas, foi objeto de grande admiração e
estupor”.

“Pierre de Latilly, bispo de Châlons, suspeito da morte do rei da França Filipe e de seu predecessor, foi, por ordem
do rei, mantido em prisão em nome do arcebispo de Reims. Raul de Presles, advogado-geral (advocatus præcipuus) junto ao
Parlamento, igualmente suspeito e detido por semelhante suspeita, foi trancafiado na prisão de Santa Genoveva (Sainte-
Geneviève), em Paris, e torturado por diversos suplícios. Como não se conseguia extrair de sua boca a confissão dos crimes
dos quais era acusado, ainda que tivesse resistido aos tormentos mais diversos e mais dolorosos, ele findou por ser liberado;
grande parte de seus bens, tanto móveis quanto imóveis, tinham sido dados, perdidos ou pilhados”[342].

Foi como nada ter dependurado Marigny, encaixotado Raul de Presles e arruínado Nogaret, como fizeram mais tarde.
O jurista era mais vivaz que os barões podiam supor. Marigny reinava em todo reino e sempre o matavam em vão. O velho
sistema, abalado por safanões, esmaga um inimigo a cada vez e não se torna mais forte. Toda a história dessa época está no
combate de morte entre o jurista e o barão.

Cada elevação ao trono se apresenta como uma restauração dos bons e velhos usos e costumes de São Luís, como
uma expiação do reinado passado. O novo rei, companheiro e amigo dos príncipes e dos barões, começa, como o primeiro dos
barões, como bom e severo justiceiro , a mandar enforcar os melhores servidores de seu predecessor. Um grande patíbulo é
construído; o povo para aí segue, com suas vaias, o homem do povo, o homem do rei, o pobre rei plebeu que leva para cada
novo reinado os pecados da realeza. Após São Luís, o barbeiro (médico) La Brosse; após Filipe o Belo, Marigny; após Filipe
o Longo, Gérard Guecte; após Carlos o Belo, o tesoureiro Remy... Ele morre ilegalmente, mas não injustamente. Ele morre
sujo das violências de um sistema imperfeito onde o mal ainda domina o bem. Mas, morrendo, ele deixa para a realeza que o
golpeia seus instrumentos de poder e, ao povo que o maldiz, as instituições da Ordem e da Paz.

Poucos anos tinham decorrido, que o corpo de Marigny foi respeitosamente baixado de Mont-Faucon e recebeu a
sepultura cristã[343]. Luís o Turbulento legou dez mil libras aos filhos de Marigny. Carlos de Valois, em sua última doença,
acreditou, para o bem de sua alma, reabilitar sua vítima. Ele mandou distribuir enormes esmolas, recomendando que fosse dito
aos pobres: “Rogai a Deus por Monsenhor Enguerrand de Marigny e por Monsenhor Carlos de Valois”[344].

A melhor vingança de Marigny foi que a monarquia, tão forte sob suas mãos, logo tombou, depois que ele se foi, para
a mais deplorável fraqueza. Luís o Turbulento, tendo necessidade de dinheiro para a guerra de Flandres, tratou de igual para
igual com a cidade de Paris. Os nobres da Champagne e da Picardia se apressaram em aproveitar do direito de guerra privada
que acabavam de reconquistar e fizeram guerra à condessa do Artois, sem se inquietar com o que pensaria o rei que a ela
adjudicara esse feudo. Todos os barões voltaram a cunhar moeda; Carlos de Valois, tio do rei, deu-lhes o exemplo. Mas, ao
invés de a cunharem somente para suas terras, em conformidade com as Ordenações de Filipe o Ousado e de Filipe o Belo,
eles a fabricavam, falsa, à grande e a ela davam curso em todo o reino[345].

Fazia-se demasiadamente necessário que o rei despertasse e retornasse à forma de governo de Marigny e de Filipe o
Belo. Ele denunciou a cunhagem de moedas pelos barões (19 de novembro de 1315) e ordenou que as mesmas não teriam
curso senão em suas próprias terras[346]. Oitenta senhores tinham esse direito do tempo de São Luís.

O jovem rei feudal humanizado pela necessidade de dinheiro não desdenhou tratar com os servos e com os judeus. A
famosa Ordenação de Luís o Turbulento para a libertação dos servos de seus domínios é inteiramente conforme àquela que
acima citamos, de Filipe o Belo, para o Valois. “Como, segundo o direito da natureza, todos devem nascer francos (livres); e
embora usos e costumes de alta antiguidade tenham sido introduzidos e observados até aqui em nosso reino, possivelmente por
mau julgamento de seus predecessores, muitas pessoas de nosso povo comum caíram nos laços da servidão de diversas
condições, o que muito nos desagrada: Nós, considerando que nosso reino é dito e chamado o reino dos Francos (homens
livres), e desejosos que, em realidade, a coisa seja de acordo com o nome, e que a condição das pessoas seja corrigida por
nós e por nosso novel governo; por deliberação de nosso Grão-Conselho temos ordenado e ordenamos que, geralmente, por
todo o nosso reino, e tanto quanto possa vir a pertencer a nós e a nossos sucessores, tais servidões sejam conduzidas à
franquia (libertação), e que a todos aqueles que por origem, ou por antiguidade, ou por casamento, ou por residência nos
lugares de servil condição, tenham sido enlaçados ou possam vir a sê-lo pela servidão, seja-lhes dada franquia em boas e
convenientes condições”[347].

É curioso ver o filho de Filipe o Belo vangloriar a liberdade aos servos. Mas é causa perdida. O mercador pode
muito bem inflar a voz e valorizar o mérito de sua mercadoria, os pobres servos não a desejam. Eles eram por demais pobres,
por demais humildes, demasiadamente curvados sobre a terra. Ainda que tivessem enterrado nesta terra alguma péssima
moeda, eles tomariam cuidado para não desencavá-la a fim de comprar sequer um pergaminho. Em vão o rei se irrita por vê-
los desprezar uma tal graça. Ele findou por ordenar aos comissários encarregados da libertação estimarem os bens dos servos
que preferiam “permanecer na miséria da servidão” e que, isto feito, os taxassem “tão suficientemente e tão grandemente,
conforme a condição e riqueza das pessoas possa suportar e a necessidade de nossa guerra o requer”.

Foi, todavia, um grande espetáculo ver pronunciada, do alto do trono, a proclamação do direito imprescritível de
todo homem à liberdade. Os servos não compraram esse direito, mas lembrar-se-ão desta lição real e do perigoso apelo que
continha contra os senhores[348].

O reino curto e obscuro de Filipe o Longo não é nem por isso menos importante para o Direito Público da França que
aquele de Filipe o Belo.

Inicialmente, sua elevação à coroa coloca uma grande questão: Luís o Turbulento, deixando sua mulher grávida ao
morrer, seu irmão Filipe é regente curador-do-ventre. A criança morre ao nascer [349], Filipe faz-se rei em prejuízo de uma
filha de seu irmão[350]. A coisa parecia tanto mais surpreendente quanto Filipe o Belo havia sustentado o direito das
mulheres nas sucessões do Franco-Condado e do Artois. Os barões teriam desejado que as filhas fossem excluídas dos feudos,
mas que sucedessem à coroa da França; o chefe deles, Carlos de Valois, favorecia sua sobrinha-neta contra Filipe, seu
sobrinho[351].

Filipe reuniu os Estados-Gerais e ganhou sua causa que, no fundo, era boa por razões absurdas. Ele alegou em seu
favor a vetusta lei alemã dos Francos que excluía as filhas da sucessão da terra sálica. Ele sustentou que a coroa da França
era um feudo por demais nobre para cair na roca de fiar, argumento feudal cujo efeito foi, entretanto, o de arruinar a
feudalidade. Enquanto o progresso da equidade civil, a introdução do direito romano, abriam as sucessões às filhas, e que os
feudos tornavam-se femininos e passavam de família em família, a coroa não saiu da mesma Casa, imutável no meio da
mobilidade universal. A Casa da França recebia de fora a mulher, o elemento móvel e variável, mas conservava na sequência
dos varões o elemento fixo da família, a identidade do Pater Familias. A mulher muda de nome e de lar. O homem, habitando
a morada dos avós, reproduzindo seu nome, é levado a seguir seus rastros. Esta transmissão invariável da coroa na linhagem
masculina deu continuidade à política de nossos reis, calibrando utilmente a leviandade de nossa esquecedora nação.

Rejeitando assim o direito das filhas no exato momento onde este triunfava pouco a pouco nos feudos, a coroa tomava
este caráter de sempre receber sem jamais dar. Na mesma época, uma revogação ousada de toda doação feita desde São
Luís[352] parece conter o princípio da inalienabilidade do domínio. Infelizmente, o espírito feudal que retomou força sob os
Valois em favor das guerras provocou as funestas criações dos apanágios e fundou, em benefício dos ramos diversos da
família real, uma feudalidade principesca tão embaraçosa para Carlos VI e Luís XI quanto o fora para Filipe o Belo.

Esta sucessão contestada, esta má-vontade dos senhores, lança Filipe o Longo nas vias de Filipe o Belo. Ele lisonjeia
as cidades, Paris, a Universidade sobretudo, o grande poder de Paris. Ele obriga que os nobres jurem fidelidade na presença
dos mestres da Universidade que aprovam[353]. Ele deseja que suas boas cidades sejam enfeitadas com brasões d’armas;
que os burgueses tivessem armas em lugares seguros ; ele nomeia para os mesmos um capitão em cada jurisdição e em cada
região (1316, 12 março – Ord., I, p. 635 e segs.). Senlis, Amiens e o Vermandois, Caen, Rouen, Gisors, o Cotentin e a região
de Caux, Orléans, Sens e Troyes são especialmente designadas.

Filipe o Longo teria desejado (com uma finalidade, é verdade, fiscal) estabelecer uma uniformidade de pesos e
medidas de moeda; mas este grande passo ainda não se podia fazer[354].

Ele faz alguns esforços para regularizar um pouco a contabilidade. Os recebedores devem, paga toda despesa,
remeter o resto ao Tesouro do rei, mas secretamente, e sem que ninguém saiba a hora e o dia. Os bailios e senescais devem
vir contar todos os anos em Paris. Os tesoureiros contarão duas vezes por ano. Especificar-se-á em qual moeda os pagamentos
devem ser feitos. Os julgadores das contas julgarão em seguida... E o rei saberá quanto tem a receber (Ord. I, 713-4, 629,
659).

Entre os regulamentos de finanças, encontramos este artigo: “Todos os pagamentos dos castelos que não estejam na
fronteira, cessam doravante {‘Tous gages des chastiaux qui ne sont en frontière, cessent des-ores-en-avant – Ord. I, p. 660
(27)}. Esta frase contém um acontecimento imenso: a paz interior começa para a França, ao menos até às guerras dos Ingleses.
A garantia desta paz interior é a organização de um robusto poder judiciário. O Parlamento se constitui. Uma
Ordenação determina em qual proporção os clérigos e os laicos devem nele ingressar, sendo a maioria assegurada aos laicos
(Ord. I, 728-731). Quanto aos conselheiros estranhos ao corpo e temporariamente convocados, Filipe o Longo repete a
exclusão já pronunciada contra os prelados por Filipe o Belo: “Não haverá qualquer Prelado deputado no Parlamento, pois o
Rei faz consciência de não atrapalhá-los no governo de sua espiritualidade (“Il n’aura nulz Prélaz députez en Parlement, car
le Roy fait conscience de eus empeschier au gouvernement de leurs experituautez – Ord., I, 702).

Caso se deseje saber com qual vigor agia o parlamento de Paris, é preciso ler, no Continuador de Guilherme de
Nangis, a história de Jordan de Lille, “senhor gascão famoso por seu elevado nascimento, mas ignóbil por suas
bandidagens...”. E, no entanto, ele obtivera a sobrinha do Papa e, pelo Papa, o perdão do rei. Ele empregou essas vantagens
“para acumular os crimes, assassinatos e estupros, nutrindo bandos de assassinos, amigo dos ladrões, rebelde ao rei. Ele,
talvez, teria ainda escapado. Um homem do rei viera encontrá-lo; ele o matou com o próprio bastão onde estavam as armas do
rei, insígnia de seu ministério. Chamado em julgamento, ele vem a Paris seguido de um brilhante cortejo de condes e de barões
dos mais nobres da Aquitânia... Nem por isso deixou de ser menos lançado à prisão do Châtelet e condenado à morte pelos
Mestres do Parlamento e, na véspera da Trindade, arrastado à cauda dos cavalos e enforcado no patíbulo comum” (Contin. de
G. de Nang., anno 1323, p. 80).

O Parlamento, que tão vigorosamente defende a honra do rei, é ele mesmo um verdadeiro rei sob o aspecto judiciário.
Ele porta as vestes reais, a longa túnica, a púrpura e o arminho. Não é, como parece, a sombra, a efígie do rei; é, antes, seu
pensamento, sua vontade constante, imutável e verdadeiramente real. O rei deseja que a justiça siga seu curso, “não obstante
todas as concessões, Ordenações e cartas reais em contrário” (“Non contrestant toutes concessions, ordonnances, et lettres
royaux à ce contraire”) . Assim, o rei se desfaz do rei e melhor se reconhece em seu parlamento que em si mesmo. O rei
distingue em si um duplo caráter: ele se sente rei e se sente homem, e o rei ordena ao homem desobedecer. Belíssima
confissão do Homo duplex, respeitável inconsequência e verdadeiramente humana que encerra todo o mistério de nossa antiga
monarquia.

Muitos dos textos das Ordenações neste sentido honram a sabedoria dos conselheiros que os ditaram. O rei busca pôr
uma barreira à sua liberalidade. Ele expressa o temor de que se possa dele extrair doações excessivas à sua fraqueza, à sua
desatenção; confessa que, enquanto dorme ou repousa, o privilégio e a usurpação não estão senão muito bem despertos[355].

Assim, em 1318, ele fala de certos direitos feudais “... os quais nos são com frequência demandados e são de um
valor maior que podemos crer, nós devemos estar atentos, se alguém nô-los reclamar” {Ord., I, p. 661 (39)}.

Por vezes, ele recomenda aos recebedores não alertar ninguém das receitas extraordinárias ou “montantes que nos
caberão, os quais não poderíamos nos escusar de dá-los” {Ord., I, 713 (9)}.

Essas confissões de fraqueza e de ignorância que os conselheiros do rei faziam-lhe dar, por serem tão ingênuas, nem
por isso são menos respeitáveis. Parece que a novel realeza, repentinamente transformada na providência de um povo, sente a
desproporção entre seus meios e seus deveres. Este contraste está marcado de uma forma bizarra na Ordenação de Filipe o
Longo: Sur le gouvernement de son hostel et le bien de son royaume (Sobre o governo de seu palácio e o bem de seu reino).
Ele estabelece, num nobre preâmbulo, que Messire Deus criou os reis sobre a terra para que, bem ordenados em suas pessoas,
eles ordenem e governem devidamente seus reinos. Em seguida, anuncia que atende à missa todas as manhãs e proíbe que se
lhe interrompam durante a mesma para lhe apresentarem solicitações. Nenhuma pessoa poderá dirigir-se a ele na capela “se
não for nosso confessor, o qual poderá nos falar das coisas que toquem à nossa consciência” (Ord., I, 669). Ele então
providencia a guarda de sua real pessoa: “Que nula pessoa desconhecida, nem servente de baixa extração, entre em nosso
guarda-roupa, nem ponham a mão, nem que seja para fazer nosso leito, e que nele não coloque roupas (de cama) de estranhos”
(Que nulle personne mescongüe, ne garçon de petit estat, ne entre en notre garde-robe, ne mettent main, ne soient à nostre
lit faire, et qu’on n’i soffre mettre draps estrangers”. O terror dos envenenamentos e dos malefícios é uma marca desta
época.

Após esses detalhes de cuidado, vêm os regramentos sobre o Conselho, o Tesouro, os Domínios etc. O estado aqui
aparece como um simples apanágio real, o reino como um acessório do Hostel[356]. – Em tudo, sente-se a pequena sabedoria
das gentes do rei, esta honestidade burguesa, exata e escrupulosa no miúdo e flexível no bocado. Nenhuma dúvida que esta
Ordenação não nos dê o ideal da realeza, segundo pensavam as pessoas de toga longa; o modelo que apresentavam ao rei
feudal, para dele fazer um verdadeiro rei, era tal e qual como o concebiam.
Essas estimadas tentativas de ordem e de governo nada mudavam aos sofrimentos do povo. Sob Luís-Turbulento,
conta-se que uma horrível mortalidade levara um terço da população do Norte (Cont. de G. de Nang., p. 71). A guerra de
Flandres esgotara os últimos recursos da região. Em 1320, era extremamente necessário finalizar essa guerra. A França tinha
muito a fazer em sua casa. O excesso da miséria exaltava os espíritos, um grande movimento tinha lugar no povo. Como ao
tempo de São Luís, uma multidão de pobres, de camponeses, de pastores ou Pastoureaux[357], como eram chamados, se
reúne em tropas e diz que deseja partir além-mar, que é através deles que se deve recuperar a Terra Santa. Seus chefes eram
um padre degradado e um monge apóstata. Eles arrastaram muitas pessoas simples, até mesmo crianças que fugiam da casa
paterna[358]. Primeiro, eles pediram, depois tomaram. Foram detidos, mas eles forçavam as prisões e libertavam os seus. No
Châtelet, eles lançaram do alto dos degraus o preboste que desejava proibir-lhes as portas; depois, eles se foram lançar à
batalha no Pré-aux-Clercs e saíram tranquilamente de Paris; procurou-se evitar impedi-los. Eles se foram na direção do Midi,
em todo canto chacinando os judeus que os soldados do rei tentavam em vão defender[359]. Enfim, em Toulouse, reúne-se a
tropa e a mesma se funde sobre os Pastores que são enforcados por vintenas e trintenas; o resto se dissipa[360].

Essas estranhas migrações do povo indicavam menos o fanatismo que o sofrimento e a miséria. Os senhores,
arruinados pelas más moedas, pressionados pelos usurários, voltavam a cair sobre o paisano. Este não mais se encontrava ao
tempo da Jaqueria; ele não era ousado o suficiente para se virar contra seu senhor. Ele, então, fugia e massacrava os judeus.
Estes eram tão detestados, que muitas pessoas se escandalizavam ao ver os soldados do rei tomarem sua defesa. As cidades
comerciantes do Midi os invejavam cruelmente. Era precisamente a época quando, como financistas, coletores, percebedores,
os judeus começavam a reinar sobre a Espanha. Amados pelos reis por sua habilidade e servilidade, eles se atreviam cada dia
mais até começarem a tomar o título de Don. Desde a era de Luís o Debonário, o bispo Agobart já escrevera um tratado: De
insolentiâ Judæorum (A Insolência dos Judeus). Sob Filipe Augusto, viu-se, com espanto, um judeu tornar-se bailio do rei. Em
1267, o Papa fora obrigado a lançar uma bula contra os cristãos que se judaizavam[361].

Filipe o Belo os expulsara; mas eles haviam retornado de mansinho. Luís o Turbulento assegurara-lhes uma
permanência de doze anos. No termo de sua permissão, todos os seus privilégios, se ainda fossem encontrados, ser-lhes-iam
restituídos, assim como seus livros, suas sinagogas, seus cemitérios; ou então, o rei os compraria. Dois auditores foram
nomeados para levantarem os bens que haviam sido vendidos pelos judeus, pela metade do preço, na precipitação de sua fuga.
O rei a eles se associou para ajudá-los na recuperação de seus créditos, dos quais ele, rei, tinha a receber dois terços (Ord. I,
p. 595). – Os nobres devedores, que tinham obtido de Filipe o Belo que se cessaria a procura dos devedores dos judeus,
viam-se de novo à sua mercê. Os lançamentos dos judeus tinham fé na justiça e eles podiam, como quisessem, apontar suas
vítimas para o fisco. O judeu, lacerado por tantas injúrias, podia agora, em nome do Rei, exercer sua vingança.

O antigo ódio, estando assim irritado e encolerizado pelo temor, todos estavam preparados para tudo fazer contra os
judeus. Ao meio das grandes mortalidades produzidas pela miséria, espalha-se, de repente, o rumor que os judeus e os
leprosos haviam envenenado as fontes. O senhor de Parthenay escreve ao rei que um grande leproso[362], encontrado em sua
terra, confessou que um rico judeu deu-lhe dinheiro e prescreveu-lhe certas drogas que eram compostas de sangue humano e
urina, ao que se acrescentava o corpo do Cristo; a mistura, seca e triturada, posta num sachê com um peso, era lançada nas
fontes ou nos poços[363]. Já, na Gasconha, vários leprosos haviam sido antecipadamente queimados. O rei, temeroso com o
novo movimento que se preparava, retornou precipitadamente do Poitou à França, ordenando que os leprosos fossem, em
todos os lugares, presos.

Ninguém duvidava desse horrível acordo entre os leprosos e os judeus. “Nós mesmos”, diz o cronista da época, “no
Poitou, num burgo de nossa vassalagem, vimos de nossos olhos um desses sachês. Uma leprosa que passava, temendo ser
presa, jogou para trás de si um tecido atado, que logo foi apresentado à justiça, e nele se encontrou uma cabeça de cobra-
d’água, patas de sapo e algo como cabelos de mulher embebidos de um líquido negro e fedorento, coisa horrível de ver e de
cheirar. Isto tudo, posto numa grande fogueira, não pôde ser queimado, prova segura que se tratava de um violento
veneno[364]... Houve muita discussão, muitas opiniões. O mais provável é que o rei dos Mouros de Granada, vendo-se
dolorosa e tão frequentemente derrotado, imaginou vingar-se maquinando com os judeus a destruição dos cristãos. Mas os
judeus, eles mesmos por demais suspeitos, dirigiram-se aos leprosos... Estes aqui, com a ajuda do Diabo, foram persuadidos
pelos judeus. Os leprosos mais importantes mantiveram quatro concílios, por assim dizer, e o diabo, por meio dos judeus,
deu-lhes a entender que, visto que os leprosos eram reputados pessoas tão abjetas e não valendo nada, seria bom fazer com
que todos os cristãos morressem ou se tornassem leprosos[365]. Isto a todos agradou; cada um, por sua vez, repetiu para os
outros... um grande número, logrado pelas falsas promessas de reinos, condados e outros bens temporais, dizia e acreditava
firmemente que a coisa se daria assim”.

A vingança do rei de Granada é, evidentemente, uma fábula. A culpabilidade dos judeus é improvável; eles eram,
então, favorecidos pelo rei e a usura lhes fornecia uma vingança mais útil. Quanto aos leprosos, a narrativa não é tão estranha
quanto a julgam os historiadores modernos. Loucuras reprováveis podiam muito bem tombar no espírito desses tristes
solitários. A acusação era, ao menos, especiosa. Os judeus e os leprosos possuíam um traço comum ante os olhos do povo:
sua sujeira, sua vida à parte. A casa do leproso não era menos misteriosa e mal-afamada que aquela do judeu[366]. O espírito
desconfiado desse tempo se amedrontava com todo mistério, como uma criança que tem medo à noite e que golpeia com tanto
mais força aquilo que lhe cai às mãos.

A instituição dos leprosários, leprosarias, casas-de-lázaro e lazaretos, este imundo resíduo trazido com as cruzadas,
era mal visto, mal desejado, assim como a Ordem do Templo, depois que nada mais havia a ser feito pela Terra Santa. Os
próprios leprosos, desde então certamente negligenciados, devem ter perdido a resignação religiosa que, nos séculos
anteriores, os fazia aceitar com tranquilidade a morte antecipada à qual eram condenados cá embaixo.

Os rituais para o isolamento dos leprosos pouco diferiam dos ofícios dos mortos. Sobre dois estrados à frente do
altar, estendia-se um pano negro, o leproso aspergido com água-benta se mantinha ajoelhado e aí devotamente ouvia a missa.
O padre, pegando um pouco de terra de seu manto, a jogava sobre um dos pés do leproso[367]. Depois, ele o punha para fora
da igreja, se não fizesse um tempo de chuva forte; o conduzia ao seu casebre no meio dos campos e pronunciava-lhe as
interdições: “Eu te proíbo de entrares na igreja... nem na companhia das pessoas. Eu te proíbo que caminhes fora de tua casa
sem tua túnica de lázaro, etc...”. E, em seguida: “Recebe esta túnica e veste-a como símbolo de humildade... Toma estas
luvas... Recebe esta castanhola como símbolo de te ser proibido falar com as pessoas, etc. Não te indignes por ser assim
separado dos outros... E, quanto às tuas pequenas necessidades, as pessoas de bem as providenciarão e Deus não te
abandonará...” (Ibidem). Lê-se também, num velho ritual dos leprosos, estas tristes palavras: “Quando ocorrer que o lazarento
tenha se finado deste mundo, ele deve ser enterrado no casebre e não no cemitério”[368].

Inicialmente, questionou-se se as mulheres podiam seguir seus maridos tornados leprosos ou permanecerem no século
e voltarem a se casar. A Igreja decidiu que o casamento era indissolúvel: ela deu este imenso consolo àqueles desafortunados.
Mas, o que, então, se tornava a morte simulada, a morte simbólica? o que significava a mortalha negra? Eles viviam, amavam,
se perpetuavam, formavam um povo... Povo miserável, é verdade, invejoso e, no entanto, invejado... Ociosos e inúteis, eles
pareciam um encargo, fosse quando mendigavam, fosse quando gozavam das ricas fundações pias do século precedente.

Acreditava-se de boa-vontade que eles eram culpados. O rei ordenou que aqueles que sofressem uma condenação
fossem queimados, salvo as leprosas grávidas cujo parto seria aguardado; os outros leprosos deviam ser trancafiados nos
leprosários.

Quanto aos judeus, foram queimados indistintamente, sobretudo no Midi. “Em Chinon, cavou-se, em um dia, uma
grande fossa, nela se tocou um fogo copioso e abrasante, e aí foram queimados cento e sessenta, homens e mulheres
misturados. Muitos deles e delas, cantando e como se estivessem num casamento, saltavam para dentro da fossa[369]. Muitas
viúvas, antes de se lançarem, jogaram seus filhos para dentro das chamas, com medo de que fossem levados e batizados[370].
Em Paris, queimou-se somente os culpados. Os outros foram banidos para sempre; alguns, mais ricos, foram reservados até
que fossem melhor conhecidos seus créditos e que fosse possível afetá-los ao Fisco Real com o restante de seus bens. Para o
rei, foram cento e cinquenta mil libras”.

“Assegura-se que, em Vitry, quarenta judeus, na prisão do rei, vendo bem que iam morrer, e não desejando cair nas
mãos dos incircuncisos, concordaram unanimemente em se fazerem matar por um de seus anciãos, o qual passava por ser uma
boa e santa pessoa e a quem chamavam ‘pai’[371]. Ele não consentiu, a menos que um jovem o ajudasse. Todos os outros
estando mortos e os dois permanecendo, cada um desejava morrer pela mão do outro. O ancião ganhou a sorte e obteve a
promessa, graças a súplicas, que o jovem o mataria. Então, o jovem, vendo-se só, recolheu todo o ouro e a prata que encontrou
com os mortos, fez para si uma corda com as vestes deles, e deslizou do alto da torre. Mas a corda era por demais curta, o
peso do ouro era por demais pesado, e ele quebrou a perna, foi preso, confessou e morreu ignominosamente”[372].

Filipe o Longo não gozou dos despojos dos leprosos e dos judeus por tempo maior que seu pai o fizera com aqueles
dos Templários. No mesmo ano de 1321, no mês de agosto, a febre o dominou sem que os médicos pudessem descobrir a
causa do mal; ele agonizou por cinco meses e morreu. “Alguns se questionavam se ele não teria sido assim atingido por causa
das maldições de seu povo, em virtude das enormes extorsões incomuns, sem falar daquelas que preparava. Durante sua
enfermidade, as exações diminuíram sem, todavia, cessarem totalmente”.

Seu irmão Carlos (Charles) sucedeu-lhe sem se preocupar com os direitos da filha de Filipe, tanto quanto Filipe não
tivera a menor deferência por aqueles da filha de Luís-Turbulento.

A época de Carlos o Belo é tão pobre de feitos e acontecimentos para a França quanto é rica para a Alemanha,
Inglaterra e Flandres. Os Flamengos aprisionam seu conde. Os Alemães se dividem entre Frederico d’Áustria (Frederico o
Belo) e Luís da Baviera (Luís IV da Baviera), que faz seu rival prisioneiro em Mühldorf. Nesta ruptura universal, a França
parece forte por permanecer una. Carlos o Belo intervém em favor do conde de Flandres, tenta, com a ajuda do Papa, fazer-se
Imperador e sua irmã Isabela (Isabeau) faz-se, efetivamente, rainha da Inglaterra com a morte de Eduardo II.

História terrível esta, a dos filhos de Filipe o Belo! O primogênito manda matar sua mulher. A filha manda matar seu
marido.

O rei da Inglaterra, Eduardo II, nascido entre as vitórias de seu pai e prometido aos Galeses para ser seu Artur, não
foi menos sempre derrotado. Na França, ele deixava lancetarem a Guiana e prometia vir prestar homenagem. Na Inglaterra, ele
era maltrado por Robert Bruce da Escócia; mas ele o assediava na corte de Roma. Ele perguntara ao Papa se poderia, sem
pecado, se untar com um óleo maravilhoso que dava coragem. Sua mulher o desprezava. Mas Eduardo II não gostava de
mulheres; ele antes se consolava de sua desventuras na presença de belos rapazes. A rainha, por represália, entregara-se ao
barão Mortimer. Os barões, que detestavam os queridinhos (mignons) do rei, mataram-lhe inicialmente seu brilhante
Gaveston, ousado Gascão, belo cavaleiro que, nos torneios, divertia-se a lançar à terra os mais circunspectos lords, os mais
nobres senhores. Despenser, que sucedeu a Gaveston, foi tão odiado quanto.

Encontrando-se a Inglaterra desarmada por essas discórdias, o rei da França colheu o momento e se apoderou do
Agenês (Agenois ou Agenais)[373]. Isabela veio à França com seu jovem filho para, como dizia, reclamar. Mas foi contra seu
marido que reclamou. Carlos o Belo, não desejando embarcar, em seu próprio nome, numa causa tão arriscada quanto uma
invasão da Inglaterra, proibiu seus cavaleiros tomarem o partido da rainha[374]. Ele deu a acreditar que desejava inclusive
detê-la e devolvê-la a seu marido[375]. Em verdadeiro filho de Filipe o Belo, ele não deu a ela um exército, mas dinheiro
para ter um. Este dinheiro foi emprestado pelos Bardi, banqueiros florentinos. De outra parte, o rei da França despachava suas
tropas para a Guiana a fim de, como ele dizia, reprimir alguns aventureiros gascões.

O conde de Hainaut entregou sua filha em casamento ao jovem filho de Isabela e o irmão do conde se encarregou de
conduzir a pequena tropa que ela recrutara. Grandes forças não teriam senão atrapalhado, alarmando os ingleses: Eduardo
estava desarmado, entregue de avanço. Ele enviou sua frota contra ela, mas a frota não conseguiu encontrá-la. Ele enviou
Robert de Watteville com tropas que, entretanto, se uniram a ela. Ele implorou aos soldados de Londres que, prudentemente,
responderam que “tinham o privilégio de não sair para a batalha; e que não recebiam estranhos, mas muito graciosamente o
rei, a rainha e o príncipe real”. Não menos prudentemente, a gente da Igreja acolhia a rainha em sua chegada. O arcebispo de
Canterbury pregou sobre este texto: “A voz do povo é a voz de Deus”[376]. O bispo de Hereford sobre este outro: “Ai, a
minha cabeça!” - – Caput meum doleo[377]. Enfim, o bispo de Oxford tomou o texto do Gênese: “Eu porei inimizade entre ti e
tua mulher, e ela te esmagará a cabeça”. Profecia homicida que se verificou.

No entanto, a rainha avançava com seu filho e sua pequena tropa. Ela vinha como mulher infeliz que apenas deseja
distanciar de seu marido os pérfidos conselheiros que o arruínam. Era uma grande compaixão vê-la tão dolorosa e lacrimosa.
Todo mundo estava a seu favor e ela logo teve Eduardo e Despenser entre suas mãos. Foi-lhe trazido esse Despenser a quem
tanto odiava e ela mandou arrancarem-lhe os olhos. Depois, à frente de seu palácio, sob as janelas da rainha, fizeram-lhe
sofrer, antes da morte, obscenas mutilações[378].

Pelo momento, ela não ousava fazer mais. Ela estava com medo, tateava o povo, se arranjava com seu marido. Ela
chorava e, sempre chorando, agia. Mas nada parecia ser feito por ela, senão tudo por justiça e regularmente. Eduardo
permanecera na posse da coroa real; isto parava tudo. Três condes, dois barões, dois bispos e o procurador do Parlamento,
Guilherme Trussel, foram ao castelo de Kenilworth fazer com que o prisioneiro compreendesse que, se não se apressasse em
deixar a coroa, ele nada ganharia com isto; antes, ele arriscava fazer com que seu filho perdesse o trono, que o povo bem
poderia escolher um rei de fora da família real. Eduardo chorou, desmaiou e findou por abandonar a coroa. Então, o
procurador construiu e pronunciou a fórmula que foi guardada como bom precedente: “Eu, Guilherme Trussel, procurador do
Parlamento, em nome de todos os homens da Inglaterra, retiro a homenagem que eu te fizera, a ti, Eduardo. De agora em diante,
eu te desafio, eu te privo de todo poder real. Doravante, não te obedeço mais como a um rei”[379].

Eduardo acreditava, ao menos, viver; nunca, ainda, se matara um rei. Sua mulher o lisonjeava sempre. Ela escrevia-
lhe coisas ternas e enviava-lhe belos trajes[380]. Entretanto, um rei deposto é uma coisa muito embaraçosa. De um momento a
outro, ele podia ser resgatado da prisão. Em sua ansiedade, Isabela e Mortimer pediram conselho ao bispo de Hereford e dele
não tiraram senão uma frase dúbia e equívoca: Edwardum occidere nolite timere bonum est . Era responder sem responder.
Conforme fosse posicionada a vírgula, aqui ou lá, podia-se ler neste oráculo a vida ou a morte[381]. Eles leram a morte. A
rainha morria de medo enquanto seu marido vivia. Enviou-se à prisão um novo governador, John Maltravers; nome sinistro,
mas o homem era pior[382].

Maltravers fez que com que o prisioneiro longamente saboreasse os estertores da morte; ele com isso se divertiu
durante alguns dias, talvez na esperança de que Eduardo se matasse. Sua barba era feita com água fria, coroavam-lhe com
feno; enfim, como ele teimasse em viver, jogaram-lhe sobre as costas uma pesada porta, pisotearam-na e o empalaram pelo
ânus com um espeto em brasa. Conta-se que o ferro tinha sido posto num tubo de chifre, de forma a matá-lo assado por dentro
sem deixar vestígios. O cadáver foi exposto aos olhos do povo, honradamente enterrado e uma missa celebrada. Ele não tinha
qualquer marca de ferimento, mas os gritos e os urros tinham sido ouvidos; a contração da face do defunto denunciava a
horrível invenção dos assassinos[383].

Carlos o Belo não lucrou com esta revolução. Ele mesmo morreu quase ao mesmo tempo que Eduardo, não deixando
senão uma filha. Um primo sucedeu[384]. Toda esta bela família de príncipes que se sentara ao lado de seu pai, no Concílio
de Viena, estava extinta, conformemente àquilo que se contava das maldições de Bonifácio.
LIVRO VI

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Capítulo I

A Inglaterra. Filipe de Valois.


1328 a 1349.

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Esta época memorável, que põe a Inglaterra tão em baixo e a França tão no alto, apresenta todavia, em ambos os
países, dois acontecimentos análogos. Na Inglaterra, os barões derrubaram Eduardo II. Na França, o partido feudal pôs sobre
o trono o ramo feudal dos Valois.

O jovem rei da Inglaterra, neto de Filipe o Belo por sua mãe, após ter inicialmente reclamado, vem prestar
homenagem em Amiens. Mas a Inglaterra humilhada tem em si os elementos de sucesso que logo vão fazer com que prevaleça
sobre a França.

O novo governo inglês, intimamente unido com Flandres, chama a si os estrangeiros. Ele renova a carta comercial que
Eduardo I concedera aos mercadores de qualquer nação. A França, ao contrário, não pôde tomar parte do novo movimento do
comércio. Uma palavra sobre esta grande revolução: ela explica, por si só, os grandes acontecimentos que seguirão. O
segredo das batalhas de Crécy e de Poitiers está no balcão dos mercadores de Londres, de Bordeaux e de Bruges.

Em 1291, a Terra Santa está perdida, a era das Cruzadas finda. Em 1298, o veneziano Marco Polo, o Cristóvão
Colombo da Ásia[385], narra os acontecimentos de uma viagem, de uma estadia de vinte anos na China e no Japão[386]. Pela
primeira vez, sabe-se que, a doze meses de marcha além-Jerusalém, há reinos e nações bem organizados. Jerusalém não é mais
o centro do mundo, nem aquele da consciência humana. A Europa perde a Terra Santa, mas ela vê a Terra.

Em 1321, aparece a primeira obra de economia política e comercial: Secreta Fidelium Crucis[387], escrita pelo
veneziano Sanuto. – Título vetusto, pensamento novo. O autor propõe contra o Egito, não uma cruzada mas, sim, um bloqueio
comercial e marítimo. Este livro é bizarro na forma. A passagem das idéias religiosas àquelas do comércio se realiza
inabilmente. O Veneziano, que talvez não deseje devolver a Veneza senão o que ela perdeu pelo retorno dos Gregos à
Constantinopla, inicialmente oferece todos os textos sacros que recomendam ao bom cristão a conquista de Jerusalém; depois,
o catálogo bem organizado das especiarias a respeito das quais a Terra Santa é o entreposto comercial: pimenta, incenso,
gengibre[388]; ele qualifica as provisões e informa, artigo por artigo, sua cotação. Ele calcula, com uma precisão admirável,
os custos de transporte etc[389].

De fato, uma grande cruzada começa no mundo, mas de um gênero totalmente novo. Esta, menos poética, não vai em
busca da Santa Lança, do Santo Graal, nem do império da Trebisonda. Se pararmos um vaso marítimo, nele não mais
encontraremos um cadete da Casa da França que procura um reino[390] mas, sim, algun Genovês ou Veneziano que nos
venderá, com muito prazer, açúcar e canela. Eis aí o herói do mundo moderno, não menos herói que o outro; ele arriscará,
para ganhar um sequin, tanto quanto Ricardo Coração de Leão arriscou para tomar São João d’Acre. O cruzado do comércio
tem sua cruzada em qualquer lugar, sua Jerusalém está em todas as partes.

A nova religião da riqueza, a fé no ouro, tem seus peregrinos, seus monges, seus mártires. Estes ousam e sofrem como
os outros. Eles velam, jejuam, abstêm-se. Passam seus melhores anos sobre as rotas perigosas, em balcões longínquos, em
Tiro, em Londres, em Novgorod. Sós e celibatários, trancafiados em quarteirões fortificados, eles dormem em armas sobre
seus balcões, entre seus enormes dogues[391]; quase sempre pilhados fora das cidades e, nas cidades, frequentemente
massacrados.
Naquela época, comerciar não era uma coisa fácil. O mercador que navegara com felicidade de Alexandria a Veneza,
sem encontros ruins, nada ainda tinha feito. Era-lhe necessário, para vender com bom lucro, mergulhar no Norte. Era preciso
que a mercadoria se encaminhasse pelo Tirol, pelas margens agrestes do Danúbio, na direção de Augsburg ou Viena; que ela
descesse, sem soçobrar, pelas florestas escuras e pelos sombrios castelos do Reno; que ela chegasse em Colônia, a cidade
santa. Era aí, e apenas aí, que o comerciante rendia graças a Deus (Ulmann, Stædtw. I, p. 337, 368, 386, 397). Neste lugar, o
Norte e o sul se encontravam, o pessoal da Hansa negociava com os Venezianos. – Ou, ainda, ele virava à esquerda e
penetrava na França, contando com a boa-fé do conde de Champagne. Ele desempacotava e expunha nas antigas feiras de
Troyes, naquelas de Lagny, de Bar-sur-Aube, de Provins (Grosley, ‘Éphémérides’, p. 104). Daí, em poucos dias, mas não sem
riscos, ele podia alcançar Bruges, o grande entreposto dos Países Baixos, a cidade das dezessete nações (Hallam, ‘L’Europe
au Moyen Âge’, IV, 152).

Mas esta rota da França não foi mais suportável quando Filipe o Belo, tornado senhor da Champagne por sua mulher,
levou suas Ordenações contra os Lombardos, falsificou as moedas, meteu-se a regrar os lucros que se ganhava nas feiras[392].
Depois, veio Luís-Turbulento, que impôs tributos sobre tudo o que se podia comprar ou vender. Isto bastou para fechar os
balcões de Troyes. Não havia mais necessidade de proibir, como ele o fez, “qualquer transação com os Flamengos,
Genoveses, Italianos e Provençais”.

Mais tarde, o rei da França deu-se conta que matara sua galinha dos ovos de ouro. Ele reduziu os tributos, tornou a
chamar os mercadores[393]. Mas ele próprio os havia ensinado a tomar uma rota diferente. Eles agora se dirigiam a Flandres
via Alemanha ou por mar. Para Veneza, esta foi a ocasião perfeita para uma navegação mais ousada, a qual, pelo Oceano, a
colocou em contato direto com os Flamengos e os Ingleses.

O reino da França, em sua grande dimensão, permanecia quase impenetrável ao comércio. As estradas eram muito
perigosas, os pedágios por demais numerosos. Os senhores pilhavam menos, mas os agentes do Fisco Real os substituíram.
“Pilhado como um mercador” tornou-se uma expressão proverbial[394]. A mão real cobria tudo; mas ela não era sentida
senão pelas garras do Fisco. Se vinha ordem, era para a cobrança universal. O sal, a água, o ar, as margens, as florestas, os
vaus, os desfiladeiros, nada, absolutamente nada, escapava à ubiqüidade fiscal.

Enquanto as moedas variavam continuamente na França, elas pouco mudavam na Inglaterra. O rei da França
fracassara na tentativa de estabelecer a uniformidade dos pesos e medidas. Mas esta foi um dos principais artigos da carta que
o rei da Inglaterra concedeu aos estrangeiros. Nesta carta, o rei declara sua grande solicitidude pelos mercadores que visitam
ou vivem na Inglaterra; Alemães, Franceses, Espanhóis, Portugueses, Navarrenses, Lombardos, Toscanos, Provençais,
Catalães, Gascões, Toulousenses, Cahorsinos, Flamengos, Brabanções e outros. O rei lhes assegura proteção, boa e rápida
justiça, peso justo, medidas corretas. Os juízes que cometerem erros em relação a um mercador serão punidos, mesmo após
terem-lhe indenizado. Os estrangeiros terão um juiz em Londres para fazer-lhes justiça sumária. Nas causas onde forem
interessados, o júri será composto metade de Ingleses e metade com homens de sua nação[395].

Mesmo antes desta carta, os estrangeiros afluíam à Inglaterra. Quando se vê o ímpeto que o comércio tomara desde o
século XIII, fica-se muito pouco surpreso que, no século XIV, um mercador inglês tenha convidado cinco reis para banquetes
(Hallam, IV, p. 173) . Os historiadores da Idade Média falam do comércio inglês da mesma forma pela qual poderíamos hoje
fazê-lo.

“Ó Inglaterra, os vasos de Tharsis, vangloriados nas Escrituras, poderiam eles ser comparados aos teus?... Os
aromáticos te chegam dos quatro climas do mundo. Pisanos, Genoveses e Venezianos te entregam a safira e a esmeralda que
rolam pelos rios do Paraíso. A Ásia, pela púrpura, a África, pelo bálsamo, a Espanha, pelo ouro, a Alemanha, pela prata,
todas são tuas humildes servas. Flandres, tua fiadeira, teceu-te, da tua lã, trajes preciosos. A Gasconha verte-te seus vinhos.
As ilhas, da Ursa às Híades, todas elas te serviram... Mais feliz, todavia, por tua fecundidade: os flancos das nações a
abençoam, aquecidos com os tosões das tuas ovelhas”[396].

Lã e carne foram o que, primitivamente, fizeram a Inglaterra e a raça inglesa. Antes de para o mundo ser a grande
manufatura dos metais e dos tecidos, a Inglaterra foi uma manufatura de carne. É, de tempo imemorial, um povo criador e
pastor, uma raça alimentada de carne. Vem daí esse frescor de pele, esta beleza, esta força. O seu maior homem, Shakespeare,
foi, inicialmente, um açougueiro.

Que me seja permitido, nesta ocasião, expressar uma impressão pessoal.


Eu vi Londres e uma grande parte da Inglaterra e da Escócia: eu mais admirava que compreendia. Somente ao voltar,
indo de York a Manchester, cortando a ilha em sua largura, foi quando, finalmente, tive uma verdadeira intuição da Inglaterra.
Era de manhãzinha, um nevoeiro frio; ela me aparecia não mais somente cercada, mas coberta, afogada pelo Oceano. Um sol
pálido mal coloria metade da paisagem. As casas novas, em tijolos vermelhos, contrastariam fortemente com o gramado
verde, se a bruma flutuante não tivesse se preocupado em harmonizar os matizes. Por cima dos pastos cobertos de ovelhas,
flamejavam as vermelhas chaminés das usinas. Pasto, lavoura, indústria: tudo estava ali, num estreito espaço, um sobre o
outro, alimentado um pelo outro; a erva vívida pelo orvalho, a ovelha pela erva, o homem pelo sangue.

Sob este clima absorvente, o homem, sempre faminto, não pode viver senão pelo trabalho. A natureza a isso o obriga.
Mas ele devolve com juros e a faz também trabalhar; ele a subjuga pelo ferro e pelo fogo. Toda a Inglaterra resfolega de
combate. O homem aí está como amedrontado. Vede esta face vermelha, este ar bizarro... Nós facilmente o acreditaríamos
embriagado. Mas sua cabeça e suas mãos são firmes. Ele não está inebriado senão de sangue e de força. Ele se trata como o
faz à sua máquina a vapor, a qual carrega e alimenta em excesso para dela tirar tudo o que a mesma pode fornecer de ação e
de velocidade.

Na Idade Média, o Inglês era mais ou menos o que hoje é: bem nutrido, levado à ação e guerreiro à falta de indústria.

A Inglaterra, já agrícola, não fabricava ainda. Ela dava a matéria; outros a empregavam. A lã estava de um lado do
Canal, o operário do outro. O açougueiro inglês e o tecelão flamengo estavam unidos, ao meio das querelas dos príncipes, por
uma aliança indissolúvel. A França desejou rompê-la e isto custou-lhe cem anos de guerra. Para o rei, tratava-se da sucessão
da França; para o povo, da liberdade de comércio, do livre mercado das lãs inglesas. Reunidas em volta do saco de lã, as
comunas barganhavam menos as demandas do rei, elas dedicavam-lhe, graciosamente, exércitos.

A mistura de industrialismo e de cavalaria dá um aspecto bizarro a toda esta história. Este orgulhoso Eduardo III que,
sobre a Távola redonda, jurou pela garça-real conquistar a França[397], esta cavalaria gravemente tola que, em virtude de
um voto, mantém um olho coberto com um pano vermelho[398], eles não são, todavia, tão tolos a ponto de servirem às suas
próprias custas. A piedosa simplicidade das cruzadas não existe mais nesta época. Esses cavaleiros, no fundo, são os agentes
mercenários, os caixeiros-viajantes dos mercadores de Londres e de Gant. É preciso que Eduardo se humanize, que rebaixe
seu orgulho, que trate de agradar aos tecelões e fabricantes de tecidos, que dê a mão a seu compadre, o cervejeiro Artavelde,
que arengue o popular do alto do balcão de um açougueiro (Froissart, éd. Buchon, t. I, p 214).

As nobres tragédias do século XIV têm seu lado cômico. Nos mais orgulhosos cavaleiros, há um Falstaff[399]. Na
França, na Itália, na Espanha, nos deliciosos climas do Midi, os Ingleses se mostram não menos glutões que valentes. É o
Hércules Bufágio (NT: bouphagos = comedor de gado). Eles literalmente vêm comer o país. Mas, em represália, são
vencidos pelas frutas e pelos vinhos. Seus príncipes morrem de indigestão, seus exércitos de disenteria.

Lede isto em Froissart, este Walter Scott da Idade Média; segui, em suas eternas narrativas de aventuras e de
façanhas d’armas. Contemplai, em nossos museus, essas pesadas e reluzentes armaduras do século XIV... Não parece que
sejam os despojos de Renaud ou de Rolando?... Essas espessas couraças entretanto, essas fortalezas movediças de aço, fazem
sobretudo honra à prudência daqueles que nelas se enfurnavam... Todas as vezes que a guerra se torna ofício e mercadoria, as
armas defensivas se tornam mais pesadas assim. Os mercadores de Cartago, aqueles de Palmira, não iam de outra forma à
guerra[400].

Eis o estranho caráter dessa época: guerreiro e mercantil. A história de então é epopéia e conto, romance de Artur,
farsa de Patelino. Toda a época é dúbia e opaca. Os contrastes dominam; em todo lugar, prosa e poesia se desmentindo, se
ridicularizando uma à outra. Os dois séculos de intervalo entre os sonhos de Dante e os de Shakespeare são, eles mesmos, o
efeito de um sonho. É o sonho de uma noite de verão, onde o poeta mistura prazeirosamente os artesãos e os heróis; o nobre
Teseu aí figura ao lado do marceneiro Bottom, cujas belas orelhas de burro viram a cabeça de Titânia.

Enquanto o jovem Eduardo III começa tristemente seu reinado prestando homenagem à França, Filipe de Valois abre
o seu entre fanfarras. Homem feudal, filho do feudal Carlos (Charles) de Valois, egresso deste ramo amigo dos senhores, ele é
apoiado por estes. Tais senhores e o próprio Carlos de Valois tinham, entretanto, apoiado o direito das mulheres quando da
morte de Luís o Turbulento; eles haviam então desejado que a coroa, tratada como um feudo feminino, passasse por casamento
a diversas famílias e que, assim, ela se enfraquecesse. Eles convenientemente esqueceram esta política quando o direito dos
varões conduziu ao trono um dos seus, o próprio filho de seu chefe, o filho de Carlos de Valois. Os nobres muito contavam
que ele fosse reparar as injustas violências dos reinados precedentes; que fosse, por exemplo, entregar o Franco-Condado e o
Artois àqueles que em vão os reclamavam há muitos e muitos anos. Roberto do Artois, acreditando, finalmente, ter ganho sua
causa contra sua tia, ajudou poderosamente na ascensão de Filipe.

O novo rei se mostrou inicialmente bastante complacente com os senhores. Ele começou dispensando-os de pagar
suas dívidas[401]. Em sinal de graciosa elevação e de boa justiça, ele mandou pendurar no patíbulo todo novo o tesoureiro de
seu predecessor[402]. Era, como já o dissemos, o costume daquele tempo. Mas, como um verdadeiro rei justiceiro é o
protetor natural dos fracos e aflitos, Filipe acolheu o conde de Flandres maltratado pelas pessoas de Bruges, tanto quanto
Carlos o Belo havia consolado sua irmã, a boa rainha Isabela.

Seria uma festa tocar a jovem realeza para uma guerra contra esses burgueses. De coração feliz, a nobreza seguiu o
rei. Entretanto, os burgueses de Bruges e de Ypres, embora abandonados pelos de Gant, não se perturbaram. Bem armados e
em boa ordem, eles vieram à frente, até Cassel, que eles desejavam defender (23 de agosto). Sobre sua bandeira, os insolentes
tinham posto um galo e esta divisa trocista:

Quand ce coq icy chantera,


Le Roy trouvé cy entrera.

(Quando este galo aqui cantar,


O Rei encontrado cá entrará)[403]

Não foi coragem que lhes faltou para manter a palavra, mas persistência e paciência. Enquanto os dois exércitos
encontravam-se em presença e se observavam, os Flamengos sentiam que seus negócios estavam em sofrimento, que os teares
de Ypres não batiam, que os fardos permaneciam fechados no balcão. Cada dia, ante a fumaça de suas cidades incendiadas,
eles se punham a calcular o que perdiam e o que deixavam de ganhar. Eles não aguentaram mais e desejaram findar tudo por
uma batalha. Seu chefe, Zanekin (Joãozinho) se veste de peixeiro e vai ver o campo francês. Ninguém aí esperava ver o
inimigo. Os senhores, em belas túnicas, conversavam, se convidavam, se faziam visitas. O rei jantava quando os Flamengos
desabaram sobre o campo francês, derrubando tudo e furando inclusive a tenda real[404]. Mesma precipitação dos Flamengos,
tal como ocorrera em Mons-en-Puelle, mesma imprevidência do lado dos Franceses. A coisa não ficou melhor para os
primeiros. Esses enormes Flamengos, seja por brutal orgulho de sua força, seja por prudência dos mercadores ou ostentação
de riqueza, tinham se cuidado em vestir, para combater a pé, pesadas armaduras de cavaleiros. Eles se encontravam bem
protegidos, é verdade, mas mal conseguiam se mover. Suas armaduras bastavam para sufocá-los. Treze mil foram derrubados
à terra e o conde, voltando ao seus estados, mandou matar dez mil em três dias[405].

Era então, certamente, um grande rei, o rei da França. Ele acabava de recolocar Flandres sob sua dependência. Ele
recebera a homenagem do rei da Inglaterra em relação às suas províncias francesas. Seus primos voltavam a ganhar em
Nápoles e na Hungria. Ele protegia o rei da Escócia. Possuía, à sua volta, uma corte de reis: Navarra, Maiorca, Boêmia,
frequentemente o da Escócia. O famoso João da Boêmia, da Casa de Luxemburgo, cujo filho foi imperador sob o nome de
Carlos IV, declarava não poder viver senão em Paris, a estadia mais cavaleiresca do mundo. Ele voltejava por toda a
Europa, mas sempre voltava para a corte do grande rei da França. Nela havia uma festa eterna, justas sempre, torneios, a
realização viva dos romances de cavalaria, o rei Artur e a távola redonda.

Para imaginar esta realeza, é preciso ver Vincennes, o Windsor dos Valois. É preciso vê-lo, não como hoje se
encontra, semidestruído, mas como ele era quando suas quatro torres, por suas pontes-levadiças, vomitavam aos quatro ventos
os esquadrões empenachados, brasonados, dos grandes exércitos feudais; quando quatro reis, descendo em liça, justavam
perante o rei mui-cristão; quando esta nobre cena se emoldurava na majestade de uma floresta, com carvalhos seculares
erguendo-se até às seteiras, cervos à noite bramindo ao pé das torres-da-cerca, até que o dia e a corneta viessem expulsá-los
para a profundeza dos bosques... Vincennes não é mais nada e, entretanto, sem falar da torre-de-menagem, vejo daqui a
pequena torrezinha de relógio que não tem, ainda, menos de onze andares de ogivas.

Ao meio de toda esta pompa feudal que encantava os senhores, eles logo tiveram ocasião de perceber que o filho de
seu amigo Carlos de Valois não reinaria de forma diferente daquela do filho de Filipe o Belo. Este reino cavaleiresco
começou por um ignóbil processo; o castelo real logo foi uma secretaria judicial onde se comparava as escrituras e se julgava
as falsificações. O processo não serviria senão para destruir e desonrar um dos grandes barões, um príncipe de sangue, aquele
que mais contribuíra para a elevação de Filipe, seu primo, seu cunhado, Roberto do Artois. Viu-se, neste processo, o que
havia de mais humilhante para os grandes senhores: um deles falsário e feiticeiro. Estes dois crimes apropriadamente
pertencem àquele século. Mas, até então, faltava encontrá-los num cavaleiro, num homem desta posição social.
Roberto (Roberto III do Artois) reclamava, há vinte e seis anos, ter sido suplantado na posse do Artois por Matilde
(Mahaut), irmã caçula de seu pai, mulher do conde da Borgonha. Filipe o Belo apoiara Matilde[406] e suas duas filhas
(Joana e Branca), as quais haviam desposado seus filhos (Filipe o Longo e Carlos o Belo), a eles trazendo este magnífico
dote do Artois e do Franco-Condado. Quando da morte de Luís-Turbulento, Roberto, aproveitando-se da reação feudal, se
lançou sobre o Artois. Mas foi necessário que ele largasse a presa pois Filipe o Longo marchou contra si. Ele então aguardou
que todos os filhos de Filipe o Belo estivessem mortos e que um filho de Carlos de Valois subisse ao trono. Ninguém
participou mais desta ascensão que Roberto[407]. Filipe de Valois, em reconhecimento, confiou-lhe o comando da vanguarda
na campanha de Flandres e deu o título de Par de França a seu condado de Beaumont. Ele desposara a irmã do rei, Joana de
Valois, e esta não se contentava em ser apenas condessa de Beaumont: ela esperava que seu irmão entregasse o Artois a seu
marido. Dizia ela que o rei faria justiça a Roberto, se este pudesse produzir alguma nova prova, pequenininha que fosse[408].

A condessa Matilde, alertada do perigo, apressou-se em partir para Paris. Mas ela morreu quase chegando. Seus
direitos passavam à sua filha (Joana II da Borgonha), viúva de Filipe o Longo. Esta morreu três meses após sua mãe[409].
Roberto não tinha outro adversário senão Eudes IV, duque da Borgonha, marido de Joana (III da Borgonha), filha de Filipe o
Longo com Joana II e neta de Matilde. O próprio duque era irmão da mulher do rei. O rei o admitiu no gozo do condado mas,
ao mesmo tempo, reservou a Roberto o direito de expor suas razões[410].

Nem as provas e nem as testemunhas faltaram a Roberto. A condessa Matilde tinha tido por principal conselheiro o
bispo de Arras. O bispo, estando morto e deixando muitos bens, a condessa processou, buscando restituição, a amante do
bispo, uma certa dama chamada Divion, mulher de um cavaleiro[411]. Esta fugiu para Paris com seu marido. Mal ela chegara
em Paris, que Joana de Valois, esposa de Roberto, que sabia que Divion possuía todos os segredos do bispo de Arras, a
pressionou para entregar os papéis que ela pudesse ter guardado; a Divion acreditava, inclusive, que a princesa ameaçava
mandar afogá-la ou queimá-la[412]. A Divion não tinha nenhum documento; então, ela os produziu: inicialmente, uma carta do
bispo de Arras onde este pedia perdão a Roberto do Artois por ter-lhe subtraídos os títulos. Depois, uma carta do avô de
Roberto pela qual assegurava o Artois para seu pai. Essas peças, e outras de apoio, foram fabricadas às pressas por um
clérigo da Divion e ela aplicou velhos selos nas mesmas[413]. Ela chegou a ter o cuidade de mandar perguntar na abadia de
Saint-Denys quais eram os Pares de França na época dos supostos atos[414]. Quanto a isto, não foram tomadas grandes
precauções. Os documentos que ainda existem no Tesouro das Cartas são visivelmente falsos (Arquivos, Seção Hist. J, 439).
Nesta época de caligrafia, os atos importantes eram escritos com um outro tipo de cuidado[415].

Roberto fabricava, para apoio desses documentos, cinquenta e cinco testemunhas[416]. Vários afirmavam que
Enguerrand de Marigny, no caminho para o patíbulo e já na charrete, confessara sua cumplicidade com o bispo de Arras na
subtração dos títulos.

Roberto sustentou mal essa fábula. Indagado a declarar, pelo procurador do rei, na presença do próprio rei, se
contava fazer uso desses documentos equívocos, ele primeiro disse sim e, depois, não[417]. A Divion confessou tudo, assim
como as testemunhas[418]. Estas confissões são extremamente ingênuas e detalhadas. Ela disse, entre outras coisas, que foi ao
Palácio de Justiça para saber se era possível contrafazer os selos, que a carta que forneceu os selos foi comprada a cem
escudos de um burguês; que os documentos foram escritos em sua mansão, praça Baudoyer, por um clérigo que tinha muito
medo e que, para disfarçar sua caligrafia, se serviu de uma pena de bronze, etc[419]. A infeliz em vão repetiu que fora forçada
por Madame Joana de Valois, mas nem por isso deixou de ser menos queimada no mercado dos porcos, perto da porta Saint-
Hononé[420]. Roberto, que também fora acusado de ter envenenado Matilde e sua filha, não aguardou o julgamento (Mém. de
l’Acad., X, 616-621). Ele se salvou em Bruxelas[421], depois em Londres, ao lado do rei da Inglaterra. Sua mulher, irmã do
rei, foi como esquecida na Normandia. Sua irmã, condessa de Foix, foi acusada de impudicícia e Gascão, seu filho, autorizado
a trancafiá-la no castelo de Orthez. O rei acreditava tudo temer desta família. Roberto, de fato, havia enviado assassinos para
matar o duque da Borgonha, o Chanceler, o Grão-Tesoureiro e alguns outros de seus inimigos [422]. Contra o assassinato,
podia-se ao menos se proteger; mas o que fazer contra a bruxaria? Roberto tentava enfeitiçar com filtros a rainha e seu
filho[423].

Este encarniçamento do rei em perseguir um dos primeiros barões do reino, em cobri-lo de uma vergonha que
respingasse em todos os senhores, era de natureza a enfraquecer as boas disposições destes em relação ao filho de Carlos de
Valois. Os burgueses, os mercadores, deviam estar ainda mais descontentes. O rei ordenara a seus bailios taxar nos mercados
os produtos e os salários, de forma a fazê-los cair pela metade. Ele assim desejava pagar todas as coisas a meio-preço,
enquanto dobrava o imposto, recusando-se a receber de outra forma que não fosse em moeda forte (Nov. 1330. Ord. II, p. 49,
50, 58).
Um dos súditos do rei da França, e talvez aquele que mais sofresse, era o Papa. O rei o tratava menos como súdito
que como escravo. Ele ameaçara João XXII de perseguição como herético pela Universidade de Paris. Sua conduta em
relação ao Imperador era singularmente maquiavélica; sempre negociando com o mesmo, ele forçava o Papa a fazer-lhe uma
guerra de bulas; ele desejava fazer-se Imperador. Bento XII confessou, chorando aos embaixadores imperiais, que o rei da
França o ameaçara tratá-lo pior que a Bonifácio VIII, se viesse a absolver o Imperador[424]. O mesmo Papa mal se defendeu
contra um novo pedido de Filipe que teria assegurado seu todo-poder e o rebaixamento do papado. Ele desejava que o Papa
lhe desse, por três anos, a disposição de todos os benefícios da França e, por dez, o direito de receber os dízimos da cruzada
por toda a cristandade[425]. Tornado coletor deste imposto universal, Filipe teria despachado seus agentes para todos os
cantos e, talvez, envelopado toda a Europa no quadro da administração e da fiscalidade francesa.

Em poucos anos, Filipe de Valois descontentara todo mundo: os senhores pela causa de Roberto do Artois, os
burgueses e mercadores pelo seu preço máximo e suas moedas, o Papa por suas ameaças, a cristandade inteira por sua
dubiedade em relação ao Imperador e por sua exigência de receber, em todos os estados, os dízimos da cruzada.

Enquanto este grande poder minava a si mesmo, a Inglaterra se erguia. O jovem Eduardo III vingara seu pai, mandado
matar Mortimer e trancafiado sua mãe Isabela. Ele acolhera Roberto do Artois e recusava-se a entregá-lo. Ele começava a
trapacear sobre a homenagem que rendera à França. Os dois poderes guerrearam primeiro na Escócia. Filipe ajudou os
Escoceses que, nem por isso, deixaram de ser batidos. Na Guiana, o ataque foi mais direto. O senescal do rei da França
expulsou os Ingleses das possessões contestadas.

Mas o grande movimento partiu de Flandres, da cidade de Gant. Os Flamengos então se encontravam sob o governo
de um conde completamente francês, Luís de Nevers, que não era conde senão pela batalha de Cassel e pela humilhação de seu
país. Luís não vivia em outro lugar que não fosse Paris, na corte de Filipe de Valois. Sem consultar seus súditos, ele ordenou
que os Ingleses fossem presos em todas as cidades de Flandres. Eduardo mandou prender os Flamengos na Inglaterra[426]. O
comércio, sem o qual os dois países não podiam viver, encontrou-se repentinamente rompido.

Atacar os Ingleses pela Guiana e por Flandres era feri-los em seus flancos mais sensíveis, negar-lhes o tecido e o
vinho. Eles vendiam suas lãs em Bruges para comprar vinho em Bordeaux. Além disso, sem lã inglesa, os Flamengos não
sabiam o que fazer. Tendo Eduardo proibido a exportação das lãs [427], Flandres foi levada ao desespero, forçando-a a jogar-
se em seus braços[428].

De início, uma turba de operários flamengos passou à Inglaterra que os atraía a qualquer preço[429]. Não havia
espécie de lisonja e de cuidado que não fossem empregados em relação a eles. É curioso ver, desde esta época, até onde este
povo tão orgulhoso é capaz de se rebaixar quando seu interesse exige. “As vestes deles serão belas”, escreviam os Ingleses
em Flandres, “suas companhias de leito ainda mais belas”[430]. Essas emigrações, que continuaram durante todo o século
XIV, modificaram singularmente, creio, o temperamento inglês. Antes que elas ocorressem, nada anunciava nos Ingleses esta
paciência industriosa que hoje vemos. O rei da França, esforçando-se em separar Flandres da Inglaterra, não fez outra coisa
senão provocar as emigrações flamengas e fundar a indústria inglesa.

Entretanto, Flandres não se resignou. As cidades explodiram. Elas detestavam o conde de longa data, seja porque
apoiasse os campos contra o monopólio das cidades (Meyer, p. 125, anno 1322) , seja porque admitisse os estrangeiros, os
Franceses, na partilha de seu comércio[431].

Os Gantenses, que certamente se arrependiam de não terem apoiado aqueles de Ypres e de Bruges que tomaram parte
na batalha de Cassel, tomaram por chefe, em 1337, o cervejeiro Jacquemart Artevelde[432]. Apoiado pelos corpos de ofícios,
principalmente pelos pisoeiros e manufatureiros de roupas, Artevelde organizou uma vigorosa tirania[433]. Em Gant, ele
mandou reunir as pessoas de três grandes cidades: “E demonstrou-lhes que, sem o rei da Inglaterra, eles não podiam viver.
Pois toda a Flandres estava fundada sobre a indústria do pano (têxtil) e, sem lã, não se podia fabricá-lo. E, por essa razão,
recomendava que tivessem o rei da Inglaterra por amigo”[434].

Eduardo era um príncipe muito pequeno para se opor a este grande poder de Filipe de Valois. Mas tinha por si as
promessas de Flandres e a unanimidade dos Ingleses. Os senhores, os vendedores de lãs e os mercadores que a
comercializavam, todos pediam a guerra. Para torná-la ainda mais popular, ele mandou que fosse lida, nas paróquias, uma
circular pela qual informava os prejuízos que sofrera contra Filipe e os avanços que inutilmente fizera pela paz[435].

É interessante comparar a administração dos dois reis no início desta guerra. Os atos do rei da Inglaterra se tornam
então infinitamente numerosos. Ele ordena que todo homem tome as armas dos dezesseis aos sessenta anos (Rymer, II, p. 916,
ed. 1821). Para colocar o país ao abrigo das frotas francesas e das incursões escocesas, ele organiza um sistema de sinais de
fogo em toda a costa (‘signa per ignem’. Ibid., p. 996; campanæ, ibid. p. 1066). Ele contrata Galeses e lhes dá um uniforme
(Ibid., p. 993, ‘una secta vestiti’). Manda fabricar artilharia e é o primeiro a se aproveitar desta grande e terrível invenção.
Ele provê a marinha com víveres. Escreve ameaças contra os condes que devem preparar a passagem e consolações e lisonjas
ao arcebispo de Canterbury dirigidas ao povo: “O povo de nosso reino, nós reconhecemos com dor, foi até aqui
sobrecarregado com diversos fardos, talhas e imposições. A necessidade de nossas causas nos impede de socorrê-lo. Que
vossa graça, então, apoie este povo na benignidade, na humildade e na paciência, etc...” (Rymer, II, p. 1025, ann. 1338).

O rei da França não tem, logo de início, tantas questões com as quais se preocupar. Para ele, a guerra ainda é uma
causa feudal. Os senhores do sul obtêm que ele lhes devolva o direito de guerra privada e que respeite seus julgamentos (Ord.
II, p. 61, ann. 1330, p. 95, ann. 1333). Mas, ao mesmo tempo, os nobres desejam ser pagos para servir o rei: eles exigem um
soldo, estendem o braço e abrem as mãos, esses orgulhosos barões. O cavaleiro porta-bandeira terá vinte soldos por dia, o
cavaleiro dez, etc. (Ord. II, p. 120-130, ann. 1338). Era o pior dos sistemas, ao mesmo tempo feudal e mercenário, e que
reunia os incovenientes dos dois.

Enquanto o rei da Inglaterra ratifica a carta comercial que assegura a liberdade de negócio aos mercadores
estrangeiros, o rei da França ordena aos Lombardos irem às suas feiras da Champagne e pretende traçar-lhes a rota pela qual
irão (Aigues-Mortes, Carcassonne, Beaucaire, Mâcon. Ibid. p. 305).

Os Ingleses partiram cheios de esperança (1338), sentindo-se convocados por toda a cristandade. Seus amigos dos
Países-Baixos prometiam-lhes uma poderosa assistência. Os senhores lhes eram favoráveis e Artevelde respondia-lhes por
três grandes cidades. Os Ingleses, que sempre acreditaram poder fazer tudo com dinheiro, mostraram-se, em sua chegada,
magníficos e pródigos. “E não poupavam nem ouro, nem prata, como se estes lhes chovessem das nuvens, e davam caras jóias
aos senhores e damas e senhoritas, para conquistar a boa-vontade destes e destas com os quais conversavam; e tanto faziam,
que se tornaram queridos por todos e todas, mesmo pelo povo comum, a quem nada davam, pela só razão de serem
magníficos” (Frois. I, 212).

Qualquer que fosse a admiração das pessoas dos Países-Baixos por seus grandes amigos da Inglaterra, Eduardo neles
encontrou mais hesitação que esperava. Os senhores primeiro disseram que estavam prontos a secundá-lo, mas que era justo
que o mais considerável de todos, o duque do Brabant, primeiro se declarasse. O duque pediu um tempo e findou por
concordar. Então, eles disseram ao rei da Inglaterra que lhes era necessária apenas uma coisa para se decidirem: que o
Imperador desafiasse o rei da França pois, afinal de contas, diziam eles, “somos súditos do Império”. Mas, quanto a isto, o
Imperador tinha um justo e excelente motivo para a guerra, pois o Cambrésis, terra do Império, tinha sido invadido por Filipe
de Valois (Ibid., p. 198-203).

O imperador Luís da Baviera (NT: Luís IV do Sacro Império Romano-Germânico) tinha também motivos pessoais
para se declarar. Perseguido pelos papas franceses, ele não falava de outra coisa que não fosse partir com um exército para se
fazer absolver em Avignon. Eduardo foi encontrá-lo na dieta de Coblença (Koblenz). Nesta grande assembléia, onde se via
três arcebispos, quatro duques, trinta e sete condes, uma turba de barões, o Inglês aprendeu às suas próprias custas o que eram
a arrogância e a lenta dignidade alemãs: para começar, o Imperador desejava conceder-lhe o favor e honra de deixá-lo beijar
seus pés. O rei da Inglatera, perante este supremo juiz, se posicionou como acusador de Filipe de Valois. O Imperador, uma
mão sobre o globo e a outra sobre o cetro, enquanto um cavaleiro mantinha sobre sua cabeça uma espada nua, desafiou o rei
da França, declarou-o decaído da proteção do Império e, graciosamente, deu a Eduardo o diploma de vigário imperial sobre a
margem esquerda do Reno. De resto, isto foi tudo o que o Inglês conseguiu obter. O Imperador refletiu, teve seus escrúpulos e
ao invés de se engajar nesta perigosa guerra da França, encaminhou-se na direção da Itália. Mas Filipe de Valois mandou
prendê-lo, na passagem dos Alpes, por um filho do rei da Boêmia (Schmidt, ‘Hist. des Allemands’, t. IV, l. VII, c. VII, p.
515).

Voltando com seu diploma, o rei da Inglaterra perguntou ao duque do Brabant onde poderia exibi-lo aos senhores dos
Países-Baixos. O duque designou a assembléia da cidadezinha de Herck, na fronteira do Brabant. “Quando todos lá chegaram,
sabei que a cidade foi totalmente ocupada por senhores, cavaleiros, escudeiros e todos os outros tipos de pessoas; e o
mercado da cidade, de tão pouco valor, onde se vendia pão e carne, foi encortinado por belos lençóis como os do quarto do
rei; e sentou-se o rei inglês, coroa de ouro mui preciosa e nobre em sua cabeça, cinco pés mais alto que os outros, num balcão
de açougueiro, onde se cortava e se vendia a carne. Jamais antes um mercado merecera tamanha honra” (Froiss., I, 214).
Enquanto todos os senhores rendiam homenagem ao novo vigário imperial que estava sobre este balcão de
açougueiro, o duque do Brabant mandava dizer ao rei da França para em nada acreditar do que poderia ser dito contra si.
Eduardo, tendo desafiado Filipe em seu nome e em nome dos senhores, o duque declarou que preferia fazer à parte seu próprio
desafio. Enfim, quando Eduardo pediu-lhe para segui-lo até Cambrai, o duque assegurou-lhe que partiria assim que o soubesse
à frente dessa cidade, acompanhado de mil e duzentas boas lanças.

Durante o inverno, o dinheiro da França operou sobre os senhores dos Países-Baixos e da Alemanha. A inércia deles
aumentou também. Eduardo não pôde colocá-los em movimento antes do mês de setembro (1339). Cambrai se encontrava
melhor defendida do que se podia acreditar. A estação estava avançada. Eduardo levantou o sítio e entrou na França. Mas, na
fronteira, o conde de Hainaut disse que não podia segui-lo além pois, possuindo feudos do Império e da França, ele o serviria
espontaneamente nas terras do Império mas, sobre as terras da França, ele devia obediência ao rei, seu suzerano, e que, neste
passo, a este se uniria para combater os Ingleses (ibid. p. 240).

Ao meio dessas atribulações, Eduardo avançava lentamente na direção do Oise, devastando toda a região e mal
retendo seus aliados descontentes e famintos. Era-lhe necessária uma bela batalha para que pudesse se indenizar de tantos
custos e aborrecimentos. E, durante um instante, ele acreditou obtê-la. O próprio rei da França apareceu perto de La Capelle
com um grande exército. “Nele contava-se”, diz Froissart, “mil cento e vinte e sete estandartes, quinhentos e sessenta pendões,
quatro reis (França, Boêmia, Navarra, Escócia), seis duques, trinta e seis condes e mais de quatro mil cavaleiros e, das
comunas da França, mais de sessenta mil”. O próprio rei da França pediu-lhe batalha. Eduardo nada tinha a fazer além de
escolher o campo e a data, um dois de outubro, num belo lugar onde não houvesse nem bosque, nem pântano, nem regato, que
pudessem ser vantajosos para uma ou outra parte.

No dia aprazado, quando já Eduardo montado a um palafrém percorria seus batalhões e encorajava os seus, os
Franceses se deram conta, de acordo com as crônicas de Saint-Denis, que era sexta-feira e, em seguida, que havia uma
passagem difícil entre os dois exércitos (Chron. de Saint-Denis, cap. XVII, ap. Froiss., I, 263) . Segundo Froissart: “Eles não
estavam de acordo, mas cada um dava sua opinião, e por disputa diziam que seria uma grande vergonha e falta se o rei não
combatesse, quando sabia que seus inimigos estavam tão próximos de si, em seu país, alinhados em pleno campo e que os
seguira com a intenção de combatê-los. Outros diziam ao contrário, que seria uma grande loucura se ele combatesse, pois não
sabia o que cada um pensava, nem se havia algum ardil que desconhecesse: pois, se a fortuna lhe fosse contrária, ele colocaria
seu reino em risco de perda, mas que se derrotasse seus inimigos, não estaria perto da Inglaterra, nem das terras dos senhores
do Império, aliados do rei inglês, a fim de poder conquistá-las. Assim, discutindo e debatendo sobre essas diversas opiniões,
o dia passou até o meia-dia. Por volta do início da tarde, uma lebre veio cruzando os campos e correu na direção dos
Franceses que, ao virem-na, começaram a gritar e a chamar e a fazer muitos haros; em razão disso, aqueles que estavam atrás
pensaram que os que estavam na frente combatiam; e vários que se encontravam em batalhões alinhados pensaram o mesmo:
puseram-se a vestir seus elmos em suas cabeças e tomaram suas espadas. Neste momento, foram entitulados vários novos
cavaleiros, e o conde de Hainaut, em particular, nomeou quatorze, os quais foram depois chamados “os Cavaleiros da Lebre”
- ... Com tudo isso e os debates que tinham lugar no conselho do rei da França, foram levadas ao exército, para o rei, cartas da
parte do rei Roberto da Sicília, o qual era um grande astrônomo... e dizia ele que, várias vezes examinara os destinos sobre o
estado e os acontecimentos do rei da França e do rei da Inglaterra e encontrara, na astrologia e por influência das estrelas, que
se o rei da França combatesse o rei da Inglaterra, o primeiro seria com certeza derrotado... Já de longa data, e mui
preocupadamente, Roberto da Sicília enviara cartas e epístolas ao rei Filipe para que nunca combatesse os Ingleses quando
Eduardo estivesse de corpo presente” (Froissart, I, 260-3).

Esta triste expedição esgotara as finanças de Eduardo. Seus amigos, muito desencorajados, o aconselharam a dirigir-
se a essas ricas comunas de Flandres, as quais somente poderiam ajudá-lo mais do que todo o Império. Os Flamengos
deliberaram longamente e findaram por declarar que sua consciência não os permitia declarar guerra ao rei da França, seu
suzerano: o escrúpulo era tanto mais natural quando se sabe que haviam prometido pagar dois milhões de florins ao Papa,
caso atacassem o rei da França. Mas Artevelde encontrou remédio para isso. Para deixá-los protegidos contra a questão do
pecado e do dinheiro, ele imaginou fazer rei da França o rei da Inglaterra (idem, p. 265-7). Este, que acabara de receber o
título de vigário imperial para ganhar os senhores dos Países-Baixos, deixou-se fazer rei da França para aliviar as
consciências das comunas de Flandres. Filipe de Valois mandou interditar seus padres pelo Papa; mas Eduardo despachou
padres ingleses para confessá-los e absolvê-los (Meyer, l. XII, f. 141).

A guerra se tornava direta. As duas partes equiparam grandes frotas para guardar e para forçar a passagem. Relata-se
que a dos Franceses, fortificada por galeras genovesas, contava com mais de cento e quarentas enormes vasos que levavam
quarenta mil homens; toda ela comandada por um cavaleiro e pelo tesoureiro (Nicolas) Béhuchet, “que não sabia fazer outra
coisa senão contar”. Este estranho almirante, que tinha horror do mar, mantinha toda a sua frota comprimida no porto da
Eclusa. Em vão o genovês Barbanegra (Egidio Boccanegra ou Barbavera) se esforçava para fazê-lo compreender que era
preciso se fazer ao largo para poder manobrar. O Inglês os surpreendeu imóveis e os abordou. Foi uma batalha de terra (NT:
Batalha da Eclusa). Em seis horas, os arqueiros ingleses deram a vitória à Eduardo. A aparição dos Flamengos, que vieram
ocupar a margem, tirou qualquer esperança dos vencidos. Barbanegra, que logo que pôde fez-se ao largo, escapou sozinho.
Trinta mil homens do exército francês aí pereceram. O incompetente Béhuchet foi enforcado no mastro de seu navio. O Inglês,
que se dizia rei da França, já começava a tratar o inimigo como súdito rebelde. A França podia encontrar outros trinta mil
homens, mas o resultado moral não fora menos funesto que aquele das batalhas navais de La Hougue (NT: 29 de maio de
1692) e de Trafalgar (NT: 21 de outubro de 1805) . Os Franceses perderam a coragem no mar. A passagem do estreito da
Mancha ficou livre para os Ingleses durante vários séculos.

Tudo, enfim, parecia favorecer Eduardo. Artevelde, em sua ausência, trouxera sessenta mil Flamengos para auxílio de
seu aliado, o conde de Hainaut[436]. Este robusto exército finalmente lhe dava alguma esperança de fazer algo. Ele conduziu
todo este mundo, Ingleses, Flamengos, Brabanções, à frente da forte cidade de Tournai. Este berço da monarquia fora, mais de
uma vez, o boulevard. Carlos VII reconheceu a devoção tantas vezes demonstrada por esta cidade dando-lhe por armas as
próprias armas da França[437].

Filipe de Valois veio em socorro; a cidade se defendeu. O sítio se arrastou. Neste impasse, os Flamengos, não
sabendo bem o que fazer, foram pilhar Arques, ao lado de Saint-Omer [438]. Mas eis que, repentinamente, a guarnição desta
cidade cai sobre eles, lanças apontadas, pendões à mostra e fortes brados. Os Flamengos acharam melhor largar todo o butim,
foram perseguidos por duas léguas, perderam dezoito homens e levaram seu pavor para o exército. “Agora ocorreu uma
ventura maravilhosa... Pois, por volta da meia-noite, quando dormiam esses Flamengos em suas tendas, um grande pavor os
tomou dormindo que, de repente, todos se ergueram e guardaram tendas e pavilhões e jogaram tudo sobre suas carroças, com
tanta pressa que um não esperava o outro e fugiram todos desorganizadamente pela estrada... Messire Roberto do Artois e
Henrique de Flandres vieram à frente deles e disseram: Bons senhores, dizei-nos que coisa faz com que fugis assim... Eles
não prestaram contas, mas fugiram sempre e cada um tomou o caminho de sua própria casa, o mais direto que puderam.
Quando Messire Roberto do Artois e Henrique de Flandres viram que não conseguiriam nada, mandaram embalar toda sua
bagagem e partiram para o sítio de Tournai. E recordaram o acontecimento dos Flamengos e disseram a vários que eles foram
apavorados por fantasmas” (Froiss., I, p. 394).

O Inglês trabalhava em vão. Toda esta grande guerra dos Países-Baixos, com a qual acreditava acabar com a França,
nada trazia às suas mãos. Os Flamengos não eram guerreiros por natureza, salvo alguns momentos de cólera brutal; tudo o que
desejavam era não pagar nada. Os senhores dos Países-Baixos desejavam, além disso, ser pagos; eles o eram dos dois lados e
ficavam em suas casas.

Felizmente para Eduardo, no momento em que Flandres se apagava, a Bretanha pegava fogo[439]. Esta região era
sempre inflamável. Mal se pode verdadeiramente dizer que, na Idade Média, os Bretões tenham permanecido em paz. Quando
não lutam entre si, é porque foram alugados para lutarem alhures. Sob Filipe o Belo, e até à batalha de Cassel, eles seguiam de
boa-vontade os exércitos de nossos reis em Flandres, a fim de pilharem e devorarem este rico lugar. Mas, quando a França, ao
contrário, foi lancetada por Eduardo, quando os Bretões não tiveram senão uma guerra pobre para lutar, eles ficaram em suas
casas e voltaram a brigar entre si.

Esta guerra é o pingente daquelas da Escócia. Assim como Filipe o Belo encorajara Wallace e Robert Bruce contra
Eduardo I, Eduardo III apoiou Montfort contra Filipe de Valois. Não vai aqui somente uma analogia histórica. Existe, como se
sabe, parentesco de raça e de língua, semelhança geográfica entre os dois torrões[440]. Na Escócia, como na Bretanha, a parte
mais recuada é ocupada por um povo céltico, a fronteira por uma população mista, encarregada de guardar o país. Ao triste
border escocês correspondem nossas charnecas do Maine e do Anjou, nossas florestas de Ille-et-Vilaine. Mas o border é
ainda mais deserto. Pode-se por ele viajar durante horas inteiras, no ritmo rápido de uma diligência inglesa, sem nele
encontrar nem árvore, nem casa; à pena vê-se algumas rugas de terreno onde as pequenas ovelhas de Northumberland
procuram pacientemente sua vida. Parece que tudo foi queimado pelo cavalo de Hotspur[441]... Procura-se, atravessando esta
região de baladas, quem as fez ou as cantou. É preciso pouca coisa para fazer uma poesia. Não há necessidade dos loureiros-
rosa de Eurotas; basta um pouco da urze da Bretanha ou do cardo da Escócia, perante o qual o arado de Burns se
desviava[442].

Nesta rara e belicosa população, a Inglaterra encontrou um outlaw (fora-da-lei), um Robin Hood eterno... O povo do
border vivia nobremente dos bens do vizinho. Quando o butim da última expedição fora comido, a senhora da casa servia a
seu marido um prato no qual havia um par de esporas; ele partia feliz[443]... eram guerras estranhas; a dificuldade para as
duas partes era se encontrar. Em sua grande expedição da Escócia, Eduardo II avançou vários dias, sob a chuva e entre o
nevoeiro, sem ter visto outro exército que não fosse cervos e gamos[444]. Era-lhe necessário prometer uma gorda soma a
quem lhe dissesse onde se encontrava o inimigo[445]. Os Escoceses reunidos, e então dispersos com a leveza de um espírito,
entravam na Inglaterra quando bem desejavam; eles tinham pouca cavalaria, mas nenhuma bagagem[446]; cada homem
carregava seu saquinho de grãos e um tijolinho (NT: prato de ferro?) para assá-los.

Eles não se contentavam em guerrear apenas na Inglaterra. Eles, graciosamente, iam para longe. É conhecida a
história desse Douglas que, encarregado pelo rei moribundo de levar seu coração a Jerusalém, encaminhou-se pela Espanha e,
na batalha, lançou o coração contra os Mouros[447]. Mas a cruzada natural deles era na França, quer dizer, onde podiam fazer
mais danos aos Ingleses. Um Douglas se tornou conde da Turânia. Conta-se que ainda existem Douglas no Bresse[448].

Nossa Bretanha teve seu border como a Escócia e, sem dúvida, também suas baladas[449]. Talvez a vida de soldado
mercenário, que foi durante muito tempo aquela dos Bretões, tenha asfixiado este gênio poético.

Mas a só história da Bretanha é uma poesia. Uma tal memória de lutas tão diversas e tão obstinadas não se extingue.
Esta raça de aríetes sempre esteve golpeando, sem nunca encontrar nada de mais duro que si mesma. Ela enfrenta, vez por vez,
a França e os inimigos da França. Ela repeliu nossos reis sob Noménoé e sob Montfort; ela repeliu os Northmans (vikings) sob
Alain Barbatorta (Alain II da Bretanha) e os Ingleses sob Duguesclin.

Foi no border bretão, nos pântanos do Anjou, que Roberto o Forte foi morto pelos Northmans e ganhou o trono para
os Capetos. Aí também, os futuros reis da Inglaterra tomaram o nome de Plante-Genêts (Plantagenetas). Esses arbustos, como
aquele de Macbeth, saudaram as duas realezas[450].

A longa narrativa das guerras bretãs que iluminam (“renluminent”) tão bem a crônica de Froissart[451], essas
aventuras de todos os tipos, entremeadas de incidentes romanescos, fazem pensar em certas paisagens abruptas da Bretanha,
bruscamente variadas, pobres, pedregosas, semeadas, entre a rocha, de tristes flores. Mas existe mais de uma parte nesta
história que o cronista elegante e cavaleiresco não retrata o selvagem horror. Não se sente bem a história da Bretanha senão
no próprio teatro desses eventos, nos rochedos de Auray, nas praias de Quiberon, de Saint Michel-en-Grève, onde o duque
fratricida encontrou o monge negro[452].

As belas aventuras das amazonas que agradam Froissart, essas proezas de Joana (Jehanne) de Montfort, que teve a
coragem do homem e o coração do leão, esses bravos discursos de Joana de Clisson, de Joana de Blois, não dizem tudo
sobre a guerra da Bretanha. Esta guerra é também aquela de Clisson o açougueiro, do devoto e conscientemente cruel Carlos
(Charles) de Blois.

O duque João III (da Bretanha), morto sem filhos, deixava uma sobrinha e um irmão. A sobrinha, filha de um irmão
mais velho, casara-se com Carlos de Blois, princípe de sangue, e ela tinha o rei a seu favor; a nobreza da Bretanha também lhe
era muito favorável[453]. O irmão cadete, Montfort, tinha a seu favor os Bretões bretonantes e chamou os ingleses[454]. O rei
da Inglaterra, que, na França, apoiava o direito das mulheres, apoiou, na Bretanha, o dos varões. O rei da França foi
incoerente em sentido oposto.

Singular destino o dos Montfort. Nós já o observamos antes. Um Montfort aconselhara Luís o Gordo a armar as
comunas da França. Um Montfort liderou a cruzada dos Albigenses e anulou as liberdades das cidades do sul. Um Montfort
introduziu no parlamento inglês os deputados das comunas. Eis aqui um outro, no século XIV, cujo nome congraça os Bretões
em sua guerra contra a França.

O adversário de Montfort, Carlos de Blois, não era nada menos que um santo, o segundo que teve a Casa da França.
Ele se confessava de manhã e ao anoitecer, atendia a quatro ou cinco missas por dia. Ele apenas viajava na companhia de um
confessor que num pote levava pão, vinho, água e fogo para poder dizer a missa em rota[455]. Se visse passar um padre,
desmontava do cavalo na lama. Várias vezes ele fez, pés nus na neve, a peregrinação de Santo Ivo (saint Yves, Yves Hélory de
Kermartin), o grande santo bretão. Carlos de Blois punha pedrinhas em seus calçados, proibia que se tirasse os parasitas de
seu cilício[456], amarrava-se com três cordas que lhe entravam na carne, ‘de dar dó’, disse uma testemunha. Quando orava a
Deus, ele se batia o peito até empalidecer e se tornar ‘verde’[457].

Um dia, ele parou a dois passos do inimigo, e em grande perigo, para ouvir a missa. No cerco de Quimper, seus
soldados iam ser pegos pela maré: ‘Se for a vontade de Deus’, ele disse, ‘a maré nada nos fará’. A cidade foi de fato tomada e
uma multidão de habitantes degolada. Carlos de Blois primeiro acorrera até à catedral para agradecer a Deus. Depois, ele
parou o massacre.

Este terrível santo não tinha piedade nem de si e nem dos outros. Ele se acreditava obrigado a punir seus adversários
como rebeldes. Quando começou a guerra sitiando Montfort em Nantes (1342), ele lançou-lhe para dentro da cidade as
cabeças de trinta cavaleiros. Montfort se rendeu, foi despachado para o rei que, contra a capitulação, o encarcerou na torre do
Louvre[458]. “A condessa de Montfort, que muito tinha a coragem do homem e o coração do leão, estava na cidade de Rennes
quando ouviu dizer que seu senhor estava preso, tal como vós ouvistes; e apesar de toda a dor e abalo que sentia, tal como se
pode supor, ela achava que teria sido melhor que seu senhor estivesse morto do que na prisão; e, ainda que possuísse como um
luto no coração, ela não se fez uma mulher desesperada e desamparada, mas agiu como homem confiante e ousado,
reconfortando valentemente seus amigos e soldados; e mostrava-lhes um menininho que tivera, o qual se chamava João, assim
como seu pai, e dizia-lhes: “Eia, senhores! Não vos desconforteis e nem vos espanteis pelo monsenhor que perdemos! Não era
nada além de um homem: vede aqui meu filhinho que será, se Deus quiser, seu restaurador (vingador), e que vos fará muito
ricos também”. Sitiada em Hennebont por Carlos de Blois, ela queimou, numa sortida, as tendas dos Franceses e, não podendo
entrar na cidade, ganhou o castelo de Auray; mas logo reunindo quinhentos homens, ela novamente franqueou o campo dos
Franceses e entrou em Hennebont “sob grande júbilo e barulhentos toques de trombetas e tímbales!”. Era tempo dela chegar:
os senhores negociavam na frente da própria condessa quando esta viu chegar o socorro que já há muito tempo aguardava da
Inglaterra. “Quem, então, viu a condessa descer do castelo em grande animação e beijar messire Gautier de Mauny e seus
companheiros, uns após os outros, duas ou três vezes, pode mui apropriadamente dizer que era uma dama valente” (Froissart,
I, p. 73-87).

O próprio rei da Inglaterra veio em pessoa, por volta do fim daquele ano (1342), em auxílio da Bretanha. O rei da
França se aproximou com um exército; parecia que esta pequena guerra da Bretanha ia se tornar grande. Mas nada se fez de
importante: a penúria dos dois reis os condenou a uma trégüa, na qual estavam compreendidos os seus aliados; somente os
Bretões permaneciam livres para guerrear.

O cativeiro de Montfort fortificara seu partido. Filipe de Valois cuidou também de reavivá-lo, mandando matar
quinze senhores bretões, os quais acreditava serem favoráveis aos Ingleses. Um deles, Clisson, prisioneiro na Inglaterra, aí
fora bem tratado. Conta-se que o conde de Salisbury, para se vingar de Eduardo que fizera com que sua bela condessa o
abandonasse, denunciou ao rei da França o tratado secreto de seu senhor e de Clisson (Chron. de Flandre, p. 173, 174 apud
Froissart, II, p. 168)[459]. Os Bretões, convidados a um torneio, foram aprisionados e postos à morte sem julgamento. O
irmão de um deles, que era padre, não foi supliciado, mas exposto sobre uma escada, onde o povo o lapidou.

Pouco após, o rei também mandou matar, sem julgamento, três senhores da Normandia. Ele também teria desejado ter
o conde de Harcourt entre suas mãos. Mas este escapou e foi tão útil aos Ingleses quanto Roberto do Artois.

Até então, os senhores tinham poucos escrúpulos em tratar com o estrangeiro. O homem feudal ainda se considerava
como um soberano que podia negociar à parte. O parentesco das duas nobrezas, francesa e inglesa, a comunidade de línguas
(os nobres ingleses ainda falavam francês), tudo favorecia essas aproximações. A morte de Clisson ergueu uma barreira entre
os dois reinos.

Em um único ano, o Inglês perdeu Montfort e Artevelde. Este último se tornara totalmente Inglês. Sentindo Flandres
escapar-lhe, ele desejou dá-la ao príncipe de Gales. Já Eduardo estava em Eclusa e apresentava seu filho aos burgomestres de
Gant, de Bruges e de Ypres. Artevelde foi assassinado.

Com toda sua popularidade, esse rei de Flandres não era, no fundo, senão o chefe das grandes cidades, o defensor de
seus respectivos monopólios. Elas proibiam aos pequenos a fabricação da lã. Uma revolta ocorreu a este respeito numa dessas
cidades. Dentro do próprio perímetro de Gant, os dois corpos de tecelões faziam-se guerra. Os pisoeiros exigiam dos tecelões
e dos fabricantes de tecidos um aumento de salário. Estes últimos, recusando-o, as partes se entregaram a um furioso combate
e não havia meio de separar esses dogues. Em vão os padres carregaram o corpo de Nosso Senhor para o campo de batalha.
Os fabricantes, apoiados por Artevelde, massacraram os operários (1345)[460].

Artevelde, que não se fiava nem em uns e nem nos outros, desejava sair de sua perigosa posição, ceder o que não
podia manter, ou ainda reinar sob um senhor que tivesse necessidade de si e que o apoisasse. Chamar os Franceses, ele sequer
considerava. Ele então convidou o Inglês e correu Bruges e Ypres para negociar, discursar. Durante este tempo, Gant escapou-
lhe.

Quando voltou a entrar nesta última cidade, o povo já estava amotinado. A turba dizia que ele mandava passar para a
Inglaterra o dinheiro de Flandres. Ninguém o cumprimentou. Ele se salvou em seu palácio e, de sua janela de púlpito, tentou
em vão dobrar o povo. As portas foram forçadas, Artevelde foi morto precisamente como o tribuno Rienzi o seria em Roma
dois anos depois[461].

Eduardo perdera Flandres tanto quanto a Bretanha. Seus ataques em dois flancos não foram bem sucedidos; ele fez um
ao centro. Este, liderado por um Normando, Godofredo (Godefroi) d’Harcourt, foi muito mais fatal à França.

Filipe de Valois reunira todas as suas forças em um enorme exército para retomar dos Ingleses suas conquistas do sul.
Este exército que, conta-se, era forte de cem mil homens, de fato retomou Angoulême e foi se esgotar à frente da pequena
praça de Aiguillon, onde os Ingleses se defenderam tanto melhor quanto o filho do rei, que liderava os Franceses, não lhes
dera quartel nos outros lugares[462].

De acordo com a improvável narrativa de Froissart, o rei da Inglaterra teria partido para socorrer a Guiana. Depois,
conduzido por vento contrário, ele teria dado ouvidos aos conselhos de Godofredo d’Harcourt que o teria encorajado a atacar
a Normandia indefesa[463].

O conselho não era outra coisa senão excelente. Toda a região estava desarmada: era obra dos próprios reis que
tinham proibido as guerras privadas. A população se tornara completamente pacífica, complementamente ocupada do campo
ou dos ofícios. A paz trouxera seus frutos[464]. O estado florescente e próspero no qual os Ingleses encontraram a região deve
nos fazer rebater tudo aquilo que os historiadores disseram contra a administração real no século XIV.

O coração sangra quando se vê, em Froissart, esta selvagem aparição da guerra num grotão pacífico, já rico e
industrial, cujo ímpeto ia ser detido por vários séculos. O exército mercenário de Eduardo, esses pilhadores Galeses,
Irlandenses, tombaram sobre uma população sem defesa; eles encontraram as ovelhas nos campos, as fazendas e granjas
cheias, as cidades abertas[465]. Da pilhagem de Caen, eles tiveram com o que carregar vários navios[466]. Eles encontraram
Saint-Lô[467] e Louviers abarrotadas de tecidos[468].

Para animar ainda mais o seu pessoal, Eduardo descobriu, em Caen, muito oportunamente, um ato pelo qual os
Normandos ofereciam a Filipe de Valois conquistar a Inglaterra às suas próprias expensas, à condição que ela fosse
posteriormente partilhada entre os mesmos, tal como ela antes o fora entre os companheiros de Guilherme o
Conquistador[469]. Este ato, escrito no penoso francês que então se falava na corte da Inglaterra (Rymer,III, pars I, p. 76, ed.
1346), é provavelmente falso. Ele foi, por ordem de Eduardo, traduzido para o inglês e lido, em toda a Inglaterra, do púlpito
das igrejas. Antes de partir, o rei encarregara os pregadores do povo, os dominicanos, de pregar a guerra, expondo-lhe as
causas. Pouco após (1361), Eduardo suprimiu o francês nos atos públicos. Não houve, então, senão uma língua, senão um
único povo inglês. Os descendentes dos conquistadores normandos e aqueles dos Saxões se encontraram reconciliados pelo
ódio aos novos Normandos.

Tendo os Ingleses encontrado as pontes destruídas em Rouen, eles subiram pela margem esquerda, queimando, na
passagem, Vernon, Verneuil e Pont-de-l’Arche. Eduardo parou em Poissy para aí construir uma ponte e celebrar a Assunção
da Virgem Maria, enquanto seu pessoal partia para queimar Saint-Germain, Bourg-la-Reine, Saint-Cloud e, mesmo, Boulogne,
tão próxima de Paris.

Todo o socorro que o rei da França deu à Normandia foi o de enviar à Caen o condestável e o conde de Tancarville,
que acabaram presos. Seu exército estava no Midi, a cento e cinquenta léguas. Ele acreditou que seria mais rápido chamar
seus aliados da Alemanha e dos Países-Baixos. O rei tinha acabado de fazer eleger imperador o jovem Carlos IV, filho de
João da Boêmia. Mas os Alemães expulsaram o imperador eleito, o qual se pusera a soldo do rei. Sua chegada, aquela do rei
da Boêmia, do duque da Lorena e de outros senhores alemães, fez que os Ingleses já refletissem.

Eram demais as bravatas e a audácia. Eles, os Ingleses, se encontravam engajados numa luta no coração de um grande
reino, entre cidades carbonizadas, províncias devastadas, populações desesperadas. As forças do rei da França engrossavam
a cada dia. Ele tinha pressa em punir os Ingleses que lhe haviam faltado com o respeito a ponto de se aproximarem de sua
capital. Os burgueses de Paris, excelentes pessoas até então, já começavam a murmurar. O rei, tendo desejado demolir as
casas que tocavam o perímetro da cidade, houve quase uma sublevação.
Eduardo tentou ir pela Picardia, se aproximar dos Flamengos que vinham de sitiar Béthune, de atravessar o Ponthieu,
herança de sua mãe. Mas era necessário cruzar o rio Somme. Filipe mandava guardar e proteger todas as pontes e seguia o
inimigo de perto; de tão perto que, em Airaines, encontrou a mesa de Eduardo servida e comeu o jantar deste.

Eduardo mandara procurar um vau; seu pessoal procurou e nada encontrou. Ele estava muito pensativo quando um
menino de Blanquetache se encarregou de mostrar-lhe o vau que leva este nome[470]. Filipe nele posicionara uns mil homens,
mas os Ingleses, que se sentiam perdidos se não o atravessassem, fizeram um grande esforço e o cruzaram. Filipe chegou logo
depois: não havia mais jeito de persegui-los pois a maré fazia subir o fluxo do Somme; o mar protegeu os Ingleses.

A situação de Eduardo não era boa. Seu exército estava faminto, molhado, esfalfado. As pessoas que tinham tomado e
esbanjado tanto butim pareciam, agora, mendigas. Esta retirada rápida e vergonhosa seria tão funesta quanto uma batalha
perdida. Eduardo, então, arriscou a batalha.

Além disso, tendo chegado em Ponthieu, ele se sentia mais forte; ao menos este condado era bem a seu favor:
“Tomemos posição aqui”, ele disse, “pois não irei mais adiante se tiver visto nossos inimigos; e há boa causa para que eu os
aguarde aqui, pois estou no exercício do direito de herança da senhora minha mãe, a quem esta terra foi dada em casamento;
aqui desejo defender e combater contra meu adversário Filipe de Valois” (Froiss., II, p. 345).

Isto disto, Eduardo entrou em seu oratório, fez devotamente suas preces, deitou-se e, no dia seguinte, ouviu a missa.
Ele dividiu seu exército em três batalhões e mandou seus cavaleiros porem os pés à terra. Os Ingleses comeram, beberam uma
taça, depois se sentaram, armas à frente, aguardando o inimigo.

Neste momento, chegava com grande alarido a imensa multidão do exército francês[471]. Aconselhara-se ao rei da
França deixar suas tropas repousarem e ele consentiu. Mas os grandes senhores, impelidos pelo ponto de honra feudal,
avançavam sempre para saber quem estaria no primeiro ranque da vanguarda.

O próprio rei, quando chegou e que viu os Ingleses, “o sangue ferveu-lhe, pois ele os odiava... e disse aos seus
marechais: ‘fazei passar nossos Genoveses à frente e iniciai a batalha, em nome de Deus e de meu senhor São Denis”.

Não era sem grandes custos que o rei há muito tempo mantinha tropas mercenárias. Mas julgava-se, com razão, que os
arqueiros Genoveses eram indispensáveis contra os arqueiros ingleses. A pronta retirada de Barbanegra na batalha da Eclusa
tinha, naturalmente, aumentado a desconfiança contra esses estrangeiros. Os mercenários da Itália estavam habituados a se
poupar nas batalhas. Estes, no momento de combater, declararam que as cordas de seus arcos estavam molhadas e não podiam
servir[472]. Eles poderiam tê-las escondido sob seus chapelões como o fizeram os arqueiros Ingleses.

O conde d’Alençon exclamou: “Temos que lidar com esta canalha que falha na necessidade”. Os Genoveses não
podiam fazer grande coisa, os Ingleses os crivavam de flechas e de balas de ferro lançadas por bombardas. “Crer-se-ia”, diz
um contemporâneo, “ouvir Deus trovejar” (Villani, l. XII, c. 65, p. 948). Foi o primeiro emprego da artilharia numa batalha em
campo aberto[473].

O rei da França, fora de si, gritou para seus cavaleiros: “Ora, vamos! Matai toda esta corja pois eles nos impedem o
caminho sem razão”. Mas para passar sobre os corpos dos Genoveses, a infantaria rompia suas fileiras. Os Ingleses
disparavam tiros certos nesta cambada, sem temer perder um só disparo. Os cavalos se assustavam, disparavam. A desordem
aumentava a cada momento.

O rei da Boêmia, idoso e cego, mantinha-se, todavia, montado entre seus cavaleiros. Quando lhe disseram o que
ocorria, ele bem julgou que a batalha estava perdida. Este bravo príncipe, que passara sua vida na domesticidade da Casa da
França e que queria bem ao reino, deu o exemplo como vassalo e como cavaleiro. E disse aos seus: “Eu vos rogo e solicito
mui especialmente que me conduzis tão à frente que eu possa desferir um golpe de espada”. Eles o obedeceram, ataram seus
cavalos ao dele, e todos se lançaram às cegas na batalha. Foram todos encontrados no dia seguinte, jazendo em volta de seu
senhor e ainda atados[474].

Os grandes senhores da França também agiram tão nobremente. O conde d’Alençon, irmão do rei, os condes de Blois,
d’Harcourt, d’Aumale, d’Auxerre, de Sancerre, de Saint-Pol, todos magnificamente armados e brasonados, atravessaram, a
grande galope, as linhas inimigas. Eles fenderam as linhas dos arqueiros e, sempre empurrando e desdenhando esses
pedestres, chegaram à pequena tropa de cavaleiros ingleses. Aí se encontrava o filho de Eduardo, treze anos de idade, que seu
pai pusera à testa de uma divisão. A segunda divisão veio apoiá-lo e o conde Warwick, que temia pelo pequeno príncipe,
mandava pedir ao rei que enviasse a terceira divisão em socorro. Eduardo respondeu que desejava deixar o adolescente
ganhar suas próprias esporas e que o dia a ele pertencesse.

O rei da Inglaterra, que dominava toda a batalha da elevação de um moinho, bem notava que os Franceses iam ser
massacrados[475]. Uns haviam tropeçado na primeira desordem entre os Genoveses, os outros, penetrando no coração do
exército inglês, encontravam-se cercados. A pesadíssima armadura que, então, começava-se a trajar, não permitia aos
cavaleiros, uma vez caídos, se levantar. Os coutilliers[476] de Gales e das Cornualhas vinham, com suas facas, e os matavam
sem piedade, grandes e nobres senhores que fossem. Filipe de Valois foi testemunha desta carnificina. Seu cavalo fora morto.
Ele não tinha senão sessenta homens à sua volta e não podia escapar do campo de batalha. Os Ingleses, surpresos com sua
própria vitória, não davam um passo; tivessem dado, teriam capturado o rei da França. Enfim, João de Hainaut pegou o cavalo
do rei pelas rédeas e o conduziu.

Os Ingleses, fazendo a revista do campo de batalha e a contagem dos mortos, encontraram onze príncipes, oitenta
senhores brasonados, mil e duzentos cavaleiros, trinta mil soldados. Enquanto contavam, chegaram as comunas de Rouen e do
Beauvais, as tropas do arcebispo de Rouen e do Grão-Prior da França. Essa pobre gente, que nada sabia acerca da batalha,
vinha ainda aumentar o número dos mortos[477].

Esta imensa desgraça não fez senão preparar uma maior. O Inglês se assentou na França. As cidades marítimas da
Inglaterra, exasperadas pelos nossos corsários de Calais, imediatamente ofertaram uma frota a Eduardo. Dover, Bristol,
Winchelsea, Shoreham, Sandwich, Weymouth e Plymouth forneceram, cada uma, de vinte a trinta vasos, Yarmouth sozinha deu
quarenta e três[478]. Os mercadores ingleses, a quem esta guerra arruinava, tinham feito um último e prodigioso esforço para
se colocar na posse do Canal. Eduardo veio sitiar Calais e aí estabeleceu seu posto fixo para viver ou morrer. Após os
sacrifícios que tinham sido feitos para esta expedição, ele não podia reaparecer perante as comunas da Inglaterra senão tendo
chegado ao cabo de sua empreitada. Em volta da cidade de Calais, ele construiu uma vila, ruas, casas em alvenaria, bem
fechadas, bem cobertas, para aí permanecer verão e inverno[479]. “E havia, nesta nova vila do rei, todas as coisas
necessárias para um exército e ainda mais, e praça organizada para ter um mercado (feira) às quartas-feiras e aos sábados; e
aí encontrava-se mercadorias, açougues, lojas de roupas e de pão e todas as outras necessidades, e tudo podia ser facilmente
comprado com dinheiro, e tudo isso vinha-lhe por mar, todos os dias, da Inglaterra e também de Flandres...”.

O Inglês, bem assentado e em abundância, deixou aqueles de fora e os de dentro fazerem tudo o que desejassem, não
lhes concedendo sequer um combate. Ele preferia fazê-los morrer de fome. Quinhentas pessoas, homens, mulheres e crianças,
postos para fora da cidade pelo governador (de Calais), morreram de miséria e de frio, entre a cidade e o campo. Tal é, ao
menos, a narrativa do historiador inglês[480].

Eduardo enraizara-se à frente de Calais. A mediação do Papa não era capaz de arrancá-lo daí. Vieram dizer-lhe que
os Escoceses iam invadir a Inglaterra. Ele não se mexeu. Sua perseverança foi recompensada: logo tomou conhecimento que
suas tropas, encorajadas pela rainha, tinham feito prisioneiro o rei da Escócia. No ano seguinte, Carlos de Blois foi também
preso sitiando La Roche-Derrien. Eduardo podia cruzar os braços: a fortuna trabalhava para si.

Havia, para o rei da França, uma grande e urgente necessidade de socorrer Calais[481]. Mas a penúria era tão
grande, esta monarquia semi-feudal tão inerte e tão atrapalhada, que ele não conseguiu se colocar em movimento senão ao
cabo de dez meses de sítio, quando os Ingleses estavam fortificados, entrincheirados, cobertos por paliçadas, cercados por
fossos profundos. Tendo juntado algum dinheiro via alteração das moedas (Ord. II, p. 254, 256, 263), pela gabela, pelos
dízimos eclesiásticos, pelo confisco dos bens dos Lombardos, ele se encaminhou enfim, com um grande e pesado exército,
como aquele que fora batido em Crécy. Não se podia chegar em Calais senão pelos mangues ou pelas dunas. Enfiar-se nos
mangues era perecer; todas as passagens estavam cortadas, guardadas; entretanto, os soldados de Tournai tomaram bravamente
uma torre, sem máquinas de sítio e à força de seus próprios braços[482].

As dunas do lado de Boulogne (Boulogne-sur-Mer) estavam sob o fogo de uma frota inglesa. Do lado de Gravelines,
elas eram guardadas pelos Flamengos, que o rei não pôde ganhar. Ele ofereceu-lhes montanhas de ouro, render-lhes Lille,
Béthune e Douai; ele desejava enriquecer seus burgomestres, nomear cavaleiros os seus jovens, fazer senhores[483]. Nada os
moveu. Eles muito temiam o retorno de seu conde que, após uma falsa reconciliação, conseguira se salvar de suas mãos[484].
Filipe nada podia fazer. Ele negociou, ele lançou desafios. Eduardo permaneceu tranquilo[485].

Foi um terrível desespero para a cidade faminta, quando viu todos esses pendões da França, todo este grande exército
que se distanciava e a abandonava. Não restava nada mais ao povo de Calais, se desejasse misericórdia, senão render-se ao
inimigo. Mas os Ingleses os detestavam mortalmente e como marinheiros e como corsários[486]. Para saber tudo o que há de
irritação nas hostilidades quotidianas de uma tal vizinhança, neste oblíquo e colérigo olhar que os dois lados lançam um ao
outro, é preciso ler as guerras de Luís XIV, os fatos e gestos de Jean Bart [487], a lamentável demolição do porto de
Dunquerque, o fechamento das bacias da Antuérpia.

Era deveras provável que o rei da Inglaterra, que tanto se aborrecera perante Calais, que à sua frente permanecera
durante um ano, que dispendera, numa só campanha, a soma, então monstruosa, de quase dez milhões de nossa moeda, desse a
si mesmo a satisfação de passar seus habitantes a fio de espada, com o que, certamente, muito agradaria os mercadores
ingleses. Mas os cavaleiros de Eduardo disseram-lhe claramente que, se ele assim tratasse os sitiados, seus soldados não mais
ousariam se enfurnar em praças fechadas e que teriam medo de represálias. Ele cedeu e bem desejou receber a cidade à sua
mercê, desde que alguns dos principais burgueses viessem, segundo o costume, apresentar-lhe as chaves da cidade, cabeças
descobertas, pés nus e a corda em volta do pescoço.

Havia perigo para os primeiros que aparecessem perante o rei. Mas essas populações das costas, que todos os dias
enfrentam a cólera do Oceano, não têm medo daquela de um só homem. Encontrou-se imediatamente, nesta pequena cidade
despovoada pela fome, seis homens de boa-vontade para salvar os outros. Isto ocorre todos os dias, em situações parelhas ou
piores de mau tempo, para salvar um barco em perigo. Esta grande ação, estou certo, deu-se de forma simples e não com
remorsos, lágrimas e discursos longos tal como a imaginou o capelão Froissart[488].

Foram necessárias, entretanto, as súplicas da rainha e dos cavaleiros para impedir Eduardo de mandar enforcar esses
bravos homens[489]. Fez-se com que ele compreendesse que essas pessoas haviam se batido por sua cidade e seu comércio
muito mais que pelo rei ou reino da França. Ele repovoou a cidade de Ingleses, mas admitiu entre estes os Calesenses, os
quais viraram Ingleses, entre outros Eustache de Saint-Pierre, o primeiro daquele grupo de seis que entregara as chaves a
Eduardo[490].

Essas chaves eram aquelas da França. Calais, tornada inglesa, foi, durante dois séculos, uma porta aberta ao
estrangeiro. A Inglaterra estava como reunida ao continente. Não havia mais o estreito da Mancha.

Retornemos a esses tristes acontecimentos. Procuremos-lhe o verdadeiro significado. Nós aí encontraremos algum
consolo.

A batalha de Crécy não é apenas uma batalha; a tomada de Calais não é apenas uma simples tomada de cidade; esses
dois eventos contêm uma grande revolução social. A cavalaria completa do povo mais cavaleiro fora exterminada por um
bando de infantes. As vitórias dos Suíços sobre a cavalaria austríaca em Morgarten, em Laupen, apresentavam um fato
análogo, mas não tiveram a mesma importância, a mesma ressonância na cristandade. Uma nova tática saía de um novo estado
da sociedade; e não era obra de gênio ou de reflexão. Eduardo III não era nem um Gustavo Adolfo, nem um Frederico. Ele
empregara os infantes à falta de cavaleiros. Nas primeiras expedições, seus exércitos se compunham de cavaleiros, de nobres
e de servidores dos nobres. Mas os nobres haviam se cansado dessas longas campanhas. Não se conseguia manter por muito
tempo, sob a bandeira, um exército feudal. Os Ingleses, com seu gosto pela emigração, amavam todavia o home. Era
necessário que o barão retornasse, ao cabo de alguns meses, ao baronial hall, que revisse seu gado, seus cães, que caçasse a
raposa[491]. O soldado mercenário, tanto quanto não fosse rico, tanto quanto estivesse sem meiões e calçados, como esses
Irlandeses e Galeses que Eduardo alugava, tinha menos convicção quanto à necessidade de retorno. Seu home, seu lar, era o
país inimigo. Ele persistia de bom coração numa boa guerra que o alimentava, o vestia, sem contar os lucros que dela podia
extrair. Isto explica porque o exército inglês viu-se, pouco a pouco, quase todo formado por mercenários que eram infantes.

A batalha de Crécy revelou um segredo do qual ninguém desconfiava: a impotência militar desse mundo feudal que se
acreditava o único mundo militar. As guerras privadas dos barões, de cantão em cantão, no isolamento primitivo da Idade
Média, não compreenderam isso; os nobres não eram vencidos senão por outros nobres. Dois séculos de derrotas durante as
Cruzadas não fizeram mal algum à sua reputação. A Cristandade inteira estava interessada em dissimular para si própria as
vitórias dos infiéis. Além disso, as guerras ocorriam muito longe, de sorte que sempre havia meio de encontrar escusas para
os reveses; o heroísmo de um Godofredo, de um Coração-de-Leão, redimia todo o resto. No século XIII, quando os pendões
feudais foram habituados a seguir aquele do rei, quando das tantas cortes senhoriais fez-se apenas uma, brilhante para além de
todas as ficções dos romances, os nobres, subtraídos em poder, somaram em orgulho; rebaixados em si mesmos, ele se
sentiram crescer em seu rei. Eles se avaliaram mais ou menos segundo a frequência com que participavam das festas reais. O
cavaleiro mais aplaudido nos torneios era tido, e ele próprio assim se considerava, como o mais valente nas batalhas.
Fanfarras, olhares do rei, olhadelas das belas damas, tudo isso inebriava mais que uma verdadeira vitória. A embriaguez foi
tal, que eles abandonaram a Filipe o Belo, sem dizer palavra, seus irmãos, os Templários; estes cavaleiros, como já foi dito,
eram geralmente os cadetes (caçulas) da nobreza. Esta fez bom mercado dos monges-cavaleiros, assim como dos outros
monges ou padres. Sempre, ela ajudou os reis contra os Papas. Desses dízimos arrancados ao clero, sob aparência de cruzada
ou outro pretexto, os nobres receberam boa parte[492]. Chegara o tempo, porém, onde o nobre, após ter ajudado o rei a
devorar o padre, poderia ter o seu troco.

Em Courtrai, os nobres alegaram seu heróico estouvamento, o fosso dos Flamengos. Em Mons-en-Puelle e em Cassel,
dois fáceis massacres recuperaram sua reputação. Durante vários anos, eles acusaram o rei que lhes proibia de vencer. Em
Crécy, eles podiam provar o contrário: toda a cavalaria lá estava reunida, todas as armas heráldicas flutuavam ao vento, esses
orgulhosos brasões, leões, águias, torres, besantes das cruzadas, todo o soberbo simbolismo dos escudos d’armas. Em face,
salvo três mil cavaleiros, estavam os pés descalços das comunas inglesas, os rudes montanheses de Gales, os cuidadores de
porcos da Irlanda, raças cegas e selvagens que não conheciam nem francês, nem inglês, nem cavalaria[493]. Nem por isso
deixaram de visar menos as nobres flâmulas e não as mataram senão com mais ardor. Não havia uma língua comum para
implorar ou negociar. O Welsh ou o Irishman não compreendia o barão derrubado que oferecia fazê-lo rico; aquele respondia
com a faca.

Malgrado a romanesca bravura de João da Boêmia e de muitas outras, as resplandescentes flâmulas foram manchadas
nesse dia. Por terem sido arrastadas, não pela nobre manopla do senhor, mas pelas mãos calejadas, ficou difícil lavá-las. A
religião da nobreza teve, desde então, mais de um incrédulo. O simbolismo armorial perdeu todo seu efeito. Começou-se a
duvidar que esses leões mordessem, que esses dragões vomitassem fogo e chamas. A vaca da Suíça e a vaca de Gales
pareceram também excelentes símbolos heráldicos.

Para que o povo se convencesse de tudo isso, foram necessários tempo e também muitas derrotas. Crécy não bastou,
nem mesmo Poitiers. Esta reprovação aos nobres, que se ergueu ousadamente após a batalha de Azincourt, ela ainda está muda
e respeitosa sob Filipe de Valois. Não há lamento e nem revolta, mas sofrimento, languidez, torpor sob as misérias. Pouca
esperança sobre a terra, pouca em outro lugar. A fé está abalada; a feudalidade, esta outra fé, muito mais. A Idade Média tinha
sua vida em dois ideais, o imperador e o papa. O Império caiu nas mãos de um servidor do rei da França; o Papa foi
degradado, de Roma a Avignon, um mero valete do rei; este rei vencido, a nobreza humilhada.

Ninguém dizia essas coisas, nem mesmo delas se dava conta. O pensamento humano estava menos revoltado que
desencorajado, abatido e apagado. Esperava-se, novamente, o fim do mundo; alguns o fixavam para o ano 1365. O que
restava, de fato, senão morrer?

As épocas de abatimento moral são aquelas de grande mortalidade. Assim deve ser e é a glória do homem que assim
o seja. Ele deixa a vida caminhar, desde que esta cessa de parecer-lhe grande e divina... Insontes peperer manus, vitamque
perosi Projecere animas (NT: inocentes, elas se mataram e rejeitaram a vida por medo da luz)[494]... a depopulação foi
rápida nos últimos anos de Filipe de Valois. A miséria, os sofrimentos físicos, não bastariam para explicar; eles ainda não
tinham chegado ao ponto onde posteriormente chegaram. Todavia, para citar apenas um exemplo, a partir do ano 1339, a
população de uma só cidade, Narbonne, diminuíra, em quatro ou cinco anos, de quinhentas famílias[495].

Por cima desta depopulação bem lenta, vem o extermínio, a grande peste negra que, de um só golpe, multiplicou as
mortes por toda a cristandade. Ela começou na Provença, no dia de Todos os Santos de 1347, aí durou por dezesseis meses e
carregou dois terços dos habitantes. Deu-se o mesmo no Languedoc. Em Montpellier, dos doze cônsules, dez morreram. Em
Narbonne, pereceram trinta mil pessoas. Em vários locais, restou apenas um décimo dos moradores (‘Hist. de Langued.’, IV).
O despreocupado Froissart não diz senão uma palavra desta pavorosa calamidade e, ainda assim, incidentalmente: “...pois,
nessa época, por todo o mundo, corria de forma geral uma doença à qual chamavam epidemia e da qual uma terça parte do
mundo morreu”.

O mal só começou no norte no mês de agosto de 1348, inicialmente em Paris e em Saint-Denis. Ele foi tão terrível em
Paris, que aí morriam oitocentas pessoas por dia; segundo outras, quinhentas[496]. “Era”, diz o continuador de Guilherme de
Nangis, “uma medonha mortalidade de homens e de mulheres, mais de jovens que de anciãos, a ponto que mal podiam ser
enterrados; raramente ficavam mais de dois ou três dias doentes, e morriam como de morte súbita, em plena saúde. Um tal,
hoje, portava-se bem que, amanhã, era carregado ao buraco: via-se formar, repentinamente, um inchaço na virilha ou sob as
axilas e isto era o sinal infalível da morte... a peste e a morte se transmitiam por imaginação e por contágio. Quando se
visitava um doente, raramente escapava-se à morte. Assim, em várias cidades e vilas, pequenas e grandes, os padres se
distanciavam, deixando a alguns religiosos ousados o cuidado de administrar os doentes... As santas irmãs da Casa de Deus
(Hôtel-Dieu), rejeitando o temor da morte e as preocupações humanas, na sua doçura e humildade, os tocavam, os
manipulavam. Constantemente revonadas pela morte de outras, elas repousam, assim devemos piedosamente crer, na paz de
Cristo” (Cont. de G. de Nangis, p. 110).

“Como então não havia nem fome, nem falta de víveres, mas, ao contrário, uma grande abundância, dizia-se que esta
peste vinha de uma infecção do ar e das águas. Acusou-se de novo os judeus; o mundo se sublevou cruelmente contra eles,
sobretudo na Alemanha. Matou-se, massacrou-se, queimou-se milhares de judeus sem distinção...” (Contin. de G. de Nangis,
p. 110).

A peste encontrou a Alemanha num de seus mais sombrios acessos de misticismo. A maior parte deste pobre povo
estava, já há muito tempo, privada dos santos sacramentos da Igreja. Nossos Papas de Avignon, para agradarem ao rei,
friamente e por maldade de coração, tinham feito a Alemanha mergulhar no desespero. Todos os países que reconhecessem
Luís da Baviera eram fustigados pelo interdito papal. Várias cidades, particularmente Estrasburgo, permaneciam fiéis ao seu
Imperador, mesmo após sua morte, e sempre sofriam os efeitos da sentença pontifícia. Nenhuma missa, nenhum viático. A
peste matou, em Estrasburgo, dezesseis mil homens que se acreditaram condenados[497]. Os dominicanos que persistiram
algum tempo na consecução do serviço divino findaram, como os outros, por também partir. Três homens somente, três
místicos, não se importaram com o interdito e persistiram na assistência aos agonizantes: o dominicano Tauler, o agostinho
Thomas de Estrasburgo e o cartuxo Ludolpho[498]. Era a grande época dos místicos. Ludolpho escrevia sua Vida do Cristo,
Tauler sua Imitação da pobre vida de Jesus, Suso seu livro dos Nove Rochedos[499]. O grande Tauler ia pessoalmente
consultar, na floresta de Soigne, próxima a Louvain, o velho Ruysbroek, o doutor extático[500].

Mas o êxtase, no povo, era furor. No abandono no qual a Igreja os deixava, em seu desprezo pelos padres (Johannes
Vitoduranus, p. 49, apud Giescler, II, 2, p. 65) , eles se passavam dos sacramentos; eles os substituíam por mortificações
sangrentas, corridas desenfreadas. Populações inteiras partiram, foram sem saber para onde, como impelidas pelo vento da
cólera divina. Eles carregavam cruzes vermelhas, seminus pelos lugares, golpeavam-se com chicotes armados de pontas de
ferro, entoando cânticos que nunca antes tinham sido ouvidos[501]. Eles não permaneciam nas cidades e vilas senão por um
dia e uma noite e se flagelavam duas vezes por dia; isto feito durante trinta e três dias e meio, eles se acreditavam puros como
no dia do batismo (manuscritos das Crônicas de Saint-Denis, mencionado por M. Mazure em sua dissertação).

Os flagelantes foram inicialmente para a Alemanha e para os Países-Baixos. Depois, esta febre ganhou a França, por
Flandres, pela Picardia. Ela não passou em Reims. O Papa os condenou; o rei ordenou enxotá-los. No Natal de 1349, eles não
eram menos de oitocentos mil (ibidem). E não era somente o povo, mas nobres, grandes senhores. As nobres damas punham-se
a fazer o mesmo (Contin. de G. de Nangis, II, 111).

Não houve qualquer flagelante na Itália. Este sombrio entusiasmo da Alemanha e da França do norte, esta guerra
declarada contra a carne, muito contrasta com a pintura que Boccacio nos deixou dos costumes italianos da mesma época.

O prólogo do Decameron é a principal testemunha histórica que temos sobre a grande peste negra de 1348. Boccacio
pretende que somente em Florença houve cem mil mortos. O contágio era espantosamente rápido. Ele diz: “Vi, com meus
olhos, dois porcos que, na rua, sacudiram com seus focinhos os andrajos de um morto; uma mísera hora depois, eles giraram,
giraram e caíram: estavam mortos... Não eram mais os amigos que sobre seus ombros carregavam os corpos à igreja indicada
pelo moribundo. Pobres companheiros, miseráveis gatos-pingados carregavam rapidamente o corpo à igreja mais próxima...
Muitos morriam na rua; outros, completamente sós, em suas casas, mas era possível farejar as casas dos mortos... Com
frequência colocava-se sobre a mesma padiola a mulher e o marido, o filho e o pai... Cavara-se grandes fossas onde
sepultava-se os corpos às centenas, como as mercadorias num navio... Todos carregavam à mão ervas de odor forte. O ar não
era senão fedor de mortos e doentes ou de remédios infectos... Oh! Quantas belas casas ficaram vazias! Quantas fortunas sem
herdeiros! Quantas lindas damas, amáveis jovens, tomaram o desjejum da manhã com seus amigos que, à noite, foram cear
com seus avós!...”[502].

Há, em toda a narrativa de Boccacio, alguma coisa ainda mais triste que a morte: é o glacial egoísmo que é aí
confessado. Vários, ele diz, se trancavam, se alimentavam com uma extrema temperança dos alimentos mais requintados e dos
melhores vinhos, sem querer ouvir nenhuma notícia dos doentes, divertindo-se com músicas ou outras coisas, sem luxúria
todavia. Outros, ao contrário, asseguravam que o melhor remédio era beber, ir-se cantando e zombar de tudo. Eles o faziam tal
como o diziam, indo, noite e dia, de casa em casa; e isto tanto mais claramente quanto não mais esperassem viver, deixando ao
abandono tudo o que possuíam, assim como a si mesmos; as casas haviam se tornado comuns. A autoridade das leis divinas e
humanas estava perdida e dissolvida, não havendo mais ninguém para fazê-las ser observadas... Vários, por um pensamento
cruel, e talvez mais prudente[503], diziam que não havia remédio outro senão fugir; não se inquietando com ninguém mais
além de si mesmos, deixavam suas cidades, suas casas, seus pais; iam-se pelos campos, como se a cólera de Deus não
pudesse tê-los precedido... As pessoas do campo, aguardando a morte e pouco preocupadas com o porvir, se esforçavam e
pensavam meios de consumir tudo que possuíam. Os bois, os burros, as cabras, mesmo os cães abandonados, iam-se pelos
campos, onde os frutos da terra permaneciam no pé e, como criaturas racionais, quando se haviam saciado, voltavam à
noitinha, sem serem pastoreados, para casa[504]... Na cidade, os parentes não mais se visitavam. O temor era tão forte no
coração dos homens, que a irmã abandonava o irmão, a mulher o marido; coisa quase inacreditável, os pais e mães evitavam
cuidar dos filhos. Este número infinito de doentes não tinha outros recursos senão a piedade de seus amigos (e, de tais amigos,
não havia nenhuma), ou então a avareza dos servidores; estes últimos, também, eram gente tão rude e grosseira, pouco
habituada a um tal serviço, e que não era bom de se ver senão quando o doente já estava morto. Deste abandono universal
resultou uma coisa inaudita: uma mulher doente, ainda que fosse bela, jovem, nobre e graciosa, não temia fazer-se servir por
um homem, mesmo jovem, e nem se envergonhava em deixá-lo ver, se a necessidade da doença a obrigasse, tudo aquilo que
teria mostrado somente a uma outra mulher; isto certamente causou a diminuição de honestidade naquelas que se
curaram[505].

Pela maligna bonomia, tanto quanto pela despreocupação, Boccacio é o verdadeiro irmão de Froissart. Mas, aqui, o
contista diz mais que o historiador. O Decameron, em sua forma mesmo, na passagem do trágico ao divertido, não representa
senão bem demais os gozos egoístas que se seguem às grandes calamidades[506]. Seu prólogo nos conduz do fúnebre
vestíbulo da peste de Florença aos deliciosos jardins de Pampinea, a esta vida de riso, de fare niente (fazer nada) e de
oblívio calculado que levam seus adeptos perto de suas belas amantes, numa sóbria e discreta higiene... Maquiavel, em seu
livro sobre a peste de 1527, tem menos reservas. Em nenhum outro lugar o autor do Príncipe me parece mais friamente cruel.
Ele se toma de amores e dispara galantes propostas numa igreja em luto. Seus protagonistas se encontram com surpresa, como
aprazíveis um ao outro, resolvem, de boa vontade, viver, e se divertem. A alcoviteira é a morte.

Segundo o Continuador de Guilherme de Nangis: “Aqueles que permaneciam, homens e mulheres, casavam-se em
turba. Os sobreviventes concebiam loucamente. Não havia, entre eles, quem fosse estéril. Não se via, aqui e acolá, senão
mulheres grávidas. Elas davam à luz duas ou três crianças por vez”[507].

Foi, como após todo grande flagelo, como após a peste de Marselha, como após o Terror, um gozo selvagem de
viver, uma orgia de herdeiros (Matteo Villani, apud Muratori, XIV, p. 15) . O rei, viúvo e livre, ia casar seu filho com sua
prima Branca; mas, quando ele viu a jovem, a achou bela demais para seu filho e a guardou para si (Matteo Villani, t. XIV, l.
I, p. 35). Ele tinha cinquenta e oito anos, ela dezoito. O filho casou-se com uma viúva que tinha apenas vinte e quatro, a
herdeira de Boulogne e da Auvérnia que, além disso, dava-lhe, com a tutela de seu filho pequeno, a administração das duas
Borgonhas. O reino sofria, mas se arredondava. O rei vinha de comprar Montpellier e o Delfinado (‘Hist. de Langued’., l.
XXX, c. 89; ‘Hist. du Dauphiné’, ‘Preuves’, c. 136, p. 346)). O neto do rei desposou a filha do duque de Bourbon, o conde de
Flandres aquela do duque de Brabant. Não havia outra coisa senão bodas e festas.

Essas festas derivaram para um bizarro esplendor das novas modas que se haviam introduzido, após alguns anos, na
França e na Inglaterra. Os cortesãos, talvez para mais se distinguirem dos Cavaleiros em Leis (chévaliers-ès-lois), dos
homens de toga longa, tinham adotado vestes fechadas, frequentemente bipartidas em duas cores; seus cabelos eram presos em
cauda, sua barba cerrada, seus monstruosos sapatos com polainas, cujas pontas subiam curvando-se, tudo dava a eles um ar
bizarro, alguma coisa do diabo ou do escorpião. As mulheres punham sobre suas cabeças uma mitra enorme, em forma de
cone, da qual tremulavam panos, como as flâmulas de um mastro. Elas não desejavam mais palafréns, mas fogosos
destriers[508]. Elas portavam duas adagas à cintura (Chaucer, 198. Gaguin, apud Spouc. 488. Lingard, ann. 1350, t. IV, p.
106-7 da trad.). – A Igreja pregava em vão contra esses modos orgulhosos e indecentes. O severo cronista a eles se refere de
forma rude: “Eles se puseram a deixar a barba longa e túnicas curtas, tão curtas que suas nádegas apareciam... O que causou
entre o populacho um escárnio não pequeno; eles ficaram, como os acontecimentos frequentemente provaram, ainda mais aptos
para fugir perante o inimigo” (“ad fugiendum coràm inimicis magis apti’; Contin. de G. de Nangis, p. 105).

Essas mudanças anunciavam outras. O mundo ia mudar de atores como de roupas. Essas loucuras entre as desgraças,
essas bodas precipitadas no dia seguinte ao da peste, deviam também ter seus mortos. O velho Filipe de Valois não tardou a
languescer perto de sua jovem rainha e deixou a coroa a seu filho (1350).
Capítulo II
João. Batalha de Poitiers.
1350 a 1356.
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A peste de 1348 levou, entre outras personagens, o historiador Giovanni Villani e a bela Laura de Sade, aquela que,
viva ou morta, foi o objeto das canções de Petrarca[509].

Laura, filha de messire Audibert, síndico do burgo de Noves, próximo de Avignon, desposara Hugo (Hugues) de
Sade, originário de uma antiga família municipal desta cidade. Ela viveu honradamente em Avignon com seu marido, do qual
teve doze filhos. Esta união pura e fiel, esta bela imagem da família ao meio de uma cidade tão desacreditada por seus
costumes, foi, sem dúvida, o que emocionou Petrarca. Foi no dia 6 de abril de 1327 que Laura apareceu pela primeira vez ao
jovem florentino exilado, uma sexta-feira da semana santa, numa igreja, cercada, como é provável, por seu marido e seus
filhos. Desde então, esta nobre imagem da jovem mulher ficou em seu espírito.

Que não nos seja reprovada como uma digressão o pouco que nos permitimos falar de uma Francesa que inspirou uma
tão durável paixão no maior poeta do século. A história dos costumes é sobretudo aquela da mulher. Falamos de Heloísa e de
Beatriz. Laura não é, como Heloísa, a mulher que ama e que se entrega. Não é também a Beatriz (Béatrix) de Dante, na qual o
ideal domina e que finda por se confundir com a eterna beleza. Ela não morre jovem e não tem a gloriosa transfiguração da
morte. Ela cumpre todo o seu destino na terra. Foi esposa, mãe, envelheceu, sempre adorada[510]. Uma paixão tão fiel e tão
desinteressada, numa época de sensualidade grosseira, muito merecia permanecer entre as mais tocantes lembranças do século
XIV. Ama-se ver, nesses tempos de morte, uma alma viva, um amor verdadeiro e puro que foi o bastante para uma inspiração
de trinta anos. Rejuvenescemos ao ver esta bela e imortal juventude de alma.

Ele a viu, pela última vez, em setembro de 1347. Foi no meio de um círculo de mulheres. Ela estava séria e
pensativa, sem pérolas, sem guirlandas. Tudo já estava pleno do terror do contágio. O poeta, emocionado, retirou-se para não
chorar... A notícia de sua morte chegou-lhe no ano seguinte, em Verona. Aí, ele escreveu a emocionada nota que ainda se lê
sobre seu Virgílio e observa que ela morreu no mesmo mês, no mesmo dia e na mesma hora quando a viu trinta anos antes pela
primeira vez[511].

O poeta vira morrer, em alguns anos, todas as suas esperanças, todos os sonhos de sua vida[512]. Jovem, ele
aguardara que a cristandade se reconciliasse e encontrasse a paz interior numa bela guerra contra os infiéis. Ele escrevera a
célebre canzone: O aspettata in ciel beata e bella[513]... mas qual era o Papa que pregava a Cruzada? João XXII, o filho de
um sapateiro de Cahors, advogado antes de ser Papa, cahorsino[514] e ele mesmo usurário, que embolsava milhões e
queimava aqueles que falassem de amor puro e de pobreza.

A Itália, sobre a qual Petrarca pôs em seguida suas esperanças, não respondeu melhor. Os príncipes lisonjeavam
Petrarca, diziam-se seus amigos, mas nenhum o escutava. Quais amigos para o crédulo poeta senão esses ferozes e ardilosos
Visconti de Milão?... Nápoles valia mais, aparentemente. O sábio rei Roberto quisera pessoalmente dar a Petrarca a coroa do
Capitólio. Mas quando ele chegou em Nápoles, Roberto não mais vivia. A rainha Joana (Joana I, neta de Roberto) sucedera a
este[515]. O poeta, mal tendo chegado, viu com horror os combates dos gladiadores renovados nesta corte por uma nobre
sanguinária[516]. Ele previu a catástrofe do jovem marido de Joana, estrangulado pouco após pelos amantes de sua mulher.
Ele mesmo escreveu de Nápoles: “Heu! fuge crudeles terras, fuge littus avarum! (NT: Ai! Foge desta terra cruel, foge desta
costa avara!).

No entanto, falava-se da restauração da liberdade romana pelo tribuno Rienzi. Petrarca não duvidou em nada da
reunião próxima da Itália, do mundo, sob o bom estado. Ele cantou adiantadamente as virtudes do libertador e a glória da nova
Roma. Todavia, Rienzi ameaçava de morte os amigos de Petrarca, os Colonna. Ele recusou-se a acreditar nisto por muito
tempo e escreveu ao tribuno uma carta triste e inquieta, na qual rogava-lhe desmentir esses pérfidos rumores[517].

A queda do tribuno, tirando-lhe a esperança que a Itália pudesse ser erguer por si própria, ele transportou seu fácil
entusiasmo para o imperador Carlos IV que então entrava na Itália. Petrarca encontrou-se sobre sua passagem e ofertou-lhe as
medalhas de ouro de Trajano e de Augusto; ele o admoestou a sempre se lembrar destes grandes imperadores. Esse novo
Trajano, esse novo Augusto, passara os Alpes com duzentos ou trezentos cavaleiros. Ele acabara de vender os direitos do
Império na Itália ao invés de sacrificá-los na Alemanha em sua bula de ouro. O pacífico e ecônomo imperador, com seu
cortejo mal ajambrado, era comparado pelos Italianos a um vendedor ambulante que vai à feira[518].

O triste Petrarca, tantas vezes enganado[519], refugiou-se cada vez mais na longínqua antiguidade. Ele se pôs, já
velho, a aprender a língua de Homero e a soletrar a Ilíada. Era preciso ver quais foram seus transes quando, pela primeira vez,
tocou o precioso manuscrito que não podia ler[520].

Ele assim errou, nos seus últimos anos, sobrevivendo, como Dante, à tudo o que amava. Não era Dante mas, antes,
sua sombra, mais pálida e mais suave, sempre conduzida por Virgílio, e para si fazendo da poesia antiga seu Elísio. Por volta
do fim, inquieto pelos preciosos manuscritos que arrastava consigo para todos os lugares, ele os legou à república de Veneza
e depositou seu Homero e seu Virgílio na própria biblioteca de São Marco, atrás dos famosos cavalos de Corinto, onde foram
encontrados trezentos anos depois, meio enterrados na poeira. Veneza, este inviolável asilo no meio dos mares, era, então, o
único lugar seguro que a piedosa mão do poeta podia confiar, ao morrer, os deuses errantes da antiguidade.

Quanto a ele, cumprido este dever, partiu para esquentar sua velhice ao sol de Arquà, onde morreu em sua biblioteca,
a cabeça sobre um livro[521].

Esses vãos lamentos, esta fidelidade obstinada ao passado que, durante toda a vida do poeta, fê-lo perseguir as
sombras, que fez com que depositasse uma crédula esperança no tribuno Rienzi, no imperador, não foi um erro de Petrarca,
mas de todo o seu século. A própria França, que parecia ter tão violentamente rompido com a Idade Média pela imolação dos
Templários e de Bonifácio, a ela retorna, apesar de si mesma e após esse esforço, e nela se embota. A derrota dos exércitos
feudais, a grande lição de Crécy, que deveria fazê-la compreender que um outro mundo começara, não serviu senão para fazê-
la lamentar e sentir pela cavalaria. Os arqueiros ingleses não a instruíram suficientemente. Ela não entendeu de forma alguma
o gênio moderno que a fulminou em Crécy com a artilharia de Eduardo.

O filho de Filipe de Valois (VI da França), o rei João II, é o rei dos cavaleiros e dos nobres. Mais cavaleiresco
ainda e mais desastrado que seu pai, ele toma por modelo o cego João da Boêmia, que combateu atado em Crécy. Não menos
cego que seu modelo, o rei João, na batalha de Poitiers, desmontou ao solo para aguardar os soldados a cavalo. Mas, ao
contrário de João da Boêmia, ele não teve a felicidade de ser morto.

Desde sua ascensão, João o Bom, para agradar aos nobres, ordenou uma suspensão do pagamento das dívidas [Ord.,
II, p. 391 (30 de março 1351) e 447 (setembro)] . Ele criou para esses uma nova ordem, a Ordem da Estrela (l’Ordre de
l’Étoile), que assegurava um local de retiro para seus membros: era como os Inválidos (les Invalides) da cavalaria. Já uma
suntuosa casa começa a ser erguida para este fim na planície de Saint-Denis. Ela não foi terminada[522]. Os membros desta
Ordem faziam juramento de não recuar senão quatro arpentes, se não fossem mortos ou aprisionados. De fato, eles foram
presos.

Este príncipe, tão cavaleiresco, começa brutalmente por matar, por uma suspeita, o condestável d’Eu, principal
conselheiro de seu pai. Ele joga tudo para um favorito, homem do sul, hábil e ávido, Carlos da Espanha (Charles d’Espagne),
por quem tinha um “amor desordenado”[523]. O favorito se faz condestável e também se faz dar um condado que pertencia ao
jovem rei de Navarra, Carlos II, de quem João já havia anteriormente despojado a Champagne[524]. Carlos (o rei),
descendente de uma filha de Luís o Turbulento, acreditava-se, assim como Eduardo III, despojado da coroa da França. Ele
assassinou o favorito e desejou matar João. Este último o aprisionou e fez que lhe pedisse perdão de joelhos (Froiss.,
append., t. III, c. 335, p. 427-489, e Secousse, ‘Hist. de Charles-le-Mauvais’, I, p. 35). Este homem fletido será o demônio
da França. Ele é cognominado o Mau. João mata o condestável, mata d’Harcourt e outros também; mas é chamado de João o
Bom.

O Bom quer aqui dizer “o confiante”, “o aturdido”, “o pródigo”. Nulo príncipe, de fato, até então jamais desperdiçara
tão nobremente o dinheiro do povo. Ele ia, como o homem de Rabelais, comendo sua uva em botão, seu trigo em erva. Ele
fazia dinheiro de tudo, destruindo o presente e comprometendo o futuro. Dizia-se que ele previa não permanecer por muito
tempo na França.

Sua grande fonte era a alteração das moedas[525]. Filipe o Belo, seus filhos e Filipe de Valois tinham usado
largamente desta forma de bancarrota. João fez com que fossem esquecidos, assim como ultrapassou toda e qualquer
bancarrota real ou nacional que pudesse um dia ocorrer. Acredita-se estar sonhando quando se lê as bruscas e contraditórias
Ordenações que este príncipe produziu em tão poucos anos. É a lei em demência! Em sua ascensão, o marco de prata valia
cinco libras e cinco soldos, no fim do ano, valia onze libras. Em fevereiro de 1352, ele caíra para quatro libras e cinco
soldos; um ano depois, ele era cotado a doze libras. Em 1354, ele foi fixado em quatro libras e quatro soldos; em 1355, ele já
valia dezoito libras. Foi novamente baixado para cinco libras e cinco soldos, mas enfraqueceu-se de tal forma a moeda, que o
marco de prata subiu, em 1359, para a taxa de cento e duas libras[526].

Essas bancarrotas reais são, no fundo, aquelas dos nobres sobre os burgueses. Os senhores, os nobres cavaleiros
cercam o bom rei e tomam-lhe tudo o que ele toma aos outros. A só rainha Branca obtivera para si o confisco dos Lombardos;
ela perseguia, para benefício próprio, os devedores daqueles por todo o reino[527].

A nobreza, começando a viver longe de seus castelos, permanecendo com grandes despesas próxima ao rei, tornava-
se cada dia mais ávida. Ela não desejava mais servir gratuitamente. Era necessário pagá-la para combater, para defender suas
próprias terras das devastações do Inglês. Esses orgulhosos barões rebaixavam-se de bom grado à condição de mercenários,
apareciam em suas fileiras nas grandes exibições e revistas reais e estendiam a mão para o pagador[528]. No reinado de
Filipe de Valois, o cavaleiro se contentara com dez soldos por dia. Sob João, ele exigiu vinte e o senhor de brasão obteve
quarenta. Esta enorme despesa obrigou o rei João a convocar os Estados com mais frequência que qualquer um de seus
predecessores. Os nobres assim contribuíram, indireta e involuntariamente, para dar uma importância toda nova aos Estados-
Gerais, sobretudo ao terceiro-estado, à classe que pagava.

Já em 1343, a guerra forçara Filipe de Valois a pedir aos Estados um direito de quatro denários por libra sobre as
mercadorias, o qual devia ser percebido a cada venda. Não era somente um imposto, mas uma intolerável vexação, uma guerra
contra o comércio. O coletor acampava no mercado, espionava mercadores e fregueses, enfiava a mão em todos os bolsos,
exigia (como aconteceu no reinado de Carlos VI) sua parte incidente sobre um soldo de erva. Este direito, que não é outro
senão a alcabala espanhola, então recentemente instituída por ocasião das guerras dos Mouros, matou a indústria da Espanha.
Filipe de Valois prometeu, em troca, cunhar boa moeda, como ao tempo de São Luís (‘Hist. de Languedoc’, l. XXXI, c. 1, p.
249).

Novas necessidades, novas promessas. Na crise de 1346, o rei prometeu aos Estados do norte restringir o direito de
presa “às necessidades de sua hospedagem, de sua querida companheira a rainha e de seus filhos”. Ele suprimiu os cargos de
sargentos, aboliu a jurisdições opostas entre si, retirou as cartas de mora pelas quais ele permitia aos senhores adiar o
pagamento de seus débitos[529]. Os Estados do sul concederam dez soldos por feudo contra a promessa que lhes fosse
suprimida a gabela e o direito (imposto) sobre as vendas (‘Hist. de Lang.’, l. XXXI, c. 17, p. 258).

Em 1351, João, pedindo aos Estados seu direito de coroação[530], mostrou-se fácil às suas reclamações, ainda que
diversas e contraditórias. Ele prometeu aos nobres Picardos tolerar as guerras privadas (Ord., II, p. 395, 15º e 447-8), aos
burgueses normandos proibi-las (Ord. II, p. 408, 27º). Uns e outros concederam-lhe seis denários por libra sobre as vendas.
Ele assegurou aos fabricantes de Troyes o fabrico exclusivo de telhas estreitas ou couvre-chefs (Ord. II, p. 344), aos mestres
dos ofícios de Paris um regulamento que fixava os salários dos operários, elevados a um valor extravagante em virtude da
depopulação e da peste (Ord. II, p. 350). Os burgueses de Paris, consultados pessoalmente, e não por deputados, em sua
assembléia do parlatório dos burgueses, concederam-lhe a taxa das vendas[531]. Os rei os chama ao parlatório; eles logo
irão para aí sem ele.

Em 1346, o rei tinha prometido reformas; os Estados haviam acreditado e votado docilmente. Tudo terminara em um
dia. Em 1351, os nobres Picardos recusaram-se a deixar seus vassalos pagarem as taxas se eles próprios não fossem delas
isentos e se os vassalos do rei e dos príncipes não pagassem.

Em 1355, estando os Ingleses a devastarem o sul, o dinheiro era extremamente necessário. Os estados do norte ou da
língua d’Oil (langue d’Oil), convocados aos 30 de novembro, se mostraram pouco dóceis. Era-lhes necessário prometer a
abolição do furto direto, que se chamava direito de presa (droit de prise) e do furto indireto, que se fazia sobre as moedas
(Ord. III, p. 26-29). O rei declarou que o novo imposto se estenderia a todos, clérigos e nobres; que ele mesmo o pagaria,
assim como a rainha e os príncipes.

Essas boas palavras não asseguraram os Estados. Eles não se fiaram na palavra real, nos coletores reais, e quiseram,
eles mesmos, cobrar por meio de coletores de sua própria escolha, receber a prestação de contas, se reunir de novo no dia 1º
de março e, depois, de novo, no dia de Santo André (Ord. III, p. 22 e segs.; Froiss. III, c. 340, p. 450).

Votar e receber o imposto é reinar. Ninguém, então, sentiu toda consequência desta ousada reclamação dos Estados,
provavelmente nem o próprio Marcel, o famoso preboste dos mercadores, que vemos à cabeça dos deputados das
cidades[532].

A assembléia comprava esta monarquia pela concessão enorme de seis milhões de libras de Paris (livre parisis) para
custear o soldo de trinta mil soldados. Este dinheiro devia ser levantado por meio de dois impostos, sobre o sal e sobre as
vendas; pérfido imposto, sem dúvida, e que caía sobre o pobre, mas qual outro imaginar numa necessidade tão premente,
quando todo o sul estava em perigo?...

A Normandia, o Artois, a Picardia não mandaram representantes a esses Estados. Os Normandos eram encorajados
pelo rei de Navarra, pelo conde d’Harcourt e outros, que declararam que a gabela não seria de forma alguma cobrada em suas
terras: “Que não se encontraria, absolutamente, tão ousado homem da parte do rei da França que a executasse, nem sargento
que cobrasse multa, que não pagassem de seu próprio corpo” (“Qu’il ne se trouveroit point si hardi homme de par le roi de
France qui la dût faire courir, ni sergent qui enlevât amende, qui le payât se son corps – Froiss. III, p. 125).

Os Estados recuaram. Eles suprimiram os dois impostos e os substituíram por um taxa sobre as rendas: 5% sobre os
mais pobres, 4% sobre os de posses médias e 2% sobre os ricos. Mais se tinha, menos se pagava.

O rei, cruelmente ferido pela resistência do rei de Navarra e seus amigos, dissera “que jamais teria perfeito
contentamento tanto quanto estivessem vivos”. Ele partiu de Orléans com alguns cavaleiros, cavalgaram trinta horas e os
surpreendeu no castelo de Rouen, onde se encontravam à mesa. O delfim os convidara. João mandou cortar a cabeça de
d’Harcourt e de três outros; o rei de Navarra foi jogado na prisão e ameaçado de morte. Espalhou-se o rumor que eles haviam
encorajado o delfim a fugir para o Imperador a fim de fazer a guerra ao rei seu pai (Froiss, III, addit, p. 131 e c. 341, p. 457.
Secousse, ‘Preuves de l’Hist. de Charles-le-Mauvais’, II, p. 47).

A resistência aos impostos votados pelos Estados entregava o reino ao Inglês. O príncipe de Gales passeava à
vontade em nossas províncias do sul[533]. Bastava-lhe um pequeno exército, composto, desta vez, por soldados e cavaleiros.
A guera não era mais cavaleiresca. Eles queimavam, destruíam como malfeitores que passam para não mais voltar. De início,
eles correram o Languedoc, região intacta que ainda não sofrera[534]. A província foi devastada, posta à saque, como a
Normandia em 1346. Eles levaram para Bordeaux cinco mil carroças cheias[535]. Depois, tendo colocado seu butim em lugar
seguro, eles retomaram metodicamente sua cruel viagem pelo Rouergue, pela Auvérnia e Limousin, entrando em qualquer lugar
sem desferir um só golpe, queimando e pilhando, sobrecarregados como mascates, abarrotados dos frutos e dos vinhos da
França. Então, eles desceram para o Berri e correram as margens do Loire. Três cavaleiros, entretanto, que se tinham lançado
no Romorantin com apenas alguns homens, bastaram para pará-los. Eles ficaram completamente surpresos com esta resistência
inesperada. O Príncipe de Gales jurou forçar o lugar e aí perdeu vários dias[536].

O rei João, que começara a campanha na Normandia tomando as praças do rei de Navarra, pelas quais este poderia
introduzir o Inglês, finalmente veio à frente com um grande exército, tão numeroso quanto nenhum outro que a França tenha
perdido. Todo o campo estava coberto por seus batedores; os Ingleses não encontravam mais do que viver. De resto, os dois
inimigos não sabiam onde um e outro se encontravam; João acreditava ter os Ingleses à frente e corria atrás deles mas, na
verdade, ele os tinha pela retaguarda. O Príncipe de Gales, tão mal informado quanto o rei, acreditava que os Franceses
estavam atrás de si (Froiss., c. 358, p. 174). Era a segunda vez, e não seria a última, que os Ingleses se engajavam às cegas no
país inimigo. A menos que ocorresse um milagre, eles estavam perdidos. E houve um, graças à irreflexão de João.

O exército do Príncipe de Gales, metade inglês, metade gascão, era forte de dois mil guerreiros (cavaleiros e
infantes), quatro mil arqueiros e dois mil malfeitores contratados no Midi, tropas leves. João estava à testa da grande
barafunda feudal do grupo e do pós-grupo, que bem somava cinquenta mil homens[537]. João se fazia acompanhar de seus
quatro filhos, vinte e seis duques ou condes, cento e quarenta senhores brasonados com seus pendões desfraldados; magnífico
de ver, mas o exército valia apenas isso.

Dois cardeais legados, um dos quais chamado Talleyrand, se interpuseram para impedir a efusão do sangue cristão
(Froiss., c. 352, p. 190). O Príncipe de Gales oferecia render tudo o que tomara, lugares e homens, e jurar não servir contra a
França por sete anos. João recusou, como era natural; teria sido vergonhoso deixar esses pilhadores irem-se. Ele exigiu que,
ao menos, o Príncipe de Gales se rendessse com cem cavaleiros.

Os Ingleses tinham se fortificado na colina de Maupertuis, colina dura, plantada de vinhas, fechada de sebes e moitas
de espinhos[538]. O alto do aclive estava eriçado de arqueiros ingleses. Não havia necessidade de atacar. Bastava mantê-los
lá: a sede e a fome os teriam tornado fácil presa ao cabo de dez dias. Mas João achou mais cavaleiresco forçar seu inimigo.
Não havia senão uma estreita senda para subir até os Ingleses. O rei da França nela empregou cavaleiros. Foi mais ou
menos como na batalha de Morgaten. Os arqueiros fizeram cair uma chuva de flechas, crivaram os cavalos, os assustaram, os
jogaram um sobre o outro[539]. Os Ingleses colheram este momento para descer[540]. A confusão se espalhou no grande
exército real. Três filhos do rei se retiraram do campo de batalha, levando uma escolta de oitocentas lanças, por ordem de seu
pai[541].

Mas o rei se mantinha firme. Ele empregara cavaleiros para forçar a montanha; com o mesmo “bom senso”, ele deu
ordem aos seus para desmontarem à terra a fim de combater os Ingleses que vinham a cavalo[542]. A resistência de João foi
tão funesta ao reino quanto a retirada de seus filhos. Seus confrades da Ordem da Estrela foram, como ele, fiéis a seus votos e
não recuaram: “E se combatiam por tropas e por companhias, assim que se encontravam e recuavam”. Mas a multidão fugia na
direção de Poitiers que fechou seus portões. “Aussi y eut-il sur la chaussée et devant la porte si grand’horribleté de gens
occire, navrer et abattre, que merveille seroit à penser; et se rendoient les François de si loin qu’ils pouvoient voir un
Anglais” (Assim, houve sobre o rés-do-chão e à frente do portão um grande horror de gente a morrer, a ferir e a abater, que
seria espantoso de pensar; e rendiam-se os Franceses de tão longe quanto pudessem ver um Inglês).

Entretanto, o campo de batalha ainda era disputado: “O rei João aí exibia, de sua mão, grandes feitos d’armas, e
empunhava o machado tão bem, que se defendia e combatia”. Em seus flancos, seu mais jovem filho, que mereceu o cognome
de “Ousado”, guiava sua coragem cega, gritando-lhe a cada novo assalto: “Pai, protegei-vos à direita, guardai-vos à
esquerda”. Mas o número de assaltantes redobrava, todos acorriam na direção desta rica presa. “Para aí vieram tantos
Ingleses e Gascões, de todas as partes, que, por força, abriram e romperam a fileira que protegia o rei da França, e foram os
Franceses tão compactados entre seus inimigos, que bem havia cinco soldados contra um nobre cavaleiro”. Era em volta do
rei que se pressionava. “Pela cobiça de pegá-lo; e gritavam-lhe aqueles que o conheciam e que mais perto dele estavam:
‘Rendei-vos, rendei-vos, ou sereis morto’. Lá se encontrava um cavaleiro da nação de Saint-Omer, que se chamava Denys de
Morbecque. Ele então avança entre a massa e, à força de braços e corpo, pois era grande e forte, diz ao Rei, em bom francês:
‘Sire, Sire, rendei-vos’. O Rei, que se viu em uma dura partida... e também que a defesa já não lhe valia nada, perguntou
olhando para o cavaleiro: ‘A quem render-me-ei?! a quem? Onde está meu primo, o Príncipe de Gales? Se eu o visse, eu
falaria’ – ‘Sire’, respondeu messire Denys, ele não está aqui, mas rendei-vos a mim e eu vos conduzirei a ele’. – ‘Quem sois
vós?’, perguntou o Rei. – ‘Sire, eu sou Denys de Morbecque, um cavaleiro do Artois, mas sirvo o Rei da Inglaterra porque não
posso viver no reino da França, tendo nele abandonado tudo o que possuía’ – Então, respondeu o rei da França: ‘Rendo-me a
vós’. E ele tirou e estendeu sua manopla destra. O cavaleiro a pegou, ficando muito contente. Então, houve um grande tumulto
e empurrões em volta do Rei, pois cada um se esforçava em dizer ‘eu o peguei, eu o peguei’. E o Rei não podia ir adiante, nem
messire Filipe, seu jovem filho” (Froissart, III, c. 364, p. 232.

O Príncipe de Gales honrou esta fortuna inesperada que lhe pusera entre as mãos um tal prêmio. Ele bem se precaveu
de não tratar seu cativo como se não fosse o rei da França; efetivamente, foi para o Príncipe a ocasião de tratar João como o
verdadeiro rei da França e não simplesmente João de Valois , como os Ingleses o chamavam até então. Era-lhe muito
importante que João fosse realmente o rei para que o próprio reino parecesse preso na figura de seu rei e se arruínasse para
pagar seu resgate. Ele serviu João à mesa após a batalha. Quando fez sua entrada em Londres, o Príncipe o colocou montado
em um grande cavalo branco (signo de suzerania), enquanto o seguia sobre uma pequena égua negra[543].

Os Ingleses foram também muito corteses com os outros prisioneiros. Estes eram o dobro do número daqueles que os
podiam guardar. Os Ingleses os dispensaram, em sua maior parte, contra a palavra dada de os mesmos virem pagar-lhes, nas
festas de Natal, os resgates enormes através dos quais sua liberdade era previamente dada. Os Franceses eram por demais
bons cavaleiros para com ela faltarem. Nesta guerra entre cavaleiros, o pior que podia ocorrer ao vencido era tomar parte nas
festas dos vencedores, de com eles caçar, justar na Inglaterra, gozar ricamente da insolente cortesia dos Ingleses[544]; nobre
guerra, sem dúvida, que não esmagava senão o plebeu.
Capítulo III

(Sequência)
Estados-Gerais. Paris. Jaqueria.
1356 a 1364.
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Não havia grande coisa a esperar do delfim, nem de seus irmãos. O príncipe era fraco, pálido, insignificante; ele não
tinha senão dezenove anos. Não se o conhecia senão por ter convidado os amigos do rei de Navarra para o funesto jantar de
Rouen e dado, na batalha, o sinal do ‘salve-se quem puder’.

Mas a capital não tinha necessidade do delfim. Ela própria se pôs em defesa. O preboste dos mercadores, Étienne
Marcel, colocou ordem em tudo. Inicialmente, para prevenir as surpresas da noite, forjou-se e estendeu-se correntes pelas
ruas. Depois, encheu-se as muralhas de parapeitos[545] e neles se pôs balistas e outras máquinas, além do que se possuía de
canhões. Mas as velhas muralhas de Filipe Augusto não continham mais Paris, que transbordara de todos os lados. Foram
erguidas outras muralhas que cobriam a Universidade e que, do outro lado, iam da igreja da Ave Maria à porta São Denis e
daí ao Louvre. Fixou-se sobre os reparos das muralhas setencentas e cinquenta guaritas. Todo este imenso trabalho foi
executado em três anos[546].

Eu não posso fazer que se compreenda a revolução que vai seguir e o papel que Paris nela encenou sem dizer o que é
Paris.

Paris tem por armas uma nau. Primitivamente, ela mesma era um barco, uma ilha que nada entre o Sena e o Marne já
reunidos, mas não misturados[547].

Ao sul, a cidade sábia. Ao norte, a cidade comerciante[548]. No centro a Cidade (Cité), a catedral, o palácio, a
autoridade.

Esta bela harmonia de uma Cidade que flutua entre duas cidades diversas que a abraçam graciosamente, bastaria
para fazer de Paris uma cidade única, a mais bela que jamais existiu. Roma, Londres, nada têm de igual: elas foram lançadas
sobre uma só margem de seus rios[549]. A forma de Paris é não somente bela, mas verdadeiramente orgânica. A
individualidade primitiva está na Cité, à qual vieram se juntar as duas universalidades da ciência e do comércio, tudo
constituindo o verdadeiro capital da sociabilidade humana.

A autoridade, a Cité, era a ilha. Mas, sobre as duas margens, dois asilos abriam-se à independência. A Universidade
possuía sua jurisdição para os colegiais, o Templo a tinha para os artesãos[550].

Quando Guilherme de Champeaux, derrotado por Abelardo nas escolas de Notre-Dame, foi se refugiar na abadia de
São Victor, o invencível argumentador aí o perseguiu e acampou na abadia de Santa Genoveva [551]. Esta guerra, esta
secessio sobre um outro Aventino, foi a fundação das escolas da montanha [552]. Abelardo, cuja palavra bastava para criar
uma cidadezinha no deserto (vide o Tomo II desta História), foi assim um dos fundadores da nossa Paris meridional. A cidade
erística nasceu da disputa.

Ao poente, ela não podia se estender. Ela se chocava contra a imutável muralha de Saint-Germain-des-Prés. A velha
abadia, que vira a cidade pequenininha e que a ajudara a crescer, por esta estava cercada, sitiada. Mas resistia. Esta cidade,
nascida do Sena, pelo menos podia se esparramar para a outra margem. Ela aí deitou seus mercados, seus açougues e
abatedouros, seu cemitério dos Inocentes. Mas, uma vez limitada deste lado, entre o Louvre[553] e o Templo, ela inflou, não
podendo se alongar, e ganhou este ventre que vai do Châtelet à porta Saint-Denis.

As jurisdições eclesiásticas, Notre-Dame, Saint-Germain, encontraram rudes e duros adversários em nossos reis.
Sabe-se que a própria rainha Branca forçou as prisões dos cônegos para delas tirar os devedores destes (Félibien, p. 335). O
primeiro preboste real (1032), um Estevão (Étienne), tinha também querido forçar Saint-Germain, mas para daí surrupiar,
numa necessidade do rei, a rica cruz de Childeberto (ibidem, p. 132). Esses prebostes não eram fiéis senão ao rei, pelo que
parece. Um outro Estevão (Étienne Boileau), obteve o consentimento de São Luís para enforcar um ladrão na sexta-feira santa.
O preboste de Carlos V foi perseguido pelo clero como amigo dos Judeus.
A Universidade estava frequentemente em guerra com Notre-Dame e com Saint-Germain-des-Prés. O rei a apoiava.
Ele dava quase sempre razão aos escolares contra os burgueses, contra seu próprio preboste. Este ordinariamente pagava uma
reparação honorável por ter feito justiça[554]. O rei tinha necessidade da Universidade, ele se apoiava de boa-vontade nesta
grande força, sem desconfiar que, um dia, a mesma poderia se voltar contra si. Filipe o Belo convocou ao Templo os mestres
da Universidade para que lhes fosse lida a acusação contra os Templários. Filipe o Longo, para escorar sua realeza
contestada, os fez assistir ao juramento que exigia da nobreza e obteve sua aprovação. A filha dos reis aqui parece se portar
como juiz dos reis. Filipe de Valois a fez julgadora do Papa. O Papa, que por muito tempo apoiou a Universidade contra o
bispo de Paris, foi por ela ameaçado de condenação (Rayn., Annal. Eccles. ann. 1331, par. 43) . Em breve, o orgulho da
Universidade será levado ao cúmulo pelo cisma; nós a veremos escolher entre os Papas, governar Paris e reger o rei.

A só Universidade era um povo. Quando o reitor, à frente das faculdades, à frente das nações, conduzia a
Universidade à feira do Landit, entre Saint-Denis e La Chapelle, quando ia com os quatro pergaminheiros da Universidade
avaliar e julgar despoticamente os pergaminhos do subúrbio, os burgueses orgulhosamente observavam que o reitor chegara na
esplanada Saint-Denis quando a cauda da procissão ainda estava nos Mathurins-Saint-Jacques[555].

Mas a Paris do norte era ainda mais povoada. Pode-se isto julgar pelas duas grandes revistas que se fizeram no
século XIV. A Universidade composta de padres, de colegiais, de estrangeiros, nelas não figurava. No primeiro caso (1313),
ordenada por Filipe o Belo para prestar honras a seu genro, o rei da Inglaterra, estimou-se que havia vinte mil cavalos e trinta
mil infantes (Chron. de saint Victor, p. 460) . Os Ingleses estavam estupefatos. Em 1383, os Parisienses, para receber Carlos
VI que voltava de Flandres, saíram do lado de Montmartre e se formaram para batalha. Havia vários corpos de exército, um
de arbaleteiros, um de paveschiens (carregadores de escudos) , um outro armado de malhos que, só este, contava com vinte
mil homens (Froissart, t. VIII, p. 377).

Esta população não era apenas muito numerosa, mas muito inteligente, e bem acima da França de então. Sem falar do
contato desta grande universidade, o comércio, as finanças, os lombardos, devem ter expandido as idéias. O parlamento, para
onde eram levados os apelos de todas as justiças da França, atraía a Paris um mundo de pleiteantes. A Câmara de Contas, este
grande tribunal das finanças do reino, o império da Galiléia, como então se chamava, não podia deixar de atrair muitas
pessoas nesta época fiscal[556]. Os burgueses ocupavam os maiores cargos. Barbet, mestre da cunhagem sob Filipe o Belo,
Poilvilain, tesoureiro do rei João, eram burgueses de Paris. O rei fazia gosto em exibir sua confiança na boa cidade. Malgrado
a revolta das moedas de 1306, ele próprio os chamara a seu jardim real, quando da questão dos Templários (vide acima).

O chefe natural deste grande povo era, não o preboste real, magistrado de polícia, quase sempre impopular, mas o
preboste dos mercadores, presidente natural dos escabinos de Paris[557]. Os senhores, na maioria prisioneiros, a ele não se
apresentaram senão por meio de procuradores. Deu-se o mesmo com os bispos. Toda a influência estava nas mãos dos
deputados das cidades e sobretudo dos de Paris. Na Ordenação de 1357, resultado memorável desses Estados, sente-se a
verve revolucionária e, ao mesmo tempo, o gênio administrativo da grande comuna. Não se pode explicar de outra forma a
clareza, a unidade de visões que caracterizam este ato. A França nada teria feito sem Paris.

Os Estados, reunidos inicialmente no Parlamento, depois nos Franciscanos, nomearam um comitê de cinquenta
pessoas para tomar conhecimento da situação do reino. Eles desejaram: “Também saber, antes de tudo, o que se tornara o
grande tesouro que se tinha cobrado no reino, nos tempos passados, em dízimos, em maltôtes, em subsídios, e na cunhagem de
moedas, e em todas as outras exações, com os quais seus súditos tinham sido vexados e perseguidos, e os soldados mal pagos
e o reino mal guardado e defendido, mas que, a respeito do qual, ninguém sabia prestar contas”.

Tudo que se soube foi que tinha havido prodigalidades monstruosas, malversação, concussão. O rei, no pior momento
da desgraça pública, dera cinqüenta mil escudos a um só de seus cavaleiros (Sismondi, X, 430). Dos oficiais reais, sequer um
tinha as mãos limpas. Os comissários fizeram saber ao delfim que, na audiência pública, a ele solicitariam processar seus
oficiais, libertar o rei de Navarra e permitir que trinta e seis deputados dos Estados, doze de cada classe, ajudassem a
governar o reino (Secousse, ‘Préf.’, pgs. 50-51).

O delfim, que não era rei, não podia dessa forma colocar a monarquia nas mãos dos Estados. Ele adiou a audiência
sob pretexto de cartas que teria recebido do rei e do imperador. Depois, ele convidou os deputados a retornarem às suas
ordens para ouvirem a opinião dos seus, enquanto ele também consultaria seu pai[558].

Os Estados do Midi, reunidos em Toulouse, e tão próximos do perigo, mostraram-se mais dóceis. Eles votaram
dinheiro e tropas. Os Estados provinciais, aqueles da Auvérnia, por exemplo, acordaram também, mas sempre reservando-se a
administração daquilo que concediam (Secousse, ibid., p. 57). O delfim, durante este tempo, estava em Metz para receber seu
tio, o imperador Carlos V; triste delfim, triste imperador, que não podiam nada um pelo outro. De sua parte, a rainha-mãe ia à
Dijon casar seu pequeno duque da Borgonha, o qual tivera de um primeiro leito, com a pequena Margarida de Flandres
(Margarida III de Flandres) . Esta viagem custosa tinha a vantagem longínqua de reunir Flandres à França. E Paris? O que se
tornava Paris, assim abandonada, sem rei, nem rainha, nem delfim? A cidade via chegar, por todas as suas portas, os paisanos
com suas famílias e suas pequenas bagagens; depois, por longas filas lúgubres, os monges, os religiosos das redondezas.
Todos esses fugitivos contavam as coisas pavorosas que se passavam nos campos. Os senhores, os prisioneiros de Poitiers,
libertados sob palavra, retornavam às suas terras para rapidamente juntar seus resgates e arruinavam o camponês. Além disso,
vinham depois os soldados licenciados, pilhando, estuprando, matando. Eles torturavam aquele que nada mais possuía para
forçá-lo a ainda dar[559]. Era, em todo o campo, um terror, como aquele dos esquentadores da Revolução[560].

Os Estados, tendo sido de novo reunidos em 05 de fevereiro de 1357, Marcel e Roberto le Coq, bispo de Laon, a eles
apresentaram o caderno de queixas (cahier des doléances) e deles obtiveram a promessa de que cada deputado o divulgaria
em sua província. Esta difusão, que ocorreu muito rapidamente, apesar daquela época e sobretudo em virtude da estação
(inverno), se fez em um mês. Aos 03 de março, o delfim recebeu as queixas. Estas foram-lhe apresentadas por Roberto le Coq,
antigo advogado de Paris, que fora sucessivamente conselheiro de Filipe de Valois, presidente do Parlamento, e que, tendo-se
feito bispo-duque de Laon, adquirira a independência dos grandes dignitários da Igreja. Le Coq, ao mesmo tempo homem do
rei e das comunas, ia de uns aos outros e aconselhava as duas partes. Ele era comparado ao bisegre do carpinteiro (bis-acuta)
que corta dos dois lados (Secousse, I, 111) . Após ter falado, o senhor de Péquigny pelos nobres, um advogado de Bàville
pelas comunas e Marcel pelos burgueses de Paris, declararam que concordavam com tudo o que ele vinha de dizer.

Esta crítica dos Estados era, ao mesmo tempo, uma arenga e um sermão. Aconselhava-se o delfim, de início, a temer
Deus, a honrá-Lo, assim como a seus ministros, a observar Seus Mandamentos. Ele devia afastar os maus de perto de si, nada
ordenar por intermédio dos jovens, simples e ignorantes. Ele não podia duvidar, disseram-lhe, que os Estados não
expressassem o pensamento do reino, visto que os deputados eram perto de oitocentos e que haviam consultado suas
províncias. Quanto ao que lhe fora dito que os deputados pensavam em mandar matar os conselheiros do rei, era, asseguraram-
lhe os deputados, uma mentira, uma calúnia (manuscrito da Biblioteca Real, fundos Dupuy, nº 646 e Brienne, nº 276).

Eles exigiam que, no interregno entre as assembléias, o rei governasse com a assistência de trinta e seis eleitos dos
Estados, doze de cada ordem. Outros eleitos deviam ser enviados para as províncias com poderes quase ilimitados. Eles
podiam punir sem forma de processo[561], tomar empréstimos e constranger, instituir, pagar salários, castigar os agentes
reais, reunir os Estados provinciais, etc.

Os Estados concediam pagar trinta mil homens armados. Mas eles faziam com que o delfim prometesse que a
contribuição não seria levantada nem empregada por seus homens, mas por honestas e sábias pessoas, leais e solváveis,
nomeadas pelos três Estados[562]. Uma nova moeda devia ser feita, mas conforme as instruções e os padrões que estão nas
mãos do preboste dos mercadores de Paris. Nula mudança nas moedas sem o consentimento dos Estados.

Nula trégua, nula convocação de pós-grupo, sem sua prévia autorização.

Todo homem na França será obrigado a se armar.

Os nobres não poderão deixar o reino sob qualquer pretexto. Eles suspenderão toda e qualquer guerra privada: “Que
se alguém fizer o contrário, que a justiça do lugar ou, se houver necessidade, que essas boas e honestas pessoas da região,
prendam tais guerreiros... e os constranjam sem demora, por retenção de seu corpo e apreensão de seus bens, a fazerem a paz
e a cessarem de guerrear” – Eis os nobres submissos à vigilância das comunas.

O direito de presa cessa. Será lícito resistir aos procuradores e se reunir contra eles por grito ou por badalada de
campanário[563].

Proibição de doações em desfavor dos domínios reais. Toda doação é revogada, retroagindo até Filipe o Belo. – O
delfim promete mandar cessar toda despesa supérflua e voluptuária à sua volta. – Ele mandará todos os seus oficiais jurarem
nada pedir-lhe senão na presenção do Grão-Conselho.

Cada um se contentará com somente um ofício. – O número do pessoal empregado na justiça será reduzido. – Os
prebostados, viscondados, não mais serão outorgados. – Os prebostes etc. não poderão ser designados para as regiões onde
nasceram.

Proibição de julgamento “por comissão” (NT: arranjado). – Os criminosos não poderão compor, “mas será feita
plena justiça”.

Ainda que um dos principais redatores da Ordenação, Le Coq, seja um jurista, um presidente do parlamento, os
magistrados são aí tratados severamente. Proibe-se-lhes exercer o comércio[564]; proibe-se-lhes as colusões com qualquer
das partes, os extrapolamentos de suas jurisdições respectivas. Reprova-se-lhes sua preguiça. Reduz-se seus salários em
certos casos. As reformas são justas; mas a linguagem é rude, o tom acre e hostil. É evidente, então, que o parlamento se
recusasse a apoiar os Estados e as comunas.

Os presidentes ou outros membros do parlamento designados para comissões de inquéritos não receberão senão
quarenta soldos por dia. “Vários se acostumaram a receber mui excessivo salário e a se deslocarem a quatro ou cinco cavalos
quando, se fossem às suas próprias expensas, bastar-lhes-ia suficientemente irem a dois cavalos ou três”[565].

O Grão-Conselho, o Parlamento, a Câmara de Contas, são acusados de negligência. “Julgamentos que deveriam ter
sido proferidos há vinte anos, ainda aguardam sê-lo” (ibidem, Ord. III). Os conselheiros chegam tarde, suas refeições são
longas, suas pós-refeições “pouco aproveitáveis”: os agentes da Câmara de Contas “jurarão pelos santos Evangelhos de Deus
que bem e lealmente resolverão, por ordem, as causas da boa gente, sem mantê-las esperando (“sans eux faire muser”). O Grande
Conselho, o Parlamento e a Câmara de Contas devem se reunir no sol levante[566]. Os membros do Grão-Conselho que não
chegarem de manhãzinha, perderão a jornada de salário. – Esses membros, malgrado sua altíssima posição, são, como se vê,
tratados sem muitas cerimônias pelos burgueses legisladores.

Esta grande Ordenação de 1357, que o delfim foi obrigado a assinar, era muito mais que uma reforma. Ela mudava de
um golpe a forma de governar. Ela punha a administração nas mãos dos Estados, substituía a Monarquia pela República. Ela
dava o governo ao povo, quando ainda não havia um povo. Constituir um novo governo, no meio de uma tal guerra, era uma
operação singularmente perigosa, como aquela de um exército que virasse ao contrário sua ordem de batalha na presença do
inimigo. Podia-se apostar que a França pereceria nesta reviravolta.

A Ordenação destruía os abusos. Mas a realeza de então não vivia senão de abusos. Matá-los era matar o poder,
dissolver o Estado, desarmar a França.

Na realidade, a França existia como pessoa política? podia-se supor que houvesse uma vontade comum? O que se
pode afirmar é que a autoridade ainda lhe aparecia inteira na realeza. Ela não aspirava senão às reformas parciais. A
Ordenação aprovada pelos Estados-Gerais não era, segundo toda verossimilhança, senão a obra de uma comuna, de uma
grande e inteligente comuna, que falava em nome do reino, mas que o reino devia abandonar na ação.

Os nobres conselheiros do delfim, em seu ódio de nobres contra os burgueses, em seus ciúmes provinciais contra
Paris, empurravam seu senhor à resistência. No mês de de março, ele firmara a Ordenação apresentada pelos Estados; aos 06
de abril, ele proibiu pagar a contribuição que os Estados tinham votado. Aos 08, em virtude das representações do preboste
dos mercadores, ele revogou a proibição (Crônicas de Saint-Denis, folio 232, verso, col. 2 e folio 233). O jovem príncipe
assim flutuava entre dois impulsos, seguindo um hoje, amanhã o outro e, talvez, de boa-fé. Havia muito do que se duvidar nesta
crise obscura. Todo mundo duvidava, ninguém pagava. O delfim permanecia desarmado, os Estados também. Não havia mais
poder público, nem rei, nem delfim, nem Estados.

O reino, sem força, morrendo, por assim dizer, e perdendo consciência de si, jazia como um cadáver. A gangrena nele
estava, os vermes fervilhavam; os “vermes”, eu quero dizer os salteadores, ingleses, navarrenses. Toda esta podridão isolava,
destacava, um do outro, os membros do pobre corpo. Falava-se do reino, mas não havia mais Estados verdadeiramente
Gerais, nada de geral, nenhuma comunicação, nenhuma estrada para chegar em algum lugar. As estradas eram verdadeiras
“corta-gargantas”. O campo um campo de batalha, a guerra em todos os cantos ao mesmo tempo, sem que se pudesse distinguir
o amigo do inimigo.

Nesta dissolução do reino, a comuna permanecia viva. Mas como viveria a comuna só e sem o apoio do país que a
circunda? Paris, não sabendo em quem se apoiar na sua angústia, acusava os Estados. O delfim, encorajado, declarou que
desejava governar, que doravante não teria mais tutor. Os comissários dos Estados se separaram. Mas ele, o delfim, não ficou
senão mais confuso. Ele tentou fazer um pouco de dinheiro vendendo cargos e ofícios (Ord. III, 180), mas o dinheiro não veio.
Ele saiu de Paris: todo o campo estava em fogo. Não havia mais cidade ou aldeia na qual não se pudesse ser preso ou raptado
pelos salteadores. Ele retornou para se enfurnar em Paris e se remeter aos cuidados dos Estados. Ele os convocou, no ano de
1357, para o dia 07 de novembro (Secousse, ‘Préf. des Ord.’ III, p. 70) . Na noite do dia 08 para o 09, um amigo de Étienne
Marcel, um Picardo, o senhor de Pecquigny, sequestrou de um golpe, do forte onde estava aprisionado, Carlos o Mau de
Navarra. Marcel, que sempre via em volta do delfim uma turba ameaçadora de nobres, tinha necessidade de uma espada
contra essa gente de espada, de um príncipe de sangue contra o delfim. Os burgueses, mesmo em suas mais ousadas tentativas
de liberdade, amavam seguir um príncipe. Parecia também tão belo e cavaleiresco, quando a cavalaria se conduzia tão mal,
que os burgueses se encarregassem de reparar esta grande injustiça, de remendar os erros do rei. A multidão, sempre fácil
para as emoções generosas, acolheu o prisioneiro com lágrimas de alegria. O retorno desse malvado homem, mas tão infeliz,
parecia-lhes aquele da própria justiça. Conduzido pelas comunas de Amiens, recebido em Saint-Denis pela massa dos
burgueses que para aí tinha antecipadamente se deslocado a fim de recebê-lo[567], ele chegou em Paris, de início fora muros,
em Saint-Germain-des-Prés. No dia depois do seguinte, ele pregou para o povo de Paris. Havia, contra os muros da abadia,
um púlpito ou tribuna donde os juízes presidiam os combates judiciários que se faziam no Pré-aux-Clercs, limite das duas
jurisdições. Foi daí que falou o rei de Navarra. O delfim, a quem Carlos solicitara ingresso na cidade e que não ousara
recusar, viera ouvi-lo, talvez na esperança de que, em sua presença, ele falasse de menos. Mas a arenga não foi senão mais
ousada e impetuosa. Ele começou em latim e continuou em língua vulgar[568]. Ele falou às maravilhas. Diziam seus
contemporâneos que era ele era pequeno, vivo e de espírito sutil.

O texto do discurso, tirado, segundo o costume da época, das Santas Escrituras, prestava-se a digressões patéticas:
Justus dominus et dilexit justitias; vidit æquitatem vultus ejus (NT: “O Senhor é justo e ama a justiça; os homens retos verão
Sua face” – Salmos, 10:8). O rei de Navarra, dirigindo-se, com uma insidiosa doçura, ao próprio delfim, tomava-o como
testemunha das injúrias que lhe tinham sido feitas. Tinha-se muito desconforto em desconfiar dele: não era ele Francês de pai
e de mãe? não estava ele mais próximo da coroa, na linha de sucessão, que o rei da Inglaterra que a reclamava? ele desejava
viver e morrer defendendo o reino da França... O discurso foi tão longo, que se havia ceado em Paris quando terminou
(Crônicas de Saint-Denis, folio 238, verso, col. 2). Mas, ainda que o burguês não goste de perder a hora[569], isto não o fez
menos favorável ao arengador. Foi a ele que deram o dinheiro[570].

De Paris, ele foi a Rouen, onde expôs suas desgraças com a mesma facúndia[571]. Ele mandou descer do patíbulo os
corpos de seus amigos que tinham sido mortos no terrível jantar de Rouen[572], e os seguiu à catedral, ao som de sinos e à luz
dos círios. Era o dia dos Santos Inocentes (28 de dezembro); ele discursou sobre este texto: “Os inocentes e os retos se têm
unido a mim porque eu me agarrava a ti, ó Senhor!”[573].

O delfim também pregava em Paris[574]. Ele discursava nos mercados, Marcel em Saint-Jacques. Mas o primeiro
não tinha a multidão. O povo não gostava da figura débil do jovem príncipe. Muito sábio e sensato que pudesse ser, era um
frio orador em comparação com o rei de Navarra.

A enfatuação de Paris por este último era estranha. O que pedia este príncipe tão popular? Que se enfraquecesse
ainda mais o reino, que se pusesse em suas mãos províncias inteiras, as províncias mais vitais da monarquia, toda a
Champagne e uma parte da Normandia, a fronteira inglesa, o Limousin, uma enormidade de praças-fortes e de fortalezas.
Colocar nossas melhores províncias em mãos tão suspeitas seria perder com um rabisco de pena tanto quanto se havia perdido
com a batalha de Poitiers.

Os burgueses de Paris imaginavam que se o rei de Navarra ficasse satisfeito, ele ia libertá-los dos bandos dos
malfeitores que esfaimavam a cidade e que se diziam Navarrenses. No fundo, eles não eram nem pelo rei de Navarra, nem por
ninguém. Quisesse ele ter convocado todos esses pilhadores, não o conseguiria.

Entrementes, os burgueses, o preboste, a Universidade, cercavam, sitiavam, o delfim. Eles o pressionavam para fazer
justiça a este pobre rei de Navarra. Um jacobino, falando em nome da Universidade, declarou-lhe que fora já decidido que o
rei de Navarra, vindo fazer todos os seus pedidos, o delfim deveria render-lhe suas (dele) fortalezas; que, quanto ao resto, a
cidade e a Universidade deliberariam. Um monge de Saint-Denis veio logo após o jacobino e exclamou: “Vós não dissestes
tudo, senhor! Dizei também que se monsenhor o duque ou o rei de Navarra não se ativer ao que se decidir, nós nos
declararemos contra ele” (Chron. de Saint-Denis, II, folio 243).

Não havia como dizer não. O delfim prometia graciosamente. Depois, mandava que os comandantes e capitães
respondessem que, tendo recebido as praças-fortes do rei, não poderiam entregá-las por ordem do delfim.
O delfim, no meio de uma cidade inimiga, não tinha outra forma de obter algum dinheiro senão por novas alterações
das moedas (22 e 23 de janeiro, 07 de fevereiro de 1358 – Ord. III, p. 193 e segs.). Os Estados, reunidos aos 11 de fevereiro,
fizeram-lhe tomar o título de Regente do Reino (Ord. III, p. 212), sem dúvida a fim de autorizar tudo o que eles ordenariam em
seu nome. Talvez, também, a comissão dos trinta e seis, escolhida sob influência de Marcel, mas composta na maioria de
nobres e de eclesiásticos, desejasse dar força ao delfim contra os burgueses de Paris.

Um evento trágico levara aos píncaros a má-vontade dos burgueses. Um cambista, chamado Perrin Macé, tendo
vendido dois cavalos ao delfim e não tendo sido pago, parou, na rua Neuve-Saint-Merry[575], Jean Baillet, tesoureiro das
finanças. O tesoureiro recusava-se a pagar, sem dúvida sob pretexto de direito de presa. Houve discussão, que foi crescendo.
Perrin matou Baillet e se lançou para dentro do quartier Saint-Jacques-la-Boucherie. Os homens do delfim, Roberto de
Clermont, marechal da França, João de Châlons e Guilherme Staise, preboste de Paris, para lá se dirigiram, forçaram o asilo,
arrastaram Perrin à prisão do Châtelet, cortaram-lhe o punho e o mandaram enforcar. O bispo reclamou bem alto desta
violação das imunidades eclesiásticas, obteve o corpo de Perrin e o enterrou honestamente na igreja de Saint-Merri. Marcel
assistiu ao serviço, enquanto o delfim seguia o enterro de Baillet (Matt. Villani, l. VIII, c. 29, p. 484).

Uma colisão era iminente. Marcel, para encorajar os burgueses em virtude de seu número, mandou que os mesmos
vestissem capuzes azuis e vermelhos, nas cores da cidade[576]. Ele escreveu às boas cidades para rogar-lhes usarem esses
capuzes. Amiens e Laon não faltaram. Poucas das outras cidades consentiram a fazer o mesmo.

No entanto, a desolação dos campos trazia e amontoava em Paris todo um povo de camponeses. Os víveres se
tornavam raros e caros. Os burgueses que tinham muitas pequenas propriedades na Ilha-da-França, e que daí tiravam mil
coisas que suavizavam suas vidas, ovos, manteiga, queijos, aves, não recebiam mais nada. Eles acharam isto uma coisa dura
demais[577]. Aos 22 de fevereiro, o delfim baixou uma nova Ordenação para, ainda uma vez, alterar as moedas.

No dia seguinte, o preboste dos mercadores reuniu em armas, em Saint-Éloi, todos os corpos de artífices e
ofícios[578]. Às nove horas, esta multidão armada reconheceu, na rua, um dos conselheiros do delfim, advogado no
Parlamento, mestre Regnault Dacy, que retornava do Palácio para sua casa, perto de Saint-Landry[579]. Eles começaram a
correr contra ele, que se lançou para dentro da casa de um confeiteiro e aí foi espancado até à morte, sem ter tido tempo de
soltar sequer um grito. Neste ínterim, o preboste, seguido de uma turba de capuzes vermelhos e azuis, entrou no palácio do
delfim, subiu até seu quarto e disse-lhe azedamente que ele deveria pôr ordem nos negócios do reino; que esse reino, devendo
um dia vir-lhe, cabia ao delfim protegê-lo das companhias de malfeitores que arruinavam o país. O delfim, que estava com
seus conselheiros ordinários, os marechais da Champagne e da Normandia, respondeu com ousadia maior do que a de
costume: “Eu o faria de boa-vontade, se tivesse como fazê-lo, mas cabe àquele que tem os direitos e os benefícios ter também
a guarda do reino” (Froiss. III, p. 288). Houve ainda algumas palavras amargas e o preboste explodiu: “Monsenhor”, disse ele
ao delfim, “não vos espanteis com nada que ireis ver; é preciso que assim seja”. Então, virando-se na direção dos homens de
capuzes vermelhos e azuis, disse-lhes: “Fazei rápido aquilo porque viestes”[580]. No mesmo instante, eles se lançaram sobre
o marechal da Champagne e o mataram perto do leito do delfim. O marechal da Normandia se refugiara num gabinete, mas eles
o perseguiram e também o mataram. O delfim se acreditava perdido; o sangue respingara sobre sua túnica (Froiss., Ibidem).
Todos os seus oficiais tinham fugido. “Salvai-me a vida”, ele pediu ao preboste. Marcel disse-lhe para nada temer. Ele trocou
de capuz com o príncipe, assim cobrindo-o com as cores da capital[581]. Durante todo o dia, Marcel vestiu ousadamente o
capuz do delfim. O povo o aguardava na praça da Grève[582]. Marcel discursou de uma janela; disse que aqueles que haviam
sido mortos eram traidores e perguntou ao povo se este o apoiaria. Vários bradaram que apoiavam tudo o que ele fizera e a ele
se votavam para a vida e para a morte.

Marcel retornou ao palácio com uma multidão de cidadãos armados, a qual deixou no pátio. Ele reencontrou o delfim
totalmente abalado e aflito. “Não vos afligis, Monsenhor”, disse-lhe o preboste. “O que se fez, foi para evitar o perigo maior e
de acordo com a vontade do povo” (Chronique de Saint-Denis, II, fº 244). Ele rogou-lhe tudo aprovar.

Fazia-se necessário que o delfim aprovasse, não podendo fazer melhor. Era-lhe também necessário fazer bom
semblante ao rei de Navarra, que entrou em Paris quatro dias depois. De bom ou mau grado, Marcel e Le Coq os haviam
reconciliado e os obrigavam a jantar juntos todos os dias.

Este retorno do rei de Navarra, quatro dias após o assassinato dos conselheiros do delfim, não dava senão mui
claramente o senso desta tragédia: ele podia entrar em Paris, pois Marcel fizera-lhe praça livre pela morte de seus inimigos.
Marcel penhorava-se desta forma terrível, unindo-se para sempre ao rei de Navarra. Era evidente que tudo acabara entre
Marcel e o delfim. Provavelmente, este crime fora imposto ao preboste por Carlos o Mau, que não era propriamente um
neófito dos assassinatos. Marcel, tendo desta forma se entregue ao rei de Navarra, este, doravante, podia ver o que dele faria e
se havia mais vantagem em ajudá-lo ou vendê-lo[583].

Marcel acreditava ter ganho o rei de Navarra, mas perdeu os Estados. Quer dizer: que a legalidade, violada por um
crime, o abandonava para sempre. O que restava dos deputados da nobreza deixou Paris, sem aguardar o término da sessão.
Mesmo vários dos comissários dos Estados, encarregados da representação do governo, não quiseram mais, no intervalo das
sessões, governar e abandonaram Marcel. Este, sem se desencorajar, os substituiu por burgueses de Paris[584]. Paris se
encarregava de governar a França, mas a França não quis.

A Picardia, que tão vivamente tomara partido libertando o rei da Navarra, foi a primeira a recusar o envio de
dinheiro a Paris (Secousse, ‘Hist. de Char. le Mauv., I, 140-1) . Os Estados da Champagne se reuniram e Marcel não foi forte
o suficiente para impedir o delfim de ir. Desde então, ele devia, cedo ou tarde, perecer. O poder real não precisava senão de
uma presa para recolher tudo. O delfim foi a esses Estados acompanhado de soldados de Marcel e, de início, ele não ousou
dizer qualquer coisa contra o que se passara em Paris. Mas os nobres da Champagne falaram. O conde de Braîne perguntou-
lhe se os marechais da Champagne e da Normandia tinham merecido a morte. O delfim respondeu que sempre tinham bem e
lealmente servido. Mesma cena em Compiègne, nos Estados do Vermandois [585]. O delfim, repentinamente seguro, tomou
para si a decisão de transferir para Compiègne os Estados da língua d’Oil, que estavam convocados para o primeiro de maio
em Paris (Secousse, Préf. Ord. III, p. 79). Pouca gente foi. Era, todavia, uma representação tal e qual do reino contra Paris.

Os Estados prestaram homenagem às reformas da grande Ordenação, adotando-as em sua maioria. A contribuição que
votaram devia ser percebida pelos deputados dos Estados. Esta afetação de popularidade assustou Marcel. Ele instou a
Universidade a implorar a clemência do delfim pela capital. Mas não havia mais paz possível. O príncipe insistia para que lhe
entregassem dez ou doze dos mais culpados. Ele se contentaria mesmo com cinco ou seis, assegurando que não os
mataria[586].

Marcel não confiou. Ele finalizou prontamente as muralhas de Paris, sem poupar as casas dos monges que tocavam o
perímetro[587]. Ele se apoderou da torre do Louvre. Ele mandou gente à Avignon para contratar malfeitores[588].

A nobreza e a comuna iam combater e se mediam quando um terceiro, a respeito de quem ninguém pensara, se ergueu.
Os sofrimentos do camponês tinham passado da medida; todos tinham batido em cima, como sobre uma besta arriada sob o
peso da carga. A besta reergueu-se enraivecida e mordeu.

Nós já o dissemos: nesta guerra cavaleiresca que os nobres da França e da Inglaterra se faziam com armas
corteses[589], não havia, no fundo, senão um inimigo, uma vítima dos males da guerra: era o camponês. Antes da guerra, este
se esgotara para fornecer às magnificências dos senhores, para pagar essas belas armas, esses escudetes esmaltados, esses
ricos estandartes que se tornaram prisioneiros em Crécy e em Poitiers. Depois, quem ainda pagou o resgate? Foi, de novo, o
camponês.

Os prisioneiros libertados sob palavra retornaram às suas terras para rapidamente juntar as somas monstruosas que,
no campo de batalha, haviam prometido sem regatear. Não se demorou muito para inventariar os bens do camponês. Magro
gado, miseráveis atrelagens, arados, charretes, charruas e algumas ferragens de agricultura. De mobília, não havia nenhuma.
Nula reserva, salvo um pouco de grão para semear. Isto apresado e vendido, sobre o que o senhor poderia socorrer-se? o
corpo, o couro do pobre diabo. Dele tratava-se ainda de tirar alguma coisa. Aparentemente, o rústico tinha algum esconderijo
onde ele a enfurnava. Para fazê-lo dizer, o mesmo era violentamente trabalhado. Esquentavam-se-lhe os pés. Não se poupava
nem o ferro e nem o fogo.

Quase não há mais castelos; os éditos de Richelieu, os demolidores revolucionários, trabalharam bem. Todavia,
ainda agora, quando caminhamos sob as muralhas de Taillebourg (NT: departamento Charente-Maritime) ou de Tancarville,
quando, do fundo das Ardenas, na garganta de Montcornet, miramos sobre nossas cabeças a oblíqua e opaca janela que nos
observa passar, o coração se aperta, nós sentimos alguma coisa dos sofrimentos daqueles que, durante tantos séculos, se
esgotaram ao pé dessas torres. Para isto, não há sequer necessidade de que tenhamos lido as antigas histórias. As almas de
nossos pais ainda vibram em nós pelas dores esquecidas, mais ou menos como o ferido sofre pela mão que não mais possui.

Arruinado pelo seu senhor, o paisano não estava quite. Este foi o caráter atroz dessas guerras dos Ingleses; enquanto,
para o resgate, extorquiam o reino no atacado, eles o pilhavam no varejo. Formou-se, por todo o reino, Companhias
(quadrilhas) atribuídas aos Ingleses ou aos Navarrenses. O galês Griffith desolava toda a região entre o Sena e o Loire, o
inglês Knolles a Normandia. O primeiro saqueou para si só Montargis, Étampes, Arpajon, Monthléry, mais de quinze cidades
ou grandes burgos (Froiss. III, ch. 384, p. 285-6). Alhures, era o inglês Audley, os alemães Albrecht e Frank Hennekin. Um
desses chefes, Arnaud de Cervoles, a quem se chamava Arcipestre porque, de fato, apesar de secular, ele possuía um
arciprestado, abandonou as províncias já pilhadas, cruzou toda a França até à Provença e saqueou Salon e Saint-Maximin para
assustar Avignon. O Papa, trêmulo, convidou o bandido, recebeu-o como um filho da França (Froissart, III, c. 380, p. 284),
fê-lo jantar consigo e deu-lhe quarenta mil escudos, além da absolvição. Nem por isso, ao sair de Avignon, Cervole deixou de
pilhar a cidade de Aix, donde se foi para a Borgonha a fim de fazer o mesmo[590].

Esses chefes de bandos não eram, como se poderia acreditar, gente de nada, pequenos salteadores, mas nobres,
frequentemente senhores. O irmão do rei de Navarra pilhava como os outros. Nos salvo-condutos que vendiam aos
mercadores que abasteciam as cidades, eles isentavam nominalmente as mercadorias destinadas apropriadamente aos nobres e
os paramentos militares: “Chapéus de castor, penas de avestruz e lâminas de espada” (Froissart, III, c. 396, 334).

Os cavaleiros do século XIV tinham uma outra missão além daquela dos romances: era esmagar os fracos. O senhor
de Auberchicourt roubava e matava ao acaso para se fazer bem merecer por sua dama, Isabelle de Juliers, sobrinha da rainha
da Inglaterra: “Pois ele era jovem e perdidamente apaixonado”. Ele muito fazia para se tornar, no mínimo, conde da
Champagne (Froissart, III, c. 411, p. 387) . A dissolução da monarquia dava a esses pilhadores esperanças loucas. A coisa
seria para quem entrasse, por ardil ou por força, em algum castelo mal guardado. Os capitães das praças-fortes julgavam-se
livres de seus juramentos. Plus de roi, plus de foi (NT: Sem rei, sem fé. Sem rei, sem lei). Eles vendiam, trocavam suas
praças, suas guarnições (Froissart, III, c. 418, 399).

Esta vida de confusões e de aventuras, após tantos anos de obediência sob os reis, fazia a alegria dos nobres. Era
como uma escapada de colegais que não se preocupam com nada em suas brincadeiras. Froissart, seu historiador, não se cansa
de contar essas belas histórias. Ele se interessa por esses pilhadores, toma parte em suas boas fortunas: “E sempre ganhavam,
esses pobres malfeitores, etc”[591]. Nunca chega a duvidar da lealdade dos mesmos. À pena preocupa-se com a saúde
deles[592].

O pavor era tal em Paris, que os burgueses ofereceram à Notre-Dame uma vela que, segundo se dizia, tinha o
comprimento da torre da cidade (Crônicas de Saint-Denis, 237, vº, coluna 2). Não mais se ousava soar os sinos nas igrejas,
senão para o toque de recolher, de medo que os habitantes de sentinela sobre as muralhas não ouvissem chegar o inimigo.
Quão maior não era o terror nos campos! Os camponeses não dormiam mais. Aqueles das margens do Loire passavam as
noites nas ilhas ou nos barcos ancorados no meio do rio. Na Picardia, as populações escavavam a terra e aí se refugiavam. Ao
longo do rio Somme, do Péronne ao seu delta, contava-se, ainda no último século (XVIII), trinta desses subterrâneos[593]. É
neles que se pode ter alguma impressão do horror dessa época. Eram longas alamedas abobadadas de sete ou oito pés de
largura, margeadas por vinte ou trinta câmaras com um poço ao centro para se ter, ao mesmo tempo, ar e água. Em volta do
poço, grandes câmaras para os animais. O cuidado e a solidez que se observa nessas construções indica o suficiente que era
uma das moradas ordinárias da triste população desses tempos. As famílias nelas se enfurnavam ante a aproximação do
inimigo. As mulheres e as crianças aí mofavam por semanas, meses, enquanto os homens iam timidamente subir ao campanário
para ver se os soldados se distanciavam do campo.

Mas nem sempre se distanciavam rápido o bastante para que a pobre gente pudesse semear ou colher. E era em vão
que se refugiavam sob a terra: a fome aí os aguardava. Em Brie e no Beauvaisis sobretudo, não havia mais nenhum
recurso[594]. Tudo estava arruinado, destruído. Nada havia senão dentro dos castelos. O camponês enraivecido de fome e de
miséria forçou os castelos e trucidou os nobres.

Estes últimos jamais teriam acreditado numa tal audácia! Eles tantas vezes riram quando se tentava armar essas
populações simples e dóceis para serem arrastadas à guerra! Por escárnio, chamava-se o paisano de Jacques Bonhome, assim
como chamamos Jeanjean aos nossos conscritos[595]. Quem teria temido maltratar essa gentalha que portava armas de forma
tã o gauche? Era um ditado entre os nobres: “Oignez vilain, il vous poindra; poignez vilain, il vous oindra” {Ungi
(homenageai) o aldeão, ele vos apunhalá; apunhalai o aldeão, ele vos ungirá (homenageará)}[596].

Os Jacques pagaram a seus senhores com um atraso de vários séculos. Foi uma vingança de desesperados, de
condenados. Deus parecia ter tão completamente abandonado esse mundo... Eles não trucidavam apenas seus senhores, mas
também tratavam de exterminar as famílias, degolando os jovens herdeiros e matando a honra pelo estupro das damas[597].
Depois, esses selvagens se trajavam com belas roupas, eles e suas mulheres se enfeitavam com os despojos ensanguentados.
Mas não eram de tal forma selvagens que não fossem com alguma espécie de ordem, sob pendões e seguindo um
capitão que era um dos seus, um ardiloso paisano que se chamava Guilhaume Callet[598]: “E nessas assembléias, havia mais
gente do campo, mas também havia ricos homens burgueses e outros” (Crônicas de Saint-Denis, II, folio 249). – Froissart diz:
“Quando se lhes perguntava porque assim agiam, respondiam que não sabiam, mas que assim faziam por verem os outros
fazerem; e pensavam, desta forma, que devessem destruir todos os nobres e cavaleiros do mundo” (Froissart, III, 297).

Assim, os grandes e os nobres, todos se declararam contra eles sem distinção de partido. Carlos o Mau os lisonjeou,
convidou seus principais chefes[599] e, durante as negociações preliminares, deitou a mão sobre os mesmos. Ele coroou o rei
dos Jacques com um tripé de ferro em brasa[600] (‘Vita prima Inn. VI’, apud Baluze. ‘Pap. Aven.’, I, 334) . Em seguida, os
surpreendeu perto de Montdidier e aí produziu uma carnificina. Os nobres se sentiram seguros, tomaram as armas e se puseram
a queimar e a matar tudo, a torto e à direita, nos campos[601].

A guerra dos Jacques findara por ser um fato diversionário para aquela que ocorria em Paris. Marcel tinha interesse
em apoiar os Jacques. Era, entretanto, uma pavorosa aliança, esta com essas bestas ferozes. As comunas hesitavam. Senlis e
Meaux os receberam. Amiens enviou-lhes alguns homens, mas logo os mandou retornar (Crônica publicada por Sauvage, p.
196-7). Marcel, que aproveitara a sublevação para destruir várias fortalezas em volta de Paris, arriscou-se a enviar-lhes gente
para ajudá-los a tomar o Mercado de Meaux (NT: a fortaleza do Mercado de Meaux) . De início, o preboste das moedas
conduziu-lhes quinhentos homens aos quais se juntaram trezentos outros sob o comando de um vendedor parisiense de
condimentos.

A duquesa d’Orléans, a duquesa da Normandia, uma multidão de nobres damas, de senhoritas e de crianças haviam se
lançado para dentro do Mercado de Meaux, cercado pelo rio Marne. Daí elas viam e ouviam os Jacques que enchiam a
cidade. Elas morriam de medo. De um momento a outro, elas podiam ser forçadas, massacradas. Felizmente, veio-lhes um
socorro inesperado. O conde de Foix e o captal de Buch (este último a serviço dos Ingleses)[602] retornavam da cruzada da
Prússia com alguns cavaleiros. Em Châlons, tomaram conhecimento do perigo dessas damas e cavalgaram rapidamente na
direção de Meaux. Chegando no Mercado, “mandaram abrir o portão-levadiço e então se puseram à frente desses bandidos
enegrecidos e pequenos e mal-armados, e se lançaram contra estes com suas lanças e suas espadas. Aqueles que estavam na
frente, e que sentiam as pancadas, recuaram de terror e tombavam uns sobre os outros. Então, os cavaleiros correram para
fora das barreiras, os reuniram em grandes rebanhos e os mataram como bestas e os enxotaram para fora da cidade. Eles
puseram fim a mais de sete mil e tocaram fogo na desordenada cidade de Meaux” (09 de junho de 1358 – Froissart, III, 299-
302).

Em todos os cantos, os nobres deitaram a mão sobre os camponeses, sem procurar saber que parte tomaram na
Jaqueria. Disse um contemporâneo: “E fizeram tanto mal ao país, que não era necessário que os Ingleses viessem para a
destruição do reino. Eles jamais fariam o que fizeram os nobres da França (Cont. de G. de Nangis, 119).

Os nobres desejavam tratar Senlis como Meaux. Eles se fizeram abrir os portões da cidade, dizendo vir da parte do
regente; depois, puseram-se a bradar: “Cidade tomada! Cidade ganha!”. Mas encontraram todos os burgueses em armas e
mesmo outros nobres que defendiam Senlis. Lançou-se sobre eles, pela ladeira rápida da grande rua, charretes e carroças que
os derrubaram. Água fervente chovia das janelas. “Uns fugiram para Meaux para contar seu fracasso e se fazerem zombar; os
outros, que restaram mortos no local, não mais farão mal às pessoas de Senlis”[603].

É um prodígio que, no meio de toda esta devastação dos campos, Paris não tenha morrido de fome. Isto faz grande
honra à habilidade do preboste dos mercadores. Ele não podia alimentar por muito tempo esta grande e devoradora cidade
sem ter o campo a seu favor. Daí, portanto, a aparente inconstância de sua conduta. Ele se aliou aos Jacques, depois ao rei de
Navarra, destruidor dos Jacques. A cavalaria deste príncipe era-lhe indispensável para manter algumas estradas livres
enquanto o delfim possuísse o rio. Ele fez que fosse outorgado a Carlos o Mau o título de capitão de Paris (15 de junho). Mas
o próprio príncipe não era livre. Ele foi abandonado por muitos de seus cavaleiros que não desejavam servir a canalha contra
as pessoas honestas. Durante este tempo, os próprios burgueses também se viraram contra ele, odiando-o por ter destruído os
Jacques, além de muito desconfiarem que seu capitão não fizesse grande caso deles próprios.

Todavia, os víveres encareciam. O delfim, com três mil lanças, estava em Charenton e os interceptava no Sena e no
Marne. Os burgueses instaram o rei de Navarra a defendê-los, a sair, a enfim fazer alguma coisa. Ele saiu, mas para negociar.
Os dois príncipes tiveram uma longa e secreta entrevista e se separaram como bons amigos. O rei de Navarra, tendo ainda
ousado retornar a Paris, seus mais determinados partidários e o próprio Marcel tiraram-lhe o título de capitão da cidade. Ele
foi embora reclamando muito. Navarrenses e burgueses se enfrentaram e houve alguns homens mortos.
A posição de Marcel se tornara perigosa. O delfim mantinha o alto Sena, Charenton, Saint-Maur; o rei de Navarra
tinha o baixo Sena e Saint-Denis. Ele batia todo o campo. Os suprimentos não chegavam, era impossível. Paris ia ser
asfixiada. O rei de Navarra, que bem via isto, se fazia regatear pelos dois partidos. A delfina e muitas boas pessoas, quer
dizer, os senhores, os bispos, se encontravam, iam e vinham. Oferecia-se ao rei de Navarra quatrocentos mil florins, desde
que entregasse Paris e Marcel (Froissart, III, 306). O trato já estava assinado e uma missa dita, onde os dois príncipes
deviam comungar da mesma hóstia. O rei de Navarra declarou que não poderia, não estando em jejum (Secousse, I, 276).

O delfim prometia-lhe dinheiro. Marcel o deu. Todas as semanas ele remetia a Carlos o Mau duas cargas de dinheiro
para pagar suas tropas. Ele não tinha esperança senão neste; Marcel ia vê-lo em Saint-Denis; ele o conjurava a sempre se
lembrar que foram as pessoas de Paris que o tinham tirado da prisão e também matado seus inimigos. O rei de Navarra
devolvia-lhe boas palavras e o encorajava “a bem se prover de ouro e prata e enviá-los ousadamente a Saint-Denis; e que a
respeito destes, ele prestaria boa conta” (Froissart, III, 309).

Este rei dos bandidos certamente não podia e não queria impedi-los de pilhar. Os burgueses viam seu dinheiro ir para
os pilhadores e os víveres não chegarem. O preboste estava sempre na estrada para Saint-Denis, sempre em negociações. Isto
deu o que pensar aos burgueses. Desse tanto dinheiro que Marcel levava, não guardaria ele uma boa parte? Já se havia
confabulado sobre os salários que os comissários dos Estados se haviam liberalmente atribuído[604].

Os Navarrenses, Ingleses e outros mercenários tinham, em sua maioria, seguido o rei de Navarra em Saint-Denis.
Outros permaneceram em Paris para devorar seu dinheiro. Os burgueses os viam com péssimos olhos. Houve confrontos e
matou-se mais de sessenta deles. Marcel, que não temia nada além de se chocar contra o rei de Navarra, salvou os outros
aprisionando-os e, naquela mesma tarde, os despachou para Saint-Denis (‘Chronique de France’, cap. 88). Os burgueses não
o perdoaram.

Mas os Navarrenses esticavam suas corridas até às portas de Paris; desta não se ousava mais sair. Os Parisienses se
irritaram; eles declararam ao preboste que desejavam castigar esses malfeitores. Era necessário agradá-los, deixá-los sair
para procurar os Navarrenses. Tendo corrido durante todo o dia na direção de Saint-Cloud, os burgueses retornavam muito
cansados (era o dia 22 de julho – NT: verão), arrastando suas espadas, tendo se livrado de seus bacinetes[605], muito
lamentando nada terem encontrado quando, do fundo do caminho, encontram quatrocentos homens que se erguem e tombam
sobre eles. Eles fugiram a plenas pernas mas, antes de alcançarem as portas de Paris, setecentos morreram; outros foram ainda
mortos no dia seguinte, quando foram resgatar os corpos dos mortos na véspera. Este fracasso findou por exasperá-los contra
Marcel, a quem atribuíam a culpa. Diziam eles que Marcel retornara antes e não os apoiara; provavelmente ele alertara os
inimigos.

O preboste estava perdido. Seu único recurso era se entregar ao rei de Navarra, ele e Paris, e também o reino, se
pudesse. Carlos o Mau tocava o píncaro de sua ambição[606]. O mais sério historiador dessa época, testemunha ocular de
toda esta revolução, e de resto favorável a Marcel, confessa que ele prometera ao rei de Navarra entregar-lhe as chaves de
Paris para que se tornasse o senhor da cidade e matasse aqueles que se lhe opunham. As portas destes estavam previamente
marcadas[607].

Na noite de 31 de julho para 1º de agosto de 1358, Étienne Marcel tentou entregar a cidade que ele mesmo pusera em
defesa, as muralhas que construira. Até este momento, parece que ele sempre consultara os escabinos, mesmo a respeito da
morte dos dois marechais. Mas, desta vez, ele via que os outros não consideravam outra coisa senão salvar-se destruindo-o.
Aquele dentre os escabinos com quem mais contava, que mais se comprometera, que era seu compadre, Jean Maillart,
procurara confrontá-lo naquele mesmo dia. Maillart se entendeu com os chefes do partido do delfim, Pépin des Essarts e Jean
de Charny, e todos os três, com seus homens, se encontraram na bastilha Saint-Denis que Marcel devia render. “E vieram um
pouco antes da meia-noite... e encontraram o preboste dos mercadores, as chaves da porta em suas mãos. O primeiro a falar
foi Jean Maillart que lhe disse: ‘Étienne, Étienne, o que fazes aqui a esta hora?’. O preboste respondeu: ‘Jean, por que
perguntais? Estou aqui para tomar conta da cidade da qual tenho o governo’. – ‘Por Deus’, respondeu Jean Maillart, ‘as coisas
não são assim; mas não estais aqui a esta hora para nada de bom’ e, virando-se para aqueles que o acompanhavam, ‘eu
mostrarei a vós como ele está com as chaves das portas em suas mãos para trair a cidade’. O preboste dos mercadores
avançou e disse: ‘Vós mentis!’. – ‘Por Deus’, respondeu Jean Maillart, ‘traidor, vós é que mentis!’, e logo o feriu e disse à sua
gente: ‘Morte, morte a todo homem de seu lado, pois são todos traidores’. Houve, então, um grande e violento tumulto, e teria
o preboste dos mercadores fugido se pudesse; mas ele foi tão rápido quando podia. Pois Jean Maillart o ferira com um
machado-de-guerra na cabeça e o estirou à terra, ainda que fosse seu compadre, não tendo dali partido até que ele estivesse
morto e até que seis daqueles que lá estavam tivessem sido presos e mandados para a prisão” (Froissart, III, 318-321).
Segundo uma versão mais verossímil, não foi Maillart, mas Jean de Charny que desferiu o primeiro golpe (Ibidem).

Não obstante, os assassinos se foram, gritando pela cidade e acordando o povo. De manhã, todos estavam reunidos no
mercado, onde Maillart discursou. Ele narrou-lhes como, nesta mesma noite, a cidade deveria ter sido corrida e destruída, se
Deus não houvesse despertado a si e a seus amigos e não lhes tivesse revelado a traição. A turba soube com comoção o perigo
no qual se encontrava sem sabê-lo; todos juntavam as mãos e agradeciam a Deus.

Tal foi a primeira impressão. Que não se acredite, todavia, que o povo tenha sido ingrato para aquele que tanto fizera
por si. O partido de Marcel, que contava com muitos homens instruídos e eloquentes[608], sobreviveu a seu líder. Alguns
meses depois, houve uma conspiração para vingar Marcel (Trésor des Chartes, reg. 90, p. 382. Secousse, I, 403) . O delfim
mandou entregar à sua viúva todos os móveis do preboste que não tinham sido dados ou perdidos no momento que se seguiu ao
de sua morte (Secousse, I, 314).

A carreira desse homem foi curta e terrível, cruelmente misturada do bem e do mal. Em 1356, ele salva Paris e a põe
em defesa. De concerto com Roberto Le Coq, ele dita ao delfim a famosa Ordenação de 1357. Esta reforma do reino, pela
influência de uma comuna, não se pôde fazer senão por meios violentos. Marcel foi levado, de tanto em tanto, a uma pletora de
atos irregulares e funestos. Ele tira Carlos o Mau da prisão para opô-lo ao delfim, mas acaba por dar um chefe aos bandidos.
Ele põe a mão no delfim, mata-lhe seus conselheiros, os inimigos do rei de Navarra.

Abandonado pelos Estados, ele mata os Estados fazendo como bem deseja, criando deputados, substituindo os
deputados dos nobres por burgueses de Paris. Esta capital não podia ainda conduzir a França, Marcel não possuía os recursos
do Terror (de 1793); ele não podia sitiar Lyon[609], nem guilhotinar a Gironda. A necessidade dos aprovisionamentos o
punha na dependência do campo. Ele se aliou aos Jacques e, tendo estes fracassado, ao rei de Navarra. Para aquele a quem se
entregara por um crime, ele tentou dar-lhe o reino: Marcel morreu como bem merecia.

A doutrina clássica do Salus Populi, do direito de matar os tiranos, fora atestada no começo do século pelo rei contra
o Papa (vide mais acima). Mal decorrido meio-século, Marcel a virou contra a própria realeza, contra os servidores da
monarquia. Vão e brutal empirismo que não conhece senão os remédios heróicos, que crê tudo curar através do sangue
derramado... É este meio eficaz, não importando quem o empregue? O bem da maioria, a salvação do povo, não é uma
desculpa. O povo, se puderdes consultá-lo, dirá com o instinto divino que está na multidão: pereça antes o povo que a
humanidade e a justiça!... – Eu não sei se o sangue é uma roseira fecunda. Mas, ainda quando a árvore afogada de sangue se
tornasse mais forte e mais bela, quando lançasse ao longe seus galhos e ramos, quando com estes cobrisse o mundo, ela porém
não cobriria o assassínio...

Esta mancha sangrenta com a qual a memória de Étienne Marcel ficou marcada não pode nos fazer esquecer que nossa
velha carta é, em parte, sua obra. Ele devia perecer como amigo do Navarrense cujo sucesso teria desmembrado a França; ele
devia perecer como representante de Paris contra o reino e como última figura do estreito patriotismo comunal; ele pereceu
como tal mas, na Ordenação de 1357, ele vive e viverá.

Esta Ordenação é o primeiro ato político da França, assim como a Jacqueria é o primeiro ímpeto do povo dos
campos. As reformas indicadas na Ordenação foram quase todas executadas por nossos reis. A Jacqueria, iniciada contra os
nobres, continuou contra o Inglês. A nacionalidade, o espírito militar, nasceram pouco a pouco. O primeiro símbolo, talvez,
desse novo espírito se encontra, a partir do ano 1359, numa narrativa do Continuador de Guilherme de Nangis. Esta grave
testemunha que anota, dia a dia, tudo o que vê e ouve, sai de sua secura ordinária para contar, sempre em sua extensão, um
desses encontros onde o povo dos campos, abandonado a si mesmo, começou a se atrever contra o Inglês. Ele aí faz um alto
com complacência: “É”, ele diz ingenuamente, “que a coisa se passou perto da minha região e ela foi realizada bravamente
pelos paisanos, por Jacques Bonhomme”[610].

“Há uma razoável praça-forte na aldeiazinha perto de Compiègne, a qual depende do monastério de Saint-Corneille.
Os habitantes, vendo que haveria perigo para si, caso os Ingleses dela se apoderassem, a ocuparam com a permissão do
Regente e do abade e nela se estabeleceram com armas e víveres. Outros, dos vilarejos vizinhos, para lá foram para ficarem
em maior segurança. Eles juraram a seu capitão defender este posto até à morte. Este capitão que se deram com o
consentimento do Regente[611], era um dos seus, um grande e belo homem a quem chamavam Guilherme das Cotovias
(Guillaume-aux-Alouettes)[612]. Ele tinha consigo, para servi-lo, um outro camponês de uma força de braços incrível, de uma
corpulência e de um tamanho enormes, cheio de vigor e de audácia, mas, apesar desta grandeza de corpo, com uma humilde e
pequena opinião de si próprio. Ele era chamado de O Grande Ferrado ou Magno Ferrado (Le Grand Ferré, Magnus
Ferratus)[613]. O capitão o mantinha perto de si, como sob seu freio, para soltá-lo de propósito[614]. Eles então lá se
posicionaram, duzentas pessoas, todas lavradoras ou que ganhavam humildemente suas vidas pelo trabalho de suas mãos[615].
Os Ingleses, que acampavam em Creil, não deram muita atenção e logo disseram: ‘Expulsemos esses paisanos; a praça é forte
e boa de tomar’. Ninguém os percebeu se aproximarem e, encontrando os portões abertos, entraram audaciosamente. Aqueles
de dentro, que estavam às janelas, primeiro ficaram surpresos em ver esse pessoal armado. O capitão foi logo cercado e
mortalmente ferido. Então, o Grande Ferrado e os outros disseram: ‘Desçamos, vendamos caro nossas vidas; não há
misericórdia a esperar’. Eles de fato desceram, saíram por várias portas e se puseram a golpear os Ingleses como se batessem
seu trigo na eira[616]; os braços se erguiam e desciam e cada golpe era mortal. O Grande, vendo seu senhor e capitão
(Magistrum et Capitaneum) ferido de morte, soltou um profundo gemido, depois se colocou entre os Ingleses e os seus, os
quais igualmente ultrapassava a altura pelos ombros, manejando um pesado machado-de-guerra, golpeando e repetindo o
golpe tão bem, que ele fez terra arrasada; ele não golpeava um que não fendesse o capacete ou não decepasse o braço. Eis que
todos os Ingleses se puseram a fugir, vários saltando para dentro do fosso, onde se afogavam. O Grande matou o porta-
bandeira e disse a um de seus camaradas para levar o pendão inglês para o fosso. Outro, mostrando-lhe que ainda havia vários
inimigos entre eles e o fosso, o Grande disse: ‘Sigam-me’. E ele se pôs a caminhar à frente, movendo o machado à direita e à
esquerda, até que a bandeira tivesse sido jogada n’água... Ele matara, neste dia, mais de quarenta homens[617]... Quanto ao
capitão Guilherme das Cotovias, ele morreu de seus ferimentos e eles o enterraram com muitas lágrimas, pois era bom e
sábio[618].... Os Ingleses foram ainda uma outra vez batidos pelo Grande. Mas, desta vez, fora-muralhas[619]. Vários nobres
Ingleses foram presos, que dariam bons resgates, se tivessem sido postos a resgate, como fazem os nobres[620]; mas eles
foram mortos a fim de que não causassem mais mal. Desta vez, O Grande, fervendo após este trabalho, bebeu água fria em
quantidade e foi colhido pela febre. Ele se foi para sua aldeia, tornou a ganhar sua cabana e se pôs à cama, não, todavia, sem
guardar perto de si seu machado de ferro[621], que um homem comum à pena podia erguer. Os Ingleses, tendo tomado
conhecimento que ele estava doente, despacharam doze homens para matá-lo. Sua mulher os viu chegar e começou a
choramingar: ‘O mon pauvre Le Grand, voilà les Anglais, que faire?’ (Oh, meu pobre Grande, eis os Ingleses, que fazer?)...
Ele, esquecendo no mesmo instante sua doença, se ergueu, pegou seu machado e saiu para o patiozinho: ‘Ah, bandidos! Viestes
então para me pegar na cama; vós não me pegareis tampouco’[622]... Então, encostando-se na parede, ele matou cinco em um
instante; os outros fugiram. O Grande voltou para sua cama, mas ele estava muito quente e bebeu um pouco mais de água fria; a
febre voltou mais forte e, ao cabo de alguns dias, tendo recebido os sacramentos da igreja, saiu do século e foi enterrado no
cemitério de sua aldeia. Ele foi chorado por todos os seus companheiros, por toda a região; pois, ele vivente, jamais os
Ingleses viriam”[623].

É difícil não se emocionar com este ingênuo texto. Esses paisanos, que não se colocam em defesa senão após pedirem
permissão, este homem forte e humilde, este bom gigante que obedece com prazer, tal como o São Cristóvão da lenda, tudo
isto apresenta uma bela imagem do povo. Este povo é visivelmente simples e ainda bruto, impetuoso, cego, semi-homem e
semi-touro... Ele não sabe nem guardar suas portas, nem proteger a si mesmo de seus próprios apetites. Quando bateu o
inimigo como o trigo na fazenda, quando suficientemente carpinteirou com seu machado e que ficou febril com sua tarefa, o
bom trabalhador bebe a água fria e se deita para morrer. Paciência: sob a violenta educação das guerras, sob a verga dos
Ingleses, o bruto vai se fazer homem. Repentinamente cerrado de forma estreita e como atenazado, o bruto escapará, cessando
de ser ele próprio; e, transfigurando-se, Jacques se tornará Jeanne, Joana a virgem, a Pucelle (Donzela).

A expressão vulgar un bon Français (um bom Francês) data da época dos Jacques e de Marcel[624]. A Donzela não
tardará a dizer: “Le cœur me saigne quand je vois le sang d’un François” (“O coração me sangra quando vejo o sangue de
um Francês”).

Uma tal expressão bastaria para marcar, na história, o verdadeiro começo da França. Desde então, temos uma pátria.
São Franceses esses camponeses – não enrubescei – é já o povo Francês, sois vós ó França. Que a história os mostre a vós
belos ou feios, sob o capuz de Marcel, sob a jaqueta dos Jacques, vós não deveis deixar de reconhecê-los. Por nós, entre
todos os combates dos nobres, através dos lindos golpes de lança com os quais se diverte Froissart, nós procuraremos esse
povo pobre. Nós iremos recolhê-lo nesta grande confusão sob as esporas dos cavaleiros, sob o ventre dos cavalos. Imundo,
desfigurado, nós o conduziremos tal e qual ao dia da justiça e da história, a fim de que a ele possamos dizer, a este velho povo
do século XIV: “Sois meu pai e minha mãe. Vós me concebestes nas lágrimas. Suastes suor e sangue para me fazer uma
França. Abençoados sede vós em vossos túmulos. Que Deus me guarde de jamais vos renegar!”

Quando o delfim, apoiado pelo assassino, retornou a Paris, houve, como sempre em circunstâncias parelhas, brados e
aclamações. Aqueles que pela manhã tinham se armado por Marcel, escondiam seus capuzes vermelhos e bradavam mais alto
que os outros[625].
Apesar de todo esse barulho, não havia muita gente que tivesse confiança no delfim. Sua longa silhueta magra, sua
face pálida e seu semblante comprido[626] jamais haviam agradado ao povo. Dele não se esperava nem grande bem, nem
grande mal; houve, entretanto, algumas perseguições em seu nome contra o partido de Marcel. Por si, ele não amava e nem
odiava ninguém. Não era fácil emocioná-lo. No momento mesmo de seu retorno, um burguês avançou ousadamente e disse
alto: “Por Deus, Sire, se em mim acreditassem, vós não voltaríeis; mas pouco será feito por vós”. O conde de Tancarville quis
matar o citadino, mas o príncipe o segurou e respondeu: “Ninguém acreditará em vós, senhor”.

A situação de Paris não era melhor. O delfim nada podia. O rei de Navarra ocupava o Sena, abaixo e acima. Não
vinha mais lenha da Borgonha, nem nada de Rouen. Apenas se conseguia aquecimento cortando-se as árvores[627]. O sesteiro
de trigo, que se entregava ordinariamente por doze soldos, conta o cronista, agora se vende por trinta libras ou mais[628]. – A
primavera foi bela e suave: nova dor para tantas pobres pessoas dos campos que estavam trancadas em Paris e que não
podiam cultivar seus campos, nem talhar suas vinhas[629].

Não havia como sair. Os Ingleses e os Navarrenses corriam o país. Os primeiros tinham se estabelecido em Creil, o
que os tornava senhores do Oise. Eles tomavam os fortes em todos os lugares, sem se importar com as tréguas. Os Picardos
tentavam resistir-lhes. Mas aqueles da Turânia, do Anjou e do Poitou compravam dos Ingleses salvo-condutos, pagavam-lhes
tributos[630].

O rei de Navarra, vendo os Ingleses se fixarem assim, no coração do reino, findou por se sentir mais temeroso que o
próprio delfim. Ele fez a paz com este, sem estipular qualquer vantagem, e prometeu ser bon Français[631]. Os Navarrenses
nem por isso deixaram menos de extorquir os barcos no alto Sena. Todavia, esta reconciliação do delfim e do rei de Navarra
deu o que pensar aos Ingleses. Ao mesmo tempo, os Normandos, os Picardos e os Flamengos fizeram juntos uma expedição
para libertar, diziam eles, o rei João[632]. Eles se contentaram em queimar uma cidade inglesa. Ao menos os Ingleses também
souberam quais eram os males da guerra.

As condições que eles desejavam inicialmente impor à França eram monstruosas, inexequíveis. Eles exigiam não
somente tudo que está em face deles, Calais, Montreuil, Boulogne-sur-Mer, o Ponthieu, não somente a Aquitânia (Guiana,
Bigorre, Agenês, Quercy, Périgord, Limousin, Poitou, Saintonge, Aunis), mas também a Turânia, o Anjou e, a mais, a
Normandia; quer dizer, não lhes bastava ocupar o estreito, fechar o Garonne; eles também desejavam fechar o Loire e o Sena,
arrolhar a menor luz com a qual vemos o Oceano, vazar os olhos da França.

O rei João assinara tudo e prometera, além disso, quatro milhões de escudos por seu resgate. O delfim, que não podia
se despojar assim, mandou o tratado ser recusado por uma assembléia de deputados provinciais à qual chamou de Estados
Gerais. Eles responderam: “Que o rei João ainda permanecesse na Inglaterra e que, quando agradesse a Deus, Ele provesse o
remédio” (Froissart, cap. 419, p. 404).

O rei da Inglaterra se pôs em campanha, mas, desta vez, para conquistar a França. Ele inicialmente desejou partir
para Reims e aí se fazer sagrar[633]. Tudo o que havia de nobreza na Inglaterra o seguira nesta expedição. Um outro exército
o aguardava em Calais, com o qual ele não contava. Uma turba de cavaleiros e de senhores da Alemanha e dos Países-Baixos,
ouvindo dizer que se tratava de uma conquista e esperando uma partilha, como aquela da Inglaterra pelos companheiros de
Guilherme o Conquistador, quisera também participar da festa. Eles já acreditavam “tanto ganhar que jamais seriam pobres”
(Froiss. cap. 420, p. 406). Eles aguardaram Eduardo III até o dia 28 de outubro e este teve um grande trabalho para deles se
livrar. Foi necessário que ele os ajudasse a voltar para casa, que lhes emprestasse dinheiro a fundo perdido[634].

Eduardo trouxera consigo seis mil cavaleiros cobertos de aço, seu filho, seus três irmãos, seus príncipes, seus
grandes senhores. Era como uma emigração dos Ingleses para a França. Para fazer a guerra confortavelmente, eles arrastavam
seis mil carroças, fornos, moinhos, forjas, toda a sorte de oficinas ambulantes. Eles tinham levado a precaução ao ponto de se
munirem de matilhas para caçar e de botes de couro para pescar na Quaresma (Froiss., IV, c. 441, p. 39) . Em efeito, não havia
nada a esperar do país, que era um deserto; já há três anos não mais se semeava (Ibid, c. 431, p. 10). As cidades bem fechadas
protegiam a si mesmas; elas sabiam que não havia perdão a aguardar dos Ingleses.

Dos 28 aos 30 de novembro (1360), eles caminharam através da chuva e da lama, de Calais a Reims. Eles haviam
contado com os vinhos. Mas chovia demais e a vindima não valia nada (Ibid., p. 11). Eles permaneceram sete semanas a mofar
perante Reims, destruíram toda a região em volta, mas Reims não se mexeu. Daí passaram à frente de Châlons, Bar-le-Duc,
Troyes; depois entraram no ducado da Borgonha. O duque se compôs com eles por duzentos mil escudos de ouro[635]. Foi um
bom negócio para o Inglês que, de outra forma, nada teria tirado de toda esta grande expedição.
Ele veio acampar pertinho de Paris, celebrou a Páscoa em Chanteloup, e se aproximou até Bourg-la-Reine. Disse a
testemunha ocular: “Do Sena até Étampes, não há mais um só homem ou mulher[636]. Tudo se refugiou nos três subúrbios de
Saint-Germain, Saint-Marcel e Notre-Dame-des-Champs... Montlhéry e Longjumeau estão em fogo... Distingue-se, em todas as
redondezas, a fumaça dos vilarejos que sobe até o céu... No santo dia da Páscoa, vi, nos Carmelitas, os padres de dez comunas
oficiarem... No dia seguinte, foi dada a ordem de queimar os três subúrbios e permitido a qualquer homem aí pegar o que
pudesse, lenha, ferro, telhas e o resto. Não faltou gente para fazê-lo bem rápido. Uns choravam, outros riam... – Perto de
Chanteloup, mil e duzentas pessoas, homens, mulheres e crianças tinham se trancado numa igreja. O capitão, temendo que não
se rendessem, mandou tocar fogo... Toda a igreja ardeu. Não se salvaram senão trezentas pessoas. Aqueles que saltavam pelas
janelas, encontravam, em baixo, os Ingleses, que os matavam e deles escarneciam para irem se queimar por si sós. Soube
deste lamentável acontecimento por um homem que escapara pela vontade de Nosso Senhor e que agradecia a Deus” (Contin.
de G. de Nangis, p. 126-7).

O rei da Inglaterra não ousou atacar Paris[637]. Ele se foi na direção do Loire, sem ter podido combater ou
conquistar qualquer lugar. Ele consolava os seus prometendo reconduzi-los a Paris na época da colheita das vinhas. Mas eles
estavam exaustos desta longa campanha de inverno. Chegando perto de Chartres, eles aí saborearam uma terrível tempestade
que levou sua paciência ao limite[638]. Conta-se que Eduardo aí prometeu restaurar a paz entre os dois povos. O Papa
suplicava-o fazê-la. Os nobres da França, não recebendo mais nada de suas rendas, imploravam ao regente negociar a
qualquer preço. O rei João, sem dúvida, também pressionava seu filho. Nas conferências de Bretigny, abertas no 1º de maio,
os Ingleses primeiro exigiram todo o reino; depois, tudo o que os Plantagenetas possuíram (Aquitânia, Normandia, Maine,
Anjou, Turânia). Por fim, eles cederam quanto a estas últimas quatro províncias. Mas tiveram a Aquitânia como livre
soberania, e não mais como feudo. Sob o mesmo título, eles adquiriram os territórios que circundavam Calais, ou seja, os
condados de Ponthieu e de Guines e o viscondado de Montreuil. O rei pagava o enorme resgate de três milhões de escudos
d’ouro, adiantando seiscentos mil escudos para os quatro primeiros meses, antes de sair de Calais, e quatrocentos mil por ano,
nos seis anos seguintes. A Inglaterra, após ter matado e desmembrado a França, continuava a pesar nas costas, de sorte que, se
ainda restasse um pouco de vida e de tutano, ela ainda pudesse sugá-los.

Este deplorável tratado provocou uma louca alegria em Paris. Os Ingleses que o trouxeram para fazê-lo ser jurado
pelo delfim foram acolhidos como anjos de Deus. Foi-lhes dado de presente o que se tinha de mais precioso, os espinhos da
coroa do Salvador que se guardava na Santa Capela. O sábio cronista do tempo cede aqui ao arrebatamento geral: “Ao se
aproximar a Ascensão, no tempo onde o Salvador, tendo entregue a paz entre Seu Pai e o gênero humano, subiu ao céu no
jubileu, Ele não sofreu que o povo da França permanecesse aflito... As conferências começaram no domingo, quando se canta
na igreja Cantate. No domingo em que se canta Vocem jucunditatis (NT: Voz de júbilo), o Regente e os Ingleses foram jurar o
tratado em Notre-Dame. Foi uma alegria inefável para o povo. Nesta igreja, e em todas as aquelas de Paris, todos os sinos
postos para soar murmuraram em piedosa harmonia; o clero cantava, com todo o júbilo e devoção, Te Deum laudamus (NT:
Louvamos-te Deus)... Todos se regozijavam, exceto, talvez, aqueles que tinham feito grandes ganhos nas guerras, por exemplo,
os armeiros... Os falsos traidores, os malfeitores temiam o cadafalso. Mas destes, não falemos mais” (Contin. de Guil. de
Nangis, p. 127/128).

A alegria não durou muito. Esta paz, tão almejada, fez toda a França chorar. As províncias que eram cedidas não
desejavam se tornar inglesas. Que a administração dos Ingleses fosse pior ou melhor, sua insuportável arrogância os fazia
serem detestados em todos os lugares. Os condes de Périgord, de Comminges, de Armagnac, o senhor d’Albret e muitos outros
diziam, com razão, que o senhor não tinha o direito de dar seus vassalos. La Rochelle, tanto mais francesa quanto Bordeaux
era inglesa, suplicou ao rei, em nome de Deus, não abandoná-la. Os Rochelenses diziam que prefeririam ter cortados, todos os
anos, metade de seus haveres e, ainda, “nós nos submeteremos aos Ingleses de lábios, mas jamais de coração”[639].

Aqueles que permaneciam Franceses não eram senão miseráveis. A França se tornara uma fazenda da Inglaterra.
Trabalhava-se apenas para pagar as somas prodigiosas pelas quais o rei fora resgatado. Temos ainda, no Tesouro das Cartas,
os recibos de quitação desses pagamentos. Esses pergaminhos fazem mal à vista; aquilo que cada um desses papeizinhos
representa de suor, de gemidos e de lágrimas, ninguém jamais o saberá. O primeiro (24 de outubro de 1360) é a quitação das
despesas de guarda do rei João, no valor de dez mil reais por mês (Arquivos, Section Hist., J. 639-640); esta nobre
hospitalidade, tão vangloriada pelos historiadores, Eduardo se fazia pagar; o carcereiro, antes da extorsão pelo resgate, fazia-
se somar por pistolas. Depois vem uma detestável quitação de quatrocentos mil escudos d’ouro (mesma data). Depois,
quitação de duzentos mil escudos d’ouro (dezembro). Outra de 100.000 (1361, Todos os Santos); outra ainda de 200.000 e, de
quebra, mais 57.000 ovelhas d’ouro para completar os 200.000 prometidos pela Borgonha (21 de fevereiro). – Em 1362:
198.000, 30.000, 60.000 e 200.000 (Arquivos, Section. Hist., J. 641). – Os pagamentos continuam até 1368. – Mas estamos
bem longe de termos todos os recibos de quitação. Os resgates da nobreza montavam talvez a uma soma também considerável.
O primeiro pagamento não teria podido ser feito se o rei não tivesse encontrado um vergonhoso recurso. Ao mesmo
tempo em que entregava as províncias, ele deu uma de suas crianças. Os Visconti, os ricos tiranos de Milão, tinham a fantasia
de desposar uma filha da França. Eles imagivanam que isso os tornaria mais respeitáveis na Itália. Esse feroz Galeazzo
(Galeazzo II Visconti), que ia à caça dos homens nas ruas, que jogara padres vivos num forno, pediu para seu filho, de dez
anos de idade, uma filha de João, que tinha onze. Ao invés de receber um dote do pai da noiva, ele é quem dava um: trezentos
mil florins de dote livre e outro tanto por um condado na Champagne. O rei da França, disse Matteo Villani, vendeu sua carne
e seu sangue[640]. A pequena Isabelle foi trocada, na Savóia, contra os florins. A criança não se deixou entregar aos Italianos
de melhor graça que La Rochelle aos Ingleses.

Este desgraçado dinheiro da Itália serviu para fazer o rei sair de Calais. Ele saiu pobre e nu. Foi-lhe necessário, em
05 de dezembro (1360), impor uma contribuição nova a este povo arruinado. Os termos da Ordenação são impressionantes. O
rei pede, de alguma forma, perdão a seu povo por falar-lhe de dinheiro. Ele evoca, remontando até Filipe de Valois, todos os
males que ele sofreu, ele e seu povo; ele abandonou à aventura da batalha seu próprio corpo e seus filhos; ele negociou em
Bretigny, não somente para sua libertação, mas para evitar a perdição de seu reino e de seu bom povo . Ele assegura que
fará boa e leal justiça, que suprimirá todo novo pedágio, que cunhará boa e forte moeda de ouro e de prata e moeda negra com
a qual se poderá dar mais facilmente esmolas para os pobres[641]. “Temos ordenado e ordenamos que tomemos sobre o
mencionado povo da Langue d’Oil aquilo que nos for necessário, e que não gravará tanto nosso povo como o faria a
mutação de nossa moeda, a saber: 12 denários por libra sobre as mercadorias, que pagará o vendedor, uma contribuição do
quinto sobre o sal, do décimo-terceiro sobre o vinho e outras bebidas. Da qual contribuição, pela grande compaixão que
temos de nosso povo, nós nos contentaremos; e ela será cobrada até o aperfeiçoamento e na ratificação da paz” (Ord. III, p.
433).

Ainda que suave e paternal tenha sido o pedido, o povo não estava mais em estado de pagar: todo dinheiro
desaparecera. Era necessário se dirigir aos usurários, aos judeus e, desta vez, dar-lhes uma estadia fixa. Foi-lhes assegurada
uma permanência de vinte anos. Um príncipe de sangue fora nomeado guardião de seus privilégios e se encarregava
especialmente de fazê-los pagar suas dívidas. Esses privilégios eram excessivos. Deles falaremos alhures. Para adquiri-los,
eles deviam pagar vinte florins ao retornarem ao reino, além de sete por ano. Um Manassés que se encarregasse de toda a
judaria devia ter por sua conta um enorme direito de dois florins sobre os vinte anos e de um por ano em relação aos outros
sete (Ord. III, p. 467).

Os tristes e vazios anos que seguem, 1361, 1362 e 1363, não apresentam, em relação ao exterior, senão os recibos
dos Ingleses e, internamente, senão a carestia dos víveres, as devastações dos malfeitores, o terror de um cometa, uma grande
e tenebrosa mortalidade. Desta vez, o mal atingia os homens e as crianças mais que os anciãos e as mulheres. Ele golpeava de
preferência a força e a esperança das gerações. Não se via senão mães em lágrimas, senão viúvas e mulheres de preto
(Contin. de G. de Nangis, p. 129).

A péssima alimentação era o fator principal na epidemia. Não se levava quase nada para as cidades. Não se podia
mais ir de Paris a Orléans, nem a Chartres, a região estava infestada de Gascões e de Bretões[642].

Os nobres que retornavam da Inglaterra, e que se sentiam menosprezados, não eram menos cruéis que esses bandidos.
A cidade de Péronne, que bravamente protegera a si mesma, entrou em briga contra João do Artois (conde d’Eu de 1351 a
1387). Foi como uma cruzada dos nobres contra o povo: João do Artois, apoiado pelo irmão do rei e pela nobreza, tomou os
Ingleses a seu soldo; ele sitiou Péronne, a tomou e a queimou (Contin. G. de Nangis, p. 128). Eles trataram Chauny-sur-Oise e
outras cidades de forma semelhante. – Na Borgonha, os próprios nobres serviam de guia às quadrilhas que pilhavam o
país[643]. Os malfeitores de qualquer país, dizendo-se Ingleses, o rei proibia que fossem atacados. Ele rogou a Eduardo
escrever a seus lugares-tenentes[644].

Esses pilhadores chamavam a si mesmos de os Tard-Venus[645]; vindos depois da guerra, desejavam também sua
parte. A principal companhia começou na Champagne e na Lorena; depois, ela passou na Borgonha: o chefe era um Gascão
que desejava, como o Arcipestre, liderá-los para ver o Papa em Avignon, passando pelo Forez e o Lionês [646]. Jacques de
Bourbon, que então se encontrava no Midi, estava interessado em defender o Forez, terra de seus sobrinhos e de sua
irmã[647]. – Este príncipe, geralmente amado (Froiss. IV, cap. 463, p. 126) , logo reuniu muitos nobres. Ele tinha consigo o
famoso Arcipestre, o qual deixara o comando das companhias. Tivesse seguido os conselhos deste homem, ele as teria
destruído. Vindo à presença deles em Brignais, perto de Lyon, caiu numa armadilha grosseira, acreditou o inimigo menos forte
que verdadeiramente era, o atacou sobre uma colina e foi morto com seu filho, seu sobrinho e muitos dos seus (02 de abril de
1362)[648]. Todavia, esta morte foi gloriosa. O primeiro título dos Capetos é a morte de Roberto o Forte em Brisserte; aquele
dos Bourbons é a morte de Jacques em Brignais: ambos mortos na defesa do reino contra os malfeitores.

As Companhias não tinham nada a temer, elas corriam as duas margens do Ródano. Um de seus chefes se intitulava
“Amigo de Deus, inimigo de todo mundo” (ibidem, cap. 466, p. 139). O Papa, trêmulo em Avignon, pregava a cruzada contra
elas. Mas os cruzados preferiam antes se juntar às companhias[649]. Felizmente, para Avignon, o marquês de Montferrat,
membro da Liga Toscana contra os Visconti, tomou uma delas a seu soldo e a conduziu à Itália para onde levaram a peste. O
Papa, para decidi-la quanto à sua partida, deu 30.000 florins e a absolvição[650].

A mortalidade que despovoava o reino deu-lhe, ao menos, uma bela herança. O jovem duque da Borgonha morreu,
assim como sua irmã; a primeira Casa da Borgonha encontrou-se extinta: a sucessão compreendia as duas Borgonhas, o Artois,
os condados da Auvérnia e de Boulogne. O mais próximo herdeiro era o rei de Navarra. Ele pedia que lhe deixassem tomar
posse da Borgonha ou, ao menos, da Champagne, a qual reclamava já há algum tempo. Ele não teve nem uma e nem outra. Era
impossível entregar essas províncias a um rei estrangeiro, a um príncipe tão odioso. João as declarou reunidas a seu
domínio[651] e partiu para delas tomar posse, “caminhando em pequenas jornadas e com grandes despesas e pernoitando de
vilarejo em vilarejo, de cidade em cidade, no ducado da Borgonha” (Froiss., IV, cap. 471, p. 148).

Ele então soube, sem viajar mais rápido, da morte de Jacques de Bourbon. Por volta do fim do ano, ele desceu para
Avignon e passou seis meses em festas. Ele esperava realizar aí alguma conquista em plena paz. Joana de Nápoles, condessa
da Provença, aquela que mandara matar seu primeiro marido, já estava viúva do segundo. João pretendia ser o terceiro. Ele
mesmo estava viúvo e não possuía senão quarenta e três anos. Cativo, mas após uma linda resistência, este rei-soldado[652]
interessava a cristandade como Francisco I após Pádua. Ao Papa não interessava fazer um rei da França senhor de Nápoles e
da Provença. Ele deu a esta rainha de trinta e seis anos um jovem marido, não um filho da França, mas Jaime de Aragão, filho
do rei destronado de Maiorca.

(1364) Para consolar João, o Papa o encorajou num projeto que parecia insensato à primeira vista, mas que teria
efetivamente reerguido sua fortuna. O rei de Chipre viera a Avignon pedir socorro e propor uma cruzada. João tomou a cruz e
uma enorme quantidade de senhores consigo[653]. O rei de Chipre foi propor a cruzada na Alemanha e João na Inglaterra. Um
de seus filhos, dado como refém, tinha acabado de voltar para a França, em desprezo aos tratados. O retorno de João a
Londres tinha a aparência mais honorável. Ele parecia reparar o erro de seu filho. Alguns pretendiam que ele não tivesse ido a
Londres senão por desgosto com as misérias da França ou para rever alguma bela amante[654]. Neste ínterim, os reis da
Escócia e da Dinamarca deviam ir encontrá-lo. Como rei da França, ele presidia naturalmente qualquer assembléia de reis.
Humilhado pelo novo sistema de guerra que os Ingleses tinham posto em prática, o rei da França teria retomado, pela cruzada,
sob a vetusta bandeira da Idade Média, o primeiro ranque na Cristandade. Ele teria carregado as companhias consigo e
libertado a França[655]. Mesmo os Ingleses e os Gascões, malgrado a má-vontade do rei da Inglaterra que alegava sua idade
para não tomar a cruz[656], diziam publicamente para o rei de Chipre: “Que era realmente uma viagem da qual todos as
pessoas de bem e de honra deviam participar e que, se Deus quisesse que a passagem fosse aberta, Ele não o faria sozinho”
(Ibid., cap. 481, p. 177). A morte de João destruiu essas esperanças. Após um inverno passado em Londres, entre festas e
grandes repastos (Ibid., cap. 480, p. 175), ele caiu doente e morreu lamentado pelos Ingleses a quem muito amava e aos quais
se afeiçoara, simples e sem fel que era, durante seu longo cativeiro. Eduardo prestou-lhe suntuosos funerais na catedral de São
Paulo de Londres. Foram aí acesas, segundo testemunhas oculares, quatro mil archotes de doze pés de altura e quatro mil
círios pesando dez libras[657].

A França, toda mutilada e arruinada que estava, ainda se encontrava, com o assentimento de seus próprios inimigos, à
testa da cristandade. É a sorte desta pobre França ver, de tempos em tempos, a Europa invejosa se juntar contra ela e conjurar
sua ruína. A cada vez, eles acreditavam tê-la matado, imaginavam que não haveria mais França; eles tomariam seus despojos à
vontade e arrancariam com prazer seus membros ensanguentados. Ela teima em viver e torna a florescer. Ela sobreviveu em
1361, mal defendida, traída por sua nobreza; em 1709, envelhecida pela velhice de seu rei; também em 1815, quando o mundo
inteiro a atacava... Este acordo obstinado do mundo contra a França prova sua superioridade melhor que as vitórias. Aquele
contra o qual todos estão facilmente de acordo é aquele que, aparentemente, é o primeiro de todos.
Capítulo IV
Carlos V. 1364 a 1380.
Expulsão dos Ingleses

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O jovem rei nascera velho. Muito cedo, ele vira muito, sofrera demais. De sua pessoa, ele era fraco e doente. Tal
reino, tal rei. Dizia-se que Carlos o Mau o envenenara; ele ficou pálido e tinha uma mão inchada que o impedia de segurar a
lança. Ele não cavalgava mais, mantendo-se em Vincennes, em seu hôtel Saint-Pôl, em sua real biblioteca do Louvre. Ele lia,
ouvia os hábeis, aconselhava friamente. Era chamado o sábio, quer dizer, o letrado, o clérigo (culto - clerc) ou, ainda, o astuto
(avisé), o astucioso. Eis o primeiro rei moderno, um rei sentado, como a efígie real sobre os selos. Até aí, imaginava-se que
um rei devia montar a cavalo. O próprio Filipe o Belo, com seu chanceler Pierre Flotte, fora se bater em Courtrai. Carlos V
combateu melhor de seu trono. Conquistador em seu quarto, entre seus procuradores, seus judeus e seus astrólogos, ele
desafiou os famosos cavaleiros e as Companhias ainda mais temíveis. Com a mesma pena, ele assinou os tratados que
arruinavam os Ingleses e minutou os panfletos que deviam arruinar o Papa e entregar ao rei os bens da Igreja.

Este médico doente do reino tinha a curar-lhe três males, dos quais mesmo o menor parecia mortal: o Inglês, o
Navarrense e as Companhias. Ele se livrou do primeiro, como se viu, empanturrando-o de ouro, pacientando até que se visse
forte o suficiente. O Navarrense foi batido, depois pago e distanciado; fez-se com que tivesse esperanças com Montpellier. As
Companhias escoaram para a Espanha.

Carlos V inicialmente tomou seus irmãos para ajudá-lo, confiando-lhes as províncias mais excêntricas, o Languedoc
ao duque de Anjou, a Borgonha a Filipe o Ousado[658]. Ele se ocupou apenas do centro. Mas era-lhe necessário um braço
forte, uma espada. E, então, não havia mais espírito militar senão entre os Bretões e os Gascões. Celebrava-se o combate dos
Trinta, onde os Bretões tinham vencido os Ingleses[659]. O rei se uniu a um corajoso Bretão de Dinan, o sire Bertrand
Duguesclin[660], que ele próprio vira no cerco de Melun (Froiss., ibid. e ‘Vie de Duguesclin’, publicado por Mesnard, cap.
8, p. 67 e cap. 10, p. 83) e que combatia pela França desde 1357.

A vida deste famoso chefe de companhias, que libertou a França das companhias e dos Ingleses, foi cantada, quer
dizer, estragada e obscurecida, numa espécie de epopéia cavaleiresca que se compôs provavelmente para reanimar o espírito
militar da nobreza[661]. Nossas histórias de Duguesclin não são senão traduções em prosa desta epopéia. Não é fácil destacar
desta poesia o que ela apresenta de sério, de verdadeiramente histórico. De boa-vontade, acreditaremos no poema e nos
romances em tudo em que se aproximam do caráter bem conhecido dos Bretões. Neles também poderemos acreditar nas
confissões que fazem contra seu herói. Eles dizem, inicialmente, que ele era feio: “De média estatura, o semblante moreno, o
nariz chato, os olhos verdes, largo de ombros, braços longos e mãos pequenas”[662]. Dizem também que era, desde sua
infância, um menino malvado, “rude, malicioso e cheio de coragem”, que reunia as crianças, as dividia em tropas e que batia e
feria os outros. Ele foi, por algum tempo, mantido preso de castigo por seu pai. Entretanto, uma religiosa cedo predissera que
este menino seria um famoso cavaleiro. Ele também foi encorajado pelas predições de uma certa senhorita Tiphaine, que os
Bretões tinham por feiticeira, e que, mais tarde, foi por ele desposada. Todavia, este intratável batalhador era, como normal e
graciosamente são os Bretões, uma boa criança e pródiga, com frequência rica, com frequência arruinada, às vezes dando tudo
o que possuía para resgatar homens; mas, em revanche, ávido e pilhador, violento na guerra e sem quartel. Como os outros
capitães dessa época, ele preferia o ardil a qualquer outro meio de vencer, e ficava sempre livre de sua palavra e da fé dela
decorrente. Antes da batalha, Duguesclin era homem de tática, de recursos e de sutil engenho: ele sabia prever e prover. Mas,
uma vez que nela tivesse entrado, a dura cabeça bretã reaparecia e ele mergulhava na confusão; e, por vezes, ia tão longe, que
nem sempre podia dela se retirar: duas vezes ele foi preso e pagou resgate.

A primeira questão para o novo rei era a de voltar a ser o senhor do curso do Sena. Mantes (atualmente Mantes-la-
Jolie) e Meulan (Meulan-en-Yvelines, desde 2010) estavam na posse do rei de Navarra; Boucicaut e Duguesclin as tomaram
através de uma insigne perfídia[663]. As duas cidades pagaram todo o mal que o Navarrense causara aos Parisienses. Os
burgueses tiveram a satisfação de ver vinte e oito serem enforcados em Paris (Contin. de Guil. de N., p. 132, col. 2).

Os Navarrenses, fortificados por Ingleses e Gascões sob a liderança do Captal de Buch, quiseram se vingar e fazer
qualquer coisa para impedir o rei de ir a Reims. Duguesclin logo veio à frente com uma boa tropa de Franceses, de Bretões e
também de Gascões[664]. O Captal recuou para Évreux. Ele parou em Cocherel, sobre um montículo; mas Duguesclin teve o
expediente de negar-lhe a vantagem do terreno, soando a retirada e fingindo fugir. O Captal não pôde impedir seus Ingleses de
descerem; eles eram por demais orgulhosos para ouvir um general gascão, embora grande senhor e da Casa de Foix. Foi
necessário que ele obedecesse a seus soldados e os seguisse na planície. Então, Duguesclin fez meia-volta; trinta dos Gascões
que tinha de seu lado executaram a manobra de separar o Captal do meio de suas tropas[665]. Os outros chefes navarrenses
foram mortos, a batalha ganha[666].
Ganha aos 16 de maio (1364), ela foi conhecida aos 18 em Reims, na véspera mesmo da sagração; bela estrena para
a nova realeza. Carlos V deu a Duguesclin uma tal recompensa, que nunca antes rei algum dera: um status de príncipe, o
próprio condado de Longueville, herança do irmão do rei de Navarra[667]. Ao mesmo tempo, ele mandava cortar a cabeça do
senhor de Saquenville, um dos principais conselheiros do Navarrense. Ele não tratava melhor os Franceses que se
encontravam entre a gente das Companhias[668]. As pessoas começaram a se lembrar que a ladroagem era um crime...

A guerra da Bretanha terminou no ano seguinte. Carlos de Blois se resignava à partilha da Bretanha; mas sua mulher
não consentiu (Daru, ‘Hist. de Bret.’, t. II, l. IV, p. 122) . O rei da França emprestou Duguesclin e mil lanças a Carlos. O
príncipe de Gales enviou a Montfort o bravo Chandos, duzentas lanças, um número igual de arqueiros, aos quais se juntaram
vários cavaleiros ingleses[669].

Montfort e os Ingleses estavam sobre uma elevação, como o Príncipe de Gales anteriormente estivera em Poitiers.
Carlos de Blois não se inquietou. Este príncipe devoto, que acreditava nos milagres e que os realizava, recusara-se, quando
do sítio de Quimper, a se retirar quando a maré subira. “Se for a vontade de Deus”, ele disse, “a maré não nos fará qualquer
mal”. Ele não parou ante a montanha em Auray tanto quanto não temeu o fluxo em Quimper.

Carlos de Blois era o mais forte. Muitos Bretões, mesmo da Bretanha brettonante, se juntaram a ele, sem dúvida por
ódio aos Ingleses[670]. Duguesclin posicionara este exército numa ordem admirável. Cada cavaleiro, disse Froissart, portava
sua lança bem à sua frente, talhadas na medida de cinco pés, e um machado-de-guerra forte, duro e bem acerado, de cabo
curto... “Et s’en venoient ainsi tout bellement le pas. Ils chevauchaient si serrés, qu’on n’eût pu jeter une balle de paume
qu’elle ne tombât sur les pointes des lances (E assim vinham todos em belo passo. Cavalgavam tão próximos, que não se
poderia jogar uma bola de tênis sem que caísse nas pontas das lanças - Ibid., cap. 503, p. 246). João (John) Chandos observou
por muito tempo a formação dos Franceses, ‘a qual julgava, para si mesmo, tão duramente’. Ele não pôde se calar e disse:
‘Como Deus é meu socorro, é verdade que aí está a fina flor da cavalaria, bom senso e boa ordem” (Ibid., cap. 505, p. 240).

Chandos assegurou-se de um corpo de reserva para apoiar qualquer corpo que enfraquecesse. Não foi sem muito
trabalho que obteve de um desses cavaleiros o assentimento para ficar na retarguada a fim de comandar esta reserva. Foram
necessários rogos e quase lágrimas[671]. O preconceito feudal considerava a primeira linha como o único lugar honorável.
Duguesclin não teria conseguido obter coisa semelhante em outro exército.

Os dois pretendentes combateram à testa de seus exércitos. Era um duelo sem quartel. Os Bretões estavam cansados
desta guerra e desejavam terminá-la pela morte de um ou de outro[672]. A reserva de Chandos deu-lhe a vantagem contra
Duguesclin, que foi lançado à terra e pego. Tudo recaiu sobre Carlos de Blois: seu pendão foi capturado, atropelado, ele
mesmo morto. Os maiores senhores da Bretanha se obstinaram e se fizeram também matar (Ibid.).

Quando os Ingleses, com grande júbilo, vieram mostrar a Montfort seu inimigo, a quem tinham matado, seu sangue
francês despertou, ou talvez o parentesco: lágrimas vieram-lhe aos olhos (Ibid., cap. 511, p. 268). Sob a couraça do morto, foi
encontrado um cilício. Sua piedade, suas belas qualidades retornaram em memória. Ele não recomeçara a guerra senão por
deferência à sua mulher, a quem a Bretanha pertencia por herança. Este santo[673] era também um homem. Ele fazia versos,
compunha lais nos intervalos das batalhas[674]. Ele fora apaixonado; um bastardo seu morreu a seu lado, querendo vingar sua
morte[675].

Montfort recebeu, em poucos dias, as praças mais fortes da região. Os filhos de Carlos de Blois eram prisioneiros na
Inglaterra. O rei da França, que tinha nula paixão na guerra, se acomodou com o vencedor e convenceu a viúva de Carlos de
Blois a se contentar com o condado de Penthièvre, com o viscondado de Limoges e com uma renda de dez mil libras (Ibid.,
cap. 515, pgs. 275-280). O rei agiu sabiamente. O essencial era impedir que a Bretanha prestasse homenagem ao Inglês.
Bastava apostar que ela, cedo ou tarde, se cansaria do protegido da Inglaterra.

Era alguma coisa ter terminado a guerra da Bretanha e aquela do rei de Navarra. Mas era preciso tempo para que a
França se recuperasse. A simples enumeração das Ordenações de Carlos V basta para descobrir as tenebrosas chagas que a
guerra tinha causado. A maior parte destina-se a constatar a diminuição dos feudos, a reconhecer que as comunas despovoadas
não podem mais pagar os impostos (Ord. IV, 617, 651) . Outras são as salvaguardas que as cidades, as abadias, os hospitais e
os capítulos obtêm do rei. A proteção pública era tão débil, que se reclama uma particular. As cidades, as corporações, as
universidades, pedem que privilégios sejam-lhes consagrados. Várias cidades são declaradas inseparáveis da coroa. Os
mercadores italianos em Nîmes, os Castelhanos e Portugueses em Harfleur e em Caen, obtêm privilégios. No total, pouca ou
nenhuma medida geral: tudo é especial, individual: sente-se o quão longe o reino está da unidade, o quão fraco e ainda doente
é.

A maior de todas as misérias da França era a bandidagem das Companhias. Licenciadas pelo Inglês, repelidas da
Ilha-de-França, da Normandia, da Bretanha, da Aquitânia, essas quadrilhas refluíam para o centro; elas passeavam pelo Berry,
pelo Limousin etc. Os bandidos lá estavam como se em sua própria casa. Era o quarto deles, diziam insolentemente (Froiss.,
IV, cap. 517, p. 283) . Eles eram de todas as nações, mas a maior parte era de Ingleses e de Gascões, Bretões também, mas
estes em pequeno número. O povo olhava todos eles como Ingleses: nada contribuiu mais para exasperar a França contra a
Inglaterra. Propunha-se às Companhias partirem para a cruzada. O Imperador obtivera-lhes a passagem pela Hungria e
oferecia arcar com suas despesas na Alemanha. Mas a maioria não considerava partir para tão longe (Froiss., ibid., p. 284-5).
Aqueles que assim decidiram, na esperança de pilhar a Alemanha em rota, nela chegaram a duras penas. Conduzidos pelo
Arcipreste até a Alsácia, aí encontraram populações fechadas, hostis, que de todas as partes caíram sobre eles. Ninguém
escapou. Outros passaram à Itália.

Mas o principal escoamento deu-se na direção da Espanha, através de Castela, na guerra do bastardo Don Enrique de
Transtâmara[676] contra seu irmão Don Pedro o Cruel[677]. Todos os reis da Espanha de então mereciam esse epíteto. Em
Navarra, reinava Carlos o Mau, o assassino, o envenenador. Em Portugal, Don Pedro o Justiceiro, aquele que fez uma tão
atroz justiça da morte de Inês de Castro[678]; em Aragão, Don Pedro o Cerimonioso (D. Pedro IV de Aragão) que, sem forma
de processo, mandou pendurar pelos pés um legado papal encarregado de excomungá-lo. De forma semelhante, D. Pedro o
Cruel mandara queimar vivo um monge que lhe predissera que seu irmão o mataria. É preciso ver, na Crônica de Ayala, o que
era a Espanha desde que, temendo menos os Mouros, ela cedia à sua influência, tornava-se mourisca, judia, tudo, menos cristã.
As guerras sem quartel contra os infiéis tinham tornado os costumes ferozes; eles se tornaram ainda mais sob a violenta
fiscalidade judaica[679].

(1366) Este Pedro o Cruel era uma espécie de louco furioso. Os dois elementos discordantes da Espanha se
combatiam em si e dele faziam um monstro. Seu senso de cavalaria, como o de todo Castelhano, era tão elevado que, por
qualquer coisa, sentia-se picado; ao mesmo tempo, não reinava senão através dos judeus e não se fiava senão nestes e nos
Sarracenos[680]. Dizia-se que ele era filho de uma judia. Se não fosse esta sua particularidade para com os judeus, ele teria
toda a boa-vontade das comunas em virtude da sua crueldade contra os nobres.

Este homem sanguinário amava, entretanto. Tinha por amante Dona Maria de Padilla, “pequena, linda e espirituosa”,
diz o contemporâneo[681]. Para agradá-la, trancafiou sua mulher Branca, cunhada de Carlos V, e findou por envenená-la. Ele
já havia mandado matar sabe-se lá quantos dos seus. Seu irmão (NT: meio-irmão), D. Enrique de Transtâmara, que tinha tudo
a temer, salvou-se e veio solicitar ao rei da França vingar sua cunhada.

O rei deu-lhe, de todo o seu coração, as Companhias que desolavam a França. O rei de Aragão ofereceu a passagem e
o Papa a autorização de invadir Castela. D. Pedro, entre outras violências, pusera as mãos sobre os bens da Igreja[682].

O jovem duque de Bourbon era, nominalmente, o chefe da expedição; o verdadeiro chefe devia ser Duguesclin[683].
Ele ainda era prisioneiro e os Ingleses não queriam devolvê-lo por menos de 100 mil francos-ouro[684]. O rei, o Papa e D.
Enrique se cotizaram e pagaram por ele.

Duguesclin recebeu o comando dos aventureiros e os conduziu à Espanha, mas por Avignon, para fazer com que o
Papa também contribuísse, de quem tirou duzentos mil francos-ouro e uma abvsolvição geral para os seus. O exército
engrossava em rota[685]; ainda que o rei da Inglaterra tivesse proibido a seus súditos tomar parte nesta guerra, uma turba de
aventureiros, Ingleses e Gascões, não deu atenção. Um Francês os conduzia todos, para grande desprazer do Inglês[686].

Essa gente, que começara extorquindo o Papa, nem por isso deixava de dar a esta guerra da Espanha um falso ar de
cruzada. Quando estavam em Aragão, mandaram dizer ao rei de Castela que este deveria dar passagem e víveres “para os
peregrinos de Deus que tinham empreendido viagem, por grande devoção, para irem ao reino de Granada a fim de vingar o
sofrimento de Nosso Senhor, destruir os incrédulos e exaltar nossa fé. O rei D. Pedro não fez senão rir desses pedidos e
respondeu que nada faria e que jamais obedeceria a tal corja” (Froiss., ibid., p. 299).

Foi, efetivamente, como uma peregrinação. Não houve inimigo para combater. D. Pedro foi abandonado e não
encontrou asilo senão na Andaluzia, entre seus amigos Mouros. Daí, ele passou para Portugal, depois para a Galícia e, enfim,
para Bordeaux, onde foi bem recebido (Froiss., cap. 522, p. 313). Os Ingleses estavam tomados de cólera e de inveja. Eles se
encarregaram de reconduzir D. Pedro, de restabelecer o carrasco da Espanha; sempre este diabólico orgulho inglês que tão
frequentemente virou-lhes a cabeça, tão sensatos que sempre pareçam; o mesmo orgulho que os fez queimar a Donzela de
Orléans e que, sob M. Pitt, os teria feito queimar a França[687].

O Príncipe de Gales estava de tal forma enfatuado por seu próprio poder, que não se contentava em querer
restabelecer D. Pedro em Castela; ele prometia ao rei destronado de Maiorca reconduzi-lo em Aragão. Os senhores gascões,
que não tinham a menor vontade de ir tão longe em favor dos interesses ingleses, ousaram dizer ao Príncipe que era mais
difícil restabelecer D. Pedro que expulsá-lo. “Quem muito abraça, mal estreita’, eles também diziam... ‘Gostaríamos muito de
saber quem nos pagará; não se coloca gente armada fora de suas casas sem a ela pagar” (Ibid., p. 315 e segs.). D. Pedro
prometia-lhes tudo o que desejavam; ele deixara tesouros escondidos em lugares que apenas ele conhecia; ele lhes daria
seiscentos mil florins (Ibid., cap. 523, p. 322. Nota de M. Buchon). Para o príncipe de Gales, ele prometia dar a Biscaia, quer
dizer, a entrada dos Pirineus, uma Calais para a Espanha[688].

Tudo o que havia de aventureiros Ingleses no exército de D. Enrique foi convocado na Guiana. Eles partiram bem
pagos para o combaterem e ganharem outro tanto a serviço de D. Pedro[689]: tal era a lealdade daquela época. Igualmente, o
rei de Navarra negociava ao mesmo tempo com os dois partidos, fazendo-se pagar para abrir, para fechar, as montanhas. Ele
de tal forma temia se comprometer por uns ou por outros que, no momento de entrar em campanha com os Ingleses, ele achou
melhor mandar se fazer prisioneiro[690].

O príncipe de Gales teve mais cavaleiros que desejava[691]. A dificuldade era alimentá-los. Chegando ao (rio)
Ebro, numa região esquálida pelo vento, pela chuva e pela neve, os víveres faltaram. Eles já estavam pagando por um
pãozinho a quantia de um florim (Ibid., cap. 545, p. 387). – Aconselhava-se D. Enrique a recusar a batalha, mandar guardar as
passagens e esfaimá-los. O orgulho espanhol não permitiu. Ele se via com três mil armaduras de ferro, seis mil homens de
cavalaria ligeira (vinte mil cavaleiros, diz Froissart – Ibid., cap. 544, p. 385), dez mil arbaleteiros, sessenta mil homens de
milícia (comuneros) com lanças, piques e fundas. Isto contado, não eram senão o povo comum. Os arqueiros ingleses valiam
mais que os fundeiros castelhanos; as lanças inglesas iam mais distante que as adagas e as espadas com as quais os Franceses
e os Aragoneses adoravam se servir (Ibid, cap. 552, p. 400). A batalha foi conduzida por esse bravo e frio John Chandos, que
já fizera com que os Ingleses ganhassem as batalhas de Poitiers e de Auray. Malgrado os esforços de D. Enrique, que liderou
os seus três vezes, os Espanhóis fugiram. Os aventureiros permaneceram sós a se baterem inutilmente[692]. Tudo foi morto ou
preso. Chandos viu-se, pela segunda vez, ter capturado Duguesclin.

Foi um belo dia para o príncipe de Gales. Havia apenas vinte anos que combatera em Crécy, dez que ganhara a
batalha de Poitiers. Ele pronunciou seus julgamentos na esplanada de Burgos; ele aí teve o campo de batalha e os espólios
desta: pode-se dizer que a Espanha, por um dia, foi sua (Ibid., cap. 557, p. 418).

O rei da França, muito abatido com essas notícias, não ousou apoiar Enrique de Transtâmara. A respeito de uma carta
da princesa de Gales, ele se apressou em proibir ao fugitivo atacar a Guiana; ele mandou, inclusive, colocar na prisão o jovem
conde de Auxerre que se armava por D. Enrique (ibid., cap. 569, p. 424-5).

Os vencedores permaneciam na Espanha a aguardar que D. Pedro os pagasse com os tesouros escondidos. Eles se
entediavam muito; a sóbria hospitalidade espanhola não os indenizava desta longa estadia. As pesadas ondas de calor vinham;
eles se jogavam sobre as frutas e a disenteria os matava aos montes. O príncipe de Gales não era menos um dos mais doentes.
Conta-se que eles estavam reduzidos a um quinto quando decidiram tornar a cruzar os montes, descontentes, mal ajambrados e
mal pagos[693].

O príncipe de Gales, que respondera por D. Pedro, não podendo satisfazê-los, estes se puseram a pilhar a Aquitânia.
Ele findou por mandá-los procurar a vida alhures. “Alhures” significava “a França”[694]. Eles então aqui entraram e, sempre
pilhando em rota, não deixavam de dizer, em todos os lugares, que fora o príncipe de Gales, seu devedor, que os autorizara a
se fazerem pagar assim[695].

Por orgulho, o príncipe também cometeu o erro de libertar Duguesclin: era dar um chefe às Companhias. O prudente
Chandos, “que era seu senhor”, dissera que jamais o deixaria ser resgatado (Ibid., cap. 559, p. 421). Um dia, entretanto, que o
príncipe estava alegre, ele percebeu o prisioneiro e disse-lhe: “Como estais vós, Bertrand? – ‘Às maravilhas, graças a Deus,
obrigado’, ele replicou. E acrescentou: ‘Como não estaria bem? Desde que aqui estou, sinto-me o primeiro cavaleiro do
mundo. Diz-se, em todo lugar, que vós me temeis, que não ousais me colocar a resgate’. O Inglês se sentiu picado: ‘Messire
Bertrand’, ele disse, ‘acreditais, portanto, que é por vossa bravura que vos guardamos? Por São Jorge, pagai cem mil francos
e sereis livre”. Duguesclin o pegou pela palavra[696].
Ayala afirma que o príncipe, para demonstrar o quão pouco se preocupava com Duguesclin, disse-lhe para que ele
próprio fixasse quanto desejava pagar. Duguesclin respondeu orgulhosamente: “Nunca menos de cem mil francos”. Isto seria
mais de um milhão em moeda de hoje. O príncipe ficou espantado: “E onde os encontrareis, Bertrand?” – O Bretão, segundo a
crônica, teria dito essas belas palavras, as quais nada têm de inverossímil: “Monsenhor, o rei de Castela pagará a metade e o
rei da França o resto; e, ainda que não fosse o bastante, não há mulher na França que saiba fiar que não fiasse para o meu
resgate pagar”[697].

Ele não presumia muito. A guerra era iminente. Enquanto, em Paris, Carlos V recebia honradamente um filho do rei
da Inglaterra, o qual ia se casar em Milão, as Companhias licenciadas pelos Ingleses desolavam a Champagne e mesmo os
arredores de Paris (Froiss., cap. 563 e 564, p. 437-440). Era demais pagar e ser pilhado.

Hidrópico[698], o Príncipe de Gales retornara da Espanha e seu exército não valia melhor. Os Gascões, que se
haviam comprometido neste negócio inglês sobre a palavra dos tesouros escondidos de D. Pedro, retornavam pobres, em
lastimáveis equipagens e de mau humor. Além disso, guardavam em relação ao príncipe mais de um velho rancor. Ele forçara
o conde de Foix a dar passagem às Companhias, pedira mil lanças ao senhor d’Albret e deixara oitocentos lanças a seu
encargo[699]. Os meridionais estavam fartos dos Ingleses, não somente de suas vexações, mas porque eram Ingleses, quer
dizer, entediantes, incômodos para se conviver. Essas vivazes, espirituosas e falastronas populações sofriam ao vê-los
orgulhosamente taciturnos e ruminando sempre para si mesmo sua batalha de Poitiers[700].

O príncipe de Gales desprezava os Gascões. Ele escolheu, com a habitual sensibilidade inglesa, este momento de
mau humor para colocar sobre suas terra um focagium de dez soldos por feudo[701]; ao invés de pagá-los, ele lhes exigia
dinheiro; um fogagium das magras populações das landes, dos pobres pastores de cabras das montanhas; um focagium desta
pobre pequena nobreza que nunca foi rica senão em cadetes e em bastardos. O príncipe convocara os Estados para Niort, na
esperança de converter os Gascões pelo bom exemplo dos Poitevinos e Limousenses. Eles não foram sensibilizados. Ele teve
por bem transferir os Estados para Angoulême, para Poitiers, para Bergerac. Eles tiveram tanta vontade de pagar em Bergerac
quanto em Niort.

E não somente não pagaram, mas partiram para encontrar o rei da França dizendo-lhe, com a vivacidade de sua
região, que desejavam justiça, que a corte do rei da França era a mais justa do mundo, que se este não recebesse seu apelo,
eles iriam procurar um outro senhor (Froiss., V., cap. 574, p. 12) . O rei, que não estava preparado para a guerra, tentava
contê-los. Ele não os apoiava e nem os dispensava, mas os mantinha em Paris, acarinhando-os e custeando-os[702]. Havia
junto deste rei belas fortunas a se fazer. O Inglês não pagava, mesmo depois disso; ele, o rei da França, pagava adiantado. Ele
dava aos pequenos cavaleiros não apenas dinheiro mas, também, estabelecimentos, fortunas de príncipe. Ele era o pai dos
Bretões e dos Gascões. Ele não lhes guardava rancor. Mais se derrotava seus soldados, melhor ele os tratava. Ele acabara de
acolher o vendéio Clisson, um daqueles que mais contribuíra para a derrota dos Franceses em Auray. Ele ofereceu ao Captal
de Buch o ducado de Nemours. Ele deu ao senhor d’Albret uma filha da França em casamento (Froiss., IV, cap. 564, p. 440) .
Para os Gascões, foi um grande encorajamento ver um dos seus se tornar príncipe, cunhado dos reis da França e de Castela.

No dia 25 de janeiro de 1369, o príncipe de Gales recebeu um doutor-em-leis e um cavaleiro em Bordeaux, os quais
vinham da parte do rei da França, para entregar-lhe uma intimação. Era uma intimação polida para vir a Paris e responder na
Corte dos Pares no que tangia a certas reclamações, segundo as quais, “por débil conselho e simples informação, ele teria
molestado os prelados, os barões, cavaleiros e comunas das marchas da Gasconha, nas fronteiras de nosso reino, da qual
coisa nós estamos muito surpresos” (Froiss., V., cap. 575 e 576, p. 15-19) . O doente, tendo tomado conhecimento da
mensagem, disse orgulhosamente a palavra de Guilherme o Conquistador: “Nós iremos, mas será com o bacinete na cabeça e
sessenta mil homens em nossa companhia... Isto custará cem mil vidas”. O príncipe estava de tão mau-humor que, após ter
permitido aos mensageiros partirem, ele mandou correr atrás dos mesmos e jogá-los na prisão sob um pretexto: “De medo que
fossem relatar suas pilhérias e suas zombarias ao duque do Anjou, que nos ama muito pouco, e que dissessem que me
afrontaram no meu próprio palácio” (Ibid., cap. 577, p. 21).

O rei da França, muito pelo contrário, tinha o ar de que esta questão da Gasconha em nada tocava o rei da Inglaterra.
No mesmo momento, ele enviou-lhe um presente de cinquenta pipas de bom vinho, as quais, todavia, o Inglês recusou. Ele
tinha acabado de perdoar um dos pagamentos do resgate do rei João.

Carlos sabia suportar e pacientar. Seus negócios não marchavam menos. Ao Norte, ele ganhava a gente dos Países-
Baixos. Ele negociava com o Ponthieu e com Abbeville. No sul, ele, de longa data, tinha colocado, através do Papa, bispos a
seu favor em todas as províncias inglesas. Além-Pirineus, ele despachava Duguesclin e alguns cavaleiros das Companhias
para ajudar os Castelhanos a se livrarem do rei que os Ingleses lhes impuseram. D. Enrique prometia, em retribuição, armar
contra os Ingleses uma frota que seria o dobro daquela do rei da França.

D. Pedro tinha por si muitas comunas, precisamente por causa de sua crueldade em relação aos nobres. A seu favor,
estavam sobretudo os Mouros e os Judeus, péssimos auxiliares que não eram capazes de defendê-lo e que davam uma maléfica
cor ao seu partido. Ele se retirara numa das regiões menos cristãs da Espanha, na Andaluzia. D. Enrique e Duguesclin,
conduzindo rapidamente um pequeno corpo de homens certos, não deixaram tempo para que D. Pedro conhecesse o número
dos assaltantes. Os judeus, que contra todos os seus hábitos, tinham pego em armas, as largaram o quanto antes; os Mouros,
com suas flechas, não podiam estancar a pesada cavalaria. Duguesclin proibiu que se desse quartel a esses descrentes
(Froiss., IV, cap. 568 e 569, p. 453-5). D. Pedro só teve tempo de se lançar para dentro do castelo de Montiel (NT: castelo da
Estrela de Montiel). Diz-se que Duguesclin prometera-lhe permitir que se evadisse e que o traiu; que os dois irmãos, vindo à
sua presença, na tenda de D. Enrique, esses dois furiosos lançaram-se um contra o outro; que D. Pedro, imobilizando D.
Enrique embaixo, Duguesclin pegou D. Pedro pela perna e o colocou por baixo de seu irmão que, então, o apunhalou[703].
Esta narrativa, ainda que romanesca, não é inverossímil.

A Batalha de Montiel ocorreu aos 14 de março (1369). Pelo fim de abril, Carlos V relampejou, surpreendeu o
Ponthieu e desafiou o rei da Inglaterra. O desafio foi levado a Westminster por um lacaio de cozinha (Froiss., V, cap. 580, p.
33). A escolha do mensageiro, numa questão menos séria, pareceria epigramática: esses conquistadores, maltratados na
Espanha pelas frutas, na França pelos vinhos, estavam doentes, envelhecidos por seus próprios excessos. Um filho de Eduardo
III, Lionel, morrera por indigestão em Milão. Os Ingleses sustentavam que ele fora envenenado.

Não havia senão boas razões para romper a paz. Os próprios Ingleses a tinham rompido quando largaram suas
Companhias sobre a França. Carlos V nada falou disto e nem das reclamações dos Gasgões no tratado de Brétigny, sequer de
seus privilégios violados pelos Ingleses. Ele preferiu procurar nas linhas do tratado algum vício de forma. Os Estados-Gerais,
por ele consultado com deferência, decidiram que seu direito era bom (09 de maio de 1369 – Secousse, ‘Préf. aux Ord.’, VI,
p. 1). Ele conseguiu obter, pela Corte dos Pares, uma sentença para confiscar a Aquitânia; neste ato, ele ousadamente disse
que a suzerania e o direito de apelo foram reservados pelo tratado de Brétigny.

Ele podia mentir deslavadamente: todo mundo estava a seu favor. As Companhias se declararam francesas. Os bispos
da Aquitânia entregavam-lhe suas cidades; de longa data, o arcebispo de Toulouse as ganhara: sessenta cidades, burgos ou
castelos expulsaram os Ingleses, mesmo em Cahors, mesmo em Limoges, cujos bispos pareciam completamentes ingleses
(Froiss., V, cap. 587, p. 56) . O rei da França merecia esses milagres; todo doentio que era, ele continuamente fazia, pés nus,
procissões devotas[704]. Os pregadores populares falavam a seu favor. O rei da Inglaterra também mandava o bispo de
Londres pregar, mas não tinha o mesmo sucesso[705].

Todas as cidades que se rendiam a Carlos V obtinham confirmação e aumento dos privilégios. Segue-se o progresso
de sua conquista de ponta a ponta: Rhodes, Figeac, Montauban, fevereiro de 1370; Millau no Rouergue, maio; Cahors, Sarlat-
la-Canéda, julho (Ord. V, p. 291, 324, 338, 383. Sismon., XI, p. 145).

É difícil acreditar que uma cabeça tão fria, tão sábia, tenha realmente tido a idéia de invadir a Inglaterra (Froiss., V,
cap. 599, p. 98-9). Ele fez todo o necessário para fazê-los acreditar nisto, sem dúvida a fim de atrair os Ingleses para o norte e
impedi-los de asfixiar o movimento do sul da França. De fato, os Ingleses desembarcaram um exército em Calais, sob a
condução do duque de Lancaster. O grande e pesado exército francês conduzido pelo duque da Borgonha, cinco vezes mais
forte que o inglês, tinha expressa proibição de combater. Ele permaneceu imóvel e, depois, se retirou sob as vaias dos
Ingleses (Ibid., cap. 602, p. 110). Estes perderam seu tempo e dinheiro. As cidades do norte continuaram com eles e, no sul,
eles haviam retomado vários locais, mas perdendo o que valia muito mais, o irreparável capitão a quem deviam as vitórias de
Poitiers, de Auray e de Najarra, o sábio e hábil John Chandos (Ibid., cap. 615, p. 153-9).

Este corajoso homem previra tudo. Desde o momento em que o príncipe de Gales teimou, contra seu conselho, em
impor esse fatal focagium, Chandos se retirou para a Normandia. Depois, com a sublevação do midi, ele retornou para reparar
o mal, para salvar os imprudentes que não quiseram escutá-lo; mas ele esperava pouco desta guerra. O historiador do tempo o
representa muito triste e melancólico, como se tivesse previsto sua morte próxima e a perda das províncias inglesas. Após sua
morte, o rei da Inglaterra enfim seguiu seu conselho e revogou o tributo. Mas era tarde demais (Ibid., cap. 514, p. 148).

Os Ingleses estavam, como normalmente se dá nas infelicidades, cada vez mais em maus lençóis e desgraçados. Eles
deveriam, a qualquer preço, ter se assegurado do rei de Navarra e dele se servir contra a França. Segundo toda aparência, o
preço da barganha era o viscondado de Limoges, que o Navarrense pedia. O príncipe de Gales não quis abrir uma brecha em
seu reino da Aquitânia; era-lhe importante manter e guardar esta porta da França (Secousse, ‘Hist. de Charles-le-Mauvais’, p.
131 e Rymer, VI, p. 677) . Ele negou e perdeu tudo. O rei da França recuperou o rei de Navarra dando-lhe Montpellier, cidade
que lhe era prometida há muito tempo (Secousse, ibid., p. 133). Pouco após, ele ainda teve o expediente de se reconciliar com
o novo rei da Escócia, primeiro da Casa de Stuart (Rymer, VI, p. 696) . Castela, Navarra, Flandres, Escócia, ele desmembrava
tudo da Inglaterra e isolava seu inimigo.

O orgulho inglês estava tão comprometido nesta guerra, que Eduardo ainda encontrou meio, após tantos sacrifícios,
de fazer duas expedições ao mesmo tempo contra a França. Enquanto um de seus filhos, o duque de Lancaster, partia para
socorrer o príncipe de Gales sitiado em Bordeaux (fim de julho de 1370), um outro exército, sob um velho capitão, Robert
Knolles, entrava na Picardia (mesmo mês). De ambos os lados, nula resistência; Duguesclin e Clisson aconselhavam evitar
qualquer combate, fazer apenas escaramuças e guardar as praças; o campo virava-se como podia. Esses chefes de Companhia
não conheciam senão o sucesso; os mais corajosos preferiam empregar o ardil. Quanto à honra do reino, eles não sabiam o que
era isso. Era preciso que o duque de Bourbon visse passar à frente de seu exército, sem se mexer, sua mãe, mãe da rainha da
França, a qual os Ingleses tinham pego e que fizeram cavalgar sob seus olhos na esperança de levar o filho ao combate. Ele
propôs-lhes um duelo, mas recusou-lhes a batalha[706].

Em Noyon, o ultraje foi mais sangrento. O escocês Seyton saltou as barreiras da cidade, discutiu aos gritos, por uma
hora, com os Franceses, e saiu são e salvo[707]. O exército inglês foi assim até a Champagne, até Reims, até Paris, destruindo
e queimando tudo o que encontrava, procurando ver se haveria alguma devastação assaz cruel, algum espicaçamento
suficientemente sensível, para despertar a honra do inimigo. Durante um dia e duas noites que estiveram à frente de Paris, o
rei, de seu hôtel Saint-Paul, via, sem se emocionar, as chamas dos vilarejos que eram incendiados de todos os lados. Uma
numerosa e brilhante cavalaria, os Tancarville, os Coucy, os Clisson, estava na capital, mas ele a retinha. Clisson, cuja
bravura era notória, encorajava esta prudência cruel: “Sire, vós não deveis empregar vossos soldados contra esse
enraivecidos; deixai-os se fatigarem por si mesmos. Eles não vos colocarão para fora de vossa herança com todos esses
monturos” (Ibid., cap. 634, p. 211).

Quando partiam dali, um Inglês se aproximou da barreira Saint-Jacques, que se encontrava aberta e lotada de
cavaleiros franceses. Ele fizera voto de chocar sua lança contra as barreiras de Paris. Nossos cavaleiros o aplaudiram e o
deixaram ir[708]. Este ultraje às muralhas da cidade, à honra do pomœrium, coisa tão santa entre os antigos, não tocava os
homens feudais[709]. O Inglês ia-se calmamente, quando um bravo açougueiro avançou pelo caminho e, com um pesado
machado de cabo longo, desferiu-lhe um golpe entre os dois ombros, o renovou sobre a cabeça e o derrubou[710]. Três outros
vieram e, juntos, os quatro começaram a bater no Inglês “assim como o fariam sobre uma bigorna”. Os senhores que lá
estavam à porta, vieram recolhê-lo para enterrá-lo em terra santa.

O príncipe de Gales não encontrou mais obstáculos para sitiar Limoges que Knolles para insultar Paris. O próprio
Duguesclin aconselhara dissolver o exército do sul e não mantivera senão duzentas lanças para correr a região. O príncipe
desejava tratar tanto mais cruelmente as pessoas de Limoges quanto o autor da defecção desta cidade, o bispo, era sua criatura
e seu compadre. Ele jurara pela alma de seu pai que faria a cidade pagar caro por essa traição. Os burgueses, muito
apavorados, queriam se render. Mas os capitães franceses os impediram. Entretanto, tendo o príncipe mandado minar uma
parte das muralhas, fê-las saltar e entrou pela brecha. Ele estava muito doente para cavalgar, mas se fazia conduzir numa
carruagem. Ele dera ordem de matar tudo, homens, mulheres e crianças e, assim, ofereceu a si o espetáculo desta carnificina.
“Não houve tão duro coração que, estando então na cidade de Limoges, não se lembrasse de Deus e não chorasse
piedosamente”[711]. O príncipe de Gales não se lembrou Dele. Este homem ferido e doente, que estava tão próximo de
prestar contas, este moribundo, não conseguia se saciar vendo os mortos. Mulheres e crianças se lançavam de joelhos à sua
passagem, gritando: “Graça, graça, gentil Sire”. Ele nada ouvia. Ele não poupou senão o bispo, quer dizer, o único culpado, e
três cavaleiros franceses que o agradaram por terem se defendido ao máximo de suas forças (Ibid., p. 219-220 e Wals. p.
185).

Este extermínio de Limoges, que tornou o nome dos ingleses tão execrável na França, ensinou as cidades a se
defenderem bem. Era um adeus do inimigo. Ele tratava o país como se fosse a terra de um outro, como se não contasse para
ela retornar. Pouco após, sentindo-se mais doente ainda, o príncipe se deixou persuadir pelos médicos para ir respirar o
nevoeiro natal e embarcou para Londres (Froiss., ibid, cap. 642, p. 235). Seu irmão, o duque de Lancaster, começava, sem
dúvidas, a fazer-lhe sombra. O Príncipe de Gales, que em virtude de sua doença não esperava suceder a seu pai, desejava, ao
menos, assegurar o trono a seu filho.
O rei da França agradou todo o reino ao nomear Duguesclin condestável[712]. O pequeno cavaleiro bretão, investido
nesta primeira dignidade do reino, comeu à mesa do rei, distinção feita para espantar, quando se vê, em Cristina de Pisano
(Christine de Pisan), que o cerimonial da França era que o rei fosse servido à mesa por seus irmãos.

O novo condestável compreendia sozinho a guerra que era necessária fazer ao Inglês. As batalhas eram impossíveis;
as imaginações estavam amedrontadas desde Crécy e Poitiers. Coisa bizarra! Os Franceses que, sob Duguesclin, forçaram os
Ingleses em várias praças-fortes, hesitavam em encontrar, na planície, aqueles a quem não temiam dar assalto. Era-lhes
necessário, quando menos, ser o dobro. Eles começaram a se sentir mais seguros quando Duguesclin, seguindo o exército de
Knolles em sua retirada, derrotou duzentos Ingleses com quatrocentos Franceses (Froiss., ibid., p. 225-229).

O que servia Carlos V melhor que Duguesclin, melhor que todo mundo, era a loucura dos Ingleses, a vertigem que os
levava de erro em erro. Eles fizeram que o duque da Bretanha se declarasse a seu favor. Mas a Bretanha era contra. Eles
conseguiram provocar a ruína de Montfort a quem tinham conseguido estabelecer a duras penas. Os Bretões expulsaram seu
duque[713].

A aliança de Castela pouco servira, até então, a Carlos V. Os Ingleses se encarregaram de estreitá-la, de torná-la
eficaz. O duque de Lancaster, em sua ambição extravagante, casou-se com a filha primogênita de D. Pedro e o conde de
Cambridge desposou a segunda filha. Era uma enfatuação inaudita, inacreditável. A Inglaterra, que não pudera conquistar a
França, propunha-se também a conquista da Espanha.

O resultado desta nova imprudência foi a de dar uma frota aos Franceses. O rei de Castela, ameaçado por aquele
casamento, enviou uma armada a Carlos V. Os grandes vasos espanhóis, carregados de artilharia, acabaram, à frente de La
Rochelle, com os pequenos navios dos Ingleses e seus arqueiros (Froiss., V, cap. 658, p. 273-6) . La Rochelle aplaudiu e
expulsou os vencidos. Ela se entregou à França, mas com boas reservas e sob condições, de forma a permanecer uma
república sob o rei[714].

Este grande evento carregou todo o Poitou. Eduardo e o príncipe de Gales, o ancião e o enfermo, voltaram ao mar e
tentaram vir em socorro. O mar não os queria mais. Ele os reconduzia, de bom ou mau grado, à Inglaterra. A cidade de
Thouars sucumbiu. Duguesclin derrotou o que restava de Ingleses em Chizé. A Bretanha seguiu: foi questão de alguns sítios
(Ibid., cap. 678, p. 43-44). O só capitão que restava aos Ingleses era um Gascão, o Captal de Buch; um dos melhores que os
Franceses poderiam ter era um Galês, um descendente dos príncipes de Gales que assim vingava seus avós servindo à França.
O Galês pegou o Gascão: Carlos V manteve preciosamente, na torre do Templo, este importante prisioneiro, sem jamais
permitir-lhe resgatar-se[715].

O segundo filho de Eduardo III, o duque de Lancaster, tronco deste ambicioso ramo de Lancaster que fez a glória e a
desgraça da Inglaterra no século XV, tomara o título de rei de Castela. Ele se fez nomear capitão-general do rei da Inglaterra
na França e seu lugar-tenente na Aquitânia, onde os Ingleses quase não tinham mais nada. Há uma tal força de orgulho no
caráter inglês, uma paixão tão teimosa, que, após tantos homens e dinheiro jogados e perdidos, eles fizeram uma nova aposta
para levar tudo. Conseguiram ainda encontrar um novo exército para dar a seu capitão da Aquitânia. Desembarcando em
Calais (1374), Lancaster cruzou a França sem encontrar nada para fazer, nem batalha a travar, nem cidade a tomar: tudo estava
fechado, trancado, em defesa. Os Ingleses não puderam extorquir senão alguns vilarejos. Enquanto estiveram no norte, os
víveres abundavam: “Eles jantavam esplendidamente todos os dias”. Mas, desde que chegaram na Auvérnia, não encontraram
mais víveres, nem forragens. A fome e as doenças fizeram estragos terríveis no exército. Eles haviam partido de Calais com
trinta mil cavalos e chegaram a pé na Guiana[716]: era um exército de mendigos; pediam, de porta em porta, seu pão aos
Franceses[717].

A chegada desse exército em Bordeaux teve, entretanto, um efeito: os Gascões, que não eram mais Ingleses e que não
estavam com pressa de se tornar Franceses, se atreveram e declararam ao condestável da França que prestariam homenagem
àquele dos dois que batesse o outro. Foi assim combinado que uma batalha ocorreria no dia 15 de abril em Moissac. Depois,
os Ingleses a adiaram para o dia 15 de agosto; depois, ainda, pediram que a mesma ocorresse perto de Calais. Os atos, não
tendo sido conservados, não sabemos muito do que foi convencionado. No dia 15 de agosto, os Franceses compareceram a
Moissac, se posicionaram para a batalha, aguardaram e não viram ninguém. Então, obrigaram os Gascões a honrarem sua
palavra. Para os Ingleses, não restaram, na França, senão as cidades de Calais, Bayonne e Bordeaux (1374 – Wals., p. 187-8.
Froiss., VI, cap. 688, p. 78).

Este esforço que nada alcançara, este golpe dado no ar, fez-lhes muito mal. O esgotamento que se seguiu foi de tal
monta, que Eduardo aceitou a mediação do Papa, tantas vezes recusada. O grunhido do povo tornava-se alto demais para o rei.
Este violento dogue, que fora por tanto tempo conduzido pelo sabor de uma presa que sempre recuava, começava a dar
mostras de querer se lançar contra seu dono. A um custo incrível fizera-se a guerra ser querida na Inglaterra. Esta já estava
lassa na Batalha de Crécy. Quando o Lord-chanceler perguntava às pessoas das comunas, para picá-las em sua honra: “Como
então? Desejaríeis vós uma paz perpétua?”; eles respondiam ingenuamente: “Sim, claro! Nós aceitaríamos!” (Hallam, p. 217 –
ano 1350). – Então, fez-se com que acreditassem que tudo acabaria com a tomada de Calais. Depois, veio a vitória de
Poitiers, a qual virou-lhes a cabeça. Essas pessoas imaginavam que o resgate do rei da França as dispensaria, para sempre, de
pagar tributo. Após, foram atiçadas com a Espanha, com o famoso tesouro escondido de D. Pedro. O dinheiro da Espanha não
vindo, elas foram persuadidas a tomar a própria Espanha.

Em 1376, essa gente fez as contas e constatou que nada tinha, nem dinheiro, nem Espanha e nem França. Seu mau-
humor foi extremo. Ela se virou para o rei, para o duque de Lancaster que tinha, então, a principal influência. Seu irmão
primogênito, o príncipe de Gales, embora muito doente, se mostrava favorável à oposição. O parlamento de 1376, chamado de
o bom parlamento, não se deixou mais levar por palavras. Ele perguntou o que ocorrera com todo aquele dinheiro, esses
subsídios, esses resgates da França e da Escócia. Ele atacou brutalmente Eduardo, desnudou sem piedade as fraquezas reais, o
perseguiu em seu lar, em seu quarto de dormir.

O velho rei era governado por uma jovem mulher casada, Alice Perrers, dama de companhia da rainha, bela, ousada,
impudente[718]. A pobre rainha, que tudo via, fizera, quando morria, este pedido ao rei: “Que ele ao menos desejasse ser
enterrado ao seu lado em Westminster”, esperando, ao menos na morte, tê-lo para si.

As jóias da rainha foram dadas a Alice. A criatura se fazia dar, tomava ou roubava. Ela vendia cargos e mesmo
julgamentos. Ela ia pessoamente ao Tribunal do Rei (King’s Bench) patrocinar causas. Os juízes da igreja, os doutores em
Direito Canônico, estavam expostos, em seus julgamentos, a ver a bela Alice vir ousadamente falar-lhes à orelha[719]. O
parlamento instou o rei a afastar esta mulher e outros maus conselheiros.

O príncipe de Gales morreu, deixando um filho muito jovem. O duque de Lancaster, entre este sobrinho novo e seu
velho pai, era, efetivamente, o rei. Os conselheiros retornaram. A votação de uma pesada taxa foi extorquida do parlamento. O
duque, que tinha muita necessidade de outros recursos para sua futura conquista da Espanha, se preparava para deitar a mão
sobre os bens do clero. Já ele lançara contra os padres o famoso orador Wickliffe; ele o apoiava, com todos os grandes
senhores, contra o bispo de Londres. O povo de Londres, a respeito de uma palavra insolente de Lancaster contra seu bispo, se
sublevou e quase fez o duque em pedaços (Walsingham, p. 192).

Durante toda essa confusão, o velho Eduardo III morria em Eltham, abandonado à mercê de sua Alice. Ela o enganava
até o final, permanecendo perto de seu leito, lisojeando-o e desejando-lhe um pronto restabelecimento, impedindo-o de cuidar
de sua saúde. Quando ele não mais conseguiu falar, ela arrancou-lhe seus anéis dos dedos e o deixou lá[720].

O filho e o pai morreram com um ano de distância. Esses dois nomes, aos quais se vinculam tais eventos, ainda são,
talvez, as mais caras lembranças da Inglaterra. Ainda que o príncipe tenha em grande parte devido a John Chandos suas
vitórias de Poitiers e de Najara, ainda que seu orgulho tenha sublevado os Gascões e armado Castela contra a Inglaterra,
poucos homens melhor mereceram o reconhecimento de seu país. Nós mesmos, a quem ele causou tantas tristezas e males, não
podemos ver sem respeito, em Canterbury, o tabardo[721] do grande inimigo da França. Este péssimo farrapo de couro furado
pelas traças brilha entre todos os ricos escudos heráldicos que ornamentam a igreja. Ele sobreviveu quinhentos anos ao nobre
coração que cobria[722].

Quando o rei da França soube da morte de Eduardo, ele disse que lá havia um glorioso reino e que um tal príncipe
merecia ser lembrado entre os corajosos. Ele reuniu inúmeros prelados e senhores e mandou fazer um serviço fúnebre na
Santa Capela (Froiss., cap. 692, p. 105). Na Inglaterra, os funerais foram atrapalhados. Quatro dias após a morte de Eduardo,
a frota de Castela, carregada de tropas da França, correu todo o litoral queimando cidades: Wight, Rye, Yarmouth, Dartmouth,
Plymouth e Winchelsea (Ibid., cap. 693, p. 107). Jamais, dos viventes Eduardo e Príncipe de Gales, a Inglaterra experimentara
um semelhante desastre.

De todas as partes, o rei da França fazia uma guerra de negociações. Já há cinco anos ele impedia o casamento de um
filho de Eduardo com a herdeira de Flandres, por falta de dispensa papal; ele obteve, sem dificuldade, esta dispensa para seu
irmão, o duque da Borgonha, parente da jovem condessa em mesmo grau. O pai dela não desejava esse casamento, não mais
que as cidades de Flandres. Mas a avó, condessa do Artois e do Franco-Condado, mandou dizer a seu filho, o conde de
Flandres, que o deserdaria se não desse a mão de sua filha ao príncipe francês. O casamento se fez para desespero do rei da
Inglaterra, que via esta imensa sucessão prestes a escoar para a Casa da França. A França, mutilada a oeste, formava seu vasto
cinturão do leste e do norte.

Esta derrota, e aquelas que os Ingleses provaram perto de Bordeaux, iam convencê-los a fazer o que deveriam ter
feito desde o início: unir-se ao rei de Navarra. Eles lhe dariam Bayonne e a região vizinha e ele seria o lugar-tenente dos
Ingleses na Aquitânia. O Navarrense, mais fino que hábil, enviava seu filho a Paris para melhor enganar o rei, enquanto tratava
com os Ingleses. A ele ocorreu como a Luís XI em Péronne. Sua fineza o levou à armadilha. O rei ficou com seu filho,
retomou-lhe Montpellier e tomou seu condado de Évreux. Prendeu-se seu lugar-tenente Dutertre, seu conselheiro Du Rue que,
dizia-se, viera para envenenar o rei. Acusava-se Carlos o Mau de já antes ter envenenado a rainha da França, a rainha de
Navarra e outros também (Secousse, ‘Hist. de Charles-le-Mauvais’, t. 1, 2ª parte, p. 173). Tudo isto não era improvável: este
principezinho, exasperado pelas suas longas desgraças, podia tentar retomar pelo ardil e pelo crime o que a força tinha-lhe
levado. Ele tinha motivos para odiar os seus, tanto quanto o inimigo. Sua mulher o enganava com um bravo capitão gascão dos
Ingleses, o Captal de Buch[723]. Du Rue confessou somente que Carlos o Mau contava em envenenar o rei por meio de um
jovem médico de Chipre, o qual podia se introduzir facilmente perto de Carlos V e agradá-lo “porque falava um bom latim e
era muito argumentador”. Dutertre e Du Rue foram executados. Carlos V tirou desse processo o benefício de aviltar, de
desonrar o rei de Navarra, de construir-lhe uma reputação de envenenador, de assim matar suas pretensões ao trono da França.

Carlos o Mau perdeu tudo no norte, com exceção de Cherbourg. No sul, os Castelhanos o ameaçavam. Ele teria
perdido a própria Navarra, se os Ingleses não tivessem vindo socorrê-lo. Os Gascões ajudaram os Ingleses. Estes últimos, em
seguida, tentaram tomar Saint-Malo e não foram bem sucedidos, assim como os Franceses em relação a Cherbourg. Todo este
grande movimento de guerra não deu em nada novamente. O rei da França não pôde ser forçado nem a combater e nem a se
render; ele manteve as mãos cheias[724].

A habilidade de Carlos V e o enfraquecimento dos outros estados tinham, ao menos na opinião, reerguido a França.
Toda a cristantade olhava de novo em sua direção. O Papa, Castela, a Escócia, viam o rei como um protetor. Irmão do futuro
conde de Flandres, aliado dos Visconti, ele via os reis de Aragão e da Hungria ambicionarem sua aliança. Ele recebia as
embaixadas longínquas do rei de Chipre, do sultão de Bagdá, que se dirigiam a ele como ao primeiro príncipe dos
Francos[725]. Mesmo o próprio Imperador prestou-lhe uma espécie de homenagem, visitando-o em Paris. Após ter alienado
os direitos do Império na Alemanha e na Itália, ele vinha dar ao delfim o título do reino de Arles (Crist. Pisano, p. 97).

A súbita restauração do reino da França era um milagre que cada um desejava ver. De todas as partes, vinha-se
admirar esse príncipe que tanto perseverara, que vencera à força de não combater[726], esta paciência de Jó, esta sabedoria
de Salomão. O século XIV se desenganava da cavalaria e das loucuras heróicas para reverenciar Carlos V, o herói da
paciência e da artimanha.

Esse príncipe, naturalmente ecônomo, esse rei de um povo arruinado, surpreendia os estrangeiros pela multiplicidade
de suas construções. Ele erguia, em volta de Paris, casas ditas de recreio, Melun, Beauté, Saint-Germain; mas toda casa era,
então, um forte. Ele dava à capital uma nova ponte (Pont-Neuf), muralhas, portas, uma boa bastilha. Ele não se fiava senão nas
muralhas[727].

Perto de sua Bastilha, ele construíra, expandira, mobiliara, com o luxo de um rei e as pesquisas cuidadosas de um
doente, o vasto hôtel Saint-Paul (NT: também conhecido por hôtel Saint-Pol)[728]. A magnificência desta morada e a
esplêndida hospitalidade que nela encontravam os príncipes e senhores estrangeiros causavam ilusão sobre o real estado do
reino. O senhor de La Rivière, o amável e sutil conselheiro de Carlos V, o típico e rematado cavaleiro dessa época, fazia-lhes
as honras da casa[729]. Ele exibia-lhes a nobre morada de seu senhor, essas galerias, essas bibliotecas, esses buffets
inscrustrados de ouro, e eles o chamavam de “o rico rei”[730].

“L’eure de son descouchier au matin estoit comme de six à sept heures. Donnoit audience mesmes aux mendres, de
hardiement deviser à luy. Après, luy pigné, vestu et ordonné, ... on lui apportoit son breviaire; environ huit heures du jour, aloit
à sa messe; à l’issue de sa chapelle, toutes manières de gens povoient bailier leurs requêtes. Après ce, aux jour députez à ce,
aloit au conseil, après lequel... environ dix heures asseoit à table... A l’exemple de David, instruments bas oyoit volontiers à la
fin de ses mangiers” (NT: A hora de seu despertar, pela manhã, era entre seis e sete horas. Dava audiência mesmo aos
menores que ousadamente fossem a ele. Após penteado, vestido e arrumado, ... era-lhe trazido seu breviário; por volta das
oito horas da manhã, ia à sua missa; à saída de sua capela, todo o tipo de gente podia dirigir-lhe seus pedidos. Após isto,
na hora apontada, ia ao Conselho, após o qual... por volta das dez horas, sentava-se à mesa... A exemplo de Davi, música
suave ouvia com prazer ao fim de suas refeições).

“Erguendo-se de sua mesa, quando da colação, em sua direção podiam ir todos os tipos de estrangeiros. Eram-lhe
assim trazidas notícias de todos os tipos de países, aventuras de suas guerras... durante o espaço de duas horas; depois, ia se
repousar por uma hora. Após seu dormir, tinha um tempo com seus mais próximos confidentes, olhando jóias ou outras coisas
caras. Depois, ia às vésperas. Após,... no verão, entrava em seus jardins, onde mercadores vinham trazer-lhe veludos, tecidos
de ouro, etc. No inverno, ocupava-se frequentemente a ouvir as leituras que lhe faziam das várias belas histórias das Santas
Escrituras, ou casos de romances ou moralidades dos filósofos e de outras ciências, até a hora do jantar, para o qual
comparecia cedo, após o que divertia-se com algo, por uma hora, e depois se retirava. Para prevenir vãs e vazias palavras e
pensamentos, tinha (no jantar da rainha) um homem sábio ao final da mesa que, sem cessar, contava atos de costumes virtuosos
de alguns bons homens já trespassados” (Cristina de Pisano, p. 277-82 e 286).

Os filósofos com os quais o rei adorava discutir eram seus astrólogos[731]. Seu astrólogo em título, um italiano,
Thomas de Pisano (NT: também Tommaso di Benvenuto da Pizzano e pai de Cristina Pisano) , fora propositalmente chamado
de Bolonha; o rei dava-lhe cem libras por mês. Essa gente, não importando quais fossem seus meios de prever, não se
enganavam muito. Eles eram cheios de finura e de sagacidade. Carlos V presenteou Duguesclin com um astrólogo ao enviar-
lhe a espada de condestável (Ibid., p. 209).

O pouco que sabemos de Carlos V, de seus julgamentos, de suas palavras, indica, como todo o seu reino, uma suave e
fria sabedoria, talvez, também, alguma indiferença para o bem e para o mal[732]. “Considerando”, disse sua historiadora, “a
fragilidade humana, ele jamais permitiu aos maridos emparedar suas mulheres por malfeito de corpo (NT: infidelidade),
ainda que tivesse sido muitas vezes suplicado”[733]. – Ele surpreendeu três vezes seu barbeiro, em flagrante delito de furto e
com a mão no bolso, sem se irritar, nem puni-lo[734].

Carlos V é, talvez, o primeiro rei desta nação, até aí tão leviana, que soube preparar de longe um sucesso, o primeiro
que compreendeu a influência, longínqua e lenta, mas desde então real, dos livros sobre as brigas. O prior Hononé Bonnor
escreveu, por ordem do rei, sob o bizarro título de “A Árvore das Batalhas”, o primeiro ensaio sobre o direito da paz e da
guerra. Seu advogado-geral, Raul de Presles, pôs a Bíblia em língua vulgar muitos antes antes de Lutero e Calvino. Seu antigo
preceptor, Nicolas Oresme, traduzia a outra bíblia da época: Aristóteles. Oresme, Raoul de Presles, Philippe de Maizières
trabalhavam, possivelmente em esforço comum, nesses grandes livros do Sonho do Pomar [Songe du Verg(i)er] , do Sonho do
Velho Peregrino (Songe du Vieux Pèlerin), romances enciclopédicos onde todas as questões do tempo eram tratadas e que
preparavam o rebaixamento do poder espiritual e o confisco dos bens da Igreja. Foi também assim que, no século XVI, Pithou,
Passerat e alguns outros trabalharam juntos na Menipéia (Ménippée).

As despesas cresciam, o povo estava arruinado; somente a Igreja podia pagar. Era esta toda a idéia do século XIV.
Na Inglaterra, o duque de Lancaster, para apressar a coisa, aproveitou-se de Wycliff e dos Lollardos e quase derrubou o reino
com a confusão. Na França, Carlos V a preparava com uma hábil lentidão. Ela, entretanto, era premente. A aparente
restauração da França não podia enganar o rei. Ele apenas vivia de expedientes: era obrigado a pagar os juízes com as
próprias multas que estes pronunciavam, a vender a impunidade aos usurários, a se colocar nas mãos dos judeus. Conforme os
privilégios monstruosos que João vendera a estes para pagar seu resgate, os judeus estavam quites com os impostos, isentos de
qualquer jurisdição, salvo aquela de um príncipe de sangue nomeado guardião de seus privilégios (Ord. III, p. 351 e 471.
Conf. à IV – 04 de fevereiro de 1364) . Não havia cartas reais com força contra eles (Ord. III, p. 478, art. 26). Eles
prometiam não exigir nada além de quatro denários de juros semanais por libra. Mas, ao mesmo tempo, tudo o que dissessem e
jurassem contra seus devedores deveria ser tido como crível[735].

O príncipe, o protetor dos judeus, devia ajudá-los na recuperação de seus créditos, quer dizer, o rei se fazia bailio
dos judeus a fim de partilhar. O dinheiro extorquido por tais meios custava ao povo muito mais que rendia ao rei[736].

Não se podendo despojar o padre, era necessário passar entre as mãos do judeu. O judeu e o padre eram os únicos a
ter dinheiro. Não havia ainda nem produção de riqueza pela indústria, nem circulação pelo comércio. A riqueza era o tesouro;
tesouro escondido do judeu, surdamente alimentado pela usura; tesouro do padre, por demais visível nas igrejas, nos bens da
igreja.

A tentação era grande para Carlos V, mas a dificuldade era tão grande quanto. Os padres tinham sido seus mais
zelosos auxiliares contra o Inglês. Foram eles, em grande parte, que haviam entregue a Aquitânia, tal como outrora a deram a
Clóvis.
Havia dois objetos de querelas entre o poder espiritual e o temporal, o dinheiro e a jurisdição. A questão da
jurisdição entrava em grande parte naquela do dinheiro, pois a justiça pagava-se a si mesma[737].

As primeiras queixas contra o clero partem dos senhores, e não dos reis, em 1205 (‘Libertés de l’Église Gallic’., I,
III, p. 4). Os senhores, como fundadores e patronos das igrejas, estavam bem mais diretamente interessados na questão. Sob o
reinado de São Luís, eles formam uma confederação contra o clero, decidem o quanto cada um deve contribuir para sustentar
esta espécie de guerra, nomeiam representantes para prestar mão forte àqueles dentre si que seriam golpeados por sentenças
eclesiásticas (Ibid., I, II, 99). Na famosa Pragmática de São Luís (1270), ato até aqui pouco compreendido, o rei pede que as
eleições eclesiásticas sejam livres, quer dizer, deixadas à influência real e feudal[738].

Filipe o Belo teve os senhores por si em sua luta contra o Papa. Eles formaram uma nova confederação feudal que
assustou os bispos e entregou ao rei a Igreja da França. A concordância desta Igreja entregou-lhe o próprio Papado.
Entretanto, no começo e no fim de seu reinado, Filipe desferiu dois golpes de uma imparcialidade ousada: a maltôte, que
atingia os nobres e os padres, tanto quanto os burgueses, e a supressão do Templo, da cavalaria eclesiástica.

A realeza triunfante sob Filipe de Valois fez-se dar, pelo Papa, tudo aquilo que ela desejava sobre as rendas da Igreja
da França. Ela teve, inclusive, a pretensão de cobrar e receber os dízimos da cruzada de toda a cristandade. Indenizando-se
dos dízimos, regalos, etc., as igrejas procuravam aumentar os lucros de suas justiças, avançar sobre as jurisdições laicas,
senhoriais ou reais. O rei pareceu querer ministrar o remédio: no dia 22 de dezembro de 1329, teve lugar, em sua presença, no
castelo de Vincennes, uma solene discussão jurídica entre o advogado Pierre Cugnières e Pierre du Roger, arcebispo de Sens.
O primeiro sustentava os direitos do rei e dos senhores[739]. O segundo defendia aqueles do clero e falou sobre este texto:
“Deum timete; regem honorificate” (NT: Teme a Deus; honra o rei) ; e ele desdobrou esse preceito nos quatro seguintes:
“Servir a Deus devotamente; doar-Lhe largamente; honrar Seu povo devidamente; entregar-se a Ele inteiramente” (Ibid. 7).

Eu sou levado a acreditar que toda esta disputa não fosse senão uma satisfação dada pelo rei aos senhores. Ele a
finalizou dizendo que, bem ao invés de querer diminuir os privilégios da Igreja, ele antes os aumentaria[740]. Somente, ele
estabeleceu, por uma Ordenação, seu direito de regalos sobre os benefícios vacantes (1334). Dos dois advogados, aquele do
clero se tornou Papa (NT: Clemente VI); aquele do rei e dos senhores foi, diz um sério historiador, universalmente calado por
assovios: seu nome permaneceu sinônimo de mau argumentador[741]. E não foi tudo. Havia, em Notre-Dame, uma figura
grotesca de um condenado, como se via outrora de Dagoberto importunado pelos diabos; esta figura feia e de nariz achatado
foi chamada Messire Pierre du Coingnet. Toda a gente do clero, subdiáconos, sacristãos, ajudantes de sacristãos, crianças do
coro, plantavam suas velas sobre o nariz do pobre diabo ou, para apagar seus círios, batiam-lhe no rosto[742]. “Pedro do
Cantinho” teve de suportar essa vingança de sacristia por quatrocentos anos.

As igrejas estavam entre o martelo e a bigorna, entre o rei e o Papa. Quando um bispado vacante pagara ao rei
durante um ano ou mais os regalos da vacância, o novel eleito pagava ao Papa o annatum ou primeiro ano da renda[743].

Uma outra coisa da qual mais se queixavam os senhores patronos da igreja e os cônegos ou monges que concorriam
às eleições, era o que se chamava de Reservas. O Papa interrompia subitamente a eleição; ele declarava que se reservara a
nomeação para tal bispado ou qual abadia. Essas Reservas, que frequentemente resultavam num pastor italiano ou francês para
uma igreja da Inglaterra, da Alemanha, da Espanha, eram muito odiosas. Entretanto, tinham a vantagem de subtrair as grandes
sés às estúpidas influências feudais que não teriam apresentado senão sujeitos indignos, cadetes da nobreza, primos dos
senhores. Os Papas às vezes pescavam, do fundo de um convento ou da poeira das universidades, um douto e hábil clérigo
para fazê-lo bispo, arcebispo, primaz das Gálias ou do Império.

Os Papas de Avignon não apresentaram, em sua maioria, esta alta política. Pobres servidores do rei da França, eles
deixavam o Papado ir à deriva, tornar-se o que podia se tornar. Eles não viam nas Reservas senão um meio de vender
colocações, de praticar a simonia à grande. João XXII declarou afrontosamente que, por ódio à simonia, ele se reservava
todas as sedes vacantes da cristandade no primeiro ano de seu pontificado[744]. Esse filho de um sapateiro remendão de
Cahors deixou, ao morrer, um tesouro de vinte e cinco milhões de ducados. Os homens da época acreditaram que ele
encontrara a pedra filosofal (vide acima).

Bento XII estava tão espantado com o estado em que via a Igreja, as intrigas e a corrupção que o cercavam, que
preferiu deixar os benefícios vacantes; ele se reservava as nomeações e não nomeava ninguém[745]. Ele morto, a torrente
retomou seu curso. Quando da eleição do pródigo e mundano Clemente VI, assegura-se que mais de cem mil clérigos foram a
Avignon comprar os benefícios[746].
É preciso ler os dolorosos lamentos de Petrarca sobre o estado da Igreja, suas invectivas contra a Babilônia do
Ocidente. É, ao mesmo tempo, Juvenal e Jeremias. Avignon é, para Petrarca, um outro labirinto, mas sem Ariadne, sem o fio
libertador; ele aí encontra a crueldade de Minos e a infâmia do Minotauro[747]. Ele pinta com desgosto os velhos amores dos
príncipes da Igreja, esses queridinhos de cabeça branca... Mil histórias escandalosas corriam. O conto absurdo da Papisa
Joana tornou-se provável[748].

A erudita indignação de Petrarca podia inspirar alguma desconfiança. Um julgamento mais pesado para o povo era
aquele de Santa Brigite (ou Brígida da Suécia) e das duas Santas Catarina. A primeira mandou dizer pela boca do próprio
Jesus as seguintes palavras ao Papa de Avignon: “Assassino das almas, pior que Pilatos e Judas! Judas vendeu apenas a mim.
Tu, tu vendes também as almas dos meus eleitos”[749].

Os Papas que se seguiram a Clemente VI foram menos sujos, mas mais ambiciosos. Eles tornaram a Igreja
conquistadora, desolaram a Itália. Clemente comprara Avignon da rainha Joana ao absolvê-la da morte de seu marido. Seus
sucessores, com a ajuda das Companhias, retomaram todo o patrimônio de São Pedro. Esta associação do Papa com os
malfeitores ingleses e bretões levou aos píncaros o exaspero dos Italianos. A guerra se tornou atroz, recheada de ultrajes e
barbáries. Os Visconti deram aos legados papais que traziam sua excomunhão a escolha de serem afogados ou comerem a
bula. Em Milão, lançava-se os padres nos fornos acesos; em Florença, desejava-se enterrá-los vivos. Os Papas sentiram que a
Itália lhes escaparia se não partissem de Avignon.

Eles certamente passaram a não querer ficar mais nesta cidade depois de terem sido extorquidos pelas Companhias.
A humilhação e o rebaixamento da França os deixava livres para escolher sua estadia. Urbano V (1362-1370), o melhor
desses Papas, tentou se fixar em Roma. Ele para aí foi e não pôde ficar. Gregório XI (1370-1378) nela se estabeleceu e aí
morreu.

Quando da morte deste último, os Franceses tinham uma maioria segura no conclave. Entretanto, esse conclave
ocorria em Roma e os cardeais ouviam um povo furioso gritar à sua volta: “Romano lo volemo o almanco italiano” (NT:
Romano o queremos ou ao menos italiano). Dos dezesseis cardeais que participaram do conclave, não havia senão quatro
Italianos e um Espanhol, onze eram Franceses (Bulæus, IV, p. 470) . Os Franceses estavam divididos. Dois dos últimos Papas,
que eram do Limousin, tinham nomeado vários cardeais de sua província. Esses Limousenses viam que os outros Franceses os
excluíam do papado, se uniram aos Italianos e nomearam um Italiano que, de resto, acreditavam devotado à França, o calabrês
Bartolomeo Prignano (NT:Urbano VI).

Ocorreu, como na eleição de Clemente V, exatamente o contrário do que se esperava mas, desta vez, em prejuízo da
França. Urbano VI, homem de sessenta anos, até aí considerado como muito moderado, pareceu ter perdido o espírito a partir
do momento que se tornou Papa. Ele dizia que desejava reformar a Igreja, mas começava pelos cardeais, pretendendo, dentre
outras coisas, reduzi-los a ponto de terem sobre a mesa apenas um prato. Eles se safaram, declararam que a eleição fora
submetida à coação e fizeram um outro Papa. Eles escolheram um grande senhor, Roberto de Genebra, filho do conde de
Genebra, que mostrara, nas guerras da Igreja, muita audácia e ferocidade. Eles o chamaram Clemente VII, sem dúvida em
memória de Clemente VI, um dos Papas mais pródigos e mundanos que jamais desonraram a Igreja Católica. Clemente VII, de
concerto com a rainha Joana de Nápoles, contra quem Urbano VI se declarara, ele e seus cardeais tomaram a soldo uma
companhia de Bretões que rodava pela Itália. Mas esses Bretões foram derrotados por Barbiano, um bravo condottiere que
formara a primeira companhia italiana contra as companhias estrangeiras (Sismondi, ‘Rép. Ital.’, VII, p. 154). Clemente se
salvou na França, em Avignon. Eis aí dois Papas, um em Avignon e outro em Roma, se afrontando e se excomungando
mutuamente[750]. Não se podia aguardar que a França e os estados que então seguiam seu impulso (Escócia, Navarra e
Castela) se permitiriam ser tão facilmente desapossados do Papado. Carlos V reconheceu Clemente VII. Ele sem dúvida
pensou que, embora toda a Europa fosse por Urbano VI, valia mais para si ter um papa francês, uma espécie de patriarca do
qual pudesse dispor. Esta política egoísta foi-lhe amargamente reprovada. Considerou-se que todas as desgraças seguintes, a
loucura de Carlos VI e as vitórias dos Ingleses, tinham sido uma punição do céu[751].

Assegura-se que os cardeais franceses tinham inicialmente a idéia de fazer papa o próprio Carlos V. Ele teria
recusado sob o argumento de ser inválido de um braço e, portanto, não poderia celebrar a missa[752]. Um Papa Rei da França
teria unido o mundo contra si.

Foi a duras penas que o rei convenceu a Universidade a se decidir em favor de Clemente VII. As faculdades de
Direito e de Medicina eram, sem dificuldades, a favor do papa do rei. Mas aquela das artes, composta de quatro nações, não
encontrava concordância entre si. As nações Francesa e Normanda eram por Clemente VII, enquanto a Picarda e a Inglesa
exigiam a neutralidade. A Universidade, não conseguindo chegar a um voto unânime, suplicava que lhe dessem tempo (Bulæus,
IV, 566) . O rei tomou a questão para si e escreveu de Beauté-sur-Marne que possuía informações suficientes: “O papa
Clemente VII é o verdadeiro pastor da Igreja Universal... se vós levardes isto a uma recusa ou atraso, vós me desagradareis”
(Ibid., p. 568).

Carlos V bem desejou ganhar Flandres para seu papa e, por ele, a Inglaterra. Ele mandou dizer ao conde de Flandres
que Urbano falava muito mal dos Ingleses, que ele dissera, em virtude de sua conduta no que tange à Santa Sé, que os Ingleses
eram heréticos (Ibid., p. 521). Flandres e Inglaterra, no entanto, reconheceram o Papa de Roma em prejuízo daquele de
Avignon. Urbano VI já tinha a Itália por si. A Alemanha, a Hungria e Aragão abraçaram sua causa. As duas santas populares,
Catarina de Siena e Catarina da Suécia, o reconheceram, assim como o infante Pedro de Aragão, que também era considerado
um santo homem. Solicitou-se, coisa inaudita!, uma consulta ao mais famoso jurisconsulto da época sobre a eleição do Papa;
Baldo de Ubaldo (NT: Baldo degli Ubaldi) decidiu que a eleição de Urbano fora boa e válida, dizendo, com aparência
suficiente, que, se a eleição tivesse sofrido coação, os próprios cardeais coagidos não teriam retornado por si mesmos após o
tumulto e que haviam entronizado Urbano VI em plena liberdade (Ibid., p. 464).

Um acontecimento impossível de prever pusera quase toda a Cristandade em oposição à França. A fortuna zombava
da sabedoria. A rainha Joana de Nápoles, prima e aliada do rei, foi, pouco após, deposta por Urbano VI, destronada por seu
filho adotivo Carlos de Dirráquio {NT: Carlos III de Nápoles, duque de Dirráquio (Durrës, na atual Albânia)} e
estrangulada em punição de um crime que datava de trinta e cinco anos.

Toda a Europa se agitava. O movimento era geral; mas as causas infinitamente diversas. Os Lolardos da Inglaterra
pareciam pôr em perigo a igreja, a monarquia, a propriedade inclusive. Em Florença, os Ciompi faziam sua revolução
democrática. A própria França parecia escapar a Carlos V. Três províncias, as mais excêntricas, mas talvez as mais vitais, se
revoltaram.

O Languedoc explodiu primeiro. Carlos V, preocupado com o Norte e sempre olhando na direção na Inglaterra, fizera
de um de seus irmãos uma espécie de rei do Languedoc. Ele confiara esta província ao duque d’Anjou, pelo qual ele pretendia
atingir Aragão e Nápoles, enquanto seu outro irmão, o duque da Borgonha, ia ocupar Flandres. Mas a França, miseravelmente
arruinada, não era capaz de conquistas longínquas. A fiscalidade, então tão dura em todo o reino, tornou-se uma atroz tirania
no Languedoc. Esses ricos municípios do sul, que não prosperavam senão pelo comércio e pela liberdade, foram talhados sem
perdão, como se fossem um feudo do norte. O príncipe feudal não desejava nada respeitar seus privilégios. Era-lhe
necessário, o quanto antes, dinheiro para invadir a Espanha e a Itália, para reiniciar as famosas vitórias do antigo Carlos
d’Anjou.

Nîmes se sublevou (1378); mas, vendo-se só, se submeteu (‘Hist. du Languedoc’, l. XXXII, cap. 91, p. 365). O duque
d’Anjou agravou ainda mais os impostos. Ele impôs, em março de 1379, um monstruoso direito de cinco francos e dez grossas
sobre cada feudo. No mês de outubro, nova taxa de doze francos-ouro por ano, um franco por mês (Ibid., cap. 95, p. 368). Para
esta última, o pagamento era impossível. A província estava de tal forma arruinada que, em trinta anos, a população se
reduzira de cem mil famílias para trinta mil. Os cônsules de Montpellier recusaram-se a cobrar o último tributo. O povo
massacrou os agentes do duque d’Anjou. Clermont-Lodève (NT: atualmente Clermont-l’Hérault) fez a mesma coisa. Mas as
outras cidades não se mexeram. O povo de Montpellier, muito assustado, recebeu o príncipe de joelhos e aguardou o que ele
decidiria de sua sorte. A sentença foi pavorosa: duzentos cidadãos deviam ser queimados vivos, duzentos enforcados,
duzentos decapitados, mil e oitocentos marcados com a infâmia e privados de todos os seus bens. Todos os outros receberam
multas arruinantes (Ibid., cap. 96, p. 369).

Obteve-se, com muita dificuldade, que o duque d’Anjou moderasse a sentença. Carlos V sentiu a necessidade de
retirar-lhe o Languedoc. Ele despachou comissários para reformar os abusos. De resto, nas instruções que lhes deu, não há
traço de um sentimento de homem ou de rei. Ele não se mostra preocupado senão dos interesses do fisco e do domínio: “Como
temos, no mencionado país, várias terras lavráveis, vinhas, florestas, moinhos e outras heranças que nos forneciam
ordinariamente grande renda e lucro; terras essas que se tornaram desertas porque o povo foi mui diminuído pelas
mortalidades, pelas guerras e outras coisas, e que não há quem as possa ou deseje trabalhá-las, nem suportar os encargos e
tributos antigos, nós desejamos que nossos conselheiros possam colocar nossas heranças sob novos encargos, expandir e
diminuir os antigos”. Eles devem também revogar todas as doações e se informarem da conduta de todos os senescais,
capitães, vigários reais etc. (Ord. VI, p. 465 e 467).

A política estreita que aparece muito bem nessas instruções fez com que o rei cometesse um grande erro, o maior de
seu reinado. Ele armou contra si a Bretanha. Seus melhores guerreiros eram Bretões; ele os cobrira de bens; ele acreditava ter,
através dos mesmos, toda a região. Esses mercenários, entretanto, não eram a Bretanha. E mesmo eles também já não estavam
mais contentes com o rei. Este ordenara aos cavaleiros doravante pagar tudo o que deveriam pagar. Ele criara um
marechalado para reprimir suas bandidagens, prebostes que corriam o país, julgavam e enforcavam.

O rei não gostava de Clisson. Ainda que o tivesse designado, após a morte de Duguesclin, para ser o condestável, ele
teria preferido indicar o Senhor de Coucy (Froiss., VII, cap. 64, p. 309).

Um primo de Duguesclin, o bretão Sévestre Budes, que adquirira muita reputação nas guerras da Itália, foi preso, por
uma suspeita, pelo papa francês Clemente VII e entregue ao bailio de Mâcon, que o mandou matar, para grande tristeza de
Duguesclin (Ibid., p. 244). Os parentes do Bretão vieram se queixar afirmando sua inocência, ao que o rei friamente
respondeu: “Se morreu inocente, a coisa é menos deplorável para vós outros e tanto melhor para a alma dele e para vossa
honradez” (Cristina de Pisano, t. VI, p. 38).

Os Bretões eram Franceses contra a Inglaterra, mas Bretões antes de tudo. O duque deles desejava entregá-los aos
Ingleses e eles o expulsaram. O rei da França desejou reuni-los à coroa e eles expulsaram o rei.

No dia 05 de abril de 1378, Montfort se comprometera em abrir aos Ingleses o castelo de Brest. Aos 20 de junho, o
rei adiou seu comparecimento ao parlamento e então mandou condená-lo por ausência (Lobineau, ‘Hist. de Bretagne’, l. XII,
cap. 97, p. 418). O procedimento foi estranho: determinou-se o comparecimento do duque em Rennes e em Nantes, quando ele
se encontrava em Flandres; não lhe foi dado salvo-conduto; vários Pares de França não desejaram tomar parte no julgamento.
O próprio rei falou contra seu vassalo e concluiu pelo confisco. Se o ducado fosse tomado de Montfort, ele deveria retornar à
casa de Blois, conforme o tratado de Guérande que o rei garantira.

Dizer à Bretanha que, doravante, ela não seria nada além de uma mera província da França, uma dependência do
domínio, era uma coisa intrépida e, também, uma ingratidão após o que os Bretões tinham feito para expulsar o Inglês.
Evidentemente, o frio e egoísta príncipe não conhecia o povo com o qual lidava; e não podia conhecer: há ignorâncias sem
remédio, aquelas do coração.

Os Bretões, nobres e camponeses, já estavam mal dispostos. O condestável Duguesclin, em suas guerras da Bretanha,
não tratara muito bem seus compatriotas. Ele os golpeara com um focagium de vinte soldos por feudo; ele proibira as
franquias e liberdades e restabelecido a servidão da mão-morta, a qual fora abolida pelo duque (Daru, ‘Hist. de Bretagne’,
IV). O primeiro ato do governo real foi a imposição da gabela: a Bretanha se armou.

Os burgueses se armaram como os nobres. Aqueles de Rennes se associaram expressamente aos barões e juraram
viver e morrer para a defesa comum. O duque, retornando da Inglaterra, foi acolhido com júbilo por aqueles mesmos que o
haviam expulso. Ninguém mais se lembrava se ele era um Blois ou um Montfort, apenas que era o duque da Bretanha. Quando
desembarcou próximo de Saint-Malo, todos os barões e todo o povo o aguardavam na praia; vários entraram n’água e se
puseram de joelhos. Mesmo a própria Joana de Blois, a viúva de Carlos de Blois, que Montfort matara, veio felicitá-lo em
Dinan (Sismond, ‘Hist. de Fr.’, XI, 285. Lobineau, l. XII, c. 108, p. 423).

Os melhores capitães que o rei podia empregar contra a Bretanha eram os Bretões. Clisson surgiu à frente de Nantes,
mas não pôde se impedir de dizer às pessoas da cidade que fariam sabiamente se não deixassem entrar em sua cidade alguém
que fosse mais forte que elas. Duguesclin e Clisson foram encontrar um exército que o duque d’Anjou reunia. Mas, ante a
primeira aproximação de uma tropa bretã, esse exército evaporou e o duque d’Anjou viu-se obrigado a pedir uma trégua[753].

O rei via seus Bretões passarem, um após o outro, para o inimigo. Aqueles que não quiseram deixá-lo senão com sua
autorização, a obtiveram sem dificuldade; mas, na fronteira, eram detidos para serem mortos como traidores. O próprio
Duguesclin, na mira por suspeitas do rei, devolveu-lhe a espada de condestável, dizendo que partia para a Espanha porque
também era condestável de Castela. Os duques d’Anjou e de Bourbon foram mandados para acalmá-lo. Carlos V bem sentia
que nada podia fazer sem ele. Mas o velho capitão era por demais astuto para ir quebrar sua cabeça contra esta furiosa
Bretanha: era melhor permanecer rompido com o rei e ganhar tempo. Segundo toda a aparência, ele não consentiu em retomar
a espada de condestável. Foi, como amigo do duque de Bourbon e para agradá-lo, que partiu para sitiar, no castelo de Randon,
perto de Puy-en-Velay, uma Companhia que devastava a região. Aí, então, ele caiu doente e morreu [754]. Assegura-se que o
capitão da praça-forte que prometera se render em quinze dias, caso não fosse socorrido, manteve sua palavra e veio colocar
as chaves sobre o leito do morto[755]. Isto não é improvável. Duguesclin fora a honra das Companhias, o pai dos soldados;
ele fazia a fortuna destes e se arruinava para pagar seus resgates.

Os Estados da Bretanha negociavam com o rei da França, o duque com o rei da Inglaterra. Carlos V, não tendo
desejado ouvir nenhum arranjo, os Bretões deixaram vir o Inglês. Um irmão de Ricardo II, o conde de Buckingham, foi
encarregado de conduzir um exército na Bretanha, mas atravessando o reino pela Picardia, pela Champagne, o Beauce, o
Blaisois e o Maine. Carlos V os deixou passar. O duque da Borgonha em vão pediu-lhe a permissão de combater.

Duguesclin estava morto aos 13 de julho (1380). O rei morreu aos 16 de setembro. Neste mesmo dia, ele aboliu todo
tributo não consentido pelos Estados. Era voltar ao ponto donde seu reinado começara.

Morrendo, ele também recomendou reconquistar os Bretões a qualquer preço (Froissart, VII, 366). Ele já ordenara
que Duguesclin fosse enterrado em Saint-Denis, ao lado de seu túmulo. Seu fiel conselheiro, o senhor de La Rivière, o foi a
seus pés.

Este príncipe morreu jovem (44 anos) e nada conseguira terminar. Uma minoridade começava. O cisma, a guerra da
Bretanha, a revolta do Languedoc mal acalmada, a revolução de Flandres em toda a sua força era um grande embaraço para
um jovem rei de doze anos[756]. Ainda que Carlos V tivesse declarado, por uma Ordenação de 1374, que doravante os reis
seriam maiores aos quatorze anos, seu filho iria permanecer menor por um bom tempo ainda; e, na verdade, por toda a sua
vida.

Carlos V deixava duas coisas: praças bem fortificadas e dinheiro. Após ter tanto dado aos Ingleses e às Companhias,
ele encontrara meio de amealhar dezessete milhões. Ele escondera esse tesouro em Vincennes, no oco de uma larga parede.
Mas seu filho não o aproveitou.

O rei se acreditava seguro em relação aos burgueses. Ele confirmara e aumentara os privilégios de todas as cidades
que deixassem o partido inglês[757]. Ele proibira que os palácios de seus irmãos servissem de asilo aos criminosos e
submeteu esses palácios à jurisdição de um preboste. Consoante as admoestações do parlamento de Paris, ele o autorizou a
proferir suas determinações sem demora, não obstante toda as cartas reais em contrário (Ord. V, 323) . Ele permitiu aos
burgueses de Paris adquirir feudos sob o mesmo título que os nobres e portar os mesmos ornamentos dos cavaleiros. O rei
assim criava, no centro do reino, uma nobreza plebéia que devia aviltar a outra imitando-a. Todas as terras da Ilha-da-França
iriam, pouco a pouco, se encontrar em mãos burguesas, quer dizer, na dependência mais imediata do rei.

Essas vantagens distantes não contrabalançavam os males presentes. O povo não suportava mais. Os tributos eram
tanto mais pesados quanto o rei, desde o início de seu reinado, sabiamente se proibira qualquer alteração das moedas. Não sei
se a falta desta última forma de imposto não fosse mesmo lamentada; numa época onde havia pouco comércio e onde as rendas
feudais eram geralmente pagas in natura, a alteração das moedas atingia poucas pessoas e somente aquelas que podiam
perder, por exemplo, os usurários, os Judeus, os Cahorsinos, Lombardos, aqueles que faziam o banco e os negócios de Roma
ou de Avignon. Os tributos, ao contrário, não atingiam estes últimos: eles tombavam de preferência sobre o pobre.

Só os bens da Igreja podiam vir em auxílio do povo e do rei. Mas era preciso tempo antes que se ousasse tocá-los
com as mãos. Arrebatar esses bens das fundações pias, anular as últimas vontades dos fundadores cujas famílias ainda
subsistiam, despojar os monastérios que recebiam os cadetes, as jovens nobres[758], é o que ninguém teria tentado
impunemente no século XIV.

O que demonstra quanto o clero ainda tinha de poder, foi a facilidade com a qual ele expulsara os Ingleses das
cidades do sul. O rei da França, que os padres vinham de secundar tão bem, devia nisto pensar duas vezes antes de se indispor
com eles.

(1380) O cisma punha o papa de Avignon inteiramente à discrição do rei e dava-lhe, é verdade, a livre disposição
dos benefícios em toda a igreja galicana. Mas este evento colocava a França numa situação perigosíssima; ela se punha, de
alguma forma, isolada no meio da Europa e como fora do Direito Cristão.

Sem dúvida, foi muito para a realeza ter, em dois séculos, concentrado em suas mãos as duas forças da Idade Média,
a igreja e a feudalidade. As dignidades eclesiásticas foram, doravante, asseguradas aos servidores do rei, os feudos reunidos
à coroa ou tornados apanágios dos príncipes de sangue. As grandes Casas feudais, esses símbolos viventes das
provincialidades, foram se extinguindo pouco a pouco[759]. As diversidades da Idade Média se fundiam na unidade. Mas a
unidade ainda era fraca.

Se o próprio Carlos V não pôde fazer muito, ele ao menos legou à França o tipo do rei moderno que ela não conhecia.
Ele ensinou aos doidivanas de Crécy e de Poitiers o que era reflexão, paciência, perseverança. A educação devia ser longa;
eram necessárias lições. Mas, ao menos, o fim fora apontado. A França devia se encaminhar, lentamente, é verdade, para Luís
XI e para Henrique IV, para Richelieu e para Colbert.

Nas misérias do século XIV, a França começou a se conhecer melhor. Ela inicalmente soube o que não era e, assim,
soube que não desejava ser inglesa. Ao mesmo tempo, ela perdia alguma coisa do caráter religioso e cavaleiresco que a
confundira com o resto da cristandade durante a Idade Média, e ela se via, pela primeira vez, como Nação e como Prosa. Ela
atingia com Froissart, de um só golpe, a perfeição da prosa narrativa[760]. O progresso da língua é imenso de Joinville a
Froissart, quase nulo de Froissart a Comines.

Froissart é verdadeiramente a França de então: no fundo, completamente prosaico, mas cavaleiresco de forma e
gracioso no abordar. O galante capelão, “que servia madame Filipa com belas narrativas e lais de amor,” conta-nos sua
história tão indolentemente quanto cantava sua missa. Dos amigos ou dos inimigos, dos Ingleses ou dos Franceses, do bem ou
do mal, o contador trata-os igualmente. Aqueles que o acusam de parcialidade, não o conhecem verdadeiramente. Se ele
parece, algumas vezes, preferir o Inglês, é porque o Inglês foi bem sucedido[761]. Pouco lhe importa, desde que, de castelo
em castelo, de abadia em abadia, ele conte e escute belas histórias, como o vemos, em sua viagem aos Pirineus, caminhando, o
satisfeito e alegre padre, com seus quatro lebréus na coleira, que ele conduz ao conde de Foix[762].

Um livro bem menos conhecido, e sobre o qual eu me estacionaria com muito gosto, é um tratado composto para uso
do povo dos campos por ordem do rei: Le vrai régime et gouvernement des bergers et bergéres, composé par le rustique
Jehan de Brie, le bon berger {O verdadeiro regime e governo dos pastores e pastoras, composto pelo rústico (camponês)
João de Brie, o bom pastor - 1379}[763]. Neste livrinho, escrito com graça e muita doçura, tenta-se reerguer a vida dos
campos, fazer com que o paisano, desencorajado do trabalho após tantas calamidades, volte a se interessar por ele. Isto é
muito tocante. É evidente que é o rei que se faz pastor e que, sob esta veste, vem encontrar o povo jazendo entre o boi e o
asno, dar-lhe um sermão suave, encorajá-lo e tentar instruí-lo.

A propósito da educação dos rebanhos e entre as receitas do pastor e do veterinário, João encontra uma forma de
dizer algumas palavras sobre as grandes questões que então ocorriam. Os nomes de pastor e de ovelhas se prestam a mil
alusões. Sente-se em tudo, no meio desta afetação de ingenuidade rústica, a malícia dos cavaleiros de toga, sua tímida
causticidade em relação aos padres[764]. Este livro é parente próximo do Advogado Patelino e da Sátira Menipéia.

Retornemos. Havia, na ordem aparente que se admirava no reinado de Carlos V, e no sistema geral do século XIV,
algo de débil e falso. A nova religião sobre a qual tudo repousava, isto é, a Realeza, fundava-se ela própria sobre um
equívoco. Sob a influência dos juristas, a suzerania feudal se fizera monarquia romana, imperial. Os estatutos da França e de
Orléans tornaram-se os estatutos da França. O rei desnervara a feudalidade, retirara-lhe as armas das mãos; depois, vindo a
guerra, ele desejara devolvê-las. Ela ainda subsistia, esta feudalidade, cheia de orgulho e de fraqueza. Era como uma
armadura gigantesca que, embora esteja vazia, ameaça e brande a lança. Ela desabou quando foi tocada em Crécy e em
Poitiers.

Foi então necessário empregar mercenários, os soldados de aluguel, quer dizer, fazer a guerra com dinheiro. Mas este
dinheiro, onde tomá-lo? Não se ousava, ainda, despojar a Igreja e a indústria também não nascera. Carlos V, com toda sua
sabedoria política, nada podia fazer em relação a isso. No último momento, tudo lhe faltou ao mesmo tempo. Os Ingleses que
cruzaram a França em 1380 não encontraram resistência maior do que a de 1370; o rei, que não possuía mais os Bretões,
encontrava-se ainda mais fraco.

Tendo fracassado a sabedoria, tentou-se a loucura. A França se lançou, sob o reinado do jovem Carlos VI, numa
extravagante imitação da cavalaria antiga, da qual se esquecera o verdadeiro caráter e, mesmo, as formas[765]. Esta falsa
cavalaria tomou como seu herói um personagem muito pouco cavaleiresco, o famoso chefe das Companhias que libertara a
França, o hábil Duguesclin. A epopéia que se fez de seus feitos e gestos indica o suficiente que ninguém compreendera o
verdadeiro gênio do condestável de Carlos V[766].

No que melhor se imitou a cavalaria, foi na riqueza das armas e das armoarias, o luxo dos torneios. Carlos V deixara
um povo arruinado. Pediu-se a esta miséria mais que a riqueza jamais pudesse pagar. Uma vez no impossível, o que custa
continuar a pedir?

Mesma situação em toda a Europa. Mesma vertigem. O acaso deseja que a maior parte dos reinos seja entregue a
menores. A realeza, esta divindade recente, balbucia ou fala disparates. O século de Carlos o Sábio, o primeiro século da
política, mal chega em seus três quartos, que começa a delirar e torna-se louco. Uma geração de insensatos ocupa todos os
tronos. Ao glorioso Eduardo III sucede o aturdido Ricardo II; ao prudente imperador Carlos IV segue-se o bêbado Wenceslau;
ao sábio Carlos V, Carlos VI, um louco furioso. O Papa Urbano VI, D. Pedro de Castela, Giovanni Visconti, todos deram
sinais de perturbação de espírito.

A pequena sabedoria negativa que pensava ter neutralizado o grande movimento do mundo encontrava-se já ao cabo.
Ela imaginava ter tudo finalizado... e tudo recomeçava. Os filhos, que os hábeis tinham acreditado manipular por fios,
embaralhavam-se mais e mais. A contradição do mundo aumentava. Dir-se-ia que a razão divina e humana abdicara. “Deus”,
como disse Lutero, “entediava-se do jogo e jogava as cartas na mesa”.

É um momento trágico aquele quando se sente tornar-se louco, o momento onde a razão, iluminada por seu último
clarão, se vê morrer e apagar. “Ó! não permita que eu seja louco, bendito Céu”, exclama o rei Lear, “conserva-me a razão. Ó!
não! não, louco não! Eu não quero ficar louco!...”.

FIM DO TOMO TERCEIRO

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Leia também:

Joseph Fouché - O retrato de um homem político, por Stefan Zweig, tradução e publicação de Luiz Fernando Serra Moura Correia;

O País do Bom Senso, por Luiz Fernando SMC;

História da França - Tomo I - Livros I e II (até 987 d.C.), por Jules Michelet, tradução e publicação de Luiz Fernando Serra Moura Correia;
História da França - Tomo II - Livros III e IV (anos 987 - 1270), por Jules Michelet, tradução e publicação de Luiz Fernando Serra Moura Correia.

História da França - Tomo IV - Livros VII, VIII e IX (anos 1380 a 1422), por Jules Michelet, tradução e publicação de Luiz Fernando Serra Moura Correia.

Disponíveis em versão eletrônica na

http://www.amazon.com.br

[1] a fonte em inglês foi, basicamente, a tradução realizada por G. H. Smith, F.G.S, publicada em 1882 pela editora D. Appleton and Company/Nova York, tombada junto
à Universidade de Toronto e digitalizada pela organização Internet Archive – www.archive.org – com fundos da Microsoft Corporation. Como foram várias dezenas de
notas extraídas a partir desta obra, preferi fazer essa menção particular a ter de citá-la todas as vezes que a usei.
[2] (NT): Eram os restos mortais de seu pai, de seu irmão, de seu cunhado (Teobaldo, rei de Navarra que sucumbira à exaustão), da rainha Isabela de Aragão e de seu
bebê que sobreviveu apenas algumas horas após o parto, que foi a causa de sua morte. – nota tomada emprestada à tradução de G.H. Smith, F.G.S.
[3] “Et Marco li rispose: Perchè non vi falla altro che l’ira d’Iddio”... Et certo l’ira d’Iddio tosto li sopravenne. (NT: “E Marco respondeu-lhe: Porque não vos falta
nada além da ira de Deus” ... e, claro, a ira de Deus sobreveio-lhe). Giovanni Villani, c. 120, p. 320.
(NT): Ugolino é Ugolino della Gherardesca (Pisa, 1220 – Pisa, 1289), nobre e político italiano gibelino, conde de Donoratico, comandante naval, que foi um dos mais cruéis
tiranos de Pisa. É conhecido por ter passado à posteridade como modelo de herói; foi condenado, na Divina Comédia de Dante Alighieri, ao nono círculo de seu Inferno,
numa zona reservada aos que traíram a pátria ou os companheiros (ele fizera isso, em prejuízo dos próprios Gibelinos, ao abandonar uma posição estratégica em Pisa). – a
partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Ugolin_della_Gherardesca e de http://it.wikipedia.org/wiki/Ugolino_della_Gherardesca.
[4] Não se poupou senão uma criança que foi mandada para o rei de Nápoles e que morreu na prisão, na torre de Cápua; G. Villani, c. 35, anno 1270.
[5] De fato, foi exatamente o momento aproveitado pelos Pazzi para assassinar os Medicis e Olgiati para matar João Galeas Sforza.
[6] Procida era de tal forma distinguido como médico, que um nobre napolitano pediu a Carlos II ir procurá-lo na Sicília para que pudesse ser curado de uma doença.
Sism. “Rép. Ital.”, 3, 457.
(NT): trata-se de João III de Procida (Giovanni III da Procida), 1210-1298, médico, cientista e diplomata da família nobre Procida, da ilha de mesmo nome.
[7] Por exemplo:
Cur moriatur homo cui salvia crescit in horto?
Contra vim mortis non est medicamen in hortis
c. 67, ed. 1667
(NT):
Por que deve morrer o homem que sabiamente cresceu no jardim?
Por outro lado, não há medicamento contra a morte nos jardins.

[8] (NT): Obviamente que não se trata de um porto aquático, tal como o conhecemos, já que se está a falar de uma cadeia de montanhas (Pirineus). Nesta região, a
palavra “porto” significa “porta” (“por” - gascão bigorrano), no sentido de “passagem”. O Tradutor, fazendo um mea culpa, deveria ter melhor explicado, na tradução do
Tomo II (Livro III), ao falar dos portos de Paillers e de Gavarnie (puerto Gavarnía ou puerto de Bucharo).
[9] Os reis de Espanha os empregavam de preferência nos séculos XIII e XIV. Os Aragonenses se queixavam também, na mesma época, dos tesoureiros e coletores
“que eran judios”. Çurita. Anales de la Corona d’Aragon, p. 264.
[10] Eu aqui não pretendo depreciar o código das Siete Partidas; espero que meu amigo M. Rossew Saint-Hilaire nos faça logo conhecer o segundo volume de sua
História da Espanha que, impacientemente, aguardamos. Não pretendi expressar sobre as leis de Alfonso senão o julgamento mais patriótico que esclarecido da Espanha
d’antanho. É justo reconhecer, além disso, que este príncipe, culto e sábio que era, amou a língua espanhola. “Ele foi o primeiro dos reis de Espanha que ordenou que os
contratos e todos os outros atos públicos se fizessem, a partir de então, em espanhol. Ele mandou fazer uma tradução dos livros sacros em castelhano... ele abriu a porta
para a entrada de uma ignorância tão profunda das letras humanas e das outras ciências, que os eclesiásticos, tanto quanto os seculares, não mais as cultivaram, pelo
completo oblívio da língua latina”, Mariana, III, p. 188 da tradução.
[11] Foi esse Sancho quem assim respodeu às ameaças do Miramolim*: “Tenho o bolo numa mão e o bastão na outra; tu podes escolher”. Ferreras, IV, 345. Ele se
sentia suficientemente popular para negar toda isenção de impostos aos nobres e às ordens militares. Ibid. 360. Sobre a bravura de Sancho, vide Rodericus Sanctius, apud
Schottum, Hisp. Illustrata, 199.
*(NT): Miramolim: do árabe Amir al-Mu’minin, título muçulmano que pode ser traduzido como Emir dos Crentes, Príncipe dos Fiéis ou Comandante dos Fiéis (vide em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Amir_al-Mu’minin e http://fr.wikipedia.org/wiki/Commandeur_des_croyants).
[12] Crônica de São Maglório. Fabulário de Barbazan, 11, 223.
(NT): “Na Espanha e em Salvaterra/Foi seu filho tolice procurar”.
[13] “Se os súditos de nossos reis soubessem como os outros reis são duros e cruéis em relação a seus povos, eles beijariam a terra pisada por seus senhores. Se me
perguntarem: ‘Muntaner, quais favores fazem os reis de Aragão a seus súditos, mais que os outros reis?’, eu responderei, primeiramente, que fazem os nobres, prelados,
cavaleiros, cidadãos, burgueses e a gente do campo observarem a justiça e a boa-fé melhor que qualquer outro senhor da terra; qualquer um pode se tornar rico sem que
tenha a temer que algo lhe seja exigido além da razão e da justiça; e que não é assim com os outros senhores; ainda, que os Catalães e os Aragonenses possuem os
sentimentos mais elevados, pois eles não são em nada tolhidos em suas ações, e ninguém pode ser bom homem de guerra se não possuir sentimentos elevados. Seus
súditos têm ainda esta vantagem: cada um deles pode dirigir a palavra a seu senhor, tanto quanto desejar, estando bem seguro de sempre ser escutado com benevolência e
deles receber respostas satisfatórias. De outra parte, se um homem rico, um cavaleiro, um cidadão honesto, desejar casar sua filha e rogar-lhes honrar a cerimônia com
sua presença, esses senhores aí comparecerão, seja na igreja, seja em outro lugar; eles igualmente comparecerão ao enterro ou ao aniversário de qualquer homem, como
se fosse seu parente; o que, seguramente, não fazem os outros senhores, quaisquer que sejam. Além disso, nas grandes festas, eles convidam inúmeros homens corajosos
e não demonstram dificuldade de tomarem seu repasto em público; e todos os convidados aí comem, o que não ocorre em nenhum outro lugar, estou certo. Igualmente, se
homens ricos, cavaleiros, prelados, cidadãos, burgueses, trabalhadores ou outros, oferecem-lhes, como presentes, frutas, vinho, ou outras coisas, eles não farão dificuldade
para comê-los; e nos castelos, vilas, lugarejos, granjas e fazendas, eles aceitam os convites que lhes são feitos, comem aquilo que se lhes apresenta e dormem nos quartos
que lhes foram destinados; eles também vão a cavalo nas cidades, vilas, lugares, aldeias, e se mostram a seus povos; e se gente pobre, homens ou mulheres, os invocam,
eles param e escutam e ajudam como podem. Que vos diria, enfim? Eles são tão bons e tão afetuosos em relação aos seus súditos, que não se saberia tudo dizer, tanto eles
fazem; da mesma forma, seus súditos são cheios de amor por eles e não temem morrer para aumentar a honra e o poder deles; e nada pode retê-los quando é necessário
suportar o frio e o calor e correr todos os perigos”; Ramón Muntaner, I, cap. 20, p. 60.
[14] Regni Siculi antichristum. Bart. di Neocastro, ap. Muratori, XIII, 1026. Bartolomeo e Ramón Muntaner não fazem qualquer menção a Procida. Um deseja dar toda a
glória aos Sicilianos, o outro, ao rei de Aragão, D. Pedro.
[15] (NT): A última foi em 1943, quando da II Guerra Mundial, pois a Sicília era a chave para que os Aliados pudessem entrar na Itália a fim de derrotar os exércitos do
Eixo. Na operação Husky, o indomável General George S. Patton, aproveitando-se inclusive do embaraço em que caíra o Marechal Montgomery, ignorou ordens, simulou
falha de comunicação com seu aliado e varreu a ilha da Sicília com o exército americano, tendo sido acusado de travar uma “guerra pessoal”.
[16] Hugo Falcandus, ap. Muratori, VII, 252: a latinidade desse grande historiador do século XII é singularmente pura se comparada com a de Bartolomeo que, no
entanto, escreveu cem anos depois.
[17] Ἀλλ ύϖὀ ϖετρα τᾷδ᾽ ᾂσομαι, ὰγκἀς ἔχωντὐ,
Σύννομα μᾱλ᾽ ἐσορῶν τὺν Σικελὰν ὲς ἅλα
Theócrito, Idílio 8.
(NT): Que os deuses me concedam guardar minhas ovelhas sentado sob esta gruta, cerrando-te em meus braços, contemplando ao longe o mar da Sicília, e serei feliz.
(adap. de http://remacle.org/bloodwolf/poetes/falc/theocrite/oeuvre.htm#41).

[18] “Quidam Gallicus, nomine Drohettus”, Barth. de Neocastro, p. 1027.


[19] “Moriantur Gallicus”, Id.l p. 1028.
[20] “Ceulx de Palerme et de Meschines, et des autres bonnes villes, signèrent les huys de Françoys de nuyt; et quant ce vint au point du jour qu’ils purent voir entour
eux, si occirent tous ceulx qu’ils peurent trouver, et ne furent epargnés ne vieulx, ne jeunes, que tous ne fussent occis”. Chroniques de S. Denis, ed. 1575. (NT: Aqueles de
Palermo e de Messina, e de outras boas cidades, assinalaram, de noite, as casas dos Franceses; e, quando veio o dia e que puderam ver em torno de si,
mataram todos aqueles que puderam encontrar, e não foram poupados nem velhos, nem jovens, que todos não fossem mortos”).
[21] Simples tradição.
[22] Fazello assegura que Sperlinga foi a única cidade que não massacrou os Francos. Daí vem o ditado siciliano: Quod Siculis placuit, sola Sperlinga negavit (NT: O que
aos Sicilianos agradava, apenas Sperlinga negava). Fazello, p. 210, ed. 1575.
[23] Propter multarum probitatum suarum cumulum (NT: Por causa do acúmulo de suas muito boas qualidades). Barth. 1029.
[24] Villani acrescenta com uma prudência toda maquiavélica: “Onde fue, et sera sempre grande asempio a quelli, che sono et che saranno, di prendere i patti, che si
possono havere de, nimici, potendo havere la terra assediata” (NT: O que foi, e sempre será, agora e para o futuro, um grande exemplo de aceitar as condições que
se possa fazer com o inimigo, desde que se possa manter a terra em seu poder), Vill., c. 65, I, 7, p. 281-282. – O legado papal incentivava Carlos a aceitar as
condições dos habitantes: “Però chè, poi che fossino indurati, ognidi peggiorerebbono i patti; ma riavendo egli la terra, con volontà dè cittadini medesimi ogni di li potrebbe
alargare; il quale era sano et buono consiglio” (NT: Porque depois que ficassem obstinados, proporiam termos mais duros a cada dia; mas, passando ele (Carlos) a
ter a posse da terra, poderia ser capaz de, a cada dia, livrar-se daqueles com o consentimento dos próprios cidadãos; o que era um são e bom conselho), Id. c.
65, l. 7, p. 281.
[25] “Una canzonetta che dice: ‘Deh! come gli e gran pietate Delle donne di Messina, veggendole scapigliate portare pietre et calcina! Iddio li dia briga et travaglia a chi
Messina vuole guastare”. G. Villani, l. 7, c. 67, p. 283.
[26] Vide a bela narrativa de Muntaner, t. I, c. 49, p. 133 e segs.
[27] Nada de mais romanesco e, todavia, de mais verossímil, que o quadro do cronista siciliano, quando o frio Aragonês arriscou-se a descer sobre essa terra ardente,
onde tudo era paixão e perigo. Ele estava para entrar no território de Messina e já alcançara uma igreja de Nossa Senhora, antigo templo situado sobre um promontório
donde se via o mar e a fumaça longínqua das ilhas de Lípara (NT: ilhas Líparas ou Lipari em italiano, também conhecidas como ilhas Eólias). Ele não pôde se
impedir de admirar esta vista e foi acampar num vale vizinho. Era o anoitecer e já todo mundo se repousava. Um velho mendigo se aproxima e humildemente pede para
falar com o rei sobre coisas que tocavam à honra do reino. “Excelente príncipe”, ele diz, “não desdenhei escutar este homem coberto com a capa dos cuidadores de cabras
do Etna. Eu amava vosso cunhado, o rei Manfredo, de eterna memória. Proscrito e despojado por ser a favor dele, eu visitei os reinos cristãos e bárbaros. Mas eu desejava
rever a Sicília e me aventurei em voltar. Aqui vivi com os pastores, mudando de abrigo nas gargantas e nos bosques. Vós não conheceis os Sicilianos sobre os quais ireis
reinar, vós ignorais sua duplicidade. Como vos fiar, por exemplo, no Leontino {NT: da atual cidade de Lintini, Leontinoi (grego) e Leontium (latim)} Alayme e em sua
mulher Machalda, que o governa? Não sabeis que ele fora proscrito por Manfredo e trazido de volta e tornado rico por Carlos d’Anjou? Sua mulher saberá ainda melhor
voltá-lo contra vós mesmo”. – “Quem és tu, meu amigo, tu que desejas nos colocar em desconfiança de nossos novos súditos?” – “Eu sou Vitalis de Vitali. Sou de
Messina...”. – No mesmo instante, chega Machalda, vestida de amazona; ela vinha ousadamente tomar posse do jovem rei: “Senhor”, ela diz, com a vivacidade siciliana,
“eu chego por último. Todos os abrigos foram tomados e venho vos pedir a hospitalidade de uma noite”. O rei cede-lhe o aposento onde ele devia repousar. Mas não era
isso o que ela queria e, então, ela não parte. Em vão, ela diz ao camareiro do rei: “Já é hora de repousar”. E ela permanece imóvel. Então, o rei toma uma decisão: “Pois
bem”, ele diz, “conversemos até a manhã. Madame, o que mais temeis?” – “A morte de meu marido”. – “O que mais amais?” – “O que eu amo não é meu” – O rei,
assumindo um tom mais grave, relata os estranhos fenômenos que ocorreram quando de seu nascimento: ele veio ao mundo durante um tremor de terra; assim marcado
pela Providência, ele não tomou armas senão para executar o santo dever de vingar Manfredo. Machalda, então recusada, torna-se implacável inimiga do rei. “Que
agradasse ao céu”, diz ingenuamente o historiador patriota, “que ela tivesse seduzido o rei! Ela jamais teria perturbado o reino”. Barthol. Neoc., apud Muratori, XIII, 1060-
63.
[28] O que os outros não conseguiam suportar era, para eles, um regalo e passatempo... Sua aparência era estranha e selvagem e, como fossem muito escuros de pele,
magros e mal penteados, os Sicilianos foram tomados de grande admiração e preocupação, não vendo outros defensores que não eles... “Y porque i van muy negros y
magros y mal peinados” {NT: E porque vão mui escuros (negros) e magros e mal penteados}. Curita, p. 251.
(NT): Os almogávares foram “forças mercenárias de choque, formadas por infantaria ligeira, que serviram principalmente à Coroa de Aragão; foram ativos no
Mediterrâneo entre os séculos XIII e XIV. Estas tropas eram integradas mormente por oficiais catalães e aragoneses e por tropas de camponeses e pastores oriundos dos
vales pirenaicos (embora os houvesse de diversas procedência: Valencianos, Navarros, Muçulmanos e, até mesmo, Sicilianos).... combatiam a pé, com armas e bagagens
leves, geralmente com um par de lanças curtas (chamadas de azconas), uma faca longa (chamada de coltell) e, às vezes, um pequeno escudo redondo como única defesa.
Levavam a barba crescida e vestiam pobremente, unicamente um camisão curto (tanto no Verão quanto no Inverno), levavam um grosso cinturão de couro e calçavam
abarcas de couro. Além disso, sempre levavam consigo uma boa pedra de fogo, com a qual antes de entrar em batalha costumavam bater as suas armas, pelo qual estas
botavam umas enormes chispas que, unidas aos seus terríveis gritos, aterrorizavam os seus inimigos”. – extraído de http://pt.wikipedia.org/wiki/Almogávares.

[29] “Sire Dio, dapoi t’è piaciuto di farmi adversa la mia fortuna, piacciati che’l mio calare sia a petit passi”, Villani, l. 7, ch. 61, p. 278.
[30] “Cio fece per grande sagacita di guerra et per suo gran senno, conciosiacosa ch’egli era molto povero di moneta e da non potere respondere al soccorso et riparo
de’ Ciciliani... Onde timea che... non si arrendessono... per che non li sentiva constanti ne fermi... el cosi et savio suo provedimento venne bene adoperato” (NT: Ele fez
isso por sua grande sagacidade na guerra e bom senso, consciente que era muito pobre de moeda e por não poder responder ao socorro e à defesa dos
Sicilianos... donde ele temia (suspeitava) que... eles poderiam se render... percebendo que não eram constantes, nem firmes... e as coisas e seu sábio
procedimento foram bem aproveitados), Villani, c. 85, p. 296.
[31] Lo rei Carlo... come intese la novella... della presura del prense... fu multo cruccioso et disse com irato animo: Or fostil mort, porse qu’il a fali nostre mandement
(NT: O rei Carlos... como soubesse da notícia... da prisão do príncipe... ficou muito irritado e disse com ânimo irado: Ora estivesse morto, porque desobedeceu
nossa ordem), Villani, l. 7, c. 93, p. 302.
[32] Esta tradição popular não é confirmada por nenhum texto muito antigo, tanto quanto uma boa parte dos traços satíricos que seguem.
[33] (NT): a posteridade de Carlos Magno, a segunda dinastia dos monarcas franceses, gerou Carlos da Lorena, que vestia cores cinzas e pretas em virtude de um
temperamento marcado pela melancolia. – nota tomada emprestada à tradução G.H. Smith, F.G.S.
[34] Isto é exato no sentido literal. Sabe-se que Hugo Capeto jamais desejou carregar a coroa. Roberto é o primeiro dos Capetíngios que a usou.
[35] Alusão à canonização de São Luís.
[36] (NT): Luís IX (São Luís) e seu irmão Carlos d’Anjou se casaram com duas das quatro filhas do conde da Provença, Raimundo Berengário IV (Raymond Bérenger).
[37] Trata-se de Carlos de Valois (NT: segundo filho de Filipe o Ousado, rei da França que morreu ao voltar da Espanha, e irmão de Filipe o Belo. Ele foi mandado pelo
Papa Bonifácio VIII para acalmar os distúrbios em Florença e, em consequência das medidas adotadas, Dante Alighieri e seus amigos foram condenados ao exílio ou à
morte - nota tomada emprestada à tradução G.H. Smith, F.G.S.).
[38] (NT): trata-se de Carlos o Coxo, feito prisioneiro pelo almirante Rogério di Lauria. Em virtude de uma grande quantia em dinheiro, ele casou sua filha com Azzo
VIII, marquês de Ferrara (nota tomada emprestada à tradução G.H. Smith, F.G.S.).
[39] Dante, Purgatório, XX.
[40] Ordenações, I, 316.
[41] (NT): Do tributo chamado taille (talha). “Durante o feudalismo, a talha era um tributo que era pago pelos vassalos para o custeio da defesa do feudo. Consistia de
parte da produção realizada na unidade agrícola (feudo). Era a porcentagem da produção obtida do trabalho no manso servil que era para o Senhor Feudal”. – extraído do
sítio http://pt.wikipedia.org/wiki/Corveia.
[42] Dictum fuit (in parliamento) quòd prælati aut eorum officiales non possunt pœnas pecuniarias Judæis infligere nec exigere per ecclesiasticam censuram, sed solùm
modò pœnam à canone statutam, scilicet communionem fidelium sibi subtrahere {NT: Foi dito (no parlamento) que, nem os prelados, nem seus oficiais, possam, nem
infligir penas pecuniárias aos Judeus, nem compeli-los por censuras eclesiásticas, mas apenas puni-los à vista dos estatutos canônicos, subtraindo-os à
comunhão dos fiéis}, ‘Libertés de l’église gallicane’, II, 148. – Somos aqui tentados a ver uma amarga ironia da excomunhão.
(NT): “Mãos-mortas” era o nome que recebiam os bens das igrejas e das comunidades religiosas que estavam sob proteção especial do monarca. Os bispos e frades não
podiam vendê-los e, em todo caso, solicitavam o consentimento do conselho municipal. Se não fizessem assim, as dignidades eclesiásticas que tivessem procedido
incorretamente poderiam ser afastadas de seus ofícios e excomungadas. Além disso, quem adquirisse esses bens, os perderia sem o direito de reclamar contra quem os
vendeu e, em caso algum, contra a Igreja” – extraído de http://pt.wikipedia.org/wiki/Mãos-mortas.
[43] (NT): Phillippe de Beaumanoir, 1250-1296, jurisconsulto francês. Consolidou os Costumes do Beauvoisis, obra que, no século XIX, foi considerada pelo Dicionário
Universal de História e Geografia Bouillet et Chassang como a “mais preciosa do antigo Direito Francês”. Montesquieu chamou Beaumanoir de “a luz de seu tempo”. Os
Costumes do Beauvoisis podem ser lidos na BnF/Gallica: vide links em http://fr.wikipedia.org/wiki/Philippe_de_Beaumanoir_(1250-1296).
[44] Beaumanoir, cap. 49, p. 266-267.
(NT): Beaumanoir sustenta, ainda que em termos muito moderados e dúbios, que “quando o rei faz uma ordenação especialmente para seus próprios domínios, os barões,
na forma dos antigos usos e costumes, não cessam de agir em seus territórios; mas, quando a Ordenação for geral, ela deve comandar o reino inteiro e devemos acreditar
que a mesma foi produzida sob bom conselho e para o bem comum”. Em outra parte, ele diz, com mais firmeza, que “o rei é o soberano sobre todos e tem como direito a
custódia geral do reino, razão pela qual pode fazer as ordenações que desejar para o bem comum, e que o que ele ordena deve ser observado; que não há ninguém tão
grande que não possa ser trazido para a corte do rei por não cumprimento do direito, ou por falso julgamento ou por qualquer questão que afete o soberano”.
“Essas últimas palavras”, acrescenta Henry Hallam, “nos dão a pista para a solução da questão sobre a forma através da qual uma monarquia absoluta foi estabelecida na
França. Ainda que os barões pudessem ter sido muito pouco influenciados pela autoridade de um advogado como Beaumanoir, eles eram muito menos capazes de resistir à
lógica coercitiva de um tribunal judicial. Era em vão que eles negavam a obrigatoriedade das Ordenações reais dentro de seus próprios domínios quando, ao mesmo tempo,
eram obrigados a reconhecer a jurisdição do parlamento de Paris, que adotou uma visão muito diferente dos seus privilégios” (Hallam, ‘State of Europe during the
Middle Ages’, vol. I, pgs. 250,251). – esta NT foi tomada de empréstimo à tradução feita G. H. Smith, FGS, pgs. 344/345 (vide nota de rodapé nº 1 desta
tradução).

[45] Ita ut secundus regulus videretur, ad cujus nutum regni negotia gerebantur. Bern. Guidonis, Vita Clem. V, apud Baluse, 82.
[46] (NT): os Pandectas (em grego), também chamados de Digesto (latim), são uma compilação de julgamentos e pareceres de jurisconsultos romanos compondo o
Corpus Juris Civilis, do qual fazem parte as seguintes partes: Código Justiniano, Digesto (Pandectas), Institutas e as Novas.
[47] (NT): “Gruier”: guarda-florestal, sargento das matas, aquele que julga, em primeira instância, os delitos cometidos nos bosques e florestas. A palavra, segundo Borel,
vem de dru, relativa a druida; em baixo-latim é gruerius, gruarius. – fonte: “Glossaire de la langue Romane, rédigé d’après les manuscrits de la Bibliothèque
Impériale...”, Tomo I, pág. 718, Jean-Baptiste-Bonaventure Roquefort, Paris, 1808, gratuitamente disponível em Google Books.
[48] Montpellier era, ao mesmo tempo, um feudo do bispado de Maguelone. O bispo, cansado da resistência dos burgueses e do apoio que encontravam no rei da França,
vendeu todos os seus direitos a este último. Esses direitos, até aí considerados inválidos pelo rei da França, subitamente pareceram bons o suficiente para servir a despojar
o velho Jaime; Sism. VIII, 464.
[49] (NT): vide o final do Capítulo IV, Tomo I, já traduzido e publicado pelo Tradutor, quando se narra o destino das raças célticas.
[50] (NT) Llywelyn ap Gruffydd ou Llywelyn Ein Llyw Olaf (Llywelyn o Último ou, “nosso último líder”) foi o último príncipe de Gales antes que este fosse
conquistado por Eduardo I Longshanks da Inglaterra. William Wallace foi o filho de um servo do alto administrador da Escócia, James Stewart, que se tornou um
guerreiro a liderar os escoceses contra a Inglaterra de Eduardo I.
[51] (NT): o Prof. Michelet comete um erro. Wallace não era chefe dos clãs: por não ser nobre, não podia reivindicar qualquer primazia. Na verdade, ele (e Moray, outro
chefe guerreiro) chegou a romper com os chefes dos clãs após estes se renderem aos ingleses na batalha de Irvine (1297), ocasião em que se tornou um rebelde para, aí
sim, chefiar os rebeldes espalhados pela Escócia até que, novamente composto com os nobres, foi nomeado (março de 1298) “Guardião da Escócia” (alta posição para um
homem de sua origem) por Robert the Bruce. Pouco depois da sua nomeação, foi duramente derrotado na batalha de Falkirk (julho de 1298) e, segundo se narra, Robert o
ajudou a escapar com vida do campo de Falkirk. Após isso, Wallace renunciou ao título de Guardião, que passou para Robert e seu sobrinho John Comyn. Wallace, que
continuou a guerrear pela independência da Escócia ao lado de Robert, foi preso em 1304 e executado em 1305; Robert, um ano depois, tornou-se o soberano da Escócia.
(fonte: Wikipedia em inglês, francês e português sobre Wallace, Robert the Bruce, Eduardo I e links correlatos indicados nas respectivas páginas).
[52] João (Jean) Balliol, nomeado rei da Escócia por Eduardo I em 1292, contra o qual logo se rebelou. A Casa de Balliol é normanda de origem e seu nome de família
era Bailleul.
[53] “Nós possuíamos um tratado com o rei da França, de acordo com o qual fizemos de vós e de nosso ducado certas deferências a este Rei, as quais acreditávamos
ser pelo bem da paz e pela vantagem do cristianismo. Mas, por isso, nós nos tornamos culpados em relação a vós, pois que o fizemos sem vosso consentimento; sobretudo
porque estáveis bem preparados a guardar e a defender vossa terra. Todavia, nós mui vos pedimos nos ter por desculpados, pois fomos ludibriados e seduzidos nesta
conjectura. Com isso sofremos mais que qualquer outra pessoa, como poderão vos assegurar Hugues de Vères, Raimundo de Ferrers, que conduziam, em nosso nome,
esse tratado junto à corte da França. Mas, com a ajuda de Deus, nós doravante jamais faremos qualquer outra coisa de importante relativamente a esse ducado sem vosso
conselho e vosso assentimento”. Ap. Rymer, t. II, p. 644. Sismondi, VIII, 480.
[54] (NT) Filipe o Belo proibiu as guerras privadas entre os senhores feudais, o que era motivo de grande reclamação por parte de duques, condes, barões.
[55] Quis Flandriæ posset noceret, si duæ illæ civitates (Bruges e Gand) concordes inter se forent? (NT: Quem pode prejudicar Flandres se essas duas cidades não
se colocam em concórdia?). Meyer, Chron., p. 92.
[56] In Flandriâ jam indè ab initio observatum constat, neminem ibi nothum esse ex matre (NT: Em Flandres observa-se um constume de tempos antigos, que
ninguém pode ser bastardo pelo lado materno), Meyer, folio 75. O privilégio foi estendido aos homens de Bruges por Luís de Nevers: “Ele os libertou da bastardia, se o
bastardo fosse um burguês (cidadão) ou filho de burguês, sem fraude” (1331). Oudegherst, ‘Chron. de Flandres’.
[57] Eduardo em 1289 e Filipe em 1290.
[58] (NT): A maltôte era, no direito medieval, uma cobrança tributária extraordinária que incidia sobre os bens de consumo corrente (o vinho, a cerveja, a cera...), com
vistas a fazer face às despesas, elas também extraordinárias. De forma geral, servia para o financiamento de certas guerras ou para o pagamento dos trabalhos de
fortificação. Filipe o Belo tornou-se impopular ao impor a maltôte para financiar a guerra de Flandres (1292), da qual falamos: o imposto do denário por libra, exigível
tanto do comprador, quanto do vendedor, logo se verá apelidado de maltôte. Por extensão, a maltôte passa rapidamente a designar toda cobrança de impostos
extraordinários. O recurso às maltôtes perdurará até o século XVIII. – a partir do sítio da Wikipedia http://fr.wikipedia.org/wiki/Maltôte.
[59] Eu dificilmente acreditaria nesta cifra, se ela não tivesse sido afirmada, em minha presença, pelo próprio ministro que recebera essas informações. – Acrescentemos
que um dos conventos recentemente suprimidos em Madri (San Salvador) possuía dois milhões de renda e um só religioso.
[60] Eduardo I se portara ainda mais rudemente: quando da recusa do clero em pagar um imposto, ele o colocou, de alguma forma, fora da lei, atiçou os soldados contra
os padres e proibiu os juízes de receberem as queixas destes últimos (Kygthon, l. III, p. 2502. Math. Westmon, ann. 1296, p. 429, Sism. VIII, 515). – Filipe o Belo, ao
menos, o fazia com bons modos: “Como aquilo que é dado vale mais e é mais agradável a Deus e aos homens do que aquilo que é exigido, nós exortamos vossa caridade a
nos dar esta ajuda do duplo dízimo, ou a quinta parte” (‘Preuves des libertés de l’égli. gallic.’, II, 235).
[61] (NT): A bula papal Clericis Laicos tirou seu nome das primeiras palavras com as quais se inicia: “Clericis laicos infestos oppido tradit antiquitas” (“É uma
antiga tradição que os laicos sejam contrários aos clérigos”). – fonte https://es.wikipedia.org/wiki/Clericis_laicos.
[62] A ponto de haver fome. Vide o livro do cardeal de São Jorge, sobrinho de Bonifácio: ‘De Jubilæo’, in Bibl. max. Patrum, XXV, 936.
[63] (NT): “No meio do caminho de nossas vidas”.
Trata-se da primeira frase do primeiro verso do Inferno, da Divina Comédia, à qual se seguem duas outras: “Encontrei-me sozinho numa escura floresta/Tendo
perdido a verdadeira estrada”. De fato, quem nunca se sentiu assim?
[64] (NT): A “Charmettes” é uma propriedade composta de jardins e de uma casa onde morou, de 1736 a 1742, o filósofo Jean-Jacques Rousseau, situada no valedo das
Charmettes, ao lado de Chambérry, no departamento da Savóia (Savoie). Rousseau assim a descreveu: “Eu incentivei Maman (Françoise-Louise de Warens, Madame
de Warens, que se tornou sua amante e mentora, a quem Rousseau chamava de Maman, i.e., ‘Mamãe’, por ser 13 anos mais velha) a viver no campo. Uma casa
isolada pendente sobre uma valedo foi nosso asilo e foi lá que, no espaço de quatro ou cinco anos, gozei de um século de vida e de felicidade pura e plena” (trecho de seu
livro ‘Rêveries d’un promeneur solitaire’ ou “Devaneios de um caminhante solitário”). Rousseau utilizou-se dessa temporada para aprofundar seus estudos. A
propriedade se transformou em local de peregrinação para filósofos, escritores e intelectuais (um “livro de ouro” guarda suas assinaturas) e se tornou monumento histórico;
hoje, é um museu com objetos do filósofo (http://fr.wikipedia.org/wiki/Les_Charmettes).

[65] Hic longo tempore experientiam habuit curiæ, quia primo advocatus ibidem, indè factus postea notarius papæ, postea cardinalis, et indè in cardinalatu expeditor ad
casus Collegii declarandos, seu ad exteros respondendos (NT: Ele era experiente no direito, tendo sido primeiro um advogado no sacro colégio, então o notário do
Papa, então cardeal e, enquanto cardeal, assessor que estabelecia os acórdãos do Colégio, e respondendo aos estrangeiros). Muratori, XI, 1103.
[66] (NT): Richard Wagner dedicou-lhe uma ópera: Rienzi, der Letzte der Tribunen (Rienzo, o último dos Tribunos).
[67] Cùm omnis natura ad ultimum quemdam finem ordinetur, consequitur ut hominis duplex finis existat; ut sicut inter omnia entia solus incorruptiblitatem et
corruptibilitatem participat, sic... Propter quod opus fuit homini duplici directivo, secundùm duplicem finem: scilicet summo pontifice, qui secundùm revelata humanum genus
produceret ad vitam æternam; et imperatore, qui secundùm philosophica documenta genus humanum ad temporalem felicitatem dirigeret (NT: Desde que cada natureza é
ordenada para um fim específico, segue-se que o fim do homem é duplo; de modo que, de todos os seres, somente ele partilha a incorruptibilidade e a
corruptibilidade... Em razão disso, para o homem dúplice era necessário um duplo condutor, segundo o dúplice fim: o sumo pontífice para guiar o gênero
humano no caminho da revelação para a vida eterna; e o imperador para dirigir, pelas luzes da filosofia, à felicidade temporal) . Dante, ‘De Monarchiâ’, p. 78,
ed. Zatta.
[68] Dante, ‘De Monarchiâ’, t. IV, p. 2ª. O editor imprimiu no frontispício a águia do Império com esta epígrafe:
E sotto l’ombra delle sacre penne,
Governo l’mondo li di mano in mano.
Paradis, c. VI, v. 7.
(NT): “E sob a sombra da sacra pena/Governou o mundo dali, de mão em mão (sucessivamente)”.
[69] Notandum quod justitiæ maximè contrariatur cupiditas... Ubi non est quod possit optari, impossibilie est ibi cupiditatem esse... Sed monarcha non habet quod possit
optare. Sua namque juridictio terminatur Oceano solum (NT: Deve-se notar que o poder máximo é contrário à cupidez ... Onde não há o que possa ser cobiçado, é
impossível que haja aí concupiscência... Mas o monarca não tinha o que podia desejar. Seu poder deve terminar somente no Oceano) , p. 17. – Ele prova, em
seguida, que a caridade, a liberdade universal, estão na condição desta monarquia: O genus humanum, quanti procellis et jacturis quantisque naufragiis agitari te necesse
est, dum bellua multorum capitum factum, in diversa conaris, intellectu ægrotas utroque similiter et affectu... cùm per tubam sancti spiritûs tibi effletur: Ecce quàm bonum et
quâm jucundum habitare fratres in unum (NT: Ó humanidade, de quantas tempestades, naufrágios e perdas a te agitar necessitas, enquanto um monstro de muitas
cabeças te empurra em várias direções; e, de igual modo, a arte em desarmonia, tanto em pensamento quanto em sentimento... quando, com a trombeta, o
Espírito Santo é proclamado a ti: eis como é doce e suave que os irmãos vivam em união).
[70] Ele o prova: 1º. pela origem de Rômulo, descendente ao mesmo tempo de Europa e de Atlas (África): “Quem in illo duplici concursu sanguinis à quâlibet mundi parte
in unum virum, prædestinatio divina latebit? (NT: Quem, se havia um duplo concurso sanguíneo de todas as partes do mundo num único homem, não deveria
reconhecer uma predestinação divina?) ; 2º. pelos milagres que Deus fez por Roma: assim, as ancilia (escudos sagrados) de Numa, os gansos do Capitólio, etc. ; 3º.
pela bondade que Roma mostrou ao mundo ao desejar conquistá-lo, etc. Ibid. p. 27-28.
[71] Antequam essent clerici, rex Franciæ habebat custodiam regni sui, et poterat statuta facere. Dupuy, Pr., p. 178.
[72] Quod antiquitùs erat Comes et Vicemoes Tholosæ, et quia ipse erat de genere Vicecomitis, qui dictus Vicecomes dominabatur in certâ parte civitatis Tholosæ (NT:
Pois, antigamente, houve um Conde e um Visconde de Toulouse, e ele era descendente dos Viscondes, os quais Viscondes governavam uma certa parte do
estado de Toulouse) Dupuy, ibidem, 640.
[73] Quia omnes meliores homines de Tholosâ sunt parentelâ nostrâ et facient quidquid nos voluerimus (NT: Porque todos os melhores homens de Toulouse são
parentes nossos e fazem aquilo que desejamos). Ibid., p. 643.
[74] Audivit dictum Episcopum Appam. Comiti Fuxi dicentem: Faciatis pacem mecum, et vos habebitis civitatem Appam. et eritis rex, quia antiquitus solebat ibi esse
Regnum adeo nobile sicut Regnum Franciæet et posteà ego faciam quod vos eritis Comes Tholosæ, quia in civitate Tholosæ et in terrâ habeo multos amicos, valdè nobiles
et valdè potentes... (NT: Ouvira que o dito Bispo de Pamiers dissera ao Conde de Foix: ‘Fazei a paz comigo e vós tereis a cidade de Pamiers e sereis rei, pois
ali havia, antigamente, um reino tão nobre como o reino da França e, depois disso, farei com que sejais o Conde de Toulouse, eis que tenho, na cidade e na
terra de Toulouse, muitos nobres e poderosos amigos”). Ibid., 645. Vide também a 1ª testemunha, p. 633 e a 14º testemunha., p. 640.
[75] Ipse episcopus semper dilexerat comtem convenarum et totum genus suum, et specialiter quia erat ex parte una de recta linea comitis Tholosani, et quod gentes
totius terræ diligebant dictum comitem ex causa prædicta (NT: O próprio bispo sempre amara o conde de Comminges e toda a sua família, e particularmente
porque vinha de uma parte, em linha reta, do conde de Toulouse, e toda a gente da mencionada terra era afeiçoada ao dito conde por esta razão) . Ib., 17ª
testemunha, p. 642.
[76] Quibus auditis dictus comes signavit se dicens: Iste non est homo, sed diabolus. Ib. p. 644 e p. 650; testemunho do próprio conde que compreende todas as afrontas
atestadas pelos outros.
[77] Este bispo de Toulouse era detestado, em sua diocese, como Francês, como estranho à língua do país: ... quia est de linguâ quæ inimicatur linguæ nostræ ab antiquo
(NT: ... que é de língua inimiga da nossa desde antigamente), Ib., 643.
[78] Aves antiquitus fecerunt regem, ut narratur in fabulis, et fecerunt regem de quâdam ave vocatâ duc, quæ magna et inter aves jamor et pulchrior, et absolutè nihil
valet, imò est vilior avis quàm sit... Talis rex Franciæ, quod erat puchrior homo mundi, et nihil aliud scit facere nisi respicere homines. Ibid. p. 643-644.
[79] Ib., p. 633. Imitação pedantesca de uma passagem do discurso de Cícero Pro Roscio Amerino sobre o suplício do parricida.
[80] Belial ille, Petrus Flote, semividens corpore, menteque totaliter excœcatus (NT: Este Belial*, Pedro Flote, semivazio de corpo, de mente totalmente cega) . Bula
de Bonifácio aos prelados da França. Dupuy, pr. 63.
* (NT): Belial é um dos demônios mencionados na Bíblia. Ele foi criado logo após Lúcifer e incentivou a maior parte dos anjos à revolta, razão pela qual foi um dos
primeiros a cair para o inferno.
[81] Dupuy, ‘Preuves du Diff.’, p. 59. – Fuerunt litteræ ejus (papæ) in regno Franciæ coràm pluribus concrematæ, et sine honore remissi nuntii {NT: Foi a sua (do
Papa) carta, no reino da França, na presença da maior parte de todos, queimada e, sem honras, os mensageiros (núncios) foram mandados de volta} . Chron.
Rothomagense, ann. 1302; e Appendix Annualium H. Steronis Altahensis. – O manuscrito citado por Dupuy ( ‘Preuves du Diff.’, p. 59), e que só ele viu, não é, todavia,
como disse M. de Sismondi, a única autoridade para este fato (v. Sismondi, IX, 88).

[82] A carta acrescentava em nome dos nobres: “E se for assim o caso de nós, ou de alguns de nós, desejarmos sofrer, nem nos deixará sofrer o mencionado nosso Sire
o Rei, nem o povo comum do dito reino: e com grande dor e grande lamento, nós vos fazemos saber, pelo portador destas cartas, que tais coisas não devem agradar a
Deus e nem devem agradar a nenhum homem de boa-vontade, nem devem entrar no coração do homem, nem mesmo agora e nem devem ser aguardadas, com exceção
do Anticristo.... Portanto, nós vos rogamos e requeremos, tão afetuosamente quanto podemos... que as malícias evocadas sejam postas para trás e anuladas, e que desses
excessos, com os quais ele se acostumou a fazer, seja ele castigado de tal forma, que o estado da Cristandade seja e permaneça em seu bom ponto e em seu bom estado,
e que dessas coisas nos seja feito saber, pelo portador destas cartas, vossa vontade e vossa intenção: pois por isto nós o enviamos especialmente a vós e muito desejamos
que vós estejais seguros que, nem em vida, nem em morte, não desistiremos, e nem desejamos desistir, desse processo, tanto quanto o Rei nosso Sire muito o desejou... E
porque seria coisa muito longa e complicada se cada um de nós apusesse seu selo nestas presentes cartas, feitas de nosso comum assentimento, nós, Luís (Loys), filho do
Rei da França, conde (cuens) de Evreux; Roberto conde do Artois; Roberto Duque (Dux) da Borgonha; João Duque da Bretanha; Ferry Duque da Lorena; João conde de
Hainaut e da Holanda; Henrique conde de Luxemburgo; Guy conde de S. Pol; João, conde de Dreux; Hugo conde da Marche; Roberto, conde da Boulogne; Luís conde de
Nivers e de Retel; João conde d’Eu; Bernardo conde de Comminges; João conde de Aubmarle; João conde de Fores; Valeran conde do Périgord; João conde de Joigny; J.
conde d’Auxerre; Aymars de Poitiers; conde do Valenciano (Valentinois); Estennes conde de Sancerre; Renault conde de Montbeliart; Enjorrant senhor de Coucy;
Godofredo de Breban, Raul de Clermont, condestável da França, João senhor de Châteauvillain, Jordão senhor de Lille, João de Chalon senhor de Darlay, Guilherme de
Chavigny senhor de Châteauroux (Chastiau-Raoul), Ricardo senhor de Beaujeu e Amaury visconde de Narbonne, apomos a pedido, e em nome de nós, e por todos os
outros, nossos selos nestas presentes cartas. Dado em Paris, em 10 de abril, ano da graça de 1302” (NT: tradução do francês arcaico)
[83] “... Prout quidam nostrum qui ducatus, comitatus, baronias, feoda et alia membra dicti Regni tenemus” ... adessemus eidem debitis consiliis et auxilis opportunis...
Cognoscentes quod excreseunt angustiæ cum jam abhorreant laïci et prorsus effugiant consortia clericorum (NT: ... Vimos para ajudar com aconselhamento adequado
e auxílio oportuno... conscientes que as dificuldades engrossam e se multiplicam quando o clero se encolhe como os laicos).
[84] A carta é datada de março, quer dizer, antedatada: “Datum Parisiis die Martis prædicta” ( NT: Dado em Paris, no dia de Março supracitado ). E, antes, eles não
indicaram qualquer dia. Mas eles não queriam datá-la da assembléia do Rei, não tendo comparecido àquela do Papa.
[85] Et prælati dùm non habent quid pro meritis tribuant, imò retribuant, nobilibus, quorum progenitores ecclesias fundaverunt, et aliis litteratis personis, non inveniunt
servitores. Dup., ‘Preuves’, p. 69.
[86] Tricolori vestitu... Primates inter se dissidentes duos habebant colores, multitudo addidit tertium (NT: Vestidos com três cores... Os principais vestiam-se com
duas cores, a multidão acrescentou uma terceira). Meyer, ann. 1301, p. 89.
[87] Ego rata sum solam me esse Reginam; at hic sexcentas conspicio (NT: Eu sou a única a ser Rainha; mas aqui percebo seiscentas). ibid.
[88] Hodie quoque pro symbolo urbis Virgo spimento ligneo clausa, cujus in sinu Leo cum Flandriæ labaro cubat... (NT: As armas da cidade são a Virgem dentro de
uma cerca de madeira, em cujo seio descansa o Leão com o lábaro de Flandres)... Sanderus, ‘Gandav. rer.’, l. I, p. 51.
[89] Era a inscrição do sino:
Roelandt, Roelandt, als ick kleppe, dan ist brandt,
Als ick luye, dan ist storm in Vlanderlandt.
ibid. l. II, p. 115.
[90] Convenire, conferre, colloqui inter se sub crepusculum noctis multitudo (NT: Para se encontrar, para conferenciar, para colóquios entre si, sob o crepúsculo
da noite, uma multidão).
[91] Primus ausus est Gallorum obsistere tyrannidi Petrus cognomento Rex, homo plebeius, unoculus, ætate sexagenarius, opificio textor pannorum, brevi vir staturâ nec
facie admodùm liberali, animo tamen magno et feroci, consilio bonus, manu promptus, flandricâ quidem linguâ comprimis facundus, gallicæ ignarus (NT: Pedro, que foi
nomeado rei pelos Gauleses, o primeiro que se atreveu a resistir à tirania, homem plebeu, de um olho só, com a idade de sessenta anos, ofício de tecelão de lã,
de baixa estatura, nem o rosto era o de um homem livre, ânimo tanto magno quanto feroz, de bom conselho, rápido, fluente na língua flândrica que não
refreava, ignaro em francês), Meyer, p. 91.
[92] Cùmque ad campanam civitatis non auderent accedere, pelves suas pulsantes... omnem multitudinem concitârunt (NT: Não ousando forçar seu caminho até o
sino da cidade, bateram em seus caldeirões... como sinal para uma sublevação geral) . Ibid. p. 90.
[93] Primores civitatis, quique dignitate aliqua aut opibus valebant, Liliatorum sequebantur partes, formidantes Regis potentiam, suisque timentes facultatibus (NT: Os
primazes da cidade, assim como os que possuíam influência, seja pela virtude de seus ofícios ou de sua riqueza, seguiram os Lillenses, temendo o poder real,
receando por suas propriedades). Ibid., p. 91.
[94] G. Villani, l. VIII, c. 55, p. 335. Vide meu ‘Symbolique du Droit”.
[95] Vasa vinaria portâsse restibus plena, ut plebeios strangulare (NT: com barris de vinhos cheios de cordas para estrangular plebeus), Meyer, p. 92.
[96] Ut apros quidem, hoc est viros, hastis, sed sues verutis confoderent, infesta admodùm mulieribus, quas sues vocabat, ob fastum illum femineum visum à se Brugis
(NT: Como o javali, ou seja, os homens armados de lanças, a quem chamou de porcos, que fossem assassinados, assim como as suas mulheres, por causa do
fausto feminino visto na sé de Bruges), Ibid., p. 93.
[97] Oudegherst não fala da vala, sem dúvida para realçar a glória dos Flamengos. {NT: uma braça francesa, sendo pouco inferior à inglesa corresponde a 1,624 metros;
5 braças fazem 8,12 metros. vide em http://fr.wikipedia.org/wiki/Brasse_(unité_de_mesure)}.
[98] Incredibile narratu est quanto robore, quantâque ferociâ, colluctantem secum in fossis hostem exceperint, malleis ferreis plumbeisque mactaverint (NT: A história é
tão incrível quanto forte, tanto quanto feroz; lutando contra o inimigo na vala, os nossos morreram com golpes de malhos de chumbo e de ferro), Meyer, 94..
[99] Guillelmus cognomento ab Saltingâ... Tantis viribus dimicavit, ut equites 40 prostravisse, hostesque alios 1400 se jugulasse gloriatus sit. (NT: Guilherme, chamado
de por Saltinga... Com tanta força quanto uma prensa, glorificava-se por ter matado 40 cavaleiros e degolado outros 1400 do exército), Ibid, 95.
[100] Quinze dias antes da Batalha de Courtrai, o Papa proferiu, na assembléia dos cardeais, um discurso no qual a conciliação parecia o objetivo. Ele então disse, dentre
outras coisas, que, sob o reinado de Filipe Augusto, o rei da França obtivera dezoito mil libras de renda e que, agora, graças à munificência da Igreja, ele obtivera mais de
quarenta mil. Pierre Flotte, ele ainda acrescentou, é cego de corpo e de espírito, Deus assim o puniu no corpo; este homem de fel, este homem do diabo, este Aitofel, é
apoiado pelos condes do Artois e de Saint-Pol; ele falsificou ou forjou uma carta do papa; ele mandou dizer ao rei que deveria reconhecer que tem seu reino por sua causa.
O Papa acrescenta: “Eis, portanto, quarenta anos que somos doutores em Direito e que não sabemos que os dois poderes são ordenados de Deus. Quem então pode
acreditar que uma tal loucura nos tenha tomado o espírito? ... Mas não se pode negar que o rei, ou qualquer outro fiel, nos seja submisso no que concerne ao pecado...
Aquilo que o rei fez ilicitamente, nós doravante desejamos que ele o faça licitamente. A ele não recusaremos qualquer perdão. Que ele nos mande gente de bem, como o
duque da Borgonha e o conde da Bretanha; que eles digam no quê faltamos e nós nos emendaremos. Enquanto eu era cardeal, eu era Francês; depois, nós muito amamos
o rei. Sem nós, ele não teria nem um pé de sua sede real; os Ingleses e os Alemães erguer-se-iam contra ele. Nós conhecemos todos os segredos do reino; sabemos como
os Alemães, os Borguinhões e aqueles do Languedoc amam os Franceses. Amantes neminem amat vos nemo (ninguém ama a vós que não ama ninguém), como disse
Bernardo. Nossos antecessores depuseram três reis da França; após tudo o que este fez, nós o deporíamos como um pobre garoto (sicut unum garcionem), com dor
todavia, com grande tristeza, se tívessemos de chegar a esta necessidade”. (Dupuy, ‘Preuv.’, p. 77/78). – Malgrado a insolência do final, esse discurso era uma concessão
do Papa, um passo atrás.
[101] (NT): Grand-Châtelet de Paris: castelo às margens do Sena e que também abrigava uma prisão. Erguido em madeira no século IX (Carlos o Calvo), foi, no século
XII (Luís VI o Gordo) transformado em fortaleza de pedra. Foi demolido, em 1802, por ordem de Napoleão, para abertura da Praça do Châtelet (Plâce du Châtelet). Vide
em http://fr.wikipedia.org/wiki/Grand_Châtelet.
[102] Já se havia posto à frente um Normando, mestre Pierre Dubois, advogado na magistratura de Coutances, que deu contra o Papa um parecer triplamente bárbaro e
bizarro pelo estilo, pela erudição e pela lógica. Eis, em suma, este estranho panfleto do décimo-quarto século: após ter estabelecido a impossibilidade de uma supremacia
universal e refutado os pretensos exemplos dos Indianos, dos Assírios, dos Gregos e dos Romanos, ele menciona a lei de Moisés que proíbe a cobiça e o roubo. “Ora, o
Papa cobiça e rouba a suprema liberdade do Rei que é, e sempre foi, a de não estar submetido a ninguém e a de comandar todo o seu Reino sem temer controle humano.
Além disso, não se pode negar que, desde a distinção dos domínios, a usurpação das coisas possuídas, daquelas sobretudo que estão prescritas por uma posse imemorial,
não seja pecado mortal. Ora, o rei da França possui a suprema jurisdição e a imunidade do transitório, do secular, depois de mais de mil anos. Idem, o mesmo rei, desde a
época de Carlos Magno, de quem descende, e como se vê no cânon Antecessores, possui e prescreve a colação das prebendas e os frutos da guarda das igrejas, não sem
título e por ocupação, mas por doação do Papa Adriano que, com o consentimento do concílio-geral, conferiu a Carlos Magno esses direitos e muito outros
incomparavelmente maiores, a saber, que ele e seus sucessores poderiam escolher e nomear quem desejassem para papas, cardeais, patriarcas, prelados, etc... Em
acréscimo, o Papa não pode reclamar a supremacia do Reino da França senão como Sumo Pontífice: mas, se isto era realmente um direito do papado, ele teria pertencido
a São Pedro e a seus sucessores, que jamais o reclamaram. O rei da França tem a seu favor uma prescrição de mil duzentos e setenta anos. Ora, a posse centenária,
mesmo sem título, basta, de acordo com uma nova constituição do mencionado Papa, para fazer prescrever contra si e contra a igreja romana e, mesmo, contra o Império,
segundo as leis imperiais. Logo, se o Papa ou o Imperador possuíssem alguma servidão sobre o reino, o que não é verdade, o direito de ambos estaria caduco... Ainda, se o
Papa estatuísse que a prescrição não corre contra si, ela também não correrá contra os outros e sobretudo contra os príncipes, que não reconhecem superiores. Desta
forma, o Imperador de Constantinopla, que a ele deu todo seu patrimônio (sendo a doação excessiva, como aquela feita por um simples administrador dos bens do Império),
pode, como doador (ou o imperador da Alemanha, como sub-rogado em seu lugar), revogar esta doação*... E, assim, o Papado seria reduzido à sua pobreza primitiva dos
tempos anteriores a Constantino, visto que esta doação, nula de pleno direito desde o início, poderia ser revogada sem a prescrição longissimi temporis. Dupuy, p. 15-17.
*(NT): trata-se da “doação de Constantino” feita em testamento pelo mencionado Imperador, segundo a qual todas as terras do Império Romano eram doadas à Igreja
Católica (Papa Silvestre I). O documento foi provavelmente forjado no século X. Já a doação de Pepino o Breve, em 756, que possibilitou a formação dos Estados
Pontíficios (vide Tomo I, já traduzido) foi verdadeira e baseada na devoção cristã.
[103] Na subscrição, ele se faz chamar “Chevalier et vénérable professeur en Droit” (Cavaleiro e venerável professor de Direito). Ele, de fato, conseguira se fazer
cavaleiro pelo rei, em 1297. Mas não ousou, numa assembléia da nobreza, assinar este ridículo e risível título. Dupuy, ‘Preuves’, p. 56.
[104] Sedet in cathedra beati Petri mandaciorum magister, faciens se, cùm sit omnifario maleficus, Bonifacium nominari. Ibid... Nec ad ejus excusationem... quod ab
aliquibus post mortem dicti Cœlestini... cardinales in eum denuò conseusisse: cùm ejus esse conjux non potuerit quam, primo viro vivente, fide digno conjugii, constat
per adulterium poluisse. Ibid., 57... Ut sicut angelus Domini prophetæ Bállam... ocurrit gladio evaginato in viâ, sic dicto pestifero Vos evaginato gladio ocurrere velitis, ne
possit malum perficere populo quod intendit. Ibid.
[105] Eu, Guilherme de Plasian, cavaleiro, digo, adianto e afirmo que Bonifácio, que ora ocupa a sé apostólica, será provado um perfeito herético nas heresias, nos fatos
prodigiosos e nos dogmas perversos a seguir mencionados: 1º) ele não crê na imortalidade da alma; 2º) ele não crê na vida eterna, pois disse que preferiria ser cão, asno ou
qualquer outro animal a ser Francês; coisa que não diria se acreditasse que um Francês possui uma alma eterna. – Ele não crê na presença real, pois ornamenta mais
magnificamente seu trono que o altar. – Ele disse que, para humilhar o rei e os Franceses, desorganizaria o mundo inteiro. – Ele aprovou o livro de Arnaldo de Vilanova,
condenado pelo bispo e pela Universidade de Paris. – Ele mandou erguer, nas igrejas, estátuas de prata de si mesmo. – Ele possui um demônio familiar: pois ele disse que,
se todos os homens estivessem de um lado e ele, sozinho, do outro, ele não poderia estar enganado nem sobre os fatos, nem sobre o direito; e isto demonstra uma arte
diabólica. – Ele publicamente pregou que o pontífice romano não poderia cometer simonia, o que é algo herético de se dizer. – Como perfeito herético que deseja ser o
único a ter fé, ele chamou os Franceses, nação notoriamente mui cristã, de Paterinos (NT: seita herege que admitia apenas o “Pai Nosso” – Pater - como oração). –
Ele é sodomita. – Ele mandou matar vários clérigos na sua frente, dizendo ao seus guardas para não os matarem com o primeiro golpe: bata, bata, dali, dali. – Ele obrigou
os padres a violarem o sigilo da confissão... – Ele não observa nem as vigílias e nem a quaresma. – Ele deprecia o colégio dos cardeais, as ordens dos monges negros e
brancos, dos irmãos pregadores e dos menores, repetindo, com frequência, que o mundo se perdia por eles, que eram falsos, hipócritas, e que nada de bom ocorreria àquele
que se confessasse com eles. – Desejando destruir a fé, concebeu uma vetusta aversão contra o rei da França, em desprezo à fé, porque a França é, e sempre foi, o
esplendor da fé, o grande apoio e o exemplo da cristandade. – Ele sublevou contra a Casa da França a Inglaterra e a Alemanha, confirmando ao rei da Alemanha o título
de Imperador, e publicando que o fazia para destruir a soberba dos Franceses, os quais diziam não serem submissos a ninguém pelo temporal: acrescendo que mentiam
pela garganta (per gulam) e declarando que, se mesmo um anjo descesse do céu e dissesse que os Franceses não estavam submetidos nem a ele e nem ao Imperador, isto
seria um anátema. – Ele permitiu a perda da Terra Santa... desviando o dinheiro destinado a defendê-la. – Ele é publicamente reconhecido como simoníaco mas, bem mais,
a própria fonte e a base da simonia, vendendo os benefícios a quem der mais, impondo à Igreja e aos prelados a servidão e a talha para enriquecer os seus com o
patrimônio do Crucificado, para fazer marqueses, condes e barões... – Ele rompe os laços do casamento – Ele rompe os votos religiosos – Ele disse que, em pouco, faria
de todos os Franceses ou mártires ou apóstatas, etc . – Dupuy, ‘Diff.’, ‘Preuves’, p. 102-7; cf. 326-346, 350-362.
[106] O prior e o convento dos irmãos Pregadores de Montpellier tendo respondido que não poderiam aderir sem a ordem expressa de seu prior-geral, que estava em
Paris, os agentes do rei disseram que apenas desejavam saber a intenção de cada um em particular e em segredo . Os religiosos, tendo persistido, os agentes ordenaram
que saíssem do reino em três dias: eles redigiram uma declaração formal dos fatos e protestaram contra o procedimento. Dupuy, ‘Preuv.’, p. 154.
[107] Em 1295, Bonifácio os fizera imunes a qualquer jurisdição eclesiástica, sem temer o descontentamento do clero da França. Bulœus, III, p. 511. Ele não cessara de
aumentar seus privilégios. Ibid., p. 516, 545. – Quanto à Universidade, Filipe o Belo a ganhara graças a mil amabilidades. Bulœus, III, p. 542, 544. Assim, ela o apoiou em
todas as suas medidas fiscais contra o clero. Desde o começo da luta, ela se encontrava associada à sua causa pelo próprio Papa: “Universitates quæ in his culpabiles
fuerint, ecclesiastico supponimus interdicto” (NT: “Colocamos sob interdito eclesiástico todas as universidades que são culpadas desses erros”) , na forma da bula
Clericis laicos. Assim, a Universidade publicamente se declarou a favor do rei: “Appellationi Regis adhæremus supponentes nos... et universitatem nostram protectioni
divinæ et prædicti concilii generalis ac futuri veri et legitimi summo pontificis” (NT: Aderimos ao apelo do Rei e recomendamo-nos, e a nossa universidade, à
proteção divina e à decisão do retromecionado conselho-geral, e ao verdadeiro e justo futuro Sumo Pontífice). Dupuy, ‘Pr.’, p. 117-118.
[108] Quis nedùm de cognatione nostrâ, immò de totâ Campaniâ unde originem duximus, notatur hoc nomine? – Dupuy, ‘Preuves”, 166.
[109] Et volumus quod hic Achitophel iste Petrus puniatur temporaliter et spiritualiter, sed rogamus Deum quod reservet eum nobis puniendum sicut justum est. Dupuy,
‘Pr.’, p. 77.
[110] Philippus, Dei gratiâ... Guillelmo de Nogareto... plenam et liberam enore præsentium commitimus potestantem, ratum habituri et gratum, quidquid factum fuerit in
præmissis, et ea tangentibus, seu dependentibus ex eisdem... Dupuy, ‘Pr.’, 175.
[111] Ut proditionem fecerint eidem domino Guillelmo et sequacibus suis, ac trascinare fecissent per Anagniam vexillum ac insignia dicti domini Regis, favore et adjutorio
illius Bonifacii. Dupuy, ‘Pr.’, p. 175.
[112] Guillelmus prædictus asseruit dictum dominum Raynaldum (de Supino), esse benevolum, sollicitum et fidelem... tàm in vitâ ipsius Bonifacii quam in morte... et ipsum
dominum Guillelmum receptâsse tàm in vitâ quàm in morte Bonifacii prædicti. Dup, ‘Pr.’, p. 175.
[113] Pulsatâ communi campanâ, et tractatu habito, elegerunt sib capitaneum quemdam Arnulphum... Qui quidem... illis ignorantibus, domini papæ existiti capitalis
inimmicus (NT: Soando o sino da comuna e, de comum acordo, escolheram seu capitão, que se chamava Arnulfo... o qual... eles ignoravam que fosse inimigo
capital do Papa), Dupuy, ‘Pr.’, p. 194; Walsingham, ‘Hist.’, anno 1303.
[114] “Heu, me! durus est hic sermo!”. Ibidem.
[115] “Tandem Marchio, nepos papæ... reddidit se Sciarræ et capitaneo memorato, eâ conditione ut vitam ipsius et filii sui salvarent servientiumque snorum. Quibus
auditis papa flevit amarè”. Ibidem.
[116] “Da che per tradimento come Jesu Christo voglio essere preso, convienmi morire, almeno voglio morire come papa”. Et di presente si fece parare dell’amanto di
san Pietro, et con la corona di Constantino in capo, e con la chiavi e croce in mano, et posesi a sidere suso la sedia papale”. Villani, VIII, 63.
[117] “Et ust été feru deux fois d’un des chevaliers de la Colonne, n’eust été un chevalier de France qui le contesta...” (NT do francês arcaico: E ele teria sido ferido
duas vezes por um dos cavaleiros de Colonna, se um cavaleiro da França não o tivesse impedido), ‘Chron. de S. Denis’, Dupuy, ‘Pr.’, p. 191. Nicolas Gilles (1492) a isso
acrescenta: “Por duas vezes, o Papa esteve a ponto de ser morto por um daqueles cavaleiros de Colonna, se não tivessem sido impedidos: todavia, este bateu com a mão
calçada de uma manopla de ferro no rosto do Papa até que houvesse uma grande efusão de sangue”, ap. Dup., ‘Pr.’, p. 199.
[118] Nogaret o ameaçara de conduzi-lo atado e garroteado até Lyon, onde ele seria julgado e deposto pelo concílio geral. Villani, VIII, c. 63, ap. Dupuy, ‘Pr.’, p. 187.
[119] “Tunc populus fecit papam deportari in magnam plateam, ubi papa lacrymando populo prædicavit, inter omnia gratias agens Duo et populo Anagniæ de vita sua.
Tandem in fine sermonis dixit: Boni homines et mulieres, constat vobis qualiter inimici mei venerunt et abstulerunt omnia bona mea, et non tantum mea, sed et omnia bona
Ecclesiæ, et me ita pauperem sicut Job fuerat dimiserunt. Propter quod dico vobis veraciter, quod nihil habeo ad comedendum vel bibendum, et jejunus remansi usque ad
præsens. Et si sit aliqua bona mulier quæ me velit de sua juvare eleemosyna, in pane vel vino; et si vinum non habuerit, de aqua permodica, dabo ei benedictionem Dei et
meam... Tunc omnes hæc ex ore papæ clamabant: ‘Vivas, Pater sancte’. Et nunc cerneres mulieres currere certatim ad palatium, ad offerendum sibi panem, vinum vel
aquam... Et cum non invenirentur vasa ad capiendum allata, fundebant vinum et aquam in arca cameræ papæ in magna quantitate. Et tunc potuit quisque ingredi et cum
papa loqui, sicut cum alio paupere”. Walsingh, apud Dupuy, ‘Pr.’, 196.

[120] Dupuy, ‘Preuves’, p. 5. Walsingham, que escreveu sob uma influência contrária, exagera mais o crime dos inimigos de Bonifácio. Segundo ele, Colonna, Supino e o
senescal do rei da França, tendo aprisionado o Papa, jogaram-lhe sobre um cavalo sem freios, o rosto virado para a cauda, e o fizeram correr até o último fôlego; depois,
eles o teriam feito morrer de fome sem o povo de Anagni. Walsing. apud Dup., ‘Preuv.’, p. 195.
[121] ... Per lo qual non temesti torre a inganno
La bella Donna e di poi farne strazio?
Inferno, c. XIX.
[122] A forma deste ato é bizarra; a cada título de acusação, há um elogio à corte de Roma. Assim: “os Santos Padres tinham o costume de não entesourar; eles
distribuíam aos pobres os bens das igrejas. Bonifácio, muito ao contrário, etc...”. É a forma invariável de cada artigo. Podia-se duvidar se era mui seriamente que o rei
atribuía a um só papa todos os abusos do papado. Dupuy, ‘Preuves’, p. 209-210.
[123] “A vós, mui nobre príncipe, nosso Senhor e, pela graça de Deus, Rei da França, suplica e requer o povo de vosso reino, pois é necessário que assim se faça, que
vós guardeis a soberana imunidade de vosso reino, que é aquela pela qual vós não reconheceis soberano temporal na terra, senão Deus, e que ordeneis declarar que o papa
Bonifácio errou manifestamente e praticou pecado mortal, notoriamente em vos remetendo bulas nas quais afirmava ser vosso soberano temporal... Idem... que deve-se
ter o dito Papa por herege... Pode-se provar, com viva força, sem que ninguém possa com razão contestar, que o Papa jamais teve senhoria temporal sobre vós... Quando
Deus, o Pai, criou o céu e os quatro elementos, tendo formado Adão e Eva, Ele lhes disse e à sua geração: Quod calcaverit per tuus, tuum erit... (NT: O que pisares
com teus pés, a ti será...). Quer dizer que Ele desejava que cada homem fosse o senhor daquilo que viesse a ocupar de terra. Assim, repartiram os filhos de Adão a terra e
dela foram senhores por três mil anos e mais, antes do tempo de Melquisedeque, que foi o primeiro Sacerdote que foi Rei, como diz a história: mas ele não foi Rei de todo
mundo; e a gente, obecedendo-lhe como Rei pelo temporal, e não como Sacerdote, ele foi tanto Rei quanto Sacerdote. Após sua morte, decorreu muito tempo, 600 anos ou
mais, antes que algum outro fosse sacerdote. E Deus Pai, que deu a Lei a Moisés, o constituiu Príncipe de Seu povo de Israel e ordenou-lhe que fizesse de Aarão, seu
irmão, Sumo-Sacerdote e seu filho, após ele. E Moisés nomeou e constituiu quando devia morrer, segundo o ordem de Deus, a senhoria do temporal não ao Sumo-
Sacerdote seu irmão, mas a Josué, sem oposição de Aarão e de seu filho, após este: eles protegeram o tabernáculo... e se ajudaram na defesa do reino temporal... Deus,
que sabe todas as coisas presentes e a virem, ordenou a Josué, seu Príncipe, que partilhasse a terra entre essas onze linhagens; e que a linhagem dos Sacerdotes tivesse,
ao invés da sua parte, a décima parte e os primeiros frutos de tudo, e que permanecessem sem terra, a fim de que mais favoravelmente pudessem servir a Deus e orar por
aquele povo. E, então, quando esse povo de Israel pediu um Rei a Nosso Senhor, ou fê-lo ser pedido pelo profeta Samuel, Ele não escolheu por soberano o Sacerdote, mas
Saul, que ultrapassava todo o povo em tudo, em cabeça e ombros (alusão a Filipe o Belo?). De forma que, em Jerusalém, não havia um Rei que submetesse o povo de
Deus e que fosse Sacerdote, mas eles tinham um rei e um sumo-sacerdote: distintos um do outro, e um tinha muito a fazer para governar o povo nas coisas temporais e o
outro nas questões espirituais, e todos os sacerdotes eram obedientes aos reis nas questões mundanas. Depois disso, Nosso Senhor Jesus Cristo foi Sumo-Sacerdote e não
encontramos nada escrito que diga que Ele tivesse poderes temporais... Depois Dele, São Pedro... Grande abominação foi ouvir que este Bonifácio, em relação ao que
Deus disse a São Pedro (“o que amarrares na terra, estará amarrado no céu”), tenha entendido esta palavra de espiritualidade perversamente, como um Búlgaro
(herético), para as coisas temporais. Grande necessidade devia existir para que ele conhecesse o árabe, o caldeu, o grego, o hebreu e todas as outras línguas das quais
muitos Cristãos, que não pensam como a Igreja de Roma,... Vós, nobre rei... defensor da fé, destruidor dos Búlgaros, podeis, e deveis, e estais obrigado a requerer e a
procurar que o dito Bonifácio seja aprisionado e julgado como herege e punido na forma que poderá e deverá se fazer após sua morte”. Dupuy, ‘Différ.’, p. 214-218. (NT:
a partir do francês arcaico).
[124] Ou seja, a primeira colheita. Sism. Fr. IX, 147. Idem, ‘Rép. Ital.’, 228. Villani, l. VIII, c. 80, p. 416, etc. (NT: no original, “figues-fleurs”).
[125] Este terrível ano de 1303 foi caracterizado pelo silêncio dos registro do Parlamento. Em 1304, nele lê-se: “Anno præcedente propter guerram Flandriæ non fuit
parliamentum” (NT: No ano anterior, em virtude da guerra de Flandres, não houve parlamento). Olim, III, folio CVII. Archives du Royaume, Section Judiciaire.
[126] Baillet estabeleceu uma comparação justa e picante entre as turbulências de Filipe o Belo e Luís XIV com a Santa Sé: “Tanto um quando o outro diferendo
ocorreram sob três Papas, sendo que o primeiro, que viu nascer o diferendo, morreu no auge da querela (Bonifácio VIII e Inocente XI). O segundo Papa (Bento XI,
sucessor de Bonifácio e Alexandre VIII, sucessor de Inocente), tendo recebido alguma submissão da parte da França, acomodou-se e usou de dissimulação para salvar as
pretensões da corte de Roma. O terceiro Papa (Clemente V e Inocente XII) terminou toda a questão. Da parte da França, não houve, em cada turbulência, senão um rei
(Filpe o Belo e Luís XIV). Um bispo de Pamiers parece ter dado ocasião às querelas, tanto num, quanto noutro diferendo. O direito de regalo entrou em ambos. Houve,
nos dois diferendos, um apelo ao futuro concílio... A afeição dos membros da igreja galicana por seu rei foi também quase igual. O clero, as universidades, os monges e os
Mendicantes, lançaram-se por todos os lugares, no interesse do rei, e aderiram ao chamado para o concílio. Houve excomunhão dos embaixadores e ameaças para seus
senhores. Os judeus expulsos do reino por Filipe o Belo e a destruição dos Templários parecem fornecer também alguma relação com a extirpação dos Huguenotes e a
destruição das freiras da Enfance” (Baillet, ‘Hist. des démêlés etc.’).
[127] Era o cometa de Halley que reaparece a intervalos de 75 a 76 anos. Presume-se que ele apareceu, pela primeira vez, no nascimento de Mitrídates, 130 anos antes
da era cristã. Justino (lib. 37) diz que, durante 80 dias, ele quase eclipsava o Sol. Ele reapareceu em 339 e em 550, época da tomada de Roma por Totila. Em 1305, ele
tinha um brilho extraordinário; em 1456, ele arrastava uma cauda que preenchia dois terços do intervalo entre o horizonte e o zênite; em 1682, a cauda ainda possuía 30
graus; em 1750, ele parecia não chamar a atenção senão dos astrônomos. Estes fatos parecem estabelecer que os cometas vão se enfraquecendo. Aquele de Halley
reapareceu em outubro de 1835. ‘Annuaire du Bureau des longitudes pour 1835’. Vide também uma notícia sobre este cometa, por M. de Pontécoulant.
{NT: O Autor se esqueceu de mencionar que o cometa Halley passou na Terra em 1066, ano da conquista Normanda da Inglatera, tendo sido observado por Guilherme o
Conquistador e bordado na belíssima e impressionante Tapeçaria de Bayeux (vide em http://fr.wikipedia.org/wiki/1P/Halley). Em 1986, a humanidade se decepcionou
com o evento da passagem do cometa: nada mais que um singelo ponto luminoso. Culpou-se a poluição luminosa, a poluição atmosférica e a interação do cometa com a
radição solar. Mas o fato é que o cometa está, realmente, se afastando da Terra. O Tradutor, que também se decepcionou em 1986, espera conseguir vê-lo novamente em
2061/62, no gozo de excelente saúde. A propósito: caso se queira enxergar algum simbolismo místico-escatológico na passagem do Halley, há de se observar que, a partir
de fevereiro de 1986, foram plantadas as sementes (Perestroika e Glasnost), no 27º Congresso do Partido Comunista da União Soviética, que frutificaram na queda do
Muro de Berlim (1989), na reunificação da Alemanha (1990) e no esfacelamento da Cortina de Ferro, da União Soviética, do Pacto de Varsóvia e do homicida regime
comunista (1989-1991)}.
[128] Carta de Cristóvão Colombo a Ferdinando e Isabela, após sua quarta viagem. Navarette, ‘Histoire’, t. III, p. 152.
[129] Filipe o Belo emprega durante todo o seu reinado, como ministros, os dois banqueiros florentinos, Biccio e Musciato, filhos de Guido Franzesi. Sism. ‘Hist. des
Franç.’, VIII, 420.
[130] Αφ’ οὑ γὺρ ὁ Πλοῦτος οῢτος ἢρξατο βλέπειν,
Απόλωλ’ ὑπό λῑμον... Aristoph., Plutus, v. 1174. Vide, também, os versos 129, 133, 1152 e 1168-9.
[131] Cada uma das grandes revoluções do mundo é também a época das grandes aparições do ouro. Os Focéios o fazem sair de Delfos, Alexandre de Persépolis;
Roma o tira das mãos do último sucessor de Alexandre; Cortez o arrebata da América. Cada um desses momentos é marcado por uma mudança súbita, não somente nos
preços dos víveres, mas também nas idéias e nos costumes. Mas qualquer que seja a violência com a qual o ouro seja arrastado na direção da Europa, ele também sofre
com outras forças atrativas. Roma pagava-lhe, pelos tributos de luxo, mais que conseguia obter pelo fisco. Em nossos dias, a Ásia oriental, não desejando senão ouro em
troca de suas mercadorias, o ouro que a Inglaterra bombeia da Europa ou da América vai, pouco a pouco, se enterrar na Ásia; as piastras americanas fundidas em luíses,
em napoleões, em libras esterlinas, têm, por destino último, dourar os pagodes e os ídolos da China e do Japão. Vide o artigo de M. Ampère sobre M. Abel Rémusat,
Revue des deux mondes, 1833.
[132] O objetivo último da alquimia não era tanto encontrar o ouro senão obter o ouro puro, o ouro potável, a bebida da imortalidade. Contava-se a maravilhosa história
de um vaqueiro da Sicília, ao tempo do rei Guilherme, que, tendo encontrado na terra um frasco de ouro, bebeu o líquido nele contido e recuperou a juventude. Roger
Bacon, ‘Opus majus’, p. 469.
[133] (NT) Raimundo Lúlio (c. 1232 – 1315), “foi o mais importante escritor, filósofo, poeta, missionário e teólogo da língua catalã. Foi um prolífico autor também em
árabe e latim, bem como em langue d'oc (occitano). Foi discípulo do renomado médico, alquimista e astrólogo Arnaldo de Vilanova e ficou conhecido como Doctor
Illuminatus, embora não seja um dos 33 Doutores da Igreja Católica. É beato da Igreja Católica”. Nicolas Flamel (1330 ou 1340 – 1418) “foi um escrivão, copista e
vendedor de sucesso francês que ganhou fama de alquimista após seus supostos trabalhos de criação da pedra filosofal. Casado com Dame Perenelle Flamel, teria,
segundo a lenda, fabricado a pedra filosofal, o elixir da longa vida e realizado a transmutação de metais em ouro por meio de um livro misterioso. Flamel e sua esposa eram
católicos devotos. E, com o passar do tempo, ambos tornaram-se conhecidos pela riqueza e pela filantropia que realizavam, assim como pelas múltiplas interpretações que
davam à alquimia da época. Em português também é referido como Nicolau Flamel”. – extraído dos sítios respectivos a partir de www.pt.wikipedia.org.
[134] Alguns se vangloriaram de jamais terem soprado para nada. Raimundo Lúlio, em suas tradições, passa na Inglaterra e, para encorajar o rei à cruzada, fabrica-lhe,
na Torre de Londres, seis milhões de ouro que foram cunhados em moedas de Nobre Rosa, que são ainda hoje chamadas de “Nobres de Raimundo” (NT: o ‘nobre’foi a
primeira moeda inglesa de ouro produzida em quantidade; o Nobre Rosa ou Noble Rose foi assim chamado para se distinguir das antigas moedas, eis que a
rosa era estampada nos dois lados – vide páginas a seguir: http://en.wikipedia.org/wiki/Noble_(English_coin) e
http://theartoftransformations.wordpress.com/2012/01/14/rose-nobles) – É dito, no Ultimatum Testamentum, escrito em seu nome, que, em uma única vez, ele converteu
em ouro 50 mil libras de mercúrio, de chumbo e de estanho. – O Papa João XXII, a quem Pagi atribui um tratado sobre a Arte Transmutatória, dizia que ele transmutara,
em Avignon, 200 lingotes pesando, cada um, um quintal, ou seja, 20 mil libras de ouro. Seria uma maneira de dar conta das enormes riquezas guardadas nas suas caves? –
De resto, eles foram obrigados a concordar entre si que este ouro, que obtiveram por quintais, do ouro só tinha a cor.
[135] Dizia-se que, na usura, os judeus não faziam senão imitar os Lombardos, seus predecessores. Muratori, ‘Antiquit.’, VI, 371.
[136] Em Toulouse, eles eram esbofeteados três vezes por ano para puni-los por terem, outrora, entregue a cidade aos Sarracenos; sob o reinado de Carlos o Calvo, eles
reclamaram inutilmente. – Em Béziers, eram caçados a pedradas durante toda a Semana Santa. Em 1160, eles compraram imunidade contra a tradição (V. Castel,
‘Mémoires du Languedoc’, l. III, p. 523). – Eles começaram, no reinado de Filipe Augusto, a exibir a rodela amarela e o Concílio de Latrão dela fez uma obrigação para
todos os judeus da cristandade (cânon 68).
[137] (NT): Sequin é uma antiga moeda veneziana. “Os sequins de Shylock” se referem ao judeu usurário Shylock da peça “O mercador de Veneza”, de W.
Shaekespeare, célebre por ter emprestado dinheiro a Antônio, o qual lhe deu por garantia uma libra de sua própria carne; como Antônio não conseguiu pagar, Shylock
exigiu, por vingança, a libra de carne, já que Antônio previamente o insultara e cuspira-lhe.
[138] Patiens, quia æternus... (NT: Paciência, ainda que eterna...). – Era o costume ao qual os judeus se atinham toda vez que mudava o Papa e a ele apresentavam
sua lei. Seria uma homenagem ou uma reprovação da velha lei à nova, da mãe à filha?... – “No dia de sua coroação, o Papa João XXIII cavalgou com sua mitra papal, de
rua em rua, na cidade de Boulogne-la-Grasse, fazendo o sinal da cruz até à rua onde moravam os judeus, os quais ofereceram, por escrito, sua lei, a qual o Papa, de sua
própria mão, pegou e recebeu; e então, ele a olhou e logo a jogou para trás de si, dizendo: “Vossa lei é boa, mas aquela nossa é melhor”. E ele partiu de lá, os judeus o
seguiam presunçosamente para confundi-lo e todo o manto de seu cavalo foi rasgado; e o Papa lançava, por todas as ruas pelas quais passava, moedas, a saber, denários,
que se chamam quatrinos e malhas (maille) de Florença; e havia, à sua frente e às suas costas, duzentos homens em armas, e cada um portava em mãos uma massa de
couro com a qual batiam nos judeus de uma forma tal, que era um grande júbilo de ver”. Monstrelet, II, 315, ann. 1409.
[139] Eu lia, em outubro de 1834, num jornal inglês: “Hoje, poucos negócios na Bolsa; é dia feriado para os judeus”. – Mas eles não possuem apenas a superioridade da
riqueza. Seríamos tentados a conceder-lhes uma outra, quando vemos que a maioria dos homens que hoje fazem a honra da Alemanha é de judeus conversos.
[140] Shakespeare, The Merchant of Venice , ato 1, cena 3: “Let the forfeit be nominated for an equal pound of your fair flesh, to be cut and taken, in what part of
your body pleaseth me”. – Sir Thomas Mungo adquiriu em Calcutá, há trinta anos, um manuscrito no qual se encontra a história original da libra de carne etc. Somente
que, no lugar de um cristão, é um muçulmano que o judeu deseja desmembrar. Vide Asiatic Journal.
(NT): a cláusula in partes secanto (literalmente o corte de partes do corpo) se encontra no antigo Direito Romano, na Lei das XII Tábuas, foi reproduzido no Código
Justiniano e estipulava que, após trinta dias do vencimento de uma dívida, o credor podia exigir um pedaço do corpo do devedor. É provável que a expressão “dívida
escorchante” venha daí (o vetusto verbo “escorchar”, dentre outras acepções, significa “ferir, estropiar, esfolar, tirar a casca”). Vide os interessantes artigos de Harry
Dondorp (Partes Secanto – Aulus Gellius and the Glossators), Universidade Livre de Amsterdam, em http://local.droit.ulg.ac.be/sa/rida/file/2010/10.Dondorp.pdf e de
Geoffrey MacCormack, (Partes Secanto), Aberdeen/Escócia, em http://heinonline.org/HOL/LandingPage?handle=hein.journals/tijvrec36&div=31&id=&page=
[141] G. Villani, l. VIII, c. 80, p. 417. – A opinião da época está bem representada nos versos burlescos citados por Walsingham:
Ecclesiæ navis titubat, regni quia clavis,
Errat Rex, Papa, facti sunt unica cappa.
Hoc faciunt do des, Pilatus hic, alter Herodes.
Walsingham, p. 456, ann. 1306.
{NT: A nave (barca) da Igreja titubeia, pois a chave do Reino vagueia,/Confundidos o Rei e o Papa, sob um único capuz./Fazendo (brincando) de “agora eu, agora tu”, um
Pilatos, o outro Herodes}.
[142] (NT): Clemente V foi o nome pontifício escolhido pelo arcebispo Bertrand.
[143] (NT): O “direito de hospitalidade” ou de “abrigo” (droit de gîte) era o direito do rei da França ou do senhor feudal de se fazer abrigar com seu cortejo quando se
deslocava. O “direito de provisão” (droit de pouvoierie) era o direito que o senhor feudal tinha de tomar ou requisitar alimentos e bens necessários à sua manutenção.
[144] (NT): Empregando-se o Google Maps disponível em maps.google.com.br, nota-se que a rota do Papa Clemente subia para depois descer, totalizando, hoje, 751
Km. (automóvel) ou 684 Km. (caminhada). Se o santo padre tivesse seguido uma reta, teria poupado, respectivamente, 202 e 173 Km, o que não é pouco, sobretudo
naquela época de péssimas estradas e rotas e locomoção animal.
[145] Essas palavras são sinônimas na língua da época.
[146] Contin. G. de Nangis, ad annum 1305.
(NT): Em muitas paróquias da França, na época do Antigo Regime, o dízimo não era percebido diretamente pelo cura, mas por decimistas chamados curas primitivos: estes
últimos entregavam o resultado de sua coleta ao cura, reservando-se, porém, uma parte deste dízimo, o qual era chamado de “porção côngrua” (portion congrue) que,
como indica seu nome de origem, deve permitir ao padre viver razoavelmente. Na linguagem corrente, i.e., não católica, a “porção côngrua” significa “uma parte muito
pequena”, indicando que alguém tomou a porção maior.
[147] (NT): Ascendente do famoso bispo, político e diplomata Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord, da Casa de Talleyrand-Périgord (1226 a 1968). Nas palavras de
Karl Marx, Talleyrand foi um dos três deuses que governaram a Europa do século XIX (ao lado de Metternich e Bismarck).
[148] Baluze, Acta vet. ad Pap. Av. , p. 75-6: ... Quædam præparatoria sumeré, et postmodùm purgationem accipere, quæ secundùm prædictorum physicorum judicium,
auctore Domino, valè utilis nobis erit.
[149] O Cercado do Templo (Coulture du Temple ), contíguo àquele de Saint-Gervais, compreendia quase toda a propriedade dos Templários, que se estendia ao longo
da rua do Templo (rue du Temple), desde a rua Santa Cruz (rue Sainte-Croix) ou cercanias da rua da Vidraria (rue de la Verrerie) até além dos muros, dos fossos e da
porta do Templo. Sauval, I, 72.
[150] (NT): a Torre dos Templários foi demolida, de 1808 a 1810, por ordem de Napoleão, que temia dela fazer um local de peregrinação para os monarquistas, uma vez
que serviu de prisão para Luís XVI, sua mulher Maria Antonieta e seus dois filhos, Maria Teresa e o delfim Luís Carlos de França (proclamado rei Luís XVII, após o
guilhotinamento de seu pai). O delfim morreu devorado pelas sarnas e pela tuberculose neste local: ele tinha dez anos de idade.
[151] (NT): Ordem da Casa de Santa Maria dos Teutônicos (Ordo Domus Sanctæ Mariæ Teutonicorum), mais conhecida sob o nome de Ordem dos Cavaleiros
Teutônicos (Deutscher Ritterorden ou Deutschritter-Orden), Ordem Teutônica ou Casa dos Cavaleiros do Hospital de Santa Maria dos Teutônicos em Jerusalém ( Haus
der Ritter des Hospitals Sankt Marien der Deutschen zu Jerusalem), ordem militar cristã surgida em 1191 e existente até hoje – vide
http://fr.wikipedia.org/wiki/Ordre_Teutonique (em francês) e http://pt.wikipedia.org/wiki/Ordem_Teutônica (em português).
[152] São Bernardo, Exortação ao exército do Templo (Exhort. ad milites Templi), I, 544-560).
(NT): Non nobis, Domine, non nobis, sed nomini Tuo da gloriam (Não por nós, Senhor, não por nós, mas para a glória do Teu nome): era o lema dos Templários.
[153] Vita est militia super terram (NT: A vida é uma guerra sobre a terra).
[154] (NT): Ordem de São João de Jerusalém, cuja origem remonta ao século XI, mais conhecida sob o nome de Ordem Hospitalária de São João de Jerusalém
(Ordo Hospitalis sancti Johannis Ierosolimitani) ou “A Religião” e, ainda, “Ordem do Hospital”, “Ordem Hospitalária” ou, mais simplesmente “Os Hospitalários”. Ainda
hoje existe sob o nome “Ordem de São João de Jerusalém em Malta ” ou, mais usualmente, “Ordem de Malta”. – vide, em francês, o sítio
http://fr.wikipedia.org/wiki/Ordre_de_Saint-Jean_de_Jérusalem.
[155] Vide, mais abaixo, a carta do Grão-Mestre Jacques de Molay.
[156] “Sictu mater infantem”. Ibidem, Dupuy, ‘Preuves’, p. 179.
[157] Vide mais à frente os motivos que nos decidiram a olhar este ponto como fora de dúvidas. – O século XIV provavelmente não via senão uma singularidade
suspeita na fidelidade dos Templários às antigas tradições simbólicas da Igreja, por exemplo, na sua predileção pelo número três: interrogava-se três vezes o recipiendário
antes de introduzi-lo no capítulo. Ele pedia, por três vezes, pão, água e ser admitido à sociedade da Ordem. Ele fazia três votos. Os cavaleiros observavam três grandes
jejuns. Eles comungavam três vezes por ano. A esmola se dava, em todas as casas da Ordem, três vezes por semana. Cada um dos cavaleiros deveria ter três cavalos. A
missa lhes era dita três vezes por semana. Eles comiam carne três vezes na semana, somente. Nos dias de fausto, podia-se servir-lhes três pratos diferentes. Eles
adoravam solenemente a cruz em três épocas diferentes do ano. Eles juravam não fugir na presença de três inimigos. Flagelava-se por três vezes, em pleno capítulo,
aqueles que haviam merecido esta correção etc. etc. etc. Mesma observação no que tange às acusações das quais foram objeto: reprovou-se-lhes por negarem três vezes,
por cuspirem três vezes sobre a cruz. Ter abnegabant, et horribili crudelitate ter in faciem spuebant ejus. (“Circul.” de Filipe o Belo, de 14 de setembro de 1307). “
Ele mandou negar por três vezes o profeta e por três vezes escarrar na cruz” (‘Instruction de l’inquisiteur Guillaume de Paris’, Rayn, p. 4),
[158] Em alguns documentos ingleses, a Ordem do Templo é chamada de Militia Templi Salomonis ou Companhia do Templo de Salomão (manuscrito Bibliothecæ
Cottonianæ et Bodleianæ). Eles são também chamados Fratres Militiæ Salomonis (Companhia dos Irmãos de Salomão) numa carta de 1197. Ducange, Rayn., p. 2.
(NT): Narra-se que a Ordem do Templo tirou seu nome por ter se alojado nas ruínas do Templo de Salomão, em Jerusalém, o que é fato. Há uma narrativa baseada em
testemunhos e hipóteses de que os primeiros Templários cavaram as ruínas dos antigos estábulos do Templo de Salomão e teriam aí achado um tesouro. Qual tesouro?
Ninguém sabe afirmar, mas há quem sustente terem encontrado um segredo que possibilitou-lhes amealhar poder e riqueza como, por exemplo, a prova da descendência
de Jesus. Vide “The Holy Blood and the Holy Grail”, 1982 e “The Messianic Legacy”, 1986, do trio de autores BAIGENT, Michael; LEIGH, Richard e LINCOLN,
Henry; ambos os livros foram publicados no Brasil pela Ed. Nova Fronteira sob os títulos “O Santo Graal e a Linhagem Sagrada” e “A Herança Messiânica”.
[159] É possível que os Templários que escaparam tenham-se fundido nas sociedades secretas. Na Escócia, todos eles desapareceram, exceto dois. Ora, já se observou
que os mais secretos mistérios da franco-maçonaria são reputados virem da Escócia e que os altos graus são por ela chamados “Escoceses”. V. Grouvelle e os escritores
que ele seguiu, Munter, Moldenhawer, Nicolaï, etc.
[160] Vide Hammer, ‘Mémoires sur deux coffrets gnostiques’ , p. 7. Vide também a memória nas ‘Mines d’Orient’ e a resposta de M. Raynouard (Michaud,
‘Histoire des croisades’, éd. 1828, t. V, p. 572).
[161] (NT): Mencionei, na tradução do Tomo I da “História da França”, o seguinte: os livros “The Holy Blood and the Holy Grail”, publicado no Brasil pela Ed. Nova
Fronteira, em 1982, sob o título “O Santo Graal e a Linhagem Sagrada” (BAIGENT, Michael; LEIGH, Richard e LINCOLN, Henry) e “A Herança Messiânica” (The
Messicanic Legacy) trazem a hipótese do Santo Graal significar Sangue Real, pela evolução das expressões Sang Real – Sangraal, na medida em que referir-se-ia a
Jesus Cristo, da tribo de Davi, que possuiria, portanto, origem (sangue) real”.
A associação do “sangue real” a um “cálice” é também uma hipótese lançada pelo trio, com base em antiquíssimas tradições do Midi da França ligadas à cidade de
Saintes-Maries-de-la-mer (Santas Marias do Mar), sendo que o “cálice”, até por ter lembrar a genitália feminina (V), seria o útero de Maria Madalena, o qual teria
recebido a semente real, gerado a filha de Jesus Cristo (Sara – Santa Sara Kali – Santa Sara a Negra) e, desta forma, transmitido o “Sangue Real”.... “dataria daí o
Priorado de Sião, encarregado de guardar e proteger a linhagem do Santo Graal e que, mais tarde, à época das Cruzadas, vai se ligar aos Cavaleiros Templários, seu
braço armado multinacional e poderoso. O bestseller “Código da Vinci”, lançado no início do século XXI, de autoria de Dan Brown, parece ter se inspirado fortemente
naqueles livros, fato que não passou desapercebido aos seus autores que processaram Brown por plágio em 2006, tendo, porém, perdido a disputa. Embora não se possa
falar propriamente em “plágio”, as hipóteses levantadas nos livros do trio (e o trio sempre deixou claro trataram-se de hipóteses) , notadamente aquelas relativas ao
casamento de Jesus com Maria Madalena e ao conflito entre a Igreja Católica e os descendentes do “sangue real”, foram refletidas na obra ficcional de Brown, fato
reconhecido e considerado pelo Juiz da causa”.
[162] vide meu ‘Histoire de France’, tomo II, último capítulo (NT: já traduzido e publicado por este Tradutor-Editor).
[163] (NT): A “questão” (la question) era um procedimento preparatório do interrogatório que podia ser utilizado ou como meio de coerção para a obtenção da
confissão ou, mais raramente, como meio punitivo (castigo). Era legalmente classificada em dois tipos: (i) questão preparatória (question préparatoire), que era a tortura
infligida durante o procedimento para obtenção da confissão do crime, aplicada no caso onde a culpa já fora estabelecida, mas ainda insuficiente para impor a condenação
à morte e (ii) questão prévia (question préalable) ou questão definitiva (question définitive), que era a tortura infligida a um condenado para obtenção das confissões e
obrigar-lhe a denunciar seus cúmplices e comparsas; esta tortura era aplicada pouco antes da execução do condenado. A primeira foi abolida por Ordenação Real de 1780
e a segunda por Ordenação Real de 1788, ambas de Luís XVI. – vide http://fr.wikipedia.org/wiki/Question_(torture).
[164] Sem falar de nosso ditado popular (“beber como um Templário”), os Ingleses tinham um outro: “Dum erat juvenis sæcularis, omnes pueri clamabant publice et
vulgariter unus ad alterum: custodiatis vobis ab osculo Templariorum” {NT: “Em sua juventude, os rapazes, pública e comumente, alertavam: acautelai-vos do
ósculo (beijo) dos Templários}, Conc. Britann. p. 360, testis 24.
[165] A regra austera que a Ordem recebeu em sua origem parece, quando de sua queda, um ato de acusação terrível: Domus hospitis non careat lumine ne tenebrosus
hostis... Vestiti autem camisiis dormiant et cum femoralibus dormiant. Dormientibus itaque fratribus usque mane nunquam deerit lucerna... (NT: Não deixa a casa do
anfitrião ser sem luz para que o inimigo não fique no escuro... Deixa-os dormir em suas camisas e ceroulas... Os irmãos nunca devem dormir sem uma luz, até
que venha a luz matutina...), Atos do concílio de Troyes, 1128. Ap. Dup. Templ. 92-102.
[166] Vide, entretanto, Processus contrà Templarios, manuscrito da Biblioteca Real. O que se lê nos Artigos do interrogatório sobre suas relações com as mulheres –
Item les mâitres fesoient frères et suers du Temple... (NT: Idem, os mestres fizeram irmãos e irmãs do Templo) , Proc. manuscrito, folio 10-11- deve se entender como
“afiliados da Ordem”; havia ambos os sexos (V. Dup. 99, 102), mas não me ocorre ter lido nenhuma confissão sobre esse ponto, mesmo nos depoimentos mais contrários à
Ordem. Eles confessam, isso sim, uma outra infâmia, muito mais vergonhosa*.
*(NT): sodomia.
[167] “A maneira de conduzir um Capítulo e de absolver. Após o Capítulo, falará o mestre ou aquele que conduzir (presidir) o Capítulo: ‘Bons senhores irmãos, o perdão
de nosso Capítulo é tal que, aquele que tomar erradamente as esmolas de nossa Casa ou mantiver qualquer coisa em nome próprio, não receberá nem tempo, nem perdão,
de nosso Capítulo. Mas todas as coisas que deixardes de dizer por vergonha da carne ou por medo da justiça da Casa, rogaremos a Deus, por intermédio de sua doce
Mãe, vos perdoar”. (francês arcaico: La manere de tenir chapitre et d’assoudre. Après chapitre dira le mestre ou cely que tendra le chapitre: Beaux seigneurs
frères, le pardon de nostre chapitre est tiels, que cil qui ostast les almones de la meson à toute male resoun, ou tenist aucune chose en noun de propre, ne
prendreit u tens ou pardon de nostre chapitre. Mes toutes les choses qe vous lessez à dire pour hounte de la char, ou poour de la justice de la mesoun, qe lein
ne la prenge requer Dieu pour la requeste de la sue douce Mere le vous pardoint). “Conciles d’Angleterre”, édit. 1737, t. II, p. 383.
[168] Os depoimentos mais sujos e que pareceriam mais verossivelmente ditados pela questão são aqueles das testemunhas inglesas que, entretanto, a ela não foram
submetidas: “Post redditas gratias capellanus ordinis templi increpavit fratres dicens: ‘Diabolus comburet vos’ vel similia verba... Et vidit braccias unius fratrum templi et
ipsum tentem faciem versus occidentem et posteriora versùs altare... 359. Osendebatur imago Crucifixi et dicebatur ei, quod sicut antea honoraverat ipsum sic modo
vituperaret, et conspueret in eum: quod et fecit. Item dictum fuit ei quod depositis bracciis verteret dorsum ad crucifixum: quod lacrymando fecit...” (NT: Após receber
graças, o capelão da Ordem do Templo teria dito para os irmãos: ‘Que o diabo vos queime’ ou algo semelhante... E ele viu um dos irmãos do Templo com as
calças abaixadas, parado com a face virada para o oeste e de costas para o altar... 359. E a imagem de um crucifixo foi exibida e disseram-lhe que, como ela
fora antes honrada, ele agora deveria vituperá-la e sobre ela cuspir: o que ele fez. Igualmente foi-lhe pedido para deixar suas calças abaixadas e virar as
costas para o crucifixo: o que fez chorando...), Ibidem, 369, col. 1.
[169] “Habent Templarii christianitate novem milllia maneriorum...”, Math. Paris, p. 417. Mais tarde, a crônica de Flandres atribuiu-lhes 10.500 mansões. Na
Senescalia de Beaucaire, a Ordem comprara em quarenta anos contra 10.000 libras de rendas (NT: ? o que comprou?) . – O só priorado de Saint-Gilles possuía 54
comendadorias. Grouvelle, p. 196.
[170] Em seus antigos estatutos, lê-se: Regula pauperum commiilitonum templi Salomonis (NT: Regra dos pobres companheiros do Templo de Salomão) . Rayn., p.
2.
[171] “E Acre, uma cidade, eles a traíram com grande perfídia”. Chron. de S. Denys, ap. Dupuy, p. 26.
[172] Em 1259, a animosidade foi levada a um tal excesso, que Hospitalários e Templários se deram uma batalha na qual os Templários foram talhados em pedaços. Os
historiadores dizem que não escapou ninguém, com exceção de um.
[173] Joinville, p. 81, ap. Dup., ‘Preuv.’, p. 163-164 – Quando se ia efetuar o pagamento do resgate, faltavam 30.000 libras. Joinville rogou aos Templários emprestá-las
ao rei. Eles recusaram e disseram: “Vós sabeis que recebemos as ofertas de tal maneira que, por nossos juramentos, não podemos delas dispor, senão para benefício da
Casa”. Entretanto, eles disseram que se podia tomar-lhes este dinheiro por força e que, na cidade de Acre, a ordem teria como se indenizar (NT: ao mesmo tempo em que
era uma “sugestão” que resolveria o problema da indisponibilidade dos bens da Ordem para outros fins que não fossem os da Ordem, ela também encerrava
uma ameaça ao Senescal de S. Luís, a ser cumprida em São João d’Acre). Joinville fez-se então tranportar à galera-capitânea da Ordem e desceu ao porão, onde
pediu a chave de um cofre que via à sua frente; mas os Templários recusaram-se a dá-las. Joinville pegou um machado, ergueu-o e ameaçou utilizar “a chave do rei”.
Então, o marechal do Templo, tomando o próprio Joinville como testemunha da violência que sofria, entregou-lhe as chaves. Joinville, p. 81, éd. 1761.
[174] Audivit dici à Delphino prædicto quòd cùm magister venit de ultrà mare, portavit secum centum et quinquaginta milia florenorum aureorum et decem summarios
oneratos turronum grossorum. Arquivos do Vaticano, Rayn. p. 45.
[175] Essas Ordens igualmente poderosas foram igualmente atacadas. Os bispos livonianos trouxeram contra os Cavaleiros Teutônicos acusações não menos graves.
De João XXII a Inocente VI, os Hospitalários tiveram de suportar os mesmos ataques. Os Jesuítas a eles sucumbiram. V. Grouvelle, p. 220.
[176] Vide mais abaixo. – Em Castela, os Templários, os Hospitalários e os Cavaleiros de São Tiago (Santiago) tinham um tratado de garantia contra o próprio rei;
Munter, p. 25.
[177] Is magistrum ordinis exosum habuit, propter importunam pecuniæ exactionem, quam, in nuptiis filiæ suæ Isabellæ, ei mutuò dederat (NT: Ele odiava o mestre da
Ordem em virtude de seu inoportuno pedido de devolução do dinheiro que lhe fora emprestado para o casamento de sua filha Isabela) , Thomas de la Moor, in
‘Vita Eduardi II’, ap. Baluze, Pap. Aven. notæ, p. 189. – O Templo tinha, em épocas diversas, servido de depósito aos tesouros do rei. Filipe Augusto (1190) ordenou que
todas as suas rendas, durante sua viagem ao ultramar, fossem levadas ao Templo e trancadas nos cofres, dos quais seus agentes teriam uma chave e os Templários a
outra. Filipe o Ousado ordenou que fossem lá depositadas as poupanças públicas. – O tesoureiro dos Templários intitulava-se Tesoureiro do Templo e do Rei e, mesmo,
Tesoureiro do Rei no Templo. Sauval, II, 37.
[178] Vide em Dupuy um panfleto que Filipe o Belo se fez provavelmente dirigir: Opinio cujusdam prudentis regi Philippo ut regnum Hieros. et Cypri acquireret pro altero
filiorum suorum, ac de invasione regni Ægypti et de dispositione bonorum ordinis Templariorum {NT: Conselho de um certo homem prudente (sábio) para o rei Filipe
para adquirir o reino de Jerusalém e de Chipre para um de seus filhos, e a respeito da invasão do reino do Egito e da disposição dos bens da ordem dos
Templáros) – V. também Walsingham. – A idéia de aplicar seus bens para o serviço da Terra Santa teria sido de Raimundo Lúlio. Baluz. Pap. Aven.
[179] Estatutos do Capítulo-Geral dos Dominicanos em 1243, Grouvelle, p. 25.
[180] Vide a história desta ordem pelo dominicano Frederici, 1787. Eles se aproveitaram, entretanto, dos bens do Templo; vários Templários passaram para esta ordem.
{NT: Cavalieri Gaudenti ou Fratri Gaudenti são as formas mais conhecidas da Ordem dos Cavaleiros da Gloriosa Maria (Ordo Militiæ Maria Gloriosa)}.
[181] Eles tinham sombrios pressentimentos. Um Templário inglês, encontrando um cavaleiro recentemente recebido, disse: “Esne frater receptus in ordine?” Cui
réspondens, ita. Et ille: ‘si sideres super campanile sancti Pauli Londini, non posses videre majora infortunia quam tibi contigent antequam moriaris” (NT: Está nosso irmão
admitido na Ordem? O qual respondeu sim. E ele (disse): se sentares sobre a cúpula de (igreja) São Paulo em Londres, tu não verás infortúnio maior que
outros que vieres a ver antes de morrer). Conc. Brit. p. 387, col. 2.
[182] O concílio de Salzburgo, ocorrido em 1272, e várias outras assembléias eclesiásticas propuseram essa reunião. Rayn., p. 10
[183] Si unio fieret, multùm oporteret quòd Templarii lararentur, vel Hospitalarii restringerentur in pluribus. Et ex hoc possent animarum pericula provenire... Religio
hospitalariorum super hospitalitate fundata est. Templari verò super militiâ propriè sunt fundati.
(NT): a Ordem dos Cavaleiros Templários foi estabelecida em 1118 pelo patriarca de Jerusalém e, originalmente, consistia de nove pobres cavaleiros que viviam em
comunidade no sítio do antigo Templo de Salomão, os quais assumiram as obrigações voluntárias de vigiar as rotas nas redondezas da cidade e proteger os peregrinos
católicos dos insultos, violências e roubos dos infiéis. A Ordem de São João de Jerusalém, ou dos Cavaleiros do Hospital, alçou-se por meio da construção de um
Hospitium ou casa de acolhimento para peregrinos em Jerusalém, por volta do ano 1048. Tal casa tornou-se um hospital anexo à igreja e Godofredo de Bouillon, quando
passou a comandar a cidade em 1099, passou a provê-lo e tornou-o uma ordem religiosa, obtendo sua confirmação, com uma regra de observância, por Roma.
Subsequentemente, os irmãos acresceram obrigações militares aos seus deveres religiosos. Os Hospitalários, depois disso, tornaram-se célebres como Cavaleiros de Rodes
e, após, Cavaleiros de Malta, exercendo uma Soberania na ilha de mesmo nome até o início do século XIX.
[184] Um outro dizia: Esto quod esses pater meus et posses fieri summus magister totius ordinis, nollem quod intrares, quia habemus tres articulos inter nos in ordine
nostro quos nunquam aliquis sciet nisi Deus et diabolus, et nos, fratres illius ordinis (NT: Suponha que fosses meu pai e que tu pudesses ser feito Grão-Mestre da
Ordem, eu não te deixaria entrar, visto que temos três artigos entre nós, na nossa Ordem, nenhum dos quais nunca ninguém saberá, salvo Deus, o diabo e nós,
irmãos da Ordem), provas das cinquenta e uma testemunhas, p. 361. – Vide as histórias que corriam sobre as pessoas que teriam sido assassinadas por terem visto as
cerimônias secretas do Templo. Concil. Brit. II, 361.
[185] Dupuy, ibid., p. 207. – É o primeiro dos 140 depoentes. Dupuy desmembrou a passagem. Vide os manuscritos nos Arquivos do Reino, K. 413.
[186] “Sanus et hilaris cum avibus et canibus, et tertiâ die sequenti mortuus fuit”, Conc. Brit., p. 36.
[187] Tosjors achetoient sans vendre...
Tant va pot à eau qu’il brise.
(NT: Sempre compravam sem vender.../Tanto o pote vai à água, que quebra).
Chron. en verses, citada por Rayn., p. 7.
[188] Na Escócia, reprovava-se-lhes, além da cupidez, não serem hospitaleiros: “Item dixerunt quod pauperes ad hospitalitatem libenter non recipiebant, sed timoris causâ
divites et potentes solos; et quod multùm erant cupidi aliena bona per fas et nefas pro suo ordino adquirere (NT: Idem, disse que não demonstravam a menor vontade de
hospitalidade em relação aos pobres mas, e isto por medo, somente para os ricos e poderosos; e que muito eram cúpidos em adquirir, por quaisquer meios, a
propriedade dos outros para sua própria ordem). Concil. Brit., 40ª testemunha da Escócia, p. 382.
[189] É curioso ver com qual prodigalidade de elogios e de favores o rei os atraiu para seu reino desde 1304: Philippus Dei gratia Francorum Rex, opera misericordiæ,
magnifica plenituto quæ in sancta domo militiæ Templi, abolini dvinitiis instituta longe latèque per orbem terrarum Jupiter excercentur... merito nos inducunt ut dictæ domui
Templi et fratribus ejusdem in regno nostro ubilibet constitutis quos sincere diligimus et prosequi favore cupiamus speciali, regium liberalitatis dextram extendimus {NT:
Filipe, pela graça de Deus, Rei dos Franceses: as obras de misericórdia, a magnífica plenitude que exerce a sacra Ordem dos Cavaleiros do Templo, de divina
instituição, nos locais longínquos e por toda a gigantesca (Jupiter) orbe terrestre... merece que estendamos a mão direita da liberalidade real para a
retromencionada Ordem do Templo e seus irmãos, a quem sinceramente amamos e em relação aos quais nos agrada mostrar um favor especial}. Rayn., p. 44.
[190] O rei, sempre estudamente, fê-la compartilhar do exame e também da responsabilidade desta questão. Nogaret leu o ato de acusação perante a primeira
assembléia da Universidade, a qual se reuniu no dia seguinte ao da prisão. Uma outra assembléia de todos os mestres e de todos os escolares de cada faculdade se deu no
Templo: o Grão-Mestre foi aí interrogado e alguns outros. Eles ainda o foram numa segunda assembléia.
[191] Vide os numerosos artigos do ato de acusação (Dup., p.?). É curioso compará-lo a uma outra peça do mesmo gênero, à bula do Papa Gregório IX aos eleitores de
Hildeshein, Lubeck, etc, contra os cidadãos de Bingen (Stadt-Bingen) (Raynald, ann. 1234, XIII, p. 446-7). É com mais coerência a acusação contra os Templários. Esta
conformidade provaria, como o quer M. de Hammer, a afiliação dos Templários a esses sectários?
[192] De acordo com os testemunhos mais numerosos, era uma cabeça aterrorizante de longa barba branca, com olhos brilhantes (Rayn, p,. 261), à qual os Templários
eram acusados de adorar. Nas instruções que Guilherme (Guillaume) de Paris remetia às províncias, ordenava-se interrogar os Templários sobre um “ídolo que é em
forma de uma cabeça de homem com uma grande barba” (“une ydole qui est en forme d’une teste d’homme à une grant barbe”). E o ato de acusação que a corte de
Roma publicou, artigo 16: “que, em todas as províncias, eles tinham ídolos, quer dizer, cabeças, das quais umas tinham três faces e outras apenas uma, e que ocorria ser um
crânio de homem”. Artigo 47 e seguintes: “Que, nas assembléias, e sobretudo nos grandes capítulos, eles adoravam o ídolo como a um Deus, como seu salvador, dizendo
que esta cabeça podia salvá-los, que ela concedia à ordem todas as riquezas e que fazia florescer as árvores e germinar as plantas da terra”. Rayn. p. 287. Os inúmeros
depoimentos dos Templários na França, na Itália, vários testemunhos indiretos na Inglaterra, responderam a este ponto da acusação e acrescentaram algumas
circunstâncias. Adorava-se esta cabeça como aquela de um Salvador, “quoddam caput cum barba quod adorant et vocant salvatorem suum” (Rayn, 288) – (NT: uma
das lendas envolvendo os templários era a de que cabeça humana em questão seria a de São João Batista) – Deodat Jaffet, recebido na Ordem em Pedena (NT:
atual cidade de Pićan, na Croácia), depõe que aquele que o recebia exibiu-lhe uma cabeça ou ídolo que pareceu-lhe ter três faces, dizendo-lhe: “Tu deves adorá-lo
como teu Salvador e o Salvador da Ordem do Templo”, e que a testemunha diz tê-lo adorado dizendo: “Abençoado seja aquele que salvará minha alma” (p. 247 e 293).
Cettus Ragonis, recebido em Roma num aposento do Palácio de Latrão, depõe que lhe foi dito, ao exibirem-lhe o ídolo: “Recomenda-te a ele e roga-lhe que te dê saúde”
(p. 295). Segundo a primeira testemunha de Florença, os irmãos diziam-lhe as palavras cristãs “Deus adjuva me” (NT: Deus, ajuda-me); e ele acrescentava que esta
adoração era um rito observado em toda a Ordem (p. 294). E, de fato, na Inglaterra, um irmão menor depõe ter ouvido de um Templário inglês que existiam quatro ídolos
principais: um na sacristia do templo de Londres, um em Bristelham (Bristol), o terceiro em apud Brueriam (Birmingham) e o quarto no além-Humber (p. 297). A segunda
testemunha de Florença acrescenta uma circunstância nova: ela declara que, num capítulo, um irmão disse aos outros: “Adorai esta cabeça; ela é vosso Deus e vosso
Maomé” (Istud caput vester Deus est et vester Mahumet), p. 295. Gauserand de Montpesant diz que ela fora feita in figuram Baffometi (NT: à semelhança de
Bafomé/Baphomet) e Raimundo Rubei, depondo, que lhe exibiram uma cabeça de madeira onde estava pintada figura Baphometi, adiciona: Et illam asoravit obsculando
sibi pedes, dicens yalla, verbum saracenorum (NT: Ele a adorou beijando-lhe os pés, dizendo yalla, uma palavra sarracena).
M. Raynouard (p. 301) vê a palavra BAFOMÉ, nesses dois depoimentos, como uma alteração da palavra MAOMÉ dada pela primeira testemunha; ele via uma tendência
dos inquisidores em confirmar essas acusações tão divulgadas contra os Templários de boa inteligência com os Sarracenos. Entretanto, seria necessário admitir que todos
esses depoimentos são completamente falsos e obtidos por torturas pois, sem dúvida, nada de mais absurdo que fazer dos Templários mais maometanos que os próprios
maometanos que, de forma alguma, adoram Maomé. Mas esses testemunhos são por demais numerosos, por demais unânimes e por demais diversos ao mesmo tempo
(Rayn., pgs. 232, 237 e 286-302). Além disso, estão longe de serem destruidores para a Ordem. Tudo o que os Templários dizem de mais grave é que tiveram medo, é que
acreditaram nela ver uma cabeça de diabo, de mauffe (NT: diabo, demônio, capeta), p. 290, é que acreditaram ver o próprio diabo nas cerimônias, sob a figura de um
gato ou de uma mulher (pgs. 293-294). Sem desejar fazer dos Templários, em cada ponto, uma seita de gnósticos, eu preferiria ver aqui, com M. de Hammer, uma
influência dessas doutrinas orientais. BAPHOMET, em grego (segundo uma etimologia, é verdade, assaz duvidosa) é o deus que batiza o Espírito, aquele a respeito do qual
está escrito “Ipse vos baptizavit in Spiritu Sancto et igni, etc.” (NT: Ele vos batizará com o Espírito Santo e com fogo), Mateus cap.3, versículo 11. Era, para os
gnósticos, o paracleto que desceu sobre os apóstolos na forma de línguas de fogo. O batismo gnóstico era, em efeito, um batismo de fogo. Talvez seja preciso ver uma
alusão a alguma cerimônia desse tipo nos rumores que corriam entre o povo contra os Templários “qu’un enfant nouveau engendré d’un Templier et une pucelle estoit cuit
et rosty au feu, et toute la graisse ostée et de celle estoit sacrée et ointe leur idole” (NT: que uma criança recém-nascida, gerada por um Templário e por uma
donzela, foi cozida e assada no fogo, e toda a gordura foi retirada e com ela o ídolo sagrado foi ungido) , Chron. de Saint-Denis, p. 28. Este pretenso ídolo, não
seria ele uma representação do Paracleto cuja festa (Pentecostes) era a maior solenidade do Templo? Essas cabeças, uma das quais devia se encontrar em cada capítulo,
jamais foram recuperadas, é verdade, salvo uma única, mas ela trazia a inscrição LIII. A publicidade e importância que se dava a este título de acusação, certamente
decidiram os Templários a fazerem desaparecer, o quanto antes, a prova. Quanto à cabeça recolhida no capítulo de Paris, eles a fizeram passar por um relicário, a cabeça
de uma das onze mil virgens (Rayn., p. 299) – E ela possuía uma longa barba prateada...
[193] Quis ergo sacrilegus vobis, Pater sancte, præsumet consulere quod vos eos sperniis, imò potiùs Jesum Christum eos mittentem? Dupuy, p. 11.
[194] Dupuy não nos dá esta carta por inteiro; provavelmente, ela sequer foi remetida mas, antes, divulgada para o povo. Nós possuímos uma ao contrário, do Papa (1º
de dezembro de 1307), segundo a qual o rei teria escrito a Clemente V, que pessoas da corte pontifícia fizeram a gente do rei acreditar que o Papa o encarregava da
persecução contra os Templários; o rei teria se apressado em desencarregar sua consciência de um tamanho fardo e de repassar todo o problema ao Papa, que muito
o agradeceu. Esta carta de Clemente me parece, como a outra, menos dirigida ao rei que ao público; é provável que ela responda a uma carta que jamais fora escrita.
[195] Arquivos do Reino, K, 413. Esses depoimentos existem num grosso rolo de pergaminho; foram muito negligentemente extraídos por Dupuy, p. 207-212.
[196] Confessus est abnegationem prædictam, nobis supplicans quatenus quemdam fratrem servientem et famliarem suum, quem secum habebat, volentem confiteri,
audiremus (NT: Ele confessou a anterior negação e trouxe-nos, para ouvirmos a confissão, um certo irmão servente e seu amigo, que estava com ele) , Carta dos
Cardeais, Dupuy, 241.
[197] Carlos o Coxo (Charles-le-Boiteux) escreve aos seus oficiais, dirigindo-lhes cartas seladas: “Neste dia que vos assinalo, antes que seja claro, melhor dizendo, em
plena lua, vós as abrireis. 13 de janeiro de 1308”. Dupuy, Pr. p. 233.
[198] “Quare non sic procedet rex et princeps christianissimus etiam contrà totum clerum, si sic erraret vel errantes sustineret vel faveret”. Apud Raynouard, p. 42.
[199] Ele inclusive escrevera ao rei da Inglaterra para assegurá-lo que Filipe os enviava aos agentes pontifícios e para incentivá-lo a imitar esse bom exemplo. Dupuy, p.
204. Carta de 04 de outubro de 1307. Todavia, a Ordenação de desembargo pela qual Filipe mandava entregar os bens dos Templários aos delegados do Papa é de 15 de
janeiro de 1309. Além disso, a esses delegados do Papa, ele acrescentou alguns agentes reais que velavam pelos seus imóveis na França e que, à sombra da comissão
pontifícia, estendiam seus limites sobre o domínio vizinho. É o que nos demonstra uma reclamação do senescal da Gasconha que, em nome de Eduardo II, reclama dessas
invasões do rei da França. Dupuy, p. 312.
[200] Alhures, ele louva magnificamente o desinteresse de seu querido filho que, de forma alguma, age por avareza e nada deseja manter desses bens: Deinde verò Tu
cui eadem fuerant facinora nuntiata, non typo avaritiæ, cum de bonis Templariorum nihil tibi appropriare... immò ea nobis administranda, gubernanda, conservanda et
custodienda liberaliter et devotê dimisisti... 12 de agosto de 1308 (NT: Em verdade, tu, ante os crimes relatados, não agiu com avareza para te apropriares dos bens
dos Templários... Em vez disso, temos, por tua generosidade e devoção, sido encarregados de administrá-los, geri-los, conservá-los e custodiá-los...). Dupuy, p.
240.

[201] Dupuy, p. 240-242. A comissão compunha-se do arcebispo de Narbonne, dos bispos de Bayeux, de Mende, de Limoges, dos três arquidiáconos de Rouen, de
Trento e de Maguelone e do preboste da igreja de Aix. Os meridionais, mais votados ao Papa, estavam, como se vê, em maioria.
[202] Passando, em seguida, a uma outra questão, o Papa declara ter suprimido, como inútil, um artigo da convenção com os Flamengos que ele havia, por preocupação
ou negligência, firmado em Poitiers, a saber, que se os Flamengos incorressem na sentença pontifícia, violando esta convenção, eles não poderiam ser absolvidos senão a
pedido do rei. A dita cláusula poderia manchar o Papa como simplório. Todo excomungado que se corrige pode se fazer absolver, mesmo sem o consentimento da parte
adversa. O Papa não pode, jamais, abdicar o poder de absolvição.
[203] Processus contra Templarios , manuscrito. Os comissários escreveram uma nova carta na qual diziam que, aparentemente, os prelados tinham acreditado que a
comissão devia proceder contra a Ordem em geral e não contra os membros; que não era, todavia, assim: que o Papa lhes remetera o julgamento dos Templários.
[204] No mesmo dia 22 de novembro, antes dele, um homem em trajes seculares se apresentou perante os bispos e declarou se chamar Jean de Melot (e não Molay,
como dizem Raynouard e Dupuy), ter sido Templário por dez anos e ter deixado a Ordem, apesar de nela não ter visto qualquer mal. Ele declarava vir para fazer e dizer
tudo o que desejassem. Os comissários perguntaram-lhe se ele desejava defender a Ordem, pois estavam prontos a ouvi-lo benignamente. Ele respondeu que não viera
para outra coisa, mas que desejava, antes de tudo, saber o que desejavam fazer da Ordem. E acrescentou: “Fazei comigo o que desejardes, mas fazei com que minhas
necessidades sejam supridas, pois sou muito pobre (“Ordonnez de moi ce que vous voudrez, mais faites-moi donner mes nécessités, car je suis bien pauvre”) . – Os
comissários, vendo, pela sua figura, por seus gestos e suas palavras, que era um homem simples e um espírito débil, não continuaram mais; enviaram-no, porém, ao bispo
de Paris que, segundo diziam, o acolheria com bondade e mandaria dar-lhe alimentação. Process. manuscrito, folio 8.
[205] ... Nisi unum fratrem servientem, cum quo consilium habere posset. Prædicti domini commissarii dixerunt prædicto Magistro quod bene et plene deliberaret super
dicta defensione ad quam se offerebat.
[206] M. Raynouard diz “os cardeais”, mas erradamente.
[207] Abscindunt caput perversis inventis, vel scindunt eos per medium. Dupuy, 319.
[208] Quum idem Magister rogasset nobilem virum dominum Guillelmum de Plasiano... qui ibidem venerat, sed non de madato dictorum dominurm commissariorum,
secundum quod dixerunt... et dictus dominus Guillelmus fuisset ad partem locutus cum eodem Magistro quem sicut asserebat diligebat et dilexerat, quia uterque miles erat
(NT: O mesmo Mestre rogou ao nobre homem, senhor Guilherme de Plasian... que para ali tinha vindo, mas não por ordem do mencionado senhor comissário,
segundo disseram... e o dito senhor Guilherme falou à parte com o mesmo Mestre, o qual, como ele afirmou, amava e tinha amado, pois eram ambos soldados).
Ibid, 319.
[209] Quam dilationem concesserunt eidem, majorem etiam se daturos asserentes, si sibi placeret et volebat (NT: Para o mesmo, foi condedida a dilação; e maior
ser-lhe-ia dada, se lhe agradasse e desejasse). Ibid., 320.
[210] Requirens eosdem quòd cùm ipse sicut et alii homines esset mortalis nec haberet de tempore nisi nunc, placeret eisdem Dominis commissariis significare Domino
Papæ quòd ipsum Magistrum quàm citiùs posset ad ejus præsentiam evocaret... ibid.
[211] Vade, vade, ego plus possum quam Christus unquam potnerit, quia ego possum humiliare et depauperare Reges et Imperatores et principes, et possum de uno
parvo milite facere unum magnum Regem, et possum donare civitates et regna (NT: Vá, vá, eu posso mais que Cristo poderia, pois posso humilhar e empobrecer
Reis e Imperadores e Príncipes, e posso, de um soldado parvo (imbecil), fazer um grande Rei, e posso dar cidade e reinos) Ibid, p. 566.
[212] (NT): O Tradutor abriu mão do sufixo diminutivo latino erudito “ola” (e.g., rapazola, radiola, viola, pianola, sacola etc.) pois, no Brasil, “mariola” é o nome que se
dá um doce de banana prensado.
[213] Tace miser, non credimus in asinam nec in pullum ejus (NT: Cala-te miserável, não acreditamos nem na jumenta, nem em seu burrinho). Ibid. p. 6.
[214] Pro quâ defensioni si patrem occidat, meritum habet, nec pœnas meretur. Dupuy, ‘Diff.’, p. 309.
[215] Quòd contenti erant de lecturâ in latino, et quòd non curabant quòd tantæ turpitudines quas asserebant omninò esse falsas et non nominandas vulgariter,
exponerentur (NT: Que estavam contentes da leitura em latim, e que se importavam que tamanhas torpezas, as quais asseveravam serem todas falsas, não fossem
expostas em (língua) vulgar). Processus contra Templarios, manuscrito.
[216] Dicentes quòd non petebatur ab eis quandò ponebantur in jainis si procuratores constituere volebant. Ibidem.
[217] Uns eram guardados no Templo, outros em Saint-Martin-des-Champs, outros na mansão (hôtel) do conde de Savóia e em diversas casas particulares. Process.
contra Templ., manuscrito, folio.
[218] Respondit quod nolebat litigare cum Dominis papâ et rege Franciæ. Process., manuscrito, 11 verso.
[219] O irmão Élie, autor desta peça tocante, finda por rogar aos notários corrigir as locuções viciosas que possam ter se infiltrado em seu latim. Process., manuscrito,
folio 31-32. Outros escrevem uma apologia em língua romana, alterada e muito misturada com o francês do norte (folio 36-38).
[220] Eu ofereço esta peça tal como ela foi escrita pelos notários, em sua ortografia bárbara (NT: texto original em francês arcaico logo após a tradução) : “Aos
homens honoráveis e sábios, ordenados por nosso pai, o Apóstolo (o papa), para o caso dos irmãos Templários, os quais estão na prisão em Paris, na casa de Tiron...
Honra e reverência. Como vosso notário estivesse conosco nesta quinta-feira próxima passada e nos perguntasse se desejávamos defender a Religião do Templo acima
dito, todos disseram sim, e dissemos que ela é boa e leal e, em tudo, sem malvadeza e traição em tudo o que colocam contra ela, e estamos prontos a nos defender, cada
um por si ou todos juntos, de tal maneira que o direito e a santa Igreja e vós assim a olhareis, como aqueles que estão na prisão, nossos irmãos, a sofrer. E somos mantidos
em negras fossas escuras todas as noites. – Idem, nós vos fazemos saber que as dádivas de XII denários que temos não nos bastam. Pois somos obrigados a pagar por
nossas camas III denários por dia, cada cama. O aluguel da cozinha, lenços, toalhas, por panelas e outras coisas, II soldos e VI denários por semana. Idem para nos ferrar
(agrilhoar, prender com ferros) e desferrar (retirar os grilhões de ferros), quando estamos perante os auditores, II soldos. Idem para lavar camisas, túnicas, linhos, cada XV
dias XVIII denários. Idem para lenha e candeias (velas), cada dia IIII denários. Idem para passar e repassar (retornar) os ditos irmãos (de barca), XVI denários, dos asilos
de Notre-Dame do outro lado da água”.
“A homes honerables et sages, ordenés de per notre père l’Apostelle pour le fet des Templiers li freres, liquies sunt en prisson à Paris en la masson de Tiron... Honeur et
reverencie. Comes votre comandemans feut à nos ce jeudi prochainement passé et nos feut demandé se nos volens defendre la Religion deu Temple desusdite, tuit disrent
oil, et disons que ele est bone et leal, et en tout sans mauvesté et traison tout ceque nos l’en met sus, et somes prest de nous défendre chacun pour soy ou tous ensemble,
an telle manière que droit et sante Églies et vos an regadarons, como cil qui sunt en prisson an fois frès à cople II. Et somes en neire fosse oscure toutes les nuits. – Item,
nos vos fessons à savir que les gages de XII deniers que nos avons ne nos soufficent mie. Car nos convient paier nos lis III denier par jour chascun lis. Loage du cuisine,
napes, touales, pour tenelles et autres choses, II solds VI denier la semaigne. Item pour nos fergier et desferger, puisque nos somes devant les auditors, II sol. Item pour
laver dras et robes, linges, chacun XV jours XVIII denier. Item pour buche et candole chascun jor IIII deniers. Item passer et repasser les dis frères, XVI deniers de asiles
de Notre Dame de l’altre part de l’iau. (Processus contra Templ., manuscrito, folio 39).
[221] ... Apud Deum et Patrem... Et hoc est omnium fratrum Templi communiter una professio, quæ per universum orbem servatur et servata fuit per omnes fratres
ejusdem ordinis, à fundamento religionis usque ad diem præsentem. Et quicumque aliud dicit vel aliter credit, errat totaliter, peccat mortaliter... {NT: Diante de Deus e seu
Pai... E esta é profissão una que comunga toda a irmandade do Templo que, em todo o universo (orbem) se observa e é observada por todos os irmãos da
mencionada Ordem, desde a fundação da religião até o dia presente. E quem quer que diga ou acredite no contrário, erra em tudo, peca mortalmente} . Dup.,
333.
[222] (NT) Provérbios, 24,16 (Antigo Testamento).
[223] ... Quia si recesserunt, prout dicunt, comburentur omninò. Ibid, 334.
[224] “...Liberum arbitrium quod est quidquid boni potest homo habere; undè qui caret libero arbitrio, caret omni bono, scientiâ, memoriâ et intellectu”. Ibidem, p. 340.
Admirável lembrança de justiça e de moralidade. Os Templários, que exigiam de seus adeptos um sacrifício tão completo do livre arbítrio, aqui reconhecem que, sem
ele, o homem nada é. Assim é que vemos, mais abaixo, Nogaret invocar o verdadeiro ou pretenso perdão de sua vítima, a absolvição de um papa ao qual ele recusava o
título de Papa.
[225] Ostendes duo ossa quòd dicebat illa esse quæ ceciderunt de talis. Proc. contra Templ., apud Rayn., p. 73.
[226] Sed dicti Domini commissarii dixerunt eis quod eos non dimitterent ibi, nec de eorum mandato seu consilio, sed extrà facerent quidquid velent. Dupuy, p. 338.
[227] Desde o início, o rei da Inglaterra se declarara pública e altivamente em favor da Ordem; seja por sentimento de justiça, seja por oposição a Filipe o Belo, ele
escrevera, em 04 de dezembro de 1307, aos reis de Portugal, de Castela, de Aragão e da Sicília em favor dos Templários, conjurando-os a não darem fé a tudo aquilo que,
na França, se debitava contra os mesmos. Dupuy, p. 226-228.
[228] Segundo Dupuy, p. 45, os comissários do Papa teriam respondido ao apelo dos defensores: “Que os concílios julgassem os casos particulares e eles se
informassem do geral” – A comissão disse todo o contrário.
[229] Petimus Apostolos, et iterùm petimus, et cum instantiâ maximâ petimus. Ibid., p. 346.
[230] Videtur quasi contrarium rationi tales judicare relapsos... In talibus dubiis restringendæ sunt pœnæ. Rayn. p. 106.
[231] Quod ipsi nesciebant quid in dicto concilio agebatur... et quod sicut ipsi... erant Apostolica Auctoritate deputati... propter quod non videbatur dictis commissariis
primâ facie, ut dixerunt, qudo haberent aliqua inhibere dicto domino archiepiscopo Senonensi... adhuc tamen deliberarent. Dup., p. 346.
[232] Nome quase ilegível no texto. A mão treme, evidentemente. Mais acima, o notário escrevera direito: Bertaldi.
[233] Quòd LIIII ex Templariis... erant dictâ die comburendi... Process. contra Templ., manuscrito, folio 72 (folha cortada pela metade).
[234] Adeò exterriti... non videbantur in pleno sensu suo... Ibidem.
[235] ... A quodam fuisse dictum coràm domino archiepiscopo Senonensi, ejus suffraganeis et concilio... quòd dicti præpositus... et archdiaconus... (qui en dictâ die
martis... præmissa intimasse dicebantur, et ipsi iidem hoc attestabantur, suffraganeis domini archiepiscopi Senonensi... tunc absente dicto domino archiepiscopo
Senonensi) prædicta non significaverant de mandato corumdem dominorum commissariorum.
[236] Constanter et perseveranter in abnegatione communi perstierunt... non absque multâ admiratione stuporeque vehementi {NT: Constantes e perservantes na
negação comum se mantiveram... não sem muito admiração e veemente estupor). Contin. Guil. Nang., in Spicil. D’Achery, III, anno 1310.
[237] “Pallidus et multùm exterritus... impetrando sibi ipsi, si mentiebatur in hoc, mortem subitaneam et quod statim in animâ et corpore in præsentiâ Dominorum
commissariorum absorberetur in infernium, tondendo sibi pectus cum pugnis, et ellevando manus suas versùs altare ad majorem assertionem, flectendo genua... cùm ipse
testis vidisset... duci in quadrigis LIII fratres dicti ornis ad comburendum... et ADDVISSE EOS FUISSE COMBUSTOS; quòd ipse qui dubitabat quòd non posset
habere bonam patientiam si combureretur, timore mortis confiteretur... omnes errores... et quidem etiam interfecisse Dominum, si peteretur ab eo...”. Proc. cont. Templ.,
manuscrito, 70, verso.
[238] Durante terrore prædicto. Processus c. Templ., manuscrito, folio 71.
[239] Non intendentes... aliquam inhibitionem facere... ibidem.
[240] Biennium erat elapsum. Ibidem.
[241] Non erat intentionis.. in aliquo impedire officium... ibidem.
“Como se dizia que o preboste da igreja de Poitiers e o arquidiácono de Orléans não haviam falado da parte dos comissários, estes aqui encarregaram os enviados do
arcebispo de Sens de dizer-lhe que o preboste e o arquidiácono haviam, efetivamente, falado em seu nome. Além disso, eles lhes pediram para informarem ao arcebispo de
Sens que Pierre de Boulogne, Chambonnet e Sartiges, tinham apelado do arcebipo e de seu concílio no domingo, 10 de maio, e que este apelo devia ter sido anunciado na
terça-feira, ao concílio, pelo preboste e pelo arquidiácono”. Process., manuscrito, ibidem.
[242] Intellecto per litteras regias quòd non expediebat. Ibidem, 72, verso.
[243] Pode-se isso julgar pelo depoimento de Jean de Pollencourt, o trigésimo-sétimo depoente. Ele inicialmente declara manter-se fiel às suas primeiras confissões. Os
comissários, vendo-o completamente pálido e apavorado, dizem-lhe para não considerar outra coisa senão dizer a verdade e salvar sua alma; que ele não corre qualquer
perigo por dizer a verdade a eles; que não revelarão suas palavras, nem eles, nem os notários presentes. Então, ele retrata seu depoimento e declara, mesmo, ter-se
confessado a um irmão menor que o incentivou a não prestar mais falsos testemunhos.
[244] Nos concílios de Sens, Senlis, Reims, Rouen etc., e diante dos bispos de Amiens, Cavaillon, Clermont, Chartres, Limoges, Puy, Mans, Mâcon, Maguelonne, Nevers,
Orléans, Périgord, Poitiers, Rhodez, Saintes, Soissons, Toul, Tours, etc... Raynouard, p. 138.
[245] Este registro, que frequentemente citei, está na Biblioteca Real (fundos Harlay, nº 329). Ele contém a instrução feita em Paris pelos comissários do Papa:
Processus contra Templarios . Este manuscrito foi colocado no tesouro de Notre-Dame. Ele passou, não se sabe como, pela biblioteca do presidente Brisson, depois
daquela do M. Serviu, advogado-geral, enfim, naquela dos Harlay, cujas armas ainda exibe. Em meados do século XVIII, M. de Harly, tendo provavelmente escrúpulo de
permanecer detentor de um manuscrito desta importância, o legou à biblioteca de Saint-Germain-des-Prés. Tendo felizmente escapado ao incêndio desta biblioteca em
1793, ele passou à Biblioteca Real. Existe uma cópia nos arquivos do Vaticano. Vide o apêndice de M. Rayn., p. 309. – A maior parte das peças do processo dos
Templários está nos Arquivos do Reino. As mais curiosas são: 1º) o primeiro interrogatório de cento e quarenta Templários detidos em Paris (em um grosso rolo de
pergaminho); Dupuy dele nos deu alguns trechos muito negligentes; 2º) vários interrogatórios, feitos em outras cidades; 3º) a minuta dos artigos sobre os quais os
Templários foram interrogados; esses artigos são precedidos de uma minuta de carta, sem data, do rei ao Papa , espécie de factum destinado evidentemente a ser
espalhado entre o povo. Essas minutas foram escritas sobre papel de algodão. Este frágil e precioso farrapo, com uma ortografia muito difícil, foi decifrado e transcrito por
um de meus predecessores, o sábio M. Pavillet. Ele está carregado de correções que M. Raynouard descobriu com cuidado (p. 50) e que só podem ser da mão de um dos
ministos de Filipe o Belo, de Marigny, de Plasian ou de Nogaret; o Papa copiou docilmente os Artigos sobre o velino que está no Vaticano. A carta, apesar de suas divisões
pedantescas, foi escrita com um calor e uma força notáveis: In Dei nomine, Amen. Christus vincit. Christus regnat. Christus imperat. Post illam universalem victoriam
quam ipse Dominus fecit in ligno crucis contrà hostem antiquum... ita miram et magnam et strenuam, ità utileas et necessarium... fecit novissimis bis diebus per
inquisitores... in perfidorum Templariorum negocio... Horrenda fuit domino regi... propter conditionem personarum denunciantium, quia parvi statûs erant homines ad tàm
grande promovendum negotium, etc. {NT: Em nome de Deus, Amém. Cristo vence. Cristo reina. Cristo julga. Desde aquela vitória universal de Nosso Senhor na
cruz de madeira sobre o velho inimigo... tão admirável e grande e vigorosa, tão útil e necessária... foram produzidos novíssimos (documentos), nestes últimos
dias, pelos inquisidores... no caso dos pérfidos Templários... Alarmado ficou o senhor rei... em virtude do ranque (social) das pessoas dos acusadores, porque
eram homens de pequena condição para promoverem uma causa tão grande}. Arquivos, Seção hist., J. 413.
[246] Mainz, 1º de julho; Ravena, 17 de junho; Salamanca, 21 de outubro 1310. Os Templários da Alemanha se justificaram na forma dos franco-juízes westfálios: eles
se apresentaram em armas perante os arcebispos de Mainz e de Tréveris, afirmaram sua inocência, viraram as costas para o tribunal e se foram calmamente. Vide meu
Symbolique du Droit.
[247] Monsgaudii, a Montanha da alegria.
(NT): para uma visita virtual ao famoso e impressionante Castelo de Monzón: http://www.monzon.es/visitasvirtuales/castillo/index.php. Vide também:
http://www.monzontemplario.com/.
[248] Collectio conciliorum Hispaniæ, epistolarum, decretalium, etc. curâ Jos. Saen. de Aguirre, bened. hisp. mag. generalis et cardinalis. Romæ, 1694, c. III, p. 546.
Concilium tarraconense omnes et singuli à cunctis delictis, erroribus absoluti, 1312 (NT: Todos e cada um foram declarados livres de todos os delitos e erros pelo
concílio de Terracona, em 1312). Vide também Monarchia Lusitana, pars 6, L. 19.
[249] Esta tímida e incompleta reparação não parece suficiente a Villani. Ele acrescenta, sem dúvida para tornar a coisa mais dramática e mais vergonhosa para os
Franceses, que dois cavaleiros catalães jogaram a luva e se ofereceram para defender a inocência de Bonifácio através de um combate. Villani, l. IX, c. 22, p. 454.
[250] O documento seguinte (em francês arcaico), encontrado na abadia das damas de Longchamp, é uma amostra das maravilhosas narrativas pelas quais tratava-se
de requentar o zelo do povo para a cruzada: “À mui santa senhora da real linhagem dos Franceses, Joana Rainha de Jerusalém e da Sicília, nossa mui honorável prima -
Hugo, rei de Chipe, deseja feliz realização de todos os seus melhores desejos. Regozijai-vos e elevai-vos conosco e com os outros cristãos portadores do sinal da cruz que,
para a reverência de Deus e pela vingança do mui doce Jesus Cristo que, para nos salvar, escolheu para sacrifício o altar da cruz, combatem contra o muito descrente
povo dos Turcos. Elevai ao céu o brado de vossa voz o mais alto que puderdes e bradai junto e fazei bradar rendendo graças e louvores, sem jamais cessar, à bendita
Trindade e à mui gloriosa Virgem Maria, de tão solene, grande e singular benção que, até esta hora, jamais foi ouvida e à qual faço saber. Pois, no dia 23 de junho, nós,
com os outros cristãos marcados com o sinal da cruz, estávamos reunidos na planície entre Smirna e um terreno alto, onde estava a hoste (exército) e o agrupamento mui
forte e mui poderoso dos Turcos, perto de doze mil, e nós cristãos éramos por volta de dois mil, movidos e animados pela virtude divina; começamos a tão vigorosamente
combater e à morte pôr tão grande quantidade de Turcos que, por volta da hora das vésperas, nós estávamos tão cansados e tão exaustos que não podíamos mais. Mas
estávamos todos à terra, esperando a morte e as recompensas de nosso martírio, visto que os Turcos ainda tinham muitos deles que ainda não haviam combatido, nem se
afadigado; e vinham contra nós, tão desejosos de beber nosso sangue como os cães são desejosos de beber o sangue das lebres. E bem o teriam feito, se a mui grande
doçura do céu não nos tivesse de outra forma provido. Mas, quando os cavaleiros de Jesus Cristo se entreolharam que haviam chegado a tal ponto da batalha, comeraçam
juntos, em coro, a bradar em voz alta seu grande labor e sua grande fraqueza: “Ó dulcíssimo filho da dulcíssima Virgem Maria que, para nos redimir, escolheu ser
crucificado, dai-nos firme esperança e velai por nossos corações para fortalecê-los em vós, que possamos, por amor de vosso glorioso nome, receber as recompensas do
martírio, pois mais não podemos nos defender desses cães descrentes”. E asssim, como estivéssemos em oração com soluços e lágrimas e bradando com vozes
enrouquecidas e fatigadas, aguardando uma amarga morte, repetinamente, à frente de nossas tendas, apareceu sobre um alvíssimo cavalo, tão alto como nenhuma outra
besta, um homem, carregando em sua mão um pendão em campo mais branco que nenhum outro, com uma cruz mais vermelha que sangue, e estava vestido com uma
pele de camelo, e tinha um longuíssima barba num magro rosto claro e reluzente como Sol, que gritou em clara e alta voz: “Ó gente de Jesus Cristo, não duvideis. Vede a
majestade divina que vos abristes o céu e vos envia ajuda invisível. Erguei-vos e reconfortai-vos e tomai a carne e vinde vigorosamente comigo combater; não duvideis de
nada. Pois sobre os Turcos tereis vitória e poucos de vós morrereis e, aqueles que morrerem, terão vida eterna”. E então, nós nos levantamos todos, tão reconfortados e
também como se nós nunca tivéssemos combatido e, de repente, nós assaltamos os Turcos com muita coragem e combatemos toda a noite e, ainda assim, não podemos
dizer verdadeiramente noite, pois a lua não brilhou como a lua, mas como o Sol. E quando veio o dia, os Turcos sobreviventes fugiram, que não mais os vimos e, assim, com
a ajuda de Deus, nós tivemos a vitória da batalha e, de manhã, nós nos sentíamos mais fortes que estávamos no início da primeira batalha. Assim, mandamos cantar uma
missa em louvor da bendita Trindade e da benta Virgem Maria, e devotamente rogamos a Deus que Ele desejasse nos outorgar a graça de reconhecer os corpos dos
nossos santos mártires entre os corpos dos descrentes. E então, aquele que diante de nós havia aparecido, nos disse: “Tereis o que pediste e maior coisa fará Deus por
vós, se firmemente na verdadeira fé perserverardes”. Então, de nossa própria boca, perguntamos a ele: “Sire, diga-nos quem és tu, que tão grandes coisas fizeste por nós,
para que possamos ao povo cristão teu nome dar a conhecer”. E ele respondeu: “Eu sou aquele que disse: Ecce agnus Dei, Ecce qui tolis peccata mundi (NT: Eis o
cordeiro de Deus, Eis aquele que retira os pecados do mundo). Aquele cuja festa vós hoje celebrais”. E isto dito, não O vimos mais, mas deixou de Si para nós um mui
grande e suavíssimo odor que, durante todo o dia e toda a noite seguintes, nós fomos perfeitamente sustentados, refrescados e alimentados sem outro sustento de carne
corporal. E, tão perfeitamente reconfortados estávamos, que demos ordem de procurar e numerar (quantificar) os corpos dos santos mártires e, quando chegamos ao
local, encontramos à cabeça de cada corpo dos cristãos, um longo galhinho sem ramos que tinha no copo uma mui branca flor como uma hóstia consagrada, e nesta flor
estava escrito com letras de ouro: “eu sou cristão”. E então, nós os separamos dos corpos dos descrentes, agradecendo ao soberano Senhor. E assim, como desejássemos
sobre os corpos mandar dizer o ofício dos mortos, tal como os cristãos têm o costume de fazer, inúmeras vozes do céu soaram e ergueram um canto de mui doce melodia
que parecia, a cada um de nós, que estivéssemos na posse da vida eterna e, por três vezes, cantaram esse versete: “Venite, benedicti patris mei, etc” . Vinde o
abençoado filho de meu pai e vos coloqueis na posse do reino que vos foi preparado desde o início do mundo. E então nós enterramos os corpos, a saber, três mil e
cinquenta e dois perto da cidade de Tebaída, que outrora foi uma cidade singular (renomada), a qual, com as regiões dos arredores, mantivemos para nós e para os leais
cristãos. E este país é tão agradável e deleitável e abundante, que nenhum bom cristão que aí esteja pode duvidar que nele não possa viver bem e encontrar sua
subsistência. E os putrefatos corpos dos descrentes, tanto quanto pudemos contá-los, eram mais de setenta e três mil. Assim, esperamos que o tempo tenha vindo que a
palavra do Evangelho seja feita, a qual diz que haverá um curral e um pastor, quer dizer, que todas as espécies de pessoas serão de uma única fé, juntas na casa e na
obediência à Santa Igreja da qual Jesus Cristo será o pastor, que é bendito para o século dos séculos, Amém ( Qui est benedictus in secula seculorum. Amen). E ocorreu
este milagre no ano da graça de 1347”. Arquivos, Secão Hist. , M. 105.
(NT: texto original em francês arcaico): “A trez sainte dame de la réal lingniée des Françoiz, Jehenne, Royne de Jerusalem et de Cécile, notre trez honorable cousine, Hue
roy de Cypre, tous ses boz desirs emprospérité venir. Esjouissez vous et elessiez avecquez nous et avecques lez autrez crestienz portans le singne de la croix, qui pour la
reverance de Dieu et la venjance du trez doulz Jhesucrist qui pour nous sauver voult estre en l'autel de la crois sacrefiez, se combatent contre la trez mescréant gents des
Turz. Eslevez au ciel le cri de vous voiz au plus haut que vous pourrez et criez ensemble et faitez crier en rendant gracez et loangez sans jamez cesser à la benoite Trinité
et à la très glorieuse Vierge Marie de si sollempnel si grant et singullier bénéfice qui onquez maiz tel dusquez à hore ne fu ouis, lequel je faiz savoir. Quar le XXIIII jours de
juing, nous avecquez lez autrez crestienz signés du singne de la croiz, estions assemblez en un plain entre Smirme et haut lieu, là ou estoit l'ost et l'assemblée trez fort et trez
puissant des Turz prez de XII. c. mille, et nous crestiens environ cc. mille, meuz et animez de la vertu divine, comansamez à si vigreusement combattre et si grant
multitudez Turz mettre à mort, que environ de heure de vesprez nous feusmez tant lassez et tant afoibloiez que nous n'en poyons pluz. Mais tous cheuz à terre atandions la
mort et le loier de notre martire, pour ce que des Turzs avait encore moult deschiellez qui encore point ne sestoient combatu ne nestoient de rienz travaillez et venoient
contre nous, aussi désiraux de boire notre sanc comme chienz sont désiraux de boire le sanc des lievrez. Et beu l'eussent, si la tres haute doulceur du ciel ne eust
aultrement pourveu. Mais quant lez chevaliers de Jhesucrit se regarderent que il estoient venuz à tel point de la bataille, si commencierent de cuer ensemble à crier à voiz
enroueez de leur grant labeur et de leur grant feblesce: O très doulz fils de la trèz doulce Vierge Marie, qui pour nous racheter voulsiz estre crucifiez, donne nous ferme
espérance et veillez noz cuers si en vous confermer que nous pussions par l'amour de ton glorieux non le loier de martire recevoir, que pluz ne nous poonz deffandre de cez
chienz mescreanz. Et ainsi comme nous estienz en oraison en pleurs et en larmez, en criant alassez vois enroueez, et la mort trez amere atendanz, soudainement devant noz
tentez aparut suz un trez blanc cheval si trez haut que nulle beste de si grant hauteur nest unz homs en sa main portant baniere en champ plus blanche que nulle rienz à une
croiz vermeille plus rouge que sanc, et estoit vestu de peuz de chamel, et avoit trez grant et trez longue barbe et de maigre face clere et reluisant comme le soleil, qui cria a
clere et haute voiz: “O les genz de Jhesucrit, ne vous doubtez. Veci la majesté divine qui vous a ouver lez cielx et vouz envoie aide invisible. Levez suz et vous reconfortez
et prenez de la viande et venez vigreusement avecquez moi combattre, ne ne vous doubtez de rienz. Quar des Turz vous aurez victoire et peu mourronz de vouz et ceulz
qui de vouz mourront auront la vie perdurable”. Et adonc nous nouz levamez touz, si reconfortez et aussi comme se nous ne nous feussienz onquez combatuz et
soudainement nous assilemez (assaillîmes) les Turz de tres grand cuer et nous combatimez toutez nuit, et si ne poons paz bien vraiement dire nuit, car la lune non pas
comme lune, maiz comme le soleil resplendissant. Et le jour venu, les Turz qui demourez estoient senfouirent si que pluz ne lez veismez et aussi par l'aide de Dieu nous
eumez victoire de la bataille, et de matin nous nous sentienz plus fors que nous ne faisienz au commencement de la première bataille. Si feimez chanter une messe en
lonneur de la benoite Trinité et de la benoite Vierge Marie, et dévotement priamez Dieu que il nous voulsit octroier grace que les corps des sainz martirs nous puissienz
reconnoistre des corps aux mescreanz. Et adonc celui qui devant nous avoit aparut nous dit: «Vous aurez ce que vous avez demandé et plus grant chose fera Dieu pour
vous, se fermement en vraie foy perseverez.” Adonc de notre propre bouche li demandamez: “Sire, di nous qui es tu, qui si granz choses as fait pour nous, pourquoy nous
puissionz au pueple crestien ton non manifester”. Et il respondi: “Je suis celui qui dist: ‘Ecce agnus Dei, ecce qui tollit peccata mundi, Celui de cui aujourduy vous celebrez
la feste”. Et ce dit, pluz ne le veismez, mais de lui nous demoura si très grant et si très soueve oudeur que ce jour et la nuit ensuivant nous en feumez parfaitement
soustenus, recreez et repuez sans autre soutenance de viande corporelle. Et en ceste si parfaite recreation nous ordenemez de querre et denombrer lez corps dez sainz
martirs et quant nous veinmez au lieu nous trouvasmes au chief de chacun corps dez crestienz un lonc fut sanz wranchez (branches) qui avoit au coupel une trez blanche
fleur ronde comme une oiste (hostie) que l'on consacre, et en celle fleur avoit escript de lettrez dor: Je suis crestien. Et adonc nous lez separamez dez corps dez mescreanz,
en merciant le souverain Seingneur. Et ainsi comme nous voulienz suz lez corps faire dire l'office dez mors, cy comme lez crestienz ont acoustume à faire, lez voix du ciel
sanz nombre entonnerent et leverent un chans de si tres doulce melodie que il sembloit a chaccun de nous que nous feussienz en possession de la vie perdurable, et par III
foiz chanterent ce verset: “Venite, benedicti Patris mei”, etc. Venez lez benoiz filz de mon Pere, et vous metez en possession du royaume qui vouz est aplie dez le
commencement du monde. Et adonc nous ensevelismez les corps, cest a savoir III mille et cinquante et II, jouste la cite de Tesbayde qui fu jadiz une cite singuliere,
laquelle, avuecquez le pays dileuc environ, nous tenonz pour nous et pour loiaux crestienz. Et est ce pays tant plaisant et delitable et plantureux que nul bon crestien qui soit
la, ne se puet doubter que il ne puist bien vivre et trouver sa soustenance. Et les charoingnez des corps des mescreanz cy, comme nous les poimez nombrer, furent pluz de
LXXIIIM. Si avonz esperance que le temps est present venu que la parole de l'Euvangele sera verefiece qui dit qu'il sera une bergerie et un pasteur, c'est-à-dire que toutez
manières de gent seront d'une foy emsemblez en la maison et lobediance de Se. eglise dont Jhesucrist sera pasteur: Qui est benedictus in secula seculorum. Amen. Et avint
cedit miracle en lan de grace MIL CCC et XLVII”.
[251] V. a carta de Clemente V ao rei da França, 11 de novembro de 1311, em Raynouard, p. 177.
[252] Nihil in hoc libro intendit nisi Jesus-Christi noticia et dilectio viscerosa et imitatoria vita (NT: Nada neste livro vai além da intenção de dar conhecimento de Jesus
Cristo e do amor e da compaixão, para que se possa imitar a Sua vida). Arbor Vitæ crucifixi Jesu (NT: A crucificação de Jesus, Árvore da Vida), Prólogo, l. I. – Várias
passagens respiram um amor exaltado: “Ó minha alma, derreta-te e resolve-te toda em lágrimas, lembrando-se da dura vida do querido menino Jesus e da terna Virgem,
Sua mãe. Vê como eles se crucificam por Sua compaixão mútua e por aquela que têm por nós. Ah!, se tu pudeste fazer de ti um leito para o exausto Jesus, que descansa
sobre a terra... Se tu pudeste das tuas lágrimas abundantes fazer-Lhes uma bebida refrescante; peregrinos sedentos, Eles nada encontram de beber... – Há dois sabores
no amor; um tão doce na presença do objeto amado: como Jesus fez Sua mãe saborear, enquanto ela se encontrava com Ele, O abraçava e O beijava. O outro sabor é
amargo, na ausência e no arrependimento. A alma se perde em si, passa a Ele; ela erra ao redor, procurando aquele a quem ama e pedindo socorro a qualquer criatura
(assim a Virgem procurava o pequeno Jesus quando Ele ensinava no Templo). Ubertino de Casale, Arbor Vitæ crucifixi Jesus, lib. V, c. 6-8, in-folio. – A Imitação de
Jesus Cristo é o sujeito comum de um grande número de livros no século XIV. O belo livro que conhecemos sob esse título veio por último; é o mais sábio, o mais razoável
de todos mas não, talvez, o mais eloquente, nem o mais profundo. Ele judiciosamente extraiu o verdadeiro maná cristão desta filosofia ousada, desta poesia luxuriante, sob
as quais os místicos o haviam enterrado.
[253] Segundo alguns, a Paixão era melhor representada pela esmola que pelo sacrifício: Quod opus misericordiæ plus placet Deo, quam sacrificium altaris. Quod in
eleemosyna magis repræsentatur Passio Christi quam in sacrificio Christi. (NT: Que a obra de misericórdia agrada mais a Deus que o sacrifício do altar. Que a
esmola mais representa a Paixão de Cristo que o sacrifício de Cristo). ‘Erreurs condamnées à Tarragone’, ap. d’Argentré, I, 271.
[254] Dante celebra o casamento da pobreza e de São Francisco. Ubertino diz, ingenuamente, esta palavra profunda: “O farol da fé, a pobreza...”. ‘Probationes contra
Ubertino de Casali’, Baluze, Miscell. II, 276.
[255] Vide Ubertino de Casale em seu capítulo Jesus pro nobi indigens (NT: Jesus por nós indigentes): Habentes dicit (apostolus) non quantum ad proprietatem dominii
sed quantum ad facultatem utendi, per quem modum dicium esse quod ultimur, etiam si non si nobis proprium, sed gratis alunde collatum {NT: Tendo dito (o apóstolo),
não tanto no que diz respeito à propriedade, mas quanto para facultar seu uso, por meio do qual está escrito o que é definitivo, mesmo que, para nós, não seja
a solução adequada, para isso contribuiu graciosamente}. Ubertino de Casale, Arbor Vitæ, l. II, c. 11.
[256] Aqueles a quem se havia nominado os “rezadores/rogadores” (beguinos, béghards), reputavam a prece como inútil: onde estiver o espírito, diziam, aí estará a
liberdade. Non sunt humanæ subjecti obedientiæ, nec ad aliqua præcepta ecclesiæ obligantur, quia, ut asserunt, ubi spiritus domini, ibi libertas (NT: Não são os humanos
sujeitos à obediência e nem de alguma forma aos preceitos da Igreja estão obrigados, pois, como afirmam, onde estiver o espírito do Senhor, aí estará a
liberdade). Clementin., l. V, tit. 3, c. 3, D’Argentré, I, 276.
[257] Montanha posteriormente chamada Monte Gazari. Para lá foram muitos cruzados de Vercelli e de Novara, de toda a Lombardia, de Viena, de Savóia, da
Provença e da França. As mulheres se cotizaram e enviaram 500 balestreiros (balistarii) contra esses heréticos. Benv. d’Imola, ap. Muratori, ‘Antiq. Ital.’, I, p. 1120
[258] Venit de Anglia virgo decora valde pariterque facunda, dicens spiritum sanctum incarnatum in redemptionem mulierum, et baptizavit mulieres, in nomine Patris, Fillii
ac sui (NT: Veio da Inglaterra uma virgem muito bonita e eloqüente, dizendo-se o Espírito Santo encarnado para a redenção das mulheres, e batizava as
mulheres em nome do Pai e do Seu filho). Annal. Dominican. Colmar. ap. Urstitium, P. 2, folio 33.
[259] Eles também haviam pregado que a Era do Amor começara. Desde a vinda do Cristo, até o Seu retorno, sete eras deviam escoar, “a sexta, era de renovação
evangélica, de extirpação da seita anticristã pelos pobres voluntários que nada possuíam nesta vida. Esta era começara com São Francisco, o homem seráfico, o anjo do
sexto selo do Apocalipse (quod erat angelus sexti signaculli et quod ad litteram de ipso et ejus statu et ordine evangelista Joannes intelllecti - que era o anjo do sexto selo
e que, de acordo com a letra e estado dele, entendeu-se ordenado por João Batista , Ubertino, V, c. 3), que era um perfeito Jesus, segundo a imagem de sua própria
vida, à semelhança de sua conversa, na perfeita observância dos Evangelhos... perfeitamente figurado (quem perfectus Jesus ad imaginem vitæ suæ, in similitudine
conversationis suæ, in perfectâ observantiâ evangelii... perfectissime figuravit (Ibid.) – Parecia que ele era uma nova encarnação de Jesus (Jesus Franciscum generans),
e sua regra um novo Evangelho ... Defendunt quod regula fratrum mìnorum est vere et proprie idem quod evangelium (NT: Defender aquelas regras dos irmãos
menores é, verdadeira e propriamente, fazer o mesmo pelos Evangelhos). ‘Probat. contra Ubertino de Casali’, ap. Baluze, Miscell., II, 276.
[260] Ubertino, em seu desejo de representar o Evangelho, assegura que sentira e se revestira espiritualmente de todos os personagens; que encenava ser ora o
servidor ou o irmão do Salvador, ora o boi, o asno ou o feno e, às vezes, o próprio menino Jesus. Ele assistia ao suplício acreditando ser a pecadora Madalena; depois, ele
se tornava Jesus sobre a cruz e gritava a Seu pai. Enfim, o espírito o alçava na glória da Ascensão. Arbor Vitæ crucifixi Jesu, Prólogo.
[261] In hoc convenerunt ut dent templariis audientiam sive defensionem. In hac sententiâ concordant... Præter... (NT: E todos em conjunto queriam dar aos
Templários uma audiência ou uma defesa. E com esta sentença (decisão) concordaram... Além disso...). Walsingh. Vita Clemen. V, auctore Ptolem. Rayn. p. 187.
[262] Multis vocatis prælatis cum cardinalibus in privato consistorio, ordinem templariorum cassavit. Tertia autem die aprilis 1312, fuit secunda sessio concilii, et prædicta
cassatio coram omnibus publicata est {NT: Muitos prelados, com cardeais, foram chamados para um consistório privado, e nele a Ordem do Templo foi cassada
(abolida). E, no terceiro dia de abril de 1312, ocorreu a segunda sessão do concílio e a mencionada cassação foi publicada na presença de todos} (“Quint.
Vita Clem. V”)... præsente rege Franciæ cum tribus filiis suis, cui negotium erat cordi (NT: presente o rei da França com seus três filhos, com cujo negócio estavam
de acordo) (“Tert. Vita Clem. V”). A maior parte dos historiadores acreditou que a Ordem fora julgada pelo concílio; a bula de abolição não foi impressa pela primeira
vez senão três séculos depois, em 1606.
[263] Quod ipsæ confessiones ordinem valdè suspectum reddebant... non per modum definitivæ sententiæ, cum tam super hoc, secundum inquisitiones et processus
prædictos, non possemus ferre de jure, sed per viam provisionis et ordinationis apostolicæ... (NT: Que as confissões da Ordem são, por si próprias, muito suspeitas...
não por meio de sentença definitiva, vez que vai aquém disso, segundo as inquirições e processos acima descritos, razão pela qual não podemos aplicar o
direito, senão na forma das provisões e diretrizes apostólicas) .. Reg. anni VII Dom. Clem. V, Rayn. 195. Todavia, não se pode negar que tenha havido muita
complacência e servilidade em relação ao rei da França. Era a opinião da época: ... et sicut audivi ab uno qui fuit examinator causæ et testium, destructus fui (ordo) contrà
justitiam. Et mihi dixit quod ipse Clemens protulit hoc: “Et si non per viam justitiæ potest destrui, destruatur tamen per viam expedientiæ, ne scandalizetur charus filius noster
rex Franciæ. Albericus à Rosate (NT: E como ouvi de um que foi examinador da causa e das testemunhas, a Ordem foi destruída contra toda justiça. E ele me
disse que o próprio Clemente declarara: “E se ela não pode ser destruída por motivos de justiça, que seja destruída ainda que por meio de expedientes, para
que não fique escandalizado nosso querido filho, o rei da França”. Alberico a Rosate).
[264] Hoje, encontra-se em branco, nestes registros, as páginas que foram raspadas muito habilmente. Raynouard, p. 90.
[265] Em Aragão, entretanto, João XXII, ante pedido do rei, aplicou os bens do Templo não em favor dos Hospitalários, mas da nova ordem de Montesa (monastério
fortificado do reino de Valência, dependência de Calatrava).
[266] Per captionem bonorum quondàm ordinis templi jam miserunt per omnes domos ipsius Hospitalis certos executores qui vendunt et distrabunt pro libito bona
Hospitalis (NT: Pela apreensão dos bens que uma vez foram da Ordem do Templo e que foram enviados para o Hospital, alguns executores vendem e distribuem
os mesmos para o bem do Hospital). Carta de João XXII, XV kal. jun. 1316, Rayn. 25.
[267] Modica bona mobilia... quæ ad sumptus et expensas... sufficere minime potuerunt (NT: Boa módica mobília... que os custos e despesas... não poderiam ser
suficientes). Entretanto, o rei de Nápoles, Carlos II, cedera-lhe a metade dos móveis que os Templários possuíam na Provença. Grouvelle, p. 214.
[268] ... Personas reservatas ut nôsti,... vivæ vocis oraculo... (NT: ... Pessoas reservadas a nós, ... dito de viva voz...) 1310, 14 kal. nov. Arquivos, J, 417, nº 20.
[269] Continuador de G. de Nangis, p. 67. Resta-nos ainda um ato autêntico, onde esta execução se encontra indiretamente constatada, num registro do Parlamento do
ano 1313. Cùm nuper Parisius in insulâ existente in fluvio Sequanæ justà pointam jardinii nostri, inter dictum jardinium nostrum ex unâ parte dicti fluvii, et domum
religiosorum virorum ordinis S. Augustini Parisius ex alterâ parte dicti fluvii, executio facta fuerit de duobus hominibus qui quondâm templari extiterunt, in insulâ
prædicta combustis; et abbas et conventus S. Germani de Pratis Parisius, dicentes se esse in saisinâ habendi omnimodam altam et bassam justitiam in insulâ prædictâ...
Nos nolumus... quòd juri prædictorum... præjudicium aliquod generetur {NT: Considerando que, nos últimos tempos, em Paris, em uma ilha situada no rio Sena, perto
do ângulo do nosso jardim, entre este nosso mencionado jardim, numa das margens do referido rio, e a casa da fraternidade da ordem de Sto. Agostinho em
Paris, no lado oposto do referido rio, ocorreu uma execução de dois homens que tinham, antigamente, sido Templários, e que na mencionada ilha eles foram
queimados; e que o abade e o capítulo (conventus) de Saint-Germain-des-Près em Paris afirmam estar na posse da alta e baixa justiça de todo o tipo na
referida ilha .... Nós promulgamos. . . que os direitos do referido abade e do capítulo .... não devem suportar, doravante, nenhum prejuízo} . Olim. Parliam. III,
folio CXLVI, 13 de março de 1313 (1314).
[270] Há moedas de Filipe o Belo que representam a saudação angélica com esta legenda: Salus populi.
[271] Como qualificar as estranhas palavras com as quais Dupuy inicia seu Histoire de la Condemnation des Templiers : “Os grandes príncipes têm uma não sei qual
fatalidade que acompanha suas mais belas e generosas ações, que são o mais frequentemente interpretadas em sentido contrário e mal recebidas por aqueles que ignoram
a origem das coisas, os quais se encontram interessados em um dos partidos (facções): poderosos inimigos da verdade que lhes atribuem motivos e fins viciosos, enquanto
o zelo pela virtude ordinariamente vê a melhor parte”. Dupuy, p. 1.
[272] Esta negação faz-me pensar em algo mais sério do que parece: Oferecei a Deus vossa incredulidade. – Vide o Tomo II, primeira edição (NT: já traduzido e
publicado em português pelo Tradutor-Editor) as cerimônias grotescas e a festa dos idiotas, fatuorum: “O povo erguia a voz, não o povo fictício que fala no coro,
mas o verdadeiro povo vindo de fora que, quando entrava, inumerável, tumultuoso, com sua grande voz confusa, gigante criança, como o São Cristóvão da
lenda, bruto, ignorante, apaixonado, mas dócil, implorando a iniciação, rogando carregar o Cristo sobre seus ombros colossais. Ele entrava trazendo para a
igreja esse medonho dragão do pecado, o arrastava esganado com carnes até os pés do Salvador, sob o golpe da prece que deveria imolá-lo. Algumas vezes,
também, reconhecendo que a bestialidade residia em si próprio, ele expunha em extravagâncias simbólicas a sua miséria, sua enfermidade. Era o que se
chamava a “festa dos idiotas”, a “festa dos loucos”, fatuorum. Esta imitação da orgia pagã, tolerada pelo cristianismo como o adeus do homem à sensualidade
que ele abjurara, se reproduzia nas Festas da infância do Cristo, da Circuncisão, dos Reis, dos Santos Inocentes”.
Em toda iniciação, o recipiendário é apresentado como um inútil, a fim que a iniciação tenha todas as honras de sua regeneração moral. Vide a iniciação dos tanoeiros
alemães (notas da introdução à Histoire Universel, p. 102, primeira edição): “O padrinho então entra e anuncia: eu declaro, com vossa permissão, mestres e
companheiros, que antes eu vos trazia um Couro de Cabra , um assassino de aros, um estraga-madeiras, traidor dos mestres e dos companheiros; agora, eu espero vos
trazer um bravo e honesto companheiro... etc.”
[273] Uma das testemunhas depõe que, como se recusasse a renegar Deus e a cuspir na cruz, Reinaldo (Raynaud) de Brignolles, que o recebia, disse-lhe rindo: “sê
tranquilo, não é nada além de uma farsa (Non cures, quia non est nisi quædam trufa, Rayn. p. 303). O preceptor da Aquitânia, em seu importante depoimento que
transcrevemos em parte, nos conservou, com a narrativa de uma cerimônia desse gênero, uma tradução sobre sua origem:
“Aquele cavaleiro que o iniciava, tendo-o vestido com o manto da Ordem, mostrou-lhe, sobre um missal, um crucifixo e disse-lhe para abjurar o Cristo preso à cruz. E ele,
completamente espantado, recusou-se a fazê-lo gritando: ‘Ai de mim, meu Deus! Por que eu o faria? Eu não o farei de forma alguma!’ – ‘Faça-o sem temor’, respondeu-
lhe o outro, ‘eu juro pela minha alma que tu não provarás nenhum dano à tua alma e à tua consciência; pois é uma cerimônia da Ordem, introduzida por um perverso Grão-
Mestre que encontrava-se cativo de um sultão e não pôde obter sua liberdade senão jurando fazer com que todos os que viessem a ser recebidos na Ordem também assim
abjurassem: e isto foi sempre observado; é por isso que tu podes bem fazê-lo’. E então, o depoente não desejou fazê-lo mas, antes, o contradisse e perguntou onde estava
seu tio e as outras boas pessoas que para lá o haviam conduzido. Mas o outro respondeu-lhe: ‘Eles partiram e é preciso que tu faças o que te prescrevi’. E, ainda assim,
ele não desejou fazê-lo. Vendo sua resistência, o cavaleiro ainda lhe disse: ‘Se desejares jurar-me sobre os santos Evangelhos de Deus que tu dirás a todos os irmãos da
ordem que fizeste o que te prescrevi, disto (da cerimônia de iniciação) far-te-ei graça. E o depoente prometeu e jurou. E, então, ele fez-lhe graça salvo, todavia, que
cobrindo de sua mão o crucifixo, ele o fez cuspir sobre sua mão... Interrrogado se ele ordenara alguns irmãos, respondeu que fez (ordenou) poucos de sua própria mão
por causa dessa irreverência que era necessário executar na recepção... Disse, entretanto, que fizera (ordenara) cinco cavaleiros. E interrogado se ele os fizera abjurar o
Cristo, ele afirmou, sob juramento, que os tratara da mesma forma que fora tratado... E, num dia em que se encontrava na capela para ouvir a missa... O irmão Bernardo
disse-lhe: ‘Senhor, certa trama é urdida contra vós: já se redigiu um ato no qual se determina ao Grão-Mestre e aos outros que, nas recepções dos irmãos da Ordem, vós
não observeis as formas que deveis observar... E o depoente pensou que era por ter poupado esses cavaleiros da cerimônia de iniciação. – Adjurado (suplicado) a dizer
de onde vinha essa cegueira estranha de renegar o Cristo e de cuspir na cruz, ele respondeu sob juramento: Alguns da Ordem dizem que foi uma ordem desse Grão-
Mestre cativo do sultão, como já dito. Outros, que é uma das pérfidas introduções e estatutos do irmão Procelino, outrora Grão-Mestre (NT: é possível que tenha sido
Grão-Mestre regional, departamental, local etc., pois não consta da lista de Grãos-Mestres da Ordem); outros, ainda, dos detestáveis estatutos e doutrinas do irmão
Thomas Bérard, outrora Grão-Mestre (NT: este, sim, foi Grão-Mestre da Ordem de 1256 a 1273) ; outros, que foi por imitação e em memória de São Pedro, que
negou três vezes o Cristo. Dupuy, p. 314-316. Se a ausência de tortura e os esforços do acusado para atenuar o fato colocam esse fato fora de dúvida, seus escrúpulos,
suas precauções, as tradições diversas que ele acumula antes de chegar à origem simbólica, provam não menos seguramente que se havia perdido o significado do
símbolo.
[274] Una est columba mea, perfecta mea, una est matri suæ... Una nempè fuit diluvii tempore arca Noë... Hæc est tunica illa Domini inconsutilis... Dicentibus Apostolis:
Ecce gladii duo hic... (NT: Uma é minha pomba, minha perfeita, única de sua mãe... Uma estava, no dilúvio, na arca de Noé... Eis a túnica sem costura do
Senhor... Disseram os Apóstolos: Eis aqui duas espadas...). ‘Preuves du diff.’, p. 55.
[275] Como é forte esta Igreja e quão temível é o gládio... Bossuet, Oração fúnebre de Le Tellier (Oraison funèbre de Le Tellier).
[276] E, também, creio, os dos irmãos serventes. A maior parte das duzentas testemunhas interrogadas pela comissão pontifícia é qualificada servans, servientes.
Rayn., 155.
[277] Era um dos fatos que, de acordo com os testemunhos, fora colocado, na Inglaterra, na categoria dos pontos irrecusáveis (articuli qui videbantur probati – artigos
que pareciam provados). Ora os chefes encaminhavam alguns ao irmão capelão para serem absolvidos sem confissão: Præcipit fratri capellano cum absolvere à peccatis
suis, quamvis frater capellanus eam confessionem non audierat; p. 377, col. 2, 367. Ora eles próprios os absolviam, ainda que laicos:... quod et credebant et dicebatur
eis quod magnus magister ordinis poterat eos absolvere a peccatis suis. Item quod visitator. Item quod præceptores quorum multi erant laici ; 385, 22
testemunhas. Quod... templari laïci suos homines absolvebant, Concil. Brit., II, 360.
Cinco testemunhas depuseram “que o Grão-Mestre conferia uma absolvição geral para os pecados que a irmandade não estava disposta a confessar por vergonha carnal...
que era a crença deles não ser necessário confessar ao sacerdote aquelas coisas que fossem reconhecidas como pecados pelo capítulo e para as quais o capítulo conferia
a absolvição... que apenas os pecados mortais deviam ser confessados no capítulo e os veniais somente para os sacerdotes (Quod facit generalem absolutionem de
peccatis quæ nolunt confiteri propter erubescentiam carnis... quod credebant quod de peccatis capitulo recognitis, de quibus ibidem fuerat absolutio non
oportebat confiteri sacerdoti... quod de mortalibus non debebant confiteri nisi in capitulo, et de venialibus tantum sacerdoti), 358 col.1.
Mesma concordância nos depoimentos dos Templários da Escócia: Inferiores clerici vel laïci possunt absolvere fratres sibi subditos (NT: Clérigos inferiores e até mesmo
laicos podem absolver os irmãos abaixo deles); p. 381, col. 1, primeira testemunha. Igualmente, a 41ª testemunha. Conc. Brit. 14, p. 382.

[278] (NT): forma antiquada e em desuso para “Meu senhor” (Mon Sire e, na evolução, Mon Seigneur e Monseigneur), sendo um pronome de tratamento para
pessoas distintas. Evoluiu para se transformar em Monsieur.
[279] vide a morte do presidente Minart.
[280] nada mais frequente, nas hagiografias, que esta luta pela alma convertida ou, antes, desse processo simulado onde o diabo vem, apesar de si, prestar testemunho
em favor do arrependimento. Conhece-se a famosa lenda de Dagoberto. César d’Heisterbach menciona uma história semelhante de um usurário convertido. Que o debate
fosse ou não visível, era sempre a mesma fórmula: Si quis decedat contritus ett confessus, licet non satisfecerit de peccatis confessis, tamen boni angeli comfortant ipsum
contra incursum dæmenum, dicentes... Quibus maligni spiritus... Mox advenit Virgo Maria alloquens dæmones... etc. (NT: Se alguém morrer contrito e confessado,
embora não tenha dado satisfação dos pecados que confessou, ainda assim os bons anjos o confortam contra o ataque dos demônios, dizendo... para
qualquer dos espíritos malignos... Agora se apresenta a Virgem Maria se dirigindo aos demônios... etc.). Herm. Corn. chr. ap. Eccard. m. ævi, t. 2, p. 11.
[281] Agnei, lucifugi, etc. M. Psellus, p. 69 e 39. Este autor bizantino é do século XI. Ed. Gaulminus. 1615, in-12. – Bodin, em seu livro ‘De Præstigiis’, impresso na
Basiléia, realizou o inventário da monaquia diabólica com os nomes e sobrenomes de 72 príncipes e de 7.105.926 diabos. Bodin, p. 218.
[282] Vários foram acusados de os terem vendidos presos em garrafas. “Quisesse Deus”, disse seriamente Le Loyer, “que esta mercadoria fosse menos comum no
comércio!”, Le Loyer, p. 217, 108
[283] Memórias de Lutero, t. III.
[284] (NT): a Tour de Nesle, destruída em 1665, ocupa um papel importante no início da famosa série literária ‘Os Reis Malditos’, de Maurice Druon, pois era lá que
ocorriam as orgias sexuais da mulher e das noras de Filipe o Belo, segundo a tradição mencionada.
[285] Ora, livrei-me do diabo que todo mundo desejava executar! – Arquivos, Secão Hist., J. 438.
[286] A denúncia foi tanto melhor acolhida quanto Guichard se passava por filho de um demônio, de um íncubo. Ibidem.
[287] Margarida (Marguerite), filha do duque da Borgonha, Joana (Jeanne) e Branca (Blanche), filhas do conde da Borgonha (Franco-Condado). Mulierculis... adhùc
ætate juvenculis (NT: Mulheres... todas elas jovens). Contin. G. de Nangis, in Sipicil. D’achery, III, 68.
[288] Pluribus locis et temporibus sacrossanctis (NT: Em vários locais e em muitos dias sacrossantos). Ibidem
[289] Jean de Meung Clopinel, poeta que, segundo se conta, por ordem de Filipe o Belo, alongou com dezoito mil versos o já extenso Romance da Rosa, expressa
brutalmente o que pensa das damas deste século. Conta-se que estas damas, para vingar sua reputação de honra e de modéstia, aguardaram o poeta, bastões na mão, e
que desejaram espancá-lo. Ele teria escapado pedindo por graça única que a mais ultrajada batesse primeiro: “Recatadas mulheres, por São Dinis, igualam em número a
Fênix, etc.” (“Prudes femmes, par saint Denis, Autant en est que de Phénix...”) – De resto, ele mesmo cuidara de justificá-las pelas doutrinas que pregava em seu
livro. Não é nada menos que a comunidade das mulheres:

Car nature n’est pas si sotte...


Ains vous a fait, beau fils, n’en doubtes,
Toutes pour tous, et tous pour toutes,
Chascune pour chascun commune
Et chascun commun pour chascune
Roman de la Rose, V. 14, 653.
Éd. 1735-7
(NT):
Pois a natureza não é assim tão tola...
Assim ela vos fez, belo filho, não
duvideis:
Todas para todos e todos para todas,
Cada uma para cada um é comum
E cada um é comum para cada uma.

Esta insípida obra, que não tem a seu favor senão o jargão da galanteria do início da época e a obscenidade do seu fim, parece a profissão de fé do sensualismo grosseiro
que reina no século XIV. Jean Molinet a moralizou e a pôs em prosa.
[290] (NT): Na frente da Igreja de São Gervásio, em Paris, há um olmo protegido por uma corrente. Trata-se de uma antiga tradição, pois já na Idade Média, o olmo
(obviamente, não o atual, mas seus antecessores) já era muito conhecido, sendo que aí eram ajustadas as dívidas, além de servir de famoso ponto de encontro.
[291] (NT): Vide o excelente estudo feito pelo filósofo francês Michel Foucault, em seu livro “Surveiller et Punir” (1975), especialmente o Capítulo II da Primeira Parte
(“A ostentação dos suplícios”), da qual destaco o seguinte trecho (“Vigiar e Punir”, Ed. Vozes, 1998, 17ª edição, trad. de Raquel Ramalhete, pg. 41) :
“O suplício judiciário deve ser compreendido também como um ritual político. Faz parte, mesmo num modo menor, das cerimônias pelas quais se manifesta o
poder.
A infração, segundo o direito da era clássica, além do dano que pode eventualmente produzir, além mesmo da regra que infringe, prejudica o direito do que faz
valer a lei:
Mesmo supondo que não haja prejuízo nem injúria ao indivíduo, se foi cometida alguma coisa proibida por lei, é um delito que exige reparação, porque o direito do
superior é violado e é injuriar a dignidade de seu caráter25.
O crime, além de sua vítima imediata, ataca o soberano; ataca-o pessoalmente, pois a lei vale como a vontade do soberano; ataca-o fisicamente, pois a força da
lei é a força do próprio príncipe...”

[292] Conta o monge historiador que ela foi brutalmente engravidada por seu carcereiro ou por outros: “Blancha verò carcere remanens, à serviente quodam ejus
custodiæ deputato dicebatur imprægnata fuisse quàm à proprio Comite diceretur, vel ab aliis imprægnata” (NT: Quanto à Branca, que realmente permaneceu no
cárcere, ela foi emprenhada por um certo servidor a quem fora confiada sua custódia, ainda que também se diga que o tivesse sido pelo Conde, seu próprio
marido, ou emprenhada por qualquer outro – a partir de http://remacle.org/bloodwolf/historiens/guillaumenangis/chronique7.htm) – Cont. de Guil. de Nangis, p. 70. E
ele continua com uma cruel despreocupação; talvez não ousasse contar mais. Com base no que se sabe dos príncipes dessa época, pode-se muito bem acreditar que a
pobre criatura, cuja primeira fraqueza não fora bem provada, tivesse sido posta à discrição de um homem encarregado de aviltá-la.
Esta horrível aventura das noras de Filipe o Belo talvez tenha dado lugar, por um mal-entendido, à tradição relativa à mulher deste príncipe, Joana de Navarra e ao hôtel de
Nesle. Nenhum testemunho antigo apóia esta tradição. Vide Pierre Bayle, artigo ‘Buridan’. A tradição seria todavia ainda menos verossímil se desejássemos, como Bayle,
aplicá-la a qualquer das noras do rei. Jovens como eram, elas não teriam necessidade de tais meios para encontrar amantes. O que quer que tenha ocorrido, Joana de
Navarra parece ter sido de um temperamento duro e sanguinário (vide mais acima). Ela era rainha de direito e podia tratar seu marido com menos deferência.
[293] Totis nudis corporibus processionaliter... Idem, anno 1315, p. 70.
[294] (NT): “O último Mestre da Ordem do Templo, Jacques de Molay, teria amaldiçoado seus acusadores dentro da fogueira da Ilha dos Judeus, em Paris, no dia 11 de
março de 1314. Segundo o cronista Godofredo (Geoffroi) de Paris, sua declaração teria sido: “Senhores, ao menos deixai-me unir um pouco minhas mãos para Deus fazer
minhas preces, pois é o tempo e a estação: vejo aqui meu julgamento... Deus sabe quem errou e pecou: e que a desgraça logo se abata sobre aqueles que nos condenam
com erro. Deus vingará nossa morte! Senhores, sabei que, em verdade, todos aqueles que nos são contrários, por nós irão sofrer. E, nesta fé, desejo morrer.
Ferrero de Ferretis relata, por volta de 1330, as últimas palavras de um Templário anônimo, que as teria pronunciado, face ao Papa, durante seu processo: “Do teu injusto
julgamento, apelo ao Deus verdadeiro e vivo; dentro de um ano e um dia, com Filipe, também responsável por tudo isso, tu comparecerás para responder às minhas
objeções e apresentar tua defesa”. Já nesta época, Jacques de Molay não está mais ao centro da lenda, e assim será até o século XVI: o suplício do último Grão-Mestre
parece ter marcado menos os espíritos que as execuções dos outros Templários em 1310.
O amálgama final foi realizado por Paul Emile no ‘De Rebus Gestis Francorum’, publicado em 1548; ao menos, esta é a primeira versão escrita que se conhece: o apelo
ao julgamento de Deus se torna uma verdadeira maldição pronunciada por Jacques de Molay contra Filipe o Belo e Clemente V. Os historiadores posteriores retornarão,
por muito tempo, a este tema tornado evidente, como François de Mézeray (1610-1683), que diz ter lido (sem precisar aonde): “... li que o Grão-Mestre, não tendo senão a
língua livre e já quase asfixiado pela fumaça, disse em alto som: “Clemente, juiz iníqüo e cruel carrasco, eu te prorrogo quarenta dias para compareceres perante o tribunal
do Soberano Juiz”.
Esta lenda popular tornou-se uma verdadeira tradição e foi novamente honrada pelo escritor Maurice Druon em seu bem-sucedido romance ‘Os Reis Malditos’ (Les Rois
Maudits), 1955-1977, no qual a maldição se torna: “Papa Clemente!... Cavaleiro Guilherme!... Rei Filipe!... Antes de um ano, eu vos cito para comparecerem perante o
tribunal de Deus para aí receberem vossos justos julgamentos! Malditos! Malditos! Malditos! Todos malditos até à décima-terceira geração de vossas raças! (“Pape
Clément !… Chevalier Guillaume !… Roi Philippe !… Avant un an, je vous cite à paraître au tribunal de Dieu pour y recevoir votre juste jugement ! Maudits !
Maudits ! Maudits ! Tous maudits jusqu'à la treizième génération de vos races !”) – vide http://fr.wikipedia.org/wiki/Légendes_au_sujet_des_Templiers, tópico ‘6 -
La malédiction des Templiers’.
[295] Quando de sua morte, ele permaneceu por algum tempo como que abandonado: Gascones qui cum eo steterant, intenti circà sarcinas, videbantur de sepultura
corporis non curare, quia diù remansit insepultum {NT: Os Gascões que a ele serviam, mal findara o último sopro de seu corpo, descuraram dar-lhe sepultura,
deixando-o insepulto, para irem pilhar (o palácio papal)}. Baluz., Vit. Pap. Aven. I, p. 22.
[296] Dante, Paradiso, c. XIX:
Lì si vedrà il duol, che soprà Senna
induce, falseggiando la moneta,
quel che morrà di colpo di cotenna

(NT):
Lá, ver-se-á o luto, que sobre o Sena
produz, falsificando moeda,
aquele que morrerá dum golpe de porco

Segundo vários autores, ele na verdade teria sido morto na caça ao cervo. “Ele viu o cervo vir em sua direção, sacou sua espada, feriu seu cavalo com as esporas e
procurou ferir o cervo, e seu cavalo ainda o fez chocar-se contra uma árvore de grande altura, que o bom rei caiu à terra e foi mui duramente ferido no coração, e foi
levado a Corbeil. Aí, agravou-se mui seriamente sua enfermidade...” (Il veit venir le cerf vers luy, si sacqua son espée, et ferit son cheval des esperons, et cuida
férir le cerf, et son cheval le porta encontre contre um arbre de si grand reideur, que le bom roy cheut à terre, et fut moult durement blecé au cueur, et fut porté
à Corbeil. Là, luy agreva sa maladie moult fort...), “Chronique”, trad. por Sauvage, p. 110, Lyon, 1572, in-folio.
[297] Phillipus Rex Franciæ diuturnâ detentus infirmitate, cujus medicis erat incognita, non solùm ipsis, sed et aliis multis stuporis materiam et admirationis induxit;
præsertim cum infirmitatis aut mortis periculum nec pulsus ostenderet nec urina (NT: Filipe, rei da França, foi presa de uma longa doença, cuja causa, uma
incógnita para os médicos, não só para eles, mas para muitos outros, foi motivo de estupor e causou surpresa ; sobretudo porque nem seu pulso, nem sua
urina, prenunciavam que estivesse enfermo ou em perigo de morte – http://remacle.org/bloodwolf/historiens/guillaumenangis/chronique7.htm).

[298] V. S. Ægidii Romani, archiep. Bituricensis questio De utrâque potestate, edidit Goldastus, Monarchia, II, 95. Um Colonna não podia senão inspirar em seu discípulo
o ódio aos Papas.
[299] (NT): “De consolatione philosophiæ (A Consolação pela Filosofia)” - http://pt.wikipedia.org/wiki/Boécio
[300] (NT): vide http://pt.wikipedia.org/wiki/Flávio_Vegécio.
[301] Foi o autor (NT: Michelet quis dizer ‘o continuador’) do Romance da Rosa, Jean de Meung quem lhe traduziu esses livros. Na Epístola Preliminar, posta à
frente do livro da Consolação, Meung evoca todos os seus títulos literários: “À tua Real Majestade, mui nobre Príncipe, pela Graça de Deus, Rei dos Franceses, Filipe o
Quarto; eu, Jean de Meung, quem outrora acrescentou ao Romance da Rosa, colocando o Ciúme na prisão Bem-Vinda, e ensinou a maneira de tomar o Castelo e colher a
Rosa; e traduziu do latim para o francês o livro de cavalaria de Vegécio, e o livro das maravilhas da Irlanda, e o livro das Cartas de Pedro Abelardo e Heloísa, sua mulher;
e o livro de Elredo (de Rievaulx), de amizade espiritual: ora te encaminho Boécio da Consolação, que traduzi para o francês, ainda que bem compreendas o latim” (A ta
royale Majesté, très-noble Prince, par la Grâce de Dieu, Roy des François, Phillippes-le-Quart; je Jehan de Meung qui jadis au Romans de la Rose, puisque
Jalousie ot mis en prison Bel-acueil, ay enseigné la manière du Chastel prendre, et de la Rose cueillir; et translaté de latin en françois le livre de Vegèce de
chevalerie, et le livre des merveilles de Hirlande; et le livre des Épistres de Pierre Abeillard e Héloise sa femme; et le livre d’Aelred, de spirituelle amitié: envoye
ores Boèce de Consolation, que j’ai translaté en françois, jaçoit ce qu’entendes bien latin”).
A confiança que o rei nele tinha não o impediu de traçar, no Romance da Rosa, este rude quadro da realeza primitiva:

Ung grant villain entre eulx esleurent,


Le plus corsu de quanqu’ils furent,
Le plus ossu, et le greigneur,
Et le firent prince et seigneur.
Cil jura que droit leur tiendroit,
Se chacun en droit soy luy livre
Des biens dont il se puisse vivre...
De là vint le commencement
Aux roys et princes terriens
Selon les livres anciens.
(Rom. de la Rose, v. 1064).

(NT: tradução e adaptação livres)

Um muito feio entre si elegeram,


O mais corpulento de quantos fossem,
O mais ossudo e grunhidor,
E o fizeram príncipe e senhor.
Que jurou que os direitos deles manterá,
Se cada um de direito lhe remeter,
Os bens com os quais possa viver...
Daí vem o começo
Dos reis e príncipes terrenos
Segundo os livros antigos.

[302] Bulæus Hist. Univ., III, anno 1285. - “Neste ano ocorreu uma grande dissensão entre o Reitor, mestres e escolares da Universidade de Paris e o preboste do dito
lugar; porque o mencionado preboste mandara enforcar um douto da mencionada Universidade. Então, cessou o ensino de todas as faculdades, até que o retrocitado
preboste a corrigisse e prestasse grande reparação pela ofensa; e, dentre outras coisas, foi o mencionado preboste condenado a despendurá-lo (o corpo) e a beijá-lo. E
convencionou-se que o mencionado preboste partisse para Avignon, para encontrar o Papa, a fim de se fazer absolver” (“En celle année s’esmeut grand’dissension en
les Recteur, maistres et escholiers de l’Université de Paris, et le prévost dudit lieu; parce que ledit prévost avait fait pendre un clerc de ladite Université. Adonc
cessa la lecture de toutes facultéz, jusques à tant que ledit prévost l’amenda, et répara grandement l’offense, et entre autres choses fut condamné ledit prévost
à le dépendre et le baiser. Et convint que ledit prévost allast en Avignon vers le Pape, pour soy faire absoudre”). Nicolas Gilles, apud Bulæum, IV, 73
[303] Bulæus, IV, 70. Vide em Goldast, II, 108, Johannis de Parisiis Tractatus de potestate regiâ et papali.
(NT): João Pica-Asno ou João Pica-Burro (Jean Pique-Âne) é João de Paris (Jean de Paris), também chamado Jean Quidort ou Johannis de Soardis (circa 1255 –
1306), dominicano francês, filósofo e teólogo. A respeito do apelido, há dissensões: uns dizem tratar-se de sobrenome de família pois, no necrológio da igreja de Notre-
Dame de Paris, encontra-se um ancestral seu chamado Guillaume Pique-l’âne (tornou-se o manuscrito nº 3.883 da Biblioteca do Rei); outros afirmam tratar-se de um
epíteto honroso em virtude de seus argumentos escolásticos e doutorais serem agudos e afiados (sobre a discussão a respeito da origem do apelido, vide nº XX, pág. 422,
do livro Histoire Littéraire de la France , Tomo XIX, escrito pelos membros do Instituto – Academia Real dos Registros e Belas-Letras, gratuitamente disponível em
Books Google – www.books.google.com.br)
[304] Ord. I, 502: O rei declara que não haverá professores de Teologia. Vide também Bulæus, IV, 101-107.
[305] Aos colégios de Navarra e de Montaigu, deve-se acrescentar o colégio de Harcourt (1280); a casa do cardeal (1303), o colégio de Bayeux (1308) – 1314,
colégio de Laon; 1317, colégio de Narbonne; 1319, colégio de Tréguier; 1317-1321, colégio das Cornualhas; 1326, colégio do Plessis, colégio dos Escoceses; 1329, colégio
de Marmoutiers; 1382, um novo colégio de Narbonne fundado em execução do testamento de Joana da Borgonha; 1334, colégio dos Lombardos; 1334, colégio de Tours;
1336, colégio de Lisieux; 1337, colégio de Autun, etc.
[306] Mons acutus, dentes acuti, ingenium acutum (NT: Monte agudo, dentes agudos, gênio agudo).
(NT): O Colégio de Montaigu (mont-aigu, monte agudo ou monte pontudo) fundado por Gilles d’Aiscelin (ou Aycelin) de Montaigut, foi restaurado por seu sobrinho Pierre
Aiscelin (Aycelin) de Montaigut e, a partir daí, chamado de Colégio de Montaigu (anteriormente Collége des Aicels); os edifícios se encontravam na atual praça do
Panteão de Paris. Teve vários alunos célebres - Erasmo de Roterdam, Rabelais, Villegagnon [explorador que fundou, no Rio de Janeiro, a França Antártica, tendo
construído o Forte Coligny na atual ilha de Villeganon (antigamente ilha de Serigipe ou das Palmeiras), na qual se encontra a Escola Naval], Calvino, John
Knox, Inácio de Loyola, Diogo de Gouveia etc. O Colégio foi objeto de um comentário devastador de Erasmo de Roterdam, que aí viveu entre 1494 e 1495, apesar deste
ter direito a um regime escolar mais privilegiado. Em seus Colóquios, Erasmo escreve: “Há trinta anos, eu vivi em Paris, num colégio... no qual reinava João (Jean)
Standonck, homem de intenções louváveis, mas completamente desprovido de bom juízo. Evocando sua juventude, que fora passada numa pobreza extrema, ele não
negligenciava os pobres: devia-se aprová-lo publicamente por isso. E se ele apenas se contentasse em aliviar a miséria dos mesmos, em fazer chegar aos jovens os
modestos recursos necessários ao seu estudo, teria ele merecido total louvor. Mas ele se pôs à sua iniciativa com uma autoridade tão dura, constrangendo-os a um regime
tão rude, a tamanhas abstinências, a vésperas e trabalhos tão penosos, que vários deles, felizmente dotados e que davam as mais belas esperanças, morreram ou se
tornaram, por sua culpa, cegos, loucos ou leprosos, desde o primeiro ano de estudo: nenhum ficou sem correr algum perigo. Não é isto a barbárie em relação ao próximo?
Não contente desses rigores, ele os fez usar a capa e a cogula (túnica de mangas largas e compridas, havendo uma específica para penitentes, que cobre
completamente a cabeça, à exceção dos olhos); proibiu-lhes o consumo de carne... No coração do inverno, eram alimentados com um pouco de pão ou eram obrigados
a beber a água do poço, corrompida e perigosa, quando o frio da manhã não a havia congelado. Conheço mesmo alguns que, ainda hoje, não puderam se curar das
enfermidades contraídas em Montaigu. Havia alguns cômodos baixos, nos quais o gesso estava bolorento e que empesteava os arredores das latrinas. Ninguém os habitou
sem aí morrer ou contrair alguma grave doença. Não falo da crueldade com que se chicoteava os colegiais, mesmo os inocentes. Pretendia-se, desta forma, abater o
orgulho; compreendendo-se por orgulho toda natureza nobre que se punham a arruinar para tornar os adolescentes aptos à vida monástica... Como lá se devorava ovos
pútridos! Quanto vinho estragado lá não se bebia!”. – Rabelais, chamando-o de “colégio da piolhada” (collége de pouillerie), coloca na boca de seu personagem
Ponócrates as seguintes palavras: “Melhor são tratados os forçados entre os Mouros e os Tártaros, os assassinos na prisão criminal, com certeza os cães em vossa casa,
que estes desgraçados no mencionado colégio! E se eu fosse rei em Paris, que o diabo me carregue se eu não tocasse fogo nele e fizesse queimar o Principal (Diretor) e o
Regente, que suportam esta desumanidade à frente de seus olhos”.
[307] “O mestre será eleito dentre os pobres colegiais e por eles... O eleito será chamado Ministro dos Pobres”. Faz-se menção, neste regulamento de fundação, a 84
pobres colegiais em honra dos 12 apóstolos e dos 72 discípulos.
[308] A túnica desta sociedade era uma capa fechada pela frente, como utilizavam os mestres-de-artes ( maîtres-ès-arts) da rue de Fouarre, e uma murça também
fechada pela frente e por trás, donde seu nome de Capetos (NT: capuchos, capuchinhos – “Capetes”, em francês). Os pais não podiam ameaçar seus filhos com um
castigo pior que o de fazê-los Capuchos. Felibien, I, 526 e segs.
[309] (NT): “Quarentena do Rei”: “um intervalo de quarenta dias deve obrigatoriamente decorrer entre a ofensa feita, e devidamente anotada por aquele que a recebeu,
e a abertura das hostilidades. Sábia medida que reserva tempo para a reflexão e as conciliações de comum acordo. Este mesmo intervalo de quarenta dias encontra-se nos
prazos concedidos aos que pertencem a uma cidade inimiga para voltar para a sua terra e pôr os seus haveres em segurança quando rebentar uma guerra. Assim, não
poderia, na Idade Média, existir questão de seqüestro ou de campo de concentração” (“Luz da Idade Média” – Lumière du Moyen Âge, Régine Pernoud, tradutor
desconhecido em www.revolucao-contrarevolucao.com/luzdaidademedia.doc). Quanto ao assurement, o Tradutor não encontrou um termo consagrado em língua
portuguesa, razão pela qual o traduziu para “asseguramento” e/ou “garantia”, uma vez que o instituto legal é assim definido: A palavra asseurement ou assurement é um
derivado do verbo assurer (assegurar, garantir) somado ao sufixo (e)ment. O asseguramento/garantia é um conceito medieval. Mais precisamente, trata-se de um ato
perante a autoridade garantindo a paz entre duas partes adversas, geralmente após uma vingança (http://fr.wikipedia.org/wiki/Asseurement).
[310] Omnes in regno Franciæ temperatam juridictionem habentes, baillivum, præpositum et servientes laicos et nullatenus clericos instituant, ut, si ibi delinquant,
superiores sui possint animadvertere in eosdem. Et si aliqui clerici sint in prædictis officiis, amoveantur (NT: Que todos os que, no reino da França, disponham de
jurisdição limitada, apontem julgadores, e de forma alguma clérigos, para seus tribunais, prepostos e serventes, a fim de que, em caso de deliquência, possam
os mesmos ser punidos por seus superiores. E que todos os clérigos, que estejam em tais ofícios, sejam removidos). Ord. 1, p. 316. Anos 1287-1288.
[311] Non capiantur aut incarcerentur ad mandatum aliquorum patrum, fratrum alcujus ordinis vel aliorum, quocunque fungantur officio (NT: Que não sejam eles
detidos ou encarcerados com base em mandado de qualquer dos padres ou irmãos de qualquer ordem, ou de qualquer outro, qualquer que seja seu ofício) .
Ord. 1, 317.
[312] Ord., 1, 322. Distingue-se aí os feudos do rei, os subfeudos dos vavassalos e os alódios. Em todos os casos, o imposto real para as aquisições a título oneroso é o
dobro do imposto das aquisições a título gratuito. Temia-se mais as compras que as doações.
[313] Ad instar Ludovici, eximii confessoris... guerras..., bella..., provocationes etiam ad duellum... durantibus guerris nostris, exprese inhibemus (NT: A exemplo de São
Luís, o ilustre confessor... batalhas..., guerras..., provocações e duelos... enquanto estivermos em nossa guerra, são expressamente proibidos) . Ord. 1, 390.
Conf. p. 328. Ann. 1296, p. 344. Ann. 1302, p. 549. Ann. 1314, julho.
[314] Quatenus omnes et singulos nobiles... capias et arrestes, capique et arrestari facias, et tamdiu in arresto teneri, donec a nobis mandatum
[315] Em 1302, ordem ao bailio de Amiens de enviar para a guerra de Flandres todos aqueles que tivessem mais de 100 libras em móveis e 200 em imóveis; os outros
deveriam ser poupados. Ord. 1, 345. Mas, no ano seguinte (29 de maio), foi ordenado que todo plebeu que tivesse cinquenta libras em móveis ou vinte em imóveis
contribuísse de sua pessoa ou com seu dinheiro. Ord. 1, 373.
[316] Eram as formalidades análogas àquelas que hoje se impõem ao estrangeiro que deseja se tornar Francês: autorização do preboste ou prefeito, domicílio
estabelecido por compra, “para direito de cidadania, de uma casa, durante um ano e um dia, no valor de, pelo menos, sessenta soldos parisienses; notificação ao senhor de
quem a comprou” (“pour raison de la bourgeoisie d’une maison dedenz an et jour, de la value de soixante sols parisis, au moins; signification au seigneur
dessoubs cui il iert partis”); residência obrigatória desde o Dia de Todos os Santos até São João, etc. Ord. I, 314.
[317] Ord. I, p. 318... Quod bona mobilia clericorum capi vel justiciari non possint... per justiciam secularem... Causæ ordinariæ prælatorum in parliamentis tantummodo
agitentur... nec ad senescallos aut baillivos... liceat appellare... Non impdiantur a taillis... etc.
[318] Baillivis... injugimus... diocesanis episcopis, et inquisitoribus... pareant, et intendant in hæreticorum investigatione, captione..., condemnatos sibi relictos statim
recipiant, indilate animadversione debita puniendos... non obstantibus appellationibus. Ord. I, p. 330, ann. 1298.
[319] Mandamentos dirigidos aos bailios da Turânia e do Maine para ordenar-lhes o respeito pelos eclesiásticos. Cartas concedidas aos bispos da Normandia contra as
opressões dos bailios, viscondes, etc. Ord. I, 331, 334. Ordenação semelhante em favor das igrejas do Languedoc. 08 de maio de 1302. ibid., p. 340.
[320] (NT): Contra a voracidade da usura... desejamos que a soma originalmente emprestada seja livre de quaisquer encargos e remitido tudo que vá além dela (Contra
usurarum voraginem... volumus ut debita quantum ad sortem primariam plenarie persolvantur, quod vero ultra sortem fuerit legaliter penitus remittendo). Ord. I,
334.
[321] Nisi prius per aliquem idoneum virum quem ad hoc specialiter deputaverimus...constiterit, quod non sumus in bonâ saisinâ percipiendi...
[322] (NT): Fazei a todos saber, por proclamação geral, sem distinguir prelados ou barões, que todos os tipos de pessoas tragam a metade de sua louça de prata branca”.
Ord. I, 347.
[323] Nomulli prælati, abbates, priores... inhibitione nostra spreta... ab regno egredi... Nolentes igitur ob ipsarum absentiam personarum bona earum dissipari et potius ea
cupientes conservari... mandamus, etc. (NT: Certos prelados, abades, priores... em desobediência à nossa proibição... tendo deixado o reino... nós, insatisfeitos
que, por sua ausência pessoal, seus bens sejam dissipados, e desejosos de melhor preservá-los... mandamos que... etc.”). Ord. I, 349. A irritação parece ter sido
grande contra os padres; o rei foi obrigado a proibir aos Normandos o brado de Haro nos clérigos*. Ord. I, 348.
* (NT): “Haro, harau ou harol” é derivada de “ha” e “Raoul” (Raul) ou Rollo, primeiro Duque da Normandia, e equivale a “Fora com eles”, “Em cima (deles)”, “Abaixo
(eles)” – nota tomada emprestada à tradução de G. H. Smith, F.G.S.
[324] O rei declara que, na reforma de seu reino, põe as igrejas sob sua proteção e garante-lhes o gozo de suas franquias, liberdades ou privilégios, como ao tempo de
seu avô São Luís. Em consequência, se acontecer-lhe pronunciar alguma apreensão ou coleta contra um sacerdote, seu bailio não deverá assim proceder senão após
“madura investigação”, e a apreensão ou coleta jamais ultrapassará o montante da multa. Observar-se-ão, em todo o reino, os “bons costumes” que existiam ao tempo de
São Luís, a fim de restabelecê-los. Se os prelados ou barões tiverem alguma causa para o Parlamento, ela será tratada honestamente e prontamente resolvida. Ord. I, 357.
[325] Nisi in casu pertinente ad jus nostrum regium... Ele acrescentava, portanto, que o feudo assim adquirido em virtude de infração seria, dentro de ano e dia, tirado de
suas mãos em favor de uma pessoa conveniente que servisse o feudo. Mas ele ainda se reservava esta alternativa: “Ou daremos ao senhor do feudo uma recompensa
suficiente e razoável”. Ibid., 358.
A maior parte desta Ordenação de reforma refere-se aos bailios e aos outros oficiais reais e tende a prevenir os abusos de poder. Nomeados pelo Grão-Conselho (14),
eles não poderão fazer parte desta assembléia (16). Não poderão ter por prebostes ou lugares-tenentes seus parentes ou aliados, nem preencher estes cargos no seu local
de nascença (27), nem se vincular, por casamento ou compra de imóveis, à região de sua jurisdição, medida de garantia imitada dos Romanos, mas estendida aos filhos,
irmãs, sobrinhos e sobrinhas dos oficiais reais (50-51). A Ordenação regrava o tempo de seus mandatos (26), a respeito dos quais, terminando, deviam precisar o início do
seguinte; ela estabelecia os limites de suas províncias (60), de suas competências entre as jurisdições dos prelados e dos barões (25), e os limites de seus poderes sobre
seus administrados. Eles não podiam levar ninguém à prisão por débitos, salvo se “a detenção de seu corpo” (contrainte par corps) tivesse sido decretada por cartas
contendo o selo real (52). A mesma Ordenação proibia-lhes receber a título de doação ou empréstimo (40-43), fosse para si ou para seus filhos (41: eles não poderão
receber vinho, nem em barris, nem em garrafas ou jarras), e não poderão vender as sobras; nem dar qualquer presente aos membros do Grão-Conselho, seus juízes (33),
nem recebê-los dos bailios seus inferiores. A nomeação para esses cargos devia ser feita por eles com as maiores precauções (56); o rei continua a deles excluir os
clérigos e os põe em péssima companhia: Non clerici, non usurari, non infames, nec suspecti circa oppressiones subjectorum (19) (NT: Nem clérigos, nem usurários, nem
infames, nem suspeitos de opressão contra os súditos). Ord. I, 357-367.
[326] Nula dúvida que a origem do Parlamento possa ser traçada mais para trás. Encontra-se sua primeira menção na Ordenação chamada Testamento de Filipe
Augusto (1190). Vide o importante memorando de M. Klimrath ‘Sus les Olim et sur le Parlement’. Vide também uma dissertação sobre a origem do Parlamento
(Arquivos do Reino). O autor anônimo, que talvez tenha escrito à época do chanceler Maupeou, partilha a opinião de M. Klimrath. Se, entretanto, considerarmos a
importância toda nova que o Parlamento tomou sob Filipe o Belo, não é de se espantar que a maior parte dos historiadores o tenha chamado de seu fundador.
[327] Ann. 1304. Ord. I, 547. Esta Ordenação parece ser a execução do artigo 62 do édito que acabamos de analisar. É o regulamento de administração que completa a
lei.
[328] (NT): Esmoler (antiquado): pessoa caridosa que dá ou distribui esmolas, caritativo.
[329] (NT): O direito (droit) de chambellage: variava de acordo com os Costumes de cada cidade ou região. Para esta passagem, o droit de chambellage pode ser
assim definido: “um direito (obrigação) que os bispos, arcebispos, abades e outros prelados do reino pagavam ao rei quando prestavam-lhe juramento de fidelidade. Este
direito, devido por causa dos ofícios de Grão-Mestre, de Grande Senescal da França, que o rei mantinha em suas mãos, denota que era antigamente devido àqueles que os
exerciam. Filipe IV, dito o Belo, ordenou, no mês de março de 1309, que todo dinheiro proveniente do direito de chambellage, pago pelos bispos, abades, abadessas e
outros prelados fosse passado às mãos do Grão-Esmoler para ser empregado no casamento das jovens nobres pobres. Este direito era, então, do valor de dez libras.
Presentemente, os bispos e arcebispos, antes de prestar juramento de fidelidade, são obrigados a pagar a soma de trinta e três libras ao Tesoureiro das Esmolas e Boas
Obras do Rei” (artigo Chambellage em ‘Encyclopédie ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers’, de Diderot e d’Alembert, 1751-1772, em
http://portail.atilf.fr/encyclopedie/).
A tradução ao pé da letra de droit de chambellage, se fosse permitido um neologismo, seria o “direito de camaragem”, quer dizer, o “direito do camarista” (chambellan
em francês ou chamberlain em inglês), daquele que tem acesso aos aposentos (chambre) reais. Em Portugal, embora não tenha sido possível ao Tradutor encontrar o
termo jurídico correspondente (malgrado as tentativas junto às Universidades do Porto e de Coimbra), tal direito parece ter existido nas Ordenações Filipinas, já que o
jurista Manoel Borges Carneiro, menciona os ‘benefícios temporaes da Coroa’; leia-se a passagem: “4. Juramento. O Bispo antes da sagração presta juramento de
fidelidade ao Papa, e de obediencia aos Canones. A formula deste juramento derivada dos feudos, se intende sempre salvos os costumes e privilegios do Reino. Cav. II,
cp., 24, § 2º. Espen. pt. l. (ilegível) 15. cp. 2. n. 25, e sem prejuizo dos direitos temporaes da Coroa. Av. 26 Jan. 1796 e 18 Out. 1771” (‘Direito Civil de Portugal
– contendo tres livros – vol. I: Das Pessoas”, pg. 167, Impressão Régia, 1826, em www.books.google.com.br).
[330] Nos autem Johanna impertimus assensum (NT: A nós, Joana deu seu assentimento). Ord. I, 326.
[331] Que ninguém refine, nem mande refinar, nem pese, nem altere qualquer moeda que tenha nossa cunhagem (Que nul ne rachace, ne face rechacier, ne
trebucher, ne requeure nulle monnaye quele qu’ele soit de noistre coing). 20 de janeiro de 1310.
[332] Boulainvillers, ‘Lettres sur ler anciens parlements’, t. III, p. 29, 81.
[333] Que o rei determinasse a seus Barões que se abstivessem de cunhar por onze anos pois, de outra forma, ele não poderia fornecer a seu povo uma boa moeda, nem
ao seu reino. E foram de acordo que o Rei desse tanto em ouro e em prata, sobre o que não teria nenhum lucro (Que le Roi pourchace par devers ses Barons que ils se
sueffrent de faire ouvrer jusques à onze anos, car autrement il ne puet pas remplir son pueble de bonne monnoie, ne son royaume. Et furent à accort que li
Rois doint tant en or, en argent que il n’y preigne nul profit) . Ord. I, 548-549. Entretanto, encontrou-se tanta resistência da parte dos Barões e dos prelados
interessados, que se teve de contentar-se em prescrever-lhes apenas a liga (de metal), o peso e a marca das moedas. Leblanc, p. 229.
[334] Observe-se como o Continuador de Guil. de Nangis muda de linguagem repentinamente, como se torna ousado, como ergue a voz. Fol. 69-70.
[335] Desejamos e determinamos que, em caso de assassinato, de latrocínio, de rapto, de traição e de roubo, seja aberta a solução de batalha, se o caso não puder ser
provado por testemunhas. E, quanto à solução de batalha, desejamos que a empreguem como o faziam antigamente (Nous voullons et octroyons que en cas de murtre,
de larrecin, de rapt, de trahison et de roberie gage de batalhe soit ouvet, se les cas ne pouvoient estre prouves par tesmoings.... Et quant au gage de bataille,
nous voulons que il en usent, si come l’en fesoit anciennement). Ord. I, 507 e 558.
[336] O quarto artigo que é o seguinte: Idem, que o Rei não adquira, nem se acresça em baronias e castelanias, em feudos e em subfeudos dos ditos nobres e religiosos,
salvo se for de sua vontade, nós a eles outorgamos (Le quart article qui es tiel. Item, que le Roy n’acquiere, ne ne s’accroisse és baronnies et chastellenies, ès fiez
et rierè-fiez desdits nobles et religieus, se n’est de leur volonté, nous leur octroyons).
[337] “Nous ferons voir les registres de monseigneur saint Loys et bailler ausdits nobles deus bonnes personnes, tiels comme il nous nommerons de nostre conseil, pour
savoir et enquérir diligemment la vérité dudit article”. Ord. I, 572 (31); 576 (15); 564 (6).
[338] Gratiosus, cautus et sapiens. Cont. de G. de Nangis, p. 69. Vide também Dupuy, ‘Preuves du Diff.’, p. 45; e Bern. Guidonis ‘vita Clem. V’, Baluze, p. 82
[339] Seus inimigos o acusaram disto. Vide Paul Émile. – Dizia-se, ainda, que ele buscara, por dinheiro, uma trégua para o conde de Flandres. Ondegherst, ann. 1313,
folio 239.
[340] Isto faz pensar na forma pela qual Temístocles soube lidar com os dois partidos, antes da batalha de Salamina. Vide Heródoto.
[341] Contin. G. de Nangis, p. 69. Os modernos acrescentaram muitas circunstâncias a respeito da ruptura de Carlos de Valois e de Marigny: um desmentido, um tapa
no rosto, etc.
[342] Houve três Raul (Raoul) de Presles: o primeiro, que depôs em 1309 contra os Templários, foi implicado na questão de Pierre de Latilly e recuperou sua liberdade
perdendo seus bens. Luís-Turbulento teve remorsos; em seu testamento, ele ordenou que lhe fosse devolvido, por boa razão, tudo aquilo que lhe fora tomado. Filipe o
Longo e Carlos o Belo o enobreceram por seus bons serviços. O segundo Raul não é conhecido senão por uma falsificação e também por um bastardo que teve na prisão.
Este bastardo, o terceiro Raul, é o mais ilustre deles. Em 1365, ele se fez conhecer por Carlos V em virtude de uma alegoria intitulada A Musa e foi encarregado, por este
rei, de traduzir a Cidade de Deus, além de parecer ter participado da composição do Songe du Vergier {NT: este último, Sonho do Pomar – Songe du Vergier ou du
Verger é considerado um texto fundamental de direito público da baixa Idade Média, tendo sido escrito em latim e em francês por Everardo (Evrart/Evrard/Everard) de
Trémaugon (Trémigon)}.
[343] (NT): O corpo de Marigny ficou pendurado por dois anos. O respeito à sua figura deve ter sido tanto que, mais de cem anos depois de sua morte, o rei Luís XI, em
1475, mandou erguer um mausoléu sobre seu túmulo, o qual foi profanado quando da Revolução de 1789 - http://roglo.eu/roglo?
lang=fr;p=enguerrand;n=le+portier+de+marigny.
[344] Contin. de Guil. de Nangis, anno 1325, p. 84: Orate pro Domino Ingeranno...
[345] Et cucurrit... Cont. de G. de Nangis, p. 71.
[346] Nós, que temos ouvido o grande lamento de nosso povo do reino da França, o qual nos exibiu as moedas feitas fora de nosso reino e contrafeitas com nossos selos
e com os selos dos barões, bem assim as moedas de nossos mencionados barões, as quais moedas, todas, não têm o peso prescrito em lei e nem o selo antigo e correto, e
como nossos súditos e nosso povo são prejudicados de muitas formas e com grosseira frequência pelos últimos (os barões)... Ordenamos etc... Ord., I, 609-6.
[347] Ord. I, p. 583.
(NT): O termo franco (franc), tanto em francês como em português, liga-se à idéia de liberdade, sendo o radical de várias palavras que denotam liberdade, libertação,
privilégio, imunidade. Isto, porém, é mais evidente em francês. Segue o texto original da Ordenação:
“Comme selon le droit de nature chacun doit naistre franc; et par aucuns usages et coustumes, qui de grant ancienneté ont esté entroduites et gardées jusques cy en nostre
royaume, et par aventure pour le meffet de leurs prédecesseurs, moult de personnes de nostre commun pueple, soient encheües en lien de servitudes et de diverses
conditions, qui moult nos desplaît: Nous considérants que nostre royaume est dit, et nommé le royaume des Francs, et voullants que la chose en vérité soit accordant au
nom, et que la conditions des gents amende de nous et la venüe de nostre nouvel gouvernement; par délibération de nostre grant conseil avons ordené et ordenons, que
generaument, par tout nostre royaume, de tant commo il peut appartenir à nous et à nos successeurs, telles servitudes soient ramenées à franchises, et à tous ceus qui de
origine, ou ancienneté, ou de nouvel par mariage, ou par residence de lieus de serve condition, sont encheües, ou pourroient eschoir ou lien de servitudes, franchise soit
donnée à bonnes et convenables conditions”.
[348] Ao fim de seu reinado tão curto, Luís parece ter se tornado o inimigo dos barões. Jamais Filipe o Belo deu-lhes respostas tão secas e, aparentemente, mais
irrisórias que aquela de seu filho aos nobres da Champagne (1º de dezembro de 1315). Eles pedem que lhes seja explicada essa vaga expressão Casos Reais (Cas
Royaux), por meio da qual os juízes do rei avocam para si todo causa que desejam. O rei responde: “Nós vos os esclarecemos da seguinte maneira: são aqueles que, de
direito, ou por antigo costume, podem e devem pertencer ao soberano Príncipe e a nenhum outro”. Ord., I, 606.
[349] (NT): Trata-se de João I, que sobreviveu por poucos dias.
[350] (NT): A “filha do irmão” é Joana II da França, rainha de Navarra. A infidelidade de sua mãe Margarida da Borgonha e a consequente dúvida a respeito da
paternidade pertencer ou não a Luís o Turbulento também encenam um papel fundamental na questão.
[351] Contin. G. de Nangis, p. 72. – “Voltando a Paris após um mês da morte de Luís X, ele encontrou seu tio, o conde de Valois, à testa de uma facção prestes a
disputar-lhe a regência. A burguesia de Paris tomou armas sob a condução de Gaucher de Châtillon e expulsou os soldados do conde de Valois, que já haviam se
apoderado do Louvre”. Félibien, ‘Hist. de Paris’, I, 585, a partir da ‘Chronique de Flandre’.
[352] O rei revoga especialmente as doações feitas a Guilherme Flotte, a Nogaret, a Plasiant e alguns outros. Ord. I, 667.
[353] Magistris universitatis civitatis ipsius hoc ipsum unanimiter approbantibus. Cont. G. de Nangis, p. 79.
[354] “O rei comeraça a regrar que não se serviria em seu reino senão de uma medida uniforme para o vinho, o trigo e todas as mercadorias; mas, surpreendido por uma
doença, ele não pôde finalizar a obra que começara. O mencionado rei propôs também que, em todo o reino, todas as moedas fossem reduzidas a uma só; e como a
execução de um tão grande projeto exigisse grandes custos, conta-se que, seduzido por falsos conselhos, ele resolvera extorquir de todos os seus súditos a quinta parte de
seus bens. Para este fim, foram enviados delegados para diferentes regiões; mas os prelados e os nobres, que já há muito tempo possuíam o direito de cunhar moedas
diferentes, segundo a diversidade dos lugares e a exigência dos homens, assim como as comunidades das boas cidades do reino, não tendo consentido com este projeto, os
delegados retornaram a seu amo sem terem sido bem sucedidos em suas negociações”. Cont. G. de Nangis, 79.
[355] Vide meu ‘Symbolique du Droit’, pgs. 79/80, a sesta do rei.
[356] Que, pelas doações ultrajantes que no passado foram feitas por nossos predecessores, os domínios do Reino foram muito apequenados. Nós, que muito desejamos
acrescer e desejamos o bom estado de nosso Reino e de nossos súditos, doravante entendemos reter tais doações, tanto quanto de justa forma pudermos, e proibimos que
qualquer um ouse-nos fazer súplicas de doações à perpetuidade, se não for na presença de nosso Grão-Conselho (Que pour les dons outragens qui on esté faiz ça en
arrières, par nos prédécesseurs, li domaine dou Royaume sont moult apetitié. Nous qui désirons moult l’accroissement et le bon estat de nostre Royaume et de
nos subgiez, nous entendons dores en avant garder de tels dons, au plus que nous pourrons bonement, et défendons que nul ne nous ose faire supplication de
faire dons à heritage, se ce n’est en la présense de nostre grant conseil). Ord. I, 670.
[357] (NT): Cruzada dos Pastores.
[358] Cum solis perâ et baculo sine pecuniâ, smissis in campis porcis et pecoribus, post ipsos quasi pecora confluebant (NT: Apenas com um saco e um bastão, sem
dinheiro, deixando seus porcos e ovelhas nos campos, eles se agruparam como estas). Cont. de G. de Nang., p. 77.
[359] Projectis inummerabilibus lignis et lapidibus, propriis projectis pueris, se viriliter et inhumaniter defensabant... Videntes autem dicti judæi quod evadere non
valebant... locaverunt unum de suis... ut eos gladio jugularet {NT: Eles (os judeus) lançavam inumeráveis vigas e pedras, mesmo suas crianças lançavam,
defendendo-se viril e inumanamente... Quando viram que não poderiam escapar... contrataram um dos seus... para degolar suas gargantas}. Ibidem.
[360] Illic viginti, illic triginta secundum plus et minus suspendens in patibulis et arboribus, Ibid.
[361] vide o Memorando de M. Beugnot sobre os judeus do Ocidente, e da grande história de Jozt.
[362] Scripsisse confessionem... magni cujusdam leprosi. Cont. de G. de Nang., ann. 1321, p. 78.
[363] Fiebant de sanguine humano et urinâ de tribus herbis... ponebatur etiam Corpus Christi, et cùm essent omnia dissiccata, usque ad pulverem terebantur, quæ missa
in sacculis cum aliquo ponderoso... in puteis... jactabantur. Ibidem. {NT: Havia sangue humano e urina de três ervas (odor) ... foi também colocado o Corpo do
Cristo (hóstia), e tudo foi secado (desidratado) até que se obtivesse um pó, o qual foi colocado num saquinho (sachê) com algo pesado... nos poços... era
lançado}.
[364] Inventum est in panno caput colubri, pedes bufonis et capilli quasi mulieris, infecti quodam liquore nigerrimo... quod totum in ignem copiosum... projectum, nullo
modo comburi potuit, habito manifesto experimento et hoc itidem esse venenum fortissimum. (NT: Foi encontrado no pano uma cabeça de cobra d’água, pernas de
sapo e cabelos, como de uma mulher, infectado com um líquido nigérrimo... tudo num fogo copioso ... lançado, de modo algum pôde ser consumido, prova
manifesta que isto era um veneno fortíssimo). Ibidem.
[365] Suadente diabolo per ministerium Judæorum... ut christiani omnes morerentur, vel omnes uniformiter leprosi efficerentur, et sic, cùm omnes essent uniformes, nullus
ab alio despiceretur (NT: O diabo persuadiu, pelo ministério dos judeus ... para que todos os cristãos morressem ou que fossem uniformemente feitos leprosos e,
com isso, todos seriam uniformes, e ninguém seria desprezado por outrem). Ibidem.
[366] Vide, sobre os leprosos, os Dicionários de Bouchel e Brion e, sobretudo, o Dicionário de polícia por Delamare, I, p. 608. Vide, também os Olim do Parlamento, IV,
f. LXXVI, etc. Ibidem.
[367] Leprosum aquâ benedictâ respersum ducat ad ecclesiam cruce procedente... cantando Libera me Domine... In ecclesia, ante altare paunus niger. Presbyter cum
pallâ terram super quemlibet pedum ejus perducit dicendo: sis mortuus mundo, vivens iterum Deo (NT: Aspergido com água-benta, o leproso levava a cruz à igreja...
cantando ‘Liberta-me, Senhor’... Na igreja, perante o altar, um pano negro. O presbítero, com terra (tirada) de seu pálio, a lançava sobre o pé (do leproso),
dizendo: ‘Sê morto para o mundo, vive novamente em Deus’.). ‘Rituel du Berri’, Martène, II, p. 1010. Vários rituais mais tarde proibiram essas lúgubres cerimônias,
como os de Angers e de Reims. Ibid. p. 1005, 1006.
[368] Ibidem, p. 1006. Isto não significava, entretanto, um sinal de reprovação. Morto para o mundo, ele era considerado ter feito seu purgatório aqui na terra; e, em
alguns lugares, celebrava-se para ele o ofício do confessor: “Os justi meditabitur sapientiam” (NT: pela boca do justo fala a sabedoria). Ibid. 1010.
[369] “Judæi... sine differentiâ combusti... Factâ quâdam foveâ permaximâ, igne copioso in eam injecto, octies viginti sexies promiscui sunt combusti; undè et multi
illorum et illarum cantantes quasique inviati ad nupcias, in foveam saliebant”. Cont. de Guil. de Nang., p. 78.
[370] Ne ad baptismum raperentur. Ibid.
[371] Unius antiqui... sanctior et melior videbatur; undè et ob ejus bonitatem et antiquitatem pater vocabatur. Ibid. p. 79.
[372] Cùm funis esset brevior... dimittens se deorsùm cadere, tibiam sibi fregit, auri et argenti præ maximo pondere gravatus. Ibidem.
[373] Vide o Diferendo entre a França e a Inglaterra sob Carlos o Belo, por M. de Bréquigny. A querela, que inicialmente não tivera por objeto senão a posse de uma
pequena fortaleza, em pouco tempo tomou o caráter mais grave pela fraqueza de Eduardo e pela audácia de seus oficiais. Enquanto Eduardo se desculpa por sua lentidão
em vir prestar homenagem e roga ao rei da França interromper os avanços dos Franceses sobre seus domínios, os oficiais ingleses na Guiana demolem a fortaleza
disputada, sequestram e exigem resgate do Grão-Mestre dos Arbaleteiros da França, que quisera tirar satisfação. Eduardo se apressa em desculpar-se por estes atos junto
a Carlos o Belo e, ao mesmo tempo, dava ordem a todas as pessoas de prestar assistência a Raul Basset, o autor do insulto feito ao Rei da França. Mas ele logo recuou
desta guerra e destituiu Raul Basset; seus oficiais deixados sem auxílio tiveram de dar satisfações a Carlos o Belo que, por sua vez, não parou neste belo caminho: os
embaixadores de Eduardo escreviam a este que, na corte da França, dizia-se, em alto e bom som, “que não desejavam mais ser servidos somente por pergaminhos e
palavras, como até então o foram”. Eduardo, que inicialmente recorrera ao Papa e feito alguns preparativos, alarmou-se com esta tempestade que podia estragar seus
prazeres. Ele outorgou plenos poderes para tudo terminar e despachou para Carlos um Francês chamado Sully, o qual era seu plenipotenciário. O rei escutou o Francês,
expulsou o Inglês e mandou suas tropas entrarem na Guiana. Após ter inutilmente aguardado o socorro do conde de Kent, Agen abriu suas portas. Novos embaixadores
vieram da Inglaterra e tiveram por toda resposta que era necessário “que se suportasse que o rei da França pusesse sob suas mãos o resto da Gasconha e que Eduardo
viesse encontrá-lo; e então, se ele (Eduardo) lhe pedisse justiça, o rei a daria boa e rápida; se lhe rogasse graça, o rei faria o que melhor lhe aprouvesse”.
[374] ... com o que vários cavaleiros ficaram muito irritados... e disseram que ouro e prata tinham vindo em grande quantidade da Inglaterra. Froissart, éd. Dacier, I, 26.
[375] Ele (Roberto do Artois – Robert d’Artois) escutou secretamente que Carlos o Belo tinha vontade de mandar prender sua irmã, o filho desta, o conde de Kent e
messire Roger de Mortimer, e enviá-los para as mãos do rei da Inglaterra e do mencionado Despenser; e, assim, ele à noite vem contar para a rainha da Inglaterra e
alertá-la do perigo no qual se encontrava”. Froissart, I, 29.
[376] Vox populi, vox Dei. Walsingham, ‘Hist. d’Angleterre’, p. 126.
[377] Thom. de la Moor. Ele concluía que o único meio de curar o corpo era cortando-lhe a cabeça.
(NT): Caput meum doleo {Bíblia, 2, Reis, 4:19 (livro de Reis 2, capítulo 4, versículo 19)}: O Tradutor usou a versão mais popular do livro de Reis, 2, mas a frase também
pode ser traduzida por “Dói-me minha cabeça”.
[378] Vide a chocante narrativa de Froissart, I, c. 25, p. 52.
(NT): Eis a chocante narrativa de Froissart: Após terem-lhe recordado tudo o que fizera, Despenser foi “levado sobre um baú, ao som de trombetas e trompas, por toda
a cidade de Hereford, de rua em rua, e depois foi conduzido a uma grande praça da cidade, onde todo o povo estava reunido: naquele lugar, foi amarrado sobre uma
escada alta que todos, baixos e altos, podiam vê-lo; e fez-se, no mencionado lugar, uma grande fogueira. Quando estava assim amarrado, foi-lhe primeiro cortado o pênis e,
depois, os testículos, porque era herético e sodomita, e igualmente dizia-se isso do rei, e por isso tinha o rei repelido a rainha de si e por seu conselho. Quando o pênis e os
testítculos foram-lhe cortados, os mesmos foram lançados ao fogo para queimar; e, após isso, foi o coração tirado do peito e lançado ao fogo porque ele era falso de
coração e traidor e, em virtude de seu conselho traidor e sua sugestão, o rei tinha envergonhado o reino e o governado mal, e tinha feito afastar os maiores barões da
Inglaterra, pelos quais o reino devia ser apoiado e defendido; e, também, ele de tal forma aconselhara o rei, que este não podia e nem queria ver a rainha, sua mulher, nem
seu primogênito filho, que devia ser seu (de Despenser) senhor, tendo-os afastado, por temor de seus corpos, para fora do reino da Inglaterra. Após ter o mencionado
messire Hughes (Despenser) sido assim atormentado, como dito está, foi-lhe cortada a cabeça, a qual foi enviada para a cidade de Londres e, então, foi seu corpo
desmembrado em quatro partes, que logo foram enviadas às quatro melhores cidades da Inglaterra depois de Londres” (Chroniques de Froissart, Volume 1, pgs. 51-53,
Librairie Verdière, 1824, Paris).
[379] Walsingham, p. 126. Th. de la Moor, p. 600, 601.
[380] Ut innotuit viri dejectio, plena dolore (ut foris apparuit), fere mente alienata fuit... Misit indumenta delicata et litteras blandientes. Eodem tempore assignata fuit dos
reginæ talis et tant, quod regi filio regni pars tertia vix remansit {NT: Ante as notícias do desalento de seu marido, cheia de dor (quando vista pelos outros), ela
parecia muito transtornada... Enviava-lhe roupas delicadas (caras, luxuosas) e cartas lisonjeiras. Ao mesmo tempo, foi atribuído um tal e tamanho dote à
rainha, que menos de uma terça parte do reino ficou para seu real filho}. Wals., p. 126-127.
[381] (NT): EDWARDUM OCCIDERE NOLITE TIMERE BONUM EST. Dependendo de onde se coloque a vírgula, teremos:
Pela vida: “Matar Eduardo, temei, não é bom.
Pela morte: “Matar Eduardo temei não, é bom.
[382] (NT): “Travers” = um pequeno defeito (para pessoas). Mal + Travers (Maltravers) = um mal defeitozinho.
[383] Ipso prostrato et sub ostio pouderoso detento ne surgeret, dum tortores imponerent, et per foramen immitterent ignitum veru in viscera sua (NT: assim prostrado e
preso sob o peso da porta, enquanto os torturadores introduziram-lhe um chifre pela abertura e um espeto foi esquentado em suas vísceras). Ibid.
[384] (NT): Há de se notar que, pela ordem da sucessão, o herdeiro do trono da França poderia não ser o primo de Carlos o Belo. Como o trono estava vedado às
mulheres, o descendente varão direto de Filipe o Belo era seu neto Eduardo, filho de Isabela, o qual acabara de se tornar o rei da Inglaterra (Eduardo III) pela morte de
seu pai (Eduardo II). Se Eduardo III fosse considerado rei da França (pela descendência direta de Filipe o Belo), isto unificaria as coroas da Inglaterra e da França sob o
monarca inglês. Poderia, porém, Isabela transmitir algo que não podia receber? Essa foi a questão de direito fundamental no que tange à pretensão dos monarcas da
Inglaterra sobre a coroa da França e sinaliza o início da Guerra dos Cem-Anos, objeto do Livro IV seguinte. A pretensão jurídica da Coroa Inglesa só terminou em 1800
pelo Union Act que juntou a Irlanda ao Reino Unido da Inglaterra e da Escócia e como parte das negociações da República Francesa com o Reino Unido que, finalmente,
abandonou a flor-de-lis de seu brasão d’armas.
[385] Como Cristóvão Colombo, ele teve pessoas que o contradisseram. Mas o retorno de Colombo pôs fim às dúvidas, enquanto estas haviam começado com a volta de
Marco Polo. Seu tradutor latino teve de invocar o testemunho do pai e do tio de Polo, companheiros de sua viagem.
[386] Marco Polo, cativo em Gênova, ditava aos compatriotas de Colombo o livro que inspirou este último a lançar-se à sua grande empresa.
[387] “Livro dos Segredos dos Fiéis da Cruz. Em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, Amém! No ano de 1321, eu fui apresentado ao nosso senhor o Papa e
apresentei-lhe dois livros sobre a recuperação da Terra Santa e a salvação dos fiéis; um tinha a capa vermelha, o outro amarela. Na mesma ocasião, tive sob meus olhos
quatro cartas geográficas, uma do Mar Mediterrâneo, a outra da terra e do mar, a terceira da Terra Santa e a quarta do Egito”. Na sequência de Bongars, Gesta Dei per
Francos.
[388] Se ele divide seu livro em três partes, em honra da Santíssima Trindade, a razão que para isso dá é que há três coisas principais para o restabelecimento da saúde
do corpo: o xarope preparatório, o remédio e o bom regime: “Partitur autem totale opus ad honorem Santcæ Trinitatis in tres libros. Nam sicut infirmanti corpori... tria
impertiri curamus: primò syrupum ad præviam dispositionem... secundò congruam medicinam quæ morbum expellat... tertiò ad conservandam sanitatem debitum vitæ
regimen... Sic conformiter continent libre primus dispositionem quasi syrupum, etc” (NT: A partição total da obra, em honra à Santa Trindade, está em três livros. É
como se dá com um corpo doente... que com três coisas curamos: primeiro o xarope para prévia disposição... em segundo lugar, o remédio apropriado que
banirá a doença... a terceira, o regime, para a devida conservação da saúde... Assim, em conformidade, contém o livro primeiro disposições como as de um
xarope etc.). ‘Secreta Fidelium Crucis’, ap. Bongars, p. 9.
[389] Ele demonstra a superioridade da rota do Egito sobre aquela da Síria. Em seguida, propõe contra o sultão do Egito, não uma cruzada, mas um simples bloqueio.
Dez galeras bastarão. Ele fixa, com uma previdência muito moderna, a quantidade de homens, de dinheiro, de víveres. A frota deve ser armada em Veneza. Os
marinheiros de Veneza, e só eles, saberão se conduzir sobre as praias rasas do Egito que se parecem com suas lagunas (p. 35-36). Ele não ousa exigir que o Almirante
seja um Veneziano, contentando-se em dizer que o mesmo deverá ser amigo dos Venezianos para poder agir de concerto com estes (p. 85). O bloqueio arruinará o sultão
e, por consequência, o mundo maometano, do qual o Egito é o coração. Ele afirma claramente: “É preciso que, ou o acesso ao Egito seja totalmente proibido, ou que seja
muito alargado, de tal sorte que todos possam ir, voltar, comerciar pelas terras do sultão em toda liberdade, e que, neste último caso, não se fale mais em recuperar a Terra
Santa”. – “Mas, alguém dirá, ‘e se o sultão desviar o Nilo do Mediterrâneo para o Mar Vermelho?’ A coisa é impossível e, se ocorresse, o Egito seria desolado, ele se
tornaria deserto... O sultão dominado, as fortalezas do Egito marítimo tornar-se-ão um asilo seguro para as nações cristãs, como o foram as lagunas do Adriático para os
Venezianos que, nas tempestades das invasões gaulesas, africanas, lombardas e naquela de Átila, permaneceram inviolados” (Part. 3, cap. 2). Essas últimas palavras
aludem aos temores recentes que as invasões dos Mongóis inspiraram em toda a Cristandade.
[390] Na quarta Cruzada.
[391] Vide Sartoriu, ‘Histoire de la Hanse’, e a síntese que sobre ela Mallet nos deu.
[392] As feiras da Champagne eram mais antigas que o próprio Condado. A elas faz-se menção, desde o ano 427, em uma carta de Sidônio Apolinário a São Lupo. Elas
se perpetuaram sempre florescentes, sem que ninguém incomodasse suas transações. A Ordenação de Filipe o Belo é o título real mais antigo no que lhes concerne.
Grosley, ‘Éphémérides’, p. 102-4.
[393] Vide as Ordenações de Carlos o Belo e de Filipe de Valois. O que finalizou a ruína das feiras da Champagne foi a rivalidade de Lyon. Quando aos aborrecimentos
fiscais se somaram os alarmes e as pilhagens da guerra interior, Troyes foi desertada e Lyon abriu-se como um asilo para o comércio. Era necessário abolir as feiras de
Lyon para devolver alguma coisa às feiras da Champagne. Em 1486, das quatro feiras de Lyon, duas foram transferidas para Bourges e duas para Troyes; mas elas
voltaram a decair depois que Lyon obteve o direito de reabrir seus mercados. Grosley, p. 107-109.
[394] “Qu’ils en fissent leur profit comme d’un marchand” (Que disso tirassem seu lucro, como de um mercador). Comines, l. II.
[395] O rei declara que lhes concede para sempre, em seu nome e no de seus sucessores: 1º) poderem vir em segurança, sob a proteção real, livres de diversos tributos
que são especificados: De muragio, pontagio et panagio liberi et quieti (“A partir da muralha (da cidade), da ponte e do livre entrar e sair”); 2º) venderem, no
atacado, a quem desejarem; mesmo as miudezas e especiarias podem ser vendidas a varejo pelos estrangeiros; 3º) importarem e exportarem, pagando os direitos à Coroa,
qualquer coisa, com exceção dos vinhos (bebidas alcóolicas), que não podem ser exportados sem licença especial do rei; 4º) suas mercadorias não terão a temer nem
direito de presa, nem apreensão; 5º) ser-lhes-á conferida correta justiça; pois, se um juiz cometer-lhes erros, este será punido, após o que, os mercadores serão
indenizados; 6º) em qualquer causa em que forem interessados, o júri será composto por uma metade de seus compatriotas; 7º) em todo o reino, não haverá senão um
único peso e uma única medida; em cada cidade ou local de feira, haverá um peso real; e a balança estará vazia e aquele que vier pesar, nela não porá as mãos; 8º) em
Londres, haverá um juiz dos mencionados mercadores para render-lhes justiça sumária; 9º) por todos esses direitos, eles pagarão dois soldos a mais que outrora pagavam
por cada barril que trouxerem, quarenta denários a mais por saca de lã, etc.; 10º) mas, uma vez pagos esses direitos, eles poderão ir e comerciar livremente por todo o
reino. Pouco após, os privilégios das cidades que teriam entravado este livre comércio são declarados nulos e sem força. O rei e os barões não se inquietavam
mininamente se a concorrência dos estrangeiros prejudicava os Ingleses. Rymer, II, 747, nova edição.
[396] ... Tibi de tuâ materiâ vestes pretiosas tua textrix Flandria texuit. Tibi vinum tua Vasconia ministravit. Tivi servierunt omnes insulæ... Tibi per orbem benedixerunt
omnium latera nationum, de tuis ovium velleribus calefacta. Math, Westm., p. 340, 344.
[397] Par devant la roine, Robert s'agenouilla.
Et dist que le hairon par temps departira,
Mès que chou ait voué que le cuer li dira,
"Vassal, dist la roine, or ne me parlés ja:
Dame ne peut vouer, puis qu'elle seigneur a,
Car s'elle veue riens, son marí pooir a,
Que bien puet rapeller chou qu'elle vouera;
Et honnis soit li corps que jasi pensera,
Devant que mes chiers sires commandé le m'ara”.
Et dist le roy : "Voués, mes cors l'aquittera.
Mes que finer en puisse, mes cors s'en penera;
Voués hardiement, et Dieux vous aidera."
"Adonc, dit la roine, je sai bien, que piecha,
Que sui grosse d'enfant, que mon corp senti là.
Encore n'a il gaires, qu'en mon corps se tourna,
Et je voue, et prometh a Dieu, qui me créa,
Qui nasqui de la Vierge, que ses corps n'enpira,
Et qui mourut en crois, on le crucifia,
Que jà li fruis de moi, de mon corps n'istera,
Si m'en arès menée ou païs par delà,
Pour avanchier le veu que vo corps vouè a;
Et s'il en voelh isir, quant besoins n'en sera
D'un grand coutel d'achier li miens corps s'ochira;
Serai m'asme perdue, et li fruis périra."
Et quant li rois 1'entent, moult forment l’en pensa;
Et dist: "Certainement nuls plus ne vouera."
Li hairons fu partis, la roine en mengna.
Adonc, quant che fu fait, li rois s'apareilla,
Et fit garner les nés, la roine i entra,
Et maint franc chevalier avecques lui mena.
De illoc en Anvers, li rois ne s'arrêta.
Quant outre sont venu, la dame délivra;
D'un biau fils gracieux la dame s'acouka,
Lyon d’Anvers ot non, quant on le baptisa.
Ensi le franque Dame le sien veu aquitta ;
Ainsque soient tout fait, main preudomme en morra,
Et maint bon chevalier dolent s'en clamera,
Et mainte preude femme pour lasse s'en tenra.
Adonc parti li cours des Englès par delà
“Chi finent leus veus du hairon”
Este pequeno poema se encontra ao final do Tomo I, de Froissart, ed. Dacier-Buchon, pg .420.
(NT: Tradução e adaptação livres): Perante a rainha, Roberto se ajoelhou,/E disse que a garça-real em tempo partirá,/Mas que o coração dela deve dizer ao que se
devotou,/“Vassalo, disse a rainha, a mim não o pergunte:/Uma dama não pode se devotar, visto que senhor há,/ Pois se ela a algo se devota, seu marido poder tem,/que
pode bem revogar aquilo ao que ela se consagrar;/E vergonhoso seja o corpo daquele em quem eu pensar,/Antes que meu caro senhor a ordem venha me dar”./E disse o
rei: “Devotai, meu coração o realizará./ Que para terminar possa, meu coração o fará;/ Devotai ousadamente, e Deus vos ajudará”./ “Então”, disse a rainha, “bem sei há
algum tempo,/ Que grávida de criança estou, que meu corpo a sente lá. / Ainda não é o tempo dela em meu corpo se virar,/ E eu consagro e prometo a Deus, que me
criou,/ que da Virgem nasceu, cujo Corpo não pereceu,/ E que morreu na cruz, onde O crucificaram,/ Que o fruto meu, de meu corpo não sairá,/ Até que me tenhas levado
à terra de lá,/ Para cumprir o voto que teu corpo ao meu devotou;/ E se quiseres partir, quando necessidade não há,/ De uma grande adaga de aço meu corpo se matará,/
Será minha alma perdida e o fruto perecerá”/ E quando o rei a escutou, muito seriamente pensou;/ E disse: “Certamente, ninguém assim se devotará”/ A garça-real foi
partida, a rainha a comeu./ Então, quando tudo estava feito, o rei se preparou,/ E mandou guarnecer as naus, a rainha aí entrou,/ E muito cavaleiros francos consigo levou./
Desde aí até a Antuérpia, o rei não parou./ Quando ao outro lado chegaram, a senhora deitou,/ E a um belo filho gracioso a dama deu a luz,/ Leão da Antuérpia, seu
nome, quando se o batizou./ Assim, a Dama franca seu voto cumpriu,/ Ainda que tudo cumprido, muitos bons homens morreram/ E muitos bons cavaleiros de dor gritaram,/
E muitas valorosas mulheres infortúnios sofreram./ Então partiu a corte dos Ingleses para lá. (“Que findem os votos da garça-real”).
[398] Havia, no séquito do bispo de Lincoln, vários jovens cavaleiros que possuíam, cada um deles, um olho coberto por um pedaço de pano vermelho a fim de que, com
o mesmo, não pudessem enxergar: e dizia-se que esses haviam feito o voto, perante as damas de seu país, de jamais ver senão com um olho, até que tivessem realizado
algumas proezas no reino da França. Froissart., ann. 1337, t. I, p. 180.
[399] (NT): “Falstaff ou 'Sir John Falstaff' é um personagem criado por William Shakespeare e presente em várias de suas peças. É conhecido por ser um notório
fanfarrão e boêmio. Em Henrique V, Falstaff é um dos amigos de adolescência do rei que, após a ascensão de Henrique ao trono, acaba sendo desrespeitado e
abandonado pelo rei; assim, triste e abatido, morre numa taverna junto a antigos amigos”. O personagem foi inspirado na pessoa do cavaleiro Sir John Falstoff (1380-
1459). Vide http://fr.wikipedia.org/wiki/Falstaff.
[400] Para Cartago, vide sobretudo Plutarco, “vida de Timoleão”. Para Palmira, vide os autores citados em “minha vida”, de Zenóbio, ‘Biog. Univ.’, de MM. Michaud.
[401] Eles pretendiam que havia uma conjuração dos homens de baixa extração para arruinar a nobreza francesa e, em consequência, de início obtiveram uma ordem do
rei para que seus credores fossem presos e seus bens sequestrados; depois, veio a Ordenação que reduziu todas as suas dívidas a três quartos, a quatro meses de termo,
sem juros. Contin. G. de Nangis, p. 96, Ord. t. II, p. 59.
[402] Pierre Remy, Cont. de G. de Nangis, p. 87.
[403] Chamando o mencionado Rei Filipe de ‘rei encontrado’. Oudegherst, fº. 257.
[404] Em nenhum momento, no exército do rei, foi posicionada sentinela; e os nobres senhores iam, de uma tenda a outra, para conversar, em suas belas túnicas. “Ora”,
dir-vos-iam os Flamengos que sobre a colina estavam... Fizeram três grandes batalhas os Flamengos: e vieram descendo a colina, em grandes passos, na direção do
exército do rei: e passaram a ele, sem brado e barulho: e foi na hora das vésperas sonantes... E os Flamengos não se retardaram, assim vindo em grandes passos, para
surpreender o rei em sua tenda (Oncques en l’ost du roy ne feit on guet; et les grands seigneurs alérent d’une tente en l’autre, pour eux déduire, em leurs belles
robes. Or vous dirons des Flamans, qui sur le mont étoient... Si feirent trois grosses batailles les Flamans: et veindrent avalant le mont, au grand pas, devers
l’ost du roy: et passèrent tout outre, sans cry ne noise: et fut à l’heure de vespres sonnans... Et les Flamans ne s’atargèrent mie, ains veindrent le grans pas,
pour surprendre le roy en sa tente). Froissart, I, c. 69, p. 123.
[405] Cont. G. de Nangis, p. 90. Oudegherst, c. 154, f. 259. – Eu lamento não ter tido entre as mãos a importante obra de M. Warnkœnig quando imprimi a narrativa da
batalha de Courtrai: ‘Histoire de la Flandre et de ses institutions civiles et politiques, até o ano 1305’ , por M. Warnkœnig, trad. do alemão por M. Guheldorf. 1835.
Vide, particularmente, nas páginas 305, 308, do primeiro volume, algumas circunstâncias interessantes que completam minha narrativa.
[406] Um decreto da corte da França, pronunciado em pleno parlamento, afastava, para sempre, Roberto e seus sucessores de suas pretensões e ordenava: “Que o
mencionado Roberto amasse a mencionada condessa como sua querida tia, e a mencionada condessa o amasse como seu bom sobrinho”. Ibid, 579, segs.
[407] A antiga crônica de Flandres chegava, inclusive, a dar-lhe toda a honra: “E não estavam os barões de acordo em fazer o rei mas, todavia, pelos esforços do senhor
Roberto do Artois foi a coisa de tal forma conduzida, que o senhor Filipe... foi eleito rei da França” (“Et n’estoient mie les barons d’accord de faire le roy, mais
toutefois par le pourchas de messire Robert d’Artois fut tant la chose démenée, que messire Philippe... fut élu à roy de France”) . Chron., cap. 67, p. 131, Mém.
Ac. Insc. X, 592.
[408] Que se il li en peut monstrer lettre, ja si petite ne sera, que il li délivrera la Comté.
[409] O rumor comum era que Matilde tinha sido ervada (enherbée). Quanto à Joana, sua filha, “foi, numa noite, com suas damas (de companhia) se divertir, e deu-
lhes vontade de beber clarey*, e tinha ela um mordomo que se chamava Huppin, que tinha vivido com a condessa, sua mãe... Assim que a rainha estava em seu leito, foi
tomada pela doença da morte e logo entregou seu espírito, e escorreu-lhe o veneno pelos olhos, pela boca, pelo nariz e pelas orelhas, e todo o seu corpo ficou manchado de
branco e preto”. Chron. de Flandre, Ibid., p. 605.
* clarey: bebida feita à base de vinho com mel e algumas especiarias, que é misturada até tornar-se clara (clairie) – nota emprestada à tradução de G. H. Smith F.G.S.
[410] “A respeito das quais ele (Roberto) deu a entender que, no contrato de casamento de Filipe do Artois com Branca da Bretanha, ... do qual contrato foram feitos
dois pares de cartas ratificadas por Filipe o Belo... que foram registradas na nossa corte de registro (cartório – cour ès registre), cartas essas que foram, depois do óbito
do mencionado conde, subtraídas por nossa querida prima Matilde do Artois”. 1329. Ibid, p. 601.
[411] Quædam mulier nobilis et formosa, quæ fuerat M. Theodorici concubina (NT: Uma mulher nobre e formosa, que fora concubina de Messire Theodoro).
[412] Ela a ameçava até em nome do rei: “Eu quis desculpar-vos”, ela dizia, “falando-lhe que não possuíeis nenhuma das mencionadas cartas, e ele me respondeu que
vos fará arder se não as entregardes”. Ibid., 600.
[413] A Divion fora propositadamente enviada ao Artois para procurar o selo do conde. Ela conseguiu, após algumas pesquisas, encontrar um com Ourson-le-Borgne
(NT: apelido? Ourson-o-Zarolho) , dito o belo Parisiense. Ele queria trezentas libras. Como não as possuísse, ela inicialmente ofereceu em garantia um cavalo negro
sobre o qual seu marido justara em Arras. Ourson recusou; então, autorizada por seu marido, ela entregou suas jóias, a saber, duas coroas, três chapéus, dois broches, dois
anéis, tudo de ouro, por setecentas e vinte e quatro libras parisienses. Ibid., 609-610. – Em seguida, ela pegou uma carta selada com o selo do mencionado bispo Teodorico
(Thierry) e, por um hábil engenho, o tirou desta velha carta e o colocou na nova. E, nesta ocasião, estavam presentes Jeanne e Marie, empregadas da mencionada Divion,
sendo que Maria segurava a vela e Jeanne a ajudava. Ibid., 598. Depoimento de Martin de Nuesport. A Divion declarou que assistiu sozinha, com a dama de Beaumont e
com Jeanne, à aplicação dos selos “e apenas elas três tinham a ver com os selos”. Ibid., p. 611.
[414] Ademais, “porque o rei Filipe tinha o costume de fazer suas cartas em latim”, pedira-se a um capelão, Thibaulx de Meaux, mostrar, nesta língua, o início e o fim de
uma carta de confirmação que devia, segundo contaram, servir ao casamento de Jean do Artois com a senhorita (demoiselle) de Leuze.
[415] A Divion, entretanto, parece dar grande importância à sua obra; ela passava as peças, à medida que as fabricava, a Roberto do Artois, “dizendo tais palavras:
‘Sire, vede esta cópia das cartas que nós temos, guardai se ela for boa’; e ele respondia: ‘Se eu a tiver dessa forma, bastar-me-á”. Ela desejou, inclusive, submetê-las
inicialmente a exame de expertos. Mém. Ac. X, ib.
[416] Arquivos, Seç. Hist. J, 439, nº 2 – Eles tiveram o cuidado de pavimentar o caminho dessas testemunhas com um início de prova por escrito, na falsa carta do bispo
de Arras: “Das quais cartas eu tenho uma, e as outras, com o contrato de casamento da senhora rainha Joana, foram, por um de nossos grandes senhores, lançadas ao
fogo...” Ibid, p. 597.
[417] “... e jurou ao rei, mãos erguidas na direção dos santos, que um homem vestido de preto, assim como o arcebispo de Rouen, tinha lhe dado as mencionadas cartas
de confirmação”. Este homem vestido de preto era seu confessor; Roberto as havia entregue, depois as recebera de suas mãos, a fim de que ele pudesse jurar com toda
segurança de consciência. Ibid., p. 610.
[418] Jacque Roudelle admitiu que lhe fora dito que, se depusesse, “isto lhe valeria uma viagem a Santiago, na Galícia”. Gérard de Juvigny, “que dera falso testemunho
ante pedido do mencionado Monsieur Roberto, que vinha à sua casa com tanta frequência, que já estava até cansado...”. Ibid., 599.
[419] Depoimento da Divion: “... Idem, ela confessa que Prot, seu mencionado clérigo, por ordem sua, escreveu todas as mencionadas cartas falsas de sua própria mão,
e escreveu aquela, donde pende o selo da retromencionada finada condessa, com uma pena de bronze, para disfarçar sua mão (caligrafia)... Idem, ela diz que mons.
Roberto, logo após, enviou o retromencionado Prot para não sabe onde, nem em qual lugar, nem para qual parte, e que ela dissera a Mons. Roberto ‘Sire, eu não sei o que
fazemos desse clérigo, eu duvido muito de sua firmeza, pois ele está tão apavorado, que é uma maravilha, e que, ao ouvir qualquer coisa à noite, ele diz ‘Ai, minha senhora,
ai, Joana, os sargentos vêm me procurar’, e assim murmurando e dizendo ‘eu tenho um enorme pavor’. E, a mim mesma, ele disse várias vezes, todos os dias, do grande
pavor que tinha de ser preso e posto na prisão; e ele dirá tudo, sem nada poupar’. E disse que Mons. Roberto a ela respondeu: ‘Nós nos sairemos bem’. Mas que ela não
sabe onde ele se encontra, embora acredite que esteja num dos abrigos dos territórios do mencionado mons. Roberto” (Arquivos, Seção Hist., T. 440, nº 11). “Idem, ela
disse que, por muitas vezes, a mencionada dama Marie se ajoelhou à sua frente, rogando-lhe, chorosa e mãos juntas, com tais palavras: ‘Por Deus, senhora, fazei muito
para que Monsenhor tenha essas cartas que sabeis; que ele delas precisa para seu direito ao condado do Artois; e muito sei que bem o fareis, se quiserdes, pois seria uma
grande pena que ele fosse deserdado pela ausência de cartas, e ele precisa de apenas uma. O rei disse à Senhora que se ele puder exibi-la, pequenininha que for, ele (o
rei) entregará o condado; e, por Deus, pensai neles e tirai Monsenhor e Madame do desconforto no qual estão. Pois eles estão numa tristeza tão grande, que não podem
beber, comer, dormir e nem repousar noite e dia” (Arquivos, Seção Hist., J, 440, nº 11).
[420] Jeannette, sua empregada, aí sofreu, quatro anos depois, o mesmo suplício. Quanto aos que prestaram falso testemunho, foram amarrados ao pelourinho, vestidos
de camisas todas decoradas com línguas vermelhas. Arquivos, ibid., nº 43.
[421] ... Ele permaneceu muito tempo no Brabant; o duque o aconselhara trocar Bruxelas por Leuven, e prometera, no contrato de casamento de seu filho com Maria da
França, que Roberto deixaria seus domínios. Entretanto, ele ainda se manteve algum tempo sobre essas fronteiras, indo de castelo em castelo, “e bem o sabia o duque de
Brabant”. O patrono de Huy dera-lhe seu capelão, irmão Henri, para guiá-lo e “ir em frente, de acordo com suas necessidades, nesta região selvagem”. Refugiado no
castelo de Argenteau, e obrigado a dele sair “pelas libertinagens de seu valete”, ele se dirigiu para Namur e teve de negociar por muito tempo para ser aí recebido; foi-lhe
necessário aguardar numa pobre casa, pois o conde, seu primo, havia partido para encontrar o rei da Boêmia”. Ibid., 621-623.
[422] “Os assassinos foram até Reims, onde contavam encontrar o conde de Bar em uma festa que dava em honra às damas”; mas estavam atrás deles e eles tiveram
de voltar; tendo este golpe falhado, Roberto do Artois decidiu-se ir ele próprio à França. Ele aí permaneceu por quinze dias e voltou, convencido pelas insinuações de sua
mulher, que toda Paris seria a seu favor, se ele matasse o rei. Ibid., 625-6.
[423] Entre (as festas de) São Remi e Todos os Santos do mesmo ano de 1333, irmão Henry foi chamado por Roberto que, após muitas palavras agradáveis, começou
por contar-lhe uma falsa confidência e disse-lhe que seus amigos tinham-lhe enviado da França um volt ou voust que a rainha fizera contra si. Irmão Henry perguntou-lhe
“o que é um voust”. “É uma imagem de cera”, respondeu Roberto, “que se faz batizar para ferir aqueles a quem se deseja ferir. “Não a chamamos voulz neste país”,
replicou o monge, “nós as chamamos manies”. Roberto não sustentou por muito tempo esta impostura: ele confessou ao irmão Henry que aquilo que acabara de dizer da
rainha não era verdade, mas que possuía um segredo importante a comunicar-lhe; que não o diria senão após o irmão ter jurado que o receberia sob o selo da confissão. O
monge jurou, “mão no peito”. Então, Roberto abriu uma caixinha e dela tirou “uma imagem de cera envolvida em um lenço-de-cabeça de crepe, a qual imagem era
semelhante à figura de um jovem homem, e era do comprimento de um pé e meio e, pelo que lembra, viu claramente pelo lenço, que estava muito solto, e possuía em volta
da cabeça algo semelhante a cabelo, no formato que normalmente usa um jovem homem. “O monge desejou tocá-la. ‘Não a toque, irmão Henry’, disse-lhe Roberto, ‘ela
está preparada, está batizada, foi-me enviada da França preparada e batizada; nada falta a ela, que foi feita contra João da França, e em seu nome, para feri-lo: Isto eu vos
digo em confissão, mas eu tenho uma outra que desejo seja batizada’. ‘E para quem seria?’, perguntou o irmão Henry; ‘Contra uma diabinha’, disse Roberto, ‘contra a
rainha, rainha não!, é uma diaba; e, enquanto ela viver, ela não não fará senão me ferir; enquanto ela viver, eu não terei minha paz, mas se ela morrer e seu filho morrer, eu
estarei reconciliado com o rei e não duvido que farei com ele tudo o que me agradar, se vós, por favor, batizá-la, pois está tudo feito e só falta o batismo; tenho prontos os
padrinhos e madrinhas... só é preciso fazer como se faz ao batizar uma criança, dizer o nome que lhe pertence’. O monge recusou seu ministério para tal operação,
demonstrou que era errado acreditar nisso, que isto não convinha a um “tão altivo homem como ele era”: ‘Vós o desejais fazer sobre o rei e a rainha que são as pessoas do
mundo que têm o poder de reconduzir-vos à honra’, disse o monge. Monsieur Roberto respondeu: ‘Eu preferia estrangular o diabo ao diabo me estrangular”. Ibid., p.
627.
[424] In aurem nuntiis, quasi flens conquerebatur, quod ad principem esset inclinatus, et quod rex Franciæ sibi scripserit certis litteris, si Bavarum sine ejus voluntate
absolveret, pejora sibi fierent, quam papæ Bonifacio a suis prædecessoribus essent facta [NT: Na orelha dos mensageiros, ele se queixou chorando, até que o
comandante tivesse se inclinado, que o rei da França tem escrito certas cartas que, se o Bávaro for por sua (do papa) vontade absolvido, coisas piores que
foram feitas a Bonifácio e a seus predecessores ser-lhe-iam feitas]. Albertus Argent., p. 127.
[425] Ele vinculava sua partida para a cruzada a vinte e sete condições, dentre as quais o restabelecimento do reino de Arles em favor de seu filho, a concessão da
coroa da Itália a Carlos, conde de Alençon, seu irmão, a livre disposição do tesouro papal de João XXII. Ele adiava sua partida por três anos e, como pudesse sobrevir
algum obstáculo neste intervalo que o forçasse a renunciar à sua expedição, o direito de julgar a validade devia ser entregue a dois prelados de seu reino. Villani, l. X, c.
196, p. 719. Sism. X, p. 69. Após muitas negociações, o Papa concedeu-lhe os dízimos do reino da França por seis anos.
[426] Mas, ao mesmo tempo, Eduardo escreveu ao conde e aos burgomestres das três maiores cidades para queixar-se desta violência. Oudegherst, c. 156, f. 262;
Meyer, f. 136; ap. Sism. X, 103.
[427] Statutum fuit quod nulla lana crescens in Anglia exeat, sed quod ex eâ fierent panni in Angliâ (NT: Foi estatuído que nenhuma lã que crescesse na Inglaterra
saísse, senão para que dela se fizesse pano na Inglaterra). Walsingh., ‘Hist. Angl’.
[428] Vidisses tum multos per Flandriam textores, fullones aliosque qui lanificio vitam tolerant, aut inopia mendicantes, aut præ pudore et gravamine æris alieni solum
vertentes (NT: Que tivesses visto, por toda a Flandres, os tecelões, pisoeiros e todos os outros que vivem do lanifício tornaram-se inopinadamente ora pedintes,
ora envergonhados disto, ou a isto conduzidos pelas dívidas, lavrando a terra). Meyer, p. 137.
[429] Quod omnes operatores pannorum, undicunque in Angliam venientes reciperentur, et quod loca opportuna assignarentur eisdem, cum multis libertatibus et
privilegiis, et quod haberent... [NT: Que todos os operários de pano (manufatureiros) que viessem à Inglaterra fossem recebidos, e que lhes fossem
oportunamente designadas vagas, e que tivessem muita liberdade e privilégios...] – A necessidade de emigrar era-lhes tornada mais premente, não somente
recusando-lhes as lãs, mas, ainda, proibindo o uso dos produtos de sua indústria... Item statutum fuit quod nullus uteretur panno extrâ Angliam operato (NT: Idem, foi
estatuído que ninguém usasse roupas que tivessem sido fabricadas fora da Inglaterra). Walsingham, 1335, 133. – Vide Rymer, passim, ‘l’Hist. du commerce
d’Anderson’, etc.
[430] Walsingham diz, entretanto, que ainda durante três anos sua entrada foi proibida na Inglaterra. “Ut sic retunderetur superbia Flandritorum, qui plus saccos quâm
Anglos venerabantur (NT: para que seja avaliado o orgulho dos Flamengos, que mais veneram panos que os Ingleses). anno 1337.
[431] Mercatoribus S. Joannis Angeliaci et Rupellæ dedit ut liceret illis... frequentare portum Flandrensem apud Slusam ad ferentes quascumque mercaturus
constituentesque stabilem sibi sedem vinorum suorum in oppido Dummensi... eâque in mercaturâ omne monopolium prohibens [NT: Ele deu uma licença para os
mercadores de St. Jean d’Angely e de Rochelle... para frequentarem os portos de Flandres desde Sluis e permitir que qualquer mercador constituísse um
entreposto para seus vinhos na cidade de Damme... e proibiu todo monopólio comercial]; Meyer, p. 135.
[432] (NT): Jacquemart Artevelde se chamava, na realidade, Jacob (ou Jacques) van Artevelde (c. 1290-1345). O nome próprio ou apelido Jacquemart pode ter várias
etimologias, mas é também utilizado para designar os relógios de torres que são tocados (martelados) por autômatos mecânicos (o mais famoso deles é o jacquemart de
Dijon, que foi tomado dos Flamengos em Courtrai, em 1382). O Tradutor manterá o nome Jacquemart em respeito à obra original. Vide
http://fr.wikipedia.org/wiki/Jacquemart.
[433] “E havia, em Gant, um homem que era cervejeiro de mel; ele entrarara num favor tão grande e em tão grande graça junto a todos os Flamengos, que tudo era feito
e bem feito quando ele desejava . E comandava toda a Flandres, de um lado até o outro; e não havia ninguém tão poderoso quanto ele que ousasse desobedecer suas
ordens ou contradizê-las. Ele tinha sempre perto de si, quando ia à cidade de Gant, sessenta ou oitenta valetes armados, entre os quais havia dois ou três que sabiam alguns
de seus segredos; e quando ele encontrava um homem a quem odiasse ou de quem suspeitasse, este era logo morto; pois ele secretamente ordenara a seus valetes: “Assim
que eu encontrar um homem e vos fizer um tal sinal, matai-o sem demora, seja ele nobre ou importante, sem aguardar qualquer outra palavra”. E isto ocorria com
frequência e, desta forma, muitos grandes senhores foram mortos: porque ele era tão destemido, que ninguém ousava falar contra qualquer coisa que ele desejasse fazer, e
sequer pensar em contradizê-lo. E, tão logo esses sessenta valentes o tivessem reconduzido ao seu palácio, cada um partia para jantar em sua própria casa; e, logo após o
jantar, voltavam a seu palácio e aguardavam na rua, até que ele desejasse por ela caminhar e se divertir; e, assim, com ele permaneciam até à hora da ceia. E sabei que
cada um desses soldados recebia quatro groats por dia para suas despesas e vencimentos; e era muito importante que fossem pagos a cada semana. Desta forma, ele
possuía, em todas as cidades de Flandres e em cada castelania, sargentos e soldados a seu soldo para executar todas as suas ordens e espionar se havia alguma pessoa
que fosse rebelde a si ou que dissesse ou espalhasse algo contra seus desejos. E logo que soubesse de alguém, em alguma cidade, ele não sossegava até que o mesmo
tivesse sido banido ou morto sem demora; este não conseguia se proteger. E igualmente, todos os poderosos de Flandres, cavaleiros, escudeiros e burgueses das boas
cidades que ele pensasse que fossem, de alguma maneira, favoráveis ao conde de Flandres, ele daí os bania e levava a metade de seus bens, deixando a outra metade para
dar em arras e sobrevivência das suas respectivas mulheres e filhos”. Froissart, t. I, c. 65, p. 184.
[434] Sauvage, p. 143. Ejus fœderis præcipui auctores fuere Jacob Artevelda, et Signeurs Curtracensis eques Flandrus nobilissimus. Sed hunc Ludovicus... jussu Philippi
regis, Brugis decollavit (NT: E os principais autores desta federação foram Jacob Artevelde e Siger de Courtray, um nobilíssimo cavaleiro. Mas este Luís... por
ordem de Filipe, foi decapitado em Bruges). Meyer, p. 138, comp. Froissart, p. 187.
[435] Rymer, t. IV, p. 304. Igualmente antes da campanha que terminou pela batalha de Crécy, ele escreveu aos dois principais pregadores dos Dominicanos e dos
Agostinos, pregadores populares: Rex dilecto sibi in Christo... ad informandum intelligentias et animandum nostrorum corda fidelium... specialiter vos quibus expedire
videretis clero et populo velitis patenter exponere... (NT: Rei amado em Cristo... para informar a compreensão e animar o coração dos nossos fiéis... em particular
a vós, que podeis ver claramente, e ao clero e ao povo com cuidado explicar). Rymer, Acta public., V, 496.
[436] Após ter abandonado Eduardo, a quem servia no Império, para defender Filipe no reino, o conde de Hainaut, este jovem senhor, irritado pelas devastações que o
rei da França deixara serem cometidas em seus estados, lançara-lhe desafio e voltara a se aliar ao rei da Inglaterra. Froiss., cap. CI, p. 281.
[437] (NT): Tournai foi o berço da monarquia dos Francos e, até 1513, pertenceu à França, quando foi então ocupada pela Inglaterra. De 1519 a 1667, ficou sob domínio
espanhol. De 1667 a 1745, voltou ao domínio francês. De 1745 a 1792, sob domínio austríaco. De 1792 a 1822, voltou ao domínio Francês. A partir de 1822, com a criação
do Reino dos Países-Baixos, passou à Bélgica. É curioso notar que os berços das monarquias francesa (Tournai), inglesa (Normandia) e alemã (Könisgberg -
Kaliningrado) pertencem hoje a outros países; em relação a Könisgberg, finda a Segunda Guerra Mundial, os Aliados resolveram desmantelar a Prússia Oriental e
convencionaram que a mesma seria incorporada à extinta União Soviética; atualmente, pertence à Rússia, sendo um enclave entre a Polônia e a Lituânia.
[438] Roberto do Artois os liderava: “numa manhã de quarta-feira, ele convocou todos os capitães de seu exército e lhes disse: ‘Senhores, ouvi notícias que me chegam
da cidade de Saint-Omer, a qual logo me será rendida’. Os quais, sem demora, correram para se armar, dizendo-se uns aos outros: ‘Ora, corra companheiro! Nós ainda
hoje beberemos desses bons vinhos de Saint-Omer”. Crônica publica por Sauvage, p. 156.
[439] O conde de Montfot tinha vindo prestar-lhe homenagem em Windsor. “Quando o rei inglês ouviu essas palavras, ele as compreendeu de boa-vontade, pois olhou e
imaginou que a guerra contra o rei da França seria fortalecida e que ele não podia ter mais belo ponto de entrada, e nem mais aproveitável, que pela Bretanha; e que
enquanto guerreava com os Alemães, os Flamengos e os Brabanções, ele não fizera senão pagar e dispender à larga e à grande; e que os senhores do Império não tinham
feito senão levá-lo para lá e para cá, e pego seu ouro e sua prata, tanto quanto desejavam, e nada tinham feito”. Froissart, ann 1341, p. 20. As cartas pelas quais Luís da
Baviera revoga o título de vigário do Império são de 25 de junho de 1341.
[440] (NT): Vide os Tomos I e II deste História da França, já traduzidos e publicados por mim. Sobre os Monfort, vide sobretudo o Livro IV, do Tomo II.
[441] Vide Shakespeare (NT: William IV).
[442] V. a introdução de Walter Scott em sua coletânea das baladas do border.
(NT): A menção ao “cardo que fazia o arado de Burns se desviar”, refere-se ao poema “LXXXVII - To Mrs. Scott, of Wauchope” (vide o livro “The complete works of
Robert Burns”, por Allan Cunningham, Boston/New York, 1855. “Burns” é Robert Burns (1759-1796), poeta escocês que procurou salvar o que ainda restava das
baladas dos bardos e menestréis celtas. Parte daquele poema é mencionado na introdução do livro “Minstrelsy of the Scottish Border ” (ou “arte dos menestréis da
fronteira escocesa”) de 1806, escrito por Walter Scott: “The rough bur-thistle spreading wide / Amang the bearded bear, / I turn'd the weeder-clips aside, / And spared the
symbol dear.
[443] Ibidem.
[444] “E neste dia foi dado um grande alarme, e dizia-se que os primeiros (os da vanguarda) combatiam os inimigos; e os de trás, acreditando que fosse verdade,
apressavam-se, tanto quanto podiam, entre as charnecas, entre as pedras e o cascalho, entre valedos e montanhas, o elmo vestido, o escudo no braço, o gládio ou a espada
ao punho, sem aguardar nem pai, nem irmão, nem companheiro. E quando se tinha assim corrido meia-légua ou mais, e chegava-se no lugar donde este alarido ou brado
tinha nascido, ficava-se desapontado; pois tinham sido cervos ou gamos”. Froiss., I, cap. XXXVII, p. 84.
[445] “E fez-se gritar que aquele que desejasse trabalhar para que pudessem ser trazidas certas notícias ao rei, isto é, onde poderiam ser encontrados os Escoceses, o
primeiro que lhe reportasse isto teria cem libras de terra em recompensa e o rei o faria cavaleiro”. Froiss. I, cap. XL, p. 90. De fato, encontra-se em Rymer: Pro Thomâ
de Rokesby qui regem duxerat ante visum inimicorum Scotorum (NT: Para Thomas de Rokesby, a quem o rei entregou, por ter visto o inimigo escocês) . – (NT): A
passagem, em Rymer, fala de uma ordem dada pelo rei para que Thomas de Rokesby receba semestralmente, no dia de São Miguel Arcanjo e na Páscoa, cem libras do
Tesouro, até que lhe sejam dadas cem libras em terra por toda a sua vida. “Selado pelo rei em Lincoln, 28 de setembro de 1327” (a partir da tradução de G. H. Smith,
FGS).
[446] (NT): o Autor parece ter dado uma pequena escorregada (ils avaient peu de cavalerie, mais point de bagages), sobretudo tendo Froissart sob os olhos, o qual,
neste particular, escreve: “Todos eles estão montados, com exceção dos vivandeiros, que seguem à pé. Os cavaleiros e escudeiros vão bem montados em largos cavalos
de tração, o povo comum em pequenos galloways*” - nota tomada emprestada à tradução de G.H. Smith, FGS . (* galloway: raça de pôneis da Escócia; extinta no
século XVIII).
[447] (NT): trata-se de Sir James “Black” Douglas (ou Good Sir James Douglas), Lord of Douglas, 1286-1330: “... a cavalaria moura fugiu. Douglas e seus
companheiros raivosamente perseguiram os Sarracenos. Pegando a caixinha de seu pescoço, a qual continha o coração de Robert Bruce, ele a lançou à sua frente e
bradou: ‘Agora, passa tu à frente, como já quiseste fazê-lo, e Douglas te perseguirá ou morrerá!’. Os fugitivos se agruparam e, superiores em número, Douglas caiu
quando tentava resgatar William Saint-Clare de Roslin, que partilhou seu destino. Robert e Walter Logan, ambos cavaleiros, foram chacinados com Douglas... Seus poucos
companheiros sobreviventes encontraram seu corpo no campo, junto com a caixinha, e reverencialmente os enviaram à Escócia. Os restos mortais de Douglas foram
enterrados no sepulcro de seu pai, na igreja de Douglas, e o coração de Bruce foi depositado em Melrose” (Lord Haile’s Annals of Scotland, ann. 1330) – nota tomada de
empréstimo à tradução de G.H. Smith, FGS. – Vide também http://www.educationscotland.gov.uk/scotlandshistory/warsofindependence/blackdouglas/index.asp e
http://en.wikipedia.org/wiki/James_Douglas,_Lord_of_Douglas.
[448] Biografia universal de Michaud, artigo Douglas.
[449] Nada resta das antigas. Vide, dentre outras obras, o belo livro de M. Émile Souvestre: “Os últimos Bretões” (Les derniers Bretons).
[450] (NT): Não se sabe com certeza a origem do nome Plantageneta. A teoria mais popular reporta-se ao possível costume de Godofredo V, (Geoffroy V), 1128-1151,
usar um ramo da planta do gênero giesta (plante + genêt, em francês moderno ou plante + genest, em francês arcaico) em seu chapéu. “Plante Genest” era, também,
seu sobrenome (Wace, poeta normando fez este registro) . O nome teria sido atribuído retroativamente aos seus ascendentes. Vide “Origine du nom” em
http://fr.wikipedia.org/wiki/Plantagenêt.
[451] Entrerons en la grand matière et histoire de Bretagne, qui grandement renlumine ce livre pour les beaux faits d’armes qui y sont ramentués (Entremos na grande
matéria e história da Bretanha que grandemente ilumina este livro pelos belos feitos d’armas que nele são contados) . – (NT): O Tradutor acredita que o Autor,
ao destacar o verbo “iluminar”, em francês arcaico no texto original de sua obra, desejou evocar, de forma tocante, as belíssimas iluminuras que ornamentam as Crônicas
de Froissart: vide os originais das Crônicas na Biblioteca Nacional da França, manuscritos 2643 a 2646 em http://archivesetmanuscrits.bnf.fr/ead.html?
id=FRBNFEAD000049141), além das milhares de referências em Google Imagens.
[452] (NT): a lenda é narrada no livro “A summer amongst the Bocages and the vines”, vol. 1, Londres, 1840, a partir da página 68 (recomenda-se ler a partir da página
66), escrito por Louisa Stuart Costello. – (nota tomada emprestada da tradução de G.H. Smith, F.G.S.).
[453] Segundo Froissart, Carlos de Blois sempre teve ao seu lado “cinco dos sete”.
[454] Froissart, t. I, c. 314: “Assim cavalgou o condestável primeiramente para a Bretanha bretonante, porque ele a sentia mais inclinada ao duque João de Montfort que
a Bretanha gaulesa (francesa)”. – “A senhora de Montfort possuía diversas fortalezas na Bretanha bretonante”. “O conde de Montfort foi enterrado em Quimpercorentin
(atual cidade de Quimper)” - (texto original: “Si chevaucha le connestable premièrement Bretagne bretonnant, pourtant qu’il la sentoit toujours plus encline ao
duc Jehan de Montfort, que Bretagne gallot”. – “La dame de Montfort tenoit plusieurs forteresses en Bretagne bretonnant”. – “Le comte de Montfort fut
enterré à Quimpercorentin). Sauvage, p. 175.
[455] Processo verbal e informações sobre a vida e os milagres de Carlos, duque da Bretanha, da Casa da França, etc. Manuscrito da Biblioteca do Rei, 2º. vol., in-fol.
nº 5381. D. Morice, ‘Preuves’, t. II, p. 1. nos dá uma extrato, com base em outro manuscrito.
[456] 24ª testemunha, Yves o Clérigo, t. I, p. 147: “Non mutabat cilicem suum, dúm fuisset tantò plenum pediculis, quòd mirum erat, et quandò cubicularius volebat
amovere pediculos à dicto cilice, ipse dominus Carolus dicebat: ‘Dimittatis, nolo quòd aliquem pediculum amoveatis’, et dicebat quòd sibi malum non faciebant et quòd,
quandò ipsum pungebant, recordabatur de Deo” (NT:” Não mudava seu cilício, ainda que estivesse cheio de piolhos, o que provocava admiração, e quando seu
camarista desejou retirar os piolhos do mencionado cilício, este senhor Carlos disse: ‘Deixai-os, não retire sequer um deles’, e disse que os mesmos não faziam
mal algum e que, quando o picavam, ele se lembrava de Deus).
[457] In tantum quòd adstantibus videbatur quòd à sensu alienatus erat, et color vultûs ipsius mutabatur de naturali colori in viridem (NT: A todos que perto estavam,
viam que ficava privado dos sentidos e que a cor natural de seu rosto mudava para verde). 17ª testemunha, Pagan de Quelen, t. I, p. 87
[458] A crônica em versos de Guilherme de Saint-André, conselheiro, embaixador e secretário do duque João IV, notário apostólico e imperial, não deixa nenhuma
dúvida sobre a dubiedade que foi utilizada em relação a ele. Roujoux, III, p. 178
[459] (NT): Esta história da traição de Clisson pelo conde de Salisbury não está em Froissart, mas pode ser encontrada em ‘Histoire de Bretagne’, vol. I, p. 268. Lord
Hailes observa, acerca da expedição, que Froissart nela entrelaça, por sua conta, o belo romance da paixão de Eduardo pela condessa de Salisbury: “Tudo isto parece
fabuloso e inventado por pessoas que desejavam impô-lo à inquisitiva credulidade de Froissart. Não pode ser conciliado com datas históricas conhecidas, com os caracteres
e as condições das pessoas ali mencionadas ou com o curso geral dos eventos autênticos”. ‘Annals of Scotland, vol II, p. 211. (nota tomada emprestada à tradução de G.
H. Smith, F.G.S.).
[460] Malus dies lunæ (Den quaden maendach)... Pugnabant textores contra fullones ac parvum quæstum. Dux textorum Gerardus erat, quibus et Artevelda accessit
{NT: Numa segunda-feira negra (...) ... os tecelões, lutando contra os pisoeiros e os pobres trabalhadores. Duque Gerardo era a favor dos tecelões, com o
apoio de Artevelde}. Meyer, p. 146. Os quais, tendo matado mais de mil e quinhentos pisoeiros, expulsaram os outros do mencionado ofício para fora da cidade e
reduziram o mencionado ofício de pisoeiro a nada, como ainda ocorre hoje (“Lesquels ayant occis plus de quinze cent foullons, chassèrent les autres dudict mestier
hors de la ville, et réduisirent ledict mestier de foullons à néant, comme il est encoires pour le jourdhuy”). Oudegh., f. 271.
[461] “Após ter feito sua viagem, ele retornou a Gant e entrou na cidade por volta do meio-dia. Aqueles da cidade, que sabiam de seu retorno, estavam reunidos na rua
pela qual ele devia cavalgar na direção de seu palácio. Assim que o viram, eles começaram a murmurar e a se aproximar, quase três cabeças sob um mesmo chapéu, e
disseram: ‘Eis aquele que é um grande senhor e que deseja comandar o condado de Flandres de acordo com sua vontade; o que não deve mais ser tolerado’.... Assim que
Jacques d’Artevelde cavalgava pela rua, ele logo se deu conta que havia algo de novo contra si, pois aqueles que antes o saudavam se inclinando e tirando seus chapéus,
agora viravam-lhe as costas e entravam em suas casas. Por tal razão, ele começou a desconfiar; e logo que desceu em seu palácio, mandou fechar e barricar portões,
portas e janelas. Mal seus valetes fizeram isto, que a rua onde morava foi completamente coberta, no início e no fim, por pessoas, especialmente aquelas mais humildes dos
ofícios. Então, seu palácio foi cercado e assaltado pela frente e por trás e invadido à força. É bem verdade que aqueles de dentro se defenderam mui longamente e
mataram e feriram vários; mas, finalmente, eles não puderam mais resistir, pois estavam cercados tão apertadamente, que três terços da cidade estavam neste assalto.
Quando Jacques d’Artevelde viu os esforços que estavam sendo feitos e como estava aprisionado, ele foi a uma janela que dava sobre a rua e começou a se humilhar e
dizer, com um belo discurso, a um chefe: ‘Boa gente, o que fazeis? Por que me odiais? Por que estais tão irritados contra mim? De qual maneira posso eu ter incorrido em
vossa cólera? Dizei-me e me emendarei plenamente, de acordo com vossa vontade’. Então, responderam, a uma só voz, aqueles que o ouviram: ‘Queremos ter a
prestação de contas do grande tesouro de Flandres que vós levastes sem título de razão’. Então, Artevelde respondeu mui calmamente: “Certo, senhores! Do tesouro de
Flandres não peguei um dinheiro. Agora, voltai tranquilamente para suas casas, por favor, e retornai amanhã pela manhã; e eu estarei pronto para vos apresentar e prestar
boa conta que, certamente, vos bastará’. Mas eles responderam em um só voz: ‘Não, não, nós queremos saber agora; vós não nos escapareis assim: sabemos que, na
verdade, esvaziastes o tesouro e o enviastes à Inglaterra sem nosso conhecimento, razão pela qual deveis morrer’. Quando Artevelde escutou esta frase, ele juntou suas
mãos, começou a chorar muito amargamente e disse: ‘Senhores, tal como sou, vós assim me fizestes; e me jurastes, outrora, que contra todos os homens me defenderíeis e
protegeríeis; e agora, desejais me matar e sem razão. Fazê-lo podeis, se desejardes, pois sou apenas um homem contra todos vós, sem nenhuma defesa. Recomendai-vos a
Deus e voltai ao tempo passado. Considerai, então, as graças e as grandes gentilezas que outrora vos fiz. Vós desejais me dar uma lamentável recompensa pelos grandes
bem-feitos que, no tempo passado, eu vos fiz. Não sabeis que, quando todo o comércio perecia neste país, eu o reavivei? E depois, eu vos governei em tamanha paz, que
tivestes, ao tempo do meu governo, todas as coisas à vontade, trigo, lã, riquezas e todo o comércio com o qual vos recuperastes e em bom ponto’. Então, todos começaram
a gritar numa só voz: ‘Descei e não nos deis mais sermões daí do alto; pois queremos que deis conta e explicação imediata do grande tesouro de Flandres que governastes
por tempo demais sem que nos prestásseis contas; o que não cabe a nenhum oficial que recebe os bens de um senhor e de um país sem que preste contas’. Quando
Artevelde viu que não se acalmariam de forma alguma, ele fechou a janela e tentou sair pelos fundos, na direção de uma igreja que era próxima de seu palácio; entretanto,
esta igreja já fora forçada e invadida pelos fundos, e nela havia mais de quatrocentas pessoas que o aguardavam. Finalmente, ele foi aprisionado por esses e aí foi
assassinado sem piedade; e o golpe de morte foi dado por um tecelão que se chamava Thomas Denis. Assim finou-se Artevelde que, em sua época, foi o grão senhor em
Flandres: primeiro, pessoas pobres o alçaram e, por fim, pessoas más o mataram”. Froissart, II, 254-9
[462] (NT): a vetusta e demodê expressão “dar quartel” significa abrigo, proteção, conceder ao inimigo a graça de poupar sua vida.
[463] “Assim singraram, neste primeiro dia, de acordo com a vontade de Deus, do vento e dos marinheiros, e tiveram bons meios de irem à Gasconha onde o rei
tencionava ir. No terceiro dia... o vento virou e os lançou à costa da Cornualha... Neste ínterim, o rei teve uma outra idéia em virtude das informações e instâncias de
messire Godofredo d’Harcourt que o aconselhou a fazer terra na Normandia. E disse, então, ao rei: ‘Sire, a região da Normandia é uma das mais ricas do mundo... e
encontrareis, na Normandia, ricas cidades e castelos que não estão fechados, onde vossa gente terá grandes benefícios que, depois de vinte anos, ainda a ela bastarão”.
Froiss., c. 254, p. 296.
[464] “O rei cavalgava pela região do Cotentin. Não era de se maravilhar se os habitantes estavam apavorados e em choque; pois, antes disso, eles jamais tinham visto
homens d’armas e não sabiam o que era guerra ou batalha. Assim, fugiam eles dos Ingleses, tão longe estes estivessem, quando ouviam deles falar”. Froiss., II, p. 310.
[465] “E fez-se messire Godefroy de Harcourt condutor de todo seu exército, porquanto conhecia todas as entradas e atalhos da Normandia... encontraram o país rico e
abundante de todas as coisas, as fazendas cheias de trigo, as casas cheias de todas as riquezas, ricos burgueses, cavalos, porcos, ovelhas, carneiros e os mais belos bois do
mundo que se alimenta neste país”. Ibid. p. 303.
[466] “Eles chegaram em Barfleur... a cidade foi roubada e tomados ouro, prata e ricas jóias; e eles encontraram tantas e tamanhas riquezas, que os rapazes (os
soldados da Inglaterra) não deram a menor importância aos tecidos forrados de pele. Ibidem – E foram os Ingleses senhores da cidade de Caen por três dias, e
despacharam por barcas todo o seu ganho, tecidos, jóias, louça de ouro e prata e várias outras riquezas das quais tinham em grande profusão até que as mesmas
chegassem aos seus grandes navios; e concordaram, por meio de deliberação, que seus navios, com todas as suas conquistas e seus prisioneiros, seriam enviados para a
retaguarda, para a Inglaterra”. Froiss., II, 320.
[467] “E encontrou-se, na mencionada cidade de Saint-Lô oito ou nove mil camponeses e burgueses, assim como artíficies... não se podia acreditar na grande
abundância de tecidos que aí encontraram”. Ibid, p. 311.
[468] “Louviers, era, então, uma das cidades da Normandia onde se produzia o maior plantel de tecidos e era grande, rica e mercadora, mas, de forma alguma,
protegida... e foi roubada e pilhada sem demora e nela os Ingleses conquistaram muitos bens”. Ibid., p. 323.
[469] Eles teriam prometido fornecer 4.000 cavaleiros, 20.000 a pé (infantaria), dos quais 5.000 arbaleteiros, todos recrutados na província , exceto 1.000 cavaleiros
que o Duque da Normandia poderia escolher em outro lugar, mas que seriam pagos pelos Normandos. Eles se obrigavam a manter essas tropas durante dez e, mesmo,
doze semanas. Se a Inglaterra fosse conquistada, como se aguardava, a coroa pertenceria, desde então, ao Duque da Normandia. As terras e direitos dos Ingleses nobres
e plebeus, seculares, pertenceriam às igrejas, aos barões, aos nobres e às boas cidades da Normandia. Os bens pertencentes ao Papa, à igreja de Roma e àquela da
Inglaterra, não estariam compreendidos na conquista. Roberto d’Avesbury menciona este ato por inteiro, conforme a cópia que, segundo ele, foi encontrada em Caen,
1346. – Esta linguagem belicosa, esta certeza da conquista, não combinam em nada com o estado pacífico que Eduardo encontrou na região.
[470] (NT): o vau de Blanquetache ou Blanquetaque (Blanche-Tache ou Mancha-Branca) era uma passagem perto da foz do rio Somme e foi utilizada em várias
passagens de exércitos, durante séculos, até que, finalmente, com a construção de um canal entre Abeville e saint-Valéry-sur-Somme (meados do século XVIII), ele se
tornou inútil e permanente, não mais sofrendo as influências da maré (http://fr.wikipedia.org/wiki/Gué_de_Blanquetaque).
[471] “Não há um homem que não possa concordar com a verdade, especialmente da parte dos Franceses, na tamanha desordem e balbúrdia em sua organização, e isto
que eu sei, eu o soube ainda melhor... pelo pessoal de messire Jean de Hainaut, que sempre esteve ao lado do rei da França”. Froissart, III, 357.
[472] Qui quidem balistarii trahere cœperunt, sed cogentes cordas ad invicem, arcus ascendere nullatenus poterant, quia restrictæ fuerant pro pluviâ (NT: Aqueles
começaram a armar suas balestras, mas não foram capazes de torcer as cordas dos arcos, que foram prejudicadas pela chuva). Continuador de Guilh. de Nangis,
p. 108.
(NT): Lord Berners (John Bourchier, 2º Barão de Berners, 1467 – 1533) , ao traduzir as crônicas de Jean Froissart, dá uma versão um pouco diferente da narrada por
Froissart, havendo a suspeita de ter tido um manuscrito, hoje ignorado, em mãos. Por ser um retrato tão espirituoso e gráfico, eis que o que ele escreve (inglês arcaico):
“Whan the genowayes were assembled toguyder and beganne to aproche, they made a great leape and crye to abasshe thenglysshmen, but they stode styll and styredde
nat for all that. Than the genowayes agayne the seconde tyme made another leape and a fell crye and stepped forwarde a lytell, and thenglysshmen remeued nat one fote;
thirdly agayne they leapt and cryed, and went forthe tyll they came within shotte; than they shotte feersly with their crosbowes. Than thenglysshe archers stept forthe one
pase and lette fly their arowes so hotly and so thycke that it semed snowe. When the genowayes felte the arowes persynge through heedes, armes, and brestes, many of
them cast downe their crosbowes and dyde cutte their strynges and retourned dysconfited. Whan the frenche kynge sawe them flye away, he said, Slee these rascals, for
they shall lette and trouble us without reason; than you shoulde haue sene the men of armes dasshe in among them and kylled a great nombre of them; and euer styll the
englysshmen shot where as they sawe thyckest preace, the sharpe arowes ranne into the men of armes and into their horses, and many fell horse and men amonge the
genowayes, and when they were downe they coude nat relyne agayne; the preace was so thycke that one ouerthrewe a nother. And also amonge the englysshemen there
were certayne rascalles that went a fote with great knyues, and they went in among the men of armes and slew and murdredde many, as they lay on the grounde, both
erles, barownes, knyghts, and squyers, whereof the kyng of Englande was after dyspleased, for he had rather they had been taken prisoners.” (Quando os Genoveses
estavam juntos reunidos e começaram a se aproximar, eles deram um grande salto e um brado para desconcertar os Ingleses, mas estes permaneceram firmes e
em nada espicaçados por isto: então, os Genoveses novamente, pela segunda vez, deram um outro pulo e novo grito, e avançaram um pouco, e os Ingleses não
mexeram um pé: pela terceira vez, de novo, eles saltaram e gritaram, e foram adiante até que viessem com um disparo; então, eles dispararam furiosamente com
suas bestas. Então, os arqueiros Ingleses deram um passo à frente e fizeram suas flechas voar tão próximas e tão volumosas, que parecia nevar. Quando os
Genoveses sentiram as flechas atravessarem suas cabeças, braços e peitos, muitos deles baixaram suas bestas e cortaram suas cordas e voltaram derrotados.
Quando o rei francês os viu fugir, ele disse: “Exterminem esses patifes, pois eles nos deixarão e nos perturbarão sem motivo”. Então, vós devíeis ter visto os
cavaleiros impetuosamente entre eles, matando um grande número deles: e ainda sempre os Ingleses atiravam onde pudessem mais forte pressionar; as flechas
afiadas choveram sobre os cavaleiros e seus cavalos, e muitos tombaram, cavalos e homens, entre os Genoveses; e quando estavam caídos, não conseguiam se
erguer, a pressão era tão espessa que derrubava qualquer um. E também entre os Ingleses, houve certos patifes que foram caminhando, com grandes facas, e
se puseram entre os cavaleiros e chacinaram e mataram muitos dos que estavam à terra, tanto condes, barões, cavaleiros e escudeiros, pelo que o rei da
Inglaterra ficou depois muito descontente, pois ele teria preferido fazê-los prisioneiros).
[473] Já ela servia ao ataque e à defesa de praças-fortes. Em 1340, dela fez-se uso no cerco de Quesnoy. Em 1338, Barthélemy de Drach, tesoureiro das guerras, leva
em conta uma quantia dada a Henry de Famechon para adquirir pólvora e outras coisas necessárias aos canhões que estavam à frente de Puy-Guillaume. Nota de M.
Buchon. Froiss., I, p. 310.
[474] Froiss., I, c. 288, p. 363. Há nisto um antiquado costume bárbaro. Vide a Germania de Tácito, e as narrativas da batalha de Las Navas de Tolosa.
[475] “Et lors, après la bataille, s’avala le roi Édouard, qui encore tout ce jour n’avoit mis son bassinet” (E então, após a batalha, desabalou-se o rei Eduardo que,
durante todo esse dia, ainda não havia colocado seu bacinete*). Froiss. II, 373.
*(NT): bacinete é o elmo completamente fechado, com um espaço pequeno para os olhos e normalmente possuindo um comprido “bico” com oríficios para permitir a
respiração. Sobre o bacinete, vide em http://fr.wikipedia.org/wiki/Bassinet_(casque). Sobre os diversos tipos de “cobertura”, vide:
http://fr.wikipedia.org/wiki/Liste_de_couvre-chefs_par_ordre_alphabétique.
[476] (NT): Os coutiliers eram uma tropa de infantaria das mais pobres, vestida com uma cota de malhas anular simples, uma leve armadura peitoral de couro, equipada
com um longa adaga e frequentemente com uma lança ou uma vara na ponta da qual era amarrada a adaga. O nome vem de coutille (ou costille), espada curta ou adaga
larga e afiada fixada em uma haste (http://fr.wikipedia.org/wiki/Coutillier).
[477] Ibid, c. 293, p. 273 – Houve mortos nos campos, nesta sortida, sob sebes e arbustos, mais de sete mil... Assim cavalgaram, nesta manhã, os Ingleses desejosos de
aventuras, e encontraram vários Franceses que se haviam extraviado no sábado, e puseram-nos sob a espada, e me foi dito que, das comunidades e dos peões a pé das
cidades e das boas vilas da França, houve mortes nesse domingo pela manhã, mais de quatro vezes que no sábado, quando ocorreu a grande batalha... os dois cavaleiros,
messires Regnault de Cobham e Richard de Stanfort disseram que onze príncipes principais jaziam no campo, oitenta senhores brasonados, mil e duzentos cavaleiros de
escudo, e por volta de 30.000 homens de outras classes’. Froiss., II, p. 375-380.
[478] Algumas cidades do interior também contribuíram, mas numa proporção bem diferente. A poderosa cidade de York deu apenas um navio e nove homens.
Anderson’s Annals of Commerce, I, 322.
[479] “E mandou construir, entre a cidade e a praia e a ponte de Nieulai, mansões e casas, e cobrir as mencionadas casas, que estavam localizadas e ordenadas por
ruas, bem e facilmente de palha e de giestas, tal como se lá fosse permanecer por dez ou doze anos, pois tal era sua intenção de não partir pelo inverno, nem pelo verão,
até que a tivesse conquistado (Calais). Ibid, p. 385.
[480] Knyghton, ‘De event. Angl’, l. IV. Froissart, ao contrário, diz que não somente ele (Eduardo) os deixou passar pelo seu exército mas, também, que os fez jantar
copiosamente. II, p. 387.
[481] Os Ingleses, tendo dado caça a dois vasos que tentavam sair do porto, interceptaram esta carta do governador a Filipe de Valois: “...si avoms pris accord entre
nous que si n’avoms en brief secour qe nos issiroms hors de la ville toutz a champs pour combatre pour vivere ou pour morir; qar nous amons meutz à morir as champs
honourablement qe manger l’un l’autre...” (NT: ... assim, concordamos entre nós que, se não tivermos breve socorro, iremos todos para fora da cidade para
combater, para viver ou para morrer; pois preferimos mais morrer honradamente no campo a comer um ao outro...”) . Froissart, II, p. 444, nota. O continuador de
Nangis diz que o rei jamais cessara de enviar víveres, por terra e mar; mas que eles tinham sido desviados.
[482] “Então avançaram aqueles de Tournai, que eram cerca de mil e quinhentos, e foram de excelente vontade nisto. Aqueles de dentro da torre feriram alguns.
Quando os companheiros de Tournai viram isto, eles foram encorajados e se puseram, de boa vontade, a assaltar os Ingleses. Houve, aí, um duro e grande assalto, e muitos
daqueles de Tournai foram feridos, mas tanto fizeram que, por força e muita luta de corpo, conquistaram esta torre... Do que os Franceses fizeram deste fato uma grande
proeza”. Froiss., II, p. 449.
[483] Ele também lhes oferecia levantar o interdito lançado contra Flandres, fornecer-lhes um suprimento de trigo por seis anos a um preço muito baixo, providenciar
entregas de lãs da França, as quais manufaturariam com o privilégio de vender, na França, as roupas com elas fabricadas, com exclusividade de qualquer outro, tanto
quanto pudessem fornecê-las, etc. Rob. d’Avesbury, p. 153.
[484] Para forçá-lo a desposar a filha do rei da Inglaterra, os Flamengos o mantinham em prisão cortês. Ele se entediava, prometia tudo e saía para passear sob boa
guarda... E, um dia, quando fora flanar pela praia, ele lançou seu falcão ao ar, o seguiu a cavalo e, quando se encontrava um pouco distante, esporeou seu cavalo e foi para
a França”. Froiss., II, p. 480.
[485] Froissart diz que o rei, vindo em socorro de Calais, mandou desafiar Eduardo e que este último recusou. Eduardo, numa carta ao arcebispo de York, relata que, ao
contrário, aceitou o desafio, mas que o combate não ocorreu porque Filipe levantou acampamento precipitadamente, antes do dia combinado, após ter tocado fogo em seu
campo. Ibid., p. 452.
[486] Villani, que devia estar bem instruído dos negócios da França com os mercadores florentinos e lombardos, diz expressamente que Eduardo estava resoluto em
mandar enforcar os mercadores de Calais como piratas, porque tinham causado muitos danos aos Ingleses no mar. Villani, l. 12, c. 95. – M. Dacier comparou as
diversas narrativas dos historiadores (Froissart, III, 466-7). Vide também uma tese de dissertação de M. Bolard, laureada pela Societé des Antiquaires de la Morinie. –
Nenhum crítico, que eu saiba, sentiu toda a importância da passagem de Villani.
[487] (NT): Jean Bart (Jan Bart ou Jan Baert em flamengo), 1650-1702, foi um corsário célebre por seus sucessos a serviço da França, nas sucessivas guerras de Luís
XIV, o qual findou por outorgar-lhe um título de nobreza. A Armada da França presta-lhe homenagens há três séculos, batizando sucessivos vasos com seu nome: a mais
recente se deu em 1991, com a fragata antiaérea código D615, que participou da segunda parte da Operação Unified Protector (2008 a 2011), tendo a França conduzido
a Operação Harmattan (2011); tais operações ocorreram no litoral da Líbia e aceleraram a queda do regime do coronel Muamar Khadaffi.
[488] Talvez seja por isso que os historiadores contemporâneos não designem Eustache de Sain-Pierre e seus companheiros quando fazem menção a esta circunstância:
Burgenses procedebant cum simili formâ, habentes funes singuli in manibus suis, in signum quod rex eos laquo suspenderet vel salvaret ad voluntatem suam (NT: Os
burgueses procederam da mesma forma, cada um deles tendo uma corda em suas mãos, em sinal de que o rei poderia enforcá-los ou salvá-los, de acordo com
sua vontade). Knyghton. A narrativa de Thomas de la Moor está de acordo com esse historiador. Villani diz que eles saíram nus de camisa e Robert de Avesbury que
Eduardo se contentou em manter os prisioneiros mais consideráveis. Todos esses dados formam os elementos da dramática narrativa de Froisart.
[489] (NT): O autor Jules Michelet não viveu tempo suficiente para ver a belíssima e tocante escultura de 1895 feita pelas mãos do mestre Auguste Rodin, por
encomenda da cidade de Calais: “os Burgueses de Calais” (Les Bourgeois de Calais) é um grupo estatuário que representa os seis dignos burgueses que ofereceram
suas vidas em troca da graça para os habitantes da cidade. Outros 11 exemplares da obra foram produzidos e um deles se encontra no Museu Rodin de Paris
(http://fr.wikipedia.org/wiki/Les_Bourgeois_de_Calais).
[490] Froissart diz: “E depois, (os Ingleses) fizeram de tudo para que os pequenos e grandes partissem (de Calais)” – “Nenhum Francês foi expulso”, diz M. de
Bréquigny (‘Mém. de l’Acad.’, t. 37); vi, ao contrário, muitos nomes franceses entre os nomes das pessoas a quem Eduardo concedeu casas em sua nova conquista.
Eustache de Saint-Pierre estava entre estes. Por cartas de 8 de outubro de 1347, dois meses após a rendição de Calais, Eduardo dá a Eustache uma pensão considerável
esperando que ele contribua mais amplamente à sua sorte. Os motivos desta graça são os serviços que ele devia prestar, seja mantendo a boa ordem em Calais, seja
velando pela manutenção deste local. Outras cartas do mesmo dia concedem-lhe a maioria das casas e locais que ele possuíra nesta cidade, acrescentando-lhe outros. V.
Froiss., II, p. 473. Filipe fez tudo o que estava em seu poder para recompensar os habitantes de Calais. Ele concedeu todos os ofícios vacantes (8 de setembro, um mês
após a rendição) àqueles que desejassem ficar a seu lado. Nesta Ordenação, faz-se menção à uma outra pela qual ele concedera aos Calesenses expulsos da cidade todos
os bens e heranças que lhe viessem por qualquer causa que fosse. Aos 10 de setembro, concede-lhes de novo um grande número de privilégios e franquias, etc.,
confirmados nos reinados subsequentes. Nota de M. Buchon, ibid., p. 475.
[491] Este aspecto do fox-hunter inglês não é moderno. Vide, no tomo IV, a entrada de Henrique V em Paris (NT: ainda não vertido para o português por este
Tradutor).
[492] Illis autem diebus (MCCCXLVI) levabat dominus rex decimas ecclesiarum de voluntate domini pape... et sic infinitæ pecuniæ per diversas cautelas levabantur, sed
revera quantò plures nummi in Francia per tales extorquebantur, tantò magis Dominus Rex depauperabatur; pecuniæ militibus multis et nobilibus, ut patriam et regnum
juvarent et defensarent, contribuebantur, sed omnia ad usus inutiles ludorum, ad taxillos et indecentes jocos contumaciter exponebantur (NT: Naqueles dias (1346), nosso
senhor o rei arrecadava os décimos da igreja, com o consentimento do papa... e infinita quantidade de dinheiro era cobrada por pretextos diversos; mas, na
verdade, aquilo que mais se extorquia dos pobres enriquecia nosso Senhor o Rei da França; o dinheiro era cobrado para manter uma numerosa e nobre
soldadesca, para o auxílio e defesa da pátria e do reino; mas era contumaciamente desperdiçado em diversão, dados e jogos indecentes) . Contin. de G. de
Nangis, p. 108
[493] Dos trinta e dois mil homens que compunham o exército de Eduardo III, Froissart diz expressamente que não havia senão quatorze mil Ingleses (4.000 cavaleiros,
10.000 arqueiros). Os outros dezoito mil eram Galeses (12.000) e Irlandeses (6.000).
[494] (NT): Virgílio, Eneida, Canto VI, versos 434-435 (a partir de http://bcs.fltr.ucl.ac.be/Virg/V06-426-547.html).
[495] Narbonne pede que seja isenta das contribuições de guerra: “A inundação do Aude nos incomodou extremamente, e o número de lares diminuiu de quinhentos
desde há quatro ou cinco anos; vários moradores estão reduzidos à mendicância etc.”. D. Vaissete, ‘Hist. de Languedoc’, IV, 231.
[496] Continuador de Guilh. de Nangis, p. 110, e o tradutor contemporâneo da “pequena crônica de Saint-Denis”, manusc. Coaslin, nº 110, Bibl. Reg. – Ad sepeliendos
mortuos vix sufficere poterant. Patrem filius, et filius patrem in grabato relinquebat (NT: Mal suficientemente se conseguia enterrar os mortos. Pai ao filho e filho ao
pai, deixavam o leito um para o outro). Contin. Can. de S. Victore, manusc. Bibl. Reg. nº 818, pequeno in-folio.
[497] Vide, dentre outras obras, a tese notável de M. Schmidt de Estrasburgo, sobre os místicos do século XIV.
[498] (NT): Tauler é Johan Tauler (Johannes Tauler, João Tauler, Juan Taulero, Iuã Taulero ou Taulerus), dominicano alemão que foi um dos grandes místicos do
cristianismo e a quem foi atribuído o epíteto de “doutor iluminado”; aluno do mestre Eckhart, seus sermões se tornaram célebres; compôs a canção “Um barco chega,
carregado” (Es kommt ein Schiff, geladen), incorporado aos hinários católico e luterano, associada ao Natal e ainda hoje muito procurada e ouvida. Ludolph(f)o o
Cartuxo (ou Ludolpho de Saxe ou Ludophus Saxonia, também chamado Rudulfus, Landolfus, Leutolfus, Leutolphus, Lutoldus, Litoldus, Cartusianus, Nationoteutonicus,
Allemanus e Ludolf von Sachsen): sabe-se pouco a seu respeito, embora sua obra “A Vida do Cristo” (Vita Christi ou Meditationes Vita Christi) tenha tido uma grande
difusão. Morreu em 1377 ou 1378.
[499] (NT): H(E)enrique Suso(n) (Henri Suso, Henrich von Berg ou Santo Henrique desde 1831), c. 1295-1366, que gozava do dom das visões. O “Livro dos Nove
Rochedos” ou“Neun-Felsen-Buch” (publicado em Portugal, em 1631, sob o título “Para todos os mortaes - Tratado das Nove Penhas”) foi, na verdade, escrito por
Rulman Merswin, discípulo de Tauler; entretanto, o livro gozou de tamanha estima, que foi publicada sob o nome de Santo Henrique Suso. Vide
http://pt.wikipedia.org/wiki/Henrique_Suso, http://www.bnportugal.pt/ (acessar “catálogos”) e http://www.arfuyen.fr/html/fichelivre.asp?id_livre=445 e
http://fr.wikipedia.org/wiki/Rulman_Merswin.
[500] (NT:) João de Ruysbroeck (Jean Ruysbroeck ou Jan van Ruusbroec) foi beatificado em 1908 por Pio X.
[501] Noviter adinventas. Contin. de G. de Nangis, III. – M. Mazure, bibliotecário de Poitiers, publicou um canto muito impressionante que os irmãos da Cruz tinham o
costume de cantar em suas cerimônias:

Or avant, entre nous tous frères Ora avante, todos nós irmãos,
Battons nos charognes bien fort Batamos bem forte em nossas carcaças
En remembrant la grant misère Lembrando a grande miséria
De Dieu et sa piteuse mort, De Deus e sua morte piedosa
Qui fut pris en la gent amère, Que foi preso por gente amarga (má),
Et vendus et traïs à tort E vendido e traído por mal
Et battu sa char vierge et dère E golpeada Sua carne virgem e querida
Au nom de ce, battons plus fort Em nome Deste, batamos mais forte
etc... etc. (NT)

(NT1): Este cântico é mencionado por M. Levesque em seu ‘Histoire des Cinq Premiers Valois’, t. I, pgs. 530/1. Lord Hailes data as devastações desta praga em 1439,
observando: “A grande pestilência, que por muito tempo desolou o continente, alcançou a Escócia. Os historiadores de todos os países falam com horror desta peste. Ela
alcançou uma grande extensão e se provou mais destrutiva que qualquer calamidade conhecida da natureza nos anais da humanidade. Barnes, pgs. 438-441, coletou os
testemunhos dados acerca desta pestilência por muitos historiadores; e, involuntariamente, forneceu material para uma importante investigação entre as populações da
Europa, no século XIV”. Lingard diz (vol. III, pags. 65-70, 4º Tomo): “Nós a verificamos primeiramente no império de Catai (China); daí, podemos traçar seu progresso
através de diferentes províncias da Ásia ao delta e às margens do Nilo; um vento sul a transportou para a Grécia e para as ilhas gregas: a partir daí, ela alcançou as costas
do Mediterrâneo, depopulou a Itália e cruzou as barreiras dos Alpes para a França. Uma sucessão de terremotos, que abalou o continente da Europa a partir da Calábria
até o norte da Polônia, ocorreu no ano fatal de 1343; e embora a Inglaterra tenha escapado a esta calamidade, houve um dilúvio de chuva, quase incessante, de junho a
dezembro. Na primeira semana de agosto, a praga fez sua aparição em Dorchester; em novembro, alcançou Londres e, a partir daí, gradualmente progrediu para o norte
da ilha... Quando os historiadores nos contam que metade ou um terço da raça humana pereceu, podemos suspeitar do exagero deles: mas é fácil formar alguma idéia da
mortalidade a partir do fato que todos os cemitérios de Londres logo ficaram lotados; que Sir Walter Manny adquiriu, para local público de enterro, um campo de treze
acres, onde a Cartuxa (London Charterhouse) hoje se encontra; e que os corpos aí depositados, durante seguidas semanas, alcançavam, diariamente, a média de
duzentos. Observou-se que, apesar da doença ter contaminado os Ingleses na Irlanda, ela poupou os nativos. Os Escoceses também a ela foram imunes por muitos meses;
e esta circunstância granjeou-lhes a fama de triunfo sobre seus inimigos, introduzindo entre os mesmos um juramento popular (‘by the foul dethe of the English’ – ‘pela
imunda morte dos Ingleses’). Eles chegaram mesmo a reunir um exército para invadir os condados vizinhos, quando o contágio, então, também se insinuou em seu campo,
na floresta de Selkirk: quinhentos morreram antes de desmobilizarem suas forças: e os fugitivos levaram consigo a infecção para os mais distantes grotões da Escócia
(nota tomada emprestada à tradução de G.H. Smith, F.G.S.).
(NT2): Sabe-se, hoje, que a peste negra (peste bubônica), transmitida pelas pulgas dos ratos pretos indianos, efetivamente iniciou-se na Ásia, disseminou-se nos Orientes
Médio e Próximo, daí para a Áfica, de onde provavelmente aportou na Europa. Cerca de 50 milhões de pessoas morreram na Europa, correspondendo a pouco mais de um
terço de sua população estimada. Sabe-se também que a população de ratos pretos indianos que carrega a bactéria causadora da peste negra ainda existe, estando
concentrada nos sopés do Himalaia e na região dos Grandes Lagos Africanos. Recentíssima pesquisa da sociedade PLOS ONE conclui que a peste negra alterou os
padrões de saúde e melhorou a sobrevivência geral posterior, tornando mais fortes os sobreviventes e sua descendência: vide artigo “Mortality risk and survival in the
aftermath of the Medieval Black Death” em www.plosone.org; vide reportagens resumindo o estudo em http://www.bbc.com/news/health-27293220 e
http://oglobo.globo.com/sociedade/saude/peste-negra-fortaleceu-geracoes-posteriores-diz-estudo-12418860. Nos dias de hoje, cientistas estimam haver ameaça concreta de
pandemia à humanidade na forma de alguma superbactéria, no descontrole de outras doenças altamente contagiosas e mortais já detectadas ou na resistência de bactérias
a antibióticos. Segundo alguns deles, a pergunta que se deve fazer não é “se vai acontecer”, mas “quando”.
[502] Che poi la sera vegnente appresso nell’altro mondo cenarono colli loro passati”. Giovanni Boccacio, Decameron, giorno primo.
[503] Matteo Villani culpa aqueles que se retiraram. Apud Muratori, XIV, p. 14.
[504] La notte alle lor case, senza alcuno corregimento di pastore, si tornavo satolli. Boccacio, ibidem.
[505] Boccacio, ibidem. “Fu forse di minore onestà... cagione”. Ibidem.
[506] Tucídides nos retratou o mesmo efeito na descrição da peste da Ática. Ele também expressa um notável progresso do ceticismo, quando lembra a falsa
interpretação dada às palavras do oráculo: λιμός (fome) por λιμὸς (peste).
[507] “... sed quod supra modum admirationem facit, est quod dicti pueri nati post tempus illud mortalitatis supradictæ, et deinceps dùm ad ætatem dentium devenerunt,
non nisi viginti dentes vel viginti duos in ore communiter habuerunt, cum antè dicta tempora homines de communi cursu triginta duos dents et suprà in mandibulis habuissent
(NT: “... mas o que sobremodo causava admiração, é que as ditas crianças, nascidas após a supramencionada mortalidade, quando chegaram à idade da
dentição, não tinham senão vinte ou vinte e dois dentes em suas bocas, quando, antes daquele tempo, trinta e dois dentes ou mais eram o comum nas
mandíbulas”), Contin. de G. de Nangis, p. 110.
[508] (NT): sobre os cavalos destriers, vide Tomo II, já traduzido por mim. Quanto ao cavalo palafrém, embora fosse utilizado para a caça e batalhas, era o destinado às
mulheres por andarem mais comumente a passo e não a trote ou galope. Eram também menores. Está praticamente extinto na Europa, havendo espécies nas Américas do
Sul e do Norte e na Islândia (http://fr.wikipedia.org/wiki/Palefroi).
[509] (NT): Laura de Sade (ou Laura de Noves), 1310-1348, teve filhos, um dos quais (Hugo III) é ancestral direto do famoso Marquês de Sade
(http://fr.wikipedia.org/wiki/Laure_de_Sade).
[510] “Non tam corpus amasse quam animam... Quo illas magis in ætate progressa est... eo firmior in opinione permansi; et si enim visibiliter in vere flos tractu temporis
languesceret, animi decus augebatur...” (NT: “Não foi tanto o corpo que amei, mas a alma... Quanto mais progredia em idade... mais firme minha opinião ficava;
e se visivelmente a flor da primavera murchava com o tempo, as graças de sua alma desabrochavam...”) Ibid, p. 356. – Parece que, mais tarde, Petrarca
reconheceu que seus amores eram vãos: “Quotiens tu ipse... in hac civitate (quæ malorum tuorum omnium non dicam causa, sed officina est), postquam tibi admonitus
veterum vanitatum, ad nulius occursum stupuisti, suspirasti, substitisti, denique vix lacrymas tenuisti, et mox semisaucius fugiens dixisti teum: Agnosco in his locis adhuc
latere nescio quas antiqui hostis insidias; reliquiæ mortis hic habitant...” {NT: “Quantas vezes tu mesma... nesta cidade (não vou dizer todas as causas dos teus males,
mas apenas tuas aflições), após teres pensado em ti mesma mais de uma vez... caminhando pelas redondenzas bem conhecidas e lembradas pelo mudo aspecto
dos bem conhecidos lugares das antigas vãs ilusões, repentinamente paraste, estupidificada, suspiraste, quase não contiveste tuas lágrimas e, velhas feridas
abertas, fugiste, guardando-as para ti. Sinto, nesses lugares, as insídias dos meus velhos inimigos: a relíquia da morte aqui habita”} , ‘De Cont. mundi, p. 360,
ed. Basileæ, 1581. – Vide também, entre outras obras relativas a Petrarca, as Mémoires de l’abbé de Sade (Memórias do abade de Sade), a obra recente intitulada
Viaggi di Petrarcha e o excelente artigo da Bibliographie Universelle, por M. Foisset.
[511] “Laura, ilustre por suas próprias virtudes e por muito tempo celebrada pelos meus versos, apareceu aos meus olhos, pela primeira vez, no primeiro momento de
minha adolescência, no ano 1327, no dia 6 do mês de abril, na primeira hora do dia (seis horas da manhã), na igreja de Santa Clara de Avignon e, na mesma cidade, no
mesmo mês de abril, no mesmo dia 6 e na mesma hora, ano 1348, esta luz foi arrebatada do mundo, quando eu estava em Verona, ai de mim!, ignorando minha triste sorte.
A infeliz notícia me foi trazida por uma carta de meu amigo Luís: esta me encontrou em Parma, no mesmo ano, no dia 19 de maio, pela manhã. Esse corpo tão casto e tão
belo foi depositado na igreja dos Irmãos-Menores, na tarde do mesmo dia de sua morte. Sua alma, eu não duvido, retornou ao céu de onde viera. Para conservar a
memória dolorosa desta perda, experimento um certo prazer misturado à angústia de escrever aqui; e escrevo preferencialmente sobre este livro, que frequentemente
retorna a meus olhos, a fim de que nada mais me agrade nesta vida e porque, estando meu laço mais forte rompido, eu seja advertido, pela visão frequente destas palavras
e pela justa apreciação de uma vida de fugitivo, que é tempo de sair da Babilônia; o que, com a ajuda da Graça divina, tornar-se-me-á fácil pela contemplação máscula e
corajosa dos cuidados supérfluos, das vãs esperanças e dos acontecimentos inesperados que me agitaram durante o tempo que passei sobre a terra”. Tradução de M.
Froisset, ‘Biog. Univ.’. XXXI, p. 437.
(NT): o livro de Virgílio, sobre o qual Petrarca escreveu a nota acima, se encontra hoje na Veneranda Biblioteca Ambrosiana de Milão.
[512] O que fazemos agora, meu irmão? Nós provamos tudo e em nenhum lugar está o repouso. Quando virá ele? Onde procurá-lo? O tempo nos foge, por assim dizer,
entre os dedos, nossas velhas esperanças dormem no túmulo de nossos amigos. O ano 1348 nos isolou, nos empobreceu, nenhuma dessas riquezas que os mares das Índias
ou da Carpátia podem renovar... Não há senão um consolo; seguiremos aqueles que nos precederam... O desespero me deixa mais calmo. O que poderia temer aquele que
tantas vezes lutou contra a morte:
Una salus victis nullam sperare salutem*.
Tu me verás, dia a dia, agir com mais alma, falar com mais alma; e, se algum digno assunto se oferecer à minha pena, minha pena será mais forte. – Petrarca, ch., Epist.,
fam., Præf., p. 570.
* (NT: “A única salvação dos vencidos é não esperar nenhuma salvação” – Virgílio, Eneida, II, 354 – palavras de Enéias para encorajar seus soldados
vencidos na guerra de Tróia, a fim de suportarem a desgraça).
[513] (NT): “Ó aguardada no céu, beata e bela”. Canção composta por Petrarca para encorajar Jacopo Collona, que se tornara eclesiástico e prestara um serviço
ousado e corajoso ao Papa João XXII, a pregar a cruzada, a qual acabou não ocorrendo (esta seria a cruzada para a qual Don Sancho, que não entendia latim, foi pelo
Papa proclamado rei do Egito e que, ao perguntar a seu intérprete o que ocorria, disse debochadamente para seu servidor: “Não se deve ser ingrato. Levanta-te e
proclama o Santo Padre califa de Bagdá” - vide Tomo II, já traduzido por mim).
[514] (NT): Cahorsino: no original, “cahorsin”, palavra que designa não só o natural da cidade de Cahors, mas também tinha um sentido metafórico e depreciativo na
Idade Média, denotando, à semelhança de “lombardo” e “judeu”, pessoa gananciosa, cúpida por dinheiro, banqueiro, usurário, argentário, mesquinho etc. (vide no sítio
http://fr.wiktionary.org/wiki/cahorsin e a entrada no dicionário Larousse em www.larousse.fr). O Papa João XXII era, portanto, duas vezes cahorsino: de origem e, na
acepção medieval, de hábitos.
[515] Ita me Reginæ junioris novique Regis adolescentia, ita me Reginæ alterius ætas et propositum; ita me tandem territant aulicorum ingenia, equos duos multorum
custodiæ luporum creditos video, regnumque sine rege... p. 639. Neapolim veni, Reginas adii et reginarum consilio interfui. Proh! Pudor! quale monstrum. Auferat ab Italico
cœlo Deus genus hoc pestis... Ibid, p. 640-1 (NT: Tanto me impressionou a juventude do rei, tanto me impressionou a idade e os propósitos da rainha viúva; tanto
me impressionou o temperamento dos nobres, que acreditei ver dois cavalos encarregados de guardar uma matilha de lobos e um reino sem rei... Vim a
Nápoles, vi as rainhas e fui apresentado ao Conselho Real. Ó! Vergonha! Que monstros! Possa Deus aspergir uma peste como essa sob o céu Italiano).
[516] Nocturnam iter hic non secus atque inter densissimas silvas, anceps ac periculis plenum, obsidentibus vias nobilibus adolescentulis armatis... Quid miri est... cum
luce media, inspectantibus regibus ac populo, infamis ille gladiatorius ludus in urbe itala celebretur, plusquam barbarica feritate... Ibid, p. 645-6 (NT: Andar à noite, aqui, é
como se enfurnar em florestas espesas, duvidoso e cheio de perigos, jovens nobres armados em todos os lugares... Que espetáculo é... com a luz do meio-dia, à
vista do rei e do povo, uma infame luta de gladiadores é celebrada numa cidade italiana, com mais selvageria do que a dos bárbaros).
[517] “Cave, obsecro, speciosissimam famæ tuæ frontem, propriis manibus deformare. Nulli fas hominum est nisi tibi uni rerum tuarum fundamenta convellere, tu potes
evertere qui fundâsti... Mundus ergo te videbit de bonorum duce satellitem reproborum... Examina tecum, nec te fallas, qui sis, qui fueris, undè, quò veneris... quam
personam indueris, quod nomen assumpseris, quam spem tui feceris, quid professus fueris, videbis te non Dominum Reipublicæ, sed ministrum”. Ibid, p. 677-8. - {NT:
Guarda-te, peço-te, de conspurcar com tuas próprias mãos a excelente fama da tua fronte. Ninguém, além de ti, que puseste teus alicerces, pode abalar as
fundações onde tu mesmo repousas... Logo o mundo ver-te-á cair de líder do bem para satélite dos réprobos... Examina-te, não te enganes, vê quem és, quem
foste, de quem te aproximas... com quais pessoas lidas, com quais nomes te comprometes, o que tu delas esperas, o que professam, e verás que não és o Senhor
da República, mas seu ministro (servidor)}.
[518] Ele extraiu deles algum dinheiro e voltou mais rápido que veio. As cidades fechavam todas as suas portas; mal lhe foi permitido repousar por uma noite em
Cremona.
[519] E o que havia de mais humilhante é que o malicioso imperador dera a coroa poética a um outro que não Petrarca.
[520] Vide Gibbon, XII, 466.
[521] Alguns dias antes, Boccacio lhe remetera o Decameron. O ancião dele decorou a paciente Griselda, esta bela história que, por si só, purifica o resto do livro.
(NT): a cidade de Arquà (província de Pádua, região do Vêneto) acrescentou o nome do poeta ao seu no ano de 1870, pouco mais de trinta anos depois do original deste
livro ter sido publicado, passando a se chamar Arquà-Petrarca. O túmulo de Petrarca está em local nobre, no centro da cidadezinha, numa praça.
[522] “Naquela época, ordenou o rei João uma bela companhia, tal como a Távola Redonda, a qual devia contar com trezentos cavaleiros dos mais nobres, e houve o rei
João por bem mandar construir para os companheiros, às suas expensas, uma bela e grande casa em Saint-Denis, onde todos os companheiros deviam comparecer a todas
as festas do ano... e convencionou-se jurar que jamais fugiriam da batalha numa distância superior a quatro arpentes, senão morreriam ou seriam aprisionados... Estava a
casa quase pronta e ela ainda hoje existe perto de Saint-Denis; e se ocorresse que algum dos companheiros da Estrela tivesse necessidade, na velhice, de ser ajudado, e
que estivesse doente de corpo e carente de recusos, os gastos com ele deviam ser pagos bem e honradamente pela casa, para ele e para dois valetes, se na casa
desejassem permanecer”. Froiss. II, 53-58.
[523] Era, diz Villani, o rumor público. III, c. 95, p. 219.
(NT): Carlos da Espanha é Carlos (Charles) de la Cerda, condestável da França sob o reinado de João II e conde d’Angoulême.
[524] Carlos também tinha a se queixar da insolência do Condestável que o chamara billonneur monnoie (falsificador de moeda).
(NT): Carlos II de Navarra é também conhecido pela alcunha de Carlos o Mau (Carlos el Malo, Charles le Mauvais).
[525] Em várias dessas moedas, o rei da Inglaterra era representado sob a forma de leão ou de dragão pisoteado pelo rei da França. Leblanc, ‘Traité des Monnaies’, p.
243-244.
[526] Ibid. p. 261. João inicialmente procurara manter segredo sobre essas vergonhosas falsificações; ele ordenava aos oficiais das moedas: “Sobre o juramento que
fizestes ao Rei, mantende esta coisa secreta o melhor que puderdes... que, por vós, nenhum deles, cambistas de moedas ou outros, possa saber nem suspeitar de alguma
coisa; pois, se por vós souberem, sereis punido de tal forma, que a todos os outros servireis de exemplo” (24 de março de 1350)... “Se alguém perguntar quanto é a liga
branca (de prata), dissimulai que custa seis denários”. Ele muito os encorajava a cunhar bem exatamente como as antigas moedas, “a fim de que os mercadores não
possam perceber a diminuição, sob pena de serem declarados traidores”. Filipe de Valois outrora também utilizara dessas precauções mas, a longo prazo, ele fora mais
ousado e proclamara como um direito aquilo que inicialmente escondera como uma fraude. João não podia ser menos ousado que seu pai; ele diz: “Eu sei que apenas e
somente a nós, e por todo o nosso direito real, por todo nosso reino, compete fazer tais moedas como bem nos agradar e dar-lhes curso”. Ord. III, p. 555. E, como se não
fosse o povo que com isso sofresse, ele usava este recurso como uma renda privada, a qual aplicava para as despesas públicas, as quais não poderíamos dispensar sem
oprimir o povo do mencionado Reino, se não fosse o domínio e a rendas do lucro da cunhagem das moedas”. Préf., Ord. III.
[527] Os Estados de 1355 exigiram que essas perseguições fossem suspensas. Ord. III, p. 30.
[528] Em 1338, os nobres do Languedoc se queixavam que os prêmios com os quais foram pagos durante a guerra da Gasconha não eram proporcionais àqueles que
haviam recebido nas outras guerras que tinham ocorrido nessa região. Estava-se no momento da retomada da guerra contra os Ingleses. O rei anuiu com a reclamação.
Hist. de Languedoc, IV, 226..
[529] Ord. II, p. 239, 241.
(NT): A “carta de mora” ( lettre de répit), através da qual o rei podia adiar as cobranças contra aquele que a obtivesse, subsistiu durante todo o Antigo Regime, sendo
abolida pela Revolução de 1789. O Tradutor não encontrou instituto semelhante no direito português antigo, razão pela qual é de sua exclusiva responsabilidade a expressão
(carta de mora) ora adotada.
[530] (NT): O droit de joyeux avènement (literalmente direito de alegre ascensão), aqui traduzido por direito de coroação, era um imposto que se cobrava quando um
novo rei subia ao trono. Este direito jamais foi percebido legalmente, quer dizer, por meio de uma autorização dada pelo Parlamento. Luís XIV renunciou a este direito e
poderia ter sido o último monarca a recebê-lo (vide págs. 29 e 30 de Histoire Financière de la France, depuis l’origine de la monarchie jusqu’à l’année 1828 , Tomo
I, Jacques Bresson, Bachelier Librairie, Paris, 1829, disponível em Google Livros – www.books.google.com.br).
[531] Ord. II, p. 422, 432, 434. “Cartas pelas quais o Rei proíbe que seus agentes levem os colchões e as almofadas das casas de Paris nas quais irá se hospedar”.
Outra Ordenação, 435-7.
(NT): O Parlatório dos Burgueses (Parloir aux Bourgeois) se situava no entrocamento das ruas Soufflot e Saint-Jacques, na margem esquerda (rive gauche) de Paris, e
era o local de reunião dos burgueses desta cidade.
[532] Protestaram as boas cidades pela boca de Étienne Marcel, então preboste dos mercadores de Paris, que estavam todos prontos a viver e a morrer com o rei.
Froiss. III, p. 450.
[533] (NT): Trata-se, como assinalei na tradução do Tomo II, do Príncipe Negro: “Eduardo Plantageneta, Príncipe de Gales ou, ainda, Eduardo de Woodstock (1330-
1376), filho mais velho e herdeiro do rei Eduardo III, da Inglaterra... Seu apelido, segundo alguns, deve-se à cor da armadura que utilizava (fato contestado por não ser
utilizada por seus contemporâneos) e, para seus detratores, em virtude da “escuridão de sua alma” (é fato que Eduardo, com seus exércitos e suas famosas cavalgadas
durante a guerra, devastou miseravelmente a França) - http://fr.wikipedia.org/wiki/Édouard_de_Woodstock.
[534] “Sabei que esta região de Carcassonne e de Narbonne e de Toulouse, onde os Ingleses estiveram em certo período, era antes umas das mais ricas regiões do
mundo, boa e simples gente que não sabia o que era guerra, pois outrora jamais foram guerreadas, nem tinham sido, até que o Príncipe de Gales para elas convergisse”.
Froiss., III, 104.
[535] Os Ingleses não faziam conta das peles, senão da louça de prata ou de bons florins. Froissart, t. III, p. 103. XIX addit. E foi ela de tal forma queimada e destruída
pelos Ingleses que sequer sobrou vilarejo para abrigar um cavalo; e nem podiam os herdeiros, nem os burgueses da cidade apontar, nem dizer a verdade: ‘Esta é minha
herança’. Porque ela havia sido levada. Froissart. t. III, p. 120.
[536] Ele teve de empregar contra esses três cavaleiros todo um aparato de sítio, “canhões, setas de arbalete (carreaux), bombardas e fogo grego”. Froissart, c. 346, p.
168.
[537] (NT): “Grupo” e “pós-grupo”: quando um senhor feudal convocava seus vassalos para a batalha ou guerra ou, ainda, para ouvi-los sobre algum assunto, dizia-se
que ele ia “assembler son ban” (reunir seu grupo, seu bando). Nas convocações para o serviço militar, distinguia-se o ban (grupo) do arrière-ban (por falta de uma
palavra equivalente em português, o Tradutor ousou chamá-lo “pós-grupo”). O primeiro servia para designar a convocação feita pelo rei aos seus vassalos imediatos,
enquanto o segundo designava a convocação feita pelos suzeranos (duques, condes, barões etc.) aos seus vassalos. Vide em http://fr.wikipedia.org/wiki/Arrière-ban.
[538] (NT): o campo de batalha de Nouiallé-Maupertuis pode ser visto em http://wikimapia.org/13061265/fr/Champ-de-bataille-Bataille-de-Poitiers-1356 e no sítio
internet da cidade de Nouiallé-Maupertuis em http://www.nouaille.com/index.php/nouaille-decouvertes/45-a-voir/112-champ-de-bataille.
[539] “Logo que esses cavaleiros se meteram à batalha, os arqueiros começaram a lançar flechas e a pôr mãos à obra dos dois lados da trilha, e a derrubar cavalos e a
atacar tudo que entrava nesta trilha com seus arcos. Esses cavalos, que recebiam os ferros das flechas ao longo da trilha, se feriram e, não querendo ir mais adiante,
viravam-se um de través ao outro, e empinavam e se inquietavam sob seus cavaleiros”. Froiss., c. 366, p. 202-6. – Os arqueiros da Inglaterra levaram excepcional
vantagem contra seu (do rei) pessoal, e muito confundiram os Franceses, pois disparavam tão conjunta e densamente, que os Franceses não sabiam de qual lado esperar
que fossem alvos das flechas”. Ibid., c. 357, p. 204.
[540] “Disse messire João Chandos para o príncipe: ‘Sire, Sire, cavalgai à frente, o dia é vosso. Deus o colocará em vossa mão; dirijamo-nos contra vosso adversário, o
Rei da França; pois lá onde ele está jaz toda a sorte de nossa luta. Bem sei que, por valentia, ele não fugirá; ele lá vos aguardará, se Deus e São Jorge quiserem’. Estas
palavras de tal forma encorajaram o príncipe, que este disse: ‘Jean, vamos, vamos, vós não me vereis hoje retornar, mas sempre à frente cavalgar”. Então, ele disse a seu
porta-bandeira: ‘Cavalgai avante, pendão, em nome de Deus e de São Jorge’. Ibid., c. 358, p. 205.
[541] Aqui, sigo o Continuador de Guilherme de Nangis preferencialmente à Froissart. Vide a importante carta do conde de Armagnac, publicada por M. Lacabane, em
seu excelente artigo ‘Charles V, Dictionnaire de la conversation’.
[542] Froissart vê apenas o lado cavaleiresco: “E (o rei) não fez semblante de fugir e nem de recuar quando disse aos seus homens: ‘A pé, a pé!’. E mandou descer
todos aqueles que estavam a cavalo, e ele mesmo se pôs de pé perante os seus, um machado de guerra em suas mãos, e mandou passar à frente seus pendões, ‘em nome
de Deus e de São Denis”. Ibid., c. 360, p. 211.
[543] Assim estava o Rei da França montado num grande corcel branco, muito bem arreado e aparelhado de tudo, e o Príncipe de Gales, sobre uma pequena égua
negra, atrás dele. Assim, foi ele seguido ao longo de toda a cidade de Londres... Ibid., c. 375, p. 267-8.
[544] Um pouco depois, foi o Rei da França mudado do palácio de Savóia para o castelo de Windsor, e todos os seus hóspedes e gente. Ele ia voar (soltar o falcão),
caçar e gozar, nas cercanias de Windsor, de todas as diversões, tanto quanto lhe agradasse”. Froiss., III, 375, p. 269.
[545] (NT): Na arquitetura militar, o parapeito é a elevação das muralhas que protege o adarve (caminho de ronda no qual circulam os defensores). Ordinariamente, o
parapeito possui ameias, espaços de onde os defensores podem lançar projéteis (flechas, setas, fogo, óleo ou água fervente, pedras, balas de armas de fogo etc.). Vide
http://pt.wikipedia.org/wiki/Parapeito, http://fr.wikipedia.org/wiki/Parapet e http://pt.wikipedia.org/wiki/Adarve.
[546] Foi necessário, para isso, demolir uma considerável quantidade de grandes e belas casas, seja dentro, seja fora da cidade. Quando Carlos V se tornou rei, ele
mandou alargar e aprofundar esses fossos, e acrescentou fossos por trás das muralhas, que flanqueou com torres. Félibien, p. 635.
[547] Na Ilha Louviers, com frequência se distingue os dois rios pelas cores de suas águas.
(NT): quando este livro foi escrito, em 1837, a Île Louviers ainda existia; ela se situava bem à frente da Ilha São Luís (ainda hoje existente), tendo sido juntada ao banco
de areia entre ela e a margem. Em 1847 (ou em 1843, segundo o Museu Carnavalet), o braço d’água de Grammont, que a separava da margem direita (rive droite) e que
era caminhável a seco durante o verão, foi aterrado e reunido ao antigo cais (quai) Morland o qual, então, tornou-se o boulevard Morland. Portanto, a ilha Louviers tornou-
se parte da rive droite. Vide em http://fr.wikipedia.org/wiki/Île_Louviers.
[548] Deste lado, desde os tempos de Carlos o Calvo, encontramos a feira do Landit, entre Saint-Denis e La Chapelle. Félibien, p. 97. {NT: a feira do Landit (ou
Lendit) terminou em 1793. A antiga comuna de La Chapelle (La Chapelle Saint-Denis) foi incorporada à cidade de Paris em 1860. Saint-Denis ainda é uma
comuna, embora, de fato, tenha se tornado um subúrbio de Paris}.
[549] Do outro lado, não existe senão um subúrbio.
[550] Cinco séculos após a queda dos Templários, o cercado do Templo, bem reduzido, é verdade, ainda protegia os pequenos comerciantes contra os regulamentos das
corporações.
[551] Félibien, p. 144 e segs.
(NT): A abadia São Victor ( abbaye Saint-Victor) foi destruída em 1811. A abadia de Santa Genoveva ( abbaye Sainte-Geneviève) foi demolida em 1807, dela restando
apenas a Torre Clóvis. – Vide em http://fr.wikipedia.org/wiki/Abbaye_Saint-Victor_de_Paris e em http://fr.wikipedia.org/wiki/Abbaye_Sainte-Geneviève_de_Paris.
[552] (NT): Aventino: uma das sete colinas de Roma para onde a plebe, em conflito com o patriciado, se retirou várias vezes, até que obtivesse o reconhecimento de
seus direitos, notadamente em 494 a. C., quando da insurreição do monte Sacro, e em 449 a. C, quando da seguda secessão da plebe. Vem daí a expressão “retirar-se para
o Aventino”. Mais recentemente, durante o regime fascista, a colina serviu de local de refúgio para deputados da oposição após o assassinato de um deles, fato que levou à
denominada Secessão Aventiniana, quando se retiraram do Parlamento.
[553] Luparam prope Parisios*. Filipe Augusto terminou sua construção por volta de 1204.
*(NT): Luparam prope Parisios: o nome Louvre tem três possíveis etimologias:
1ª) latina: derivaria de Lupara, local onde eram abrigados os serviçais empregados na caça ao lobo [lupus em latim; leu ou lou em francês antigo; loup (masculino) e
louve (feminino) em francês moderno]. De Lupara, teria se corrompido, no francês antigo, para Louverie (Lobaria) e, na evolução, Louvre. Nesta etimologia, a frase
latina ‘Luparam prope Parisio” significa “Lobaria perto de Paris”;
2ª) céltica: o sufixo ara carateriza palavras ligadas à água (hidrônomas). Nesta etimologia, teríamos o Louvre como algum curso d’água (rio, ribeirão, cascata, etc) “perto
de Paris”.
3ª) germânica: derivaria do franco-sálico Lauer ou Lower, que significa “torre de vigia”, consequência direta da ocupação dos Francos Sálicos (ou Sicambros: Meroveu,
Childerico, Clóvis etc). Na língua franco-sálica germânica as palavras leovar, lovar, lover, leower ou lower significam “castelo” ou “campo fortificado”. Esta hipótese
parece ser a menos provável, segundo filólogos. Nesta etimologia, a frase latina poderia ser traduzida por “castelo (ou torre ou quartel, etc.) perto de Paris”.
Vide http://fr.wikipedia.org/wiki/Palais_du_Louvre (seção “Origine du nom”).
[554] vide mais acima: Bulæus Hist. Univ., III, anno 1285. - “Neste ano ocorreu uma grande dissensão entre o Reitor, mestres e escolares da Universidade de Paris e o
preboste do dito lugar; porque o mencionado preboste mandara enforcar um douto da mencionada Universidade. Então, cessou o ensino de todas as faculdades, até que o
retrocitado preboste a corrigisse e prestasse grande reparação pela ofensa; e, dentre outras coisas, foi o mencionado preboste condenado a despendurá-lo (o corpo) e a
beijá-lo. E convencionou-se que o mencionado preboste partisse para Avignon, para encontrar o Papa, a fim de se fazer absolver”
[555] (NT): aproximadamente 7,5 km. A antiga rua Mathurin-Saint-Jacques, quartier da Sorbonne (onde se encontrava o couvent des Mathurins) se chama, desde
1867, rue Du Sommerard. Vide Google Maps (trajeto rue Du Sommerard a Plaine Saint-Denis) e http://fr.wikipedia.org/wiki/Rue_Du_Sommerard.
[556] Alusão à rua da Galiléia, perto da qual situava-se a corte.
(NT): “Império da Galiléia”: não há nenhuma ironia neste termo e nem ele significa que o “Tribunal de Contas” do reino possuísse soberania. Império vem do latim
Imperium, que tem o significado de Jurisdição (Juris + dictio = dizer o direito), e significa, neste caso, o poder de exercer a justiça em todos os graus. Quanto à
“Galiléia”, a explicação é, como vimos pela nota do Autor, mais prosaica: a chambre de comptes então se situava na rua da Galiléia (rue de Galilée). A expressão
“Império da Galiléia” era utilizada normal e oficialmente, sendo o Presidente da Câmara de Contas chamado “Imperador”. Vide o artigo “Empire de Galilée”, na
Enciclopédia de Diderot e D’Alembert, no sítio http://portail.atilf.fr/cgi-bin/getobject_?a.36:152:2./var/artfla/encyclopedie/textdata/image/.
[557] (NT): um escabino era um magistrado municipal, equivalente a um conselheiro municipal moderno. Em Paris, os escabinos eram assessores do preboste dos
mercadores e com ele oficiavam na prefeitura. Cabia ao preboste dos comerciantes velar pelo abastecimendo da cidade, o comércio, o recolhimento de impostos, etc.:
pode-se daí julgar sua importância (http://fr.wikipedia.org/wiki/Échevin e http://pt.wikipedia.org/wiki/Escabino).
[558] E dispensando-os assim para suas províncias, ele contava sem dúvida com as dissenssões infinitas que deviam se erguer entre interesses tão diversos, entre o
ciúme dos nobres contra as cidades, das cidades contra Paris, cuja influência decidira a última revolução.
[559] Duce Normandia, qui Regnum jure hæreditario... defendere et regere tenebatur, nulla remedia apponente, magna pars populi rusticani... ad civitatem Parisiensem...
cum uxoribus et liberis... acurrere... Nec parcebatur in hoc Religiosis quibuscumque. Propter quod monachi et moniales... sórores de Poissiaco, de Longo campo, etc. [NT:
O duque da Normandia, que era o herdeiro de direito do Reino... obrigado a defender e a governar, sem qualquer solução, a grande massa do povo do
campo... que para a cidade de Paris... com mulheres e filhos... acorreu.. Não foram sequer poupados os religiosos... as irmãs de Poissy (Ursulinas), de
Longchamps, etc.], Contin. de Guil. de Nangis, p. 116 - Um outro bando roubava toda a região entre o Sena e o Loire, pelo que ninguém ousava partir de Paris para
Vendôme, para Orléans, para Montargis; nem ninguém ousava aí permanecer, assim estavam todas as pessoas da região fugidas em Paris ou em Orléans. Froiss., III, p.
284-6.
[560] (NT): “esquentadores da Revolução”: trata-se de bandos criminosos que atuavam nos campos da França, especialmente durante a Revolução de 1789 (embora
até no século XX tenha sido acusada sua existência), cujo método de “trabalho” era queimar os pés das vítimas nas brasas das chaminés para que confessassem onde
guardavam seu dinheiro, jóias etc.. Na gíria criminosa, os “queimadores de pés” chamavam-se de “esquentadores de patas” (chauffeurs de pâturons). Vide em
http://fr.wikipedia.org/wiki/Chauffeurs.
[561] “Sans figure de jugement” (NT: isto é, “sem forma de processo”, abolindo-se os procedimentos normais, fazendo-o de forma sumária e de plano. Teria
sido este o germen que inspirou a criação dos cônsules durante a Revolução Francesa, nomeados pela Assembléia Nacional e que possuíam poderes quase
ditatoriais?). Comissão dos Três Eleitos dos Estados (Comission des trois élus des États) para a diocese de Clermont e de Saint-Flour. 03 de março de 1356 (1357).
Ordon. IV, 181.
[562] “Os quais jurarão, pelos santos Evangelhos de Deus, que nem a si darão, nem distribuirão o mencionado dinheiro a nosso senhor o rei, nem a nós, nem a outros,
senão aos soldados... E se algum de nossos oficiais desejar tomá-lo, nós desejamos que os mencionados coletores possam resistir-lhe, e que se não forem suficientemente
fortes, que chamem seus vizinhos das boas cidades” (art. 2º). – “A contribuição é concedida por um ano. Os Estados, convocados ou não, reunir-se-ão no Quasimodo*. O
duque da Borgonha, o conde de Flandres e outros nobres ou deputados das cidades, que não vieram aos Estados, são convocados a virem no Quasimodo, estando
intimados que, se não vierem, estarão submetidos ao que tiverem decidido aqueles que vierem” (artigo 5º). Ord. III, 126,7.
*(NT): No calendário católico, o Quasimodo, dentre várias outras denominações [festa de quasimodo, oitava de Páscoa, segundo domingo de Páscoa, domingo in albis,
domingo de São Tomás e festa da divina misericórdia (esta depois da canonização de Faustina Kowalska, em 2000, pelo Papa São João Paulo II)], é o primeiro domingo
após a Páscoa. Sua origem está na Primeira Epístola de São Pedro: “Quasi modo geniti infantes, alleluia: rationabiles, sine dolo lac concupiscite, etc.” {Como crianças
recém-nascidas (ao modo das crianças recém-nascidas), aleluia: desejai com ardor o leite espiritual que vos fará crescer para a salvação, etc”}. Victor Hugo, ao batizar
seu corcunda, cria uma bonita metáfora ao evocar o domingo de Quasimodo, quando o padre Cláudio Frollo encontra o corcunda, e a Primeira Epístola de São Pedro (livro
Notre-Dame de Paris).
[563] “Somente nas viagens do rei, da rainha e do delfim, seus mâitres d’hôtels poderão, fora das cidades, mandar tomar, pelas pessoas da justiça do lugar, mesas,
almofadas, palha e carros, sendo tudo pago, e somente por um dia”. Ibidem.
[564] “Défense aux conseillers et officiers de faire merchandise” (Proibição aos conselheiros e oficiais de exercer o comércio) . “O preço das provisões é algumas
vezes, por sua perfídia, grandemente elevado; e o que é pior, através de sua cobiça, há poucas pessoas que ousam pôr o preço nessas provisões que eles, ou seus gerentes
por eles, desejam ter ou comprar...”. Art. 31, ibidem.
[565] “Plusieurs ont accoustumé de prendre salaire trop excessif, et d’aller à quatre ou cinq chevaux, quoique s’ils alloient à leurs dépens, il leur suffiroit bien d’aller à
deux chevaux ou à trois”.
[566] Isto não está na Ordenação, mas na repreensão já acima mencionada. Nela também foi dito: “Que aqueles escolhidos para governar, não sendo senão dois ou três,
as coisas sofreriam longos adiamentos; que aqueles que seguissem a corte, cavaleiros, escudeiros e burgueses, eram tão prejudicados por essas demoras, que acabavam
por vender seus cavalos e, descontentes, partiam sem resposta, etc.”. Manuscrito da Biblioteca Real, fundos Dupuy, nº 646 e Brienne, nº 276.
[567] “E igualmente o duque da Normandia o festejou grandemente. Mas isto conveio, pois o preboste dos mercadores, e aqueles que com ele concordaram, assim o
aconselharam”. Froiss. III, p. 290.
[568] Froissar, III, 291. – In latino valdè pulchro (NT: No mais belo latim). Contin. de G. de Nangis, p. 116.
[569] “Desorar-se” (“desheurer”), como disse o cardeal de Retz.
[570] Gaudens ad partes Rhotomagenses accessit, donis tamen ei pecuniis multis à civibus Parisiensibus receptis (NT:Regozijou-se perto de Rouen, ainda que em
Paris, no entanto, tenha recebido muito dinheiro de seus cidadãos). Cont. de Guilhaume de Nangis, p. 117.
[571] Miserias suas exposuit... eleganter (NT: Expôs suas misérias... com elegância). Ibidem.
[572] O corpo do conde d’Harcourt já havia sido arrebatado há muito tempo. Os três outros corpos foram sepultados por três irmãos-leigos da Madalena de Rouen.
Cada um destes corpos foi em seguida posto numa urna e houve uma quarta urna vazia em memória do conde de Harcourt. Esta última foi levada numa carruagem de
damas. Secousse, p. 165.
[573] Campanis pulsatis... sermone per ipsum regem priùs facto, ubi assumpsit thema istud: Innocentes et recti adhæserunt mihi (Ps. XXIV, 21) – [NT:Os campanários
vibravam... o próprio rei tomou conhecimento do tema do sermão: os inocentes e os retos se têm unido a mim (Salmo 24, 21*), Ibidem.
* (NT): Na verdade, trata-se do Salmo 25, versículo 21.
[574] Ele dizia que queria viver e morrer com eles (os parisienses); os homens armados que ele reunia eram para defender o reino contra os inimigos que o devastavam
impunemente pela inépcia daqueles que haviam tomado conta do governo; ele já teria expulso esses inimigos se tivesse recebido a administração das finanças, mas ele não
tocara sequer um denário, nem metade de todo o dinheiro cobrado pelos Estados. – Marcel, alertado do efeito produzido por este discurso do delfim, mandou, de seu turno,
reunir o povo em Saint-Jacques de l’Hopital. O duque para aí foi, mas não pôde se fazer ouvir. Consac, um partidário do preboste, falou contra os oficiais; havia tantas
ervas-daninhas, ele dizia, que as boas não conseguiam frutificar. O advogado Jean de Saint-Onde, um dos generais das contribuições, declarou que uma parte do dinheiro
fora mal empregada e que vários cavaleiros, os quais nominou, tinham recebido, por ordem do duque da Normandia, 40 ou 50 mil moedas de ouro. “Tal como mostram os
registros”. Secousse, ‘Histoire de Charles-le-Mauvais’, 170.
[575] (NT): Trata-se da rue Saint-Merri, que se chamava “Neuve-Saint-Merry” até 1881 (http://fr.wikipedia.org/wiki/Rue_Saint-Merri).
[576] “Na primeira semana de janeiro, aqueles de Paris combinaram que todos usariam capuzes bipartidos de tecido vermelho e azul” (manuscrito). “Além desses
capuzes, os partidários do presboste ainda exibiram fivelas de prata bipartidas de esmalte vermelho e azulado e, abaixo, estava escrito à bonne fin (por um bom motivo,
por um bom fim), em sinal de aliança de viver e morrer com o mencionado preboste contra qualquer pessoa”. ‘Lettres d’abolition du 10 août 1358’. Secousse, ibid., p.
163.
[577] Admirantibus de hoc et dolentibus præposito mereatorum et civibus quod per regentem et nobiles qui circa eum erant non remediabatur ipsum pluries adienunt
exorates... Qui optmè eis facere promittebat, sed... Quinimo magis gaudere de malis insurgentibus in populis afflictionibus, et tunc et posteà Nobiles videbantur (NT:
“Desolados e doloridos com isto porque o mal não fora remediado pelo regente e pelos barões, o preboste dos mercadores e os cidadãos com frequência
suplicaram ao delfim... Que prometeu-lhes fazer, mas... Nem, desde então, e nem depois, nada foi feito, e os nobres pareceram se alegrar com o aumento das
aflições e dos males que atingiam o povo” ...). Cont. G. de Nangis, p. 116.
[578] (NT): A capela de Santo Elói, construída em madeira pela Corporação dos Ourives de Paris, foi destruída no século XVI e então reconstruída em alvenaria. Com a
Revolução Francesa, foi tomada pelo Estado e completamente desnaturada para ocupar funções diversas não religiosas. Dela resta a fachada na rue des Orfèvres -
http://fr.wikipedia.org/wiki/Chapelle_Saint-Éloi_(Paris).
[579] (NT): Saint-Landry: igreja construída em 656 (cerca), tomada e fechada em 1791 pela Revolução Francesa, que a vendeu no ano seguinte, tendo se transformado
em ateliê de pintura, findou por ser demolida em 1829. A rua onde se situava (Saint-Landry), junto com a rua Saint-Pierre-aux-Boeufs, foi destruída para dar origem à rue
d’Arcole. Vide http://www.tombes-sepultures.com/crbst_1004.html e http://www.cosmovisions.com/monuParisRueArcole.htm.
[580] “Tunc dirigens verba illis sic capuciatis dixit: Eia breviter facite hoc propter quod hoc venistis”. Cont. G. de Nangis, p. 117.
[581] “Deu-se a ele um dos capuzes para vestir e combinaram que ele perdoasse esta morte de seus três cavaleiros”. Ibid.
[582] (NT): A partir de 1803, a praça da Grève se tornou a praça do Hôtel-de-Ville.
[583] Quod utinàm nunquàm ad effectum finaliter devenisset. Et fuit istud prout iste præpositus cuim suis me et multis audientibus confessus est. (NT: “Que isso
nunca tivesse sido feito. E foi isto assumido e confessado pelo próprio preboste em minha audiência e na presença de muitos”). Cont. G. de Nangis, p. 116.
[584] Agora, digo-vos que os nobres do reino da França e os prelados da santa Igreja começaram a se cansar dos atos e das Ordenações dos três Estados. E assim
deixaram o Preboste dos mercadores tratar com alguns dos burgueses de Paris. Froiss., III, cap. 382, p. 287. Conf. Matt. Villani, l. VIII, c. 38, 492.
[585] Ut illos principales occidi faceret, vel si non posset... expugnaret viriliter civitatem et tam diù dietam urbem Parisiensem... per impedimentu suorum victualium
molestaret (NT: Pedindo-lhe para mandar matar os principais envolvidos na morte ou, se não pudesse... virilmente atacar os cidadãos e a tão propalada cidade
de Paris... afligindo-os através do corte de suprimentos). Contin. G. de Nangis, p. 117.
[586] “Non intendens eorum mortem”. Cont. G. de N., 117.
[587] Ibidem, 117-118. Continuando esses trabalhos, foram encontradas as fundações das torres que se olhou como construções dos Sarracenos. Aí, segundo as antigas
crônicas, outrora existia um campo chamado Altum Folium (rua Haute-Feuille, rua Pierre-Sarrasin)*. Ibid.
* (NT): Altum Folium = Folha Alta; Haute-Feuille = Folha Alta; Pierre Sarrasin = Pedro Sarraceno.
[588] Jean Donati partiu para Avignon no dia 08 de maio de 1358, levando para Pierre Maloisel 2.000 florins de ovelhas d’ouro * da parte de Marcel, o qual o havia
encarregado de recrutar malfeitores e comprar armas. – Marcel também tinha em Paris, segundo Froissart, um bom número de pessoas em armas e soldados
Navarrenses e Ingleses, arqueiros e outros companheiros. Secousse, p. 224-8.
* (NT): “ovelhas d’ouro”: antiga moeda de ouro medieval representando um cordeiro e que valia uma libra. Também chamada de “agnel” ou “agnel d’ouro” ou “cordeiro
d’ouro” (do latim agnes, cordeiro). Numa face da moeda, havia um cordeiro (que o povo passou a confundir com uma ovelha) com os dizeres Agnus Dei qui tollit
peccata mundi, misere nobis (Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo, tende piedade de nós) e, na outra face, uma cruz com os dizeres Christus vincit,
Christus regnat, Christus Imperat (Cristo vence, Cristo reina, Cristo julga). Nota a partir de nota semelhante da tradução de G. H. Smith, F.G.S. Vide também em
http://fr.wikipedia.org/wiki/Agnel_(monnaie).
[589] “Os cavaleiros e os escudeiros os extorquiam para pagamento de resgate assaz cortesmente, à falta de dinheiro, corcéis ou éguas; ou, de um pobre cavaleiro, que
não tinha com o que pagar, o tomavam para serviços por um quarto de ano, ou dois ou três”. Froissart, III, 333.
[590] Filipe o Ousado, duque da Borgonha, o chamava de “seu compadre”. Froissart o chama “Monseigneur”. IV, cap. 495, p. 222.
[591] “E sempre ganhavam, esses pobres malfeitores, a pilhar cidades e castelos... De longe, eles espiavam uma boa cidade ou um castelo, um dia ou dois, e então se
reuniam e entravam direto nesta cidade ao amanhecer, e tocavam fogo em uma casa ou duas; e aqueles da cidade pensavam que eram mil armaduras de ferro...; eles
fugiam... e esses malfeitores quebravam casas, baús e porta-jóias... E assim ganharam vários castelos e os revenderam. Dentre outros, havia um bandido que muito
espiou o castelo-forte de Coumbourne, no Limousin, com trinta de seus companheiros, e o escalaram, e ganharam o senhor de dentro, e o puseram na prisão de seu
próprio castelo, e aí o mantiveram por tanto tempo, que ele findou por se resgatar por vinte e quatro mil escudos e o mencionado bandido ainda reteve o castelo. E, por
essa proeza, o rei da França desejou tê-lo ao seu lado e dele comprou o mencionado castelo por vinte mil escudos, e foi ele tornado o guarda-d’armas do rei da França. E
se chamava Bacon esse malfeitor”. Froissart, II, 480-81.
[592] “Le coursier de Croquard trébucha et rompit à son maître le col. Je ne sais que son avoir devint ni qui eut l’âme, mais je sais que Croquard fina assi” (“O corcel
de Croquard tropeçou e quebrou o pescoço de seu senhor. Eu não sei o que se deu com seu dinheiro, nem quem levou sua alma, mas sei que Croquard finou-
se assim”). Froiss., III, p. 483.
[593] Esses subterrâneos parecem ter sido escavados a partir da época das invasões normandas. Eles foram provavelmente aumentados de tempos em tempos. Uma
parte do território de Santerre que possuía, só ela, três desses subterrâneos, era chamada Territorium Sanctæ Liberationis (NT: Santo Território da Libertação) . ‘Mém.
de l’abbé Lebœuf’ nas ‘Mémoires de l’Académie des Inscrip.’, XXVII, 179.
(NT): Esses subterrâneos são de fato impressionantes. Na Picardia, onde foram chamados de “muches”, pode-se visitar um dos melhores exemplares na “cidade
subterânea de Naours” tornada um parque (Parque das Grotas de Naours – Parc des Grottes de Naours ). Vide em
http://fr.wikipedia.org/wiki/Cité_souterraine_de_Naours e em http://fr.wikipedia.org/wiki/Muches.
[594] “Então um tempo muito caro chega na França, quando se vendia um tonelzinho de arenques a trinta escudos, e todas as outras coisas nessa proporção; e morriam
os pobres pequenos de fome, o que causava grande dó; e durou esta dureza e esse tempo caro por mais de quatro anos”. Froissart, III, 340.
Os próprios eclesiásticos sofreram muito: Multi abbates et monachi de pauperati et etiam abbatissæ varia et aliena loca per Parisius et alibi, dvitiis diminutis, quærere
cogebantur. Tunc enin qui olim cum magnâ equorum scutiferorum catervâ visi fuerant incedere, nunc peditando unico famulo et monacho cum victu sobrio poterant
contentari {NT: Muitos abades e monges dos pobres, e também abadessas, de vários e diversos lugares, foram obrigados, reduzidos à pobreza, a procurar
Paris. Então, tinhas que ter visto aqueles acostumados a viajar com uma tropa de excelentes cavaleiros contentarem-se, agora, com um só fâmulo (servo) a pé e
uma sóbria dieta}. Contin. de G. de Nangis, II, 122. – A miséria e os insultos dos soldados frequentemente inspiraram nos eclesiástiscos uma coragem extraordinária.
Vemos, numa ocasião, o cônego Robesart abater três Navarrenses de seu primeiro golpe de lança. Em seguida, ele fez maravilhas com seu machado. O bispo de Noyon
também fazia uma dura guerra contra esses malfeitores. Froissart, II, 353. Secousse, I, 340-1.
[595] Contin. de G. de Nangis. As outras etimologias são ridículas. Vide Baluze, ‘Pap. Aven.’, I, 333, etc. (NT: Sobre Jacques Bonhome, vide a nota que inseri no
Livro III, do Tomo II).
[596] (NT): Vide em Rabelais (1494-1553) na obra Gargantua, XXV.
[597] Quærentes Nobiles et eorum maneria cum uxoribus et liberis exstirpare... Dominas nobiles suas vili libidine opprimebant (NT: Procurando extirpar as mansões
com os Nobres e suas esposas e seus filhos... As damas nobres eram oprimidas por sua vil luxúria). Cont. G. de Nangis, 119.
[598] Ou Caillet, nas Crônicas da França; Karle, no Continuador de Guilherme de Nangis; Jacques Bonhome, segundo Froissart e o autor anônimo da primeira ‘Vida
de Inocente VI”: “E elegeram o pior dos malvados, e este rei se chamava Jacques Bonhome”. Fr III, 294.
[599] Blanditiis advocavit (NT: convidou-os com lisonjas). Cont. G. de Nangis, 119.
[600] (NT): Um apoio de ferro baixo, com três pés, sobre o qual se colocava um utensílio para cozinhar (v.g. panela). Trípode (antiquado), tripé.
[601] Châteaubriand, ‘Études Histor.’ , edição 1881, t. IV, p. 170: “Temos ainda os lamentos latinos que se cantava a respeitos das desgraças desses tempos, e este
versinho”:
Jacques Bonhome,
Cessez, cessez, gens d’armes et piétons,
De piller et manger le Bonhomme,
Qui de longtemps Jacques Bonhome
Se nomme
(NT: Jacques Bom-homem/Cessai, cessai, cavaleiros e infantes,/De pilhar e comer o bom homem/Que, há muito tempo, Jacques Bom-homem/ se chama).
Este versinho é tão antigo assim? - Para os lamentos latinos, vide ‘Mém. collection Petitot’, t. V, p. 181.
[602] (NT): a palavra captal é gascã (Aquitânia) e deriva da palavra latina capitelis (principal chefe ou senhor). Durante a guerra dos Cem-Anos, ela distinguia cinco
ou seis dos mais poderosos senhores da Aquitânia, os quais possuíam e dominavam os Captalatos. O título de Captal manteve-se em uso até 1803 para os Captalatos de
Buch, Certes e Trames. O mais famoso de todos foi o de Buch, que reunia as atuais comunas de Arcachon, La Teste-de Buch e Gujan-Mestras. Vide os sítios da
Wikipédia em: http://fr.wikipedia.org/wiki/Captal e http://fr.wikipedia.org/wiki/Captal_de_Buch.
[603] Qui verò mortui remanserunt, genti Silvanectensi ampliùs non nocebunt. Idem, ibid.
[604] Ord. III, 522. Vide também Villani.
[605] “E carregava um seu bacinete em sua mão, o outro em seu pescoço, os outros, por preguiça e tédio, arrastavam suas espadas ou as carregavam nos ombros”.
Froissart, III, 318.
[606] Ad hoc totis viribus anhelabat (NT: Para este fim, toda força empregou). Contin. de G. de Nangis, p. 120.
[607] Quorum ostia signata reperiret (NT: Portas assinaladas para encontrar). Ibidem.
[608] Multum solemnes, et eloquentes quam plurimum, et docti. Contin. de G. de Nangis, p. 120.
[609] (NT): Vide, a propósito do sítio de Lyon, o livro Joseph Fouché – O retrato de um homem político, tradução que fiz do livro de mesmo nome de Stefan Zweig, a
partir da edição francesa.
[610] “Per rusticos, seu Jacque Bom Homme, strenuè expeditum”. Contin. de G. de Nangis, p. 123, col. 2.
[611] “Petitâ licentiâ à domino Regente, et etiam ab abbate monasterii”. Ibidem.
[612] “Unum magnum elegantem nomine Guillermum dictum Alaudis”. Ibidem.
[613] “Et juxtà ejus corporis magnitudinem, habebat in se humilitatem et reputationis intrinsecæ parvitatem; nomine Magnus Ferratus”. Ibidem.
(NT): Esta figura interessante do Grand Ferré mereceu uma estátua na cidadezinha de Longueil-Sainte-Marie, na frente dos restos do castelinho onde ocorreu a batalha
que será a seguir narrada. Seu nome verdadeiro era Georges Ijlopon. Vide na Enciclopédia da Picardia em http://www.encyclopedie.picardie.fr/Ijlopon-Georges-dit-Grand-
Ferre.html.
[614] “Secum habuit... quase ad frenum suum”. Ibidem.
[615] “Vitam suam humilem sustentantes”. Ibidem.
[616] “Super anglicos ità se habebant ac si blada in horreis more suo solito flagellâssent”. Ibidem.
[617] “Ultrà quadraginta viros postravit et occidit”. Ibidem, p. 124, col. 1.
[618] “Flentes multùm, quia sapiens fuerat et benignus”. Ibidem.
[619] “Exierunt ad prælium”. Ibidem.
[620] “Sicut nobiles viri faciunt”. Ibidem.
[621] “Non tamen sine hachiâ ferreâ”. Ibidem.
[622] “Veniens in curtiunculâ...: O latrones..., adhuc me non habetis”. Ibidem.
[623] “Migravit de sœculo... Quandiù vixisset, ad locum illum anglici non venissent”. Ibidem.
[624] “Volo esse bonus Gallicus”. Contin. de G. de Nangis, p. 123, col. 1, anno 1359.
[625] “Illa rubea capucià, quæ antea pompose gerabantur, abscondita...”. Contin. de G. de Nangis.
[626] “De corsage estoit hault et bien formé, droit e lé par les espaules, et haingre par les flans; groz bras et beauls membres, visage un peu longuet, grant fort et large; la
chière ot assez pale, et croy que ce, et ce qu’il estoit moult maigre, luy estoit venu par accident de maladie; chault, furieus en nul cas n’estoit trouvé” {NT: De corpete
(tronco) era alto e bem formado, reto e largo de ombros, e magro de lado; braços grossos e belos membros, semblante um pouco comprido, muito forte e largo;
a fronte muito pálida, e creio que isto, e porque fosse muito magro, viera-lhe por acidente de doença; quente (esquentado), furioso, em nenhuma ocasião
ficava}. Christ. de Pisan, t. V, 1ª parte, cap. 17, p. 280.
[627] “Unde arbores per itinera et vineas incidebantur, et annulus lignorum qui antê pro duobus solidis dabatur, nun pro unius floreni pretio venditur” (Assim, as árvores
ao longo dos vinhedos eram cortadas e um estere* de lenha, que antes era vendido por dois soldos, a partir de então era vendido pelo preço de um florim).
Contin. G. de Nangis, p. 121.
*(NT): “estere”: unidade de medida para madeiras, em acelerado grau de desuso. Após a adoção do sistema métrico, tem por símbolo “st”, sendo 1 st = 1 m3. Também
conhecida por “estéreo” ou “metro-estere”. O estere antigo correspondia aproximadamente ao de hoje.
[628] “Quarta autem boni vini... viginti quatuor solidi” (NT: O quarto de um bom vinho... vinte e quatro soldos). Ibid, p. 125, conf. 129.
(NT): O sesteiro (sextário, sextarius em latim e setier em francês) é uma antida medida romana de volume para líquidos e correspondia a um sexto do côngio que, por sua
vez, correspondia à oitava parte de uma ânfora (1 sextário = 580 ml.). Na França antiga, era utilizado para “secos e molhados”. No caso de secos, como é o caso do trigo
mencionado no texto, o sesteiro de Paris correspondia a 152 litros. Vide maiores detalhes em http://fr.wikipedia.org/wiki/Setier, http://pt.wikipedia.org/wiki/Sesteiro e
“Novo Dicionário da Língua Portuguesa”, de Cândide de Figueiredo, Library of Alexandria, 1937, ISBN 1465568298 e 9781465568298 (verbete “sextário”).
[629] “Vineæ quæ amœnissimum illum desideratum liquorem ministrant, qui lactificare select cor hominis... non cultivatæ” (NT: As vinhas, que ministram o desejado
líquido que alegra o coração dos homens... não foram cultivadas). Ibid., p. 124.
[630] Nullus salvus, nisi ab eis salvum conductum liberatoriè obtinebat. Ibid. p. 122... Se eis tributarios reddiderunt, p. 125.
[631] Volo esse bonus Gallicus de cætero. Ibid, p. 123
[632] Posuerunt se in mare ut ad Angliam invadendum transfretarent (Lançaram-se ao mar para cruzar o estreito e invadir a Inglaterra). Ibid., p. 125.
[633] Venit ante Remis, ut se ibi, civitate expugnatâ, faceret coronari in regem Franciæ (NT: Veio ante Reims para que, tomando a cidade de assalto, se fizesse
coroar rei da França). Contin. de G. de Nangis, p. 125.
[634] “E, todavia, não puderam outra coisa ter senão que fosse emprestada a cada um alguma coisa, graciosamente, para partirem para seus países”. Froiss. IV, cap.
429, p. 4.
[635] Seu narrabatur Parisius, ubi eram quando hos apices describebam (Como me foi narrado em Paris, onde eu me encontrava, quando ocorreram esses fatos).
Contin. G. de Nangis., p. 125.
[636] A flumine Secanæ usque ad Estampas non remansit vir nec mulier. Ibid., p. 126.
[637] Anglici... accesserunt... Nobiles qui in urbe tunc erant cum domino regente in bonâ copiâ, armis protecti se extra muros posuerunt, non multum elongantes a
fortalitiis et forsatis... Non fuit tunc præliatum (NT: Os Ingleses... desistiram... Os barões, muitos dos quais estavam na cidade com o senhor regente, puseram-se
bem armados fora-muros, não muito distantes das fortalezas e das fossas... Não houve combate). Ibid.
[638] Maxima pars bigarum et curruum in viis et itineribus imbre nimio madentibus remansit, equis deficientibus (NT: A maior parte das provisões e das carroças de
suprimentos foi deixada no caminho, transformado num lamaçal pelas chuvas; os cavalos eram ineficientes).
[639] “Et disoient bien les plus notables de la ville ‘Nous aouerons les Anglois des lèvres, mais les cuers ne s’en mouvront jà”. Froiss. cap. 441, p. 229-220. – Os
lamentos do povo de Cahors não são menos tocantes: “Responderunt flendo et lamentando... quòd ipsi non admittebant dominum regem Angliæ, imò dominus noster rex
Franciæ ipsos derelinquebat tanquàm orphanos” (NT: Responderam chorando e lamentando... que não era o rei da Inglaterra que desejavam por rei, mas nosso
senhor o rei da França, que os deixara órfãos). Nota comunicada por M. La Cabane, de acordo com os Archives de Cahors e o manuscrito da Biblioteca Real.
[640] Mat. Villani, XIV, 617. “O rei da França, que se via em perigo para ter o dinheiro mais rapidamente, com isto concordou levianamente”. Froiss. IV, cap. 449, p.
79.
[641] (NT): “moeda negra” (monnaie noire): este termo era utilizado desde a época medieval para designar moeda de pouco valor, feita de uma liga metálica chamada
bilhão (billon), a qual continha cobre e alguma prata. Diferenciava-se da “moeda branca” feita de prata-de-lei. Vide a seção “Origine de l’expression ” (Origem da
expressão) em http://fr.wikipedia.org/wiki/Blanchiment_d’argent e sua nota nº 3 {referência ao livro de MANOUK V., "Genèse du processus de blanchiment d'argent -
Analyse conceptuelle : traces de l'expression en économie médiévale pré-capitaliste", Revue Internationale de Criminologie et de Police Technique et Scientifique
(RICPTS), Volume LVII, no 3, juillet-septembre 2004, p. 323-338}.
[642] Os bandidos tinham surpreendido um forte próximo de Corbeil. Muitos cavaleiros se encarregaram de retomá-lo e fizeram ainda mais mal à região; os defensores
prejudicavam mais que os inimigos; os cães ajudavam os lobos a devorar os rebanhos. O Continuador de Guilherme de Nangis relata a fábula, p. 131.
[643] “Eles tinham concertados consigo alguns cavaleiros e escudeiros da região, que os guiavam e conduziam”. Froiss., IV, cap. 462, p. 123.
[644] “Mas os pilhadores não levavam em conta e diziam que faziam a guerra em honra e em nome do rei de Navarra”. Ibid., p. 122.
[645] (NT): Aparentemente, não existe em português uma tradução já consagrada da Companhia dos Tard-Venus; portanto o Tradutor a manterá em francês. Todavia,
a expressão Tard-Venus pode ser entendida como “Retardatários”, “Últimos a Vir”, “Últimos a Chegar”, estando de acordo com a idéia de que esses malfeitores
entraram na França depois da completa espoliação deste reino em virtude do Tratado de Bretigny.
[646] “Decidiram essas companhias, por volta da metade da quaresma, que se encaminhariam para Avignon e iriam ver o Papa e os cardeais”. Ibid., p. 124.
[647] “Muito desagradaram essas notícias a monsenhor Jacques de Bourbon, porquanto possuía sob seu goveno o condado de Forez, a terra de seus sobrinhos”. Ibid.,
cap. 464, p. 129.
[648] Ibid., cap. 465, pg. 181-186. – A bela obra de M. Allier infelizmente ainda não alcançou a morte de Jacques de Bourbon. – A respeito da data, vide a discussão de
M. Dacier. Froiss. IV, 135.
[649] “Vários se voltaram para este lado, cavaleiros, escudeiros e outros, que aguardavam ter grandes recompensas do Papa e também os perdões acima mencionados;
mas não se quis dar-lhes nada e, assim, partiam... e se metiam em má companhia que crescia a cada dia”. Ibid. cap. 469, p. 142.
[650] “Do que o rei João e todo o reino foram grandemente jubilosos... mas ainda vários retornaram para a Borgonha”. Ibid., p. 145.
[651] O rei de Navarra descendia de uma irmã primogênita, mas num grau inferior. João alegou que “a lei escrita diz que ninguém, além dos filhos dos irmãos, tem direito
de representação, mas que herda o mais próximo de sangue e ao lado”. Secousse, ‘Preuves de l’Hist. de Charles le Mauvais.’, t. II, p. 201.
[652] V. a crônica em prosa de Duguesclin, ed. de M. Fr. Michel, p. 105.
[653] “Após a pregação feita, que foi mui humilde e mui suave e devota, o rei da França, por grande devoção, tomou a cruz... e docemente pediu ao Papa que ele
desejasse concordar”. Froiss., cap. 474, p. 157.
[654] “Causâ joci” (NT: Para se divertir), diz o grave historiador da época. Contin. G. de Nangis, p. 132.
[655] “Para arrastar para fora do reino todos os tipos de gente armada chamados de companhias... e para salvar suas almas”. Froiss., p. 156.
[656] ‘Sim’, disse o rei da Inglaterra, ‘eu não os impedirei jamais, salvo se outras coisas me advierem, e também a meu reino, do qual me dou a guarda’ – Então, o rei
(de Chipre) não pôde outra coisa obter (de Eduardo III), senão que foi sempre leal e honradamente tratado com jantares e grandes banquetes”. Ibid., cap. 373, p. 167.
[657] “Quatuor millia torticia... quodlibet torticum de duodecim pedibus in altitudine etc”. Contin. de G. de Nangis. p. 138.
[658] Ele confirmou a doação que seu pai fizera da Borgonha a Filipe o Ousado. Froiss., IV, cap. 495, p. 221.
[659] Erigiu-se um monumento nas landes de Mi-Voie, perto de Ploërmel, para perpetuar a memória deste evento (NT: trata-se da Coluna dos Trinta – ‘Collone des
Trente’, erguida em 1823, na localidade de Guillac, entre as cidades de Josselin e Ploërmel, onde ocorreu o combate no “carvalho da lande do Meio-
Caminho” ou “chêne de la lande de Mi-Voie” – http://fr.wikipedia.org/wiki/Combat_des_Trente e em http://fr.wikipedia.org/wiki/Colonne_des_Trente). Vide o
poema publicado por M. de Fréminville, em 1819, e por M. Crapelet, em 1827. Vide também M. de Roujoux, ‘Hist. de Bretagne’, III, 381. – A dor de Beaumanoir (Jean
IV de Beaumanoir, Marechal da Bretanha e participante do Combate dos Trinta) , quando encontrou os camponeses bretões levados em cativeiro pelos Ingleses, é
expressa com uma tocante ingenuidade:

Il vit peiner chétifs, dont il eut grand’pitié.


L’un estoit en un ceps et li autre ferré,...
Comme vaches et bœufs que l’on méne au
marché.
Quand Beaumanoir les vit, du cœur a suspiré!

Ele viu penar cativos, do que teve grande dó.


Um estava algemado e o outro agrilhoado,...
Como vacas e bois que se conduz ao mercado.
Quando Beaumanoir os viu, suspirou do fundo do
coração!
(NT: tradução e adaptação livres)

Beaumanoir, queixando-se ao inglês Bemborough, recebe a seguinte resposta:

Biaumaner, taisiez-vous; de ce n’est plus parlé,


Montfort si sera duc de la noble duché
De Nante à Pontorson, et même à Saint-Mahé
Edouard sera roy de France, couronné
Beaumanoir, calai-vos; disto nada mais há a ser
falado,
Pois Montfort será duque do nobre ducado
De Nantes a Pontorson, e mesmo em Saint-Malo
Eduardo será rei da França, coroado.
(NT: tradução e adapt. livres)

E Beaumanoir, segundo o poeta, responde-lhe humildemente:

Songiez un autre songe, cestuy est mal songié,


Car jamais par tel voie n’en aurez demi pié.

Sonhai um outro sonho, este teu está mal sonhado,


Pois jamais, desta forma, nem meio-pé tereis aqui
pisado
(NT: tradução e adapt. livres)

No início da batalha, o Inglês grita a Beaumanoir:

Rends-toi tôt, Beaumanoir, je ne t’occiray mie;


Mais je feray de toi biau présent à ma mie;
Car je lui ai promis et ne veux mentir mie,
Que ce soir te mettrai dans sa chambre jolie
(honnête).
Et Beaumanoir répond: Je te le surenvie!
...
De sueur et de sang la terre rosoya.

Renda-te logo, Beaumanoir, eu não te matarei;


Mas farei de ti belo presente à minha amante;
Pois a ela prometi e não quero mentir,
Que nesta tarde te colocarei em seu belo (honesto)
quarto
E Beaumanoir responde: Eu muito te desejo isso!
...
De suor e de sangue a terra embebeu-se.
(NT: tradução e adapt. livres)

Beaumanoir, pedindo de beber, recebe de Godofredo ( Geoffroy) Dubois a famosa resposta: “Bebe teu sangue, Beaumanoir, tua sede passará!” (Bois ton sang,
Beaumanoir, ta soif se passera!).
A história, diz o poeta, foi escrita e pintada em tappichies (tapeçarias):

Par tretous les états qui sont de ci la mer;


Et s’en esbattu maint gentil chevalier,
Et mainte noble dame à la bouche jolie,
Or priez, et Jésus, et Michel, et Marie,
Que Dieu leur soit en aide et dites-en, Amen.

Por todos os estados (propriedades) do lado do


mar;
E muitos gentis cavaleiros com isso se
deleitaram,
E muitas nobres damas de belos lábios,
Agora rogam a Jesus, a Miguel e Maria,
Que Deus os socorra e diga-lhes Amém.
(NT: tradução e adapt. livres)

[660] “Neste tempo, armava-se e era sempre Francês um cavaleiro da Bretanha que se chamava messire Bertrand Duguesclin”. Froiss. IV, cap. 481, p. 179. –
Duguesclin é nomeado, nos atos, como Glecquin, Gléaquin, Glayaquin, Glesquin, Cleyquin, Claikin, etc. Isto o designaria como verdadeiro Bretão de raça. Ele próprio se
considerava descendente de um rei mouro, Hakim, que, expulso da região por Carlos Magno, teria deixado seu filho na torre de Glay, a quem Carlos Magno mandou
batizar. O condestável desejava, após a guerra de Castela, passar à África e conquistar Bugia (NT: no litoral da atual Argélia) . Vide o manuscrito da Biblioteca do rei:
‘Conquête de la Bret. Armorique faite par le preux Charlemagne sur un payen nommé Aquin, qui l’avoist usurpé...etc.’, nº 35, 356, do Padre Lelong.
[661]
Cilz qui le mist en rime fust Cuveliers,
Et pour l’amour du prince qui de Dieu soit sauvé,
Afin qu’on n’eust pas les bons fais oubliés
Du vaillant connestable qui tant fut redoubtéz,
En a fait les beaux vers noblement ordenez
Manuscrito da Biblioteca Real, nº 7224
Aquele que o pôs em rima foi Cuvelier,
E pelo amor do príncipe que por Deus foi salvo,
A fim de que os bons fatos não fossem esquecidos,
Do valente condestável que foi tão temível,
A quem fez belos versos nobremente ordenados.
(NT: tradução e adapt. livres)

[662]
Mais l’enfant dont je dis et dont je vois parlant,
Je crois quil not si lait de Resnes à Disnant.
Camus estoit et noir, malotru et massant (?)
Li père et la mère si le héoient tant...
Manuscrito da Biblioteca Real, nº 7224

Mas a criança de quem falo e venho falando,


Eu creio que não havia tão feia de Rennes a Dinant.
Nariz achatado e preto, miserável e maçante.
Seu pai e a mãe o odiavam tanto...
NT: tradução e adapt. livres.

(NT): o Autor ficou em dúvida quanto ao termo ‘massant’ e, no


texto original de 1837, o colocou seguido de (?). Todavia, tal
palavra é definida como “pesado ou desagradável” (“lourd,
désagréable”) pelo Dictionnaire de l'ancienne langue française
et de tous ses dialectes du IXème au XVème siècle, de Frédéric
Godefroy, 1880-1895. O Tradutor sentiu-se livre para, no
contexto, oferecer a variante “maçante”, a qual guarda relação
com “desagradável”. Vide o sítio internet
http://micmap.org/dicfro/introduction/dictionnaire-godefroy.

[663] “E logo tomaram conta das portas, entraram e se puseram a gritar ‘Saint-Yves Guesclin’, e começaram a matar e a pilhar essa gente”. Froiss., IV, cap. 482, p.
182-3.
[664] “Em torno do cabo (promontório) Saint-Antoine, Gascões contra Gascões se enfrentaram”. Froiss., IV, cap. 485, p. 195.
[665] “Assim, ordenamos que coloquemos a cavalo trinta dos nossos...; e, de fato, eles pegarão o mencionado Captal e o capturarão e o trarão consigo”. Ibid., cap. 488,
p. 201.
[666] “E por muito tempo permaneceram a gritar ‘Notre-Dame-Auxerre’, e a fazer, por este dia, o conde de Auxerre seu soberano... Foi considerado e visto como o
melhor cavaleiro que combatera no campo ... mas o conde não aceitou... ‘Essa foi a primeira batalha campal que estive’... ‘temos aqui cavaleiros muito hábeis e
empreendedores (ousados, inteligentes, táticos), como messire Bertrand Duguesclin...’. Então, foi dito, de comum acordo, que se gritaria ‘Notre-Dame Guesclin’. Ibid.
p. 202-3.
[667] As cartas de doação são de 27 de maio de 1364. Duchatelet, Hist. de Duguesclin, p. 297. – Em 1365, o rei retomou o condado, tendo pago uma parte do resgate
de Duguesclin. Archives, J. 381.
[668] “Foram pegos à mercê todos os soldados estrangeiros; mas alguns pilhadores da nação da França, que lá estavam metidos, foram todos mortos”. Froiss., IV, cap.
498, p. 230.
[669] “Chandos... pediu a vários cavaleiros e escudeiros do ducado da Aquitânia; mas muito poucos partiram com ele, salvo os Ingleses”. Froiss. IV, cap. 501, p. 241.
[670] “O visconde de Rohan, o senhor de Léon, o senhor de Kergorlay, o senhor de Lohéac... e muitos outros, que não posso todos nomear”. Ibid., cap. 502, p. 242.
[671] “Étoit messire Jean Chandos auques sur le point de larmoyer. Si dit encore moult doucement: Messire Hue, ou il faut que vous le fassiez ou que je le fasse”
(Estava messire João Chandos quase a ponto de lacrimejar. Então, disse mui suavemente: ‘Messire Hugo, é preciso que ou vós o façais ou que eu o faça’) .
Ibid., p. 251.
[672] “Que se viesse a ocorrer, ao fim da batalha, que messire Carlos de Blois se visse em má situação, não se devia de forma alguma tomá-lo por resgate, mas matá-lo.
E também, em caso semelhante, os Franceses e os Bretões assim tinham concertado para Jean de Montfort; pois, neste dia, eles desejavam dar fim à batalha (guerra)”.
Ibid., cap. 510, p. 264.
[673] “E ele foi chamado São Carlos”. Froiss. Ibid., cap. 511, p. 268. – O Papa Urbano V, bon français, ordenou, é verdade, uma investigação para a canonização de
Charles de Blois, mas ele morreu antes que ela ocorresse, e seu sucessor Gregório II, sob quem ela ocorreu, dela não fez qualquer uso para não ofender o Duque da
Bretanha. ‘Histoire de Bretagne’, p. 336 (nota de M. Dacier sobre Froissart).
[674] (NT): Lai, lay ou leich “é uma forma musical do norte da Europa, mais comum na França e Alemanha entre os séculos XIII e XIV”. Vide
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lai.
[675] “Un sien fils bâtard, qui s’appeloit messire Jean de Blois, appert homme d’armes durement et qui tua celui qui tué avoit monseigneur Charles de Blois” (Um filho
seu bastardo, que se chamava messire Jean de Blois, assaz bravo cavaleiro, e que matou aquele que matara monsenhor Carlos de Blois) . Froiss. IV, cap. 510, p.
264.
[676] (NT): posteriormente Enrique II de Castela. Foi cognominado “o Fratricida”: http://es.wikipedia.org/wiki/Enrique_de_Trastámara.
[677] (NT): Ou Don Pedro o Justiceiro, por seus partidários. Trata-se de D. Pedro I de Castela.
[678] (NT): Na mesma época, o rei de Portugal era homônimo do rei de Castela (D. Pedro). Assim como na Espanha, o D. Pedro português era conhecido pelos
epítetos “o Cruel” e “o Cru” por seus detratores, enquanto seus partidários o chamavam “Justiceiro”. Inês de Castro era amante do então príncipe, tendo sido assassinada
por ordem do rei seu pai (D. Afonso IV) porque muito influenciava os negócios do reino. Sua morte foi punida com grande crueldade quando D. Pedro se tornou rei (D.
Pedro I de Portugal): os corações de dois assassinos foram arrancados enquanto ainda viviam; um pelo peito e outro pelas costas. Conta a história que D. Pedro mandou
desenterrar o corpo de Inês de Castro, com quem se casara em segredo pouco antes da mesma ser morta, sentá-lo ao trono e realizar a cerimônia do beija-mão. Vide
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pedro_I_de_Portugal.
[679] A Corte teve, mais de uma vez, de dar satisfações ao povo. Em 1329, para acalmar os descontentes, forçou-se o judeu Joseph a prestar contas de sua
administração nas finanças e fez-se um novo regulamento que excluía dessas funções quem quer que não fosse cristão. Em 1360, D. Pedro mandou matar o judeu Samuel
Lévi que D. Juan Alfonso lhe dera por tesoureiro dez anos antes: ele acumulara uma fortuna enorme. Ayala, c. XXII.
(NT): As crônicas foram escritas por Pero (Pedro) López de Ayala. Sua obra está disponível para leitura na internet: vide os links indicados na seção “Enlaces externos”
na página em espanhol da Wikipédia: http://es.wikipedia.org/wiki/Pero_López_de_Ayala.
[680] Em 1358, desejando fazer guerra ao rei de Aragão: “E envió el rey D. Pedro a regard al rey Mahomad de Grenada, que le ayuda se con algunas galeas” (NT: E
enviou o rei D. Pedro, para o rei Mohamed de Granada, algumas galeras como ajuda). Ayala, c. XI.
[681] “E formosa, e pequeña de cuerpo, e de buen entendimento”. Ayala, c. VI.
[682] “... donde lamentos grandes e grossos vinham, todos os dias, a nosso Santo Padre o Papa”. Froiss., IV, cap. 518, p. 295.
[683] Existe, sobre a expedição da Espanha, uma canção na língua d’Oc: “A Dona Clamença, Cançon dita la bertat, fatta sur la guerra d’Espania, fatta pel generoso
Guesclin assistat des nobles moundis* de Tholosa” (NT: Sobre Dona Clemência, a Canção diz a verdade, feita sobre a guerra da Espanha, feita pelo generoso
Duguesclin ajudado pelos nobres toulousenses* de Toulouse). 1367. Don Morice, I, p. 16 e Froiss. IV, p. 286.
* (NT): moundi(s): provável gíria ou apelido para toulousense(s); vide Dicctionaire Languedocien-François, de Pierre-Augustin Boissier de Sauvages, 1785, Paris,
Gaude, Pere, Fils & Compagnie Librairies, disponível em Google Books.
[684] Carlos V emprestou-lhe este dinheiro sob a condição dele liderar as Companhias: “A todos aqueles que estas presentes cartas verão, Bertran du Guesclin,
cavaleiro, conde de Longueville, camarista do rei da França, meu mui temível e soberano senhor, saudação. Saber fazemos que, por meio de certa soma de dinheiros que o
mencionado rei, meu soberano senhor, nos prestou em empréstimo, tanto para colocar para fora de seu reino as Companhias que estejam em partes da Bretanha,
da Normandia e de Charatin e alhures nas marches baixas , como para nos ajudar a pagar parte de nosso resgate ao nobre homem messire Jehan de Chandos ,
visconde de São Salvador e condestável da Aquitânia, do qual somos prisioneiro, Nós temos prometido e prometemos ao dito rei, meu soberano senhor, por nossa fé e
juramento, colocar e conduzir para fora de seu reino as retromencionadas Companhias da forma mais rápida que pudermos fazer, sem fraude ou engenho (ardil), e
também sem permitir ou sofrer com que permaneçam ou parem em qualquer parte do mencionado reino, salvo para paradas em seu caminho, e sem que nós ou as ditas
Companhias peçamos ou possamos pedir ao mencionado rei, meu soberano senhor, nem aos seus súditos ou às boas cidades, dinheiro ou qualquer outra contribuição, etc.”.
1365, 22 de agosto. Arquivos, J. 481.
[685] “Ali estavam todos os chefes de Companhias, a saber, messire Robert Briquet, Lamit, o pequeno Meschin, o bastardo Camus, etc.”. Froiss., ibid., p. 299.
[686] “E também foram muitos cavaleiros do principado do príncipe de Gales”. Froiss., ibid., p. 297.
[687] (NT): Provável referência a William Pitt, o Jovem, Primeiro-Ministro britânico entre 1804-1806 (segundo mandato) e sua atuação durante as guerras napoleônicas.
[688] Como logo será no Porto da Passagem (Port du Passage) que os Ingleses, cedo ou tarde, tomarão se nós não nos pusermos em guarda.
(NT): Port du Passage em Bayonne: praticamente o único porto de refúgio no Golfo da Gasconha. A Nota do Autor foi inserida por ocasião das lutas Carlistas (1836-37),
quando a Inglaterra agiu na Espanha. Passados quase 180 anos, o Porto continua sendo francês. – Vide, a propósito o “Memorando interessante” de 1808, elaborado pelo
Comissário de Marinha de Bayonne, onde defende ali instalar um porto militar: “Mémoire intéressant et très détaillé sur le beau Port du Passage ”:
www.euskomedia.org/PDFAnlt/riev/17/17175193.pdf.
[689] “E assim pediram licença ao rei Enrique... da forma mais cortês, sem revelar sua intenção e sem descobrir a do príncipe. O rei Enrique, que era liberal, cortês e
honrado, deu-lhes, muito graciosamente, belos presentes e os agradeceu à larga por seu serviço, e distribuiu, ao partir, seus bens, tanto que todos se contentaram.
Rapidamente, partiram da Espanha”. Froiss., cap. 524, p. 326. Duguesclin fora instituído Duque de Molina. D. Morice, I, p. 1628.
[690] “E supunham alguns que, por grande cautela, se fizera prender... porquanto ele ainda não sabia como a coisa se daria entre o rei Enrique e o rei D. Pedro”. Froiss.,
cap. 539, p. 369.
[691] Ele não manteve senão os Ingleses e os Gascões, licenciando quase todos os outros, Alemães, Flamengos, etc. Froiss., ibid., cap. 531, p. 347.
[692] Ibid., cap. 554, p. 408-9: As pobres pessoas das comunas, vivazmente perseguidas, foram cair no Ebro, “na água que era lamacenta, negra e assustadora”. Ibid., p.
411.
[693] Knygthon, col. 2629; e Froissart, cap. 562, p. 429: “Eles se portavam com grande sofrimento, com o calor e com o ar da Espanha, e mesmo o príncipe estava mal e
doente”. Walsingham acrescenta que então se dizia que o príncipe fora envenenado. Wals., p. 117.
[694] “Assim, o príncipe mandou-lhes dizer e rogar que bem desejassem sair de seu país e irem alhures para caçar e viver... Eles entraram na França, à qual chamavam
‘seu lar”. Froiss., cap. 564, p. 439.
[695] “Que le prince de Galles les envoyoit là” (Que o Príncipe de Gales para lá os enviava). Ibid.
[696] “E tão logo o príncipe o ouviu assim falar, que se arrependeu”. Ibid., cap. 562, p. 435-6.
[697]
N’a filairesse en France, qui sache fil
filer,
Qui ne gaignast ançois ma finance à filer,
Qu’elles ne me volissent hors de vos la
geter
Manusc. da Bibliot. Real, nº
7224, folio 86.

Não há fiadora na França que saiba fio


fiar,
Que não ganhasse assim meu dinheiro a
fiar,
Que não me desejasse vô-lo entregar.
(NT: trad. e adapt. livres)

[698] “Hidropisia, do latim hydropisis, e da língua grega hýdrops( ὕ δρωψ, de ὕ δωρ = "água"), é a acumulação anormal de fluido nas cavidades naturais do corpo ou no
tecido celular. O termo pode ser usado como sinônimo de edema. Historicamente, hidropisia, como doença, designava a causa principal dos edemas generalizados, a saber,
a insuficiência cardíaca congestiva. Diz-se "hidrópico" o indivíduo que sofre da doença. ... causada por distúrbios na circulação do sangue... A hidropisia é mais comum no
abdome, no peito, no encéfalo, nos rins, nas pernas e em torno dos olhos. Pode ser reconhecida pela formação de pequenas depressões que persistem quando se faz
pressão sobre a parte afetada... citada na Bíblia, no livro de Lucas cap. 14 vs. 2-4, onde Jesus cura um homem hidrópico”. – texto extraído de
http://pt.wikipedia.org/wiki/Hidropisia.
[699] “Ele se sentiu muito mal: ‘Messire o príncipe de Gales ri de mim’. Então, logo mandou chamar um clérigo. Ele veio. Quando chegou, ditou-lhe e o clérigo escreveu:
‘Caro Sire, que vos agrade saber que não saberei separar uns dos outros... e se alguns forem dispensados, todos irão, isto eu sei. Deus vos tenha em Sua santa guarda”.
Ibid., cap. 531, p. 350-1.
[700] “E são estes do Poitou, de Saintonge, de Quercy, do Limousin, do Rouergue, de tal natureza, que não podem amar os Inlgeses..., e os Ingleses também, que são tão
orgulhosos e presunçosos, não podem também amá-los, e nem o fizeram antes, e também, agora, menos que antes, mas os têm com grande desprezo e escárnio”. Froiss.,
V., p. 11.
[701] “E não de um franco”, como diz Froissart. Cartas do Príncipe de Gales, 26 de janeiro de 1468 (NT: 1368?). Nota comunicada por M. La Cabane. Manuscrito da
Bib. Real.
(NT): O “fogagium” ou “foagium”, também utilizado ao lado de sua tradução “fumagem” ou “fumadego” ou “fogaça” era um imposto extraordinário instituído sobre cada
“forno” (fogo), isto é, sobre cada unidade familiar. Vide http://fr.wikipedia.org/wiki/Fouage e também o livro “Elucidário das Palavras, Termos, e Frases que em
Portugal antiguamente se usárão e que hoje regularmente se ignorão...”, de Frei Joaquim de Santa Rosa de Viterbo, Tomo Primeiro (A-F), Officina de Simão
Thaddeo Ferreira, Lisboa, 1798, em Google Livros.
[702] “E vos poremos em acordo com nosso mui querido sobrinho, o príncipe de Gales, que talvez não esteja bem aconselhado”. Froiss., IV, cap. 565, p. 444.
[703] No lugar de Duguesclin, que Ayala põe como o interventor, Froissart nomeia o visconde de Roquebertin. Ibid., cap. 570, p. 459-462.
[704] “Descalços e pés nus, e a senhora rainha também... e o rei da França mandava, por todo o seu reino, o povo fazer o mesmo, por conselho dos prelados e da gente
da Igreja, neste tempo de aflição”. Froiss., cap. 587, p. 57.
[705] “A bem dizer, era necessário, tanto a um rei, quanto ao outro, já que desejavam guerrear, que pusessem em termos e demonstrassem a seus povos as razões de
sua querela, para que cada um pudesse, com a melhor boa-vontade, confortar seu senhor; e disto estavam todos atentos, tanto num reino, quanto noutro”. Froiss., ibid., p.
58.
[706] “Pois que combater não quereis... dentro de três dias, senhor duque de Bourbon, à hora terça (nove horas) ou do meio-dia, vereis a senhora vossa mãe ser posta
a cavalo e conduzida pelo caminho: sede avisado disto e a resgatai se desejardes”. Froiss., cap. 620, p. 173. “... mas nem se inflamaram, nem se moveram”. Ibid., cap.
621, p. 175.
[707] “Senhores, venho vos visitar; vós não vos dignais a sair para fora de vossas barreiras e eu me digno a entrar”. Ibid., cap. 629, p. 179.
[708] “Allez-vous-en, allez-vous-en, vous vous êtes bien acquitté” (Ide embora, ide embora, vós vos pagastes bem). Ibid., p. 212.
[709] (NT): Pomœrium: espaço sagrado do lado de fora dos muros da cidade de Roma, onde não era permitido construir ou cultivar. Expressão: “Franquear/ultrapassar o
pomœrium”: ultrapassar um limite (http://www.lexilogos.com/latin/gaffiot.php?q=pomoerium).
[710] “Um açougueiro..., um labrego (rústico) que bem o vira passar e que levava um machado afiado, de cabo longo e muito pesado”. Ibid.
[711] “Mais de três mil pessoas foram aí mortas neste dia. Deus teve suas almas, pois elas foram mártires”. Ibid., cap. 636, p. 217.
[712] “Para o mais valente, melhor talhado e idôneo para os interesses, e o mais virtuoso e afortunado em suas ações’. Ibid., cap. 638, p. 221.
[713] “Todos os barões, cavaleiros e escudeiros da Bretanha eram muito bons Franceses: ‘Caro Sire’, disseram a seu duque, ‘tão logo percebermos que vós tomareis
partido pelo rei da Inglaterra contra o rei da França..., nós todos vos abandonaremos e vos poremos para fora da Bretanha”. Froiss., VI, cap. 674, p. 27-28.
[714] “... e teriam, em sua cidade, cunhas para forjar florins e moeda branca e negra, de tal forma e liga como têm aquelas de Paris”. Froiss., VI, cap. 670, p. 15.
[715] (NT): O Galês é Yvain de Gales (francês) ou Owain Lawgoch/Owains ap Thomas (galês), também chamado de Owain of the Red Hand (pelos ingleses). Diz
Froissart: “Evan de Gales era o filho do Príncipe de Gales a quem o rei Eduardo, por alguma razão que ignoro, mandou matar, e tomou seus territórios e principado, os
quais deu para seu filho, o Príncipe de Gales”.
[716] Vix quadraginta caballos vivos secum ducens (NT: Tinham, se tanto, quarenta cavalos vivos). Walsingham, p. 529.
[717] Milites famosos et nobiles, delicatos quondam et divites... ostiatim mendicando, panem petere, nec erat qui eis daret (NT: Os soldados famosos e nobres, que
eram refinados e ricos... pediam pão e não encontravam ninguém que o desse). Wals., p. 187.
[718] Milites parliamentales graviter conquesti sunt de quâdam Aliciâ Peres appellatâ, feminâ procacissimâ (NT: Cavaleiros do Parlamento se queixaram gravemente
de Alice Perrers, mulher insolentíssima). Walsingham, p. 189.
[719] Illa nunc juxta justitiarios regis residendo, nunc in foro ecclesiastico juxta doctores se collocando... pro defensione causarum suadere ac etiam contra postulare
minimè verebatur (NT: Ela ora permanecia perto dos juízes do rei, ora se colocava perto da jurisdição eclesiástica... de modo algum temia defender causas e
também ser contra demandas). Walsin., p. 189.
[720] Inverecunda pellex detraxit annulos à suis digitis et recessit (NT: Desavergonhada prostituta que removeu os anéis de seus dedos e se foi). Ibid.
[721] (NT): Tabardo é a túnica de pano ou de couro, ricamente trabalhada, que se coloca sobre a armadura; é uma sobretúnica, uma cota d’armas, como dizem os
franceses (cotte d’armes), para diferenciá-la da cota de malhas (feita de ferro ou aço).
[722] (NT): Podemos corrigir o Autor e dizer que sobrevive há mais de seiscentos anos: vide a seção Heraldic Achievements of the Black Prince, com fotos e
explicações em inglês, no sítio internet http://www.englishmonarchs.co.uk/black_prince.htm. Réplicas novas e resplandescentes de bens pessoais do Príncipe Negro,
inclusive o tabardo, foram colocadas sobre seu gizante na Catetral de Canterbury, perto do altar de São Thomas Becket, enquanto os originais são mantidos protegidos em
caixas de vidro que estão expostas à visitação e curiosidade públicas.
[723] Lebrasseur, ‘Hist. do conde d’Évreux’, p. 93. – Vide as peças originais do processo. Arquivos do Reino, I, 618.
[724] “O rei da França temia tanto as fortunas perigosas que, de forma alguma, queria que seus cavaleiros se aventurassem em batalhas, salvo se fossem cinco contra
um”. Froiss, VII, 115.
[725] “Comme au solennel prince des chrétiens” (Como ao solene príncipe dos cristãos). Ele lhe oferecia fazê-lo governador de suas províncias e mestre da
cavalaria. Cristina de Pisano.
[726] “O rei Carlos da França foi bravamente sábio e sutil; pois, sem nunca deixar seus aposentos e suas diversões, reconquistou aquilo que seus predecessores haviam
perdido em campo, com a cabeça armada e a espada ao punho”. Froiss., VII, p. 192.
[727] “Sobre como o rei Carlos era hábil artista e dedicado às ciências, e as belas construções que mandou fazer: - Fundou a igreja de Saint-Antoine dentro de Paris. A
igreja de Saint-Paul mandou recuperar e acrescer, e muitas outras igrejas e capelas fundou, recuperou e aumentou as rendas. Acresceu seu hôtel Saint-Paul; o castelo do
Louvre, em Paris, mandou edificar de novo; a Bastilha Saint-Antoine ergueu, como ainda se pode vê-la e, sobre várias das portas de Paris, construiu edifícios fortes e
belos. Idem, as muralhas novas e belas, as torres largas e altas que circundam Paris. Mandou fazer a Ponte Nova (Pont-Neuf). Edificou Beauté (NT: Beauté = Beleza;
Château de Beauté-sur-Marne posteriormente demolido por Richelieu) e Plaisance, a nobre mansão (NT: Plaisance = Divertimento, Idílio; o solar adquirido por
Carlos V dará início à comuna de Neuilly-Plaisance); reparou o hôtel de Saint-Ouen. Muito fez para reedificar o castelo de Saint-Germain-en-Laye, Creel, Montargis,
o castelo de Melun e muitos outros notáveis edifícios”. Crist., VI, 25.
[728] Dizia-se que a estadia no hôtel Saint-Pol era favorável à sua saúde. Neste labirinto de aposentos que compunham os apartamentos do rei, contava-se: o quarto
onde repousa o rei (la chambre où gist le roi) ; o grão-quarto de retiro (la grand’chambre de retrait) , a câmara de estudo (chambre de l’estude). Ademais, havia um
jardim, um parque, uma casa de banhos, uma ou duas estufas, uma ou duas outras que se chamavam chauffe-doux (NT: aquecimento-suave), uma quadra de tênis (jeu
de paume), liças, um viveiro de pássaros, um espaço para pombas-rolas, criadouros para javalis, para os grandes leões e os pequenos, uma câmara do Conselho etc.
Carlos V fechara em seu hôtel Saint-Paul vários outros pequenos palácios, como aquleles dos abades de Saint-Maur e de Puteymuce (petimus: nas redondezas, eram
mantidos escribas que faziam o ofício de escrever petições: por uma corruptela, passou-se a chamá-lo de Petimuse). Os apartamentos do duque de Orléans eram tão
vastos quanto os do rei; depois vinham, em proporções semelhantes, aqueles do duque da Borgonha, de Maria, de Isabelle, de Catarina da França, dos duques e duquesas
de Valois e de Bourbon, dos príncipes e princesas de sangue e de outros senhores e do pessoal da corte. O duque de Orléans tinha um gabinete que servia-lhe
simplesmente para rezar suas horas e que se chamava retrait où dit ses heures Monsieur Louis de France (retiro onde diz suas horas Meu Senhor Luís da França).
Igualmente, quando se descia para os pátios, encontrava-se o marechalado (NT: jurisdição dos Marechais da França) , a zeladoria, a forraria (NT: capas, etc), a
rouparia, a peleteria, a vidraria, a salsicharia (NT: local onde se defuma alimento, fabricação de embutidos em geral), o guarda-comida, a casa do forno, a falconaria, a
lavanderia, a frutaria, a ucharia (NT: despensa e copa reais) , a paneteria, a condimentaria, a tapeçagem, a carvoaria, o local onde se fazia o hipocraz (NT: bebida feita
de mel, canela, amêndoas, açúcar e vinho), a confeitaria, o açougue, a oficina de lapidagem, a cave dos vinhos das casas do rei, as cozinhas, as quadras de tênis, os
celeiros, os galinheiros, etc. Os aposentos eram em lambris da madeira mais rara; mesmo nas capelas, havia chaminés e salamandras (NT: fogão de aquecimento) que
eram chamadas de chauffe-doux. As chaminés eram ornadas com estátuas colossais, segundo o costume daquele tempo; “aquela do quarto do rei possuía grandes
cavalos de pedra; uma outra apresentava doze grandes jumentos e treze profetas”. Félibien, I, p. 654-5.
[729] “Para manter sua corte em honra (NT: leia-se ‘elegante’), o rei tinha consigo barões de seu sangue e outros cavaleiros educados e conhecedores de todas as
honras... assim, messire Burel de La Rivière, belo cavaleiro, e que, por óbvio, graciosa, expansiva e jovialmente sabia acolher aqueles que o rei desejasse festejar e
honrar”. Cristin. VI, 63.
[730] Assim o chamava Mathieu de Coucy, ‘Observ. sur Christ. de Pisan’, V, p. 161-2.
[731] Disse um contemporâneo de Carlos V: “Os grandes príncipes seculares não ousariam nada fazer sem seu comando e sem sua santa eleição (da astrologia); eles
não ousariam construir castelos, nem edificar igrejas, nem começar guerra, nem entrar em batalha, nem vestir túnica nova, nem dar jóias, nem empreender uma grande
viagem, nem partir do palácio sem sua ordem”. Cristina de Pisano, p. 208.
[732] “Ele não culpava toda dissimulação: ‘Dissimular’, diziam alguns, ‘é um ramo da traição’. ‘Certo’, disse o rei, ‘ocorre que as circunstâncias fazem as coisas boas ou
más; portanto, dissimular pode ser uma virtude num caso e um vício noutro, por exemplo: dissimular contra o furor das pessoas perversas, quando necessário, é de grande
sentido; mas dissimular e fingir sua coragem aguardando a oportunidade de ferir alguém, a isso pode-se chamar vício.” Cristina, VI, p. 53.
[733] “... e com dificuldade dava licença para que o marido a mantivesse trancada em um aposento, se ela fosse muito desatinada”. Cristina de Pisano, V, p. 307.
[734] Ele não o despediu senão na quarta vez. Ibid., p. 297. Entretanto, ele tinha a justiça em seu coração e com ela se importava. Uma boa mulher veio se queixar que
um cavaleiro havia estuprado sua filha; ele mandou que o culpado fosse enforcado numa árvore em sua presença. Ibid. p. 290.
[735] Eles não deviam emprestar contra garantias suspeitas; mas eles haviam encontrado uma justificativa fácil: Art. 20 – dos privilégios dos judeus: “Por receio que não
se coloque em suas casas coisas que, em seguida, sejam ditas furtadas, nós desejamos que não sejam presos por nula coisa que se encontre em suas casas, salvo se
as mesmas não estiverem em um cofre do qual possuam as chaves”. Ord. III, p. 478.
[736] Ainda que Carlos V tivesse tentado introduzir um pouco de ordem na contabilidade, ele não conseguia ver claramente. O emprego de números romanos, mantido
quase até nossos dias pela Câmara de Contas, bastava para tornar os cálculos impossíveis.
[737] O defensor oficial do clero, em 1329, nos diz expressamente que a justiça, sobretudo na França, era o rendimento mais líquido da igreja.
[738] Ele reclama contra os excessos da Corte de Roma, contra os impedimentos de jurisdições, contra a violação das franquias do reino, sem dizer quais são essas
franquias. Ibid., II, p. 76.
[739] Pierre Cugnières pedia, entre outras coisas, que o vassalo traidor fosse punido pelo senhor e não pela igreja, salvo a penitência que igreja pudesse impor depois;
que um senhor não fosse excomungado pelas faltas dos seus; que o juiz eclesiástico não forçasse o vassalo de outrem, por excomunhão, a litigar perante si; que a igreja
não desse asilo àqueles que escapassem das prisões do rei; além disso, que as terras adquiridas pelo clero pagassem as taxas e retornassem à família do doador, ao invés
de permanecerem em mão-morta; que o clérigo que comerciasse ou emprestasse fosse sujeito à talha; que um plebeu não legasse a metade de sua terra a seu filho clérigo,
caso tivesse duas crianças, etc.
[740] Seque jura ecclesiarum aucta potiùs quam immunita esse velle.
[741] Abilitque in proverbium ut quem sciolum et argutulum et deformem videmus, M. Petrum de Cuneriis, vel corruptè, M. Pierre du Coignet vocitemus {NT: Assim
como dizia o provérbio, era também pouco sutil e disforme (feio) de ver; Messire Pierre de Cugnières passou a ser chamado, por corrupção (do nome), de M.
Pierre du Coingnet*}.
*(NT): Pierre du Coingnet = Pedro do Cantinho. A se crer no léxico da obra de Rabelais (e que está em linha com o que Autor escreverá em seguida), podemos, de
alma leve, oferecer esse aportuguesamento menoscabante: “COINGNET (Pierre du), II, 24. Pierre du Coingnet, avocat-général du parlement de Paris, sous
Philippe de Valois. Il s’opposa vivement à quelques entreprises du clergé contra l’autorité royale. Pour s’en venger, les prêtres, à sa mort, firent faire à sa
ressemblance des marmousets de pierre qu’on plaçoit dans les encoingnures des églises, et qu’on nommoit des pierres du Coingnet. On éteignoit les flambeaux
contra ces marmousets, ce qui les rendit en peu de temps sales et défigurés. Aussi, passa-t-il en proverbe de dire: laid comme Pierre du Coingnet” ; ou seja:
“Pierre du Coingnet, advogado-geral do parlamento de Paris, no reinado de Filipe de Valois. Ele se opôs vivamente a algumas iniciativas do clero contra a autoridade real.
Para se vingarem, os padres, quando de sua morte, mandaram fazer, à sua semelhança, figuras grotescas de pedra que eram colocadas nos cantos (ângulos) das igrejas,
as quais eram chamadas de pedras do Cantinho. Apagava-se os archotes contra essas figuras, o que as tornava, em pouco tempo, sujas e desfiguradas. Assim, passou-se
a dizer como um provérbio: feio como Pie rre (pedra/Pedro) du Coingnet (do Cantinho)”. Vide na ‘Table Analytique et Raisonnée des Principales Matières
contenues dans les Oeuvres de Rabellais’, pág. 62, da obra ‘Oeuvres de F. Rabelais’, Tomo Terceiro, Louis Janet Libraire, Paris, MDCCCXXIII (1823), gratuitamente
disponível em Google Books.
[742] ‘Libertés de l’Église Gallic. Traités. Lettres de Brunet’, p. 4. – Simulacrum ejus simum et deforme... quod scholastici prætereuntes stylis suis scriptoriis pugnisque
confodere et contundere solebant. Bulæus, IV, 322.
[743] Os arcebispos de Mainz e de Colônia pagavam ao Papa, cada um, vinte e quatro mil ducados pelo pallium.
[744] Balus. ‘Pap. Aven.’, I, p. 722: Omnia beneficia ecclesiastica quæ fuerunt et quocumque nomine censeantur et ubicumque ea vacare contigerit (NT: Todos os
benefícios eclesiásticos que estiverem, assim como os que vierem a cair vagos).
[745] Cùm eos non reperiebat juxtà gustum suum benc idoneos (NT: Como não encontrasse alguém que correspondesse ao seu gosto de idoneidade) . ‘Prima vitæ
Bened. XII’, ap. Baluz., I, p. 264.
[746] In Clemente clementia... (NT: “Com a clemência de Clemente”. A tradução não revela o trocadilho malicioso que há em latim pois, se juntarmos “in” e
“Clemente”, teremos “inclemente” e, então, “inclemente clemência” ao invés de “com a clemência de Clemente”).
[747] Petrarca, Epistolæ 10: de tertiâ Babylone et quinto labyrintho.
[748] O Antipapa Nicolau V tivera por mulher Joana de Corbière, da qual se divorciara para se fazer menor. Quando se tornou Papa, Joana pretendeu que o divórcio era
nulo. Fez-se mil contos na Corte de Avignon; vem daí a fábula da Papisa Joana. O conto relaciona-se ao ano 848 e sua prova é mencionada em “Marianus Gestus” e
“Sigebert de Gemblours”. Mas não se encontra uma só palavra sobre isso nos antigos manuscritos desses autores. Somente mais tarde é que se inseriu no texto o que
inicialmente fora escrito à margem. Bulæus, IV, 240.
[749] Tu pejor Lucifero... tu injustior Pilato... tu immitior Judâ, qui me solum vendidit; tu autem non solum me vendis, sed et animas electorum meorum (Tu, pior que
Lúcifer... tu, mais injusto que Pilatos... tu, menos digno de piedade que Judas, que vendeu apenas a mim; tu não somente me vendeste, como vendeste meus
eleitos e suas almas). Santa Brígida, ‘Revelações’, l. I, c. 41.
(NT): Santa Brígida recebeu as revelações do próprio Cristo. Foi canonizada em 1391 por Bonifácio IX. É considerada, ao lado de Sta. Catarina de Siena e Sta. Teresa
Benedita da Cruz, co-padroeira da Europa. Sua ordem (Ordo Sancti Salvatoris – Ordem do Santo Salvador ou Ordem Brigidina) ainda existe em nossos dias. As
Revelações que recebeu do Salvador podem ser lidas e baixadas (word ou pdf) em http://www.prophecyfilm.com/portuguese/ ou em http://www.igreja-
catolica.com/santos/santa-brigida/santa-brigida.php.
[750] (NT): É em 1378 que se dá o cisma da Igreja do Ocidente. Hoje em dia, a Igreja Católica não reconhece alguns dos Papas de Avignon (assim como os de Pisa),
que são exatamente os que foram escolhidos após o cisma de 1378. Portanto, são Antipapas os seguintes: a) de Avignon: Clemente VII (1378 a 1394), Bento XIII (1394 a
1423), Clemente VIII (1423 a1429) e Bento XIV (1425 a 1430) e b) de Pisa: Alexandre V (1409 a 1410) e João XXIII (1410 a 1415). Para os mesmos períodos, são
reconhecidos Papas os seguintes: Urbano VI (1378 a 1389), Bonifácio IX (1389 a 1404), Inocente VII (1404 a 1406) Gregório XII (1406 a 1415) e Martinho V (1417 a
1431). Vide em http://fr.wikipedia.org/wiki/Liste_détaillée_des_papes e também em http://fr.wikipedia.org/wiki/Antipape.
[751] ‘Ó que flagelo! ó que dolorosa maldade que ainda dura! etc”. Cristina de Pisano, VI, 116. Cantava-se, nessa época, a seguinte canção:
Plange regni respublica, Lamenta povo do reino
Tua gens, ut schismatica, Tua gente como
Desolatur. cismática,
Nam pars ejus est iniqua Com desolação.
Et altera sophistica Meia parte de ti iníqua
Reputatur, etc E a outra sofista,
Bibliot. do rei, cód. 7609. ‘Coll. É assim reputada.
des Mém., V, 181.

[752] Lenfant, ‘Conc. de Pisa’, p. 108. – Todavia, ele exibia ao povo, todos os anos, carregando-a em suas mãos, a verdadeira cruz na Santa Capela, como antes o
fizera São Luís. Cristina de Pisano, p. 316.
[753] “Chronique em vers de 1341 a 1381 (Crônica em Versos de...), pelo mestre Guillaume de Saint-André, licenciado em direito, escolástico de Dol, notário apostólico
e imperial, embaixador, conselheiro e secretário do Duque Jean IV”:

Les François estoient Os Franceses estavam


testonnés, encaracolados (os cabelos),
Et leurs airs tout efféminés; E seu ar era todo efeminado;
Avoient beaucoup de perleries, Tinham muitos enfeites de
Et de nouvelles broderies. pérolas,
Ils estoiet frisques et mignotz, E novos bordados.
Chantoient comme de Estavam vistosos e graciosos,
syrenotz; Cantavam como sereias;
En salles d’herbettes jonchées, Em salas de relvinha juncadas,
Dansoient, portoient barbes Dançavam, usavam barbas
fourchées; pontudas;
...Les vieux ressembloient aux ...Os velhos se pareciam com os
jeunes; jovens;
Et tous prenoient terrible nom, E todos tomavam um nome
Pour faire paour aux Bretons. terrível,
Para fazer medo aos Bretões.

[754]
A! doulce France amie, je te lairay
briefment!
Or veille Dieu de gloire, par son
commandement,
Que si bon conestable aiez prochainement
De coi vous vailliez mieulx en honour
plainement!
Poema de Duguesclin, manusc. da Bib.
Real,
nº 7224, 142 verso.

A! doce France amiga, eu te deixarei


brevemente!
Agora queira a glória de Deus, por Sua
ordem,
Que tenhais esse bom condestável
proximamente,
Com o que valeis melhor em honra
plenamente!

[755] V. o excelente artigo ‘Charles V’ de M. La Cabane (Dict. de la conversation).


[756] A históra desta revolução de Flandres liga-se mais naturalmente àquela do reinado de Carlos VI. Veremos sua narrativa no Tomo IV.
[757] É possível seguir o progresso de sua conquista de mapa em mapa: Rhodes, Figeac, Montauban, fevereiro de 1370; Millau no Rouergue, maio; Cahors, Sarlat, julho
etc. Ord. V, p. 291, 324, 338, 3333. – Sobre a história das comunas, vide particularmente o quinto volume do ‘Curso” de M. Guizot. Ninguém analisou de uma maneira
mais precisa e mais judiciosa esse grande assunto.
[758] Em 1784, a nobreza da Borgonha ainda exigia a fundação de um capítulo de Senhoritas. Arquivos do Reino, K, documentos relativos à supressão do convento
de Marcigny.
[759] Vide este detalhe em Sismondi, ‘Hist. de France’, XI, 305-306.
[760] Sem falar de tantas outras belas narrativas, creio que não haja, em nossa língua, nada mais requintado que o capítulo: “Como o rei Eduardo disse à condessa de
Salisbury que ele devia ser amado por ela, com o que ela ficou bastante estupefata”.
[761] Embora Froissart tenha permanecido por muito tempo na Inglaterra, nele não encontro senão uma palavra que pareça ter sido tomada de empréstimo da língua
desse país: “Le roi de France pour ces jours étoit jeune, et volontiers travillait” {NT: O rei da França, nessa época, era jovem e com muito prazer travelava
(“viajava”: Froissart misturou o verbo to travel (“travelled”) com o verbo voyager (“voyageait”)}.
[762] “Considerava para mim mesmo que não havia nenhuma esperança que feitos d’armas ocorressem pelos lados da Picardia e de Flandres, pois que estavam em paz,
e eu não desejava ficar ocioso; pois eu bem sabia que, no tempo por vir e quando eu estiver morto, estará esta alta e nobre história em grande curso, e a receberão, todos
os nobres e valentes homens, com prazer e como exemplo de bom agir; e, sobretudo, como tivesse eu , graças a Deus, senso, memória e uma boa coletânea de todas as
coisas passadas, com engenho (compreensão) claro e afiado para conceber todos os fatos dos quais pudesse estar informado relativos à minha matéria principal, e idade,
corpo e membros para suportar dificuldades, determinei-me que não desejava adiar a pesquisa de minha matéria; e, para saber a verdade das longínquas ocorrências sem
que eu enviasse qualquer outra pessoa no lugar de mim mesmo, tomei a estrada e a ocasião razoável de partir para encontrar o altivo príncipe e temível senhor messire
Gastão (Gaston), conde de Foix e do Béarn... E tanto trabalhava e cavalgava, procurando de todos os lados as notícias, que, pela graça de Deus, sem perigo e sem danos
cheguei em seu castelo de Orthez.. no ano da graça de 1388. O qual... quando eu lhe perguntava alguma coisa, ele me respondia com muito prazer; e muito me dizia que a
história que eu fizera (escrevera) e procurara seria, no tempo vindouro, mais recomendada que mil outras”. Froiss., IX, 218-220.
[763] Jehan conta de início como: “Na idade quando as crianças começam a cuspir seus primeiros dentes e ainda tem suas inconsequentes penas e não podem ser
culpadas por nenhuma lei”, ele foi encarregado de guardar os gansos, depois os porcos; como, em seguida, “crescendo sua idade para ser promovido a honras várias”, ele
teve a guarda dos cavalos e das vacas. Mas, então, foi ferido e vem dizer que nunca mais cuidaria das vacas: “E, então, foi-lhe dada a guarda de oitenta cordeiros
debonários e inocentes..., e ele tornou-se como que o tutor e o curador dos mesmos, pois eram de tenra idade e menores”. Ele não se conduziu como certos pastores
temporais ou espirituais... etc. Em seguida, “o mencionado Jehan de Brie, sem simonia, foi encarregado e constituído para guardar as chaves dos víveres... do palácio de
Messy, pertencente a um dos conselheiros do rei nosso senhor, encarregado dos inquéritos no seu parlamento de Paris... Quando o mencionado de Brie foi licenciado e
tornou-se mestre nesta ciência do pastoreio, e que se tornara digno de ler na rua au Feurre (Fouarre - onde estavam as escolas) , perto dos estábulos dos bezerros ou
sob a sombra de um olmo ou de um telhado, atrás das ovelhas, veio então morar no Palácio Real, no hôtel de Messire Arnoul de Grantpont, tesoureiro da Santa Capela
real em Paris... – Primeiramente, os cordeiros que são jovens e dóceis devem ser tratados amigavelmente e sem violência e não se deve feri-los nem castigá-los com
vergas, bastões etc.” – “Quando se corta (se mata) os cordeiros: deve então o pastor estar sem pecado e é bom que esteja confessado, etc. etc.” – Este livrinho
encantador, que eu saiba, não foi reimpresso depois do século XVI. Dele conheço duas edições, ambas de Paris: uma leva a data de 1542 (Biblioteca do Arsenal) e a outra
não possui indicação do ano (Biblioteca Real, S. 880).
[764] A passagem seguinte bem possui o ar de ter sido escrita por um magistrado: Eles (os cordeiros) eram de tenra idade e menores e, porque o mencionado João não
era nobre e não pertencesse a nenhuma linhagem, ele não pôde obter o arrendamento, mas teve a guarda, governo e administração quanto à alimentação” {Ils estoient
(les agneaux) sous âge e mineur d’ans; e pour ce que ledit Jehan n’est noble, e que il ne lui appartenoit pas de lignage, il n’en put avoir le bail, mais il en eu la
garde, gouvernement et administration, quant à la nourriture}.
[765] A ponto de, sob Carlos VI, quando dois filhos do duque d’Anjou foram armados cavaleiros, todos os espectadores perguntarem o que significavam esses ritos.
Vide o Tomo IV.
[766] Este poema oferece a mistura bizarra de dois espíritos muito opostos. Duguesclin é pintado como um cavaleiro do século XIII; mas ele é malévolo para os padres,
como se era no século XIV. Ele nada deseja tomar do povo; ele não extorque senão o Papa e a gente da Igreja. Crer-se-ia ler a Henriquíada ( NT: “Henriade”, de
Voltaire):

.... Le prévost d'Avignon


Vint droit à Villenove, où la chevalerie
De Bertran et des siens estoit adonc logie.
I la dit à Bertran que point ne le detrie:
Sire, l'avoir est prest, je vous acertefie,
Et la solution séelée et fournie,
Come Jhesu donna le fils sainte Marie
À Marie-Magdalaine qui fut Jhesu amie.
Et Bertran li a dit: Beau sire, je vous prie,
Dont vint ycilz avoirs, ne me le celez mie?
La pris li Aposteles en sa thresorerie?
Nanil, Sire, dit-il, mais la debte est paie
Du commun d'Avignon, a chascun sa partie.
Dit Bertran Du Guesclin: Prévost, je vous afie,
Jà n'en arons deniers en jours de notre vie,
Se ce n'est de l'avoir venant de la clergie,
Et volons que tuit cil qui la taille ont paiée,
Aient tout lor argent, sans prendre une maillie.
Sire, dit li prévos, Dieu vous doint bonne vie!
La pour gent arez forment escleessie (réjouie).
Amis, ce dit Bertran, au pape me direz,
Que ces grans tresors soit ouvers ou defermez,
Ceulz qui lont paié, il lor soit retorez.
Et dites que jamais n'en soit nul reculez.
Car, se le savoie, jà ne vous en doubtez,
Et je fusse oultre mer passez et bien alez
Je seroie ainçois par deçà retournez...

Poema de Duguesclin, manuscrito da


Biblioteca Real, nº 7224, folio. 49 .

... O preboste de Avignon,


Veio direto a Ville neuve, onde a cavalaria
De Bertrand e dos seus estava então alojada.
Ele disse a Bertrand que nada o atrasa:
“Senhor, o dinheiro está pronto, eu vos certifico,
E o recibo selado e guarnecido,
Como Jesus deu o filho, Santa Maria,
a Maria Madalena que foi de Jesus amiga”.
E Bertrand lhe disse: “Bom senhor, eu vos rogo,
Donde vem esse dinheiro, não m’o escondei?
Pegou-o o Apóstolo em sua tesouraria?”
“Nã-não, Senhor”, ele disse, “mas o débito está
pago
pelos comuns de Avignon, de cada um, sua
parte”.
Disse Bertrand Duguesclin: “Preboste, eu vos
afianço,
Já dele nada teremos durante os dias de nossa
vida,
Se não tiver este dinheiro vindo do clero,
E queremos que todos que a talha pagaram,
Recebam todo seu dinheiro, sem perder uma
malha”.
“Senhor”, disse o preboste, “Deus vos dê longa
vida!
O pobre povo ficará muito alegre”.
“Amigos”, disse Bertrand, “dizei ao Papa de mim,
Que esses grandes tesouros sejam abertos ou
destrancados,
Aqueles que o pagaram, que lhes seja retornado.
E dizei que jamais nada seja de novo recobrado.
Pois, se eu o souber, já não duvideis,
E ainda que estivesse no ultramar ou bem longe,
Eu novamente para cá voltarei”.

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