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DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
Maurício Beck
por
Maurício Beck
elaborada por
Maurício Beck
COMISSÃO EXAMINADORA:
Tiellet
Aos professores, colegas e amigos que, nos diálogos travados nestes dois
anos, contribuíram para a realização deste trabalho.
Ao PROCAD.
Os protestantes de Seattle ou de Praga de modo algum estão unidos
na sua compreensão do capital. O elemento reformista acredita
verdadeiramente no “Capital com uma face humana” e não partilha de
nenhuma linguagem comum com os anarquistas, etc. Como resultado,
alianças feitas acerca das emoções da confrontação tendem a se
dissolver quando questões estratégicas são levantadas.
Hakim Bey
RESUMO
Dissertação de Mestrado
Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade Federal de Santa Maria
Master Dissertation
Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade Federal de Santa Maria
RESUMO................................................................................................................................................................... 6
ABSTRACT .............................................................................................................................................................. 7
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................................ 9
2 ACONTECIMENTOS POLÍTICOS........................................................................................................19
BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................................................................75
INTRODUÇÃO
Raoul Vaneigem
Essa última questão nos remete a outro aspecto do FSM que o torna
pertinente como fenômeno político a ser analisado e que possibilita levantar novas
questões dentro do terreno teórico da AD: a sua novidade enquanto movimento
sócio-político. Segundo Arturi (2004), com o fim da Guerra Fria e início da
globalização econômica, no final da década de 80 do século passado, os estados
nacionais deixaram de ser os únicos protagonistas nas relações internacionais e
cederam espaço para entidades, empresas e congregações multinacionais. Por
outro lado, a crise do socialismo real, simbolizada pela queda do muro de Berlim,
acabou por desarticular as organizações de esquerda de molde marxista com base
em partidos políticos ortodoxos.
11
Ainda de acordo com Arturi (2004), o FSM, assim como os novos movimentos
sociais da atualidade (muitas vezes denominados movimentos antiglobalização),
apresenta características relacionadas às mudanças apontadas acima: é um
movimento de caráter mundial, tanto pela articulação de ativistas das mais variadas
nacionalidades, como pelo objetivo de contestar e buscar interferir na ordem política
econômica do mundo como um todo. E enquanto atuação se caracteriza por agir e
participar diretamente nas decisões e por trabalhar em redes de relações não
hierárquicas ou com hierarquias mais fluidas que as tradicionais.
Nietzsche
Por sua própria natureza de fórum, o FSM não se definiu como um discurso
(único) de esquerda em contraposição ao neoliberalismo. Mas, para usar uma
expressão da música que o cantor e compositor Tom Zé cantou no show que
realizou durante o evento, buscou-se uma unimultiplicidade, ou seja:
17
operário, passa a ser questionada por Pêcheux no interior da própria teoria da AD. O
modo como se dá a fusão entre a ciência do materialismo histórico e o movimento
revolucionário, que no último capítulo de Semântica e Discurso foi conceituado pelo
prisma de uma teoria materialista do discurso, torna -se uma questão em aberto no
anexo.
A princípio muitas pessoas ficaram confusas com o uso que fiz da palavra
‘história’. Tomando a história no sentido convencional de ocorrência de
21
É bom lembrar que Fukuyama escreve este livro três anos depois de seu
artigo – artigo que saiu alguns meses antes da queda do muro de Berlim.
Sintetizemos a sucessão dos acontecimentos: o Artigo de Fukuyama no verão do
hemisfério norte, portanto, nos meses de junho, julho e agosto de 1989, seguido da
queda do muro de Berlim (acontecimento divulgado pela mídia ao mundo inteiro) e,
concomitantemente, o Consenso de Washington acabaram por marcar o enunciado
fim da História de forma indelével na memória discursiva política de nosso tempo.
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1
Expressão criada, segundo uma versão, em 1946 pelo primeiro ministro britânico Winston Churchil.
Segundo outra versão, a expressão foi cunhada por Goebbels, ministro da propaganda de Hitler na
Alemanha Nazista, em um discurso radiofônico, ao descrever o resultado do choque entre os Aliados
e a URSS.
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tema do encontro, que visava fazer uma análise das reformas econômicas em
processo na América Latina.
respondeu: ‘Nada, sua política econômica não será diferente da nossa’. The
Wall Street Journal Europe, 18 de março de 1993), lhe confere uma tal força
de intimidação que abafa qualquer tentativa de reflexão livre, e dificulta a
resistência contra esse novo obscurantismo. (RAMONET, 1997, p. 24)
A Ação Global dos Povos (AGP), uma organizaçao em rede, com objetivos de
articular os inúmeros movimentos dispersos pelo mundo, surgiu em 1998. Sua
plataforma virtual, que existe basicamente na rede mundial de computadores, tem
como função mobilizar, coordenar e potencializar a comunicação entre os atores
políticos e sociais.
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A ação direta proposta pela rede da AGP (2004) é caracterizada como uma
resistência física e irredutível em relação aos seus adversários políticos. Não se
propõe a dialogar ou mesmo reivindicar pacificamente mudanças junto às
autoridades políticas e econômicas. A filosofia descentralizada e autônoma é uma
das características dos movimentos ligados à rede da AGP, característica que está
mais próxima da tradição libertária do que dos movimentos centralistas e
vanguardistas de tradição marxista . (BAKUNIN, 2002).
Como não pretende se constituir como instância de poder, o FSM não tem
caráter deliberativo, nenhum participante do FSM deve, segundo a carta de
princípios, ser interpelado a tomar decisões por voto ou aclamação. E ninguém está
autorizado a se exprimir em nome do Fórum, ainda que as entidades participantes
possam deliberar livremente sobre suas ações e declarações, as quais o FSM se
dispõe a difundir amplamente.
Althusser
Deleuze (1988) tinha uma concepção (particular) do modo como deveria ser
um livro de filosofia que está muito próxima do conceito de dispositivo de análise da
AD. Deleuze acreditava que um livro de filosofia deveria ser:
por um lado, um tipo muito particular de romance policial e por outro, como
uma espécie de ficção científica. Por romance policial, queremos dizer que
os conceitos devem intervir, como uma zona de presença, para resolver
uma situação local. Modificam-se com os problemas. Têm esferas de
influência em que, como veremos, se exercem em relação a “dramas” e por
meio de uma certa “crueldade”. Devem ter uma coerência entre si, mas tal
coerência não deve vir deles. Devem receber a coerência de outro lugar.
(DELEUZE, 1988, p. 17).
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Este outro lugar, na perspectiva da AD, nos remete aos acontecimentos que
engendraram novas condições de produção na constituição das formações
discursivas, que, por sua vez, são a matriz (às vezes sujeita a falhas) de enunciados
ou de formulações, sendo estes últimos a base do corpus de nossa análise. Estes
acontecimentos, ao se inscreverem na memória discursiva política/midiática de
nossa época, alteram as relações de forças entre as formações discursivas em jogo
nos movimentos e eventos de esquerda, como o FSM, além de atravessá-las com
um discurso outro, dando o tom de sua heterogeneidade constitutiva. “O
acontecimento como ponto de encontro entre uma atualidade e uma memória”
(PÊCHEUX, 2002, p. 17) e que se realiza discursivamente entre o interdiscurso e o
intradiscurso, pede uma nova interpretação, pois os acontecimentos trazem novas
questões e re-atualizam problemáticas. Em nosso caso, essa interpretação é
intermediada pela teoria, pelo nosso dispositivo de análise, análise que se efetua
sobre nosso objeto por excelência: o discurso.
Porém, sem que nos tomem por neo-aristotélicos (lembremos que Marx
tinha uma alta estima por Aristóteles), diremos que ‘a materialidade se
expressa de inúmeras maneiras’, ou melhor, que ela existe de diferentes
formas, todas enraizadas em última instância na matéria “física”. (Ibid, p. 83)
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Esta correlação, no entanto, está no limite com o que Pêcheux entende por
discursividade: “incide sobre a articulação entre enunciados, isto é, incide, na
verdade, sobre a passagem à discursividade, ao engendramento do ‘texto’” (1997, p.
123). Contudo, isto por si só não constitui o discurso. Para tanto se faz necessário
introduzir a dimensão histórica. É da relação com sua exterioridade constitutiva, de
sua imbricação com outras formas de materialidade que se trata aqui. A
materialidade se expressa nas suas mais diversas formas, dotadas de uma
autonomia relativa a uma exterioridade (esta relação, por sua vez, é contraditória e
hierarquizada).
2
A partir de Gregolin (2004), podemos afirmar que é na remissão à luta de classes que os conceitos
de Ideologia e de Formação Ideológica – na sua imbricação com as Formações Discursivas – geram
as controvérsias em torno da aproximação ou não da AD com o pensamento de Michel Foucault e
sua perspectiva microfísica. No quinto capítulo, retomaremos esta questão.
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3
De outro lado, ou no outro eixo, nós temos o intradiscurso, que é onde se dá a formulação, onde o
discurso se efetiva em uma seqüência linearizada. A formulação remete “à produção efetiva,
circunstanciada e relativa a um contexto específico de uma seqüência discursiva concreta”
(ORLANDI, 1990, p. 39).
4
Segundo Pêcheux, P. Henry propôs “o termo ‘pré-construído’ para designar o que remete a uma
construção anterior, exterior, mas sempre independente, em oposição ao que é ‘construído’ pelo
enunciado” (PÊCHEUX, 1997, p. 99).
5
A não transparência da linguagem, seu caráter equívoco terá, progressivamente, na teoria da AD,
uma função próxima àquela da Ideologia em Althusser. No entanto, se a Ideologia remetia à luta de
classes, a equivocidade da linguagem, o real da língua, remete, numa vertente mais próxima da
psicanálise, à interpelação do indivíduo em sujeito pela Ideologia, mas interpelação sujeita a falhas e
a resistências inconscientes.
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que todo discurso é atravessado por outros discursos, sendo que a relação entre
estes discursos heterogêneos se dá de forma contraditória, desigual e por confronto.
Marx
O slogan do FSM “Um Outro Mundo é Possível” será nosso objeto de análise.
Ele será tratado por nós por sua própria especificidade de slogan. Em seguida,
desenvolveremos uma análise em torno de seu caráter de enunciado afirmativo que
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Re-articula e não funda porque, como veremos a seguir, ele retoma uma polêmica histórica.
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Pré-construído incorporado/negado/redefinido:
Nesta perspectiva, o slogan do FSM pode ser tratado como uma formulação
que re-atualiza a memória discursiva social e política. Os saberes que o slogan
retoma são enunciados pertencentes ao interdiscurso ou, mais especificamente, a
FDs que disputam a estabilização de sentidos em dado campo discursivo.
prevalecer o mundo que segue as leis universais do livre mercado, pois o livre
mercado capitalista é mais eficiente que a economia planejada socialista. A
eficiência da economia do livre mercado é que confere a primazia do econômico
sobre o político. O mercado pode, portanto, resolver de forma mais eficiente os
problemas sociais que o político sempre buscou resolver e não conseguiu.
7
Localmente e no campo de disputa eleitoral partidária, a polêmica esquerda e direita continuava
ocorrendo. Contudo, houve um deslocamento de sentido e uma indistinção ideológica e de
governança entre esquerdistas e direitistas a partir da década de 1990.
50
Socialismo utópico/impossível
Fim da História
4.2 Unimultiplicidade
UNIMULTIPLICIDADE
A casa da humanidade.
8
Segundo Salvatore Puledda (2005), embora o humanismo tenha diversas versões e correntes,
alguns valores e conceitos são comuns a todos: a humanidade como centro das preocupações e dos
valores; a afirmação de que todos os seres humanos devem ser tratados como iguais; a valorização
da diversidade individual e cultural. Em contraposição, para Châtelet (1994) "o humanismo contém o
universalismo, no sentido de que a particularidade individual garante o respeito pelo universal. Sendo
assim, o humanismo leva a recusar a fundação de uma definição da humanidade com base em
distinções e diferenças(...)"(CHÂTELET, 1994: p.163)
57
Na unimultiplicidade
Na unimultiplicidade
Questão que o autor deixa no ar sem responder, mas que aponta para nossa
própria condição de sociedades com Estado. Em nosso objeto de estudo, a equação
Um = Bem da cultura ocidental também tem implicações políticas: Na canção
Unimultiplicidade, verifica-se a valorização da heterogeneidade/multiplicidade,
contrabalançada pela busca de unidade através da harmonia/convergência de
interesses.
Althusser
9
Pêcheux parece ter em mente o discurso humanista de cunho idealista que opõe essência do ser
humano (liberdade) à natureza (determinismo físico e biológico). O enunciado “os homens nascem
livres e iguais” sintetiza esta tese. Não se trata exatamente do mesmo humanismo da música – que
não opõe ser humano à Natureza. Mas para efeito dos argumentos acima levantados esta diferença
não é pertinente, pois para Pêcheux, naquele momento, a única saída válida da ideologia dominante
era o marxismo-leninismo, sendo qualquer alternativa categorizada como esquerdista. Veremos
adiante que o autor vai progressivamente mudar sua posição sobre este problema.
62
(...) o sujeito da enunciação “se volta” contra o sujeito universal por meio de
uma “tomada de posição” que consiste, desta vez, em uma separação
(distanciamento, dúvida, questionamento, contestação, revolta...) com
respeito ao que o “sujeito universal” lhe “dá a pensar”: luta contra a
evidência ideológica, sobre o terreno da evidência, evidência afetada pela
negação, revertida a seu próprio terreno. (PÊCHEUX, 1997, p. 215)
10
Menção ao texto de Lênin: Esquerdismo: Doença Infantil do Comunismo [1920].
63
Pêcheux escreveu este texto como anexo para a edição inglesa do livro
Semântica e Discurso. No mesmo ano, 1978, de acordo com Gérard Lebrun (1983),
Althusser manifestou seu descontentamento com o Partido Comunista Francês.
11
sindicalista” . É com Lênin que “emancipação dos trabalhadores”, em vez
de ser “obra dos próprios trabalhadores” (Marx), vai tornar-se “fruto da
difusão no corpo social interessado da doutrina libertadora, da teoria, da
12
consciência” . (LEBRUN, 1983, p. 147)
11
Lebrun cita Lênin, O que Fazer? [1902].
12
Lebrun cita Alain Besançon, Les origines intellectueles du léninisme. (1977)
65
inteiramente pela Ideologia. Sujeito cindido, sujeito a falhas, equívocos, lapsos. “(...)
não estaria a série analítica sonho-lapso-ato falho -Witz encontrando algo que infecta
constantemente a ideologia dominante, do próprio interior das práticas em que ela
tende a se realizar?”, pergunta-se Pêcheux (1997, p. 301).
13
Mesmo o humanismo presente na canção não nos parece ser capaz de unir ou de açambarcar a
multiplicidade. Sua eficácia de mobilização e engajamento de massas não se efetivou na prática
política e social de longo prazo.
67
marxismo por parte dos movimentos políticos de hoje é minoritária, movimentos que
correspondem a uma parcela da multiplicidade de correntes presentes no FSM, por
exemplo. A fissão da teoria marxista com as massas (se é que um dia ocorreu fusão
entre elas) a torna, segundo seus próprios preceitos, inoperante, estéril para a luta
revolucionária 14. Os marxistas leninistas, talvez, almejem insistir na luta ideológica
na teoria para que, em condições sócio-econômicas mais propícias, surjam, enfim,
os verdadeiros proletários revolucionários devidamente disciplinados e talhados.
Nossa proposta é outra.
14
As revoluções precisam, efetivamente, de um elemento passivo, de um fundamento material. Num
povo, a teoria realiza-se somente na medida que é a realização das necessidades" (MARX, 1978:p.
9)
68
Segundo Lopes da Silva (2002), que colocou a questão do que é ser marxista
hoje para os analistas de discurso, Foucault, ao elaborar sua microfísica, construiu
conceitos mais apropriados que os clássicos conceitos marxistas para a
compreensão dos fenômenos estudados por ele.
Uma alternativa possível foi articulada por Deleuze e Foucault (2004) quando,
em um diálogo entre os dois, se indagaram sobre a função do intelectual em relação
ao poder. Segundo Foucault, o papel dos intelectuais não é o de ser porta voz de
uma verdade muda das massas, pois estas “sabem perfeitamente, claramente, muito
melhor do que eles; elas o dizem muito bem” (FOUCAULT, 2004, p. 71). O papel dos
intelectuais e, podemos acrescentar, dos analistas de discurso hoje “é antes o de
lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e
15
Lopes da Silva cita dois trechos da Microfísica do Poder de Foucault [1984] 2004,
respectivamente: p. 257 e p. 245.
16
Esta necessidade de "unidade estratégica" tem como pressuposto uma determinada teoria
do poder que nós não problematizamos em nosso texto, mas seria interessante correlacionar essa
teoria com a metafísica do Um como Bem da cultura ocidental (CLASTRES, 1990) em trabalhos
posteriores.
70
17
A nota bibliográfica é referente a uma edição antiga do livro A Ordem do Discurso.
71
Stirner
Durante uma entrevista sua na Bélgica, em 1981, Foucault (2003 b) não quis
ser identificado como anarquista, dizendo que algumas correntes do pensamento
libertário se embasavam nas necessidades fundamentais do ser humano. Foucault
recusava-se a ser localizado pelo poder. Era próprio de sua filosofia questionar
essas formas de construções de identidade, que deslindam uma massa caótica para
distinguir indivíduos que serão assim mais facilmente controlados e disciplinados.
Em seu campo, segundo Maldidier (2003), Pêcheux também questionou a função
que a AD exerceu nos seus primórdios, quando o objeto privilegiado desta teoria era
“o discurso político, mais precisamente o discurso do aparelho; melhor ainda o
discurso comunista” (MALDIDIER, 2003, p. 75). Pêcheux se perguntava, na época,
se a AD não buscaria fazer a ortopedia do discurso político já tão sujeito a falhas.
___. Tempos Interessantes. Uma vida no século XX. Tradução de S. Duarte. São
Paulo. Cia. das Letras, 2002.
___. Terra à Vista. Discurso do Confronto: Velho e Novo Mundo. São Paulo: Cortez;
Campinas: Unicamp, 1990.
___. Papel da Memória. In: ACHARD, P. et al. Papel da Memória. Tradução José
Horta Nunes. Campinas, SP: Pontes, 1999.
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