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DOI 10.26512/lc.v26.2020.

29785

Artigo

Alfabetização crítica: contribuições de Paulo


Freire e dos novos estudos do letramento
Alfabetización crítica: contribuciones de Paulo Freire y de los nuevos
estudios de literacidad

Critical literacy: contributions of Paulo Freire and of the new literacy studies

Maria do Socorro Alencar Nunes Macedo


Universidade Federal de São João del-Rei, Brasil
Ana Caroline de Almeida
Centro Universitário Presidente Antônio Carlos, Brasil
Magda Dezotti
Universidade do Estado de Minas Gerais, Brasil

Recebido em: 02/03/2020


Aceito em: 09/10/2020

Resumo

O objetivo desse ensaio é refletir sobre a alfabetização de crianças buscando articular


duas perspectivas epistemológicas: a concepção de Paulo Freire sobre a educação e a
alfabetização e a teoria dos novos estudos do letramento (NEL), em circulação no país a
partir dos anos de 1990 do século XX. Ao buscar responder as perguntas “Que
alfabetização queremos para as crianças? Qual o sentido da alfabetização hoje?”,
nossas reflexões indicam que uma possível mudança nas práticas de alfabetização
passaria por uma transformação da escrita que circula na escola, aliada a uma
pedagogia da pergunta e do diálogo, como elementos fundantes da prática
pedagógica alfabetizadora.
Palavras-chave: Alfabetização crítica. Letramento. Paulo Freire. Pedagogia da pergunta.

Resumen

El propósito de este ensayo consiste en reflexionar sobre la alfabetización de los niños,


buscando articular dos perspectivas epistemológicas: la concepción de Paulo Freyre
sobre educación y alfabetización y la teoría de los nuevos estudios de literacidad (NEL)

1 - Linhas Críticas, Brasília, DF, v. 26 (2020), p. 1-17


que circulan en el país desde la década de los 90 del siglo XX. Al tratar de responder las
preguntas sobre ¿qué alfabetización queremos para niños, jóvenes y adultos y cuál es el
significado de la alfabetización hoy en día?, nuestras reflexiones indican que una posible
transformación de las prácticas de alfabetización pasaría por una transformación de la
escritura que circula en la escuela junto con una pedagogía de la pregunta y del
diálogo, como elementos fundadores de la práctica pedagógica alfabetizadora.
Palabras clave: Alfabetización crítica. Literacidad. Paulo Freire. Pedagogía de la
pregunta.

Abstract

This essay aims to reflect on children’s literacy by articulating two epistemological


perspectives: Paulo Freire's conception of education and literacy and the theory of new
literacy studies (NLS), circulating in Brazil since the 1990’s. Seeking to answer to the
questions “What literacy do we aim for children? What is the meaning of today’s
literacy?”, our discussions indicate that a possible change in the literacy practices would
go through a transformation of the writing that circulates in the school combined with a
questioning pedagogy and dialog as founding principles of literacy practice.
Keywords: Critical literacy. Literacy. Paulo Freire. Questioning pedagogy.

Introdução

As discussões sobre a alfabetização de crianças, jovens e adultos no Brasil sempre


estiveram em foco tanto na pesquisa quanto nas políticas educacionais. Dados oficiais
vêm mostrando ao longo de décadas o quanto os índices de analfabetismo, embora
tenham sofrido importante queda, ainda são altos. Do final do século XIX até final do
século XX, passamos de 17,7% de alfabetizados para 93% da população com 15 anos ou
mais de idade, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE, 2018). Houve avanços significativos, no entanto, considerando-se que a
educação e a alfabetização são um direito, ainda existem 11,5 milhões de analfabetos
no país, alijados do direito de aprender a ler e escrever. A situação agrava-se quando
consideramos as desigualdades regionais. Os dados mostram que os analfabetos estão
concentrados nas regiões Nordeste (14,5%) e Norte (8,0%). As menores taxas são do Sul e
Sudeste, que registraram 3,5% cada. No Centro-Oeste, o índice foi de 5,2%.

Temos ainda a última edição do Indicador de Alfabetismo Funcional (Ribeiro et al., 2015)
desenvolvido pelo Instituto Paulo Montenegro e pela ONG Ação Educativa, indicando
que houve um crescimento considerável na taxa de escolaridade da população nos
últimos anos, embora 30% continuem funcionalmente analfabeta e apenas 12% dos
adultos tenham um nível proficiente em leitura e escrita.

Diante disso perguntamo-nos: que alfabetização queremos para as crianças, jovens e


adultos? Qual o sentido da alfabetização hoje? São perguntas desafiadoras para as
quais não temos respostas prontas. Com base em mais de duas décadas de pesquisa
sobre a alfabetização de crianças realizadas por integrantes do Gpeale (Grupo de

Macedo, M. do S. A. N., Almeida, A. C. de, Dezotti, M. Alfabetização crítica… 2


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Pesquisa em Alfabetização, Linguagem e Decolonialidade), lançaremos mão de duas


perspectivas que podem, a nosso ver, contribuir para avançar a reflexão. Trata-se da
concepção de Paulo Freire sobre a educação e a alfabetização e a teoria dos novos
estudos do letramento (doravante NEL), em circulação no país a partir dos anos de 1990
do século XX. O objetivo desse ensaio, portanto, é refletir sobre a alfabetização
buscando articular essas duas perspectivas epistemológicas que em muito podem
contribuir para a pesquisa, a formulação de políticas públicas de educação e a prática
em sala de aula.

Paulo Freire e os NEL

Paulo Freire publica na década de 1970 a obra seminal Pedagogia do Oprimido


alcançando visibilidade internacional por propor uma pedagogia baseada no diálogo
em oposição à educação bancária que desconsidera os saberes e o contexto social,
cultural e histórico dos educandos. A partir daí observa-se que a categoria diálogo é
central em toda a extensa obra do autor:

O diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se
esgotando, portanto, na relação eu-tu. Esta é a razão por que não é possível o diálogo entre os que
querem a pronúncia do mundo e os que não querem; entre os que negam aos demais o direito de
dizer a palavra e os que se acham negados deste direito. (Freire, 1987, pp. 78-79)

Sua fala evidencia que o diálogo é mais que a relação de interação face-a-face e só
ocorre entre os que reconhecem o direito de todos dizerem sua palavra, de expressarem
sua voz, de pronunciar e anunciar o mundo na busca de se fazerem escutar.

Paulo Freire parte do entendimento do homem como um ser que se constitui na relação
com o outro, nas suas interações. E isso não significa compreendê-lo como um ser
limitado pelo seu contexto, por suas condições materiais. Ao contrário, desde a sua tese
de doutorado, Educação e Atualidade Brasileira, defendida em 1959, Freire já deixava
claro esse entendimento, ao cunhar o conceito de “dialogação” em oposição ao
conceito de “assistencialização”:

A “assistencialização” é o máximo de passividade do homem diante dos acontecimentos que o


envolvem. Opõe-se ao conceito nosso de “dialogação”, que coincide com o de
“parlamentarização” do professor Guerreiro Ramos. Enquanto na “assistencialização” o homem
queda mudo e quieto, na “dialogação” ou na “parlamentalização” o homem rejeita posições
quietistas e se faz participante. Interferente. (Freire, 2003, p. 28)

Relatando sua experiência de educação com operários ligados ao SESI (Serviço Social
da Indústria) nos anos de 1947 a 1957, Freire afirma que nunca impôs uma solução para
resolver qualquer situação problema, que o caminho sempre foi o diálogo, através do
qual se conhecia e se discutia a realidade. Essas discussões ocorriam em assembleias
com os líderes dos operários e se davam de forma verdadeiramente democrática:
“muitas vezes saímos vencidos em alguns dos pontos que defendíamos. Não só vencidos,

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mas, em alguns casos, convencidos” (Freire, 2003, p. 23). Vimos surgir na obra de Freire
uma “pedagogia da pergunta” que ele sistematizaria, mais claramente, no livro com
esse título, de 1985.

Em Pedagogia do oprimido o autor reflete acerca da educação “bancária”,


antidialógica, estando a serviço do sistema opressor. Uma educação que engendra
uma falsa visão do homem, na qual haveria uma dicotomia na relação homem-mundo,
como se os homens estivessem “simplesmente no mundo e não com o mundo e com os
outros”. Em oposição a essa ideia, ele aprofunda o conceito de diálogo:

Se é dizendo a palavra com que, “pronunciando” o mundo, os homens o transformam, o diálogo se


impõe como caminho pelo qual os homens ganham significação enquanto homens. Por isto, o
diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se solidariza o refletir e o agir de
seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um
ato de depositar ideias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a
serem consumidas pelos permutantes. (Freire, 1987, pp. 78-79)

É no diálogo que se concentra a possibilidade de que o homem se reconheça como um


ser com capacidade de interagir com o mundo e com os outros. O sujeito analfabeto,
foco da ação alfabetizadora, para Freire, “não é um homem perdido, o analfabetismo
não é uma chaga ou enfermidade”, é um homem que inserido na cultura escrita, não
aprendeu a ler e escrever (Freire & Macedo, 1990), visão completamente oposta à que
circula na sociedade, na mídia, na política pública, cuja erradicação do analfabetismo
assemelha-se à erradicação de uma doença. Ao contrário, é um sujeito que vive no
mundo, age sobre ele produzindo conhecimento, tem o que dizer na relação com o
outro, desde que seja uma relação de escuta.

Em Pedagogia da autonomia, dentre outras passagens, o autor reforça sua concepção


ao falar sobre a escuta:

Se, na verdade, o sonho que nos anima é democrático e solidário, não é falando aos outros, de
cima para baixo, sobretudo como se fôssemos os portadores da verdade a ser transmitida aos
demais, que aprendemos a escutar, mas é escutando que aprendemos a falar com eles. Somente
quem escuta paciente e criticamente o outro, fala com ele, mesmo que em certas condições,
precise falar a ele. O que jamais faz quem aprende a escutar para poder falar com é falar
impositivamente. Até quando, necessariamente, fala contra posições ou concepções do outro, fala
com ele como sujeito da escuta de sua fala crítica e não como objeto de seu discurso. (Freire, 1996,
p. 113)

Portanto, a educação libertadora que Freire defende tem como essência a


dialogicidade e precisaria fazer parte da relação professor-aluno, alfabetizador e
alfabetizando. Trata-se de uma educação que se estruture a partir da pergunta e não
em busca de oferecer respostas prontas aos alunos. Em diálogo, Freire & Foundez (1985,
p. 46) questionam a pedagogia tradicional, que se estrutura pela repetição e
memorização e afirmam que:

O que o professor deveria ensinar – porque ele próprio deveria sabê-lo – seria, antes de tudo, ensinar
a perguntar. Porque o início do conhecimento, repito, é perguntar. E somente a partir de perguntas
é que se deve sair em busca de respostas, e não o contrário.

Macedo, M. do S. A. N., Almeida, A. C. de, Dezotti, M. Alfabetização crítica… 4


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Mas o que Freire tem nos ensinado sobre a alfabetização? Como o autor pensa a
escrita? Freire (1987, p. 10) parte da ideia de que a alfabetização, assim como a
educação, é uma ação cultural para a transformação de si e da sociedade: “Talvez
seja esse o sentido mais exato da alfabetização: aprender a escrever a sua vida como
autor e como testemunha de sua história, isto é, biografar-se, existenciar-se, historicizar-
se”. Construir sua própria autoria, ter consciência do mundo em que vive e agir para
transformá-lo. Uma alfabetização nesta perspectiva concretiza-se na medida em que
toma como ponto de partida a prática social do educando seja ele criança, jovem ou
adulto. Afirma o autor:

Somente a alfabetização que, fundando-se na prática social dos alfabetizandos, associa a


aprendizagem da leitura e da escrita, como um ato criador, ao exercício da compreensão crítica
daquela prática, sem ter, contudo, a ilusão de ser uma alavanca da libertação, oferece uma
contribuição a este processo. (Freire, 1987, p. 50)

Tal perspectiva de alfabetização, que visa contribuir com o que Freire (1978, p. 94)
denomina processo de libertação, é bem definida também na obra Cartas à Guiné
Bissau como “conquista de sua palavra” e por isso mesmo não pode ficar alheia à
atividade produtiva e à cultura do povo, para “esclerosar-se na frieza sem alma de
escolas burocratizadas”. Freire destaca “a impossibilidade de tomá-la [a alfabetização]
em si mesma como se fosse viável realizá-la fora e acima da prática social” e discute seu
caráter político, “caráter que demanda dos educadores uma clareza crescente com
relação à sua opção política e uma coerência com esta opção, em sua prática”.

O mundo do educando é, portanto, o mundo da cultura no qual está inserido, com


todas as linguagens que o constitui, com a variedade de funções sociais que a escrita
desempenha neste contexto cultural. Tomadas dessa forma, a educação e a
alfabetização devem referenciar-se na cultura, como alerta Freire e Macedo (1990, p. 3
3): “Não se pode desenvolver um trabalho de alfabetização fora do mundo da cultura,
porque a educação é, por si mesma, uma dimensão da cultura”.

O objeto da alfabetização é a língua, compreendida por Freire como cultura e como


mediadora da apropriação do conhecimento: “A língua também é cultura. Ela é a força
mediadora do conhecimento; mas também é ela mesma conhecimento (Freire &
Macedo, 1990, p. 35). Aqui identificamos um princípio fundamental da sua concepção
de alfabetização: trata-se de um processo de apropriação de uma cultura, aquela que
envolve as práticas do ler e do escrever. Freire distancia-se, portanto, de uma visão
restrita da língua escrita que a identifica como um sistema, para alguns, um código, para
outros. Mais que um sistema abstrato, a língua é um conhecimento cultural cujo sentidos
são produzidos na cultura e não fora dela.

Questionando a concepção mecanicista de alfabetização em voga nos anos de 1960


(e até a atualidade) e a visão de que a alfabetização por si só promove a inserção dos
sujeitos no mundo do trabalho, Freire assevera:

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A concepção mecanicista de alfabetização veicula a ilusão de que “o analfabeto que aprende a
ler e escrever consegue um emprego […] A mera aprendizagem da leitura e da escrita não faz
milagres. Não é ela em si mesma, a que cria empregos. (Freire, 2006a, pp. 18-55)

E vai além: “Alfabetizar-se não é aprender a repetir palavras, mas a dizer a sua palavra,
criadora da cultura” (Freire, 2006a, p. 47). Ao contrário, a alfabetização é por ele
compreendida como um processo de constituição da autoria que se dá pelo diálogo e
não pela prática dissertadora: “Uma das características dessa educação dissertadora é
a “sonoridade” da palavra e não sua força transformadora” (Freire, 2006a, p. 105).

A vasta obra de Paulo Freire, nos revela, portanto, que o mote para as reflexões e críticas
deste pensador se assenta na complexidade da vida social e da atividade humana. A
divisão de classes, a relação de exploração entre opressores e oprimidos, a
desigualdade social, por exemplo, são elementos intrínsecos a essa atividade e sempre o
inquietaram. Assim como o inquietava também uma visão ingênua da educação e da
alfabetização, que pouco ou quase nada colaborava com a transformação dessa
realidade.

Desde a década de 1960, Freire já denunciava essa visão ingênua - um modelo de


educação que negava ao sujeito a sua condição de ser histórico e social e como tal, ao
mesmo tempo em que se apropria da cultura, também é produtor dela. A criança ou o
adulto, em processo de aprendizagem da língua escrita, eram tratados como uma
tábula rasa, onde seria possível “depositar” os conhecimentos dos quais eles
necessitariam. Freire já denunciava: “como seres passíveis e dóceis, pois que assim são
vistos e assim são tratados, os alfabetizandos devem ir recebendo aquela transfusão
alienante da qual, por isto mesmo, não pode resultar nenhuma contribuição ao processo
de transformação da realidade” (Freire, 2006a, p. 17).

Se a alfabetização não ocorre, portanto, por uma transfusão alienante, pela repetição
de sílabas e palavras, é no texto que Freire foca todo o processo ao defender que os
educandos devem ler e compor textos para expressar e construir sua autoria. Desse
modo, o autor chama a atenção para um dos elementos-chave da teorização dos
novos estudos do letramento, a ser discutida mais à frente: o texto. Compor livros com
autoria, compor textos com autoria, ser autor da própria alfabetização. Isso significa
abandonar a sílaba como um conhecimento da alfabetização? Certamente, não. Freire
(2006a, p. 73) considera, com base nas suas experiências de alfabetização de adultos,
que, quando os educandos:

[…] participam criticamente da decomposição das primeiras palavras geradoras associadas à sua
experiência quotidiana; quando percebem o mecanismo de combinações silábicas da sua língua
descobrem, finalmente, nas várias possibilidades de combinações, as suas próprias palavras.

O conhecimento da sílaba, nesta perspectiva, está a serviço da construção da palavra,


entendida aqui como autoria e não apenas como uma sequência de sons
representados por grafemas. Freire chega a indicar como deve ser o ambiente da sala
de aula de alfabetização. Sugere o autor que “As classes de leitura devem ser seminários

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de leitura”, evidenciando aqui a leitura como uma prática interativa, dialogada, com
função social, conforme defendem os NEL.

Consideramos que o modo como Freire entende a alfabetização é muito próximo do


conceito de letramento ideológico proposto pelos pioneiros dos NEL (Street, 1984; 2001;
2003; Heath, 1982; Barton & Hamilton, 2000). Os NEL, mais especificamente, designam
estudos sobre o letramento desenvolvidos a partir da perspectiva antropológica e
etnográfica de pesquisa. Esses estudos têm influenciado trabalhos desenvolvidos na
academia brasileira por pesquisadores que compreendem as práticas de leitura e
escrita para além da aquisição de um sistema de escrita em uma dada língua.
Pesquisadores que compreendem que questões ideológicas repousam nessas práticas e
que, portanto, elas devem se configurar como possibilidades de reflexão que trazem
implicações para políticas educacionais.

Brian Street, pioneiro na conformação deste campo, propõe o modelo de letramento


ideológico fundamentado numa concepção de escrita como uma prática social
permeada por relações de poder: “Argumento que o que as práticas e concepções
particulares de leitura e escrita são para uma dada sociedade, depende do contexto;
elas são envolvidas em ideologia, não podem ser isoladas ou tratados como uma
técnica neutra”1. (Street, 1984, p. 1).

Segundo esse modelo, a escrita não é um sistema neutro ou abstrato de normas, mas um
conhecimento constituído nos eventos de letramento (Heath, 1982) ou de alfabetização
(Almeida, 2020) dos quais os sujeitos que vivem numa sociedade letrada, participam.

Street esclarece que não há uma única forma de letramento, entendido por nós como a
escrita em uso. Relatando suas experiências etnográficas no Irã, afirma que observou
diferenças consideráveis entre o letramento comercial, letramento do alcorão,
letramento escolar. Ele ressalta que: “as pessoas podem estar envolvidas em uma forma
e não na outra, suas identidades podem ser diferentes, suas habilidades podem ser
diferentes, seus envolvimentos em relações sociais podem ser diferentes” (Street, 2010, p.
37).

Tal percepção implica no entendimento de que, muitas vezes, as decisões tomadas no


âmbito das políticas que envolvem programas de alfabetização em larga escala,
pretendem-se autônomas e desconsideram peculiaridades e características próprias de
determinados lugares. A crítica feita pelo autor é reportada a um modelo hegemônico
de letramento, no qual subjaz a ideia de que existe uma neutralidade no processo de
uso da escrita independentemente do contexto no qual ela aconteça, como se existisse
uma forma universal de ser letrado, bastando-se, para tanto, a aprendizagem de um
conjunto de técnicas. Para o pesquisador, esse modelo, que ele chama de autônomo,

1 I shall contend that what the particular practices and concepts of reading and writing are for a given
society depends upon the context; that they are already embedded in an ideology and cannot be
isolated or treated as ‘neutral’ or merely ‘technical’ (tradução das autoras)

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está vinculado ao estabelecimento de categorias classificatórias que distinguem pessoas
letradas das não letradas. Por isso é importante tratar o letramento numa abordagem
ideológica explícita. Nas palavras do autor:

É evidente que o letramento não pode ser estudado como uma tecnologia neutra, como no
modelo reducionista autônomo. Mas como uma prática social e ideológica, que inclui aspectos
fundamentais da epistemologia, do poder e da política: a aquisição do letramento implica
questionamentos sobre discursos dominantes, alterações na agenda da alfabetização, lutas por
poder e posições sociais. Neste sentido, as práticas letradas estão saturadas de ideologia. (Street,
2004, p. 90)

O autor esclarece, assim, que o letramento consiste nas formas que o engajamento
textual toma dentro de contextos materiais específicos da prática humana, que
envolvem relações e estruturas de poder, valores, crenças, objetivos e propósitos,
interesses, condições econômicas e políticas, e assim por diante. Diante do exposto, é
evidente que pode se compreender o porquê de o termo letramento ser empregado
pelo autor também no plural - letramentos. É do interior desse campo que Brian Street
formula o conceito de práticas de letramento em diálogo com o conceito de eventos
de letramento formulado por Heath (1982). Esclarece o autor:

Para Heath, o termo “eventos de letramento” se refere a “qualquer ocasião em um trecho de escrita
é essencial à natureza das interações dos participantes e a seus processos interpretativos” (Heath,
1982). O conceito de “práticas de letramento” se coloca num nível mais alto de abstração e se
refere igualmente ao comportamento e as conceitualizações sociais e culturais que conferem
sentido aos usos da leitura e/ou da escrita. As práticas de letramento incorporam não só “eventos de
letramento”, como ocasiões empíricas às quais o letramento é essencial, mas também modelos
populares desses eventos e as preocupações ideológicas que os sustentam. (Street, 2014, p. 18)

Na esteira dessas definições, David Barton e Mary Hamilton (2000) adotam os conceitos
de evento e de prática de letramento em seus estudos. Os autores também
estabelecem a relação entre os eventos de letramento e os textos de circulação social.
Estes são componentes fundamentais nos eventos de letramento e o estudo do
letramento é, em parte, o estudo do texto e de como ele é produzido e usado: “Textos
são uma parte crucial dos eventos de letramento e o estudo do letramento é
parcialmente um estudo dos textos e de como eles são produzidos e usados”2 (Barton &
Hamilton, 2000, p. 09).

Para esses autores, o conceito de prática de letramento, como uma prática social,
ultrapassa o senso comum de que seria o que as pessoas fazem com a escrita, what
people do with literacy, pois envolve aspectos do comportamento humano que nem
sempre podem ser objetivamente observáveis, mas que permeiam os eventos, tais como
valores, atitudes, sentimentos, relações pessoais. Esses aspectos estão relacionados a
ideologias, identidades sociais, às relações de poder.

A ideia de letramentos que explicitamos em Street (2010) também é compartilhada por


Barton e Hamilton (2000) ao afirmarem que existem diferentes letramentos associados

2Texts are a crucial part of literacy events and the study of literacy is partly a study of texts and how they
are produced and used. (tradução das autoras)

Macedo, M. do S. A. N., Almeida, A. C. de, Dezotti, M. Alfabetização crítica… 8


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aos diferentes domínios da vida, por exemplo, a casa, a escola, o local de trabalho. As
atividades que acontecem no interior desses domínios são configurações particulares
das práticas de letramento nas quais os participantes atuam em vários eventos. De
acordo com Barton e Hamilton as práticas de letramento são modeladas por instituições
sociais como a escola, por exemplo, que contribuem para dar suporte às práticas de
letramentos dominantes, uma vez que algumas são mais visíveis e influentes do que
outras. Eles chamam a atenção para o fato de que os estudos sobre as práticas de
letramento devem situar as atividades de leitura e de escrita em contextos mais amplos,
visto que as pessoas se apropriam dos textos com objetivos próprios e em contextos
históricos situados podendo ser modificadas conforme a época e a sociedade.

A aproximação entre essas concepções e a visão de Paulo Freire sobre a alfabetização


é bastante evidente. A escrita como prática social, marcada por ideologia, situada num
contexto cultural, constituída na interação entre os sujeitos mediada por textos, guarda
semelhanças com o que Freire pensa sobre a escrita. Essa aproximação foi realizada em
artigo publicado por Bartlett e Macedo (2015). As autoras explicitam pontos de
convergência das duas perspectivas uma vez que para Freire a escolarização e a
alfabetização não são neutras, mas um ato político que exige das instituições o
conhecimento do aluno e o respeito pelos seus saberes e pela sua cultura, tendo entre
seus princípios o elo crítico entre a reflexão-ação e o diálogo como uma importante
ferramenta na mediação dos saberes sobre a escrita.

O reconhecimento acerca das contribuições de Paulo Freire e de outros estudiosos para


a perspectiva dos Novos Estudos do Letramento também é destacado por Colin
Lankshear (1999). Discorrendo sobre as contribuições transdisciplinares ao estudo
sociocultural da linguagem e do letramento na grande divisão, o autor relaciona uma
série de movimentos que teriam alavancado a virada social chegando aos Novos
Estudos do Letramento, entre eles estão a etnometodologia, a sociolinguística
interacional, a etnografia da comunicação, a psicologia sócio-histórica baseada no
trabalho de Vygotsky e seus pares, os estudos de Bakhtin e o trabalho de Paulo Freire.
Acerca deste último, ele comenta:

Além dessas influências do 'movimento de virada social', outras notáveis influências sobre o
paradigma sociocultural emergente incluíram o trabalho de Paulo Freire no Brasil e outros cenários
do Terceiro Mundo da década de 1960, e o trabalho realizado na “nova” sociologia da educação
durante a década de 1960. 1970s. A "pedagogia do oprimido" de Freire (Freire 1972, 1973, 1974)
denunciou explicitamente reduções psicológicas-tecnicistas da alfabetização, insistindo em vez disso
que "Palavra" e "Mundo" estão dialeticamente ligados, e que a educação para a libertação
envolvia relacionar Palavra e Mundo dentro de uma práxis cultural transformadora. Freire afirmou a
impossibilidade de a alfabetização realizer-se fora da prática social e, consequentemente, fora dos
processos de criação e manutenção ou recriação de mundos sociais. Para Freire, as questões
cruciais dizem respeito aos tipos de mundos sociais que os homens criam por meio de suas práticas
mediadas pela linguagem, os interesses promovidos e subvertidos e a opção histórica de promover a
educação como um instrumento de libertação ou opressão. (Lankshear, 1999, s.p.)

Lankshear destaca a importância de Paulo Freire, especialmente no que tange à


Pedagogia do Oprimido, por ser uma obra que denuncia o reducionismo das tendências

9 - Linhas Críticas, Brasília, DF, v. 26 (2020), p. 9-17


psicologistas-tecnicistas da alfabetização, defende que palavra e mundo estão
dialeticamente ligados e que a educação para a libertação não pode se dar fora das
práticas sociais. Street (2014, p. 36) também admite que ele foi “o militante mais influente
e radical do letramento”.

Freire defendeu a inseparabilidade entre a leitura da palavra e a leitura do mundo,


contribuindo assim para uma abordagem social e política da alfabetização e do
letramento numa perspectiva critica. Decorrente da compreensão do homem como um
ser histórico, que se constitui na relação com o outro, temos todo um modo de
compreensão da vida, da educação, da concepção de língua/linguagem e de
alfabetização sintonizados, implicando na consciência de que não existe neutralidade
na educação, mas que toda educação é um ato político e pedagógico.

Alfabetização e a escolarização crítica da leitura e da escrita

Embora a escola seja o lugar de promoção da alfabetização e do letramento, a


escolarização pode não ser garantia de que isso ocorra, em especial, quando ela é
proposta na perspectiva do modelo autônomo de letramento questionado por Street e
na visão mecânica da alfabetização, criticada por Freire. As críticas demonstram que
nem o letramento e nem a alfabetização de uma população estão vinculados apenas à
escolarização, bem como o letramento, a alfabetização e a escolarização não são
sinônimas de ascensão social.

Por muito tempo o analfabetismo foi encarado como uma “erva daninha” ou como
uma “enfermidade”, que precisaria ser erradicado, pois acarretava, entre outras coisas,
“baixos níveis de civilização” de determinadas sociedades. Sendo o analfabetismo
encarado desta forma, temos que

A alfabetização, assim, se reduz ao ato mecânico de depositar palavras, sílabas e letras nos
alfabetizandos. Este depósito seria suficiente para que os alfabetizandos começassem a afirmar-se,
uma vez que, em tal visão se emprestaria à palavra um sentido mágico. (Freire, 1978. p. 13)

Dessas e outras reflexões feitas pelo autor resulta o anúncio de uma educação
libertadora e crítica. Paulo Freire postula que mais que escrever e ler a “asa é da ave”,
“os alfabetizandos necessitam perceber a necessidade de um outro aprendizado: o de
escrever a sua vida, o de ler a sua realidade, o que não será possível se não tomam a
história nas mãos para, fazendo-a, por ela serem feitos e refeitos.” (Freire, 1978, p. 16).
Nesta concepção crítica, o analfabetismo não é encarado como uma chaga, nem
uma erva daninha, a ser erradicada, nem tampouco uma enfermidade, “mas das
expressões concretas de uma realidade social injusta”, não se tratando, portanto, de um
problema estritamente linguístico, nem exclusivamente pedagógico ou metodológico,
mas político.

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Graff (1995) tece críticas às tentativas da Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) de avaliar os níveis de letramento e de
alfabetização dos países, principalmente por associá-los ao desenvolvimento
econômico e individual das pessoas, uma vez que não há uma relação de causa e
efeito. O autor cita como exemplo o caso da Suécia, país que atingiu a alfabetização
geral da população desde o séc. XVIII, com a determinação do rei Carlos XI e o apoio
da igreja, que tomava a leitura do catecismo de Lutero: o protestante só poderia
receber os sacramentos da igreja e se casar se soubesse ler a bíblia. Esse processo não
teve qualquer relação com o letramento escolar ou com processos de escolarização,
como pressupõem os princípios da UNESCO ao conceber sua proposta de alfabetização
e letramento vinculando-a totalmente à escolarização.

Analisando os resultados das avaliações realizadas pelo Instituto Nacional de


Alfabetismo Funcional (INAF), em 2001, Britto (2004) critica o discurso hegemônico e o
modelo autônomo de letramento. Para ele a alfabetização deve se dar dentro de uma
perspectiva crítica semelhante à que Street concebe no modelo ideológico e ao que
Freire defende na sua obra. O autor destaca, ainda, que o letramento não seria a causa
da posição social dos indivíduos, mas a consequência:

A análise comparativa do nível de alfabetismo com a classe socioeconômica, o grau de instrução e


o tipo de atividade profissional demonstram que são essas circunstâncias que contribuem para o
letramento, e não o contrário. Em outras palavras, a condição de maior ou menor domínio de
habilidades de leitura e escrita e o exercício de atividades dessa natureza é antes o resultado da
situação social que a possibilidade de maior participação. (Britto, 2004, p. 56)

Assim, diríamos, como escreve Freire, que mesmo tomando a alfabetização num sentido
global, mais abrangente,

[Ela] jamais deve ser compreendida como sendo, por si só, a deflagradora da emancipação social
das classes subalternas. A alfabetização conduz a uma série de mecanismos deflagradores, dos
quais participa, os quais devem ser ativados para a transformação indispensável de uma sociedade
cuja realidade injusta destrói a maior parte do povo. (Freire & Macedo, 1990, p. 120)

Cabe-nos perguntar, diante dessas reflexões, como a escolarização da leitura e da


escrita pode se dar numa perspectiva crítica tal como defendida por Freire e pelos NEL?
Como essa escolarização pode contribuir para uma alfabetização na qual os sujeitos
dominem não apenas o sistema de escrita, mas conheçam e usem a escrita com suas
funções sociais, reconhecendo as relações de poder que lhes são constitutivas e ajam
no sentido da transformação da sociedade?

Street, ao refletir sobre o processo de apropriação de práticas letradas na escola,


defende uma perspectiva crítica para o ensino da leitura e da escrita, na mesma
direção apontada por Freire, quando questiona a alfabetização mecânica, baseada
numa educação bancária. Afirma o autor que:

Todo letramento é aprendido num contexto específico e as modalidades de aprendizagem, as


relações sociais dos estudantes com o professor são modalidades de socialização e aculturação. O

11 - Linhas Críticas, Brasília, DF, v. 26 (2020), p. 11-17


aluno está aprendendo modelos culturais de identidade e personalidade, não apenas a decodificar
a escrita e escrever com determinada caligrafia. Se, esse é o caso, então, deixar o processo crítico
para depois que eles tiverem aprendido vários dos gêneros letrados usados na sociedade é
descartar, talvez para sempre, a socialização de uma perspectiva crítica. (Street, 2014, p. 54)

Para Freire a leitura não se esgota (e nem pode se esgotar) na decodificação da


palavra escrita, mas se antecipa e se alonga na inteligência do mundo. E, embora não
tenha empregado o termo letramento (uma vez que esse termo só foi cunhado nos anos
de 1990), é evidente sua preocupação com uma alfabetização como prática social
permeada por uma visão critica da realidade em que os sujeitos estão inseridos. É por
isso que afirma que não basta dizer que Ivo viu a uva ou que A viúva viu a uva, pois é
necessário saber quem produziu a uva, qual o preço da uva, quem lucrou com essa
produção. Nessa mesma perspectiva ele declara:

Para mim seria impossível engajar-me num trabalho de memorização mecânica dos ba-be-bi-bo-bu,
dos la-le-li-lo-lu. Daí que também não pudesse reduzir a alfabetização ao puro ensino da palavra,
das sílabas ou das letras. Ensino cujo processo o alfabetizador fosse “enchendo” com suas palavras
as cabeças supostamente “vazias” dos alfabetizandos. (Freire, 2006b, p. 19)

Pensar a escola, como um local privilegiado (embora não seja o único) para o
aprendizado da alfabetização das práticas letradas, significa pensar nas concepções
que são materializadas por meio do que e do como a escola ensina a leitura e a escrita.
Refutar concepções tradicionais de alfabetização e assumir a perspectiva crítica
apontada por Freire (2006a) e Street (2014), significa mudar as bases de ensino que
constituem a cultura escolar. A possibilidade de o letramento ser o eixo norteador dos
currículos, contribui com a transformação da cultura escrita na escola, uma vez que as
práticas sociais que demandam o uso da escrita é que seriam o ponto de partida para o
processo de ensino e aprendizagem.

Assim, consideramos relevantes as reflexões de Ribeiro (2004, como citado em Mortatti,


2004) sobre o modo como o letramento pode constituir e nortear o currículo escolar e,
desse modo, contribuir para uma ampliação da concepção de escrita que norteia a
prática docente alfabetizadora:

[…] o letramento pode ser tomado como um importante eixo articulador de todo o currículo da
educação básica. Entretanto, o vigor do conceito de letramento para a reflexão pedagógica não
reside apenas no reconhecimento da centralidade da leitura e da escrita no interior da própria
escola, mas principalmente no fato de que ele instiga os educadores – e a sociedade de maneira
geral – a refletir sobre a relação entre a cultura escolar e a cultura no seu conjunto, sobre as relações
entre os usos escolares e os demais usos sociais da escrita. (Ribeiro, 2004, como citado em Mortatti,
2004, p. 116)

Desse modo, pensar a alfabetização de crianças a partir dos princípios dos NEL e da
concepção de alfabetização de Freire implica em se repensar não apenas o modo
como a língua escrita circula nas práticas escolares, mas, sobretudo, qual língua escrita
e que reflexões (ou diálogos) ela possibilita. Pesquisas etnográficas têm mostrado que a
escrita que circula nas turmas de alfabetização ainda é muito distante daquela que
circula na sociedade (Almeida, 2012; Macedo et al., 2017; Almeida, 2020). Trata-se de
uma escrita produzida na escola e para a escola, os textos são artificiais, selecionados

Macedo, M. do S. A. N., Almeida, A. C. de, Dezotti, M. Alfabetização crítica… 12


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por serem curtos, grande parte extraídos dos livros didáticos. As atividades de ensinar a
ler e escrever tomam como referência predominante a análise de silabas soltas e de
palavras selecionadas com o objetivo de se ensinar as famílias silábicas, as letras e os
fonemas.

Evidencia-se, assim, que a alfabetização da soletração, da repetição, sem autoria, tão


discutida e questionada por Freire, ainda está presente nas escolas, que ainda não
articulam a escrita que aí circula, com questões relevantes para uma formação crítica e
emancipatória para os sujeitos que se alfabetizam. Evidencia-se que as reflexões
derivadas dos NEL que tomam a escrita como uma prática social ainda não arranharam
a cultura escolar, a despeito de várias políticas públicas terem buscado enfatizar o
papel do texto no processo de alfabetização3. Tais práticas distanciam-se não apenas
da escrita como uma prática social e cultural, mas, sobretudo, do sujeito aluno e sua
cultura, sua experiência de vida, sua relação com a escrita. Vista dessa forma, a
alfabetização suprime o elemento fundante da pedagogia de Freire: o diálogo. A
criança submetida a essas práticas é apenas mais um aluno numa sala de aula, sem
rosto e sem voz, uma tábula rasa na qual sílabas, fonemas e palavras são impressos. A
prática docente, baseada numa escrita como um sistema abstrato de normas, é apenas
um objeto estranho, não coincide com o que a criança observa e vê os adultos usando
na sociedade. Não coincide com o que o adulto analfabeto conhece da escrita, da
sua função social, da relação de poder que ele sabe existir no uso dessa ferramenta
cultural, da consciência que ele tem de a alfabetização ser um fator de distinção social,
de separação entre quem sabe e quem não sabe, quem pode e quem não pode.

Desse ponto de vista, uma possível transformação das práticas de alfabetização


passaria por uma transformação da escrita que circula nesse espaço social e da
formulação de metodologias adequadas ao trabalho com essa ferramenta cultural.
Ferramenta essa que circula não apenas em suportes impressos, mas virtualmente, de
modo cada vez mais diverso.

Mais do que isso, passa pela transformação da relação professor-aluno, tomando o


diálogo como elemento fundante da prática pedagógica. Um diálogo, como defende
Freire, que envolva a escuta dialógica, no qual o aluno perceba que sua voz, o que diz e
pensa, será constitutiva da sua alfabetização, da relação que vai estabelecer com a
escrita. Um processo no qual ele possa escrever sendo autor de seus textos (e não
apenas copiar a escrita de outrem). Há pesquisas evidenciando o quanto essa proposta
pode fazer a diferença na educação dos sujeitos, como as realizadas por Smolka (1988),
Goulart e Wilson (2013), Tibúrcio (2014), Macedo (2005).

3Vide os textos do PRO-LETRAMENTO, do PNAIC (Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa), dos
PCN (Parâmetros Currículares Nacionais) e do PROFA (Programa de Formação de Professores
Alfabetizadores).

13 - Linhas Críticas, Brasília, DF, v. 26 (2020), p. 13-17


Considerações finais

Neste ensaio buscamos articular o pensamento de Freire sobre a alfabetização com a


teoria do letramento formulada pelos fundadores do campo do NEL. Freire deu grande
contribuição aos estudos do letramento como uma prática social de modo que torna-se
importante para o avanço da pesquisa em educação colocar em diálogo essas duas
formas de conceber a alfabetização.

Reinventar Freire, colocando suas ideias em articulação com outras teorias sobre a
alfabetização é, precisamente, buscar concretizar uma das muitas lições que nos deixou
quando questionado sobre a aplicação das suas ideias na educação ao redor do
mundo: “[…] a única maneira que alguém tem de aplicar, no seu contexto, algumas das
proposições que fiz, é exatamente refazer-me, quer dizer, não seguir-me. Para seguir-me,
o fundamental é não seguir-me” (Freire & Foundez, 1985, p. 41).

Num contexto em que a Política Nacional de Alfabetização (PNA) apresenta grande


retrocesso em relação a todo o acúmulo científico já produzido nos centros e grupos de
pesquisas no Brasil (Macedo, 2019; Mortatti, 2019), referendando uma concepção
ultrapassada de língua escrita e de alfabetização baseada na memorização de
fonemas, torna-se urgente o diálogo com teorias que questionem as limitações e
restrições impostas pela PNA. Para que o processo de formação de professores e de
ensino-aprendizagem das crianças avance na direção do trabalho com a escrita
enquanto ferramenta cultural e uma alfabetização crítica nos moldes defendidos por
Freire, precisamos resistir à imposição desta política pública que impõe sério retrocesso à
alfabetização das crianças.

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20Tiburcio.pdf

Biografia

Maria do Socorro Alencar Nunes Macedo

Doutora em educação pela UFMG. Pós doutorado pelo King’s College e pela
Goldsmiths, University of London. Coordenadora do GPEALE. Grupo de Pesquisa em
Alfabetização, Linguagem e Colonialidade. Professora dos Programas de Pós-
Graduação em Educação da UFSJ e da UFPE. Bolsista produtividade do CNPq.
E-mail: socorronunes@ufsj.edu.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3103-3203

Ana Caroline de Almeida

Doutora em educação pela UFPE. Atua no GPEALE - Grupo de Pesquisa em


Alfabetização, Linguagem e Colonialidade. Professora do Centro Universitário de Lavras -
Unilavras e Centro Universitário Presidente Antônio Carlos. Pesquisadora da área de
alfabetização e letramento e colaboradora no projeto de pesquisa Alfabetização em
Rede: uma investigação sobre o ensino remoto da alfabetização na pandemia Covid-19
e da recepção da PNA pelos docentes da Educação Infantil e Anos Iniciais do E. F.
E-mail: anacaroline@unipac.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8062-0696

Macedo, M. do S. A. N., Almeida, A. C. de, Dezotti, M. Alfabetização crítica… 16


DOI 10.26512/lc.v26.2020.29785

Magda Dezotti

Doutora em educação pela UFPE. Atua nos seguintes Grupos de pesquisa: Grupo de
Pesquisa em Alfabetização, Linguagem e Colonialidade - GPEALE; Núcleo de Estudos e
Pesquisas em Educação e Linguagem - NEPEL; Grupo de Estudo e Pesquisa sobre
Profissão e Formação Docente. Pesquisadora da área de alfabetização e letramento,
colaboradora no projeto Alfabetização em Rede: uma investigação sobre o ensino
remoto da alfabetização na pandemia Covid-19 e da recepção da PNA pelos docentes
da Educação Infantil e Anos Iniciais do E. F.
E-mail: magda.dezotti@hotmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4080-1673

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Commons Attribution 4.0.

17 - Linhas Críticas, Brasília, DF, v. 26 (2020), p. 17-17

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