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Padre Ambrósio de

Lombez, O.F.M. Cap.


(1708-1778)

Tratado da alegria
da alma cristã

1ª edição
Brasília-DF
2010
© 2010 Editora Pinus
www.editorapinus.com.br

Todos os direitos reservados.

Título Original:
Traité de la joie de l’âme chrétienne.

Tradução (realizada a partir da edição publicada por Éditions du Sel


em setembro de 2007):
Luciana Almeida

Capa e diagramação:
Yara Borghi Campi

Imagem da capa:
Fachada da Igreja Notre-Dame de Paris.
crédito: mensatic e priyanphoenix/morguefile

Lombez, Ambroise, O.F.M. Cap.


Tratado da alegria da alma cristã / Ambroise de Lombez, O.F.M.
Cap. ; tradução de Luciana Almeida. — 1. ed. — Brasília : Ed.
Pinus, 2010.
p.

Traduzido de: Éditions du Sel.

ISBN 978-85-63176-03-5

1. Ascética cristã. 2. Espiritualidade cristã.


3. Misticismo cristão. 4. Teologia ascética cristã.
5. Teologia mística cristã. I. Almeida, Luciana.
II. Título.
CDU 27-788-35
CDU 27-585
CDU 27-587
Sumário
Prefácio ........................................................................04
Advertência ..................................................................08
• I. A alegria é boa e louvável ............................................ 09
• II. A alegria é útil ............................................................... 13
• III. A alegria é necessária ao homem .............................. 15
• IV. Deus deseja que vós estejais sempre alegres ........... 18
• V. Pois todos os santos se regozijaram........................... 30
• VI. Meios para conservar sempre a alegria .................. 34
Manter-se na justiça ................................................................... 34
Ocupar seu espírito com aquilo que pode alegrar o coração ... 34
Pedir encarecidamente a alegria a Deus ................................. 45
O amor de Deus e o fervor no seu serviço .............................. 47
Colocar-se, por meio de um desprendimento completo,
na verdadeira liberdade ............................................................ 48
Nunca assumir tarefas demais ................................................. 50
Contentar-se com pouco............................................................ 52
A confiança em Deus ................................................................. 54
• VII. Males que causa a tristeza ....................................... 58
• VIII. Onde se responde às objeções das almas tristes... 62
• IX. Remédios para a tristeza ........................................... 87
• X. Reflexões e sentimentos sobre a alegria.................... 95
• XI. Continuação das reflexões e dos sentimentos
sobre a alegria ................................................................. 102
• XII. Continuação das reflexões e dos sentimentos
sobre a alegria ................................................................. 107
Prefácio
Dos grandes danos que nascem da tristeza1

E
Esteja muito longe de ti a tristeza, diz o Sábio, porque a tristeza
a muitos tem causado a morte, e não há nela proveito algum2.
Cassiano escreve um livro inteiro sobre o espírito da tris-
teza, porque para curar, diz, e remediar este mal e enfermidade,
não é necessário menor cuidado e diligência que para as demais
enfermidades e tentações espirituais que se nos oferecem nesta
vida, pelos muitos e grandes danos que traz consigo, os quais vai
ali apontando e fundando-os admiravelmente na Sagrada Escri-
tura. Guardai-vos, diz ele, da tristeza; não a deixeis entrar no vos-
so coração, porque, se lhe dais entrada, e se começa a assenho-
rear-se de vós, logo vos tirará o gosto da oração, e fará que vos
pareça dilatada a hora que se lhe dedica, e que não a cumprais
inteiramente, e algumas vezes fará com que totalmente fiqueis
sem oração, e que deixeis a leitura espiritual3.
Em todos os exercícios espirituais vos dará um tédio e um
fastio que os não podereis suportar. Por causa do tédio dormitou
minha alma4. Neste verso, diz Cassiano, declara muito bem o
profeta estes males que se seguem da tristeza. Não diz que
se lhe adormeceu o corpo, mas a alma; porque a tristeza e a
acídia espiritual dão à alma um tão grande tédio e fastio de
todos os exercícios e de todas as obras de virtude, que fica
adormecida e incapaz para tudo o que é bom. Algumas vezes
é tão grande este fastio que um sente para as coisas espiritu-
ais, que o chegam a enfadar e aborrecer as pessoas que tratam
de virtude e de perfeição, e até às vezes procura retraí-las e
estorvá-las de seus exercícios de piedade e virtude.
Ainda tem outro efeito a tristeza, diz Cassiano, e é que tor-
na o homem desabrido e áspero para com os irmãos. Diz S.
Gregório: A tristeza traz consigo ira e enfadamento5.
1 
Pe. Afonso Rodrigues. Exercício de Perfeição e Virtudes Cristãs, Segunda Parte, Tomo
IV, 3ª ed. Lisboa: União Gráfica, 1933, p. 157.
2 
Tristitiam longe repelle a te, multos enim occidit tristitia, et non est utilitas in illa.
Eccli. XXX, 24.
3 
Cass. 1. 9 instit. renunt.
4 
Dormitavit anima mea prae taedio. Sl. CXVIII, 28.
5 
Tristis ex propinquo habet iram. Mor. 1. 31, c. 32.

44 Tratado da alegria da alma cristã


E assim experimentamos que, quando estamos tristes, fa-
cilmente nos zangamos e enfadamos por qualquer coisa. A
tristeza faz o homem impaciente nas coisas que trata, fá-lo
suspeitoso e malicioso; e às vezes perturba ao homem de tal
modo, que parece lhe tira o juízo, e o faz sair fora de si con-
forme aquilo do Eclesiástico: Onde há amargura, não há juízo6. E
assim vemos muitas vezes que, quando reinam em um a tris-
teza e a melancolia, tem umas apreensões tão fora de razão, e
umas suspeitas e temores tão sem fundamento, que aos outros
que estão em seu juízo costumam causar riso, e disso fazem
pratinho nas conversas, como de loucuras.
E temos visto alguns homens gravíssimos, de grandes le-
tras e talentos, tão presos e dominados desta paixão que era
grande lástima vê-los umas vezes chorar como crianças e ou-
tras vezes dar suspiros e gemidos tão descompassados que
mais pareciam bramidos. E depois quando estão em seu juízo,
e sentem que lhes quer vir esta loucura, que assim se pode
chamar, fecham-se no seu quarto, para suspirarem e chora-
rem a sós, sem perigo de perderem a sua autoridade e opinião
para com aqueles que os vissem fazer tais coisas.
Se quereis saber de raiz os efeitos e danos que a tristeza
causa no coração, diz Cassiano, o Espírito Santo no-lo diz bre-
vemente pelo sábio: O que faz a traça no vestido e o caruncho
e a carcoma na madeira, isto mesmo faz a tristeza no coração do
homem7. O vestido roído pela traça não vale nem pode servir
para nada; o madeiro cheio de carcoma não presta para o edi-
fício, nem se pode colocar sobre ele peso algum, porque logo
se faz em pedaços. Assim também o homem cheio de melan-
colia, triste e carrancudo, faz-se inútil para tudo o que é bom.
E não pára aqui o mal; mas o pior é que a tristeza no coração
é causa e raiz de muitas tentações e de muitas quedas. A mui-
tos matou a tristeza8, fazendo-os cair em pecados. Para prova
disso trazem aquilo que diz o santo Jó acerca de demônio, que
dorme na sombra9. Nessa sombra e escuridão, nessas névoas e
trevas dessa confusão que tendes, quando estais triste, aí dor-
6 
Non est sensus, ubi est amaritudo. Eccli. XXI, 15.
7 
Sicut tinea vestimento, et vermis ligno, ita tristitia viri nocet cordi. Prov. XXV, 20.
8 
Multos enim occidit tristitia. Eccli. XXX, 23.
9 
Sub umbra dormit. Job. XL, 16.

Padre Ambrósio de Lombez O.F.M. Cap.


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me e se esconde o demônio; esse é o seu ninho e o seu covil; aí
arma ele melhor as suas redes; essa é a disposição que ele está
aguardando para acometer com quantas tentações quer.
Assim como as serpentes e bestas feras estão esperando
que chegue a escuridão da noite para saírem das suas covas,
assim o demônio, serpente antiga, está esperando essa noite e
escuridão da tristeza, e então acomete com toda a espécie de
tentações10. Têm preparadas suas setas na aljava para na escuridão
ferirem aos de coração reto11.
Dizia S. Francisco de Assis que o demônio se alegra muito
quando vê um homem de coração triste, porque tão facilmen-
te o afoga na tristeza e na desesperação ou o leva para os pra-
zeres mundanos. Note-se muito essa doutrina, pois é de suma
importância. Ao que anda triste e melancólico, umas vezes o
demônio o faz cair numa grande desconfiança e desesperação,
como fez a Caim e a Judas; outras vezes, quando lhe parece
que por aí não faz boa entrada, acomete-o com deleites mun-
danos de divertimentos e vaidades; outras vezes com prazeres
carnais e sensuais, com pretexto de que com aquilo se livrará
da pena e tristeza que o aflige. E daqui vem que, quando um
está triste, lhe costumam vir graves tentações contra a voca-
ção, porque lhe representa o demônio que lá no mundo vive-
ria alegre e contente: e a alguns tem tirado já da Religião esta
tristeza e melancolia.
Outras vezes o demônio costuma acometer ao homem tris-
te trazendo-lhe pensamentos carnais e desonestos que dão
gosto à sensualidade e procurando que se detenha neles com
pretexto de que assim lançará de si a tristeza e se aliviará o seu
coração. Isso é coisa muito para temer nos que andam tristes
e melancólicos, porque neles costumam ser muito ordinárias
essas tentações. E isso mesmo adverte muito bem S. Gregó-
rio. Diz ele que, como todo homem deseja naturalmente ter
algum gosto e contentamento, quando o não acha em Deus,
nem nas coisas espirituais e do céu, logo o demônio, que sabe
muito bem a nossa inclinação, lhe apresenta coisas sensuais e
desonestas, e lhe oferece gosto e contentamento nelas, com as
10 
Posuisti tenebras, et facta est nox: in ipsa pertransibunt omnes bestiae silvae. Sl.
CIII, 20.
11 
Paraverunt sagittas suas in pharetra, ut sagittent in obscuro rectos corde. Sl. X, 3.

66 Tratado da alegria da alma cristã


quais lhe parece que se mitiga e alivia a tristeza e a melancolia
presentes. Ficai sabendo, diz o Doutor, que se não tendes con-
tentamento e gosto nas coisas altas e de Deus, o ireis buscar
nas coisas baixas e vis, porque o homem não pode viver sem
algum contentamento e satisfação12.
Enfim, são tantos os males e danos que nascem da triste-
za, que diz o Sábio: Com a tristeza vêem todos os males13; e nou-
tra parte: A tristeza apressa a morte14, e até dá a morte eterna,
que é o inferno. Assim declara S. Agostinho aquilo que disse
Jacó a seus filhos: Com a dor que me causais levareis minhas cãs
ao inferno15. Diz que temeu Jacó não fizesse tanta impressão
e causasse nele tanto dano a tristeza de ficar sem o seu filho
Benjamim, que lhe pusesse em dúvida a salvação, e desse com
ele no inferno dos condenados. E por isso diz que nos avisa
o apóstolo S. Paulo que fujamos da tristeza, para que não su-
ceda talvez que com a tristeza demasiada venhamos a perder
nossa alma16. Por serem tão grandes os danos da tristeza, por
isso é que nos previne e avisa tanto a Sagrada Escritura e os
Santos que fujamos e que nos acautelemos dela. Não é pela
vossa consolação, nem pelo vosso gosto, pois se não houvesse
mais que isso, pouco importava que estivésseis triste ou ale-
gre. E pela mesma razão deseja e procura tanto o demônio que
nos domine a tristeza, porque sabe que é a raiz e a causa de
muitos males e pecados.

12 
Sine delectatione anima nunquam potest esse, nam aut infimis delectatur, aut
summis. Mor. 1. 18, c. 8.
13 
Omnis plaga tristitia cordis est. Eccli. XXV, 17.
14 
A tristitia enim festinat mors. Eccli. XXXVIII, 19.
15 
Deducetis canos meos cum dolore ad inferos. Gen. XLII, 38.
16 
II Cor. II, 7.

Padre Ambrósio de Lombez O.F.M. Cap.


77
Advertência

A
Após haver dissipado as perturbações que por ve-
zes vos desolam, alma cristã, eu consagro o pouco
de tempo e de forças que me restam para combater
a tristeza que poderia ainda lançar-vos no abatimento, a fim
de que não somente a paz de Deus, mas também sua alegria,
habitem em vós para sempre.
Alegrai-vos no Senhor, alegrai-vos nele em todos os mo-
mentos; ele vos convida a essa santa alegria; ele vos mostra os
meios mais próprios a estabelecê-la em vosso coração. Esse é
todo o prefácio e o plano desta obra.
Eu a fiz pouco volumosa, pois desejo que vós a tenhais con-
sigo, a fim de ter sempre em vossas mãos um antídoto contra a
tristeza, que é o veneno mortal de nossas almas.17 Escrevo em
um estilo simples e familiar, para não perder tempo escolhen-
do e dispondo palavras, o que poderia tornar meu estilo mais
exato, mas que não tornaria meu livro mais útil. A alegria não
tolera nada de artificial e de complicado; a maneira de falar da
alegria deve ser simples e natural como ela. Eu não tenho de
me desculpar junto ao público pelo fato de que, tendo trans-
mitido máximas de virtude e ensinado uma mortificação exa-
ta, venho agora inspirar a alegria.
Um autor estimável sob todos os pontos de vista acreditou
dever fazer sua apologia em um caso semelhante, e eu, que cer-
tamente não tenho seu mérito, não creio que deva imitá-lo.
Não há nada mais natural do que fazer vir a alegria e o
entusiasmo na sequência da virtude, da qual ela é fruto. A ale-
gria é filha da paz. A tristeza não foi jamais uma virtude; ela
diminuiria em vez de aumentar o preço de nossos sacrifícios.
Deus, diz o Apóstolo,18 ama aquele que dá com alegria. Nada
honra mais o seu jugo do que a serenidade no semblante da-
queles que suportam todo o seu peso.

17 
Tristitiam longe repelle a te, multos enim occidit tristitia. Eclo 30, 24-25.
18 
Hilarem enim datorem diligit Deus. II Cor 9, 7.

88 Tratado da alegria da alma cristã


‹I›
A alegria é boa e louvável
I. A alegria é, depois da virtude e da paz das quais ela é
fruto, o maior bem do homem neste mundo. O Sábio o disse:
depois de ter considerado todas as ocupações dos homens e
aquilo que é o objeto das suas buscas e de seu zelo; depois de
ter eu mesmo experimentado tudo o que eles mais louvam,
os prazeres, a opulência e a glória, eu reconheci que não ha-
via nada melhor no mundo do que se regozijar praticando o
bem.19 A virtude e a alegria são, pois, dois bens intimamente
unidos; e separá-los é uma distorção extrema.
Fazer o mal e se alegrar é atitude própria dos ímpios, que
as paixões envolvem com suas trevas, impedindo-os de dis-
cernir os caminhos da justiça e da felicidade verdadeira. Elas
os mergulham em uma espécie de embriaguez que lhes dá
entusiasmo ao mesmo tempo em que lhes faz perder o uso da
razão.20 Fazer o bem e não se alegrar é o destino de um selva-
gem coberto de ouro, de diamantes e de pérolas, dos quais ele
não conhece o preço, e que não sente nenhum prazer na sua
posse; mas fazer o bem e saborear as doçuras da alegria é a
felicidade do homem sábio.
II. Há uma alegria natural, mas inocente, que é um dom do
céu, um fruto precioso da paz com Deus, um consolo entre as
misérias desta vida, e algumas vezes até mesmo um socorro
para a virtude abatida, que se levanta por meio desse degrau.
Desfrutai dos bens que a natureza vos deu e daqueles que
vós haveis conquistado pelo vosso trabalho, eles são todos
presentes da Providência.21 É dela que vós haveis recebido as
vossas heranças e o talento para aumentá-las, e o uso dos dons
de Deus não pode ser vicioso, desde que nos contenhamos
nos limites que ele prescreve.
19 
Cognovi quod non esset melius, nisi laetari et facere bene in vita sua. Ecle 3, 12.
20 
Qui reliquunt iter rectum, et ambulant per vias tenebrosas; qui laetantur cum mala
fecerint, et exultant in rebus pessimis. Prov 2, 13-14.
21 
Omnis enim homo qui comedit et bibit, et videt bonum de labore suo, hoc donum Dei est.
Ecle 3, 13.

Padre Ambrósio de Lombez O.F.M. Cap.


99
O uso desses bens deve necessariamente trazer alegria ao
coração do homem, sem a qual eles não seriam mais verdadei-
ros bens, e sim cargas onerosas. A alegria é, pois, um prazer
legítimo, e sobretudo aquela que temos em Deus. É a vossa
melhor partilha nesta vida, se vós a passais seguindo os seus
desígnios.22 É um presente da sua bondade, do qual vós não
deveis suspeitar, e o qual não deveis negligenciar. É uma moe-
da com a qual ele gratifica os vossos serviços, fazei-a valer, ele
vos acrescentará cem vezes mais. O ouro, as pérolas e todas as
riquezas da natureza e da arte, as relações com os amigos, os
acontecimentos felizes, só são preciosos ao homem pela im-
pressão de alegria que provocam. Sem essa impressão agra-
dável, o ouro seria como o chumbo; os amigos seriam como
pessoas indiferentes, e todos como libações feitas a um ídolo.
De que importa uma oferenda em relação à qual ele é incapaz
de qualquer sentimento ou gosto?23
III. Não vos entregueis a uma alegria desenfreada e a um
humor pilhérico; isso é um excesso que Deus condena; e é com
base nesse excesso que se devem entender os trechos das Sa-
gradas Escrituras nos quais a alegria é tratada como uma lou-
cura. Mas uma alegria moderada, grave e reservada é um dos
maiores favores com os quais apraz ao Senhor recompensar a
virtude ainda nesta vida.24
IV. Não permitais que a vossa alegria, mesmo natural, con-
sista no uso imoderado de bens perecíveis. Deus deseja que
vós sejais sóbrios em tudo.25 E somente essa sobriedade na
fruição vos fará encontrar um verdadeiro prazer nesses bens.
O uso excessivo acende as paixões, e as paixões são insaciá-
veis. Esse uso, assim como o do vinho, excita a sede que ele
deveria satisfazer. É apenas domando suas paixões que o ho-
mem alcança a paz da alma e a alegria do coração.
V. Essa alegria que vós encontrais no uso moderado dos
bens terrestres, mas honestos, ainda não é aquela que cons-
22 
Deprehendi nihil esse melius, quam laetari hominem in opere suo; et hanc esse partem illius.
Ecle 3, 22.
23 
Quid proderit libatio idolo? Nec enim manducabit, nec odorabit. Eclo 30, 19.
24 
Homini bono in conspecto suo dedit Deus sapientiam et scientiam et laetitiam. Ecle 2, 26.
25 
Sobrii estote. Nos qui diei sumus sobrii simus. 1 Pe 5, 8. I Tes 5, 8.

10
10 Tratado da alegria da alma cristã
titui o objeto principal do meu livro. Esta é completamente
celeste e divina; e aquela, embora inocente, é natural e hu-
mana. Aquela é do homem, e esta do cristão. Aquela está
em parte nos sentidos, nos quais encontra sua fonte, e dos
sentidos flui para o coração, onde ela entra pela metade. Esta
nasce no coração e aí se mantém, e só se comunica com o
exterior por sua superabundância. Uma é sujeita a alterações
contínuas, como os bens que a geram e a mantêm; a outra é
sólida e permanente como a virtude da qual ela nasce. Uma
pode ser perturbada por nossos inimigos visíveis ou invi-
síveis; mas, quanto à outra, ninguém além de nós mesmos
pode tirá-la de nós. Ela é como uma participação na felici-
dade dos bem-aventurados, que será tanto constante como
sem fim.26 É por isso que se diz aos cristãos, com muito mais
fundamento do que aos filósofos antigos, que ninguém além
de nós mesmos pode nos tornar infelizes.27 Enquanto nós es-
tamos contentes e alegres e o nosso contentamento é sensa-
to, nós somos felizes. Aquilo que nós chamamos de tristezas
não o são até o momento em que nos fazem perder a alegria.
Estivéssemos nós na pior das misérias, não seríamos miserá-
veis se nós estivéssemos contentes pela nossa sorte, e é assim
que devemos estar sempre. Uma alma suficientemente cristã
e sensata o bastante não se perturba jamais pelos acidentes
da vida, nos quais ela reconhece a direção da divina provi-
dência, sempre adorável e sempre amável, posto que ela visa
sempre o nosso maior bem.
VI. Eu não me detenho em provar que a verdadeira felici-
dade não consiste no gozo dos prazeres sensíveis, dos bens
terrestres, da glória humana, porque eu escrevo para pes-
soas convencidas dessa verdade. Elas aborrecem as alegrias
grosseiras, e sua infelicidade consiste apenas no desconheci-
mento de si e do tesouro que está guardado em seu coração.
Elas perdem o maior de todos os bens, e se tornam, por sua
aflição, as mais infelizes entre os homens. Elas devem dizer
com o profeta:

26 
Gaudium vestrum nemo tollet a vobis. Jo 16, 22.
27 
Nemo laeditur nisi a seipso. [Ninguém é ferido senão por si mesmo.]

Padre Ambrósio de Lombez O.F.M. Cap.


11
11
A minha alma recusa toda a consolação;
mas não acrescentam com ele:
Ao recordar-me de Deus, gemo [de alegria].28
Elas não buscam nada além de Deus, não desejam nada
além dele, e desde então o possuem; mas não sabem desfrutar
desse bem infinito, nem saborear a paz profunda e santa que
ele transmite à alma.29
VII. Os maus não podem saborear nenhuma alegria ver-
dadeira; ela é completamente reservada às almas justas.
Ainda que os primeiros tenham a religião em seu coração,
por meio de quantos remorsos pungentes ela não perturba a
sua alegria e seus prazeres! Se eles não têm religião alguma,
ou se sufocaram seu grito, de tanto reprimi-lo, seu estado
deve provocar horror, longe de ser digno de inveja. E, de
resto, sua alegria, podendo existir apenas em sua imagina-
ção inflamada e em seus sentidos agitados, e não no fundo
de um coração tranquilo, é completamente turbulenta e está
longe de ser a verdadeira alegria. A justiça de Deus, que os
persegue com suas ameaças e pelas inquietações que pro-
voca neles, não os permite desfrutar do doce repouso em
meio aos seus prazeres mais sensíveis. Eles riem e se ale-
gram por fora, enquanto o sofrimento e o pavor os pertur-
bam por dentro; é a alegria de Baltazar, que canta no meio
de um festim, enquanto Deus imprime em seu coração e tra-
ça diante de seus olhos, em caracteres visíveis, a sentença
de sua condenação.30 Se Deus, por meio de um justo, mas
terrível julgamento, permite que em seu endurecimento eles
provem alguma espécie de repouso, é o sono de Sísara,31 que
geralmente não tem outro fim, como aquele do general dos
exércitos de Azor, a não ser por uma morte trágica e mais
amiúde ainda por uma morte eterna.

28 
Renuit consolari anima mea; memor fui Dei, et delectatus sum. Sal 76, 3.
29 
Fructus spiritus est gaudium, pax, etc. Gál 5, 22.
30 
Dan 5,24.
31 
Jui 4, 17-22.

12
12 Tratado da alegria da alma cristã

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