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Tratado da alegria
da alma cristã
1ª edição
Brasília-DF
2010
© 2010 Editora Pinus
www.editorapinus.com.br
Título Original:
Traité de la joie de l’âme chrétienne.
Capa e diagramação:
Yara Borghi Campi
Imagem da capa:
Fachada da Igreja Notre-Dame de Paris.
crédito: mensatic e priyanphoenix/morguefile
ISBN 978-85-63176-03-5
E
Esteja muito longe de ti a tristeza, diz o Sábio, porque a tristeza
a muitos tem causado a morte, e não há nela proveito algum2.
Cassiano escreve um livro inteiro sobre o espírito da tris-
teza, porque para curar, diz, e remediar este mal e enfermidade,
não é necessário menor cuidado e diligência que para as demais
enfermidades e tentações espirituais que se nos oferecem nesta
vida, pelos muitos e grandes danos que traz consigo, os quais vai
ali apontando e fundando-os admiravelmente na Sagrada Escri-
tura. Guardai-vos, diz ele, da tristeza; não a deixeis entrar no vos-
so coração, porque, se lhe dais entrada, e se começa a assenho-
rear-se de vós, logo vos tirará o gosto da oração, e fará que vos
pareça dilatada a hora que se lhe dedica, e que não a cumprais
inteiramente, e algumas vezes fará com que totalmente fiqueis
sem oração, e que deixeis a leitura espiritual3.
Em todos os exercícios espirituais vos dará um tédio e um
fastio que os não podereis suportar. Por causa do tédio dormitou
minha alma4. Neste verso, diz Cassiano, declara muito bem o
profeta estes males que se seguem da tristeza. Não diz que
se lhe adormeceu o corpo, mas a alma; porque a tristeza e a
acídia espiritual dão à alma um tão grande tédio e fastio de
todos os exercícios e de todas as obras de virtude, que fica
adormecida e incapaz para tudo o que é bom. Algumas vezes
é tão grande este fastio que um sente para as coisas espiritu-
ais, que o chegam a enfadar e aborrecer as pessoas que tratam
de virtude e de perfeição, e até às vezes procura retraí-las e
estorvá-las de seus exercícios de piedade e virtude.
Ainda tem outro efeito a tristeza, diz Cassiano, e é que tor-
na o homem desabrido e áspero para com os irmãos. Diz S.
Gregório: A tristeza traz consigo ira e enfadamento5.
1
Pe. Afonso Rodrigues. Exercício de Perfeição e Virtudes Cristãs, Segunda Parte, Tomo
IV, 3ª ed. Lisboa: União Gráfica, 1933, p. 157.
2
Tristitiam longe repelle a te, multos enim occidit tristitia, et non est utilitas in illa.
Eccli. XXX, 24.
3
Cass. 1. 9 instit. renunt.
4
Dormitavit anima mea prae taedio. Sl. CXVIII, 28.
5
Tristis ex propinquo habet iram. Mor. 1. 31, c. 32.
12
Sine delectatione anima nunquam potest esse, nam aut infimis delectatur, aut
summis. Mor. 1. 18, c. 8.
13
Omnis plaga tristitia cordis est. Eccli. XXV, 17.
14
A tristitia enim festinat mors. Eccli. XXXVIII, 19.
15
Deducetis canos meos cum dolore ad inferos. Gen. XLII, 38.
16
II Cor. II, 7.
A
Após haver dissipado as perturbações que por ve-
zes vos desolam, alma cristã, eu consagro o pouco
de tempo e de forças que me restam para combater
a tristeza que poderia ainda lançar-vos no abatimento, a fim
de que não somente a paz de Deus, mas também sua alegria,
habitem em vós para sempre.
Alegrai-vos no Senhor, alegrai-vos nele em todos os mo-
mentos; ele vos convida a essa santa alegria; ele vos mostra os
meios mais próprios a estabelecê-la em vosso coração. Esse é
todo o prefácio e o plano desta obra.
Eu a fiz pouco volumosa, pois desejo que vós a tenhais con-
sigo, a fim de ter sempre em vossas mãos um antídoto contra a
tristeza, que é o veneno mortal de nossas almas.17 Escrevo em
um estilo simples e familiar, para não perder tempo escolhen-
do e dispondo palavras, o que poderia tornar meu estilo mais
exato, mas que não tornaria meu livro mais útil. A alegria não
tolera nada de artificial e de complicado; a maneira de falar da
alegria deve ser simples e natural como ela. Eu não tenho de
me desculpar junto ao público pelo fato de que, tendo trans-
mitido máximas de virtude e ensinado uma mortificação exa-
ta, venho agora inspirar a alegria.
Um autor estimável sob todos os pontos de vista acreditou
dever fazer sua apologia em um caso semelhante, e eu, que cer-
tamente não tenho seu mérito, não creio que deva imitá-lo.
Não há nada mais natural do que fazer vir a alegria e o
entusiasmo na sequência da virtude, da qual ela é fruto. A ale-
gria é filha da paz. A tristeza não foi jamais uma virtude; ela
diminuiria em vez de aumentar o preço de nossos sacrifícios.
Deus, diz o Apóstolo,18 ama aquele que dá com alegria. Nada
honra mais o seu jugo do que a serenidade no semblante da-
queles que suportam todo o seu peso.
17
Tristitiam longe repelle a te, multos enim occidit tristitia. Eclo 30, 24-25.
18
Hilarem enim datorem diligit Deus. II Cor 9, 7.
10
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titui o objeto principal do meu livro. Esta é completamente
celeste e divina; e aquela, embora inocente, é natural e hu-
mana. Aquela é do homem, e esta do cristão. Aquela está
em parte nos sentidos, nos quais encontra sua fonte, e dos
sentidos flui para o coração, onde ela entra pela metade. Esta
nasce no coração e aí se mantém, e só se comunica com o
exterior por sua superabundância. Uma é sujeita a alterações
contínuas, como os bens que a geram e a mantêm; a outra é
sólida e permanente como a virtude da qual ela nasce. Uma
pode ser perturbada por nossos inimigos visíveis ou invi-
síveis; mas, quanto à outra, ninguém além de nós mesmos
pode tirá-la de nós. Ela é como uma participação na felici-
dade dos bem-aventurados, que será tanto constante como
sem fim.26 É por isso que se diz aos cristãos, com muito mais
fundamento do que aos filósofos antigos, que ninguém além
de nós mesmos pode nos tornar infelizes.27 Enquanto nós es-
tamos contentes e alegres e o nosso contentamento é sensa-
to, nós somos felizes. Aquilo que nós chamamos de tristezas
não o são até o momento em que nos fazem perder a alegria.
Estivéssemos nós na pior das misérias, não seríamos miserá-
veis se nós estivéssemos contentes pela nossa sorte, e é assim
que devemos estar sempre. Uma alma suficientemente cristã
e sensata o bastante não se perturba jamais pelos acidentes
da vida, nos quais ela reconhece a direção da divina provi-
dência, sempre adorável e sempre amável, posto que ela visa
sempre o nosso maior bem.
VI. Eu não me detenho em provar que a verdadeira felici-
dade não consiste no gozo dos prazeres sensíveis, dos bens
terrestres, da glória humana, porque eu escrevo para pes-
soas convencidas dessa verdade. Elas aborrecem as alegrias
grosseiras, e sua infelicidade consiste apenas no desconheci-
mento de si e do tesouro que está guardado em seu coração.
Elas perdem o maior de todos os bens, e se tornam, por sua
aflição, as mais infelizes entre os homens. Elas devem dizer
com o profeta:
26
Gaudium vestrum nemo tollet a vobis. Jo 16, 22.
27
Nemo laeditur nisi a seipso. [Ninguém é ferido senão por si mesmo.]
28
Renuit consolari anima mea; memor fui Dei, et delectatus sum. Sal 76, 3.
29
Fructus spiritus est gaudium, pax, etc. Gál 5, 22.
30
Dan 5,24.
31
Jui 4, 17-22.
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