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ANÁLISE DE NARRATIVAS JORNALÍSTICAS SOBRE


O ENSINO REMOTO DURANTE A PANDEMIA DE
COVID-19
Joana Sobral Milliet1
Mirna Juliana Santos Fonseca2
Kelly Maia Cordeiro3

RESUMO
O texto analisa como matérias jornalísticas, veiculadas de março a dezembro de 2020 por dois jornais de
ampla circulação no país, abordaram a situação do ensino remoto nas escolas brasileiras. A análise realizada
nesta pesquisa descreve como o acesso, domínio das tecnologias e questões pedagógicas são abordadas nas
matérias selecionadas, com base na análise de conteúdo dessas narrativas. O discurso majoritário depreende
que o acesso à internet e o treinamento para o uso das tecnologias seriam suficientes para realizar com
sucesso a educação remota, confirmando o determinismo tecnológico que pautava as discussões em relação à
melhoria da educação desde antes da pandemia.
Palavras-chave: Educação; Ensino remoto; Matérias jornalísticas; Tecnologia.

INTRODUÇÃO

No Brasil, em março de 2020, a maioria das escolas do país foi fechada para evitar a
disseminação de Covid-19. A situação no mundo não era diferente. No início de abril, 84% dos
estudantes de 172 países estavam sem aulas presenciais, de acordo com a Unesco (2020). Aqui, a
pandemia se tornou bastante grave com um elevado número de pessoas contaminadas e mortes
decorrentes da doença, ocasionadas, principalmente, pela falta de planejamento e coordenação do
governo federal, que impactou negativamente na condução de políticas sanitárias nacionais.

Nesse contexto, a maioria das escolas públicas, onde estudam 81% dos estudantes
brasileiros (Brasil, 2020), terminou o ano letivo de 2020 sem o retorno das aulas presenciais. De
acordo com a Undime (2021), 69,8% das redes de educação dizem ter concluído o calendário letivo
de 2020 até dezembro, sendo que para 91,9% destas, o calendário foi cumprido apenas com
atividades pedagógicas não presenciais. Essas redes relataram que as principais estratégias de
atividades pedagógicas não presenciais adotadas em 2020 foram, em primeiro lugar, a distribuição

1
Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Mestra em Educação pela
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Integrante do Grupo de Pesquisa, Educação e Mídia
(Grupem/PUC-Rio).
2
Doutora em Educação pela PUC-Rio, onde realiza estágio de pós-doutorado como Bolsista Faperj Nota 10. É vice-
coordenadora do Grupem/PUC-Rio.
3
Doutora em Educação pela PUC-Rio e Mestra em Educação pela Unirio. Integrante do Grupem/PUC-Rio e professora
da Rede Municipal de Ensino de Angra dos Reis-RJ.

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de material impresso por 95,5% das escolas, depois a orientação pelo WhatsApp para 92,9% e para
61,3% as videoaulas gravadas (Undime, 2021).

Essas estratégias refletem a dificuldade de conexão à internet, já que mesmo com a


expansão da internet nos domicílios brasileiros após a pandemia, observada na pesquisa do
CETIC.Br de 2020, 17% dos domicílios não possuem acesso à internet, proporção que chega a 35%
na área rural e a 32% na faixa de menor renda, como informa o Núcleo de Informação e
Coordenação do Ponto BR (2021). Também estão relacionadas à falta de dispositivos, já que o
celular foi o principal dispositivo utilizado por alunos na educação remota, tendo que ser
compartilhado com outros membros da família (LIMA, 2020).

ABORDAGEM METODOLÓGICA

Para entender como a educação durante a pandemia foi apresentada pelos jornais,
escolhemos os dois jornais mais lidos em 2020, em âmbito nacional: O Globo (OG) e Folha de São
Paulo (FSP). Realizamos a pesquisa nos acervos on-line de cada um deles, considerando matérias
publicadas dentro do período de 16 de março até 31 de dezembro de 2020, com o descritor “ensino
remoto”. Foram encontradas 157 menções ao termo no OG e 233 na FSP. Por trazerem recortes
muito amplos, com matérias tratando de questões governamentais, ordenamentos legislativos ou
situações locais, escolhemos as matérias publicadas em editoriais específicos: Sociedade no OG (17
matérias) e Educação na FSP (22 matérias). Realizamos a leitura das 39 matérias, com reportagens
ou entrevistas com especialistas, com base na análise de conteúdo (Bardin, 2011). Destas, foram
deletadas 3 por não tratarem especificamente do foco de nossa pesquisa.

ENSINO REMOTO PELO OLHAR DAS MATÉRIAS

Acesso à internet
As matérias abordam a falta de conexão à internet, a falta de equipamentos e a ausência de
espaço adequado para o estudo, além da falta de informação das famílias sobre as formas de acesso
aos formatos de ensino utilizados. Em geral, a maioria das matérias abordam questões relativas às
escolas privadas, já que esse é o público que consome esses jornais. No entanto, quando o assunto é
problema de acesso, aparecem somente casos de escolas públicas, corroborando os dados que
demonstram a desigualdade no acesso à internet e equipamentos no país.

As matérias citam, ainda, as tentativas dos governos locais de viabilizar o acesso: ajuda
para professores comprarem equipamentos, criação de aplicativos que não consomem dados,

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transmissão de aulas pela TV e rádio. É abordado também o fato de não ter havido qualquer ação ou
coordenação do governo federal com o intuito de promover acesso dos estudantes às aulas remotas.
As matérias mostram que para as escolas públicas a distribuição de material impresso foi a principal
solução encontrada. No segundo semestre de 2020, quando escolas particulares começaram a
retomar o ensino presencial no modelo híbrido, algumas matérias abordaram essa questão. O foco,
no entanto, recai sobre as formas de utilização das ferramentas tecnológicas no modelo híbrido, sem
ênfase nas questões pedagógicas.

Domínio das tecnologias


Sobre o domínio das tecnologias, as matérias focam mais nos professores do que nos
estudantes, destacando os problemas dos docentes com relação ao domínio das plataformas e dos
aplicativos indicados pelas redes de ensino para aulas on-line. A questão do domínio por parte dos
estudantes sequer é levantada, sendo os mais jovens vistos como usuários plenos das tecnologias.

As práticas dos professores estão sempre em primeiro plano, sendo ressaltado como essa
classe profissional venceu seus medos e preconceitos em meio a pressões de toda ordem. De acordo
com as matérias, a pandemia fez com que os professores se reinventassem como educadores. Essa
reinvenção foi possível após os docentes investirem em autoformação sobre tecnologia, realizada
sem orientação pedagógica e de acordo com suas necessidades; muitas vezes essa formação ocorreu
através de trocas com colegas mais experientes.

As poucas vezes em que os jornais mencionam alguns problemas relacionados ao ensino


remoto, referem-se ao fato dos estudantes não possuírem a autonomia que o ensino a distância
exige, a importância da escola como ambiente socializador, o esforço de estudar sozinho, as
dificuldades contato com todos os estudantes e manter o mesmo ritmo na aprendizagem.

O tom das matérias é de que a pandemia permitiu adiantar uma “revolução na educação”,
promovida pelo uso das tecnologias. Porém, enquanto diretores dizem que as lives são informativas,
formadoras, pois estimulam a participação de uma forma diferente da sala de aula, os alunos as
consideram como um momento que não permite interação.

Questões pedagógicas
No início da reformulação educacional, para dar continuidade às aulas durante a pandemia,
a tecnologia aparece como a principal solução encontrada. Porém, com o avançar dos dias, logo se
percebe que o acesso a todos da internet é um problema que inviabiliza essa escolha. Com as
desigualdades começando a se sobressaírem, outros formatos para o ensino são impulsionados,
material impresso e videoaulas são incorporados.

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Dado os novos modelos educacionais e o destaque para o ensino remoto, nas matérias
analisadas os especialistas apontam para o futuro da educação um formato em que o repensar
estratégias, tempos, modos de aprendizagens, ambiente escolar tanto no presencial, quanto no
virtual, é um caminho que a educação não pode fugir à discussão.

Para estudantes e professores que utilizam aulas remotas destaca-se o baixo domínio das
TICs, como um desafio que perpassa todos os segmentos da educação e o enfrentamento às
questões emocionais, pois tanto estudantes quanto professores foram afetados durante a pandemia.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Pesquisas realizadas durante o ensino remoto apontam para questões que não aparecem nas
matérias desses dois grandes jornais, como o uso excessivo das tecnologias por estudantes e
professores, a falta de domínio das ferramentas por crianças e jovens, entre outras. Como relatamos,
a ênfase das matérias é na falta de domínio das ferramentas por professores. No entanto, pesquisas e
relatos de professores e estudantes têm mostrado questões relativas às dificuldades de letramentos
midiáticos dos estudantes, como, por exemplo, na realização de pesquisas na internet. Achamos que
essa abordagem das matérias dos jornais talvez tenha como pano de fundo a concepção de nativos
digitais, cunhada por Mark Prensky (2001). Apesar de pesquisas mais recentes (Pereira et al., 2019;
Heinsfeld; Pischetola, 2019) sobre as práticas terem mostrado que há, na maioria dos casos, entre as
gerações mais novas, apenas habilidades instrumentais e técnicas no manuseio e uso das TIC, ainda
hoje há uma crença disseminada na ideia de que alunos são nativos digitais.

Outra questão não apontada pelas matérias é o uso de dados dos usuários e vigilância pelo
uso de plataformas privadas. Com a obrigatoriedade do uso de grandes plataformas privadas como
Google Classroom e Microsoft Teams, surgem diversas questões importantes que não aparecem nas
abordagens desses grandes jornais. Questões relativas ao uso da imagem e materiais produzidos
pelos professores para alimentar as plataformas; dados de navegação dos usuários captados pelas
plataformas que servem como forma de vigilância constante dos alunos e também dos professores
pelas instituições, além de prover lucro para essas grandes corporações (Poell et al, 2020; Pretto et
al, 2020). Segundo Morozov (2018), na era do capitalismo “dadocêntrico”, as chamadas big techs,
empresas gigantes da tecnologia, como Google e Microsoft convertem todos os aspectos da nossa
existência como trabalho, escola e lazer em ativos rentáveis através do uso de nossos dados. Esse
tipo de questão central quando se fala em ensino remoto sequer foi mencionada nas matérias.

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Com um ano atípico e de flexibilização do calendário escolar, as escolas foram orientadas
a manter de alguma forma as atividades pedagógicas. As notícias expressam as mudanças ocorridas
no período, com depoimentos de estudantes, pais, professores e especialistas na área. Pouco se fala
da aprendizagem de crianças e jovens. As matérias citam questões que afetam diretamente a
aprendizagem, como a evasão escolar, por exemplo, mas não problematizam isso de forma
específica.

Os jornais também não abordaram questões relacionadas à importância do letramento


midiático de professores e estudantes. Se as relações sociais, estudo e trabalho passaram a acontecer
através das telas, além do conhecimento técnico sobre as mídias, passou a ser de fundamental
importância um olhar crítico sobre esses meios através do letramento midiático (MILLIET, 2022).

REFERÊNCIAS
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.
BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Censo da educação básica
2019: resumo técnico. Brasília, DF, 2020.
HEINSFELD, B. D.; PISCHETOLA, M. O discurso sobre tecnologias nas políticas públicas em educação. Educação e
Pesquisa, São Paulo, v. 45, p. 1-18, 2019.
LIMA, A. L. D. I. Retratos da Educação no contexto da pandemia do coronavírus: um olhar sobre múltiplas
desigualdades. São Paulo: Centro de Referências em Educação Integral, 2020.
MILLIET, J. S. Ensino remoto emergencial e letramentos midiáticos de professores na pandemia de Covid-19.
181 p. Tese (Doutorado em Educação) – PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2022.
MOROZOV, E. Big tech: a ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu Editora, 2018. 192 p.
NÚCLEO DE INFORMAÇÃO E COORDENAÇÃO DO PONTO BR (NIC.br) (org.). TIC Domicílios 2020: pesquisa
sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos domicílios brasileiros. São Paulo: Comitê Gestor da
Internet no Brasil, 2021.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA (Unesco).
Education: from disruption to recovery. 2020.
PEREIRA, S.; FILLOL, J.; MOURA, P. El aprendizaje de los jóvenes con medios digitales fuera de la escuela: de lo
informal a lo formal. Comunicar, Huelva, v. 27, n. 58, p. 41, 2019.
POELL, T.; NIEBORG, D.; DIJCK, J. Van. Plataformização. Fronteiras: Estudos Midiáticos, v. 22, n. 1, p. 2-10,
2020.
PRENSKY, M. Digital natives, digital immigrants In: PRENSKY, Marc. On the horizon. MCB: University press, vol.
9, n.5. outubro 2001.
PRETTO, N. D. L.; BONILLA, M. H. S.; SENA, I. P. F. de S. Educação em tempo de pandemia: reflexões sobre as
implicações do isolamento físico imposto pela Covid-19. Salvador: Edição do autor, 2020. 18 p.
UNIÃO NACIONAL DOS DIRIGENTES MUNICIPAIS DE EDUCAÇÃO (Undime). Pesquisa Undime sobre volta
às aulas. Brasília, 2021.

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