Você está na página 1de 8

UNIVERSIDADE FEDERAL DO VALE DO SÃO FRANCISCO

CURSO DE BACHARELADO EM ANTROPOLOGIA

MICAEL RODRIGUES GONÇALVES SILVA

SÃO RAIMUNDO NONATO- PIAUÍ


2022
MICAEL RODRIGUES GONÇALVES SILVA

GIOCONDA MUSSOLINI: TRAJETÓRIA E CONTRIBUIÇÃO FEMININA


PARA A ANTROPOLOGIA BRASILEIRA

Verbete desenvolvido para apresentar na


Universidade Federal do Vale do São
Francisco - UNIVASF, Campus Serra da
Capivara, como requisito para conclusão da
disciplina de Teoria e História da
Antropologia Brasileira.
Docente : Prof.º e Drº Rainer Miranda de
Brito.

SÃO RAIMUNDO NONATO-PIAUÍ


2022
  O silenciamento de manifestações femininas devido ao machismo estrutural
que é enraizado no Brasil se fez capaz de tornar como enigma o trabalho, pesquisa e
ações acadêmicas de uma das pioneiras na Antropologia Brasileira.O intuito desse
artigo é abordar a trajetória de Gioconda Mussolini e sua contribuição e impacto nos
estudos antropológicos no Brasil.
         Filha de imigrantes italianos, Gioconda Mussolini nasceu em São Paulo no dia
15 de novembro de 1913, a terceira de sete filhas cresceu no bairro Bom Retiro
juntamente com sua família sendo sua infância de classe baixa, embora tenha o
mesmo sobrenome que o famoso ditador italiano Benito Mussolini,Gioconda não
tinha nenhum grau de parentesco com o mesmo. Sua escolaridade foi na rede pública
de ensino,onde anos depois se formou em Pedagogia.
         Com a influência de franceses e a necessidade de desenvolver uma universidade
com uma dimensão significativa,entre 1930 a 1934 houve a missão francesa com o
intuito de criar a então renomada USP - Universidade de São Paulo, dentre os cursos
ofertados o primeiro foi Filosofia, porém Gioconda optou por estudar Sociologia, área
essa que não era muito preterido pelas mulheres. Os primeiros professores da USP
eram homens franceses, dentre eles antropólogos que são pilares das primeiras
pesquisas antropológicas, como Claude Lévi-Strauss que foi professor e
consequentemente amigo de Gioconda, vale ressaltar que ela era fluente em francês e
isso contribuiu de forma significativa dentro da academia.
         Concluindo o curso em 1938, Gioconda foi convidada para lecionar na USP,
sendo professora de Ciências Sociais assim que concluiu seu mestrado em 1945,
intitulado : Os meios de defesa contra a moléstia e a morte em duas tribos brasileiras:
Kaingang de Duque de Caxias e Bororó Oriental, sendo assim a mesma se tornou
professora e propulsora das manifestações antropológicas em um período onde o país
passava pelo regime militar, Gioconda foi professora de Florestan Fernandes,
antropólogo brasileiro que se dedicou a estudar o racismo e a desigualdade brasileira
no século XX, conta-se que em um momento onde Florestan ia sendo sequestrado
pelos militares devido a opressão da ditadura, Gioconda se frustra e afirma que o ser
humano não tinha evoluído, devido sua insatisfação com o periodo em que o país
passava ela saiu do Brasil a convite de Lévi-Strauss para ir pra França passar um
período de aprendizagem com o mesmo.
         A agência de Gioconda como professora foi marcada pela empatia e alteridade
que a mesma tinha para com seus alunos e amigos, o seu retorno da França foi
marcado pelo descobrimento de um aneurisma no cérebro que acarretou o seu
falecimento de forma abrupta. Antes da sua morte e com sua ingressão como
professora de Antropologia ela desenvolveu sua pesquisa de doutorado entre o ano
1945 e 1968, se tornando uma “mãe fundadora” da Antropologia da Pesca no Brasil, a
mesma se dedicou a perceber a cultura dos pescadores do litoral norte de São Paulo,
no arquipélago de ilhabela.
         Na Ilha de São Sebastião, Gioconda se propôs a ir de contra o machismo que era
exacerbado e até mesmo ao mito de que mulher em um barco é sinônimo de azar, a
mesma em sua pesquisa de campo obteve narrativas dos pescadores e expressões que
eles usavam, os conhecimentos empíricos e tradicionais, foram resultados de sua
pesquisa etnográfica que expôs informações do sistema desses pescadores. A forma
sistemática das tripulações da pesca de tainhas, canoas dos “pequenos pescadores”,
sistema de captura, rotas de comercialização, conhecimentos nativos e ideologias dos
pescadores, a troca de receitas que havia entre eles, todas essas informações
etnográficas foram frutos de sua observação participante, que mesmo tendo sido
extremamente bem executado acabou não sendo defendido devido a inferiorização e
sua relação não tão boa com o seu orientador Egon Schaden, antropólogo brasileiro
que também estava na primeira leva de manifestações antropológicas no Brasil.
         A Relação de Gioconda com Egon era marcada pela disparidade de idéias que
havia entre ambos, Gioconda criticava o estudo de comunidades, pesquisas feitas com
comunidades rurais que visava perceber a sua estrutura interna e a relação com
estrutura nacional,esses estudos eram feitos por alguns antropólogos e dentre eles
estava Egon,seu professor e orientador. Gioconda em suma tinha seus ideais e críticas
acerca de alguns métodos que eram exercidos pelos pesquisadores daquele período,na
sua participação no Congresso Americanista que ocorreu em São Paulo no ano 1954,
ela apresentou seu trabalho e de forma branda desarma as tradições norte-americanas
acerca dos estudos de comunidade,apontando o fato de que esses estudos fortaleciam
o isolamento de povos rurais.   
Em toda sua trajetória, Gioconda Mussolini mesmo em meio aos intempéries
da sua vida acadêmica e seus dilemas cotidianos, a professora desenvolveu seu papel
de forma exímia, sendo mulher, se opondo e expondo suas críticas e
descontentamentos com a academia, ambiente onde a mesma sofreu o machismo que
a impossibilitou de alçar novos voos em sua carreira acadêmica e ter visibilidade
necessária.
         A falta do debate acerca da vida e obra de Gioconda é algo recorrente nos cursos
de Antropologia, pouco se é conversado e pouca é a abordagem acerca da
contribuição dela na Antropologia Brasileira. Andrea Ciacchi, antropólogo e docente 
da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA)  se dedica a narrar
a história e trajetória acadêmica de Gioconda Mussolini, mesmo em meio a poucas
informações disponíveis Andrea Ciacchi desenvolveu uma longa e detalhada pesquisa
acerca da vida da antropóloga brasileira, teorizando e colhendo informações com
amigos e ex-alunos da mesma.
         Sendo pioneira acerca do estudo da Antropologia da Pesca, a tese desenvolvida
foi base para outros estudos relacionados a questões marítimas, motivo esse que fez
com que Andre Ciacchi tivesse contato com as manifestações antropológicas de
Gioconda, o mesmo desenvolveu um estudo acerca da Antropologia do mar e da
pesca no Brasil e dessa forma “bebeu” de umas das primeiras fontes de estudos acerca
da determinada abordagem e com isso houve o encantamento para com a vida de
Gioconda.
         Andre Ciacchi iniciou sua pesquisa mais aprofundada acerca da vida de
Mussolini e percebeu que as contribuições da mesma seriam fundamentais para se
pensar a antropologia no Brasil, dedicando sua atenção para investigar mais sobre a
vida da antropóloga brasileira, o mesmo se torna referência em informações sobre a
vida de Mussolini. Um dos apontamentos acerca da contribuição de Mussolini na
antropologia brasileira é a sua pesquisa etnográfica com os pescadores de Ilhabela, o
mesmo aponta que a agência da mesma em um território marcado pela presença
masculina foi algo muito habilidoso, ela se propôs a perceber os pescadores como
agentes de saber desenvolvendo um diálogo horizontal e absorvendo informações para
sua tese.
         Quando se é pensado acerca da etnografia no Brasil, de longe não é mencionado
sobre a contribuição de Gioconda, a mesma em sua pesquisa buscou ir de contra a
influência norte-americana e desenvolveu algo mais vertical, propondo uma
antropologia ligada a sociologia, esse exercício de observar e desenvolver um diálogo
mais próximo com grupo que se é estudado, gerou uma confiança dos pescadores para
com Gioconda, tornando possível os mesmos enxergarem ela como alguém que eles
poderiam confiar. Desenvolvendo sua busca sobre a vida de Gioconda, Andrea
Ciacchi também percebeu as problemáticas acerca do âmbito acadêmico que fez com
que Mussolini não apresentasse sua tese de doutorado. Ao defender a sua tese,
Gioconda Mussolini poderia assumir a cadeira de Antropologia na USP, ocupada pelo
seu orientador Egon Shaden, quando o mesmo anunciou sua aposentadoria surgiu a
pressão e possibilidade de Gioconda assumir, até por que ela era a pessoa que devia
assumir, porém há relatos de que enquanto havia pressões para que a mesma
assumisse, Shaden não há pressionava e se mostrava indisposto com esse fator.
Muitos que viveram o período afirmam que Shaden foi resistente devido ao fato de
que quem assumiria a cadeira seria uma mulher e que seria Gioconda, ambos tinham
ideias diferentes e isso fez com que a defesa da tese fosse sempre postergada.
         Ser mulher em um lugar académico, numa instituição recém criada com uma
grande porcentagem de ocupação masculina torna a trajetória de Gioconda algo capaz
de ter extrema atenção, perceber a agência feminina em um período onde o país se
encontrava nos primeiros passos de um represália e ditadura que foi capaz de silenciar
e aniquilar vidas, é algo necessário.À agência de Gioconda como professora foi capaz
de perceber e demonstrar tamanha revolta com as manifestações da ditadura para com
os seus alunos e amigos que a mesma se propôs a dormir na USP para abrigar os
alunos, não é atoa que muitos ao recordarem expressam a saudade, carinho e afeto ao
falar sobre ela.
Exercer o papel feminino no século XX assim como no século atual é algo
árduo, porém com a passagem dos mesmos é perceptível as disparidades, Gioconda
Mussolini viveu em um período onde o ser mulher estava atrelado a “submissão”,
“pureza”, “prendas domésticas e habilidades manuais”, onde os homens seriam
provedores e as mulheres eram seres domesticaveis que viviam para encararem as
tarefas do lar. Partindo dessa observação, é perceptível que Gioconda sofreu o
impacto de um machismo perverso que a levou a se frustrar diante de determinadas
situações, Andre Ciacchi investigou algumas mulheres que conviveram com
Gioconda e percebeu que ambas citavam que a mesma se sentia angustiada por não ter
tido “êxito matrimonial”, sendo abandonada de dois casamento e consequentemente a
não maternidade, que a fez com houvesse um carinho grande com os seus alunos
capaz de tratá-los como filhos e filhas. Essas indagações me fazem refletir acerca do
impacto do machismo na vida de uma mulher, tornando-a insegura e gerando
bloqueios em sua vida, vale ressaltar que essas insatisfações também foram a causa da
pouca quantidade de trabalhos publicados e até mesmo a não conclusão de sua tese.
Embora haja a presença de algumas narrativas acerca da não defesa de
doutorado de Gioconda, a pergunta que está ligada ao motivo da mesma será sempre
feita e percebida, por qual razão não houve a  defesa ?. A professora que desperta
narrativas carinhosas e afetivas ao ser lembrada contribuiu de forma significativa para
a antropologia brasileira, foi orientadora de grandes pesquisas acadêmicas e grandes
nomes da Antropologia Brasileira. Florestan Fernandes, seu aluno e amigo no
prefácio do seu livro “Evolução,Raça e Cultura” cita e elogia sua professora Gioconda
Mussolini que exerceu sua profissão de forma exímia. Existem vários relatos da
relação que Florestan e Gioconda tiveram, dentre um desses momentos foi quando a
professor Heleieth Saffioti se preparava para defender a sua tese que foi orientada por
Florestan, intitulada “A mulher na sociedade de classes: mito e realidade” convidou
para sua banca Gioconda Mussolini, porém o Conselho Estadual de Educação
removeu Gioconda e outro componente da banca por considerarem os membros da
banca como comunistas. A vida de Gioconda é marcada pelas constantes relações e
são essas que contribuem com relatos para um conhecimento e estudo sobre a vida
acadêmica da mesma.

Perceber a trajetória e as contribuições de Gioconda é uma tarefa delicada,


devido a falta de informações sobre a mesma e até mesmo a falta de produções
acadêmicas disponíveis torna a pesquisa algo difícil, surgem narrativas e discussões
sobre sua morte, a não defesa de sua tese e suas relações com um período acadêmico
marcado pela presença masculina. O fato é que é preciso discorrer e perceber a
agência da mesma e destacar sua contribuição para antropologia brasileira e para além
da mesma, o exercício de ser uma professora capaz de “adotar” seus alunos,
desenvolver uma relação afetiva com os mesmos, produzindo pesquisas acadêmicas e
expondo suas críticas, evidência a singularidade que havia na professora que faleceu
de uma forma abrupta.
Atualmente a Biblioteca Florestan Fernandes, da atual Faculdade de
Filosofia,Letras e Ciências Humanas da USP, contém um acervo pessoal sobre
Gioconda Mussolini, que está disponível para ser um grande instrumento de pesquisas
e descobrimento da  vida da primeira antropóloga brasileira, que sendo mulher
enfrentou e dedicou sua vida a perceber as manifestações humanas no Brasil.
REFERÊNCIAS BIBLÍOGRAFICAS

CIACCHI, Andrea. As testemunhas do sliêncio : Gioconda Mussolini entre


lembranças e esquecimentos. 31º Encontro Anual da ANPOCS, de 22 a 26 de
outubro de 2007, Caxambu, MG Seminário Temático 10: De eventos e mitos:
biografias, memórias e histórias nas narrações urbanas contemporâneas.

CIACCHI, Andrea. Mestranda : Gioconda Mussolini e a Antropologia em São


Paulo ( 1938-1969). Tempos Históricos • Volume 19• 1º Semestre de 2015 • p. 153-
186.

ANTROPOTEORIAS : Episódio 16: Gioconda Mussolini. Locução de Andréa de


Souza Lobo, Laura Teixeira de Queiroz Coutinho e Ana Beatriz Ogelio
Figueiredo.Antropoteorias, 26 de Julho de 2022.Podcast disponível em :
https://open.spotify.com/episode/7Jh7RCU4TNc2R9MyPDKEYv?
si=sBW3Q43RRbaFqh5yybPQTA / Acesso em 03 de agosto de 2022

SELVAGERIAS #7 : Uma mulher pioneira na ciência : Quem foi Gioconda


Mussolini ?. Entrevistado: Andrea Ciacchi. Entrevistadores: Tainá Scartezini, Lucas
Lippi e Frederico Sabanay.Selvagerias, 28 de Julho de 2021. Podcast disponível em :
https://open.spotify.com/episode/4JpCx7RZsKQs6ChneHmqql?
si=uwdm2mpdT6G2rLukQf48cg / Acesso em 08 de Agosto de 2022

Você também pode gostar