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Uma leitura crítica dos estudos de comunidade no

Brasil: apresentação ao texto de Gioconda Mussolini

ANDREA CIACCHI

Gioconda Mussolini nasceu em São Paulo, três anos (até 1944) com “Bastidinho”. Nesse
no Bom Retiro, em 1913, filha de um imigrante começo de anos 40, ela também frequenta o
italiano que havia chegado ao porto de Santos Mestrado em Ciências da Escola de Sociologia
em 1888. Terceira de sete irmãs, ela foi a única e Política de São Paulo, onde foi colega de Flo-
que permaneceu solteira e teve acesso à educa- restan Fernandes, defendendo em 1945, sob
ção superior. Concluída a escola normal (1932) a orientação de Herbert Baldus, a dissertação
e após dois anos de estudos de aperfeiçoamento Os meios de defesa contra a moléstia e a morte
no Instituto de Educação, que acabara de ser em duas tribos brasileiras: Kaingang de Duque
criado por Fernando de Azevedo, em 1935 Gio- de Caxias e Bororó Oriental. Na banca, além
conda foi admitida, como professora primária de Baldus, sentaram Mário Wagner Vieira da
comissionada, no curso de Ciências Sociais da Cunha, Donald Pierson, Octávio da Costa
recém criada Faculdade de Filosofia, Ciências e Eduardo e Emílio Willems.
Letras da Universidade de São Paulo - FFCL. A “virada” institucional acontece contem-
Lá, foi aluna dos mestres da “Missão Francesa” poraneamente à conclusão do mestrado: a sua
(Lévi-Strauss, Braudel, Arbousse Bastide, Mon- cada vez mais forte inclinação teórico-meto-
beig, Magüé) e colega de Gilda de Mello e Souza dológica para a antropologia leva Gioconda a
(então Moraes Rocha), Mário Wagner Vieira da se transferir para a Cadeira de Antropologia,
Cunha, Ruy Coelho, Décio de Almeida Prado e criada em 1941 e regida, até 1949, por Wille-
Egon Schaden, entre outros. ms. Inicia-se aí a sua carreira docente, que fez
Logo após a conclusão do curso, em 1938, dela uma das professoras mais afetuosamente
ao invés de iniciar a carreira de professora pri- lembradas pelos alunos da Faculdade de Filo-
mária a que parecia destinada, Gioconda foi sofia, entre os quais Fernando Novais, Eunice
convidada a integrar a equipe do “Centro de Ribeiro Durham, Ruth e Fernando Henrique
Pesquisas e Documentação Social” da Cadeira Cardoso, José de Souza Martins, Luiz Mott,
de Sociologia I da FFCL, regida por Paul Ar- Antonio Carlos Diegues e Antonio Augusto
bousse Bastide (mas que mudará de chefia em Arantes (Ciacchi, 2007b). Paralelamente, tam-
1941, com Roger Bastide, que havia chegado, bém desde meados da década de 40, ela volta
nesse mesmo ano de 1938, em substituição a seus interesses de pesquisa para as comunida-
Lévi-Strauss, de regresso à Europa1) e onde, des caiçaras do litoral norte do Estado de São
mais tarde2, se tornaria Auxiliar de Ensino. Paulo e, sobretudo, para os aspectos sociais e
A pessoa responsável pelo convite, portanto, culturais da principal atividade econômica des-
deve mesmo ter sido Arbousse Bastide, seu ex- sas populações, a pesca. O campo da antropo-
professor. Gioconda ficará colaborando com logia marítima, no Brasil, tem em Gioconda
“Bastidão” durante três anos (até 1941) e mais Mussolini o nome da sua fundadora.

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*** tação de contas de Gioconda Mussolini com


o seu contexto epistemológico e disciplinar,
Em 1954, ano do IV Centenário da capital mostrando como, mais de quinze anos após a
paulista, acontece em São Paulo o xxxi Con- conclusão do seu curso na FFCL, ela filtrava e
gresso Internacional de Americanistas. Como selecionava influências diretas e indiretas, abor-
é natural, a presença de cientistas sociais da dagens e paradigmas metodológicos, inclusive
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da em diálogo com o que a cadeira de Sociologia
USP é maciça. Ao lado de colegas como An- i, em particular, exatamente nesse período de
tonio Candido, Antonio Rubbo Müller, Egon transição entre Roger Bastide e Florestan Fer-
Schaden, Florestan Fernandes, Maria Isaura nandes, que lhe oferecia uma “alternativa” teó-
Pereira de Queiroz, Oracy Nogueira, Octávio rica viável e concreta.
da Costa Eduardo, Paula Beiguelman, Ruy Co- O filtro aciona-se principalmente para a li-
elho, entre outros, e de antropólogos de outras ção que, a partir da Escola de Chicago, e através
instituições e de gerações distintas, como Can- de alguns dos seus antigos professores, como
dido Mariano Rondon, Heloísa Alberto Torres, Donald Pierson e Emilio Willems, sobretudo,
Luiz de Castro Faria, Eduardo Galvão, Darcy havia colocado a produção de Gioconda Mus-
Ribeiro, Roberto Cardoso de Oliveira e Harald solini – algo implicitamente, na verdade – no
Schultz (todos fixados no Rio de Janeiro), José cenário brasileiro dos “estudos de comunida-
Loureiro Fernandes (Paraná), René Ribeiro e de”. Manifestando claramente a sua opção por
Thales de Azevedo (Nordeste), Herbert Baldus um tratamento histórico dos dados empíricos
(ESP) e estudiosos e professores residentes no registrados nas etnografias, ela se situa ao lado
exterior, mas com significativa passagem pelo do seu também velho mestre, o geógrafo fran-
Brasil nos anos de formação e de atuação pro- cês Pierre Monbeig, reivindicando que só esse
fissional da nossa autora, como Alfred Metraux, tratamento, capaz, portanto, de distinguir entre
Charles Wagley e Donald Pierson3, Gioconda as “zonas velhas” e as “zonas pioneiras”, permi-
Mussolini apresenta a comunicação “Persis- tiria apreender a dinâmica social e cultural que
tência e mudança em sociedades de ‘folk’ no envolve “conservantismo” e “mudança”. Em
Brasil”, publicada nos Anais do Congresso no outras palavras, o texto de Gioconda, declaran-
ano sucessivo. do desde os seus primeiros momentos a opção
Trata-se do seu trabalho de maior relevân- por uma metodologia atenta à dialética entre
cia teórica e que, embora não tematize direta- persistência e mudança, constrói um roteiro
mente populações pesqueiras, mais ilumina os teórico que inclui Monbeig, para logo em se-
artigos dedicados à temática principal da sua guida descartar, em Chicago, Robert Redfield,
trajetória intelectual. Colocado, cronologica- para, passando à Califórnia, indicar a sua prefe-
mente, no meio dessa trajetória, este estudo rência pelos estudos de George M. Foster, pro-
serve para subsidiar a fundamentação teórica fessor em Berkeley. Nisso, elegantemente, mas
da autora, nem sempre explícita nos seus textos com firmeza, ela critica tanto Emilio Willems
mais etnográficos, e para apontar os rumos que como Donald Pierson, seus ex-professores, mas
trilharia se a ele não seguisse, na realidade, um fiéis seguidores, no Brasil, da lição de Redfield:
longo silêncio bibliográfico, culminado com a
não conclusão da sua tese de doutorado e, final- Quase que invariavelmente [...] os estudos de
mente, com a sua morte, em 1969. Ao mesmo comunidade realizados no Brasil revelam [...]
tempo, o artigo também constitui uma pres- interesse definido da parte dos seus autores por

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áreas nas quais se espera verificar a qualidade da alizada, de 1944 a 1949, sob a direção do pró-
“organização cultural” e estabilidade social, se- prio Willems e, desse ano até 1967, sob a chefia
lecionando-se, por esta razão, pontos que, além de Egon Schaden, ele próprio um entusiasta
de situados nas “zonas velhas” de povoamento, seguidor da postura de Willems, de quem fora
sejam o suficiente isolados para que se anteveja primeiro assistente na cadeira de antropologia
a possibilidade de concretização daquela expec- até 1949. Mas o distanciamento de Gioconda
tativa [...]. Implícita ou explicitamente, alguns Mussolini da “modalidade clássica de realiza-
destes estudos, pelo menos4, têm procurado tes- ção” dos estudos de comunidade6 é nítido. O
tar no Brasil as conclusões de Redfield e, desta que, aliás, parece resolver a questão relativa à
forma, têm prescindido grandemente de uma autoria da monografia de Willems (1952) sobre
investigação histórica rigorosa das comunidades a ilha de Búzios7, em que o nome de Gioconda
estudadas [...] (p. 338). Mussolini, na capa do livro, aparece, acredito,
à sua própria revelia teórico-metodológica. As
A crítica de Gioconda, portanto, não se li- diferenças entre esse estudo e o anteriormen-
mita à opção metodológica, mas chega a atingir te publicado pelo professor alemão e dedicado
os critérios de seleção das comunidades estuda- à vila de Cunha e criticado por Gioconda são
das por alguns dos seus colegas e ex-professo- palpáveis.
res, acusados de escolher desonestamente (ou Assim, neste texto de 1954, num só gesto,
pelo menos sem “rigor”) os seus campos de Gioconda marca a sua posição teórica, coloca-
pesquisa. Mas era essa a atitude mais frequente se com clareza em um dos dois campos em
no campo da antropologia paulista e, até en- disputa e, dessa forma, sela uma espécie de
tão, as únicas críticas a ela haviam surgido no “traição” aos seus colegas da cadeira de Antro-
campo da sociologia e, especialmente, a partir pologia da FFCL, inclusive ao seu chefe e fu-
dos integrantes mais destacados da Cadeira de turo orientador, Egon Schaden. É nessa chave,
Sociologia i: o seu catedrático, Roger Bastide, e portanto, que não só devem ser lidos o signifi-
o seu primeiro assistente, Florestan Fernandes5. cado e o alcance dos seus estudos sobre pesca,
A posição de Gioconda Mussolini, assim, mas também, e sobretudo, deve ser avaliada a
volta-se contra a atitude “culturalista” que Wil- posição institucional que ela ocupa e deve ser
lems, principalmente, havia legado ao campo interpretado o destino que o seu próprio cam-
paulista da antropologia, sobretudo nos anos po acadêmico lhe reservou. E, obviamente, nis-
40, atitude à qual não é possível vincular o so reside a relevância do texto ora republicado
nome da nossa jovem professora, a qual, com para a história das ciências sociais no Brasil.
repetidas referências a artigos do seu antigo
chefe na cadeira de Sociologia, Roger Bastide, ***
parece alinhar-se ao lado dos ex-colegas, reivin-
dicando uma atenção mais efetiva para as ques- Em 1980, o prof. Edgar Carone, também
tões “sociais”, históricas e econômicas. ex-aluno de Gioconda, que falecera prematu-
E não é outra a sua posição nos artigos de- ramente em maio de 1969 por causa de um
dicados à pesca e às dinâmicas socioculturais aneurisma cerebral sofrido poucas horas depois
das populações tradicionais do litoral paulista, de ministrar uma aula nos precários barracões
de forma que a sua vinculação à “vertente cul- da nova cidade universitária da USP, reuniu
turalista” só pode ser atribuída (e mesmo assim no volume Ensaios de Antropologia Indígena e
com muito cuidado) a sua atuação docente, re- Caiçara a dissertação de mestrado e os artigos

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sobre a pesca de Gioconda Mussolini, origi- a contraposição explícita se dá entre Emilio


nariamente publicados na revista Sociologia Willems, de um lado, e Florestan Fernandes, do
(fundada e dirigida por Donald Pierson) e outro. Só mais tarde se travará debate semelhan-
te, com contraposição entre Oracy Nogueira (a
na Revista de Antropologia, fundada por Egon favor dos estudos de comunidade) e Octávio
Schaden. A essa coletânea, que teve o mérito Ianni (contra). Cf. Corrêa (1995) e Peixoto e
de tornar disponível o grosso da produção in- Simões (2003).
telectual de Gioconda Mussolini, faltaria acres- 6
Cf: Moreira (1963).
centar esta comunicação de 1954, de dificílima 7
A autoria do livro é de Emilio Willems, “in
localização por ter sido publicado apenas nos collaboration with Gioconda Mussolini”. Sobre
Anais do Congresso de Americanistas, no ano esta questão, cf. Ciacchi (2007).
de 1955. A iniciativa da Cadernos de Campo de
preencher essa lacuna é, portanto, mais do que
oportuna e louvável. Referências bibliográficas
CIACCHI, Andrea. Gioconda Mussolini: uma travessia
Notas bibliográfica. Revista de Antropologia, 50 (1), p. 181-
224, 2007.
1
Sobre a “dança” das Cadeiras de Sociologia, mas CIACCHI, Andrea (2007b). As testemunhas do silên-
que também envolve a de Direito Político, regida cio: Gioconda Mussolini entre lembranças e esqueci-
por Roger Bastide entre 1938 e 1941, e com reba- mentos. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS.
timentos sobre o processo de criação da Cadeira 31º., 2007, Caxambu. Anais do 31ª Reunião Anual da
de Política e extinção da de Direito Político, veja ANPOCS. Caxambu: Hotel Glória, 2007. Disponí-
Quirino (1994), Pulici (2008), Jackson (2007) e vel em: <http://201.48.149.89/anpocs/AprovacaoSt.
Silva (2008). O resultado da “dança”, em 1941 asp?IdAtividade=230&tipo=E#>. Acesso em: 13 nov.
(com a interveniência, em julho desse ano, do De- 2009.
creto Federal 12.038 e, em janeiro do ano suces- CORRÊA, Mariza. A Antropologia no Brasil (1960-
sivo, do Decreto 12.511, que reformavam vários 1980). In: Miceli, Sérgio. (org.). História das ciências
aspectos do ensino superior no Brasil e sobretu- sociais no Brasil. São Paulo: Sumaré/Fapesp, v. 2, 1995.
do das Faculdades de Filosofia) foi que a cadeira p. 25-106.
de Sociologia I foi ocupada por Roger Bastide, a FERNANDES, Florestan. A análise sociológica das clas-
II por Fernando de Azevedo, a recém criada de ses sociais, Sociologia, 10, p. 91-113, 1948.
Antropologia por Emilio Willems e a de Política, JACKSON, Luiz Carlos. Gerações pioneiras na socio-
também novata, por Arbousse Bastide. logia paulista (1934-1969), Tempo social, 19 (1), p.
115-130, 2007.
2
Não localizei a data desta promoção na docu-
MOREIRA, Maria Sylvia Franco. O estudo sociológico
mentação da USP.
de comunidades, Revista de Antropologia, 11 (1/ 2), p.
3
A relação completa está nas páginas iniciais dos 29-39, 1963.
Anais do XXXI Congresso Internacional de MUSSOLINI, Gioconda. Ensaios de antropologia indíge-
Americanistas de São Paulo. Emilio Willems, na e caiçara. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
já estabelecido em Vanderbilt há dois anos, está MUSSOLINI, Gioconda. Persistência e mudança em so-
ausente do Congresso. ciedades de “folk” no Brasil. In: XXXI Congresso In-
4
Em nota de rodapé, a autora cita a monografia ternacional de Americanistas, 1955, São Paulo. Anais
de Emilio Willems (1947) sobre Cunha e a de do XXXI Congresso Internacional de Americanistas, São
Donald Pierson (1951) sobre Cruz das Almas, Paulo, Anhembi, vol. I, 1955, p. 333-353.
os seus verdadeiros alvos. PEIXOTO, Fernanda Arêas e SIMÕES, Júlio Assis. A Re-
5
Cf. “Debate” travado no “Symposium sobre vista de Antropologia e as ciências sociais em São Paulo:
classes sociais”, publicado no volume x da re- notas sobre uma cena e alguns debates, Revista de An-
vista Sociologia, em 1948, em que, sobretudo, tropologia, 46 (2), p. 383-409, 2003.

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PIERSON, Donald. Cruz das Almas. A Brazilian village. logia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Hu-
Smithsonian Institution, Institute of Social Anthro- manas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
pology, Publication n.12, 1951 WILLEMS, Emilio. Velhos e novos rumos no estudo das
PULICI, Carolina. Entre Sociólogos: versões conflitivas da classes sociais, Sociologia, 10, p. 76-90, 1948.
“condição de sociólogo” na USP dos anos 1950-1960. WILLEMS, Emilio [in cooperation with Gioconda Mus-
São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2008. solini]. Buzios Island: a caiçara community in southern
QUIRINO, Célia. Departamento de Ciência Política. Es- Brazil. Seattle: University of Washington Press, 1952.
tudos Avançados, 8 (22), p. 337-348, 1994. _____. Cunha: tradição e transição em uma cultura rural
SILVA, Dimitri Pinheiro da. A trajetória acadêmica de no Brasil. São Paulo: s.n., 1947.
Paula Beiguelman. Dissertação (Mestrado em Socio-

autor Andrea Ciacchi


Professor do Departamento de Ciências Sociais/UFPB
Doutor em Estudos Ibéricos/ Universidade de Bologna

Recebida em 13/11/2009
Aceita para publicação em 13/11/2009

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