Você está na página 1de 92

A Revista do Expresso

EDIÇÃO 2578
25/MARÇO/2022

+
Entrevista a Milo Manara
“O meu erotismo
é a pornografia dos outros”
Por João Pacheco
Reportagem na Ucrânia
Viver a guerra duas vezes
Por Tiago Carrasco, em Lviv
Antevisão dos Óscares
Quem vai ganhar?
Quem devia ganhar?
Por Jorge Leitão Ramos
e Francisco Ferreira

PT22
Futuro mais
que perfeito
Fernão Cruz, Ana Sofia Martins,
Afonso Reis Cabral, Agir e Cátia
Domingues vão muito
provavelmente liderar as artes, a
cultura e o entretenimento no
Portugal dos próximos anos

O artista
plástico
Fernão Cruz
fotografado
no dia 17 de
março, no seu
ateliê, nas
Olaias, em
Lisboa
01 + 02 abril

Baby Doll © noémie gillot


SEXTA, 2 1:00 / SÁBADO, 1 9:00 — M/6

Baby
Doll

Orquestra
Gulbenkian
Yom Quartet Beethoven

GULBENKIAN.PT
mecenas mecenas mecenas mecenas mecenas principal
concertos para piano e orquestra estágios gulbenkian para orquestra concertos de domingo ciclo piano gulbenkian música
PLUMA CAPRICHOSA

OS CACOS DO COMUNISMO
NOS PAÍSES MAIS EXPOSTOS AO MODO DE VIDA OCIDENTAL, COM MAIOR LITERACIA TECNOLÓGICA

O
E MAIS JUVENTUDE, O DESEJO DE LIBERDADE SOBREPÕE-SE AO MEDO E VENCE O TERROR
Mac e guardava a caixa gordurosa como recordação. a travar uma guerra pela sobrevivência de um sistema
Gorbatchov, o homem da abertura ao Ocidente, aceitou condenado, corrompido, esfalfado. Antes da Ucrânia,
fazer um anúncio para a Pizza Hut e, num momento foi a Bielorrússia que viu o sistema abalado pela
posterior, quando a qualidade de estadista estava candidatura presidencial de Sviatlana Tsikhanouskaya.
estabelecida, um anúncio para as malas Louis Vuitton. Lukashenko ganhou umas eleições à força, prendendo,
O capitalismo, com a astúcia do mercado unida à torturando e exilando os oposicionistas, desaparecidos
ânsia de liberdade que preside à condição humana, em carrinhas noturnas, reaparecidos nas morgues.
à qual repugna o coletivismo e a dissolução no todo, Pediu ajuda a Moscovo e Putin ameaçou invadir a
foi insidiosamente instalando as regras nestes países Bielorrússia caso ele não mantivesse o país controlado.
vindos da desilusão do marxismo-leninismo. As lojas No Cazaquistão, o sistema foi abalado por violentos
Ocidente, para usar a terminologia, deu uma e marcas foram abrindo entrepostos como dantes o protestos de rua, e mais uma vez o ditador pediu
gargalhada triste, teria de ser triste, à custa do casaco colonialismo ia colocando marcos e fortalezas nas ajuda ao Kremlin e obteve-a, com as tropas russas a
de €12 mil de Vladimir Putin no patriótico incitamento terras “descobertas” e impondo uma religião aos manterem a ordem autoritária.
às massas num estádio. Uns dizem que o casaco é nativos. A religião pós-comunista era destituída de Não é apenas na frente ucraniana que Putin está a
Prada, outros Loro Piana. Francês ou italiano, pouco espiritualidade. Reduzia-se a um verbo, comprar, ter dificuldades. Na Chechénia, muitos odeiam a
importa. Nem a mesa imperial onde Putin recebeu comprar, comprar. bestialidade de Kadyrov e gostariam de o depor, julgar
chefes de Estado, distanciado a metros do interlocutor, Em Hong Kong, numa véspera de Natal, há não muitos ou matar, e na Geórgia não existe maior aspiração
foi feita na Rússia. Desenho e fabrico europeus. E anos, assisti a um espetáculo. À meia-noite, em frente do que sacudir o jugo de Moscovo. Nos países mais
as botas de combate Prada de Ramzan Kadyrov, o a uma loja Cartier do centro, esgueirava-se uma expostos ao modo de vida ocidental, com maior
checheno? Preço: €1600. O diabo veste Prada. Um fila quilométrica de clientes na rua, de pé e ao frio, literacia tecnológica e mais juventude, o desejo de
século depois da revolução leninista, do coletivismo esperando a vez de entrar e consumir joias. Na altura liberdade sobrepõe-se ao medo e vence o terror.
forçado e dos amanhãs que cantam, tudo o que resta das festas de Natal, os mainlanders, os chineses da Esta gente não pretende malas Louis Vuitton nem
é o materialismo insano dos povos sujeitos à ditadura China comunista, invadiam Hong Kong para comprar casacos Prada, esta gente pretende viver em paz e
de partidos comunistas ou sujeitos às ditaduras coisas. Qualquer coisa. Por todo o lado, viam-se liberdade escolhendo os governantes em vez de vergar
cleptocráticas que sobraram das ditaduras comunistas. sacos de papel e de plástico com marcas, e a orgia o joelho aos senhores feudais. Esta gente pretende a
Um capitalismo de Estado selvagem embrulhado na consumista fazia com que nas escadas rolantes dos democracia. E este idealismo romântico na aparência,
bênção de uma religião, a religião ortodoxa na Rússia, centros comerciais as pessoas se atropelassem, caíssem realista nos objetivos e nos métodos, está disposto a
ou servido pela religião individualista da “marca” e do e cavassem a marcha com uma agressividade nunca sacrificar a vida.
“logo”. vista. Os habitantes de Hong Kong com meios para Entretido a abastecer as oligarquias plutocráticas e
E assim, muito à custa do dinheiro russo e chinês, tal tentavam fugir da cidade nesses dias assombrados a enriquecer à custa do materialismo que disfarça os
cresceram os impérios do luxo e da moda, os pela fome de mercadorias ocidentais. E é ainda um cacos do comunismo, o Ocidente julgou que poderia
conglomerados LVMH ou Pinault. À sombra da espetáculo em Paris, Londres ou Roma ver as filas de manter Putin sossegado. E Putin, distribuindo óleo
ganância cresceram os mercados da arte e do design, clientes para comprar Louis Vuitton ou Prada. Mesmo e petróleo baratos pelos países satélites da Rússia e
do imobiliário e dos automóveis, dos iates e aviões. O com as compras pela internet e as restrições covid, o pela Europa, escolhendo as rotas da energia a seu
Ocidente considerou, com justeza, que tinha ganhado a materialismo não abrandou, pelo contrário. bel-prazer, enriquecendo os servidores dentro e fora
guerra e imposto um modelo de consumo e ansiedade Seríamos autorizados a pensar que nunca seria da Rússia, assegurando as lealdades pela corrupção
de consumo a sociedades que vinham da privação e necessária uma guerra para demonstrar a evidência. O e o comando, julgou que estava descansado. Erros
de uma estética brutalista e predadora da beleza e do capitalismo democrático e liberal ganhou. É deste lado pagos com sangue, suor e lágrimas por todos nós. Estas
ambiente. Basta olhar para os bairros de construção que estão a inovação tecnológica e a inovação estética, guerras não se ganham nem se perdem, arrastam-se. b
estalinista na Ásia Central para perceber a natureza é deste lado que estão as coisas que os órfãos ou as
destas massas de cimento que proibiam qualquer vítimas do comunismo querem possuir. As materiais
cintilação de beleza. e imateriais, como a música rock americana com que
Havia ainda um pragmatismo no comunismo, visível o Grupo Wagner acompanha os vídeos de tortura e
na educação e no privilégio das ciências, que se perdeu. violência. A China imita e compra, a Rússia compra, e
A Rússia é hoje uma potência que de potência tem os países satélites onde impõem uma visão anacrónica
o arsenal nuclear. Perdeu a batalha da pandemia. O do mundo, as Bielorrússias e os Vietnames, tudo o
gás e o petróleo mantêm a riqueza desigualmente que querem, e querem cada vez mais, é libertar-se
distribuída e pagam as maciças importações. O que do jugo ditatorial e poderem, em liberdade, escolher

/ CLARA
as fortunas russas apreciam está deste lado, do lado quem os governa e representa. E beber um café, comer
das democracias liberais. Deste lado estão as casas um muffin e passear o MacBook no Starbucks. Esta
palacianas, as escolas exclusivas, as praias e estâncias
de esqui, deste lado estão os luxos que apreciam, os
ambição transcende e é superior ao consumismo
materialista dos antigos ou modernos comunistas, e é
FERREIRA
casacos e sapatos Prada, as malas Hermès e Louis imparável. ALVES
Vuitton, os acessórios do quotidiano consumidos em Putin não está apenas a travar uma guerra para
quantidades desalmadas. superar uma humilhação que o Ocidente
Era previsível. Quando o Muro caiu, e quando a glasnost teria infligido, ou para restituir à Rússia o
e a perestroika dobraram o comunismo tradicional, a trono de superpotência que não voltará
McDonald’s abriu o primeiro restaurante em Moscovo. a ter. Está, à maneira de Ivan, o Terrível
O povo fazia fila durante horas para comprar um Big matando o próprio filho num ataque de ira,

E 3
SUMÁRIO
EDIÇÃO 2578
25/MARÇO/2022

KEYSTONE/GETTY IMAGES
fisga +E Culturas Vícios

32
Rainha Sofía
7 | Geração precária
É a geração mais qualificada
de sempre, mas isso não se
reflete na estabilidade
laboral, salários ou proteção
social. São jovens e a sua
24 | PT22
Fernão Cruz, Ana Sofia
Martins, Afonso Reis Cabral,
Agir e Cátia Domingues.
Eles vão dominar o
panorama das artes, cultura
51 | Óscares
Os prémios da Academia
são entregues este domingo.
Estas são as apostas dos
críticos
73 | A paz faz-se à mesa
A gastronomia tradicional
eslava é motivo
de união entre povos
76 | Receita
Mãe de Felipe, esposa
situação laboral difere, em e entretenimento em 56 | Livros “O Africano Por João Rodrigues
do rei Juan Carlos. larga medida, das gerações Portugal. Uma seleção da da Gronelândia”, de
É o membro mais anteriores: mais de 60% dos Revista do Expresso Tété-Michel Kpomassie 77 | Restaurantes
Por Fortunato da Câmara
desconhecido da família nascidos nos anos 90 não
60 | Cinema “Ouistreham
tem um vínculo permanente, 38 | Resistência na Ucrânia
real e o mais valorizado Foram os únicos a resistir na — Entre Dois Mundos”, 78 | Vinhos
situação que é de apenas Por João Paulo Martins
pelos espanhóis 40% na década anterior Crimeia quando, há oito de Emmanuel Carrère
anos, a sua região foi 79 | Recomendações
10 | Os Cadernos e os Dias ilegalmente anexada pela 62 | Televisão “Diários
de Andy Warhol”, De “Boa Cama Boa Mesa”
A guerra — duas imagens Rússia. Alertaram para a
de Andrew Rossi
Por Gonçalo M. Tavares guerra, mas os seus pedidos 80 | Design
de ajuda foram ignorados. 64 | Música “Amélias”, Por Guta Moura Guedes
12 | Passeio Público Hoje lutam para que a de Amélia Muge
45 Minutos com Ucrânia não se afunde como 81 | Moda
Simone de Oliveira: a sua península amada 68 | Teatro & Dança Por Gabriela Pinheiro
FICHA “Sei que posso deixar um “Vida de Artistas”, de Noël
TÉCNICA perfume bonito” 44 | Milo Manara Coward, no Teatro São Luiz, 82 | Tecnologia
Grande entrevista a um dos em Lisboa Por Hugo Séneca
Diretor 16 | Planetário
João Vieira Pereira autores de banda desenhada
Um amor à prova de guerra que terá feito sonhar mais 70 | Exposições “Through 84 | Automóveis
Diretor-Adjunto Por João Pacheco Por Rui Cardoso
Miguel Cadete pessoas. Mestre do a Different Lens”,
mcadete@impresa.pt erotismo, diz que a idade não de Stanley Kubrick, no 87 | Passatempos
Diretor de Arte traz a paz dos sentidos. “Se Centro Cultural de Cascais Por Marcos Cruz
Marco Grieco fosse invisível seria o homem
Editor mais feliz do mundo”, diz Expressinho
Ricardo Marques Ser poeta é...
rmarques@expresso.impresa.pt
Editor de Fotografia
João Carlos Santos
Coordenadores CRÓNICAS
João Miguel Salvador
jmsalvador@expresso.impresa.pt 3 Pluma Caprichosa por Clara Ferreira Alves | 14 O Mito Lógico por Luís Pedro Nunes
Luís Guerra 18 Cartas Abertas por Comendador Marques de Correia | 50 Que Coisa São as Nuvens por José Tolentino Mendonça
59 O Outro Lado dos Livros por Manuel Alberto Valente | 72 Fraco Consolo por Pedro Mexia
lguerra@blitz.impresa.pt

Coordenadores Gerais de Arte


Jaime Figueiredo (Infografia) 86 Diário de Um Psiquiatra por José Gameiro | 88 Deixar o Mundo Melhor por Francisco Pinto Balsemão
Mário Henriques (Desenho) 90 Estranho Ofício por Ricardo Araújo Pereira
FOTOGRAFIA DA CAPA: NUNO FOX

E 4
MAPA
DEESTRADAS
DEPORTUGAL
2022
Com o apoio:
fisga
“QUEM SABE TUDO É PORQUE ANDA MUITO MAL INFORMADO”

Geração precária
É A GERAÇÃO MAIS QUALIFICADA DE SEMPRE, MAS ISSO NÃO SE REFLETE NA
ESTABILIDADE LABORAL, SALÁRIOS OU PROTEÇÃO SOCIAL. SÃO JOVENS E A SUA
SITUAÇÃO LABORAL DIFERE, EM LARGA MEDIDA, DAS GERAÇÕES ANTERIORES: MAIS
DE 60% DOS NASCIDOS NOS ANOS 90 NÃO TÊM UM VÍNCULO PERMANENTE,
SITUAÇÃO QUE É DE APENAS 40% NA DÉCADA ANTERIOR
TEXTO CÁTIA MATEUS E MARIA JOÃO BOURBON INFOGRAFIA CARLOS ESTEVES
ILUSTRAÇÃO CRISTIANO SALGADO

E 7
fisga

“E
u não consigo planear o futuro, porque são convertidos em permanentes, permitindo trabalhadores com salário mínimo manteve-se
vivo o dia a dia.” Esta é a resposta que hoje um escape à precariedade, conclui o autor da em níveis elevados (20%) no mesmo período
muitos jovens dão quando questionados investigação que analisou a evolução de diferentes temporal. “Esta diferença poderá ser explicada
relativamente a planos para o futuro. Precários, gerações no mercado de trabalho em Portugal pelos aumentos pronunciados do salário mínimo
a saltar de contrato para contrato (com estágios, num período de 32 anos, entre 1986 e 2018. nos anos recentes, nomeadamente a partir de
bolsas ou situações de desemprego pelo meio), Mais de dois terços dos nascidos na geração de 2016”, explica o autor, acrescentando que a partir
muitos vivem numa sensação permanente de 90 que trabalham em Portugal têm contratos durante a segunda metade da década de 2010, “o
incerteza e com a perceção de que não saem a prazo, quase o triplo dos nascidos na década peso do salário mínimo cresceu em quase todas
do mesmo: a sua situação do ponto de vista de 80. E a probabilidade de conversão desses as gerações de profissionais”.
de estabilidade e de salário não se alterou contratos em permanentes também é baixa: 15%, Já no caso da proteção social, disparidade também
significativamente face há cinco ou dez anos. percentagem que tem vindo a diminuir ao longo é a palavra de ordem. Algumas prestações
“É importante que os jovens tenham direito ao dos anos. “Há uma estabilidade pronunciada na sociais — como o subsídio de desemprego —
futuro e ao tempo, o que não se verifica neste utilização alargada dos contratos de trabalho “tendem a ser utilizadas em grande medida por
momento. Vivem muito o dia a dia e, em parte, a termo junto dos trabalhadores mais jovens”, trabalhadores mais velhos, o que poderá afetar
também em sofrimento, porque não é o tipo de vinca Pedro Martins, acrescentando que muitos negativamente a equidade intergeracional”,
vida que desejam”, contextualiza o sociólogo nunca deixam de ser precários. realça Pedro Martins. Enquanto que os subsídios
Renato Miguel do Carmo, diretor do Observatório da Segurança Social — desemprego, doença,
das Desigualdades e autor do livro “Retratos da PRECÁRIOS AO LONGO DA VIDA lay-off e parentalidade — recebidos pelos
Precariedade”, que a partir de testemunhos faz o A situação é particularmente grave se trabalhadores da geração de 1940 ao longo da
retrato acima sobre os jovens. “Esta dificuldade considerarmos que, sinaliza o autor, “não há década de 2000 corresponderam a 69% das suas
em definir e projetar o futuro, precisamente indicação de que este fenómeno se reduza de contribuições, para as gerações nascidas nos anos
porque se vive uma vida muito instável e incerta, forma significativa, mesmo quando cada geração 60 e seguintes são de apenas 22%.
decorre da precariedade laboral.” E a reprodução envelhece”. O que faz da precariedade entre Num contexto em que uma parte significativa
e persistência da precariedade assenta, em os jovens “um desafio importante ao nível da das gerações mais escolarizadas de sempre têm
grande medida, numa sensação permanente de equidade intergeracional”. dificuldade em encontrar correspondência para
incerteza. “O presente é vivido com uma grande Na verdade, a baixa taxa de conversão de as suas qualificações no mercado de trabalho, a
incerteza. O futuro é mais ou menos incerto e contratos a termo é um fenómeno pouco aposta na educação deveria ser revista e adaptada
está-se constantemente a acionar um conjunto frequente, que se tem tornado “ainda menos às necessidades do mercado de trabalho? “A
de estratégias para não se cair no desemprego ou frequente em anos mais recentes”. E é um escolarização continua a compensar”, nota
numa situação de falta de rendimento.” problema que afeta transversalmente as várias Renato Miguel do Carmo. “Por exemplo, um
A elevada taxa de precariedade associada às gerações. Calculada a partir da probabilidade dos jovem mais escolarizado está mais protegido face
populações mais jovens — que é um fenómeno com trabalhadores passarem de contrato a termo para ao desemprego. E continua a existir uma relação
grande incidência no sul da Europa — é um dos um vínculo permanente no ano seguinte, a taxa entre níveis de escolaridade mais altos e maior
fatores que contribui para agravar a desigualdade de conversão recuou de 20% a 25% em 2003, nível salarial. Se tivéssemos jovens ainda menos
intergeracional no trabalho em Portugal. Como para 10% a 15% em 2018. qualificados estávamos numa situação ainda pior.”
comparam as várias gerações presentes no Também no que toca aos salários parece haver Pedro Martins reconhece que é verdade
mercado de trabalho em matéria de salários, uma “convergência forte” entre as várias que a educação continua a contribuir para
qualificações, precariedade e proteção social? gerações. O que não quer dizer que isto seja remunerações mais elevadas e menores
Pedro Martins, ex-secretário de Estado do positivo. Porquê? Porque os salários estão a probabilidades de desemprego, mas sublinha
Emprego, professor da Nova SBE e autor de ser nivelados por baixo, pelo valor do salário que esse contributo é tendencialmente menor
um estudo sobre a equidade intergeracional mínimo nacional. Em particular nas duas para as gerações mais novas. O prémio salarial
realizado para a Fundação Calouste Gulbenkian últimas décadas, grande parte das gerações associado à qualificação está a diminuir
— que durante esta semana esteve no centro apresentam salários reais mensais de apenas significativamente para os mais jovens. Nos mais
do debate na conferência “O estado do futuro: €600. As novas gerações tendem a apresentar de 30 anos analisados no estudo de Pedro Martins
um compromisso entre gerações”, organizada uma grande percentagem de trabalhadores (cerca para a Gulbenkian, a escolaridade apresenta
pela fundação —, conclui que a geração mais de 30% ou mais) a auferir o salário mínimo um crescimento muito pronunciado nas novas
qualificada de sempre não está a ter o retorno nos seus primeiros anos de vida profissional. A gerações, por oposição a níveis muito baixos nas
da sua formação. Nem a nível salarial nem no grande diferença é que, enquanto na geração antigas. Contudo, os dados apontam para uma
que toca à estabilidade laboral. “Os contratos de 70 essa percentagem diminuiu para 10% tendência acentuada de redução deste prémio
a prazo entre os jovens são mais do triplo das passados cerca de 15 anos do início da carreira, salarial, que é de 9,1% na geração de 50 e não
gerações anteriores” e só 15% desses contratos entre os nascidos na década de 80, o peso dos chega a 5% na geração de 90.
Apesar das diferenças entre gerações, não é tanto
o sector educativo que deve mudar e adaptar-
se. “A questão está fundamentalmente na forma
OS CONTRATOS A PRAZO ENTRE OS JOVENS SÃO MAIS DO como o nosso mercado de trabalho se estrutura
TRIPLO DAS GERAÇÕES ANTERIORES. TAXA DE CONVERSÃO (ou desestrutura) e não valoriza devidamente as
qualificações”, refere Renato Miguel do Carmo.
DESSES CONTRATOS EM VÍNCULOS PERMANENTES “Há um modelo, que vem de trás, que assenta
NÃO SÓ É BAIXA (15%) COMO TEM VINDO A DIMINUIR em baixos salários, em formas mais ou menos

E 8
difusas de exploração, de contenção salarial e
TRANSIÇÃO DE CONTRATOS A TERMO PARA CONTRATOS SEM TERMO NA EUROPA, POR IDADE
isso vai persistindo. E vai-se aprofundado. Tem
Em percentagem
de existir uma mudança estrutural. A aposta
nestas gerações é, em grande medida, uma aposta
2019 2020 na valorização do trabalho, dos contratos, dos
PAÍS
25 A 39 ANOS 40 A 64 ANOS 25 A 39 ANOS 40 A 64 ANOS salários”, acrescenta.
Estónia 57 44 11 9
Letónia 55 48 44 43 O PONTO DE PARTIDA
Dinamarca 33 33 21 19 E como é que Portugal compara com outros
Eslovénia 28 32 15 8 países no que toca à equidade entre as diferentes
Lituânia 27 24 14 6 gerações presentes no mercado de trabalho? A
Hungria 26 20 27 19 resposta não é fácil, já que escasseiam estudos
Noruega 25 27 12 8 sobre o tema. Sabemos que Portugal está
Países Baixos 22 21 4 2 entre os países da União Europeia com maior
Turquia 22 18 29 28 percentagem de trabalhadores com contratos
Suíça 20 31 7 5 a termo ou temporários e que os efeitos da
Portugal 19 23 24 21 pandemia — e agora da crise resultante do
Nota: Os dados representam a média anual de transições entre contratos conflito na Ucrânia — “devem agravar ainda mais
FONTE: EUROSTAT os problemas de equidade intergeracional” no
país, admite Pedro Martins.
Na verdade, o ponto de partida e o momento
EVOLUÇÃO DO SALÁRIO BASE MEDIANO CONTRATOS TEMPORÁRIOS NA EUROPA
de entrada no mercado de trabalho é decisivo
Em euros/mês, por gerações Em percentagem do emprego total
e tem um impacto importante nos anos que se
1940-49 seguem. Os dados compilados mostram que
600 1960-69 0 5 10 15 20 25
trabalhadores que tenham entrado no mercado
1950-59 2019 de trabalho numa altura de desemprego 5% mais
Espanha
400 2020 elevado do que a média têm salários 5% mais
1990-99 baixos ao longo de toda a sua carreira. Ou seja,
1970-79 1980-89 Portugal
200 há uma penalização salarial associada à entrada
1986 1992 1997 2003 2008 2013 2018 no mercado de trabalho em contextos de crise
Sérvia
económica, “com impactos mais negativos junto
EVOLUÇÃO DE CONTRATOS A TERMO Polónia dos trabalhadores nascidos nos anos 90”, nota o
Em percentagem, por geração ex-secretário de Estado. “É provável que o mesmo
Macedónia resultado se aplique aos jovens que estão agora a
60 (tentar) começar a trabalhar.”
1990-99
Croácia Porém, admite que é preciso ter em conta
40 que o desemprego aumentou pouco durante
1980-89 a pandemia. “Com os valores elevados de
1970-79 França
1960-69 emigração e com a duração longa do subsídio de
20
1950-59 desemprego, surgiram várias oportunidades de
Suécia
1940-49 emprego para os mais jovens que poderão levar a
0 Nota: A definição de
2002 2006 2010 2014 2018 Países Baixos emprego temporário efeitos ‘cicatriz’ das crises [sobre os que entram
considerada abarca as várias
formas de contrato com no mercado de trabalho] mais reduzidos.”
duração limitada, ou seja, os Ainda assim, o diretor do Observatório das
AUMENTO SALARIAL MÉDIO Finlândia contratos a termo e os de
Desigualdades, Renato Miguel do Carmo, reforça
POR ANO ADICIONAL DE ESCOLARIDADE trabalho temporário
Itália que os jovens foram os mais prejudicados pela
Em percentagem
crise pandémica, do ponto de vista laboral — e
9,7 que uma parte deles enfrentaram duas crises
9,1 8,7 Chipre
económicas no espaço de poucos anos. “No
7,6
Eslovénia primeiro confinamento, verificou-se um aumento
6 do desemprego imediato, que afetou sobretudo
4,8 as pessoas em situação precária: muitos foram
Dinamarca
despedidos, não viram os seus contratos
Alemanha renovados…” Além disso, nota, o desemprego
jovem tem sempre uma proporção mais elevada
Bélgica face ao desemprego médio e esta diferença
1940-49 1950-59 1960-69 1970-79 1980-89 1990-99
“acentuou-se”. “O que significa que há um grupo
FONTE: ESTUDO “A EQUIDADE INTERGERACIONAL NO TRABALHO de jovens que está com grande dificuldade em
EM PORTUGAL”, GULBENKIAN, 2021 FONTE: EUROSTAT
regressar ao mercado de trabalho.” b

E 9
fisga
OS CADERNOS E OS DIAS
HISTÓRIA FRAGMENTADA DO MUNDO

POR
GONÇALO
M. TAVARES

A guerra —
duas imagens
Imagem 1
Interior. O que é? Parece uma cave. No centro
da fotografia, em grande plano, vários corpos
humanos. Os pés virados para nós. Não se vêem
as cabeças ou os rostos, apenas os pés, em
primeiro plano, e depois o resto do corpo. Mas o
ângulo da fotografia não permite ver do pescoço
para cima, como se a forma humana fosse agora
diferente e terminasse ali, no pescoço, antes do
tempo. direito, que mede temperaturas abaixo do zero. criados por cortinas. Esses compartimentos são
A fotografia enquadra esse compartimento Mesmo com zoom é difícil perceber a exacta semelhantes às separações num hospital, feitas por
com duas paredes. Na parede do lado esquerdo, temperatura assinalada por aquele termómetro, cortinas e não por paredes. Esses compartimentos,
um saco pendurado num parafuso. Tentamos mas o que é evidente é que a marca não está na então, em forma de U, com a abertura do U virada
perceber o que tem esse saco, mas não linha vertical do lado direito, a que assinala as para nós, criam, no centro, uma espécie de pátio,
conseguimos. A outra parede nada tem a não temperaturas acima dos zero graus. A marca está um pátio sem luz, um pátio debaixo do solo, mas
ser o que parece ser um aparelho de medir a na linha que assinala as temperaturas negativas. um pátio.
temperatura do espaço. E sim, é isso. Não se consegue distinguir o número, mas No centro da fotografia, está um miúdo, talvez
No centro da fotografia, enquadrados por essa percebe-se que o limite do líquido do termómetro sete, oito anos, com um joelho no chão e outro
espécie de moldura que é definida pelas paredes, está muito lá para baixo, assinalando uma levantado; dobrado sobre uma série de peças que
ali estão vários corpos. Estão quietos porque estão temperatura certamente prevista para manter estão no piso cinzento de cimento — as peças são
mortos. muito mais a morte do que a vida. do tamanho de pequenos biscoitos de cão.
Contamos. São quatro corpos. Em primeiro plano, Depois, podemos olhar de novo para o centro da É o único ser humano que se vê na fotografia. Em
estão os pés. fotografia ou podemos não olhar para mais lado redor dele, vários compartimentos separados por
Da esquerda para a direita, os pés do primeiro nenhum. cortinas e nenhuma pessoa, nem mãe, nem pai,
corpo estão nus e o tronco está rodeado de um nem irmão.
lençol branco; o segundo corpo tem sapatos, o Olhamos de novo para o chão e percebemos que é
terceiro corpo pés nus, o quarto corpo também Imagem 2 um jogo — são quantas peças? Contamos: 1, 2, 3, 4,
pés nus. Rapidamente se percebe que é a fotografia de uma 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14. São 14 peças.
Da esquerda para a direita, olhando agora para os cave, de um abrigo. Vemos vários compartimentos Primeiro, percebe-se a quantidade: 14. Depois
quatro corpos e não para os pés: lençol branco, tentamos perceber a forma. Olhando com atenção
depois calças de canga e camisola azul, depois ficamos na dúvida: talvez um puzzle, talvez peças
lençol branco a cobrir parte da roupa e a parte da de dominó. As peças de um puzzle são todas
roupa não coberta é uma camisa quente, cinzenta diferentes, as peças de dominó são todas iguais —
e vermelha, que deixa parte da barriga à vista deveria ser fácil distingui-las. Mas não é assim tão
de um corpo claramente mais velho; depois, o evidente. Talvez seja dominó — talvez seja outro
quarto corpo: de novo, um lençol branco a cobrir jogo qualquer.
tudo e por isso não se vê roupa alguma, apenas O miúdo tem uma camisa branca, calças azuis, e
essa cor branca do lençol. tem um cabelo bem curtinho. Está completamente
Respirando e olhando de novo vemos que concentrado no jogo — e 14 peças, com o tamanho
há outros pés nus que se vêem na imagem de um biscoito de cão, são por vezes necessárias
anunciando que há outros corpos que não se para que o tempo passe de uma maneira simples
vêem na imagem. AS PEÇAS DE UM PUZZLE SÃO TODAS mesmo para um miúdo de sete, oito anos, sozinho,
Se nos afastarmos um pouco do centro dessa debaixo do solo, numa cave.
fotografia, dos pés, corpos e lençóis, e olharmos DIFERENTES, AS PEÇAS DE DOMINÓ SÃO O cabelo do miúdo é bem curtinho, quase rapado,
de novo, com atenção, para o aparelho que mede TODAS IGUAIS — DEVERIA SER FÁCIL mas com o tempo, já se sabe, se tudo correr bem, o
a temperatura do compartimento, vemos que esse DISTINGUI-LAS. MAS NÃO É ASSIM TÃO cabelo cresce. b
aparelho vertical, de talvez vinte centímetros,
tem duas linhas, uma do lado esquerdo que mede EVIDENTE. TALVEZ SEJA DOMINÓ — Gonçalo M. Tavares escreve de acordo
temperaturas acima do zero, e outra, do lado TALVEZ SEJA OUTRO JOGO QUALQUER com a antiga ortografia

E 10
E ATÉ
30 ABR
IL

EM VO
UCH
OU DE ERS FNAC
CATHL
ON

Junte os seus seguros


na Tranquilidade.
Ao 2º seguro já está a ganhar.
Fale com o seu agente ou vá a tranquilidade.pt

Para mais informações sobre a atribuição de descontos e vouchers por favor consulte tranquilidade.pt. Não dispensa
a consulta de informação pré-contratual e contratual legalmente exigida. Tranquilidade é uma marca da Generali Seguros S.A.
registada na ASF com o nº 1197.
fisga

PASSEIO PÚBLICO ENTREVISTA RUI MIGUEL ABREU


FOTOGRAFIA RITA CARMO
45 MINUTOS COM
De cigarro na mão, recolhida no seu “pombal”, a cantora

SIMONE DE OLIVEIRA
e atriz conversa de forma franca sobre uma vida cheia
de sucessos, recusa-se a ficar aprisionada pelo passado
e confessa ter vontade de enfrentar o futuro: “Quero ter

“SEI QUE POSSO


a liberdade para ir jantar com os amigos, para desfrutar
dos netos. Já chega de luzes e de vestidos compridos.”

DEIXAR UM Já imaginou o momento em que, já após o espetáculo


no Coliseu, a porta do camarim se fecha e de repente
dá por si no camarim, sozinha? O que dirá à pessoa que

PERFUME BONITO” terá à sua frente, no espelho?


Bem, para começar não estarei sozinha e terei
certamente a companhia de duas pessoas que me
acompanham há 30 anos: a senhora dona Fátima
AO FIM DE 65 ANOS, SIMONE DE OLIVEIRA PREPARA-SE Bernardes e a senhora dona Adelaide Figueiredo. Mas
eu já estive muitas vezes sozinha em camarins, não é
PARA DIZER ADEUS AOS PALCOS COM UM CONCERTO NO COLISEU algo que me assuste. Eu tenho uma saudade lavada,
DOS RECREIOS, EM LISBOA, NA PRÓXIMA TERÇA-FEIRA não uma saudade triste: “Ah, porque eu era assim e

E 12
“NÃO GUARDEI NADA. NEM
FOTOGRAFIAS DE ESPETÁCULOS,
NADA. SOU MUITO DESAPEGADA.
SÃO COISAS QUE SE VIVERAM
E QUE ESTÃO LÁ NO SÍTIO DELAS”

agora já não sou.” A minha vida foi tão cheia de tanto aquela canção em inglês... A deste ano? Saudades tirem o Bécaud, o Aznavour, a Édith Piaf ou a Judy
de bom e também de coisas complicadas que eu acho do avô? Eu também tenho... Eu gostei do FF e da Garland, a Shirley Bassey. Olhe, ou a Beyoncé.
que já chega. Quero poder olhar para o futuro, poder Áurea. As pessoas votaram naquela, pronto. Não
estar com os meus amigos, ir jantar fora, estar com é uma canção desagradável, é uma cançãozinha, Apresentou-se no Olympia a convite de Amália.
os meus netos — com um bisneto que hei de ter, se uma balada. Embora, devo dizer, já a vi ao piano e à Ela era a grande vedeta. Uma mulher muito inteligente,
Deus quiser — e não ter estas preocupações: “Ai, meu guitarra a cantar muito bem coisas diferentes. Pode capaz de meter qualquer conversa no bolso ao fim de
Deus, o cabelo, as unhas, o vestido comprido.” Quero a ser que corra bem, nunca se sabe. Quando a Rússia dois minutos. Bastava ela querer. Jantei muitas vezes
liberdade de andar como me apetecer. deu 11 pontos à canção do nosso Sobral pensei logo em casa dela. “Senhora Dona Amália e como devo ir?
“já ganhou”. Ele levou uma canção extraordinária e Venha à vontade”, respondia ela. Depois eu chegava lá
Soa a pessoa resolvida... depois resultou bem toda a sua simplicidade, não e havia gente de vestido comprido e de fato de gala e
Sim, resolvidíssima: tenho para aí uns cinco amigos, ter bailarinos, mas com aquela paz, aquele silêncio, a ela sentada naquela cadeira vermelha. Sabe, às vezes
são suficientes. Tenho uma família que adoro e que me melodia, as palavras. vejo aqueles programas que andaram a fazer em casa
ama e me aceita. Tenho uma casa de que gosto muito, dela e fico convencida de que ela não gostaria nada de
o meu pombal, que é minha e que foi comprada com o Cantou grandes poetas, como David Mourão-Ferreira saber que isso aconteceu. Ela só convidava quem ela
dinheiro das minhas cantigas já depois do meu marido ou José Carlos Ary dos Santos. Tinha algum favorito? queria. Por isso não voltarei a subir lá acima. Sempre que
morrer. Mudei algumas coisas, para ficar mais à minha Olhe, posso dizer-lhe que nunca cantei palavras de que fiz aquelas escadas ela estava lá em cima à espera, do
maneira, mas tudo o resto ficou igual, como o quarto, por não gostasse, tirando, talvez, uma canção horrorosa alto do seu metro e meio. Estive com ela no quarto, foi
exemplo: não me faz impressão nenhuma deitar-me na do gatinho [‘Os Gatos’]. Tive sempre a sorte, mesmo lá que experimentei os vestidos que levei ao Olympia,
cama em que ele morreu. O meu filho até quis que eu quando era o tempo do Nóbrega e Sousa e do Jerónimo feitos pela costureira dela. A joia que levei ao pescoço
fosse para casa dele, mas eu sempre soube que era aqui Bragança, de gostar daquelas palavras. Nunca me era dela, foi ela quem ma emprestou. Sim, foi ela que
que deveria ficar. Gosto de viver sozinha. puseram à frente algo que me tivesse feito dizer: me levou ao Olympia e que sugeriu o meu nome para
“Desculpem, mas isto eu não canto.” O José Carlos o Maracanãzinho. Devo-lhe algumas coisas muito
Vai despedir-se então no Coliseu dos Recreios, que perguntou-me se eu era capaz de cantar “quem faz bonitas. Mas ela não era uma mulher fácil.
é uma sala em que só se apresentou em nome próprio um filho fá-lo por gosto” e eu disse “sou”, porque houve
pela primeira vez quando assinalou os seus 50 anos de colegas minhas que se recusaram. E depois houve Fez também uma carreira muito aplaudida como atriz.
carreira. Porque demorou tanto tempo? muitos outros que escreveram a pensar em mim, nem Isso fê-la questionar se era mais cantora ou mais atriz?
Porque não calhou antes, que quer que lhe diga? sei bem porquê. Acho que uma coisa complementa a outra. Ser atriz
Quando assinalei os 45 anos fiz um espetáculo na Aula ajudou-me em determinados momentos no palco,
Magna e antes disso cantei em tudo o que era boite e Guardou alguns desses manuscritos? quando cantava. Não que ensaiasse os gestos ou isso.
cabaré, andei por Portugal inteiro, nos sítios difíceis e Não guardei nada. Nem fotografias de espetáculos, Não, porque essas coisas saem-me naturalmente. Mas
pobres, fui a todas as terriolas lindas deste país que não nada. Sou muito desapegada. São coisas que se numa certa postura.
é só Lisboa. Conheci os teatros todos, mas nunca tive viveram e que estão lá no sítio delas. Guardo fotos do
aquela coisa de ter que encher o Coliseu. Fiz isso nos 50 meu pai, da minha mãe, dos meus netos, uma minha Houve algum tipo de personagem que tivesse gostado
anos e volto a fazer agora, que ainda tenho a voz no lugar normalíssima e chega. Mas atenção: não tenho agora, mais de encarnar?
e sei que posso deixar um perfume bonito. nem nunca tive. Não sou esse tipo de pessoa. Bem, terei sentido coisas diferentes ao longo dos
tempos, porque dependendo da idade ou do texto
Mais de 50 anos depois da ‘Desfolhada’ e um pouco mais Só tornará mais difícil a missão de quem quiser criar um podemos sentir-nos mais próximas dumas coisas,
ainda depois do ‘Sol de Inverno’, sabemos que o Festival museu em sua memória. mais distantes de outras. Posso dizer que gostei muito
da Canção mudou, evoluiu. Gosta deste Festival? Por amor da santa, deem antes o meu nome a um de fazer “A Tragédia da Rua das Flores” do Eça de
É importante e deve continuar. É evidente que hoje beco qualquer ou, vá lá, a uma travessa simpática. Queirós. Também gostei muito de fazer a Dietrich na
não se canta como se cantava, a música também peça “Marlene”. Sofri muito, chorei baba e ranho. Foi
mudou, mas é nosso dever olhar para o futuro e por Nunca arriscou escrever os seus próprios poemas? muito difícil, mas gostei e fui muito bem dirigida pelo
isso não se pode querer que as coisas permaneçam Não, não. Escrevi só um par de canções, para a minha meu querido Carlos Quintas.
iguais. É por pensar assim que eu não vejo a RTP filha, ‘Era o Verde’, e outra para o meu filho.
Memória: já sei aquilo tudo. Portanto, o festival deve Globos de Ouro, condecorações, aplausos. Foi
continuar, é a nossa festa da música. Posso por vezes É que na década de 60, quando a sua carreira ganhou acarinhada?
discordar de algumas votações, mas isso é normal, visibilidade, o foco na música popular parece ter-se Sim, devo a todo este país o ter chegado até aqui.
porque cada um gosta do que gosta. mudado do intérprete para o autor, consagrando Como dizia o Aznavour, só vamos até onde o público
artistas como Bob Dylan ou Beatles... deixar. Até podemos querer ser a rainha do Sabá, mas
Que pensa de artistas como Salvador Sobral, Conan Pois, mas, sabe, eu nem gosto por aí além dos só o público é que pode decidir isso e eu tive a sorte
Osíris ou Maro, alguns dos vencedores nos últimos anos? Beatles. Sou mais do Bécaud, do Aznavour... Tenho de as pessoas acharem que eu não cantava mal, que
O Conan Osíris não percebi... É o cantor do ‘Telefone’, noção de que é quase um crime eu dizer isto, mas era boa pessoa — e na verdade eu nunca fiz mal a uma
não é? Não percebi, com aquelas coisas na cara... ainda hoje estou para perceber toda aquela paixão pessoa, que eu saiba pelo menos, nunca me dei mal
Gostei dos que ganharam o ano passado com pelos Beatles. ‘Yellow Submarine’? Ai, não me com ninguém. Sou incapaz de odiar. b

E 13
fisga
O MITO LÓGICO
britânico. Continua lá. Imaginem se tivesse vestido foi criticada pelos adversários políticos. Macron
uma camisa e uma gravata para pedinchar mísseis. disparou nas sondagens desde o início da guerra.
Há uma ironia expectável como Putin, o Os políticos têm de saber mudar de pele em
seu antagonista, se apresentou no comício momentos especiais: os Presidentes americanos
POR condescendente de celebração da anexação da vestem um blusão de aviador quando vão em
LUÍS Crimeia — algo que parecia mais um concerto missão de guerra. O nosso primeiro-ministro
PEDRO kitsch moscovita. A internet é tramada e topou quis-nos convencer que deixa de o ser quando
NUNES logo que a parka almofadada de Putin era um tira a gravata — a tira de pano sobre a barriga é
modelito da Loro Piana, uma marca de luxo muito poder do Estado. Mas Macron foi acusado de fazer
do seu agrado, que ainda está à venda na Rússia cosplay. Termo que vale a pena escalpelizar.

Capitão por 1,5 milhões de rublos ou na Europa por €13


mil. O equivalente a 50 vezes o salário de um
militar que está a morrer na Ucrânia. Para nós —
Cosplay é quando alguém se veste da sua
personagem preferida de super-herói. Anton
Shekhovtsov, diretor do Centro para a Integridade

Ucrânia que necessitamos de uma divisão entre o bem e o


mal, entre uma moral e uma falta de consciência
—, esta leitura caiu na perfeição. Como pode
Democrática, diz que Macron está a fazer cosplay
político com Zelensky — dado que este é agora
o “líder moral do Ocidente”. E Macron tem um

veste verde Putin estar a justificar uma guerra injustificável


(vestindo uma parka de €13 mil)? A esta leitura
pode-se juntar o retoque absurdo: ver que o cruel
sentido de teatralidade — é um líder “líquido que
se vai adaptando a papéis distintos de modo a se
tornar eficiente na representação icnopolítica”,
líder da Chechénia, Ramzan Kadyrov, que estará aponta uma especialista em linguagens e
JÁ O TIRANO USA UMA PARKA DE 13 a enviar a sua tropa de elite assassina para a narrativas políticas citada pelo “El País”.
Ucrânia, usa umas botas miliares da Prada — que Mas o verdadeiro ator de toda esta tragédia é o
MIL EUROS E O ASSASSINO CHECHENO só existem para mulher e custam €1500 (mas têm humorista Zelensky. Hoje, dentro da linguagem
UMAS BOTINHAS PRADA (DE MULHER) uma sola muito grossa e alta e são masculinas, vá ‘netflixiana’ que absorveu o universo Marvel,
lá). Como não amar a net? Zelensky é o ‘Capitão Ucrânia’ à frente dos
No sábado passado criei um chinfrim no O simbólico tem muitas camadas. A conta oficial Vingadores — em que só o podemos admitir do
Facebook. Estava a passar os olhos pelos jornais de Instagram da presidência francesa mostrou lado do bem num universo onde cosmonautas
internacionais quando deparei com a notícia Macron no Eliseu de sweatshirt de capuz, barba de amarelo são mais do que cosmonautas de
no “The Times” — que não é propriamente um de um dia e dossiês debaixo do braço. Inédito. amarelo. Pela sua crueldade, imoralidade e
tabloide do alto dos seus 237 anos — e li que os A imprensa francesa ficou obcecada se seria um imprevisibilidade, normalmente são os tiranos
cosmonautas russos tinham chegado à estação aproveitamento eleitoralista do estilo Zelensky ou (como Putin) que exercem um fascínio sobre o
espacial internacional de amarelo “ucraniano”. A sinal de seriedade e proximidade. É uma questão mundo. Desta vez não é assim. É errado dizer que
parte americana da coisa leu imediatamente que de Estado séria. Os Presidentes franceses são dos foi Putin que mudou o mundo. Foi Zelensky ao
se tratava de uma mensagem política — e o meu mais fardados do mundo. Não há um único que não aceitar a boleia dos americanos para fugir do
desejo também. Postei o link da notícia com um apareça em público, oficialmente, sem ser de país. E vestiu uma T-shirt verde. Acreditem, estes
excerto. Mais tarde, os russos vieram dizer que às fato azul-marinho e gravata azul-escura. Não me pormenores não matam russos, mas criam mitos.
vezes “amarelo é só amarelo”, mas no meu feed já lembro de ter visto uma variação — a não ser em E os mitos são imortais. b
havia gente a insultar-me e a acusar-me de estar férias. Esta jogada de Macron (um mero hoodie) lpnunesxxx@gmail.com
deliberadamente a enganar. No dia seguinte, o
“The Washington Post” relembrava-me que eu
não era especial e relatava que um debate aceso
tinha escalado nas redes sociais sobre se havia
intencionalidade no amarelo dos macacões dos
cosmonautas. E que os beef tinham azedado: uns
iam buscar o passado político dos russos espaciais
para abrir a possibilidade de o amarelo ser mais
do que amarelo; outros clamavam que aquelas
são as cores da escola espacial que tinham
frequentado, que por acaso são amarelo e azul.
Como a bandeira da Ucrânia. No meu Facebook,
as pessoas estavam zangadas.
Em três semanas de guerra é tudo menos inocente
o modo aparentemente subliminar como os seus
atores se têm deixado ler. O líder da Ucrânia pode
não ter imaginado que ao optar por uma T-shirt
militar no início da guerra estaria a tomar uma
decisão que ajudaria a dar a marca distintiva
para fazer dele um ícone — tal como foram as
barbas do Fidel ou a boina do Che. Estas figuras
necessitam de algo diferenciador e cuja marca
identitária as eleve dos restantes. E Zelensky, com
a sua cara de menino cansado, ao vestir a T-shirt
GETTY IMAGES

verde sintetizou a ideia de que não vai fugir, que


não dorme, que não abandona o seu povo. Seja
para filmar um vídeo para os ucranianos, seja para
falar ao congresso americano ou ao Parlamento

E 14
fisga
PLANETÁRIO
NO CAMINHO DAS ESTRELAS

POR
JOÃO
PACHECO

WILLIAMSTOWN

De como a viram
Muito antes de haver jornalismo, as imagens de guerra
divulgadas ao mundo eram produzidas por artistas com
conhecimento direto ou indireto dos conflitos. Uns quiseram
denunciar o horror sofrido pelos civis, em particular por
mulheres e crianças. Outros glorificaram as façanhas dos
vencedores já consagrados, preferindo mostrar mais armas
e bandeiras do que cadáveres, gente estropiada e crianças
esfomeadas. Alguns artistas tentaram relatar através de
imagens o sucedido em determinado conflito que nessa altura
ainda estava em curso. E há quem se tenha empenhado no
esforço de guerra, dedicando-se a promover a imagem heroica
de um dos lados, de forma a influenciar a chamada opinião
pública. Pelo meio, levantar ou baixar o moral das tropas passa
há séculos pelas imagens trazidas das linhas da frente, que
tanto podiam servir para dar coragem como para causar medo
e capitulação. As motivações de como vemos a guerra têm
variado, mas o tema tem tido espaço garantido na arte ao
STÄDEL MUSEUM

longo de muitos séculos. E claro que, se as imagens tiverem


sido produzidas em cima dos acontecimentos, é mais fácil
encontrarmos registos fortes do que imagens matizadas. Essas,
só a distância histórica costuma providenciar.
Um dos pintores que melhor serviço trouxe à aprendizagem
dos vindouros sobre o desastre e os malefícios da guerra foi o FRANKFURT
espanhol Francisco José de Goya y Lucientes (1746-1828), mais
conhecido como Francisco de Goya (na imagem). E o genial
Goya é agora um dos autores das observações da guerra que
povoam a exposição “As They Saw It”, que está até 30 de maio
Um amor à prova
no Clark Art Institute em Williamstown, em Massachusetts.
A exposição inclui gravuras, fotografias e desenhos feitos nos
continentes europeu e americano ao longo de 400 anos, entre
de guerra
1520 e 1920. As guerras em causa são as napoleónicas, a Guerra
Civil americana, a Guerra da Crimeia de 1853-1856 e a I Guerra
Mundial. E entre as novidades da coleção há também novas Primeiro, alguma coisa nos diz que resultado não era grande espingarda.
aquisições de fotografias de afro-americanos no serviço militar. já aqui estivemos. Depois, claro que E pareceu-lhe necessário brilhar
Será que temos aprendido alguma coisa com a História? respiramos fundo e puxamos pela por outras vias mais rápidas de
memória. Para nos lembrarmos que ficar na História. É preciso também
a História não se repete. Poderemos esclarecer que não há muito espaço
é encontrar pontos de contacto aqui a perder por aqui com as ligações
e ali, sem ser preciso escarafunchar circunstanciais de tempo e lugar
por aí além. Ou seja, há padrões entre o grande ditador nazi e o
repetitivos do mau comportamento grande pintor alemão Otto Dix (1891-
humano e haverá até gémeos 1969). Mas também não as podemos
separados à nascença por séculos. ignorar. Dix é conhecido como um
E agora que queremos falar sobre dos pintores dos horrores da guerra,
CLARK ART INSTITUTE

pintura, reforcemos uma ideia nada tendo ocupado grande parte do


nova: quem nos dera que Adolf tempo a amar a vida que importa (na
Hitler (1889-1945) tivesse tido imagem).
algum sucesso como pintor. O pobre Ao contrário de muitos artistas,
do homem bem que tentou, mas o optou por não fugir do país durante a

E 16
vigência do regime nazi. E viu o seu FLASHES SIEGEN
trabalho ser integrado em Munique
na famosa exposição de arte
degenerada, em 1937. A exposição
E depois de August Sander
estava pensada para destacar os
maus exemplos, servindo como
forma de humilhação e proscrição É possível retratar um país? E se sim,
social dos artistas expostos. quando se poderá dar o retrato por
O pintor chegou a ser preso no concluído? O fotógrafo alemão August
ano em que começou a II Guerra Sander (1876-1964) passou 62 anos
Mundial (1939-1945), acusado de a fazer um retrato sistemático da
ser cúmplice numa tentativa de população alemã, entre 1892 e 1954.
LONDRES
assassínio de Hitler. E já no final da Pelo meio dessas mais de seis décadas
mesma guerra ainda o chamaram O assunto é desenho. E a novidade de fotografia próxima da sociologia,
apresenta-se em 24 novas
a pegar em armas, aos 53 anos. temos de descontar o tempo perdido

DIE PHOTOGRA KÖLN – AUGUST SANDER ARCHIV


aquisições do British Museum, que
Seria como andar de bicicleta, após a chegada dos nazis ao poder
vêm fazer companhia aos perto
porque já tinha combatido na de 50 mil desenhos da coleção em 1933 e todos aqueles anos que
I Guerra Mundial e trouxera da do museu. Os recém-chegados se seguiram até ao final da II Guerra
experiência uma condecoração estão assinados por artistas pouco Mundial, em 1945. Durante esse
militar. E pesadelos suficientes para conhecidos como Somaya Critchlow período, a fotografia de Sander fugiu
alimentar algumas das pinturas (na imagem), nascidos entre 1964 e das pessoas para as paisagens, porque
mais chocantes do séc. XX. 1994. E ficarão agora expostos cinco não agradaria ao regime nazi ver a
Nas obras mais conhecidas de Dix meses, lado a lado com desenhos de população do país ser retratada de
há sangue e fumo. E corpos que consagrados como Andy Warhol, forma pouco gloriosa, num álbum de
se dissolvem na terra. Homens Käthe Kollwitz ou Michelangelo. conjunto onde cabiam por exemplo
desumanizados atrás de máscaras A exposição chama-se “Drawing agricultores, grandes industriais,
de gás. Caveiras cheias de vermes. Attention: Emerging British artists” e boémios, desportistas, artistas,
está em Londres até 28 de agosto.
Velhos soldados sem pernas ou com intelectuais e vagabundos. Durante a
uma pala escura a tapar um olho passagem do nazismo pelo poder, um Agora e até 29 de maio há uma exposição
perdido. Nestas páginas, a opção foi dos filhos do fotógrafo foi preso por com 70 fotografias de Sander em
escolher uma pintura que transborda motivos políticos, tendo morrido na grande formato, em diálogo com obras
de amor à vida, um amor à prova de prisão. de outros 13 artistas produzidas já no
guerra. Neste caso, também o amor Este retrato de dois pugilistas (na presente século, que incluem fotografias,
irónico a uma suposta harmonia imagem) é de 1929 e resume o método videoarte e esculturas. É no Museum
familiar, desmistificada com o recorrente do fotógrafo. Agrupava os für Gegenwartskunst em Siegen, na
humor trazido pelas caretas infantis retratados segundo profissões e classes Alemanha. E chama-se “Nach August
e pela fragilidade de uma pequena sociais. Todos deviam olhar para a Sander: Menschen des 21. Jahrhunderts”.
flor vermelha. Também o amor máquina fotográfica de forma direta. E Ou seja, em português: “Depois de August
consciente da efemeridade, sim. LIVRO eram fotografados de corpo inteiro no Sander: Cidadãos do séc. XXI”.
Este autorretrato em família é de O cavalheiro e poeta Leonard Cohen seu ambiente, sem que transparecesse E sim, é claro que August Sander nunca
1927, nove anos depois do fim da I morreu há seis anos, pouco depois grande encenação. deu o trabalho por terminado.
Guerra Mundial e seis anos antes de terminar o álbum “You Want It
da chegada de Hitler ao poder. A Darker”. Não calhou que o autor
pintura chama-se “Die Familie de “Songs of Love and Hate” e de
des Künstlers”, ou seja “A Família ‘Hallelujah’ ganhasse o Nobel da
do Artista”. E pode ser vista no Literatura. Mas deixou à eternidade
Städel Museum em Frankfurt, na muita música e prosa. E sobretudo
Alemanha. Nesse museu, ainda poesia do melhor que a Humanida-
de tem dado à luz. Agora, a Grove PHOTO
por cima, faz companhia a obras MATON
Atlantic lançará a 11 de outubro “A
de outros artistas marcantes como
Ballet of Lepers”. Este novo livro de
Albrecht Dürer, Sandro Botticelli, Cohen inclui um romance e outros
Rembrandt, Jan Vermeer, Claude textos escritos entre 1956 e 1961,
Monet, Pablo Picasso ou Francis todos inéditos. Aleluia.
Bacon. A fotografia “Antonia
Não podemos saber se aqui é o pai and Yellow Taxi” é de
que faz uma careta ao filho, nem se o LISBOA William Klein e leva-
faz por acaso ou para o treinar para o A batucadeira e contadora de -nos até à Nova Iorque
susto. Também pode ter acontecido histórias cabo-verdiana, Nha de 1962. O autor nas-
que o pintor se quisesse retratar Balila, tem 92 anos, é cega e viaja ceu em Manhattan há
em plena resposta a uma careta do pela primeira vez para fora do quase 94 anos e a ima-
filho bebé. E isso interessa mesmo? arquipélago de Cabo Verde. Para a gem faz parte da ex-
Lembremo-nos sobretudo que a conhecermos ao vivo aproveitemos posição “YES — Pho-
a festa que vai ser a inauguração da
vida, a guerra e o amor acontecem a tographs, Paintings,
exposição de esculturas “Mulher
pessoas, não apenas a personagens. Films, 1948-2013”,
Cabo-verdiana e seus Ofícios”, de
Neste autorretrato, Otto aparece Steve Espírito Santo. É já hoje às 18 que entre 3 de junho
junto da mulher Martha, do filho horas, no Centro Cultural de Cabo e 12 de setembro vai
WILLIAM KLEIN

Ursus e da filha Nelly. Lembrando Verde, em Lisboa. Também com encher o International
alguma arte sacra, a pintura foi feita a participação de Dadá di Bia e do Center of Photogra-
sobre madeira. Ou seja, sobre a vida. grupo de batucadeiras Freireanas phy, em Nova Iorque.
Já aqui estivemos? b Guerreiras. Obrigado, Cabo Verde! Siga aquele táxi.

E 17
C A RTA S A B E RTA S

COM TODOS OCUPADOS COM


A UCRÂNIA, TIVE DE SER EU A
ENTREGAR O GOVERNO A MARCELO

N
NEM SEMPRE O NOSSO PRIMEIRO-MINISTRO TEM RAZÃO. LEMBRO-ME DE UMAS
ESCASSAS 5673 VEZES EM QUE NÃO A TEVE. DE MODO QUE FOI UM TRABALHÃO!

o momento em que chegou, não posso colocar uma senhora no meio daqueles brutamontes
eu nem queria acreditar. da NATO e dos russos e tal.
Sobretudo porque era fim Nos Negócios Estrangeiros, uma vez que o Santos Silva não
de semana e eu tinha, ainda quer continuar, António Costa pensara noutro qualquer. Mas
assim, vestido um fato, uma tirando o Carlos César, que lhe retiraria popularidade e lhe
camisa branca e uma gravata arranjaria problemas com Marcelo, não via ninguém com nível.
às riscas vermelhas e verdes, — Se calhar — alvitrou —, e uma vez que quero um Governo
para dar com a bandeira pequeno, o mais prático é eu acumular, até porque a política
nacional e a solenidade que externa é feita pela Europa ou pelo Presidente, em diálogo com
ali me levava. Ele não; o Costa girafas e encontros amorosos com aves.
surgiu risonho, com aquele Ainda tentei perguntar pelas Finanças, ao que ele respondeu
riso que o faz desaparecer, estar com a ideia de lá pôr o Medina, mas como o Marques
como o gato de Cheshire, e vestido com uma camisa de suar Mendes dissera ser asneira colocar possíveis sucessores ao
(em português sweatshirt) com um capuz, calças de licra e cargo de líder do PS no Governo ele riscara-o. Não só o Medina
ténis. Ao pescoço tinha uma toalha, como se fosse do balneário como a Ana Catarina, o Pedro Nuno e a Mariana. De modo que
para o ginásio, andar naquelas bicicletas paradas. Quando lhe lhe bastava um contabilista.
perguntei onde ia, respondeu-me de forma desarmante que ia — Até o Rio pode ser — disse ele a rir-se —, uma vez que podia
ter uma reunião comigo para decidir o Governo! acumular as Finanças. Foi o que fez Salazar e tivemos superávite.
— Assim vestido? — E a TAP, os Transportes, a Presidência? — indaguei já aflito.
— Sim — respondeu —, daqui a pouco chega um fotógrafo — Acumulo tudo! Um secretário de Estado aqui e ali, que como
para colocar uma fotografia minha nas redes sociais. Não dizia o Cavaco Silva são ajudantes, e fica o Governo feito. E já
reparou que não fiz a barba? pensei que aguento tudo, porque repare: toda a área financeira
— Na verdade, não tinha reparado, mas olhando melhor e económica é com Bruxelas; toda a política externa é com
nota-se que há para aí uns pelos. Bruxelas, Marcelo e a NATO; toda a área de defesa é com a
— Estou a usar o estilo Macron, que por sua vez o roubou ao NATO; toda a área de segurança e justiça é com o Ministério
Zelensky, segundo diz a direita francesa. É um estilo que dá a Público; a educação é com os sindicatos; a área social e de
entender que estamos sempre a trabalhar, a defender o povo, saúde é com a dra. Graça Freitas. Só nesta é que não posso
de mangas arregaças, prontos a distribuir energia, nem que mexer, mas ela também não é candidata a líder do PS.
seja através daquelas bicicletas que não vão a lado nenhum. Fiquei estupefacto! E perguntei se ele não queria rever a sua
É um estilo que contrasta com o do Presidente Marcelo, que posição. Pensou um pouco e disse:
só tem duas indumentárias: fato e gravata ou fato de banho. — Olhe, se quiser meta aí uns nomes, não mais de 12 ou 15, e
Entendo ser a melhor para dar essa imagem ao povo. Só não leve-os ao Marcelo. Ponha quem quiser, mas avise todos que
sei onde o Presidente francês arranjou aquela dele, que tem quem manda sou eu! b
escrito CPA 10... deve ser dos paraquedistas...
— Sim, é dos comandos paraquedistas, unidade que nasceu na
guerra da Argélia...
— Pensa que eu devia ter uma com referência a um dos ramos
das nossas Forças Armadas?
— Não! Penso que devemos começar a trabalhar!
Então, António Costa pousou um dossiê que tinha no braço,
mas quando lhe perguntei se eram os nomes e respetivas
pastas ele apressou-se a dizer que não; que eram segredos da
NATO. Teriam de ser manuseados com cuidado, pois estavam / COMENDADOR
vedados ao jurista pró-Putin Alexandre Guerreiro, ao Jerónimo
de Sousa e, ainda, ao Pedro Nuno Santos e ao Marques
MARQUES
Mendes, estes por serem muito cuscos. E mostrou-me alguns DE CORREIA
que fariam a delícia deles mas que não posso revelar.
— Então, para a Defesa, quem vai? — perguntei.
— Não sei, o Marcelo não quer o Cravinho outra vez. Se calhar,
o melhor é eu acumular. Pensei na Ana Catarina Mendes, mas

E 18
PUB
ca


G
.2
0

Lisbon Coffee
Fest está de
regresso ao
LX Factory HÁ UM LUGAR ONDE A AMIZADE COMEÇA COM UMA
CHÁVENA DE CAFÉ E ESSE LUGAR É PORTUGAL!

O café faz parte da cultura portuguesa e é de enor- mais sobre este tema. Um local onde é possível pro- Assim, os apreciadores de café vão poder conhe-
me relevância na economia nacional, por isso, a As- var gratuitamente os diferentes tipos de café. cer a Confraria do Café e encontrar, nos cerca de
sociação Industrial e Comercial do Café (AICC), Com experiências para todos os gostos, desta- 60 expositores, diversas marcas e empresas, entre
entidade que agrega a maioria dos torre- cam-se algumas novidades face à primeira elas a Nestlé com a Academia Barista by Nestlé, Del-
fatores portugueses, decidiu promover edição, como o concurso Expresso Per- ta Cafés com a marca Delta Q, a Massimo Zanetti
este produto tão apreciado pelos por- feito em Casa, tirado em máquinas de com as marcas Nicola e Segafredo, a Portela Cafés,
tugueses, dedicando-lhe três dias ex- Cada português café domésticas, o Roasters Village a NewCoffee com as marcas Lavazza e Bogani, en-
clusivos e únicos, porque os portugue- consome cerca de by La Marzocco, no qual os melhores tre outras, os cafés Candelas, os cafés Negrita, os
ses merecem conhecer o mundo do cinco quilos de torrefatores da Europa podem servir cafés Torrié e vários roasters artesanais e cafés de
café e o que de melhor se faz por cá. café por ano cafés incríveis, e ainda After Parties especialidade. Também diversas marcas de equipa-
Assim, após o sucesso da 1.ª edição no Terraço. A par disso, vai decorrer mentos estarão presentes como a Fiamma, a Ranci-
em 2019, que contou com seis mil vi- o Campeonato Nacional de Baristas, liogroup Portugal, a Sage Appliances e a La Cimbali,
sitantes, a AICC tem o prazer de anunciar cujo vencedor irá representar Portugal entre outras.
a 2.ª edição do Lisbon Coffee Fest, no LX Fac- no Campeonato Mundial de Baristas, e ainda
tory, já a decorrer a partir de hoje, dias 25, 26 e 27 palestras, degustações e workshops com temáticas « CONTINUA NA PÁGINA 22
de março. desenvolvidas à volta do café.
O Lisbon Coffee Fest é um evento que celebra o amor
dos portugueses pelo café, promove a sua cultura,
reúne todos os que gostam e trabalham com ele e
junta, ainda, todas as pessoas que querem aprender

Preocupados com a situação que se


vive atualmente na Europa e com o
intuito de apoiar os ucranianos, os
torrefatores nacionais e o Lisbon
Coffee Fest vão-se juntar à Iniciativa
do Banco Alimentar “We Help Ukraine”
e doar café aos refugiados ucranianos
ESTE É O SÍTIO ONDE
VAI QUERER VOLTAR
VEZES SEM CONTA
Em 2022 queremos estar na sua rota

centrocienciacafe.com

Herdade das Argamassas [Junto à Fábrica da Novadelta, direção Campo Maior - Portalegre] 7370-171 Campo Maior | +351 268 009 630 | geral@centrocienciacafe.com
HORÁRIO INVERNO: 3ªF a 6ªF das 10H às 17H | HORÁRIO VERÃO: 3ªF a 6ªF das 10H às 18H | SÁBADO e DOMINGO: 10H às 14H | ENCERRADO: 2ªF e FERIADOS
PUB

» CONTINUAÇÃO DA PÁGINA 20
ca

Os bilhetes têm
um custo de 5€

e estão à venda

G

na loja online da Ti-


.2
2

cketline, na bilheteira
online dos CTT e nos
pontos de venda habi-
tuais. Haverá ainda um
bilhete com um custo de 9€, que contempla um
kit “Lisbon Coffee Fest”, composto por um saco, um
avental, uma travel mug Bodum e o livro “Portu-
guese Coffee”. Os bilhetes comprados para a edição
prevista para 2020 são válidos para 2022, no dia
da semana correspondente.
A Associação Industrial e Comercial do Café tem
tido um papel preponderante na divulga-
ção do café português e dos benefí-
cios do café para a saúde, na apro- As principais
vação e revisão de legislação do origens do
sector e na defesa dos interesses café consumido
dos seus associados, nomea- em Portugal são do
damente através da criação do Vietname (sobretudo Com importação maioritariamente do torra e a combinação de diferentes origens (blends)
selo Portuguese Coffee – a Blend café da espécie Vietname e do Brasil, esse café que torna o café português tão especial e diferente
of Stories® e diversas ações tais robusta) e Brasil é depois torrado de acordo dos restantes.
como o Lisbon Coffee Fest. (café robusta e com o perfil do consumidor
Portuguese Coffee – a Blend of arábica). português e é consumido em O creme do DEFINIÇÃO DE EXPRESSO
Stories® aparece com o intuito de grão, moído ou em cápsulas café português PORTUGUÊS
destacar a torra portuguesa e visa refor- ou é exportado. é persistente e “Bebida obtida numa máquina expresso, a
çar o posicionamento do café português no merca- Em geral, o perfil de torra do café por- cor de avelã partir de um blend de café torrado e com cre-
do externo, apostando no reconhecimento e valori- tuguês é menos intenso, preservando me cor de avelã, denso e persistente. É uma
zação de uma marca nacional coletiva, permitindo a essência do café de origem e confe- bebida aveludada, com corpo acentuado e bem
assim ao consumidor identificar de forma simples e rindo-lhe menos acidez, mais aroma, mais equilibrada. Caracteriza-se por uma enorme com-
imediata a torra nacional e fomentar a procura de corpo e doçura, oferecendo assim uma experiên- plexidade aromática, por uma suave acidez, por um
café transformado localmente, contribuindo para a cia sensorial de degustação que se prolonga e que notável balanço de sabores e por um final de boca
criação de valor em Portugal. cria memória no consumidor. É o nosso processo de agradável e persistente.”
PUB

CANDELAS


Candelas aposta na cultura

ca
23
G.
do café no Lisbon Coffee Fest


Cafés Candelas estará presente num dos eventos
mais importantes do sector do café na Europa, o Lis- Candelas potencia a
bon Coffee Fest (25 a 27 de março). formação e a cultura
A empresa está comprometida com a difusão da do café no canal
cultura do café e com a inovação para dar resposta HORECA para melhorar
às novas tendências, enquanto vai oferecendo no- a experiência de um
vos produtos premium. A Candelas reforçou o seu consumidor a cada
departamento de formação e atualmente conta dia mais exigente
com uma equipa de 10 baristas, que todos os dias e informado
aconselham os clientes da marca no sector da res-
tauração.
O objetivo da Candelas é potenciar o consumo de
café no canal horeca e ajudar as casas comer-
ciais a visibilizar a versatilidade do seu
produto, oferecer novas formulações, A marca
aumentar o recibo médio e dinami- de café oferecerá
zar os estabelecimentos para atrair uma experiência
mais consumidores. inspiradora com a
sua equipa de baristas, disso, os consumidores procuram CAFÉS PREMIUM
TENDÊNCIAS que é incumbida de algo mais do que uma bebida, A marca também realizará uma degustação dos seus
DO MUNDO BARISTA orientar os profissionais querem experiências e espaços cafés mais selecionados:
Nos últimos estudos especializa- da restauração na agradáveis. – The Organic Coffee, um blend ecológico que envol-
dos, detetou-se um maior interesse preparação de um Neste evento importante, a em- ve o paladar com um equilíbrio perfeito de sabor
do consumidor europeu pela cultura café perfeito presa oferecerá uma experiência frutado. Prémio de Melhor Blend 2018 no Fórum
do café e pelos processos que há por inspiradora através da formação e do Café.
trás da cadeia de valor. Regista-se uma aconselhamento de baristas. A equipa da – Sublime, um blend que recupera o espírito da tradi-
procura de cafés de maior qualidade, bem como Candelas mostrará como tirar o maior proveito ção da autêntica torra italiana. A máxima expressão
uma oferta cada vez mais diversificada e especializa- do café com preparações clássicas como o espresso, do café, um blend puro concebido para satisfazer o
da: cafés premium, ecológicos, sustentáveis... Além ristretto, americano... prazer pelo prazer.
PT22

O futuro
a eles
pertence
Aponte estes nomes: Fernão Cruz,
Ana Sofia Martins, Afonso Reis Cabral,
Agir e Cátia Domingues. Eles vão
dominar o panorama das artes, cultura
e entretenimento em Portugal.
Uma seleção da Revista do Expresso
FOTOGRAFIAS NUNO FOX

E 24
FRESCURA Fernão Cruz
foi o mais jovem artista
a expor individualmente
na Gulbenkian. Agora
fará algo “nos antípodas”
do que apresentou

E 25
FERNÃO CRUZ ARTISTA PLÁSTICO feito pela curadora Leonor Nazaré, mas
a pandemia meteu-se pelo meio. “Foi
um parto longuíssimo, foram três anos,

A transformação e às tantas eu já não podia com o pro-


cesso, mudei a ideia da exposição 3000

no coração da arte vezes e acabei por regressar à ideia ini-


cial.” O resultado foi uma exposição bi-
partida, atravessada por um túnel es-
TIAGO
BAPTISTA
curo. No início íamos ao encontro de Artista plástico
As suas pinturas e esculturas miram-nos um conjunto de telas que transporta-
de um lugar antigo. Move-o o desejo vam visões surreais onde a queda, a es- Nas suas primeiras pinturas,
curidão, o voyeurismo e a claustrofobia há 10 anos, é reconhecível
se desprendiam de situações biográfi- a paisagem e as figuras
cas e existenciais. No outro lado, as es- de um Portugal rural e a
já não o é há muito tempo, ou é pseu- culturas colavam-se ora à farsa, ora à procura da queda e da ruína.

E
do-teórico-burocrata. O que a escola autodepreciação, mas também a um Em algumas ilumina anti-
me deu, além de um novo palco para a sentido do trágico incomum entre os heróis, noutras troça dos
minha existência, foi a possibilidade de artistas contemporâneos. Um teatro, deuses de uma mitologia,
encontrar pessoas extraordinárias, de podíamos dizer, e esse sentido da tea- em constante atualização,
quem fiquei amigo.” Pelo meio aconte- tralidade é uma das características que sobre a nação portuguesa
ceram duas experiências de residências tornam as suas obras particularmente enquanto terra de grandes
artísticas internacionais, em Barcelona reconhecíveis: “O que me interessa no feitos. Tem vindo a trocar
m 2021, o nome de Fernão Cruz (Lisboa, e na China. Fernão não esconde o de- trabalho artístico é aquele momento esse realismo crítico pela
1995) polvilhou as listas das melhores sapontamento com o tempo passado em que ficamos diante de uma presen- produção de imagens
exposições do ano, surpreendendo o na Catalunha — “Achei-os muito auto- ça tão completamente irrefutável que disruptivas de um mundo
público menos submerso na arte con- centrados e sem qualquer noção do que não conseguimos fugir dela.” angustiado e à beira da
temporânea, que pouco ou nada ouvira é arte contemporânea” —, mas encon- No caso de Fernão, estas caracterís- falência climática. É autor
falar nele. Para os mais atentos, porém, trou em Shenzhen algo bem diferente. ticas convergem para a prática da es- de BD, o que é reconhecível
essa surpresa começou no facto de um “Foi incrível, estive lá um mês e não saí cultura e da pintura, sobreposição que nas suas obras. Nasceu em
rapaz de apenas 25 anos se ter trans- do jetlag.” Trabalhava à noite e pintava não é assim tão comum: “Interessa-me Leiria, em 1986, fez uma
formado no mais jovem artista a expor freneticamente, produzindo dezenas muito trabalhar a separação entre as residência artística em
individualmente na Fundação Calous- de pinturas, com materiais muito bons. duas disciplinas, mas distingo duas coi- Berlim e vive em Lisboa.
te Gulbenkian. “Estar deslocado física e mentalmente sas: há o trabalho, aquilo que ele é antes / CRISTINA MARGATO (CAIXAS)
A que se deve tal feito? Dizer que da nossa origem permite-nos ir a luga- de existir formalmente e aquilo em que
aos 12 anos já desenhava incessante- res mais recônditos de nós. Essa foi a ri- depois se torna. O que ele é antes disso
mente ajuda a explicar este percur- queza de estar desterrado.” são desejos, medos, preocupações, ca-
so, mas a precocidade deve pôr-se em A partir de 2015 começa a expor prichos, precipícios.” Esta abordagem
perspetiva. Criado no Estoril com a regularmente, e as exposições “A Se- afasta-o claramente das agendas artís-
mãe e o irmão, Fernão é filho de um gunda Estrela à Direita”, apresentada ticas correntes, as questões de género,
leiloeiro e cresceu rodeado por obras num armazém onde mostrou pequenas a arte pós-colonial ou quaisquer outras
de arte acessíveis ao toque. Aparente- pinturas banhadas a alumínio, e “Long que as modas teóricas imponham: “A
mente, nunca recuperou dessa fami- Story Short” (na Balcony Gallery) aju- última notícia do dia não me interessa. TERESA
liaridade. “Sempre me relacionei com dam a definir um universo onde a es- Como todos sabemos, há uma pressão COUTINHO
os objetos para lá da contemplação. O tranheza e as presenças em abismo implícita para trabalhar algumas ques- Dramaturga e atriz
toque é muito importante. Recuso-me nos interpelam permanentemente. Ver tões, que são certamente importantes,
a não tocar em peças nos museus. Já fui e ser visto, espreitar e ocultar como mas o meu trabalho não vem daí. A mi- A sua primeira peça,
expulso do Rijksmuseum, em Ames- situações que ligam o observador à nha arte não é uma forma de comentá- “Eterno Debate”
terdão, mas não consigo resistir. Nunca obra tornam-se dados recorrentes: “Na rio, é algo que me constrói ativamente.” (2018), estabeleceu os
foi bem definida para mim a fronteira verdade, é um jogo de poder, a obra é E agora, Fernão? “Transformação interesses e as urgências
entre o público e o privado, os objetos que vos está a ver, não são vocês que é a palavra que mais me interessa em da atriz e dramaturga e
artísticos e os artesanais... Mas não sou a veem. A presença dela desafia-vos.” arte. Neste momento quero fazer coisas o seu enorme potencial
assim com as pessoas, não sou a Flo- 2021 seria o ano decisivo. Em abril que estão nos antípodas do que fiz para enquanto voz criadora.
ribella que vai abraçar a árvore.” Esta apresenta no Centro Internacional das a Gulbenkian.” O Instituto Francês de Com humor, expôs os
característica incomum não explica Artes José de Guimarães, em Guima- Portugal convidou-o para fazer uma discursos dominantes
obviamente o rápido reconhecimento rães, a exposição “Quarto Blindado”, candidatura a uma residência de três sobre o feminino, e os seus
de que foi alvo, mas ajuda a entender que funcionava como uma cápsula re- meses na Cité International des Arts. mecanismos, e a falácia de
a cremosa textura das suas pinturas ou tida na infância, repleta de personagens Foi ainda convidado para fazer um li- um mundo mais igualitário.
o modo como os materiais (que vão do inusitadas e referências a Peter Pan. Mas vro de artista e tem um projeto com Em 2021 estreou no Teatro
pano ao bronze, do papel machê à re- foi, evidentemente, “Morder o Pó”, uma uma amiga curadora. Nacional D. Maria II “Solo”,
sina) participam na expressividade das mostra com 10 pinturas a óleo e resina e Como quase tudo em Fernão Cruz, uma peça autobiográfica
suas esculturas tanto como o imaginá- 20 esculturas em bronze, que abriu em também o futuro é movido pelo dese- em que refletiu sobre a
rio vertiginoso que as alimenta. setembro do mesmo ano, que lhe gran- jo: “Aflige-me ir a um supermercado forma como o teatro e o
Depois do ensino secundário, onde jeou a maior visibilidade. O convite foi e haver imensos pacotes de bolachas. cinema reforçam uma ideia
a opção foi a matemática, um caminho Eu trago um, mas assim que saio fico a de mulher pouco favorável
acabou por se impor: a Escola de Belas- pensar nos 300 pacotes que lá deixei. à emancipação. Coordena
-Artes em Lisboa. A experiência não foi A sua primeira grande exposição É assim com as relações, com o tra- o ciclo de poesia Clube
exatamente satisfatória. “Tive quatro terminou em janeiro, na balho, com tudo. Fazer uma pintura dos Poetas Vivos, no D.
professores que foram muito impor- Gulbenkian. Várias obras suas é ótimo, mas é uma merda, porque eu Maria II (também podcast).
tantes pela forma como nos interpe- foram adquiridas para a Coleção não fiz a outra. É quase um autoatro- Nasceu no Porto
lavam, mas a maioria não é artista, ou do Centro de Arte Moderna pelamento.” / CELSO MARTINS em 1988. / C.M.

E 26
ANA SOFIA MARTINS ATRIZ Foi este o papel mais desafian-
te que desempenhou desde que, em
“Ir para os Estados Unidos foi a me-
lhor coisa que aconteceu na minha

O próximo salto
2015, a TVI a convidou para representar vida. Deu-me mundo, independência,
Mara Venâncio, protagonista da novela tornou-me mais corajosa...” Tinha ape-
“Única Mulher”. “Ouro Verde”, “Valor nas 16 anos. No início ainda trabalhou
da Vida” e “Quer o Destino” foram as e estudou ao mesmo tempo (vinha a
outras novelas do mesmo canal em que Portugal fazer os exames), mas depois
A ambição internacional fê-la dizer adeus ao foi protagonista, antagonista ou inte- do 11º ano a oportunidade de fazer o
conforto das novelas. Já sonha com outros voos grou o elenco principal, além de ter en- seu primeiro catálogo para a Victoria’s
trado na primeira série portuguesa da Secret falou mais alto. Além desta, re-
Netflix, “Glória”, e no filme “Quero-te alizou campanhas para marcas como a

D
Tanto”, de Vicente Alves do Ó. MAC, editoriais de moda para revistas
em Portugal e “não houve estudos para Mas os seus primeiros passos não como “Marie Claire” ou “Glamour” e
ninguém”, recorda ao Expresso a mode- foram dados no mundo da represen- desfiles para Narciso Rodriguez, Perry
lo, apresentadora e atriz. Ou talvez não. tação. A rampa de lançamento foi a Ellis e Baby Phat.
Foi durante esse período que, a moda. Começou cedo, aos 14 anos, não Acredita que o que a destacou não
partir de casa, começou a fazer self- porque tivesse essa ambição mas gra- foi o cabelo — que em Portugal é a sua
-tapes atrás de self-tapes para tentar ças a um acaso e a um olheiro que con- imagem de marca e uma parte im-
dar um salto internacional na carreira. seguiu ver para lá das aparências. À portante da sua identidade —, já que
E houve uma que correu bem. De tal data maria-rapaz, passeava na rua com nos Estados Unidos “havia mil miúdas
iz-se uma eterna insatisfeita. Por vezes forma que a atriz de 35 anos acabaria as amigas quando este lhe diz que po- parecidíssimas” consigo, “bem mais
impaciente. Não que não goste de viver, por viajar rumo a Roma e a Londres, dia ser modelo. Surpreendeu-se. Du- giras, mais altas, mais magras”. Des-
mas porque quando começa a sentir- depois de ter sido escolhida para in- vidou. E continuou a viver a sua vida contraída e sociável, defende que a sua
-se demasiado confortável num sítio tegrar o elenco da segunda temporada até que, um mês depois, a sua família maior arma foi a sua personalidade.
precisa de sair dessa zona de conforto da série “Devils”, um thriller financei- precisou de dinheiro. Nem hesitou. A Descreve-se como uma profissional
e partir para outra. Quer viver ao má- ro da Sky coproduzido entre Itália e o necessidade aguçou o engenho e, ape- competitiva (no bom sentido), metódi-
ximo, dar o máximo — não a estimula Reino Unido e baseado numa obra li- sar de nunca ter imaginado a vida na ca, brincalhona, que não gosta de falhar
pensar que pode não estar a aproveitar terária de Guido Maria Brera, com es- moda, acabou a trabalhar nesse meio (nem sempre lida bem com o erro). Diz
100% do seu potencial. treia a 22 de abril em Itália e mais tar- durante muitos anos — no primeiro ser destemida no campo pessoal e pro-
E foi isso, juntamente com a ambi- de noutros países, incluindo Portugal ano em Portugal, depois nos Estados fissional — exceto quando lhe falam em
ção por uma carreira internacional, que (HBO Max). Contracenando com no- Unidos, com uma paragem inicial em teatro, onde receia não estar à altura
levou Ana Sofia Martins a rescindir o mes como Patrick Dempsey e Ales- Paris para fazer a sua primeira campa- — e que o marido, o cantor e compo-
contrato que tinha com a TVI no início sandro Borghi, Ana Sofia vai ser Ca- nha internacional, para a Benetton, que sitor David Fonseca, a estimula a fazer
de 2020 para dar continuidade aos seus rolina Elsher, uma investidora orien- aos 15 anos colocou a sua cara nos au- as coisas de forma diferente. Mas reco-
estudos em representação em Londres tada para o dinheiro e pouco focada na tocarros, catálogos, campanhas e out- nhece que, às vezes, é um bocadinho
(e que já a tinha levado, anteriormen- vida pessoal, numa trama relacionada doors do mundo inteiro. “Maria das Regras”: gosta de chegar a
te, a trocar a carreira de modelo pela de com o universo da internet e a partilha horas, fazer tudo direitinho, e transpor-
apresentadora de televisão). Um salto de dados dos utilizadores, a quem es- ta isso para a vida pessoal. Ainda assim,
de fé que lhe saiu furado, uma vez pou- tão a ser cedidos, quem os detém e os Será uma das estrelas da série é uma pessoa sociável e divertida, mas
co depois a pandemia entrou em força milhões que são feitos em torno disso. “Devils”, brevemente na HBO Max diz ter um sentido de humor por vezes

E 27
incompreendido — embora se ria muito
consigo própria. AFONSO REIS CABRAL
Traz consigo uma espécie de instin-
to de sobrevivência, que a leva a equa-
ESCRITOR

Ao seu
cionar a priori todas as opções más que
podem surgir, para se precaver. “Se
MARO
ritmo
algo mau acontecer, tenho de estar
preparada”, explica. É como se já vies- Cantora e compositora
se com um chip de sobrevivência que a
leva a pensar como pode ultrapassar as Maro é Mariana Secca,
adversidades da vida. Um instinto que recém-vencedora do
advém em grande parte do contexto di- Festival da Canção, Aos 9 anos começou
fícil em que cresceu. representante de Portugal a escrever poesia. Hoje,
Acredita que as dificuldades por na Eurovisão. Estudou aos 31, anda cada vez mais
que passou a ajudaram a ser mais des- música e aos 19 anos rumou
temida e lutadora. Cresceu no bairro a Boston para se formar no por caminhos imprevistos
social da Outurela, em Carnaxide. Filha Berklee College of Music.
de pai cabo-verdiano e de mãe portu- Durante o confinamento,

N
guesa, foi abandonada pela mãe aos 4 a partir de Los Angeles,
anos de idade. E, apesar de ter conti- publicou vários temas
nuado a manter uma boa relação com no YouTube, chamando
o pai (que faleceu em 2017), este entre- a atenção de figuras da
gou-a a ela e ao irmão, um ano depois, música internacional,
ao cuidado dos padrinhos. “Sou quase como Eric Clapton, com
estratega desde miúda. O que é bom, quem fez um dueto. Jacob
mas também pode ser mau, porque fi- Collier, vencedor de quatro
cas assim em tudo.” Grammys, convidou-a
A verdade é que acredita que hoje para a sua banda. Em 2018 o sexto ano de escolaridade, quando o
está onde está devido a este instinto lançou um álbum nas professor de História pediu aos alunos
de sobrevivência. E à capacidade de plataformas digitais com um trabalho sobre as Invasões Fran-
ter sempre um plano A, B, C e D. Cada canções que compôs na cesas, Afonso Reis Cabral não esteve
vez que lhe propõem um novo desafio infância. Nasceu em Lisboa com meias medidas. Do alto dos seus
que gostava de experimentar atira-se há 27 anos. / C.M 11 anos, decidiu escrever um conto. O
de cabeça, quase sem pensar. Como protagonista era Joaquim, um cam-
quando lhe propuseram entrar na sua ponês de uma aldeia perto do Buçaco,
primeira novela. Noutros casos é ela que um dia vê reflexos de baionetas o primeiro romance: uma narrati-
que cria as oportunidades. Foi o que no outro lado da serra e junta ami- va dura, seca, nada sentimental, so-
aconteceu com a MTV, onde se estreou gos, com enxadas e foices, para com- bre o relacionamento entre dois ir-
na apresentação, e agora nesta série bater as tropas de Napoleão. “Depois, mãos, um dos quais com síndrome
internacional. Em todos procura per- esse grupo participa na batalha pro- de Down. Cheio de dúvidas quanto
ceber como se faz. Estudar, aprender, priamente dita”, relembra o escritor, ao valor literário da obra, e ao modo
reinvestir na carreira. JOÃO REIS hoje prestes a fazer 32 anos. “A histó- de abordar um tema difícil, mas que
Hoje, com a sua estreia numa série Escritor e tradutor ria acabou por ficar com 60 páginas: lhe era muito próximo (um dos seus
internacional, sente-se realizada. Pelo uma espécie de novela, com persona- irmãos sofre de Trissomia 21), enviou
menos por agora. Mas já deixou um Acabou de ser nomeado gens bem definidas e enredo.” Antes o manuscrito para a edição do Pré-
alerta: “Se me vires muito contente du- para o Dublin Literary ainda, aos 9 anos, começou a escre- mio LeYa de 2014 e tornou-se, aos 24
rante muito tempo com alguma coisa, Award 2022, com um ver poesia, enquanto “porta de entra- anos, o autor mais novo a receber o
desconfia. O que é que ela já está a ma- novo livro que pretendia da” para a literatura, um frenesim de importante galardão, na altura com
gicar que vai fazer a seguir?” A verdade ser uma tradução para o versos que se materializaria mais tar- um valor de 100 mil euros.
é que não sabe. Mas sabe que a televi- inglês de um romance seu: de no seu primeiro livro, “Conden- Em 2017 abandonou o emprego
são ainda é um mundo pouco inclusi- “Bedraggling Grandma sação”, publicado aos 15 anos e hoje numa editora para se dedicar exclu-
vo, em que as histórias que são con- With Russian Snow”. Em condenado ao limbo da juvenília va- sivamente à escrita. Tinha uma ideia
tadas geralmente não são histórias de 2021 também publicou “Se gamente embaraçosa. “No outro dia, de romance na cabeça, com outro
negros — nem contadas da perspetiva com Pétalas ou Ossos”, no um amigo mandou-me a fotografia tema arriscado (a história da morte da
dos negros. “Se isto é racismo? Eu acho qual reflete sobre o mundo de um exemplar do livro, perguntan- transexual Gisberta, no Porto), e pre-
que sim. É um preconceito enorme.” literário e as suas dinâmicas do-me quanto é que eu estava dis- cisava de tempo e foco total. Termi-
Defende que são precisos mais guio- perniciosas, a partir do lugar posto a pagar-lhe para que ele não o nou “Pão de Açúcar” em sete meses,
nistas ou, pelo menos, consultores ne- do escritor. Foi finalista do comprasse. Ainda não acertámos um num “fogo de escrita”. A narrativa,
gros, para que as histórias sejam mais Prémio Fernando Namora valor”, diz, sorrindo. que ficciona a relação de um bando
ricas, realistas e diversas. E, mais uma e semifinalista do Prémio A precocidade é uma das marcas de adolescentes problemáticos com
vez, não fica à espera que os outros o Oceanos. Nasceu em distintivas de Afonso Reis Cabral. No Gisberta, da solidariedade inicial ao
façam por si, também aqui considera Gaia, em 1985. Viveu início da adolescência, por exemplo, desenlace trágico, obrigou-o a sair da
que pode ter um papel. Aliás, já está a na Noruega, Suécia e resolveu pedir boleia a um motoris- sua zona de conforto, algo que Afonso
ter. “Não posso especificar, mas já es- Inglaterra. Traduziu Knut ta de camião TIR e viajou com ele até considera importante na criação lite-
tou a escrever. Tudo começou como Hamsun, Halldór Laxness à Alemanha, em busca de uma his- rária. Publicado pela D. Quixote, o ro-
uma consultoria minha e de repente já ou August Strindberg. tória para contar, on the road. Uma mance foi distinguido, em 2019, com
me estavam a propor escrever cenas. É tradutor de línguas experiência que haveria de repetir o Prémio José Saramago. Se o LeYa
Nem sei se isto vai para a frente, mas nórdicas, um dos uma dúzia de anos mais tarde, mais foi o momento determinante do seu
era uma ambição que eu tinha.” Mais poucos que existem maduro e já com estatuto de escri- percurso — “alterou o rumo da minha
uma. / MARIA JOÃO BOURBON em Portugal. / C.M. tor. Entre as duas viagens terminou vida, literalmente da noite para o dia”

E 28
ALICE NETO
DE SOUSA
Poeta

“Esta poeta cor de pele/ já


pintou a carta de alforria”
e conquistou o mundo, e
as redes sociais, depois de
ter declamado o poema
em que se incluem estes
dois versos. Fê-lo no
programa “Bem-Vindos”,
da RTP África, e sem
querer ganhou autoridade
na luta contra o racismo
e o preconceito. Ainda
não publicou nenhum
livro, mas já tem editoras
interessadas. Esta
semana, na abertura das
comemorações do 50º
aniversário do 25 de Abril,
leu um poema original
sobre a democracia.
Nasceu em Lisboa e é
licenciada em Reabilitação
Psicomotora. / C.M.

—, o Saramago acabou por lhe abrir em residências literárias na quinta, traseiras do prédio onde passou a in-
outro tipo de portas, lá fora, com tra- em Santa Cruz do Douro, agora co- fância. Chamou quem a quisesse ver,
duções publicadas em Espanha, Itália nhecida pelo nome — Casa de Tor- num sábado de reflexão eleitoral, e de
e Alemanha. mes — que o escritor oitocentista lhe repente havia centenas de pessoas re-
Neste momento, já concluiu a pri- deu em “A Cidade e as Serras”. Outro unidas no mesmo sítio, só para con-
meira versão do que será o próximo objetivo para o mandato é concluir a templar e abraçar uma árvore.
romance, sobre o qual prefere não iniciativa que nasceu de um repto da Algo de parecido aconteceu em MARCELINO
abrir muito o jogo. “Entendo este li- fundação: dar honras de Panteão Na- 2019, quando partilhou no Facebook SAMBÉ
vro como o fim de uma trilogia. Mais cional a Eça de Queiroz. o desafio a que se propôs — percor- Bailarino
uma vez, abordo um tema comple- A pulsão de estar sempre a fazer rer a pé os 738,5 quilómetros da Es-
xo, desconfortável, contado na pri- coisas provoca em Afonso uma cer- trada Nacional 2, entre Chaves e Faro A pandemia afastou-o
meira pessoa por um narrador que ta ansiedade, que ele combate das —, odisseia pessoal acompanhada do palco, depois de o
não é fiável.” Falta-lhe agora ‘pegar’ mais variadas maneiras. Quando vi- quase em direto por uma multidão diretor do Royal Ballet,
no material e dar-lhe as voltas de via em Campo de Ourique, construiu de comentadores. O diário desses 24 em Londres, Kevin
que precisa, algo que nesta fase não um aviário no terraço, onde criava dias transformou-se num livro (“Le- O’Hare, ter anunciado
está a conseguir, em parte devido à pássaros exóticos, como bengalins, va-me Contigo”) e não é de excluir que assumiria o topo na
dispersão por vários compromissos mandarins e pardais-de-java. Che- que outras obras nasçam destes im- temporada 2019-2020.
paralelos: as crónicas na imprensa e gou a ter uns 60: “Criar um pássaro pulsos que levam Afonso Reis Cabral No regresso foi Romeu
um programa de rádio, “Biblioteca à mão é um exercício de inocência a seguir, de vez em quando, por ca- em “Romeo and Juliet”,
Pública”, em que todas as semanas pura, é descansativo.” Noutras altu- minhos imprevistos. Além de andar provando não ter perdido
discute, com Dulce Maria Cardoso e ras, chegou a ter cobras, ouriços-ca- muito, sempre que tem oportunida- o talento e “a energia
Richard Zimler, um livro que os três cheiros, furões, porquinhos-da-ín- de, pratica regularmente boxe, ativi- contagiante” que os
leram ou releram. dia, mas neste momento está numa dade física que lhe serve de “purga” críticos lhe reconhecem.
A tudo isto junta-se o trabalho fase sem animais. O que não significa e antídoto para o stresse. Também A revista “Dancing Times”
como presidente da Fundação Eça menos interesse pela Natureza. Numa acredita nas vantagens criativas da colocou-o na capa.
de Queiroz, cargo que assumiu este crónica, chamou a atenção para um rotina. Mesmo tendo o privilégio de Prepara-se para ser o
mês. Trineto do autor de “Os Maias”, dos segredos mais bem guardados dispor do seu tempo como quer, par- príncipe Siegfried em
já era anteriormente administrador do Porto: uma magnólia enorme, e tilha com amigos um local de traba- “Swan Lake”. Nasceu no
da instituição e encara as novas fun- rara, que floresce branquíssima nas lho comum, de onde vão saindo li- Dia internacional da Dança,
ções, não remuneradas, com um “es- vros de ficção, fados, quadros e te- em 1994, em Lisboa, e
pírito de missão cultural”. Além de ses de doutoramento em Filosofia. cresceu em Paço de Arcos.
manter o que vinha sendo feito (se- Assumiu este mês a presidência Como na estrada, como junto à árvo- Ingressou no The Royal
minários, encontros de tradução, um da Fundação Eça de Queiroz re secreta, Afonso gosta de fazer as Ballet, aos 16 anos, depois
prémio literário), Afonso quer dar e prepara residências literárias coisas sozinho, mas acompanhado. de ter sido bolseiro na Prix
“um passo em frente”, apostando na Casa de Tormes / JOSÉ MÁRIO SILVA de Lausanne. / C.M.

E 29
B
ernardo Costa celebrou a 18 de mar-
ço o 34º aniversário. 34 anos de vida,
a maior parte deles de entrega total à
música. O país conhece-o como Agir.
E se no seu nome artístico se pode ler
uma óbvia propensão para a ação, o
momento presente confirma-o: dias
depois participaria no Festival da Can-
ção como autor do tema ‘Corpo de Mu-
lher”, interpretado por Milhanas.
Uma outra forma e ação: no último
par de anos, Agir expressou opiniões
com lastro político e eco viral, algo re-
lativamente invulgar para um artis-
ta tantas vezes retratado como tendo
um público base muito jovem, infantil
AGIR MÚSICO disco acústico, mas isso não significa
que a seguir não me volte a apetecer
feito por isso. Mandei-lhe umas coi-
sas... vamos ver. Poderia pensar-se que
até. “Até à pandemia andávamos todos fazer uma eletrónico. O que me vai de- a relação com o fado é também fruto do
muito autocentrados, muito concen-
trados na correria das nossas vidas, e Fazer finir daqui para a frente não será tanto
o centrar-me num só estilo, mas tomar
avançar da idade, mas Bernardo garan-
te ter crescido com o fado e que a mú-
eu tinha concertos todos os dias, mui-
to que fazer. Nunca tinha tido tempo
para parar e pensar. Sei que há coisas
o que mais cuidado com as canções. Já lancei
muita coisa, mas agora quero que cada
uma seja mais aperfeiçoada, mais ma-
sica popular “do Fausto, do Zeca, este-
ve sempre cá dentro”. “Muita gente na
música não perderia nada se dedicasse
horríveis como o racismo, mas nunca
fui vítima disso. Foi necessário parar, ainda turada, sem deixar de ter o carácter ge-
nuíno que penso que me define.”
tempo a escutar a sério os maiores do
nosso fado e os nossos melhores escri-
ler sobre o assunto, ver documentários,
conversar com pessoas que o sofrem na não O futuro parece-lhe claro, mas ain-
da está a resolver o passado. Admite ter
tores de canções. Aprende-se muito.”
A aproximação a esses marcos da nossa

foi feito
pele. Ter tempo para fazê-lo é um pri- expurgado o seu canal de YouTube de cultura é, acredita, uma forma de dife-
vilégio e não o usar é quase um insul- “algumas músicas antigas com letras renciar os artistas que procuram espa-
to. A pandemia permitiu-me arrumar mais sexistas” e que agora procura tra- ço no panorama internacional. “É bom
as ideias, e terá sido isso que me levou a balhar com quem partilhe os mesmos não soarmos todos ao mesmo.” É tem-
intervir um pouco mais.” Agora, cons- valores que procura defender. “Não po de Agir. / RUI MIGUEL ABREU
ciente da voz que tem nas redes sociais,
Com 34 anos quero parecer a Madre Teresa, nem es-
mas também do espaço de que usufrui acabados de fazer, tou a dizer que vou usar as canções para
enquanto artista, podemos escutá-lo parou para pensar na fazer sempre intervenção, mas também
a comentar “a realidade”, como em música que vai deixar. não cedo à primeira coisa que me vem à
‘Prescrever’, canção do ano passado cabeça. Estou a sentir o peso da idade.”
em que canta “não somos todos iguais,
É outro homem Festival da Canção ‘arrumado’ (‘Mi-
o sol nunca é para todos”, ecoando, em lhanas’ ficaria em 6º lugar), prepara,
conteúdo e forma, o que aprendeu a es- enquanto cantor, a edição do seu novo
cutar José Afonso. e do sossego campestre talvez ajude a trabalho, um conjunto de canções que CATARINA
Agir soma quase 200 mil ouvintes explicar a contenção. espelha a decisão de enfrentar “novos
VASCONCELOS
mensais no Spotify, plataforma de stre- Agir cresceu e agora o seu público desafios”. É um novo Agir, aquele que Cineasta
aming em que os seus 10 temas mais terá de fazer o mesmo. “Recentemente, reencontraremos em breve. “Normal-
populares acumulam cerca de 35 mi- dei por mim a pensar que não é assim mente fazia primeiro o instrumental, A primeira obra, “A Metamorfo-
lhões de plays. Os números são ainda tão bom romantizar o excesso de tra- trabalhava depois a melodia e só no fi- se dos Pássaros” (2020), é um
mais sérios no YouTube, onde o seu ca- balho”, admite. “Quero fazer as coisas nal ia à letra. Mas desta vez comecei pe- filme híbrido, entre o docu-
nal regista 320 mil seguidores que já vi- com calma, pensar mais no que vou fa- las letras, foram as primeiras coisas que mentário e a ficção, ou uma
ram os seus vídeos 134 milhões de ve- zer e, tendo já passado os 30, também escrevi. Decidi privilegiar a autentici- metaficção “maravilhosamente
zes. Um dos mais populares, ‘Parte-me começo a pensar no que vou deixar. Eu dade da primeira tentativa, assumindo filmada”, como elogiou a “Va-
o Pescoço’, foi visualizado mais de 15 preferia agir duas vezes antes de pen- até eventuais erros. Não tem nada de riety” e repetiu “The Guardian”.
milhões de vezes desde que foi publica- sar. Mas isso já lá vai. Dantes fazia uma música eletrónica, tem partes escritas Tem uma forte contaminação
do, em maio de 2015. É tema de homem música a brincar com os meus amigos em pauta. Quis mesmo fazer algo que das artes plásticas e uma abor-
solteiro, pedaço de música pop des- no estúdio e aquilo saía, mas agora dou nunca tinha feito antes.” O álbum an- dagem lírica e íntima, através
comprometida, alinhada com o pul- por mim a pensar no tipo de obra que terior, “No Fame” (2018), datava ain- da qual questiona a história da
sar eletrónico do dia, que retrata Agir vou ter quando chegar aos 50 ou aos 60 da do tempo em que era solteiro. Mas própria família. O filme foi a
no meio dos companheiros, a diver- e o que vai cá ficar. Gosto de ser coe- agora o casamento fê-lo deslocar o seu 50 festivais e recebeu vários
tir-se numa discoteca. Bem diferente rente na incoerência.” “Fiz agora um olhar para “o dia a dia, a realidade que prémios, a destacar o da secção
é ‘Mesa para Dois’, a sua canção mais me rodeia e, claro, o amor, já que eu sou “Encontros” do Festival de
recente, publicada em outubro, bafe- romântico por natureza”. Berlim. Nasceu em Lisboa, em
jada com 275 mil visualizações: o fac- Lança novo álbum este ano; Sabe que ainda tem metas para 1986, e estudou em Belas-Ar-
to de ser uma balada acústica sobre as concerto em Santa Maria atingir. “Gostava muito que a Carmi- tes. Está a preparar o próximo
virtudes do amor, da paz matrimonial da Feira a 7 de maio nho cantasse um tema meu e tenho filme, “Pintura Inacabada”. / C.M.

E 30
H
CÁTIA DOMINGUES HUMORISTA recebeu um convite irrecusável: “O
que achas de vir trabalhar para as

Humor com
Produções Fictícias a tempo inteiro e
passar a ganhar metade?” Cátia acei-
tou, claro. A produtora ainda era uma

humor se paga referência na área e se não agarrasse a


oportunidade o comboio poderia não
voltar a passar. Nos dois anos em que
ouve uma época em que acreditava lá esteve escreveu “Inferno” e outras
que o humor podia mudar o mundo. Com um currículo que inclui trabalhos em rubricas.
Os textos que escrevia nas redes so- call-centers e num cabeleireiro, faz hoje Entretanto, numa Feira do Livro,
ciais, no blogue ou nas rubricas que conhece Ricardo Araújo Pereira. Sim-
assinava no Canal Q procuravam ter
parte da equipa de Ricardo Araújo Pereira patizam um com o outro. Começam
graça, sim, mas também provocar a trocar e-mails. “Um dia, estava eu
uma reflexão. Quando Ricardo Ara- a almoçar às 16h — a comer uns ca-
újo Pereira a convidou a juntar-se lamares péssimos, porque nunca são
à equipa que ia fazer os programas bons nos restaurantes, mas é o que
“Gente Que Não Sabe Estar”, na TVI, sobrava dos pratos dos dia —, quan-
e a seguir “Isto É Gozar Com Quem do ele me pergunta se eu estaria in-
Trabalha”, na SIC, pouco a pouco Cá- teressada, caso me convidasse, para
tia começou converter-se à doutrina um trabalho assim e assado.” Referia-
do ex-Gato Fedorento. “Antes eu ti- -se ao “Gente Que Não Sabe Estar”,
nha de ter sempre uma mensagem, e Cátia estava mais do que interes-
não bastava fazer rir. O que aprendi sada. “De repente, passaram a ser os
com o Ricardo, nas várias conver- melhores calamares da minha vida!”
sas que tivemos sobre a natureza do Foi em 2019 que aceitou o convite
humor, é que nem um espetáculo é para trocar o Canal Q pela TVI e, des-
um comício nem um texto de humor de 2020, é na SIC que goza com quem
é um panfleto. Temos de fazer rir, e trabalha. Aos 35 anos, tem hoje dedo
nada mais. Mas temos regras, como nos tópicos que dominam as conver-
o punching up: quem tem mais poder sas de café e nas piadas e vídeos par-
‘leva’ mais.” tilhados durante a semana nas redes
Dar socos no sentido figurado, sociais. Como as graças não caem do
através de uma escrita ácida, é algo céu, passa as sextas-feiras na SIC a
que esta profissional do escárnio e preparar o programa com os colegas.
do maldizer se habituou a fazer nos Aos sábados trabalha de casa e aos
últimos anos. Mas nem sempre foi domingos fica na estação de manhã à
assim. Antes de se de dedicar ao hu- noite. Às segundas é quando escreve
mor, a também coautora do programa o “Pancada da Meia-Noite”. Quartas
satírico “Pancada de Meia-Noite” (na e quintas limpa a casa e almoça com
SIC Notícias) é ainda colunista do- os pais. Não são bem folgas, porque
minical no “Jornal de Notícias”, fez ainda há uma página de jornal para
de tudo um pouco: trabalhou em call escrever e porque, na verdade, prepa-
centers, serviu cafés e tirou imperi- rar o programa implica, no seu caso,
ais na tasca dos pais, foi rececionista ver todos os dias a CMTV para juntar
num cabeleireiro e, durante alguns material. “Parece que não, mas fazer
anos, fez copywriting em agências de humor dá trabalho.”
publicidade. você devia insistir, porque você não as regras.” Mas mais importante do Talvez por isso diga que anda can-
A entrevistas de emprego formais tem nada para dizer.” No fim, ouviu — que aprendeu no curso foi quem lá sada. “Estou numa altura estranha da
— daquelas a que se é chamado de- sem surpresa — que não ficaria com conheceu. “Passado algum tempo, vida, em que não sei bem por que ca-
pois de se responder a um anúncio o lugar. “Chamaram-me só para me recebi uma mensagem da Susana Ro- minho seguir”, revela. Talvez esteja a
— foi apenas uma vez. E bastou. Ti- enxovalhar.” Cátia saiu da entrevis- mana [guionista e humorista], que precisar de férias. Quando o progra-
nha 19 anos, estudava publicidade e ta a jurar que nunca mais permitiria tinha sido minha formadora, para ir ma é interrompido no verão, Cátia
concorrera a um cargo de técnico de que a tratassem assim e que dali para para as Produções Fictícias criar uma costuma aproveitar para fazer tra-
comunicação numa conhecida ca- a frente teria sempre algo a dizer. rubrica de televisão a partir de uma balho freelance em agências de pu-
deia que vende produtos culturais. A carreira de publicitária come- cena que eu fazia no blogue, em que blicidade — “para matar saudades”
Arranjou-se para a entrevista, che- çou ainda durante o curso (foi a pri- premiava os comentários mais idiotas — e para ser voluntária em campos
gou até antes da hora, entrou numa meira da sua família a licenciar-se). das notícias online.” Assim nasceu o de refugiados. “Já estive na Bulgária,
sala onde estavam três pessoas e em Apreciava encarar briefings como “Jogo do Tanso” no Canal Q, em 2014. Grécia e Bélgica. É algo que me faz
cima da mesa viu o C.V. e a carta de quem resolve um puzzle, entusias- Nascida em Lisboa mas criada en- sentir útil, mas que só consigo fazer
motivação que enviara corrigidos a mou-se quando venceu prémios e foi tre o Minho e a região saloia, no Oes- no verão.”
vermelho — e foi arrasada. Escrevera ao Festival de Publicidade de Cannes, te, Cátia passou a dividir o seu tempo Fora do humor, agrada-lhe a ideia
que estudara no Liceu Camões, em mas, no fim do dia, a escrita comer- entre a escrita humorística freelancer de cozinhar, de ter uma atividade que
Lisboa. “Não sabe que se diz Escola cial aborrecia-a. Para aquietar a frus- e o emprego full time numa agência, não implique passar infindáveis horas
Secundária? Escreveu aqui rua com tração, começou o blogue “One Wo- onde tinha um contrato que descre- à frente do computador, mas não lhe
letra pequena. Não sabe que é com man Show”. Mais tarde inscreveu- ve como “porreiro”, até 2017, quando passa pela cabeça abrir um restau-
maiúscula?”, disseram os entrevis- -se num curso de escrita de humor. rante como os pais. Uma coisa é certa,
tadores, que usaram como arma de “A minha escrita no blogue já por si Cátia Domingues vai continuar a ter
arremesso até um curso de teatro que era ácida, só que eu não sabia bem Participa em “Isto É Gozar Com Quem coisas para dizer — e a querer dizê-las.
Cátia incluíra. “Acho que nisto é que como se escrevia humor. Lá aprendi Trabalha”, na SIC, aos domingos / MARKUS ALMEIDA

E 31
UNIÃO Sofía e Juan Carlos
no Palácio de Verão de Tatoi,
na Grécia, em 1961,
ano do casamento deles

E 32
ALBUM/FOTOBANCO.PT

Sofía, a rainha
que venceu
o sofrimento
Mãe de Felipe, esposa do rei Juan Carlos.
É o membro mais desconhecido da família
real e o mais valorizado pelos espanhóis

TEXTO ÁNGEL LUIS DE LA CALLE


CORRESPONDENTE EM MADRID

E 33
N
se ocupou da Casa Real espanhola num livro, “La-
dies of Spain: Sofía, Elena, Cristina, Letizia” (La Es-
fera de los Libros, 2013), no qual o britânico des-
velava todo o tipo de pormenores escabrosos sobre
os comportamentos do chefe de família. A própria
Diana havia confessado a Morton, após ter visita-
do os reis espanhóis em Maiorca durante um verão,
que Juan Carlos tinha flirtado abertamente com
ela, na presença de Sofía: “É demasiado atencioso
e muito pegajoso.”
O jornalista assegura que Juan Carlos nunca
esteve enamorado de Sofía, mas ela sim: “Chorou
muito pelo marido. Não se falam, mas fingem nos
atos públicos.” A então rainha, segundo Morton,
fazia “vista grossa” perante as andanças amorosas,
os negócios e os amigos reprováveis do seu marido,
“protegida e ajudada” pelo cordão sanitário esta-
belecido pelos meios de comunicação ao redor das
suas figuras. Entre a nutrida lista das conquistas
o último Natal, milhares de pessoas que recebe- amorosas de Juan Carlos figuram destacadas políti-
ram as tradicionais felicitações assinadas pela fa- cas como Carmen Díez de Rivera, chefe de gabine-
mília real espanhola ficaram atónitas perante a te do então presidente do Governo, Adolfo Suárez,
circunstância de o postal remetido pelos reis emé- e nomes sonoros do mundo do espetáculo: Rafae-
ritos, Juan Carlos I e Sofía, ser um cartão assinado la Carrá, Nadiuska, Sara Montiel, Sandra Moza-
por ambos com uma fotografia do casal real. Como rowsky, Bárbara Rey…
se nada tivesse acontecido, como se o matrimónio Filha, irmã, esposa e mãe de reis. Ela própria
deles não fosse uma ficção histórica, salpicada por rainha, consorte, em Espanha. Sabe da importân-
todo o tipo de infidelidades e de escândalos prota- cia da linhagem, que faz parte do seu ser. “Conta
gonizados pela cabeça visível da monarquia espa- na sua árvore genealógica com dois imperadores
nhola, hoje posta em causa. alemães, oito reis da Dinamarca, cinco reis da Sué-
Obscurecida por estas circunstâncias, a figura cia, sete czares da Rússia, um rei e uma rainha da
de Sofía da Grécia, a pessoa que acompanhou Juan Noruega, uma rainha de Inglaterra e cinco reis da
Carlos desde 1962, aparece agora como a mais des- Grécia.” Assim pormenoriza o aristocrata Vilallon-
conhecida e mais bem valorizada da saga. Sem uma ga no livro anteriormente referido para assinalar
única manifestação externa, jamais, dos evidentes que Sofía da Grécia tem um credível pedigree real,
desgostos que lhe causam as condutas muito pou- suficiente para contrastar com a vasta história mo-
co edificantes do seu marido, filhos, genros, nora nárquica dos Borbón.
e netos, Sofía de Borbón agiganta-se nos últimos
anos da sua vida (em novembro cumprirá 84 anos) EDUCAÇÃO GERMÂNICA
pela sua conduta imaculada e pelo seu permanente Sofía Schleswig-Holstein Sonderburg Glücksburg,
interesse na preservação da instituição monárquica princesa da Grécia e da Dinamarca, nasceu em 2 de
que é agora incarnada pelo seu filho Felipe VI, “a novembro de 1938 no palácio de Psykhikó, residên-
minha melhor obra”, segundo confessou a própria. cia de seus pais, Paulo e Frederica, perto de Atenas.
Nem uma má cara. Nem um mau gesto. Nem uma Quando a batizaram, em janeiro do ano seguinte,
palavra de desgosto ou de reprovação. Jamais o me- acrescentaram-lhe os nomes de Margarida, Vitó-
nor desplante, nem uma voz mais alta que a outra. ria e Frederica. Seguidamente nasceriam os seus
Muitos cidadãos perguntam-se como é que Sofía da irmãos Constantino (1940) e Irene (1942). O varão
Grécia conseguiu aguentar todos estes anos tantas ascendeu ao trono em 1964, após a morte de seu
humilhações públicas, tantos desgostos, ocasiona- pai Paulo. O reinado dele foi breve e muito sujeito
dos pelos comportamentos do seu marido, sobretu- a controvérsias. Em 1967 produziu-se o chamado
do, mas também das suas filhas e dos seus genros. golpe dos coronéis, um levantamento militar que
Educada para calar, a resposta deu-a o próprio Juan deixou o país entregue a um governo ditatorial e
Carlos a José Luís de Vilallonga para o livro “El rey. acabou por obrigar a família real a exilar-se. A mo-
Conversaciones con don Juan Carlos I de España” narquia enquanto sistema de organização do estado
(Círculo de Lectores, 1993): “Sofía é uma profissio- grego foi abolida em 1973 com a aquiescência po-
nal; uma grande, grande profissional.” Outra escri- pular, através de um referendo. Não era a primeira no colégio de Gales da organização Colégios do
tora, Carmen Gallardo, autora de “La última reina” vez que Sofía experimentava as amarguras da ex- Mundo Unido onde cursa agora dois anos de ba-
(La Esfera de los Libros, 2021), descreve-a assim: patriação. Durante a Segunda Guerra Mundial, me- charelato a princesa das Astúrias, Leonor, filha dos
“Sofía da Grécia é a última rainha de uma estirpe, de nina de tenra idade, já tinha vivido no Egito e na reis Felipe e Letizia e herdeira do trono de Espanha.
um modelo de famílias reais em que o trono preva- África do Sul, onde a sua família havia procurado Depois, Sofía seguiria estudos de puericultura,
lece sobre a própria vida. É a última rainha consorte amparo e refúgio. Regressaram em 1946. música e arqueologia, embora sem nível universi-
por cujas veias corre apenas sangue azul, por mais Nascida e criada numa época em que a mulher tário. Estas duas últimas disciplinas são interesses
que ela saiba que o sangue só tem cor vermelha.” tinha escassa voz, foi educada na rigidez germânica que manteve até à atualidade. Na sua etapa como
e enviada para um centro escolar frequentado pela rainha de Espanha, receberia o doutoramento ho-
A VISITA DE DIANA alta sociedade em Schloss Salem para cursar o en- noris causa por oito universidades. Além de grego,
Em 2013, o jornalista e escritor inglês Andrew Mor- sino secundário. Este colégio nas margens do lago fala alemão, inglês e espanhol. Em francês defen-
ton, célebre por haver recolhido em 1992 as confi- Constanz, em Baden-Würtemberg, no sul da Ale- de-se menos e raramente o utiliza.
dências de Diana de Gales sobre o seu tormentoso manha, era uma escola muito rígida, mas moderna Há uns meses, quando viajou até à Grécia para
matrimónio com Carlos, príncipe de Gales (“Diana, para a época, baseada nos princípios do pedagogo assistir à boda do seu sobrinho Philipos, filho mais
su verdadera historia”, Salamandra, 1992), também alemão Kurt Hahn que, precisamente, se aplicam novo do seu irmão Constantino e de Ana Maria da

E 34
ELEGÂNCIA A rainha boda celebrou-se em 14 de maio de 1962 por duas
Sofía, no Palácio vezes: na Basílica de San Dionisio pela obediência
de Marivent, em Palma católica, religião que Sofía havia abraçado a ins-
de Maiorca, em 1975 tâncias de Carmen Polo, a esposa do ditador, e na
Catedral Metropolitana, pelo rito ortodoxo. O en-
tão Papa João XXIII tinha autorizado previamente
“SOFÍA, APANHA-O!” esta fórmula e recebeu o agradecimento dos con-
O casamento com Juan Carlos de Borbón, Juanito, traentes, que a primeira coisa que fizeram uma vez
filho dos condes de Barcelona e neto do último rei casados foi irem visitá-lo ao Vaticano.
de Espanha, Afonso XIII, que faleceu no exílio de A viagem de lua de mel, um longo cruzeiro, foi
Roma em 1941, aconteceu, segundo as crónicas da então custeada por Emilio Botín pai, dono do Ban-
época, porque, entre o que havia disponível, era o co Santander. Franco e a sua esposa ofereceram a
que mais agradava a Sofía. Nessa época, os casa- Sofía um valioso broche de diamantes. A imprensa
mentos nas casas reinantes tinham sempre com- espanhola, submetida a uma férrea censura, publi-
ponentes práticos, pelo que as conveniências di- cou escassas referências da boda em Atenas, salvo
násticas estavam sempre acima dos sentimentos o diário “ABC”, monárquico de sempre, cujo pro-
dos casais contraentes. Não obstante, no caso da prietário, Juan Ignacio Luca de Tena, tinha sido en-
primogénita dos Grécia e do varão dos Barcelona, viado por Franco como embaixador na Grécia para
a atração também contou. cuidar de que não lhe escapasse um único porme-
Sofía e Juan Carlos gostavam um do outro des- nor do enlace. De regresso a Espanha, o casal —
de que se conheceram, com 15 anos, num cruzeiro que nunca tinha mostrado interesse em se rodear
organizado pela rainha Frederica da Grécia no mar de cortesãos — instalou-se em La Zarzuela, antigo
Egeu a bordo do iate “Agamémnon” para que prín- pavilhão de caça da realeza espanhola, remodela-
cipes europeus se conhecessem e empatizassem do para ser o lar familiar. Sempre foi a casa deles.
entre si. Juan Carlos não era formalmente herdei-
ro de nada, dado que o ditador Franco, que havia DIFÍCIL RELAÇÃO COM LETIZIA
tomado sob a sua tutela o filho de Juan de Borbón, Muito consciente do seu papel, de nenhuma ma-
depositário de uns direitos dinásticos legados por neira deixa transparecer os seus sentimentos, tan-
seu pai, Afonso XIII, que o Generalíssimo não re- tas vezes feridos. O que mais a transtorna agora,
conhecia, ainda não havia tomado a decisão de o segundo os que a rodeiam, são as dificuldades que
designar herdeiro ao título de rei, algo que só fez a sua nora, a rainha Letizia, lhe coloca para que
em 1969 depois de não poucas vacilações e dúvidas. frequente as suas netas, Leonor e Sofía. A emérita
Porém, Juan Carlos, que estava em Espanha desde deve avisar previamente das suas visitas, e só rece-
1948, era a referência de uma das casas reais mais be autorização para cobrir a escassa distância entre
antigas do continente e, naquele tempo, um jovem La Zarzuela e a residência familiar dos reis se Le-
alto, ruivo, de porte atlético e de uma simpatia pes- tizia considerar que não se alteram as suas rotinas
soal transbordante. e as disciplinas de estudo e de trabalho das infan-
Nesses anos frequentaram-se e tornaram-se ín- tas. O agravo é maior porque a outra avó, a mãe de
timos, apesar de Sofía ter notícias sobre as abun- Letizia, tem entrada livre e é o recurso natural da
dantes aventuras amorosas de Juanito, em especial rainha quando as circunstâncias a obrigam a uma
uma relação longa e intensa com Maria Gabriela viagem ou a um ato oficial que lhe impeça o cui-
de Sabóia, filha do rei Humberto de Itália, exilado dado das infantas.
no Estoril tal como a família de Juan e Mercedes, As dificuldades da sua relação com a atual rai-
os pais de Juan Carlos. Antes, o historiador britâ- nha espanhola são compreensíveis dada a distância
nico Paul Preston, na sua obra “Juan Carlos, el rey de origem entre ambas: Letizia Ortiz Rocasolano
de un pueblo” (Círculo de Lectores, 2003) alude a (49 anos) é uma jornalista divorciada, criada numa
uma amiga de Maria Gabriela, a aristocrata Olghi- família de classe média, com um avô taxista, uma
ALBUM/FOTOBANCO.PT

na Nicolis de Robilant, com quem vive um tórrido mãe enfermeira, republicana na sua juventude e
romance que dura até 1960. Em 1988, a revista ita- agnóstica, e uma vida profissional agitada em via-
liana “Oggi” publicou 47 cartas de amor escritas gens, amizades e amores passageiros, vividos num
a Olghina por um Juan Carlos perdidamente ena- modesto andar de um bairro periférico de Madrid.
morado. O chefe dos Borbóns, don Juan, já resig- Se Letizia e Sofía mantêm as distâncias, Juan Car-
nado a nunca portar a Coroa espanhola, sabe que los simplesmente não lhe dirige a palavra; a aversão
Franco jamais nomearia o seu filho como sucessor é mútua. Nenhum dos dois progenitores aprovou o
se este não se casasse com uma princesa de sangue matrimónio do filho, mas neste caso Felipe impôs
Dinamarca, encontrou-se com a famosa arqueó- real. Apesar de o general não professar simpatias a sua vontade de enamorado. Em duas ocasiões
loga Teopana Arvanitopoulos, que havia sido sua pelo rei grego, que considerava maçom e um libe- anteriores, com a modelo norueguesa Eva Sannun
professora e tutora durante os estudos dessa ma- ral perigoso, recebia boas referências sobre a sua e com a jovem aristocrata Isabel Sartorius, a razão
téria. O reencontro, captado pelas câmaras, foi es- filha Sofía, que ainda não conhecia pessoalmente. de Estado havia-se imposto e o herdeiro tivera de
pecialmente emotivo. Tal como sucedeu nos seus Franco aprovou logo o rápido noivado, primeiro, e assumir o doloroso rompimento dos seus noivados.
encontros periódicos com o violoncelista Mstislav o projeto de matrimónio, em seguida. Recentemente, também causou um grande des-
Rostropovitch, seu grande amigo desde a infân- Em 12 de setembro de 1961 houve um pedido gosto a Sofía o rompimento do matrimónio da sua
cia. Até à morte dele em 2007, raro era o ano em formal de mão no hotel Beau Rivage de Lausana, filha Cristina com Iñaki Urdangarín e o reconheci-
que o músico do Azerbaijão não viesse a Espanha onde se deslocaram as duas famílias em atenção mento público e publicado do seu engano à infan-
e tocasse para ela, sobretudo peças de Dvorák. De a que Victoria Eugénia, Ena, última rainha de Es- ta com outra mulher. Urdangarín, que cumpre em
gostos musicais muito clássicos, “A Paixão Segun- panha e avó de Juan Carlos, vivia ali exilada aos 74 liberdade condicional penas de prisão por delitos
do São Mateus”, de Bach, é a sua obra favorita. Ao anos. As crónicas do ato recolhem uma prova do de corrupção e que fez com que a própria infanta se
marido, Juan Carlos, a música clássica aborrece-o, carácter brincalhão do jovem Borbón, que atirou sentasse no banco dos réus como colaboradora ne-
e assistir a uma representação de ópera é para ele ao ar o estojo de joalharia com o anel do pedido cessária no julgamento do caso Nóos (em que aca-
um suplício. enquanto dizia à sua noiva: “Sofía, apanha-o!” A bou por ser absolvida), é a gota que faz transbordar

E 35
GETTY IMAGES
EFE/FOTOBANCO.PT

CONTACTOPHOTO/FOTOBANCO.PT

INSTANTES Juan Carlos e Sofía coroados por Paul I da Grécia, pai de Sofía, durante a
cerimónia de casamento na igreja ortodoxa, em Atenas; Sofía e o príncipe Felipe, atual
rei de Espanha; Juan Carlos, Felipe, Sofía e as infantas Elena e Cristina, a família real
espanhola fotografada nos jardins do Palácio da Zarzuela, em 1969

E 36
o copo de uma família desestruturada e desfeita. introvertida e algo tímida”. Em “Todo un rey”, um Não tem um papel institucional definido como
A sua outra filha, Elena, também está divorciada livro escrito pelos jornalistas Pilar Cernuda, Pedro consorte na organização da Coroa e, como tal, a
de Jaime de Marichalar. Têm dois filhos, habituais J. Ramírez, José Oneto e Ramón Pi (Círculo de Lec- sua voz não é ouvida em circunstâncias como as
protagonistas das páginas da imprensa cor de rosa. tores, 1981), lê-se: “Sente dona Sofía uma grande que neste momento ocupam o rei Felipe VI, que,
curiosidade por quase tudo o que a rodeia. É fácil em colaboração com o Governo, encara a promul-
O DIVÓRCIO NÃO É UMA OPÇÃO que se interesse por uma multidão de temas, desde gação de uma Lei da Coroa que regule aspetos tão
Sofía nunca considerou o divórcio como uma op- a política e a literatura até às ciências ocultas.” Não importantes como a transparência, o princípio de
ção. Por educação, por convicção religiosa e pela obstante, também desperta antipatias. Outra jor- inviolabilidade dos atos do rei, a modernização das
sua forma de entender a Coroa. A revista “¡Hola!”, nalista, Pilar Eyre, muito ao corrente das interiori- estruturas da Casa… aspetos que, muito provavel-
considerada a bíblia das chamadas revistas do co- dades da Casa Real espanhola, definiu-a num dos mente, afetarão mais a atual rainha do que a emé-
ração e porta-voz oficioso de muitas famílias reais seus artigos como “altaneira e classista; despreza rita, que já contempla o ocaso do seu tempo.
europeias, disse há pouco tempo a esse respeito: os espanhóis”. Não se lhe ouviu o menor comentário quando o
“Dona Sofía nunca tencionou divorciar-se de Juan Não é desportista, e embora durante a sua ju- rei Juan Carlos apareceu de surpresa em Abu Dhabi,
Carlos e continuarão casados até ao fim das suas ventude tenha praticado esqui e vela, agora limi- em consequência da pressão exercida pelo seu filho
vidas, embora a separação entre eles exista de fac- ta a sua atividade a longos passeios à volta de La e pelo Governo da nação para que se distanciasse
to desde há anos. O marido foi o seu único amor Zarzuela (onde também vive desde há anos a sua de Espanha; tampouco o fez agora, fora da sua es-
e agora quer-lhe de outra maneira.” A publicação irmã Irene, a discreta tia Pecu, muito querida pela fera privada, perante a decisão do seu marido de fi-
alude a certas informações que falam de uma apro- família) na companhia de algum dos seus cães, xar residência habitual no emirado, com o anúncio
ximação nos últimos meses entre o casal, que tem geralmente da raça Yorkshire Terrier. Ao contrário de viagens “frequentes” a Espanha para visitar “a
por base um pedido formal de perdão formulado à do marido, que desfruta abundantemente da boa família e amigos”, mas com a advertência de que
sua mulher por Juan Carlos. mesa, dos vinhos escolhidos e das corridas de tou- residirá “em aposentos privados”, o que descarta
Corinna Larsen, a aristocrata alemã considera- ros, Sofía é antitaurina, quase vegetariana e só bebe um regresso a La Zarzuela e encontros com Sofía.
da a amante oficial do rei emérito desde princípios um copo de vinho de vez em quando. Não cozinha. O ex-rei de Espanha tomou esta decisão após se
de 2000 até 2012 e responsável, direta ou indire- Goza de uma saúde invejável, apresenta um mag- tornar oficial o arquivamento das diligências judi-
tamente, pelos episódios mais penosos que foram nífico aspeto aos 83 anos e não se lhe conhecem ciais que estavam a ser conduzidas pela procura-
protagonizados pelo ex-monarca, contou à BBC que doenças. É uma fiel seguidora da medicina aiur- doria do Tribunal Supremo sobre as suas supostas
o seu pai lhe telefonou em 2009 para lhe dizer que védica, seguida na Índia desde há milénios. A sua manobras económicas fraudulentas, que não pu-
Juan Carlos havia pedido formalmente a mão dela. mãe, Frederica, que teve uma intensa relação com deram ser julgadas por haverem prescrito, por es-
Soube-se depois que era ao contrário: a própria um guru de Madras depois da queda da monarquia tarem amparadas pela inviolabilidade que protegia
Corinna, que sempre demonstrou uma desmedida na Grécia, introduziu-a nos segredos desta ciência. o chefe de Estado até à sua abdicação em 2014, ou
ambição, pressionava o então rei para que este se É coquete e cuida muito do seu aspeto, com um es- por terem sido neutralizadas pela entrega volun-
divorciasse de Sofía e se casasse com ela. Nunca se tilo sóbrio, elegante e atemporal. O seu único vício tária às Finanças de mais de €5 milhões, feita por
desmentiu que a transferência feita por Juan Car- confessado é o chocolate. Juan Carlos num tácito reconhecimento das suas
los para a sua amante de €65 milhões proceden- Tal como a família dela nos brindou com sinais irregularidades fiscais.
tes de doações sauditas não fosse a origem de um evidentes e abundantes de comportamentos mais No entanto, dona Sofía aparece sempre nas son-
fundo monetário futuro para atender às necessida- que duvidosos, a austeridade da rainha Sofía não dagens como o membro mais valorizado da família.
des de ambos como novo casal matrimonial. Outra sofreu nenhuma prova. Nunca houve rumores sobre Em finais do verão de 2020, o “ABC” publicou uma
das amigas íntimas de Juan Carlos, a decoradora a sua conduta. Muito ao contrário do que aconteceu sondagem elaborada pela GAD3 em que a figura da
maiorquina Marta Gayá, esteve prestes a provocar durante os longos anos que durou a ditadura com rainha emérita alcançava uma pontuação de 7,2 em
em 1992 o divórcio do rei, perante a oposição fron- Carmen Polo de Franco, que chegou a converter- 10; Felipe VI, 6,9; Letizia, 5,8; e em último, Juan
tal da rainha Sofía. Gayá continua a fazer parte do -se no terror dos joalheiros e dos antiquários; estes Carlos, com 5,2. A uma pergunta sobre com quem
círculo de amizades íntimas do monarca emérito e chegaram a criar um fundo comum para compen- se parecia mais o rei Felipe nos seus comportamen-
foi visitá-lo num par de ocasiões ao seu exílio em sar as razias de dona Carmen aos seus estabeleci- tos durante os primeiros anos do seu reinado, 60%
Abu Dhabi. mentos. Enviar fatura a El Pardo, a residência dos dos inquiridos respondiam que era com a mãe, a
A citada Carmen Gallardo atribui a uma prima Francos, para cobrar o que fora confiscado pela es- rainha Sofía, e somente 13% estimavam que era
afastada de Sofía, sua amiga íntima, Tatiana de posa do ditador, era considerado uma grave ofensa. com o pai, Juan Carlos I. No discurso de abdicação
Radziwill, tentativas de que a monarca respondes- de Juan Carlos, em junho de 2014, o monarca teve
se às humilhações de Juan Carlos e se divorcias- QUE A INSTITUIÇÃO PERDURE a gentileza de lhe dedicar uma frase de reconheci-
se dele: “É tão torpe. Podia ter passado à história Muito preocupada pela sobrevivência da institui- mento: “A sua colaboração e generoso apoio nun-
como o melhor rei Borbón. Pior era difícil! E vai ção à qual dedicara toda a sua vida e que viu pe- ca me faltaram.”
ser o rei da escopeta e do elefante. Um rei deson- rigar em várias ocasiões, Sofía mantém uma con- Muito cuidadosa na sua relação com os meios
rado, humilhado e com a marca da corrupção na fiança inquebrantável no seu filho, o rei Felipe VI, de informação (apenas concedeu três ou quatro
sua folha de serviços. As mulheres e o dinheiro: que considera a “sua grande obra”. O monarca cor- entrevistas em toda a sua vida), não se lhe conhe-
caiu no mais grosseiro dos tópicos.” Ao que Sofía responde-lhe com idêntico carinho e uma atenção cem opiniões políticas, embora Pilar Urbano te-
respondeu: “Sabes bem que o meu casamento está permanente, apesar de, às vezes, ter de tomar de- nha recolhido no seu livro expressões formuladas
desfeito desde há anos. Mas dei a minha palavra e cisões que causam desgosto à sua mãe, como a de por Sofía sobre a sua oposição ao aborto, à eutaná-
assumi um compromisso até que a morte nos se- excluir as irmãs da Família Real e lhes retirar a sua sia e ao casamento entre pessoas do mesmo sexo.
pare. Jurei isso. E vou respeitá-lo.” Dizem que a dotação orçamental para despesas. Ou a de tirar à Não obstante, quando teve oportunidade manifes-
rainha Victoria Eugénia, avó de Juan Carlos, ad- rainha emérita a presidência de alguma instituição tou-se abertamente: em 1984, por ocasião de uma
vertiu Sofía quando a conheceu em Lausana: “Os como a Fundação de Ajuda à Toxicodependência. visita oficial a Espanha de Constantino Karaman-
espanhóis são muito maus maridos. E os Borbóns… Agora está concentrada nas atividades da Fun- lis, o dirigente grego que, juntamente com Giorgos
nem te conto!” dação Rainha Sofía, a que preside, na Federação de Papandreu, propiciou o fim da monarquia que fora
Bancos de Alimentos, que auspicia, na extensão de incarnada pelos seus pais, Paulo e Frederica, e pelo
CULTA, FAMILIAR, LIGADA ÀS TRADIÇÕES... iniciativas como os microcréditos e em atividades seu irmão Constantino, ignorou-o ostensivamente
Os que a conhecem descrevem-na como uma pes- do meio ambiente. Há uns meses foi vista a apadri- durante todo o jantar de gala oficial com que o di-
soa culta, muito familiar, apegada aos costumes nhar a devolução de tartarugas marinhas nas Ba- rigente helénico foi agraciado. b
e às tradições, curiosa e com um bom sentido de leares ou a limpar de plásticos praias malaguenhas.
humor. Perante a jornalista Pilar Urbano, que es- Dona Sofía tem uma dotação estabelecida que fica a e@expresso.impresa.pt
creveu o livro “El precio de un trono” (Círculo de cargo do Estado: receberá este ano €114.240 brutos;
Lectores, 2011), autodefiniu-se como “sossegada, a rainha Letizia €139.610 e o rei Felipe €253.850. Tradução Jorge Pereirinha Pires

E 37
CONQUISTA Cossacos
a hastear as bandeiras da
Rússia e da Crimeia num
edifício governamental
em Bakhchysarai, na
Ucrânia, a 17 de março de
2014, após um referendo
comprovadamente
fraudulento ter ditado
a anexação da Crimeia
à Federação Russa, com
97% de votos a favor

E 38
Os náufragos da
península perdida
Foram os únicos a resistir na Crimeia quando, há oito
anos, a sua região foi ilegalmente anexada pela Rússia.
Alertaram para a guerra, mas os seus pedidos de ajuda
foram ignorados. São hoje soldados, voluntários de ajuda
humanitária e refugiados, lutando como podem para que
a Ucrânia não se afunde como a sua península amada

DAN KITWOOD/GETTY IMAGES

TEXTO TIAGO CARRASCO


JORNALISTA,
NA UCRÂNIA E POLÓNIA

E 39
M
axim Osadchuk viveu com oito anos de antecipa-
ção o drama que hoje assola mais de 3 milhões de
refugiados ucranianos. Na tarde de 12 de março de
2014, na estação de Simferopol, capital de uma Cri-
meia que estava somente a quatro dias de ser ane-
xada pela Rússia, o então professor universitário
de História e Ciência Política, com 22 anos, viu os
mesmos comboios azuis e amarelos parados com
destino incerto, carregou às costas as malas cheias
blocos fluíam sem obstáculos. “O mundo manifes-
tamente não percebeu que a guerra na Ucrânia co-
meçou em 2014, não agora”, concluiu. “A única coisa
boa destes acontecimentos é que contribuíram for-
temente para o desenvolvimento da identidade na-
cional ucraniana. Ficou claro quem somos, quais os
nossos valores e o nosso inimigo. Graças a isso, con-
seguimos preparar bem a nossa defesa. Toda a gente
percebeu que uma grande guerra contra esta Rús-
na frente de batalha.” Luta com o símbolo do povo
tártaro da Crimeia incrustado na arma, depositan-
do nela a esperança de derrotar a Rússia para po-
der regressar a casa.
Em Kiev, Kharkiv (Carcóvia) ou Mariupol, Ma-
xim tem sido testemunha de horrores sem fim: ca-
dáveres dispersos pelas estradas, crianças soterra-
das em despojos de bombardeamentos e prédios
reduzidos a pó. Em mensagens de voz, ofegantes,
de uma vida que ficava para trás e abraçou chorosa- sia fascista ia acontecer mais cedo ou mais tarde.” em telefonemas e chats interrompidos, vai respon-
mente os pais, os tios e os sobrinhos. Desde então, A soberania sobre a Crimeia foi nos últimos oito dendo às nossas questões e diz-se otimista na vi-
nunca mais voltou à sua aldeia, perto de Ialta, onde anos um dos principais fatores da escalada de ten- tória. “As perdas do exército russo na Ucrânia são
em criança se banhava nas águas do Mar Negro. O são entre a Ucrânia e a Rússia. Vladimir Putin ten- colossais. Em três semanas de guerra, já perderam
Expresso, presente naquele momento, chamou-lhe tou, sem sucesso, que a comunidade internacional mais homens do que nas duas guerras da Cheché-
“o primeiro refugiado da Crimeia”. reconhecesse como legítima a inclusão do territó- nia e do que no Afeganistão. Percebemos agora que
“Eu era membro de um movimento de protesto rio no vasto domínio russo, ao passo que a admi- eles não sabem combater com um exército moder-
pacífico contra a ocupação russa. Fizemos mani- nistração ucraniana se multiplicou em iniciativas no e tecnológico. O mito sobre a força do exército
festações a favor da revolução de Euromaidan [que diplomáticas para a recuperar. A questão é priori- russo está a ruir. A logística deles é nojenta, esta-
ditou o afastamento do então Presidente ucrania- tária nas atuais negociações para o cessar-fogo mas mos a ficar-lhes com bastante material e a mo-
no Viktor Yanukovytch, favorável aos interesses nenhuma das partes parece querer ceder. Ainda ral dos seus soldados é extremamente baixa”, diz.
de Moscovo] e também contra a invasão ilegal da na passada segunda-feira, o presidente ucrania- “Não tenho dúvidas de que iremos vencer.”
península por tropas russas”, lembra. “Quando no Volodymyr Zelensky descartou, em entrevista
se tornou claro que esta batalha estava tempora- à CNN, reconhecer a determinação russa sobre a SEM REFÚGIO QUE LHES VALHA
riamente perdida, decidi mudar-me para Lviv, de península bem como a independência dos territó- Os dias da invasão da Crimeia foram extremamente
modo a não ir parar a uma prisão russa, como os rios da região de Donbas. “Não assumirei nenhum perigosos para os ativistas que se tentaram opor às
meus amigos Oleg Sentsov, realizador, e o anar- compromisso que afete a integridade territorial e a manobras russas. Dezenas deles acabaram detidos
quista Alexander Kolchenko”. soberania da Ucrânia”, afirmou. e dois morreram em confrontos com os apoiantes
Pouco depois de um referendo comprovada- No final de 2015, Maxim foi desmobilizado. Tor- pró-russos. Ernest Suleymanov, então com 45 anos,
mente fraudulento ter ditado a anexação da Cri- nou-se jornalista e ativista em Lviv, voltou à sua saltou para a organização dos protestos quando al-
meia à Federação Russa — segundo o Kremlin, com tese de doutoramento, viajou pelo mundo e come- guns dos seus líderes já estavam nos calabouços.
97% de votos a favor — milícias separatistas ataca- çou a redigir um romance sobre a Crimeia, realis- Tinha deixado a mulher e o filho em Kiev para ten-
ram a região leste da Ucrânia, na área de Donbas, mo mágico ucraniano, ao estilo do seu autor favo- tar defender a terra dos seus antepassados tártaros.
justificando as suas ações com a mesma retórica rito, Nikolai Gogol. Tentou viver em paz, sabendo O Expresso conheceu-o durante uma manifesta-
propagandística hoje usada por Vladimir Putin de antemão — “até porque não faltava informação ção no Parque Taras Shevchenko, em Simferopol,
para tentar legitimar a guerra contra a Ucrânia: dos serviços de espionagem norte-americanos so- quando ao megafone procurava contrariar a pro-
“proteger os falantes de russo” e “desnazificar” o bre as intenções dos russos” — que um dia teria de paganda russa disseminada pela península: “Este
país. Esses acontecimentos de 2014 viraram a vida voltar à guerra. Assim, quando acordou na manhã referendo é ilegal. A Rússia invadiu a Crimeia e não
de Maxim de pernas para o ar. “Estava tranquila- de 24 de fevereiro com o som de uma sirene, já sabia tolera qualquer tipo de oposição. Todos os dias de-
mente a dar aulas e a escrever a minha tese de dou- o que tinha de fazer. “Fechei todos os meus assun- saparece alguém que lhes faz frente”, gritava.
toramento e, meses depois, vi-me nas trincheiras tos pendentes em Lviv, pedi uma licença sabática Pouco depois, no centro da cidade, homens da
perto de Luhansk como voluntário do batalhão Ai- na universidade e fiz as malas. No dia seguinte, já Samooborona (milícias de civis pró-Rússia organi-
dar do exército ucraniano”, diz. estava no local de encontro para os reservistas. Não zadas para patrulhar a cidade e hostilizar oposito-
Pacifista e humanista, deu por si a matar inimi- senti medo nem pânico. Pelo contrário, senti alívio, res) colavam num poste de eletricidade um cartaz
gos russos e a chorar a morte de camaradas, peran- como sempre acontece após uma longa e ansiada com a cara de Ernest: “Quem encontrar este fas-
te a passividade da comunidade internacional, que espera. Honestamente, entendo o meu serviço mi- cista, Ernest Suleymanov, deve informar as unida-
se limitou a punir Moscovo com pacotes de sanções litar como umas férias forçadas de um enorme nú- des de autodefesa da Crimeia”, lia-se. Ernest es-
irrisórias. Enquanto decorria a guerra de Donbas e mero de assuntos pacíficos e triviais”, diz. tava nesse instante prestes a entrar em direto na
Putin apoiava Bashar al-Assad, na Síria, no ataque a O primeiro deslocado ucraniano é hoje comba- TV local Mar Negro, uma das poucas que na altu-
civis com armas químicas, recorda Maxim, a Rússia tente e instrutor da companhia de contrassabota- ra ainda não estava sob controlo de Moscovo. Saiu
organizava os Jogos Olímpicos de Inverno, em 2014, gem das Forças Armadas. “Estamos a atuar nas li- do estúdio a correr na companhia de outro ativis-
e o Campeonato do Mundo de Futebol, em 2018, a nhas da frente para identificar e eliminar sabotado- ta, Ismail Ismailov, e viveram os últimos dias da
Alemanha construía um gasoduto para se abaste- res e espiões russos”, explica. “Quando necessário, Crimeia como parte do mapa da Ucrânia escondi-
cer de gás natural russo e os negócios entre os dois somos enviados para reforçar as unidades militares dos num apartamento da periferia, onde ativistas

E 40
NIKOLAY DOYCHINOV/AFP VIA GETTY IMAGES
ÊXODO Hoje, tal como há
oito anos, os comboios
ucranianos enchem-se de
gente que foge da guerra,
levando consigo o pouco
que conseguem reunir.
Imagem de 22 de março,
num autocarro a caminho
da capital da Moldávia

vindos de Kiev tentavam, frustradamente, alertar Os que sobreviveram não passaram um só dia
o mundo para o crime que estava a acontecer. “Não sem sonhar com o regresso à sua terra ancestral,
se tratava apenas de segurar a Crimeia ao territó- algo que só lhes foi possibilitado por uma Ucrâ-
rio ucraniano”, recorda hoje, em Varsóvia, na Po- nia independente após a queda da União Soviéti-
lónia. “Eu sabia que, tendo feito parte dos protes- ca, em 1991. Os tártaros ficaram com uma dívida
tos, se a Rússia ficasse com a Crimeia não poderia de gratidão. Por conseguinte, foram eles que mais
voltar à minha casa nem visitar os meus pais e os resistência ofereceram quando, em 2014, as tropas
meus amigos.” No dia do referendo, ele e Ismail,
com a cabeça a prémio e considerados “terroristas” Maxim tentou russas chegaram para recuperar um território que
Putin considera “historicamente russo”. Assim que
pelas forças russas, apelaram pelo Facebook a que
todos os ucranianos da Crimeia transmitissem em viver em paz, tomou o poder, o governo pró-russo da Crimeia,
liderado pelo primeiro-ministro Sergey Aksyo-
direto a preparação de varenyky, um prato nacional
ucraniano de massa recheada com carne. “Com a sabendo que nov, classificou o corpo governativo dos tártaros, o
Mejlis, como uma “organização terrorista”, embo-
opressão russa e um governo ucraniano acabado de
sair de uma revolução, fraco e instável, era o máxi- um dia teria de ra não existissem evidências de fundamentalismo
islâmico entre os seus constituintes. Milhares de
mo que podíamos fazer”, recorda.
Ernest regressou a Kiev e nunca mais pôde vol- voltar à tártaros tiveram de abandonar de novo a Crimeia,
instalando-se maioritariamente em Kiev e Lviv.
tar. “Se soubessem que eu lá estava, prendiam-me.
Ainda no verão passado, a minha mãe morreu e não guerra. Assim, Na capital, Ernest construiu uma vida nova, traba-
lhando como relações públicas num partido polí-
pude ir ao funeral”, diz. Teve depressões, chorou
vezes sem conta. Para um tártaro crimeano como quando tico pró-integração na União Europeia e na NATO.
A 21 de fevereiro, Ernest e a sua mulher, a pin-
ele, a privação de pisar o chão da península é uma
farpa na alma que ressuscita o trauma imposto pela acordou a 24 tora Elmira Seit-Ametova, viajaram para Varsóvia,
onde têm casa, para visitar amigos e preparar a
União Soviética durante a II Guerra Mundial. Em
maio de 1944, Estaline deportou 218 mil tártaros de fevereiro abertura de um restaurante. O filho único do casal,
Devlet-Geray, de 21 anos, decidiu ficar em Kiev por
— um povo turcomano, muçulmano e com idio-
ma próprio — da Crimeia para o Usbequistão, es- com o som de causa do trabalho. Pressentindo o início da guerra,
Ernest comprou-lhe um bilhete de avião para 25 de
pecialmente mulheres e crianças, nos vagões dos fevereiro. Tarde demais. Quando na madrugada do
comboios do Império. Calcula-se que metade deles
tenha morrido na viagem, tendo sido substituídos
uma sirene, já dia 24 um amigo lhe telefonou a dizer que a guer-
ra tinha começado, os pensamentos de Ernest vi-
por colonos enviados por Estaline dos confins da
Sibéria, aumentando assim a quantidade de rus-
sabia o que raram-se imediatamente para Geray: devido à lei
marcial, que impossibilita ucranianos com idades
sos no território. tinha de fazer entre os 18 e os 60 anos de abandonar o país, o seu

E 41
filho único estava preso no inferno. “Este ‘mundo e a mulher tinha uma prima que os podia acolher. Estava na Crimeia como assistente técnico de uma
russo’ tem assombrado a minha família em todo “Todos os meus planos foram destruídos por Putin. associação de apoio aos tártaros e tinha sido agre-
o lado: primeiro, o meu avô foi perseguido, o meu Primeiro, o meu projeto de viver na Crimeia, depois dido numa manifestação contra a invasão russa.
pai foi deportado para a Ásia Central em 1944, de- em Kiev, os meus planos para trabalhar, viajar, viver Estava, à época, a pensar mudar-se para a penín-
pois foi a minha vez de ser forçado pelos russos a com a minha mulher no apartamento que comprá- sula: “Era um dos nossos melhores resorts de verão,
deixar a minha casa. Agora, chegou a vez do meu mos, ter filhos. Como podemos ter filhos nesta situa- o clima era favorável e a localização perfeita. Tinha
filho”, lamenta Ernest. “Primeiro, fiquei zangado. ção? Mas não sou um caso único. Putin destruiu os ainda uma Natureza maravilhosa, diversas religi-
Depois, assustado, mas agora já não me importa o planos de todo o mundo.” ões e culturas que me permitiam estudar cemitéri-
que me possa acontecer. Só tenho medo pelo meu Preocupa-se mais com o futuro do que com o os antigos, aldeias tártaras e mosteiros gregos. Era
filho. Aliás, tenho até medo pelos meus netos, que passado: com o passar do tempo, Ismail diz ter-se incrível! Um território tão pequeno com tantas cul-
ainda não nasceram. E sinto-me desesperado por desligado da Crimeia, a terra que até aos 15 anos lhe turas”, descreve, a partir de Kiev. Rybalko acredita
não poder proteger a minha família.” foi descrita pelos pais como o paraíso. Foi com essa que o simbolismo da Crimeia fez com que Putin a
Preso entre os prédios altos do centro de Var- idade que pisou a península da qual os avós tinham tivesse escolhido como primeiro alvo de conquista.
sóvia, Ernest sente a claustrofobia da indecisão, o sido deportados, depois de os pais terem passado “A Crimeia foi o berço do cristianismo naquela regi-
aperto em que mais uma vez a estratégia imperia- a vida a trabalhar no Azerbaijão para construir lá ão. Na sua mentalidade de czar de um novo império,
lista de Moscovo o enfiou; se for para a Ucrânia, já uma casa. “Claro que me lembro daquela natureza Putin quer primeiro juntar à Rússia as regiões liga-
não pode sair e deixa a mulher só, se ficar, deixa o pujante, da minha cultura e de todas as coisas lin- das às raízes do que ele acredita ser a identidade do
filho sozinho na guerra. “Ele está preparado para das que lá existem. Mas também me lembro das si- país, pois crê que os russos ficam fragilizados sem
defender o país. Mas como é que pessoas vulga- tuações terríveis que lá vivi”, diz. “As tensões entre elas. Com a deportação dos tártaros e o repovoa-
res resistem contra este enorme monstro? Só com tártaros e russos sempre existiram. Recordo-me de mento com russófonos, a Crimeia tornou-se terreno
a ajuda dos Governos ocidentais. As pessoas nor- os russos só alugarem casas a eslavos e de me dize- fértil para ele iniciar a sua agenda expansionista.”
mais têm ajudado a Ucrânia e agradeço. Mas, infe- rem na escola que o meu futuro seria a servir chá Perdida a Crimeia, Rybalko decidiu viajar até
lizmente, a proteção do meu filho não depende das num restaurante. Lembro-me do antissemitismo e à sua cidade natal, Donetsk, para limpar o túmu-
pessoas normais.” do racismo básico. Os russos não davam espaço à lo da mãe, uma tradição que os ortodoxos realizam
O quotidiano dos que decidiram ficar na Cri- diversidade, a sua intenção era a de homogeneizar na semana seguinte à Páscoa. Já sabia das ações de
meia sob jugo do Kremlin alterou-se significativa- a população.” Foi por isso que Ismail decidiu lutar separatistas russos na região oriental da Ucrânia,
mente. Putin tentou cumprir as promessas dirigi- contra a anexação. No início, enquanto imitavam mas desconhecia a gravidade da situação no ter-
das aos crimeanos, alocando mais de €10 mil mi- Maidan na Crimeia, foi uma festa. Mas prontamen- reno. “Fui acordado no autocarro por um homem
lhões de euros em subsídios diretos, apelando aos te começaram os ataques: “Primeiro, foram os ti- agarrado a uma arma automática que anunciou:
russos para se instalarem na região e financiando tushky, rufias e pugilistas amadores contratados ‘Bem-vindos à República Independente de Do-
autoestradas e uma ponte sobre o Mar Negro para para nos cortarem a energia dos eventos, ameaça- netsk.’ Pensei que estava num filme surrealista”,
ligar a sua conquista à Rússia continental. Todavia, rem-nos e provocar brigas. Depois, apareceram as recorda. “Ainda assim, avancei. Foi a última vez
esse intento de criar uma história de sucesso caiu samooborona a controlarem tudo e todos. Por fim, que vi a campa da minha mãe. Pouco depois, hou-
em “saco roto”: devido ao isolamento geográfico e os homens verdes, os soldados sem identificação ve confrontos no aeroporto adjacente e uma bomba
às sanções, a Crimeia perdeu os turistas ucrania- no uniforme que todos sabíamos serem russos. Em destruiu o cemitério.”
nos e europeus, o motor da sua economia, vários pouco mais de duas semanas, a festa terminou e a Rybalko, 52 anos, acabou por arranjar empre-
bancos encerraram deixando milhares de pessoas Crimeia passou a ser russa.” go na organização norte-americana USAID, num
sem acesso a salários e pensões e a ligação da rede projeto virado para o apoio económico e social às
elétrica à Ucrânia conduziu a múltiplos cortes de OS MORTOS E OS VIVOS regiões de Donbas, Mariupol e cidades costeiras do
energia e consequente encerramento de escolas e No apartamento de Simferopol em que Ernest e Is- Mar de Azov, hoje ocupadas pelos tanques russos.
negócios. Com a guerra, a situação dos 2,4 milhões mail se refugiaram em 2014, estavam três ativistas A sua curiosidade antropológica levou-o a passar
de crimeanos tende a agravar-se: “Há filas para de Kiev decididos a resistir como podiam contra muito tempo em Mariupol, de modo a estudar os
tudo. Estamos a começar a sentir o peso das san- a invasão: Oleksander Rybalko, Olia Mykhailiuk gregos do Mar de Azov, um grupo étnico formado
ções”, diz Natalya Korittseva, professora de inglês e Tetiana Manziuk. Rybalko, investigador de idio- na idade média na Crimeia e deportado para aquela
em Simferopol. As liberdades individuais também mas ameaçados na Ucrânia, era o rendeiro da casa. região por ordem de Catarina, a Grande, impera-
foram restringidas: há, segundo a Human Rights triz da Rússia, no século XVIII. Os gregos acabaram
Watch (HRW), aproximadamente 300 prisionei- por fundar a cidade mártir da guerra da Ucrânia,
ros políticos, especialmente da minoria tártara, e onde Rybalko fez dezenas de amigos: cercados há
muitas tensões entre cidadãos russos e ucranianos duas semanas, sem água, eletricidade, comida, te-
e tártaros que permaneceram na região. lecomunicações e energia, 400 mil habitantes de
Tal como Ernest, também o seu amigo Ismail Is-
mailov, de 32 anos, não quis viver nessa nova Cri-
Os dias da Mariupol têm sido vítimas de crimes de guerra por
parte do exército russo, que incluem deportações
meia. Agora, teve de encontrar um segundo refúgio
em consequência da invasão russa. Após a perda da
invasão da forçadas para a Rússia e o bombardeamento de um
teatro e de uma escola de arte que abrigavam, em
península, Ismail rumou à capital Kiev e tentou en-
direitar a vida: arranjou emprego como comercial de
Crimeia foram conjunto, 1800 refugiados. Rybalko não consegue
saber se os seus amigos sobreviveram. “Primeiro,
uma empresa de artigos de churrasco, participou em
encontros da comunidade tártara e, em 2019, casou extremamente os russos tiraram-me os mortos”, diz, referindo-
-se à destruição do túmulo da mãe. “Agora, vieram
com Niyaze, também tártara, cujo pai se exilou da
Crimeia por pertencer ao Mejlis. “Na manhã da in- perigosos para para me tirar os vivos.”
Quando se lembra de Mariupol, a artista Olia
vasão, ouvi uns estrondos abafados. Eram bombas,
a uns 10 km. A minha mulher estava a dormir e não os ativistas Mykhailiuk reza, ainda “que não conheça orações”.
“Mesmo os que conseguiram escapar não vão con-
a quis acordar. Só quando ela abriu os olhos é que
lhe disse que a guerra tinha começado”, recorda. Is- que se seguir apagar este episódio das suas vidas. Não sei
como vamos lidar com todas estas perdas e cicatri-
mail não queria deixar Kyiv. Porém, no dia seguinte,
viu um cogumelo de fumo a partir da janela da co- tentaram opor zes. Mas temos de conseguir. Temos de vencer”, diz.
Também para ela, uma vida nova começou na
zinha. Lá em baixo, já havia uma correria de gente
com trolleys, filas nos supermercados, no multiban- às manobras Crimeia, em 2014, para onde se dirigiu na ânsia de
proteger uma terra que leva no coração. “É um ter-
co e nas bombas de gasolina. Decidiram partir para
Lviv, a oeste, onde a guerra ainda não tinha chegado russas ritório especial, uma espécie de península mística.
Para a minha geração, cuja juventude coincidiu

E 42
com a queda da União Soviética, a Crimeia repre- Crimeia, mas sabemos que a Rússia não vai sair de perguntou-lhe a mulher. Nessa mesma tarde ins-
senta a primeira viagem à boleia, as caminhadas lá sem desencadear outra guerra.” creveu-se com o sogro e amigos na defesa territorial.
livres pela montanha, as primeiras bebedeiras, As forças de defesa ucraniana são tão abertas Lviv tinha até há pouco tempo escapado à pólvora
os primeiros beijos, as conversas filosóficas noites que Antonina Romanova, crimeana homossexual russa. Mas na última semana, os mísseis atingiram
dentro até ao sol se erguer sobre o mar”, diz. “Por registada ao nascimento como Anton mas que es- o aeroporto e uma base militar a 30 km. “Estou à
isso, o momento da anexação foi sentido por mim colheu o género feminino, está numa unidade de espera que me chamem para o treino militar”, diz.
como algo físico. Antes, quando as luzes se desliga- defesa territorial na companhia do seu namorado, Na Polónia, Ernest passa os dias a tentar falar
vam eu percebia quão frágil era o istmo que ligava a Sasha. “Os comandantes sabem que somos gays e, com o filho e a influenciar a opinião dos russos.
península à Ucrânia, como era facilmente bloquea- apesar de não falarmos abertamente sobre isso, os Nas redes sociais, procura canais de militantes pró-
do. Percebia o risco de a península se tornar numa nossos colegas tratam-nos como iguais”, afirma. -Kremlin e publica vídeos e informação das atroci-
ilha que se afundava nas águas escuras. E nós, os Antonina, atriz, foi forçada a abandonar a Crimeia dades cometidas pelos soldados russos na Ucrânia,
náufragos. Sinto isto como uma amputação”. depois de ter passado o período de anexação a au- bem como das baixas por eles sofridas: “É a minha
Assim, Olia passou os oito anos seguintes a fa- xiliar os militares ucranianos e a colar autocolantes forma de fazer guerra, uma vez que não sei manejar
zer projetos artísticos relacionados com a Crimeia anti-Rússia pelas cidades da Crimeia. armas. Sou normalmente insultado, mas também
e com a guerra em Donbas, sobre anexação, trau- Mas Vladimir Putin insiste na mentira de que já consegui mostrar a realidade a alguns russos que
ma e superação, através da agência ARTpole. Num está a defrontar um inimigo nacional-socialista de me agradeceram. Acredito que só é possível vencer
deles, “Crimeia, a Terceira Dimensão”, recolheu forma a mobilizar o povo russo, que consome quase esta guerra liberando os russos da lavagem cerebral
vídeos e sons encostados à fronteira imposta pe- exclusivamente a informação veiculada pelos órgãos a que têm sido sujeitos”, afirma.
los russos, “pois as ondas, os pássaros e as plantas do Kremlin. Na passada sexta-feira, o presidente Rybalko passa as noites sozinho às escuras no
não conhecem fronteiras”. Também enterrou peças russo voltou a surgir em público para discursar pe- seu apartamento de Kiev. “Dizem-nos que não de-
tártaras de arte cerâmica junto à linha de fronteira, rante quase 200 mil russos num estádio de Mosco- vemos ligar computadores nem telemóveis perto
escondendo-as de danos que os invasores pudes- vo. Razão: celebrar o oitavo aniversário da anexação das janelas, para não sermos vistos.” Recusa-se a
sem infligir — os ataques russos na Ucrânia já des- da Crimeia pela Rússia. Frenéticos, os seus apoian- sair da cidade e até a ir para o bunker quando há
truíram igrejas e galerias de arte, apagando parte tes exibiam cartazes com a letra “Z”, tido já como alarme de bombardeamento. Durante o dia, ajuda
do valioso património cultural ucraniano. Tetiana o símbolo fascista da invasão da Ucrânia, enquanto os vizinhos a construir barricadas e checkpoints no
Manziuk, 30 anos, que por altura da anexação es- cantavam versos patrióticos: “Ucrânia e Crimeia, seu bairro. “Já fiquei sem a minha cidade natal, sem
tava com Olia, lembra ainda o projeto “:::track:::”, Bielorrússia e Moldávia, é tudo o meu país.” o corpo da minha mãe e sem as línguas que estudo.
que consistia na exibição de reminiscências visuais Ao mesmo tempo, aqueles que há oito anos tive- Não abdicarei da minha liberdade. Isso é o que nos
da Crimeia em várias cidades ucranianas: “Quise- ram de deixar a península procuram encontrar um separa dos russos. Eles precisam de um czar, nós
mos dessa forma evitar que a questão da Crimeia rumo no meio do êxodo, do luto e do medo. Quan- sabemos cuidar de nós próprios”, afirma.
fosse apagada da memória das pessoas e da agenda do abandonou Simferopol no último comboio para Tetiana Manziuk responde ao Expresso enquan-
informativa na Ucrânia”, afirma. Kiev, Ismail levou apenas roupa para três dias. Pen- to percorre, como tantos outros ucranianos, as es-
Na véspera da invasão, Olia foi comprar flores sava que seria uma situação temporária mas passa- tradas da Europa. Encontrou refúgio em Berlim.
para o aniversário de uma amiga. A florista co- ram-se oito anos e nunca mais viu a cidade. Ago- Mas diz-se angustiada por querer fazer mais pelo
mentou: “Com flores tão coloridas, é porque acha ra, novamente, zarpou com trouxa para um fim de seu país e não poder: “Quero estar mais envolvida
que não vai haver guerra, não é?” Ela respondeu- semana, crente de que as armas não iam tardar a na ajuda ao nosso exército e aos nossos voluntários.
-lhe pensava que infelizmente que ia haver guerra, silenciar-se. Passaram-se duas semanas. Ismail, a Espero poder encontrar formas de o fazer a partir
sim. “Nos últimos oito anos, os meus trabalhos fo- mulher e os sogros vivem agora na casa de Aliye e da Alemanha”, desabafa.
ram uma espécie de aviso para acordar os ucrania- dos seus dois filhos pequenos: sete, numa sala e num Depois de oito anos a trabalhar sobre a temá-
nos, os europeus e o mundo inteiro. Mas as pessoas quarto. Os pertences ainda nem saíram das caixas de tica da guerra, Olia Mykhailiuk tinha conseguido
não gostam de pensar em coisas más. Eu sabia que cartão e das mochilas, acumuladas em cima dos mó- finalmente soltar-se das amarras e terminar um
a guerra era inevitável. Mas, na maioria dos casos, veis, na esperança de serem despejadas num instan- projeto de arte não-figurativa. “A minha primeira
a conversa transformava-se numa longa discussão te de normalidade. Decidido a não abandonar o país, exposição pessoal estava marcada para o início de
sobre arte, só teoria, sem que nada se fizesse para Ismail decidiu voluntariar-se para defender a Ucrâ- Abril, em Kiev. Há uma cúpula de vidro no edifício
mudar a situação real. Sentia-me por vezes como nia. Com chumbo, desta feita. “Tens a certeza?”, da exposição porque a luz é muito importante para
uma Cassandra louca, que não conseguia ser ouvi- este trabalho. Entregámos tudo a 20 de fevereiro.
da nem pelos meus próximos”. Entretanto, começou a guerra. E a minha libertação
continua lá, debaixo de um teto de vidro.”
CRIMEIA, MEU AMOR Na frente de batalha, Maxim ocupa os escassos
Putin tem insistido na mensagem de que está na tempos livres a estudar francês para terminar o seu
Ucrânia a lutar contra nazis e genocidas de russos.
Mas a defesa ucraniana inclui crimeanos de diver-
Aqueles que há doutoramento em Paris depois da guerra. O rosto jo-
vial e inocente com que deixou a Crimeia abriu espa-
sas etnias, religiões e orientações sexuais, o que só
por si destrói a retórica do invasor. O que os une é a oito anos ço a uma longa barba e a uma expressão decidida. O
tronco alargou para enfrentar as balas. O olhar espe-
raiva por terem sido afastados da Crimeia e o ódio
aos russos. Ismail Ramazanov, de 38 anos, era ma- tiveram de rançoso mantém-se incólume. “O regime de Putin
tirou-me a Crimeia, a minha pequena pátria. Perdi
quinista na Crimeia quando começou a participar
em manifestações pró-Ucrânia e a ajudar presos deixar a amigos e conhecidos. Agora estamos a fazer tudo
para destruir este regime fascista”, diz. “Após a nos-
políticos. Em 2018, o FSB (serviço de espionagem
russo) deteve-o em sua casa. Foi torturado com península sa vitória, a Federação Russa deve ser dissolvida, os
criminosos de guerra julgados e as armas nucleares
choques elétricos e condenado a um ano de prisão
por incitamento de tensões étnicas e posse ilegal procuram entregues ao controlo do Ocidente. Todos os terri-
tórios ilegalmente ocupados pela Rússia na Ucrânia
de armas, que ele jura terem sido postos em sua
casa pelas autoridades russas. Muçulmano devoto, encontrar um — incluindo a Crimeia —, na Geórgia e na Moldávia
devem ser devolvidos. Os países que sofreram com o
diz ter outros islâmicos tártaros e azeris na unida-
de de defesa territorial em que hoje se encontra: “A rumo no meio imperialismo russo devem ser compensados. O dra-
gão vai ser aniquilado de uma vez por todas. Esse é
Ucrânia não é um país nazi, como ele diz, mas sim
uma nação com muitas etnias que sempre convi- do êxodo, do o meu objetivo para o futuro próximo. E também o
objetivo de milhões de ucranianos.” b
veram em paz”, afirma. “Nós, os tártaros, só damos
esta guerra como acabada quando recuperarmos a luto e do medo e@expresso.impresa.pt

E 43
Entrevista
Milo Manara

Se fosse
invisível seria
o homem
mais feliz
do mundo”
É um dos autores de banda desenhada que
terá feito sonhar mais pessoas. Conta histórias
aos quadradinhos há 53 anos e está agora
a trabalhar sobre o romance de Umberto Eco
“O Nome da Rosa”. É um mestre do erotismo
e diz que a idade não traz a paz dos sentidos

POR JOÃO PACHECO

E 44
E 45
JOEL SAGET/AFP VIA GETTY IMAGES
M
al começou a fazer banda desenhada,
Milo Manara pôs-se a caminho do fes-
tival de Lucca e ajoelhou-se aos pés de
Hugo Pratt. Foi em novembro de 1969.
Seguiram logo para Paris na autoca-
ravana de Manara, com passagem por
suspiros, aquelas conversas. Acho que
essa foi a minha primeira fantasia eró-
tica, ligada àquelas raparigas muito ro-
bustas, mas lindíssimas.

Que idade tinha?


Milão para recolher todos os 30 mil li- Teria uns oito ou nove anos. Andava na
vros de Pratt. Isso foi na vida real. Na escola primária.
ficção, as histórias mais famosas deste
autor italiano de 76 anos são eróticas. Já tinha encontrado a chave da parte
E despem personagens femininas que proibida da sua biblioteca familiar?
se assumem como protagonistas. Con- Sim, porque tinha irmãos mais velhos
jugando esses ingredientes, tornou- e sabíamos onde estava escondida a
-se uma lenda viva e é conhecido pela chave. Mas, nessa parte proibida esta-
forma luminosa como desenha a nu- vam guardadas coisas que na realida-
dez feminina, as fantasias e o desejo. de hoje são mesmo inocentes. Havia era
Tem brilhado em livros eróticos como imagens muito violentas, muito cho-
“O Perfume do Invisível” ou “O Clic”, cantes, nos livros sobre os campos de
mas é também um mestre a contar concentração nazis. Lembro-me per-
quaisquer outras histórias. Um mes- feitamente de dois livros. Um era “Si fa
tre que se irá rir várias vezes duran- presto a dire fame” [de Piero Caleffi]. E
te esta conversa, feita a partir do seu o outro era “O Flagelo da Suástica” [de
estúdio em Sant’Ambrogio di Valpo- Edward Russell]. Eram dois livros que
licella, no Norte de Itália. Agora, para tinham umas páginas com fotogra-
quebrarmos o gelo, o melhor é irmos fias chocantes, terríveis. Recordo-me
até à infância. ainda dessas fotografias com nitidez.
Mais tarde vi vários outros documen-
Podemos começar pela sua primeira tos, também filmagens. Mas são essas
fantasia erótica? primeiras imagens que ainda tenho na
Sim. Era durante a vindima. Estamos cabeça. Não me parece que estejam li-
a falar de há uns 70 anos. Para a vindi- gadas ao erotismo, a menos que exis-
ma eram engajadas umas raparigas que ta alguma ligação freudiana que não
desciam das colinas aqui das redonde- conheço. Estão ligadas à violência, ao
zas [de Sant’Ambrogio di Valpolicella] horror destes corpos ainda vivos ou, Meravigliosa” e agora é a fonte de gran- havia aqueles primeiros livros aos qua-
e chegavam às várias quintas. Essas pelo contrário, mortos e empilhados de inspiração para mim. dradinhos com rimas: “Aqui começa a
vindimadeiras colhiam os cachos de como lenha. Eram mesmo montanhas aventura do senhor Bonaventura” [de
uva, metiam-nos em cestos e transpor- de corpos. Para uma criança e até para Também havia livros de banda dese- Sergio Tofano]. Mas mesmo com umas
tavam-nos até aos carros. Eram carros um adulto eram imagens muitíssimo nhada em vossa casa? rimazitas para ler, os professores esta-
puxados por bois, com rodas de madei- violentas, muito fortes. Não, os livros de banda desenhada vam contra.
ra, e punham-se na fila e chegavam a nunca lá entraram. Via-os muito de vez
passar toda a noite e o dia seguinte ali Nessa altura, todas as imagens vinham em quando, em casa de algum amigo. Escolheu o curso de Arquitetura.
na fila, a avançar devagarinho, para dos livros. Descobri-os tarde, em casa de alguém. Porquê?
descarregar as uvas nessas adegas. Em Quando tinha quatro ou cinco anos E é claro que não se pode ficar em casa Escolhi esse curso por ter sido chum-
todas as quintas, lá estavam as rapari- não havia televisão em Itália. E depois de um amigo horas e horas, a ler banda bado num exame de admissão a Belas
gas que tinham vindo para vindimar e lá em casa também não houve durante desenhada. Os primeiros livros de ban- Artes. Para participar neste exame fa-
que passavam lá a noite, a dormir nos bastante tempo, porque a comprámos da desenhada que lá entraram foram os moso em que fui chumbado, fui hóspe-
celeiros. Quando eram quase horas de muito tarde em relação à média. Mas desenhados por mim. de do meu tio em Veneza.
eu ter de voltar para casa, passava por em compensação, por sorte tínhamos
toda esta fila de carros de bois. Pas- mesmo muitos livros. Alguns eram li- Porquê? O seu tio cozinheiro?
sava ao largo, porque os bois mexiam vros literários, por norma para adultos. Pensava-se que as crianças olhavam Sim, o meu tio Giacomo. Primeiro ti-
aquelas cabeças enormes com aqueles Mas muitíssimos eram livros para cri- para os desenhos mas não liam. Diziam nha cozinhado em navios, mas depois
cornos e podia ser perigoso. Lembro- anças, ilustrados. Porque a minha mãe que era uma maneira de desaprender a quando ficou mais velho retirou-se
-me bem dos risos vindos dos celeiros. era professora e conhecia muitos livros. leitura. Não era apenas a minha mãe, para terra firme. E cozinhava para um
Havia rapazes que eram mais velhos e E ainda por cima, para convencerem os outros professores também eram círculo de senhores ricos da nobreza,
que não se contentavam com ficar ape- os professores a adotarem determina- contra os livros de banda desenhada. sediado mesmo na Piazza San Marco.
nas a ouvir. Esses entravam nos celei- dos livros, as editoras ofereciam-lhes O que é estranho, porque também há Este meu tio tinha-me adotado, de al-
ros. E havia todos aqueles risos, aqueles muitos. Ainda tenho a “Enciclopedia um texto. Há belas lengalengas. E até gum modo. Dizia-me: “Tens de comer,

E 46
do movimento estudantil, foi por isso
que os escolhi.

Nessa altura houve mesmo uma liber-


tação sexual?
Sim. Devo admitir que houve uma mu-
dança enorme dos costumes. Em Ve-
neza havia muitos estudantes estran-
geiros, que moravam em apartamen-
tos, era comum morarem quatro ou
cinco no mesmo apartamento. E eu
não tinha apartamento e muitas ve-
zes era hospedado por raparigas. Po-
dia acontecer que dormisse quase na
mesma cama, mas sem que aconteces-
se o que quer que seja. Ou seja, havia
uma abertura que uns anos antes nem
se poderia imaginar. As relações entre
rapazes e raparigas, as relações com
os professores, as relações entre pais e
filhos mudaram de forma gigantesca
durante estes anos. O que mudou foi
a tomada de consciência. Até a classe
operária passou a ter muito mais cons-
ciência política. Mas não houve uma
revolução como a Revolução dos Cra-
vos em Portugal. Não tivemos revolu-
ção, mas tivemos uma grande evolu-
ção muito rápida durante estes anos.
No fundo, a Revolução dos Cravos em
Portugal também fazia parte e a Itália
também contribuiu para esta mudan-
ça. Foi muito festejada em Itália. Ver o
exército mudar de lado e passar a de-
fender os cidadãos. Chamavam-se os
JOEL SAGET/AFP VIA GETTY IMAGES

Capitães de Abril. Foi uma coisa ma-


ravilhosa. Resumindo, houve grandes
mudanças, sobretudo sociais, nas re-
lações entre as pessoas. Culturalmente,
as coisas também mudaram muito. Os
Beatles e depois os Rolling Stones tive-
ram um papel enorme nesta mudança.
Também porque a partir de um certo
ponto, os jovens passaram a ser figu-
ras muito importantes na economia.
Ou seja, compravam coisas. Compra-
porque vêm aí os exames.” Preparava- mim. A seguir, durante os anos de estu- de observação, de desenho de rele- vam roupas. Depois, se juntarmos a li-
-me coisas maravilhosas para eu co- do em Arquitetura, na realidade tinha vo, desenho de elementos constru- teratura, com Kerouac, com a beat ge-
mer. Então, quando me chumbaram, muito mais amigos entre os alunos de tivos... Havia muito para desenhar e neration... Na música havia uma gran-
antes de mais nada pensei no meu tio. Belas Artes, Falávamos, bebíamos uns eu fazia-os para todo o grupo. Acho de evolução, não só na pop. Havia por
Pensei que seria uma grande desilusão copos. Em 1968 houve a ocupação de que éramos uns oito no meu grupo, o exemplo o John Coltrane. E nem fale-
que estava a dar ao meu tio, que me Veneza porque contestávamos a Bie- Gruppo del Miracolo. E eles faziam- mos do cinema: “O Último Tango em
tinha tratado tão bem. E eu retribuí nal de Veneza. E eu não ocupava a sede -me os outros exames. Quando en- Paris” e outros filmes muito a rasgar,
de uma forma estúpida, fazendo com da Faculdade de Arquitetura, ocupava trávamos nas salas para fazer os exa- muito inovadores. Do ponto de vista
que me chumbassem. Foi uma dor tão a sede de Belas Artes. Ou seja, voltei a mes, ia o grupo todo. Havia um que gráfico, vinham de França coisas ma-
grande, que ainda sofro quando penso entrar no Palácio da Academia de Be- respondia por todos e depois saíamos. ravilhosas. Do Maio francês, com a re-
nisso agora. Então desenvolvi um ódio las Artes. Mas entrei para o ocupar, ou Claro que isto durou poucos anos, de- presentação da violência policial, por
tal ao palácio da Academia das Belas seja, com um espírito belicoso. Depois, pois os exames voltaram a ser feitos exemplo. Logo em 1964, tinha havido a
Artes que se pudesse tê-lo-ia demo- levei quatro anos a fazer os primeiros por cada pessoa. primeira abordagem da pop art na Bie-
lido, para apagar a minha vergonha. dois anos, o primeiro biénio. Daí só se nal de Veneza. Também aí houve uma
Tê-lo-ia demolido com toda a galeria podia passar quando se fizesse todos Qual é a história do nome do Gruppo grande mudança.
de Belas Artes, com todos os quadros os 18 exames do biénio. E eu terei feito del Miracolo?
de Tiziano e de Tintoretto. Foi uma dor aí uns 15. Mas depois havia Análise 1 e Nós reuníamo-nos numa sala que ti- Qual foi o seu primeiro trabalho?
fortíssima. E chegada a altura de esco- Análise 2, a parte matemática. E esses nha um fresco que representava um Foi um painel decorativo para uma
lher para onde iria depois do Liceu Ar- exames para mim eram insuperáveis. milagre. E todos chamavam Aula del loja chamada Fulmine Del Guanto. Era
tístico eu — que sempre tinha querido Miracolo a essa sala. O nosso grupo uma loja de luvas no centro de Vero-
ir para a Academia de Belas Artes — Como funcionavam os exames em era o dos mais aguerridos politica- na e eu era muito jovem. O segundo
disse: “Nunca mais entro ali.” E inscre- grupo? mente, dos mais duros. Agora quan- trabalho foi muito curioso. Fui escul-
vi-me em Arquitetura. Enganei-me, Eu fazia todos os exames gráficos para do penso nisso é de forma carinhosa. tor numa fábrica de brinquedos cha-
claro, porque não era caminho para o grupo. Fazia os exames de desenho Os membros do grupo eram os líderes mada Migliorati. Quando se estava a

E 47
aproximar o Natal, o escultor ficou do-
ente. E com aquele pico de produção,
precisavam de um escultor para fazer
as cabeças das bonecas, os cavalos de
baloiço. E, de facto, fiz mesmo um ca-
valo de baloiço. Ainda estava a estudar,
teria uns 17 anos. Depois acho que não
foi usado, porque era um cavalo de ba-
Eu diferencio o erotismo da
loiço artístico. Mas pagaram-me.

Como começou a fazer banda


pornografia, mesmo que seja
desenhada?
Às tantas descobri “Barbarella” [li-
vro de Jean-Claude Forest, editado em
uma diferença muito subtil.
1962]. De início não pensava em ban-
da desenhada. Os quadradinhos não É difícil fazer uma verdadeira
existiam para mim como hipótese de
trabalho e nem sequer existiam como
atividade de tempos livres. Mas ali por
distinção. O meu erotismo
1967 eu trabalhava com um escultor
que se chamava Miguel Berrocal. Era
um grande escultor espanhol, que ti-
é a pornografia dos outros”
nha saído de Espanha durante o fran-
quismo e se tinha instalado em Itália.
Foi ele que fez o monumento a Picasso bandas desenhadas eróticas. Quero autocaravana, e partimos para Paris. sítio qualquer. Agora é completamen-
que há em Málaga. Berrocal fazia es- dizer, nessa altura eram considera- Primeiro tínhamos de passar por Mi- te diferente. Mesmo com a autocara-
culturas desmontáveis. Algumas eram das eróticas, como certos filmes eró- lão para ir buscar livros dele. Tinha 30 vana, podíamos estacionar por todo o
muito pequenas, com centenas de pe- ticos italianos. A comédia erótica à mil volumes em casa. Era a sua última lado. Fosse em Lisboa, em Paris ou em
ças para montar e desmontar. E estas italiana era uma comédia qualquer, casa, que era perto de Lausanne, na Madrid. Chegava-se e pronto, se hou-
esculturas eram vendidas com livro de mais ou menos inteligente, onde de Suíça. Tinha conseguido finalmente vesse lugar estacionava-se e ficava-se
instruções, que eu desenhava. A mu- vez em quando a protagonista tomava juntar todos os livros das várias ca- ali uma semana. Agora é impossível.
lher de Berrocal, Isabelle, era francesa um duche. E era isso, filmavam-na no sas, porque já só tinha aquela casa de Então sim, se mudarmos o contexto
e recebia muitas novidades literárias de duche. Às vezes filmavam também al- Lausanne. Carregámos estes livros e histórico, ele era o Corto Maltese. Era
Paris. E um dos livros era “Barbarella”, guém que olhava para ela a tomar ba- depois seguimos para Paris. Claro que um homem de uma absoluta liberda-
que tinha acabado de sair. Pude vê-lo nho, outras vezes aparecia sozinha no parámos aqui e ali, ele conhecia todos de, sendo também capaz de pagar o
em antestreia, em relação a Itália. Vi-o duche. Era assim a comédia erótica à os melhores restaurantes da Europa. custo da liberdade. O que podia pas-
e fiquei literalmente encantado. Perce- italiana. E nestas bandas desenhadas Também quando íamos à Amadora sar por discutir com alguns editores
bi logo que era aquilo que deveria fa- também era mais ou menos assim. ou a Lisboa, muitas vezes fazíamos ou com a mulher dele. Quando sentia
zer na minha vida. Aquilo e só aquilo. a viagem juntos com muitas etapas que alguém estava a tentar impor-lhe
Estava mesmo apaixonado pelo livro. Quando entrou Hugo Pratt na sua nos vários restaurantes. Demorámos alguma coisa, rebelava-se de imedia-
E a seguir consegui encontrar outros, vida? então um par de dias para chegar a to. Era um homem absolutamente ul-
como “Jodelle”, do desenhador bel- Logo quando comecei a fazer banda Paris e à chegada conheci a mulher tralivre. Aquilo de que gostava mais
ga Guy Peellaert. Ou seja, eram gran- desenhada. A minha primeira banda dele. Ficámos amigos, antes de traba- era da sua liberdade, acho. E depois
des livros que com a onda do Maio de desenhada chamava-se “Genius” e lharmos juntos. A primeira banda de- considerava todo o mundo como uma
68 começavam a chegar dos Estados saiu no início de 1969. Em novembro senhada feita em conjunto é de 1983, possibilidade de descoberta, de via-
Unidos e de França. De Espanha não, havia o Festival de Lucca, que foi um “Verão Índio”. Passámos muitos anos gem. A sua característica como au-
porque ainda havia o franquismo, que dos primeiros festivais de banda de- em pura amizade, sem nenhuma co- tor sempre foi a de alguém que dava
viria a durar um bom bocado. E então senhada a aparecer. E em 1969 decidi laboração. Naturalmente, ele dava-me a conhecer civilizações diferentes.
comecei a copiar, a desenhar. Depois, ir a Lucca, para conhecer Hugo Pratt. os conselhos certos, sobre desenho. Era absolutamente antirracista, mas
peguei nos meus desenhos e pus-me a Para o ver de longe, mais do que para Houve uma altura em que o “Corriere mesmo de coração. Tinha o antirra-
percorrer os vários editores em Milão e o conhecer. Porque tinha saído “A Ba- dei Ragazzi” me propôs que entrasse cismo dentro dele. Tinha um respei-
em Roma, até que um pequeno editor lada do Mar Salgado” [o primeiro livro para o quadro — havia já outros dese- to absoluto por todas as culturas: a
aceitou que eu desenhasse uma perso- com a personagem Corto Maltese], que nhadores no quadro — e o Pratt dis- africana, a chinesa, a tibetana, depois
nagem. Isto aconteceu em 1968. Dese- para mim tinha sido um outro amor à se-me que não deveria aceitar. Disse- sobretudo a hebraica. Fascinavam-no
nhei a minha primeira banda desenha- primeira vista. Logo a seguir a “Bar- -me: “Tens de ficar livre. Nunca mais mesmo. Escreveu e desenhou histó-
da nesse ano e foi publicada no início barella”, foi essa a banda desenhada te quero ver, se aceitares ir para o qua- rias passadas um pouco por todo o
de 1969. Ou seja, publico e vivo deste que mais de influenciou, mesmo de dro. Porque tu não sabes o que signifi- mundo. E mostra sempre um enorme
trabalho há 53 anos. um ponto de vista cultural. E então fui ca este trabalho, a liberdade que existe respeito pelas culturas, seja de onde
a Lucca e conheci Hugo Pratt e ajoe- neste trabalho. Quando começares a for. Também quando falava sobre a
Esta primeira banda desenhada era lhei-me aos pés dele. Sendo os dois da escrever as tuas histórias, vais perce- II Guerra Mundial, nunca havia con-
para adultos? região de Vêneto, ele gostava de estar ber a sério o que é este trabalho. É a denações definitivas. Talvez as hou-
Era um livro para adultos. Saíram comigo porque podia falar em dialeto. liberdade total, absoluta.” vesse para os chefes, mas não para
muitos nessa altura, em Itália. O pri- Os venezianos adoram falar no dialeto as personagens. Se a personagem era
meiro [de Milo Manara] foi o “Ge- deles, em vez de falar em Italiano. Além O Hugo Pratt era um pouco como Cor- um soldado alemão, mostrava um
nius”, que era mais ou menos copia- disso, sendo ele veneziano não tinha to Maltese? respeito enorme. E todas as persona-
do do “Diabolik”. Era quase igual mas carro nem carta de condução. Sim, mutatis mutandis. Ou seja, mu- gens eram problemáticas. Cada uma
tinha a boca à mostra, em vez de ter dando o contexto, porque o Corto delas se perguntava se seria certo o
apenas os olhos à mostra no capuz. E o Milo Manara tinha carro? Maltese vivia numa época em que que estava a fazer. Foi um autor ma-
Que novidade... E as acompanhan- E eu tinha uma autocaravana. não era preciso pedir autorização ravilhoso, enorme. E, neste sentido,
tes eram raparigas seminuas. Eram Para ele era divertida esta ideia da para chegar de barco e ancorar num Hugo Pratt era mesmo Corto Maltese.

E 48
O erotismo agora tem um contex- O nome Milo Manara é muito fácil de romance de [H. G.] Wells “O Homem que não tinha feito histórias eróti-
to cultural diferente de quando co- pronunciar em várias línguas. Foi uma Invisível”, nunca percebi porque é que cas. De qualquer modo, propôs-me
meçou a fazer banda desenhada. A sorte ou uma escolha sua? este homem invisível vivia a sua invi- que fizesse uma história erótica para
disponibilidade total de pornogra- Foi uma grande sorte. Sempre me cha- sibilidade de uma forma assim tão trá- a “Playmen”. E então fui a Roma e
fia mudou a forma como se vive o maram Milo, quando era pequeno. O gica. Ou seja, para ele parecia-lhe uma conheci ali [na redação] o jornalista
erotismo? meu nome verdadeiro — digamos — maldição. Eu, pelo contrário, se fosse Franco Valobra, que tinha a cara que
Acho que sim. Acho que terá muda- seria Maurilio, Maurilio Manara. Mas invisível seria o homem mais feliz do viria a ser a do protagonista de “O
do, com esta enorme difusão da por- em minha casa, os meus pais e os meus mundo. Não percebia como era pos- Clic”. Tinha uma cara muito fora do
nografia. Eu diferencio o erotismo irmãos chamavam-me “Milo” e depois sível que este homem sofresse assim comum. Era albino, tinha uma pele
da pornografia, mesmo que seja uma todos os que me conheceram ao longo tanto e que quisesse assim tanto voltar branquíssima com uns olhos averme-
diferença muito subtil. É difícil fazer da vida sempre me chamaram “Milo”. a ser visível. E então pensei: “É uma lhados. Era baixíssimo. E mancava.
uma verdadeira distinção. Como dis- Se alguém me chamar Maurilio eu nem boa altura para demonstrar os lados Mas quando entrou na redação, es-
se alguém, o meu erotismo é a porno- sequer percebo que seja para mim. E positivos da invisibilidade.” E pus-me tava acompanhado de duas mulheres
grafia dos outros. Ou seja, cada um acho que foi uma sorte, porque foi bom a criar esta historieta com um bocado fabulosas. Provavelmente eram duas
estabelece o seu limite entre erotismo ter um nome assim fácil de memorizar. de diversão, com algumas notas so- modelos da “Playmen”. E eu pensei:
e pornografia. Para mim, o erotismo é Não gosto quando vejo escrito em arti- ciais, sobre os preconceitos em relação “Trocava já de lugar com ele, com
a elaboração cultural do sexo. Assim gos de jornal: “Maurilio Manara, nome a um certo erotismo. Enfim, era uma todo o gosto.” Ficava com o físico dele
como a cozinha é a elaboração cultu- artístico Milo Manara.” Prefiro antes história que esperava que fosse diver- e também com a sua companhia. No
ral da alimentação, do ato de comer- manter o meu nome verdadeiro, que tida e de facto teve sucesso. Não se via regresso a Roma, pensei durante a vi-
mos. Já a pornografia é uma simples é Milo Manara. É esse que levo dentro coisas, imaginava-se. Era o leitor que agem qual poderia ser o segredo da
exposição do sexo. Ou seja, mostrar o de mim, não levo comigo aquele dos metia lá dentro a sua dose de erotismo. sedução deste homem. E foi assim que
sexo, é isso a pornografia. registos do Estado. me ocorreu, quando ao chegar a casa
Ainda antes dessa história sobre a in- peguei no telecomando para abrir o
Como artista, costuma Qual é a história da criação do livro “O visibilidade, outro grande sucesso seu portão. Veio-me à cabeça que pode-
autocensurar-se? Perfume do Invisível”? foi “O Clic”. Como nasceu esse livro? ria ser mesmo assim, com esse tele-
Não, normalmente por minha voca- Havia uma revista que se chamava Nasceu também de uma encomen- comando. E assim fiz esta história que
ção tendo a não me autocensurar. Re- “Panorama”, que acho que ainda exis- da. Nesse caso foi uma encomenda de teve mesmo muito sucesso, um pouco
conheço às editoras o direito de cen- te. Era uma revista semanal políti- uma revista “só para homens”, como por todo o mundo. Foi feito um filme.
surarem. Como é a editora que faz o ca e nas edições de verão costumava se dizia.
livro, tem o direito de não correr ris- ter um fascículo com jogos e palavras Como foi a sua descoberta da mulher?
cos, para evitar que o livro seja retira- cruzadas, para fazer durante as férias. A revista italiana “Playmen”? Foi felliniana?
do de venda e se perca o dinheiro in- Pediram-me uma banda desenhada Sim, que era muito parecida com a Não, não foi felliniana. No sentido em
vestido. Ou seja, reconheço o direito bastante erótica, mas que também “Playboy”. E que publicava sempre que não descobri uma mulher mais ve-
à editora de ponderar se certas coisas eles pudessem publicar. A “Panora- na última página um episódio de ban- lha do que eu. Descobri as minhas co-
são ou não para censurar. Devo di- ma” era uma revista da Mondadori, da desenhada. Nessa altura estavam a legas de escola. Ou seja, estávamos ao
zer que nos Estados Unidos já fui um não havia lá muito erotismo. Às vezes publicar uma história de Guido Cre- mesmo nível. Tínhamos a mesma ida-
bocado censurado. No livro “Borgia” na capa havia raparigas, mas em geral pax, acho que era “Bianca”. Mas a his- de, estávamos na mesma altura da ado-
fui censurado lá, em alguns quadra- era uma revista política e cultural. E tória tinha acabado e Crepax precisava lescência. Eu era adolescente, ela era
dinhos. No livro “Verão Índio” foram então perguntei-me: “Como poderia de alguns meses para escrever outra. adolescente. Ela ou elas, porque tive a
censurados alguns quadradinhos pela fazer para contar uma história erótica Para desenhar outra, sobretudo. E en- sorte de ser o único rapaz numa turma
editora belga Casterman. De vez em sem que se visse? Sem que as imagens tão a diretora da “Playmen” — que se só de raparigas. Então, para mim, foi
quando, sim, houve censura. Mas na fossem demasiado eróticas?” Aconte- chamava Adelina Tattilo — lembrou- a descoberta da mulher, também em
realidade não muito, normalmente ce que tinha ficado sempre na memó- -se de me fazer essa encomenda. Não termos de personalidade, de carácter,
tenho bastante liberdade. ria com uma velha questão pessoal. No sei como, porque até essa altura acho da especificidade de género... Tive uma
ótima escola.

Também porque tinham aulas de de-


senho com uma modelo nua.
Sim, também havia uma rapariga
nua. Então a atmosfera era mesmo
muito divertida. As raparigas, sendo
muitas, não se intimidavam comigo.
Sentiam-se completamente à von-
tade. Aconteceu irmos visitar uma
colega de turma que estava doente e
A Revolução dos Cravos foi era hóspede num convento, porque
era de outra cidade longe de Verona.

muito festejada em Itália. Todas as minhas colegas trouxeram


uma peça de roupa. Alguém trouxe
as meias, alguém trouxe os sapatos,

Ver o exército mudar de lado alguém trouxe a saia. E vestiram-me


de mulher. Entrámos em grupo no
convento, para irmos ter com a rapa-

e passar a defender os cidadãos. riga. E as freiras não se aperceberam.


A própria rapariga que estava doente
só se apercebeu muito depois, quan-
Chamavam-se os Capitães de do levantei o véu que levava sobre a
cabeça. Nessa altura desatou a rir. b

Abril. Foi uma coisa maravilhosa” e@expresso.impresa.pt

E 49
QUE COISA SÃO AS NUVENS

APRENDER A CUIDAR

T
A FERIDA É UM PATRIMÓNIO E UMA RESPONSABILIDADE QUE PERTENCE A TODOS
alvez o elemento cultural mais forte do contra Hitler, o teólogo cristão Dietrich Bonhoeffer (1906-
presente seja a ferida. A própria pandemia — 1945) escreveu: “No curso das nossas existências, não falamos
tal, como agora, a experiência devastadora facilmente de vitória: é uma palavra que nos parece demasiado
da guerra, mesmo se localizada — deixam a grande. Ao longo dos anos sofremos demasiadas derrotas,
descoberto uma vulnerabilidade global que demasiados momentos de fracasso e fragilidade. E contudo, o
não queríamos ver e obriga as sociedades, no espírito que habita em nós deseja o sucesso final contra o mal.”
seu todo, a fazer contas com feridas antigas É verdade que o próprio Bonhoeffer foi enforcado, escassos
e recentes. A vulnerabilidade associada à dez dias antes de o campo de concentração ser libertado pelas
experiência humana pede, de facto, para forças aliadas, mas ele foi no terrível século XX (e o século
ser lida como realidade mais intrínseca, XXI infelizmente não se está a revelar menos terrível) uma
transversal e vasta. Há um estrutural défice testemunha dos desejos do espírito contra a tirania do mal. O
de cuidado, que vem de muito longe e de desejo desse espírito que pulsa dentro de cada ser humano é
muito fundo. Não admira, por isso, que a uma força que não se rende. E — para quem o quiser escutar —
necessidade de reconhecer a ferida, de a ele acentua a urgência de construir um novo pacto social, uma
narrar, de colocá-la no centro do debate público, de a atender e nova visão cultural partilhada, que seja capaz de introduzir e
de lhe fazer justiça se tenha tornado uma aspiração tão forte do sustentar, no seu interior, dinâmicas de escuta, de encontro, de
nosso tempo. A ferida é um património e uma responsabilidade devolução de liberdade e de justiça, de verdadeira pacificação e
que pertence a todos. Recordo o que escreveu Hofmannsthal de cura. Para isso, porém, precisamos de reaprender todos a ser
(1874-1929) num precioso livro que a Assírio publicou há uns coprotagonistas no artesanato interminável que é a construção
anos e que passou, entre nós, praticamente despercebido, da paz e de desenvolver a cultura do cuidado.
“Livro dos Amigos” (Assírio, 2002): “Ninguém pode dizer Em dias como estes que dramaticamente o mundo vive, onde
que se conhece profundamente se é apenas ela ou ele próprio, assistimos às consequências do delírio do poder, é importante,
e não ao mesmo tempo também um outro.” De facto, não há por exemplo, rever criticamente o impacto das lideranças
futuro a não ser na reciprocidade eticamente qualificada entre autoritárias, baseadas no brutal princípio da violência. O futuro
a situação de quem fala e de quem escuta. precisa de líderes com maior consciência da vulnerabilidade
A história da dor é, infelizmente, quase sempre uma história da terra e dos seus moradores, capazes de dialogar com
submersa, negligenciada face aos discursos dominantes, as necessidades reais das pessoas, mais empáticos do que
remetida para as trincheiras de uma solidão que poucos autoritários, capazes de desenvolver formas de escuta e de
ouvem. A ponto de se achar que é um inconsequente idealismo corresponsabilidade, investindo na confiança em vez do
pensar a vitória sobre as diversas formas de mal. Na cela da controlo, promovendo a compreensão de que o lucro e a posse
prisão nazi, onde viveu os últimos meses da sua vida, depois violenta, o consumo ou o domínio não são as únicas coisas
de uma participação na tentativa fracassada de atentado pelas quais vale a pena lutar. b

O FUTURO PRECISA DE LÍDERES


COM MAIOR CONSCIÊNCIA
DA VULNERABILIDADE DA
TERRA E DOS SEUS MORADORES,
CAPAZES DE DIALOGAR COM
AS NECESSIDADES REAIS / JOSÉ
DAS PESSOAS, MAIS EMPÁTICOS TOLENTINO
DO QUE AUTORITÁRIOS MENDONÇA

E 50
A veterana Jane
Campion (sentada),
realizadora de “O Poder
do Cão”, é a vencedora
provável da 94ª edição
dos Óscares

Hollywood
em campo
Os Óscares ainda são os Óscares? Nunca como
este ano houve tantos filmes nomeados a
estrearem-se em streaming sem passarem pelas
salas. Os prémios são entregues este domingo
TEXTO JORGE LEITÃO RAMOS
KIRSTY GRIFFIN/NETFLIX

E 51
“Dune”, de Denis Villeneuve
e disponível na HBO Max,
apresenta-se a concurso
com 10 nomeações
e destaca-se nas
categorias técnicas

C
modo de difusão dos filmes sofreu quando chegar, ainda este ano, a Filme com Melhor Realização,
um incremento notável, ao ponto de SkyShowtime, onde se albergarão pelo que é de crer que a cineasta
se poder dizer que o mercado das os seus títulos. É assim que obras neozelandesa venha a abraçar a
salas está a deixar de ser o centro maiores na rota dos prémios da estatueta nessa categoria. Campion
do negócio, que se transfere para a Academia, como “Dune” ou “West — que se vê a si mesma como “uma
esfera digital, a internet. Side Story”, ainda nas salas, podem espécie de avó do movimento das
Um sinal dessa centralidade pode ser vistas em streaming. mulheres no cinema” — vai, assim,
ser sentido em Portugal, onde, Há, todavia, um problema: este ano, juntar no armário dos troféus mais
pela primeira vez, há bastantes um cinéfilo inveterado e lusitano, Óscares ao que ganhou em 1994
filmes dos Óscares que nem foram daqueles que perseguia os filmes pelo argumento de “O Piano”. Até
om a pandemia ainda a resmonear estreados nas salas, surgindo dos Óscares nas salas, se quiser as empresas de apostas é para aí que
e a guerra na Ucrânia a fazer o diretamente nas plataformas de perseverar na sua crença, terá apontam.
drapejo do horror, esta temporada streaming. Foi o caso, por exemplo, de subscrever não um, não dois, Lembre-se que tudo começou no
de prémios — de que os Óscares de “A Tragédia de Macbeth”, o não três, não quatro, mas cinco último Festival de Veneza, onde
são o cume e o encerramento — é filme de Joel Coen que alberga a serviços — 5 —, o que se afigura ganhou o Leão de Prata para a
uma das mais estranhas de sempre. interpretação de Denzel Washington muito problemático, bastante Melhor Realização. Aliás, se há
O começo da singularidade está candidata ao prémio de Melhor luxuoso. Não é possível que, no homem feliz nesta temporada dos
logo na matéria-prima, os filmes Ator, ou de “No Ritmo do Coração”, futuro, haja rendibilidade para prémios, Alberto Barbera, o diretor
elegíveis, disponibilizados num de Sian Heder, nomeado para todas as plataformas de streaming desse festival, é um deles: já há
ano em que, em boa parte, as salas três Óscares (entre os quais o de presentes atualmente no mercado, uns bons anos que a sua escolha
estiveram fechadas e, quando Melhor Filme), que só podem ser e haverá sangue. Em todo o caso, se para a Mostra Internazionale d’Arte
abriram, não se encheram com o vistos na Apple TV+. E de “tick, o leitor quiser saber onde pode ver Cinematografica se revela uma
número de espectadores de antes. tick... BOOM!”, de Lin-Manuel os (principais) filmes dos Óscares, promissora rampa de lançamento
Esses filmes ou foram produções Miranda, ou de “A Mão de Deus”, consulte o quadro que aqui lhe para os prémios da Academia
cuja divulgação foi sendo adiada de Pablo Sorrentino, que emergiram deixamos. americana. 2022 vai confirmá-lo.
por causa da pandemia ou obras já diretamente na Netflix. Houve Será este ano que a Netflix chega A mim, desde essa estreia em
rodadas nas condições especiais em mesmo um caso, a roçar o caricato, à estatueta de Melhor Filme? Em Veneza que “O Poder do Cão” me
que se conseguiu, limitadamente, em que, meses depois de “O Poder 2019 esteve perto, com “Roma”, de parece — como dizer? — um filme
trabalhar. do Cão”, de Jane Campion, estar Alfonso Cuarón; em 2020 apostou supinamente ruminado, sagaz,
Olhamos para os títulos na lista disponível na Netflix em Portugal, em “The Irishman”, de Scorsese, bem executado, feito com mais
de nomeados e percebemos que a um distribuidor resolveu pô-lo nas e “Marriage Story”, de Noah cérebro que tripas. Entre os que
colheita não envergonha, mas, pior salas. Baumbach; em 2021, “Mank”, de estão em competição, muito mais
do que é costume, está longe de Mais extraordinário é a rapidez com David Fincher, até liderava nas entusiasmante — e não menos
provocar entusiasmos. Para mais, que as majors estão a colocar nas nomeações (10), mas não ganhou. precioso nas artes cinematográficas
tudo isto ocorre num momento suas plataformas os filmes estreados Este ano, “O Poder do Cão”, de — é o japonês “Drive My Car”, que
de grande viragem no modelo de nos cinemas. A prática, entre nós Jane Campion, parece ungido não se afigura ter a mínima hipótese
negócios do cinema, viragem que iniciada pela Disney (na Disney+), pelos astros para o triunfo. Traz na de chegar a Melhor Filme e Melhor
já se vinha delineando e que a está já a ser seguida pela Warner carga 12 nomeações e um rasto de Realização, mas é quase certo ir
emergência da covid-19 acelerou. A (na HBO Max), não se sabendo prémios deveras esmagador, dos ganhar o Óscar de Melhor Filme
aposta das majors nas plataformas se a Paramount e a Universal Globos de Ouro aos Critics Choice
de streaming como centrais no caminharão no mesmo sentido e aos BAFTA, a emparelhar Melhor Continua na página 54

E 52
ONDE PODE VER
Nightmare Alley — Beco das Almas Perdidas
O poder não é do punhado de curtas excecionais; em
“O Piano”, aliás, já era uma cineasta
com o lirismo em curva descendente;
Disney+ e nas salas
Não Olhem para Cima
Netflix
cão, é dos dólares não considero sequer que “O Poder
do Cão” esteja ao nível do seu melhor
neste milénio (“In The Cut”).
Duna Tudo neste novo filme já é norma,
HBO Max e nas salas aconchego narrativo moldado a
Drive My Car Líder em nomeações (uma dúzia Na edição dos Óscares de 1994, e já uma audiência de streaming. Mas
Nas salas delas) para a cerimónia que os com uma Palma de Ouro de Cannes os tempos não são apenas, como se
portugueses verão na madrugada no portefólio, “O Piano”, recorde- disse acima, favoráveis a Campion
CHIA BELLA JAMES/WARNER BROS. ENTERTAINMENT INC.

Belfast
Nas salas de segunda-feira, já reconhecido se, foi distinguido em Los Angeles por esse aconchego. São também
Licorice Pizza com diversos prémios em múltiplas com estatuetas ao argumento e favoráveis porque a neozelandesa,
Nas salas guildas americanas e vencedor, às interpretações femininas, mas ao contrário, por exemplo, de um
O Poder do Cão sublinhe-se, de Melhor Filme e de quem levou então o Melhor Filme e ‘desamparado’ como Paul Schrader (e
Netflix e nas salas Melhor Realização nos Globos de a Melhor Realização foi Spielberg e contudo em altíssimo nível de forma),
West Side Story Ouro e nos BAFTA, “O Poder do Cão”, “A Lista de Schindler”. Nunca mais tem por trás os favores de uma
Disney+ e nas salas novo filme de Jane Campion, perfila- a cineasta voltaria a ser nomeada bilionária plataforma que controla o
King Richard: Para Além do Jogo se para coroar a neozelandesa no depois disso. Passados 28 anos — e liberalismo do entertainment e que,
HBO Max Olimpo da Academia de Hollywood e, numa compita em que Spielberg com a teimosia de um oligarca (quase
No Ritmo do Coração salvo surpresa de última hora, firmá- volta a ser seu adversário —, o ar dos escrevi ‘russo’), jurou entrar pela
Apple TV+ la enfim nas categorias principais que tempos é bem mais favorável para porta grande na morada dos deuses
Os Ricardos o mais popular de todos os seus filmes Campion. Por ser mulher? Conclui- do cinema americano. “O Poder do
Prime Video anteriores não atingiu. se facilmente que sim: a batalha Cão” é um filme da Netflix, e nunca
Spencer pela igualdade de géneros que se esta esteve tão perto de um êxito em
Filmin e nas salas trava hoje nas sociedades ocidentais que o poder é acima de tudo o do
tick, tick... BOOM! é muito mais premente e em nada dinheiro; uma questão de business
Netflix se compara aos anos 90 do século em que aquela empresa parte da pole
A Tragédia de Macbeth passado. Pelo teor do filme, inspirado position.
Apple TV+ Há contudo um aspeto muito curioso
num romance de Thomas Savage
The Eyes of Tammy Faye vagamente autobiográfico e em torno que temos vindo a acompanhar ao
Disney+
da homofobia no remoto Montana longo destes últimos anos e que se
A Filha Perdida no início do século XX? Sem dúvida. relaciona com as bolsas de apostas
Nas salas
Pouco importa sublinhar agora que nos Óscares. Também aqui há
Mães Paralelas ninguém passou cartão ao romance imenso dinheiro envolvido e que
Nas salas
— que abria com a castração de um muito rendeu por surpresas recentes,
Flee — A Fuga touro — quando Savage o publicou como as da vitória contundente
Nas salas a partir de 7 de abril
em 1967 (e que seria, de resto, de “Parasitas” ou a de Anthony
A Mão de Deus Hopkins, melhor ator há um ano.
influência maior para a temática
Netflix
gay de “Brokeback Mountain”, de Sim, “O Poder do Cão” é o favorito
A Pior Pessoa do Mundo
Annie Proulx, adaptado a outro filme — mas também lá está o Spielberg.
Nas salas
‘arraçado’ de western por Ang Lee). Duvidamos que o intruso japonês
Lunana: A Yak in the Classroom
Mas Campion batalhou longos anos “Drive My Car”, de Hamaguchi,
Indisponível em Portugal
para adquirir os direitos de adaptação possa repetir a façanha que Bong
do texto. E foi a partir do texto que Joonho logrou em 2020. Já o “Licorice
a neozelandesa deu forma a Phil Pizza”, de Paul Thomas Anderson, é
Burbank (Benedict Cumberbatch), uma miragem.
esse ‘cowboy tardio’ (a ação decorre Contudo, e quem o diz não somos nós
Benedict em 1925) que arranha a viola e se mas a flutuação das apostas destes
Cumberbatch, no deita sem tirar as calças de couro, últimos dias, há um outro filme
papel de Phil Burbank, com ares de machão cruel, impiedoso americano a que ninguém está a ligar
está nomeado para com os seus, intimamente dilacerado patavina mas a ganhar favoritismo
Melhor Ator pela inclinação homossexual que é a olhos vistos. É “Coda”/“No Ritmo
incapaz de assumir. do Coração”, da norte-americana
Será “O Poder do Cão” um filme Sian Heder (Apple TV+). Para o Óscar
digno das categorias nucleares dos de Melhor Filme, e à data em que
Óscares, entre elas as de Melhor se escreve, “Coda” já deixou para
Filme e de Melhor Realização trás “West Side Story” e “Belfast”.
(estando este último praticamente E, na categoria de Melhor Ator
garantido, dizem os ‘especialistas’)? Secundário, também Troy Kotsur
Não para o autor destas linhas, que suplantou Kodi Smit-McPhee. Tudo
viu em “The Card Counter”, ignorado isto são prognósticos, mas legitimam
em absoluto por Hollywood, o melhor a pergunta (e o show também é feito
dos americanos do ano transato. disto): sairá a Netflix vencedora ou
Campion perdeu há muito a frescura será ultrapassada na última curva,
de “Sweetie” e de “Um Anjo à Minha quem sabe, por uma plataforma
Mesa”, que a lançaram após um concorrente?/ FRANCISCO FERREIRA
QUEM
VAI QUEM
DEVIA
GANHAR GANHAR

POR JORGE LEITÃO RAMOS

MELHOR FILME

“O Poder do Cão” “Drive My Car”

MELHOR REALIZAÇÃO

Jane Campion Ryûsuke Hamaguchi


“O Poder do Cão” “Drive My Car”

MELHOR ATOR

Will Smith Javier Bardem


“King Richard: “Os Ricardos”
Para Além do Jogo”

MELHOR ATRIZ

Jessica Chastain Nicole Kidman


Nicole Kidman Continuação da página 52 comunista, ao mesmo tempo que
“The Eyes of Tammy Faye” “Os Ricardos”
e Javier Bardem, suspeita que ele a anda a trair
ambos nomeados Internacional. Eu votaria nele nas com outras mulheres. O filme,
MELHOR ATOR SECUNDÁRIO para o prémio de três categorias. correto e interessante, não merece
interpretação mais No campo dos atores, os vaticínios qualquer galarim especial, mas tem
aguardado, são
Troy Kotsur Troy Kotsur apontam para Will Smith. Tal como desempenhos sensacionais. Ver
os protagonistas
“No Ritmo do Coração” “No Ritmo do Coração” Jane Campion, Will Smith também Nicole Kidman a fazer de Lucille Ball,
de “Os Ricardos”
tem ganho tudo, desde os Globos em especial nos fragmentos do show
de Ouro à Guilda dos Atores, dos “I Love Lucy” no interior da ficção, é,
MELHOR ATRIZ SECUNDÁRIA
prémios dos Critics Choice aos porventura, ainda mais estarrecedor.
BAFTA. O seu desempenho do Para ela iria a minha escolha de
Ariana DeBose Ariana DeBose
determinado Richard Williams, o pai Melhor Atriz, embora não possa
“West Side Story” “West Side Story”
que aposta que as duas filhas iriam valorar o desempenho de Jessica
chegar ao topo do ténis mundial Chastain em “Os Olhos de Tammy
MELHOR ARGUMENTO ORIGINAL e que as treinou com denodo até Faye”: na data em que escrevo o
arranjar alguém que as fizesse filme ainda não foi disponibilizado
Paul Thomas Kenneth Branagh levantar voo, é um daqueles papéis na Disney+. Jessica Chastain venceu
Anderson “Belfast” feel good que empurra o espectador na Guilda dos Atores e nos Critics
“Licorice Pizza” para acreditar na iniciativa Choice, o que a posiciona numa
individual e no sonho americano. dianteira que as empresas de apostas
Tanto mais que “King Richard: Para não fazem senão reconhecer. É
MELHOR ARGUMENTO ADAPTADO
Além do Jogo” é a história de Venus e quase certo que leve o Óscar para
Serena Williams, duas lendas do ténis casa. Curiosamente, nos BAFTA nem
Jane Campion Ryûsuke Hamaguchi
mundial, e da família que ajudou sequer foi nomeada...
“O Poder do Cão” e Takamasa Oe
“Drive My Car” a inventá-las. E Will Smith, saindo No terreno dos secundários está
da pele do bom rapaz com aquele tudo mais previsível. Ariana
ar divertido que sempre lhe calhou, DeBose, a Anita do “West Side
MELHOR FILME INTERNACIONAL agarra um papel de homem mais Story”, de Spielberg, tem todas
velho com grande eficácia, se bem as probabilidades de vir a ser a
“Drive My Car” “Drive My Car” que, na minha opinião, não lhe peça vencedora, já que o rasto que a traz
Ryûsuke Hamaguchi Ryûsuke Hamaguchi muito mais que a sua rotina habitual, até aos Óscares é quase unânime.
arrefecendo os histrionismos. Um voto que eu não me importaria
Se eu votasse, melhor iria a minha de corroborar. Curiosamente,
escolha para Javier Bardem: em se ganhar, repete o feito de Rita
“Os Ricardos”, é abissal a sua Moreno no “West Side Story” de
personificação de Desi Arnaz num Robert Wise e Jerome Robbins, há
filme que conta o momento mais precisamente 60 anos. É bem certo
dramático da sua relação com que a energética Anita, que lidera
Lucille Ball, quando ela é apontada o brado “I like to live in America”,
publicamente como simpatizante tem uma pedalada que a doce Maria

E 54
(então de Natalie Wood, agora de
Rachel Zegler) não consegue atingir. QUEM
Pelo lado masculino, soam já as
trombetas para saudar o primeiro
VAI QUEM
DEVIA
ator surdo-mudo a receber o GANHAR GANHAR
Óscar: Troy Kotsur. O seu papel em
“No Ritmo do Coração”, de Siân POR FRANCISCO FERREIRA
Heder, um curtido pescador, líder
de uma família onde só a filha é
falante e ouvinte — e quer tornar-se MELHOR FILME
cantora —, é talhado para uma
interpretação onde a comédia e o “No Ritmo do “Drive My Car”
drama se enrodilham e, na onda Coração”
que conduz ao inevitável happy
end, lhe permitem mostrar registos
MELHOR REALIZAÇÃO
múltiplos e tocantes. Eu votava nele
e acredito que, após os prémios da Jane Campion Ryûsuke Hamaguchi
“O Poder do Cão” “Drive My Car”
Guilda dos Atores, do Critics Choice
e do BAFTA, só um terramoto lhe
tirará a estatueta dourada das MELHOR ATOR
mãos. Mas, claro, os terramotos
acontecem... Will Smith Will Smith
Quanto às pessoas que escrevem “King Richard: “King Richard:
os filmes, todas as dúvidas são Para Além do Jogo” Para Além do Jogo”
legítimas e débil o peso dos
prognósticos. No terreno do Melhor
MELHOR ATRIZ
Argumento Original perfilam-se
dois contendores com hipóteses de
Jessica Chastain Jessica Chastain
vitória: Paul Thomas Anderson por “Os Olhos de Tammy Faye” “Os Olhos de Tammy Faye”
“Licorice Pizza” e Kenneth Branagh
por “Belfast”. O primeiro parece ter
mais probabilidades — aposto que MELHOR ATOR SECUNDÁRIO
ganha. O segundo, contudo, parece-
me bem mais matizado e rico em Troy Kotsur Troy Kotsur
escrita — nele votaria se a Academia “No Ritmo do Coração” “No Ritmo do Coração”
tivesse lugar para críticos (e ainda
bem que não tem).
MELHOR ATRIZ SECUNDÁRIA
No que se refere ao Melhor
Argumento Adaptado, as coisas
Ariana DeBose Ariana DeBose
ainda estão mais enevoadas. É
“West Side Story” “West Side Story”
mesmo a categoria em que se deve
assumir que apostas só no fim do
jogo. Devo dizer que, neste campo, MELHOR ARGUMENTO ORIGINAL
a minha inclinação iria para a dupla
nipónica (Ryûsuke Hamaguchi e Paul Thomas Paul Thomas
Takamasa Oe) responsável pela Anderson Anderson
adaptação do conto de Haruki “Licorice Pizza” “Licorice Pizza”
Murakami. Essa é, todavia, uma
eventualidade fora de todas
MELHOR ARGUMENTO ADAPTADO
as cogitações permitidas pela
realidade, onde apenas dois filmes
Siân Heder Ryûsuke Hamaguchi
parecem ter hipóteses. Um é “No
“No Ritmo do Coração” e Takamasa Oe
Ritmo do Coração”, o outro e mais “Drive My Car”
provável é “O Poder do Cão”.
Um terceiro Óscar para Jane
Campion, que adaptou o romance MELHOR FILME INTERNACIONAL
de Thomas Savage, é a perspetiva
mais forte — e, a cumprir-se, faria “Drive My Car” “Drive My Car”
da neozelandesa a primeira mulher Ryûsuke Hamaguchi Ryûsuke Hamaguchi
a receber três estatuetas na mesma
noite. Uma noite onde o feminino
e a multietnicidade vão estar em
destaque, pois terá três anfitriãs:
Wanda Sykes, Amy Schumer e
Regina Hall. A Academia das Artes e
Ciências Cinematográficas continua ÓSCARES
a levar muito a sério as causas Com Regina Hall, Amy Schumer e Wanda Sykes
politicamente corretas. b RTP1, madrugada de domingo para segunda-feira, em direto

E 55
Li Morrer
vros
Coordenação
Luciana Leiderfarb
lleiderfarb@expresso.impresa.pt
no gelo
“O Africano
O
livro foi publicado em 1981, “bonito”. E a rádio descreveu-o
e desde então editado mais como “um homem muito alto, que
da Gronelândia” 22 vezes e traduzido para tem cabelos como a lã preta, olhos
dez línguas. Agora, “O Africano da que não são oblíquos mas em forma
é o relato de Gronelândia” será finalmente conhecido de arco e sombreados por pestanas
uma viagem em português — e em mandarim, assim
como terá nova edição inglesa. O seu
encaracoladas”. “Nunca tinham visto
um negro”, refere Tété-Michel. “Foi
improvável, feita perpétuo retorno ganha outros sentidos interessante compreender que eles
num mundo de fronteiras cada vez também me estavam a descobrir.”
em 1965, por mais fechadas ao fluxo migratório, em Num mundo globalmente conectado
especial oriundo do sul do planeta. Mas tende-se a desvalorizar este tipo de
Tété-Michel o que torna o livro único na literatura de contrastes. Mas no tempo em que se
Kpomassie. viagens não é apenas o facto de relatar situa este livro, as descrições ganham
uma jornada virtualmente impossível. um valor antropológico que ultrapassa
“Eles também É contá-la oferecendo pormenores a visão europeísta e condescendente
que mostram tanto a distância do “exótico” que então era frequente.
me estavam civilizacional quanto a proximidade. Tal acentua-se se considerarmos que
a descobrir”, Teté-Michel Kpomassie foi do Togo à
Gronelândia, viu o mundo ao contrário,
o narrador é tão ‘exótico’ quanto o
narrado. Nascido em 1941, no Togo
diz o escritor viu o que ninguém seu conhecido francês, numa família em que o pai tinha
antes presenciara. E naquele extremo oito mulheres e 26 filhos, Tété-Michel
ao Expresso povoado por esquimós encontrou- foi marcado precocemente por um local tivesse de recomeçar. Percorreu
TEXTO LUCIANA se, também, como africano. Uns e acidente na floresta. Numa tarde em que grande parte da África Equatorial: Gana,
LEIDERFARB outros foram colonizados. Uns e outros apanhava cocos, deparou-se com uma Costa de Marfim, de volta ao Togo —
“veneram elementos da natureza”, píton da qual teve de fugir. A experiência já com outro “estatuto na hierarquia
disse ao Expresso, e vivem nela de um deixou-o adoentado e o pai levou-o a familiar” —, Gana de novo para trabalhar
modo como nenhum europeu poderia uma sacerdotisa que, em troca, exigiu como datilógrafo bilingue, Senegal,
compreender. que o jovem fosse iniciado num culto Mauritânia. Aqui apercebe-se de que
Tété-Michel embarcou para a que o obrigaria a passar anos no meio não poderá atravessar o Sara a pé e que
Gronelândia em 1965, a bordo do de serpentes. Entretanto, numa livraria se impõe um barco rumo à Europa. Ele
“Martin S”. À medida que se deslocava jesuíta em Lomé, encontrou um livro de tinha seis anos de escolaridade, mas
para ocidente, os dias ficavam mais Robert Gessain sobre a Gronelândia. toma a decisão de se “instruir por conta
longos até não mais haver noites e “Fiquei fascinado, o livro foi uma grande própria”, lendo os clássicos franceses
o oceano congelava. Todos os dias libertação. Descobri que naquele país desde o século XVI. Chegado a Marselha,
atrasava-se o relógio. Ao chegar a fazia tanto frio que o mar estava gelado o destino é Paris. Em cada cidade poderia
Qaqortoq, o extremo sul da ilha, uma ao ponto de se poder andar nele, e que ter desistido do sonho gronelandês e ter-
pequena multidão os aguardava em não havia lá répteis, nem árvores. Eu se estabelecido. O que não aconteceu.
terra, pois o barco transportava bens morria de medo de voltar para a floresta Encontrou benfeitores e um “pai
almejados como café, bebidas alcoólicas sagrada e encontrar uma serpente. E o adotivo”, Jean Callault, a quem dedicou
e tabaco. Porém, iam ter uma surpresa. livro dizia-me: ‘Podes desobedecer ao o livro.
“Como um ator que se prepara com teu pai e ter a tua liberdade.’ Quando Este parisiense e antigo administrador
esmero antes de aparecer em cena, acabei de o ler, a palavra que enchia todo na Guiné e no Daomé chegou a viajar
QQQQ levei algum tempo a arranjar-me na o meu corpo era ‘Gronelândia’, a terra para a Dinamarca a fim de se oferecer
O AFRICANO DA cabina”, escreve o autor, que ao sair do prometida, o paraíso. Assumi isto como como fiador, quando a autorização
GRONELÂNDIA navio sentiu interromperem-se todas as a minha missão”, explica Tété-Michel. para entrar na ilha tardava em ser-lhe
Tété-Michel Kpomassie conversas. Algumas crianças desataram Essa missão levou-lhe oito anos, todos os concedida. Interessante é a surpresa
Tinta-da-China, 2022, a chorar, agarradas às mães. As pessoas que demorou a viajar do Togo à enorme que um cidadão do Togo, colónia
trad. de Margarida Periquito, deixavam-no passar e seguiam atrás ilha no Ártico. O desenho das suas francesa, sente ao confrontar-se com a
360 págs., €21,90 dele, confundindo-o com um “espírito pegadas no mapa é sempre para norte, Gronelândia, colónia dinamarquesa. “O
Relato autobiográfico das montanhas”. Uma mulher disse: teimosamente, mesmo que em cada meu país era uma colónia de França, e

E 56
CORTESIA TÉTÉ-MICHEL KPOMASSIE

Tété-Michel
antes disso alemã. Os alemães perderam que guardou, e não mais pensou neles.
Kpomassie viveu
a guerra e o Togo foi dividido entre a Ficou famoso pelo seu périplo, visitou 18 meses na
França e a Inglaterra. Mas essa divisão escolas, percorreu a África Ocidental a Gronelândia e
era artificial, não havia montanhas ou relatar como caminhou sobre o gelo e voltou lá três
rios a indicar a fronteira. A fronteira viveu meses a fio na noite. Um dia quis vezes. Agora
entre os dois países era uma linha de retornar à Gronelândia, mas acabou prepara-se para
coqueiros pintados de branco, havia em França, onde os apontamentos a última viagem,
guardas e não se podia atravessar. Os se transformaram em livro. E onde definitiva, em
europeus impuseram o cristianismo, conheceu a mulher que lhe daria dois setembro
que diz: ‘O pão nosso de cada dia filhos. Agora estão divorciados, diz ele,
dai-nos hoje.’ O meu pai não percebia, porque o projeto de acabarem os dias
porque na nossa cultura nós é que juntos no norte gelado já não é partilhado
damos comida aos deuses. Mais tarde, por ambos: “Ela ficou mais interessada
na Gronelândia, descobri que diziam na Europa — Roma, Grécia —, mas isso
a mesma coisa aos esquimós. Só que não significa nada para mim. Disse-lhe:
eles nunca tinham visto pão. Lá não há eu quero morrer na Gronelândia.” Nem
trigo nem plantações. Então, o primeiro os filhos o conseguiram dissuadir. Aos
missionário que chegou começou a 81 anos, tem viagem reservada para
traduzir a Bíblia e as palavras mudaram setembro. “Ofereceram-me estadia
para: ‘A foca nossa de cada dia dai-nos grátis por um mês. Nesse período, vou
hoje. Com a ressalva de que, a mais comprar uma casa. Quero escrever lá
de -40°C, ninguém te dá a foca, tens o meu segundo livro, sobre a minha
de trabalhar arduamente para a ter”, infância no Togo. Não tenho novos
comenta Tété-Michel Kpomassie. projetos: tenho sempre o mesmo, desde
Para descobrir os “verdadeiros os 16 anos. Viver para sempre com os
esquimós” foi para norte, e permaneceu inuítes”, reafirma. “No fundo, creio
na ilha 18 meses. Voltou ao Togo para que nunca saí da Gronelândia”, escreve
contar o que viu — mais dois anos de ele no posfácio à edição de 2014, desde
viagem. Tinha feito apontamentos, Nanterre, onde reside. b

E 57
Tropa

E ainda...

GETTY IMAGES
fandanga
O PERFUME DAS FLORES
QQQQ À NOITE
QUARENTA E TRÊS Leïla Slimani

LF ANDERSEN/GETTY IMAGES
José Gardeazabal Alfaguara, 2022, 137 págs., €16,45

Bohumil Hrabal foi um Relógio D’Água, 2022,144 págs., €17 A vencedora do Gouncourt, que
escritor checo, falecido Romance nasceu em Rabat, estudou em Paris
em 1997, que lutou e reside em Lisboa, passa uma noite
na frente da I Guerra Aposta novamente ganha a de num museu em Veneza e isso dá-lhe
e atravessou a II José Gardeazabal, que se aventura o mote para um livro intimista, que
sem outra rede do que a sua cultura fala da escrita, da infância e do lugar
literária e a convicção de que o pacto da mulher na arte.

O
s comboios rigorosamente episódios e imagens é dado um de leitura lhe assegurará o fio da
vigiados do título desta estatuto excessivamente alegórico, narrativa. A chave do romance está
novela de 1965 são ou isso não é sublinhado, mas no seu título, e sobretudo na epígrafe UM DIA NA VIDA
composições militares, com é extraordinário como Hrabal que antecede o texto: “A ideia de
DE IVAN
DENÍSSOVITCH
soldados ou armamentos, que consegue, por exemplo, convocar escrever um romance a partir de uma
Aleksandr Soljenítsin
passam a correr por uma pequena uma personagem que tem o filho página, sempre a mesma página, dos
Livros do Brasil, 2022,
estação checa, em 1945, nos na guerra, que traz no bolso um grandes romances. Mas que página?” 144 págs., €15,50
últimos dias da ocupação alemã. mapa muitas vezes dobrado e A resposta intitula o livro: “Quarenta e
Sendo uma história de resistência, desdobrado, e num dos buracos Três”, a página escolhida das 36 obras O romance narra a longa jornada
é-o no sentido lato. Os locais, dessas dobras está a zona onde o que formatam o seu labirinto. De que de um prisioneiro num gulag no
ou alguns deles, opõem-se aos filho combate, como se essa zona, edição, será a primeira pergunta que Cazaquistão e põe à luz a repressão
ocupantes, combatem-nos, e o filho com ela, tivesse sido ocorrerá ao leitor disposto a aceitar o estalinista, pela pena do Prémio
mas outros vivem as suas vidas rasurada. jogo de JG. Mas também esse desafio Nobel em 1970.
habituais, revelando-se, como O próprio protagonista da foi previsto: nove páginas antes
tantas personagens da literatura novela concentra em si diversos de se fechar o livro, acontece uma
checa, gozões, mandriões, líricos registos, toda a força e toda a bibliografia que não é meramente um Top Livros Semana 10
e lascivos. Bohumil Hrabal naturalidade. Jovem estagiário registo de obras consultadas pelo De 7/3 a 13/3
Ficção
(1914-1997) falava do que sabia. angustiado com a virgindade autor, é antes o inventário preciso
Semana
Trabalhara como ferroviário, indesejada e a impotência, Miloš da edição portuguesa de cada um anterior
e esse conhecimento nota-se chegou a tentar matar-se por dos capítulos do romance. Quanto Violoncelista
1 -
na veracidade com que estes causa disso, sobreviveu, e há-de à página, já sabemos. Começa uma Daniel Silva
chefes de estação, chefes de encaminhar-se para a guerrilha, aventura extraordinária. Claro que o Violeta
2 1
tráfego, sinaleiros e telegrafistas mas só depois de resolver os autor se arrisca a truncar o diálogo se Isabel Allende
interagem, nas suas hierarquias, problemas mais comezinhos. o leitor não possuir o livro exato na 3 -
Se Fosse Perfeito
fardas e tarefas. É como que Quando soluciona o maior edição certa — será muitas vezes o Colleen Hoover
uma pequena tropa fandanga, deles, com uma artista de circo, caso — mas quando se tem a sorte, 4 2
Vermelho Branco e Sangue Azul
Casey McQuiston
comparada com as divisões essa iniciação é descrita como no caso do primeiro, de ter à mão
alemães bem organizadas, embora arrasadora, em termos físicos “Rumo ao Farol”, de Virginia Woolf, na 5 3 Isto Acaba Aqui
Colleen Hoover
já em perda. e quase cósmicos. Mas depois edição da Relógio D’Agua, coteja-se a
As categorias consideradas para a elaboração deste top
As melhores páginas de livro percebemos que Hrabal misturou página 43 e dá-se “de caras” com Lily foram: Literatura; Infantil e Juvenil; BD e Literatura Importada
correspondem a episódios- (genialmente, inquietantemente) Briscoe, como que saindo da página e
imagem: a asa de um avião o sexo na vila de fronteira com o deixando Mr. Bankes no livro original Não ficção
alemão usado como telhado de bombardeamento da cidade de para esbarrar contra o corpo de Hans Semana
anterior
uma colheira, um avô a tentar Dresden, do lado de lá da fronteira. Heller, o protagonista de Gardeazabal.
A Mais Breve História da Rússia
hipnotizar uma coluna de / PEDRO MEXIA Assim vão desfilando pedaços de 1 1 José Milhazes
tanques, o sinaleiro a carimbar bibliotecas, fragmentos soltos da Ponha o Seu Dinheiro a Trabalhar...
as nádegas da telegrafista, os Pedro Mexia escreve de acordo literatura universal, onde pontuam 2 2 Bárbara Barroso
linces-da-polónia do chefe da com a antiga ortografia obras de Beckett, de Calvino, de Roth, Torne-se Um Decifrador de...
estação, o mesmo chefe a gritar 3 3
de Lispector, de Pétruchévskaia. Alexandre Monteiro
as suas frustrações para um poço Parece-me adiantar demasiado, no Sontag Vida e Obra
de ventilação, uma incongruente QQQQ sentido do efeito pretendido, aludir
4 - Benjamin Moser
aristocrata a cavalo, corvos ao prévio “Prefácio Sem Número” e A Chanceler
COMBOIOS 5 4 Kati Marton
enregelados caídos das árvores, RIGOROSAMENTE ao derradeiro capítulo, curto como
o gado metido em vagões para a palavra que lhe dá nome: “Fim”, As categorias consideradas para a elaboração deste top
VIGIADOS foram: Ciências; História e Política; Arte; Direito,
os matadouros. E os sucessivos Bohumil Hrabal até porque toda a graça reside em Economia e Informática; Turismo, Lazer e Autoajuda

comboios de passageiros ou Antígona, 2022, entrar no jogo, lê-lo, surpreender-se Estes tops foram elaborados pela GfK Portugal, através
do estudo de um grupo estável de pontos de venda
mercadorias, os comboios- trad. de Anna Almeida, e ripostar com a nossa pessoalíssima pertencentes a dois canais de distribuição: hipermercados/
supermercados e livrarias/outros. Esta monitorização
hospital e os “rigorosamente 136 págs., €15 leitura dessas páginas quarenta e três. é feita semanalmente, após a recolha da informação
eletrónica (EPOS) do sell-out dos pontos de venda.
vigiados”. A nenhum desses Novela / LUÍSA MELLID-FRANCO A cobertura estimada do painel GfK de livros é de 85%.

E 58
MUSEU DO ORIENTE
ABRIL
www.foriente.pt

O outro lado ATÉ 17 ABRIL


dos livros JAPÃO, UMA TERRA
POR MANUEL DE POETAS
ALBERTO VALENTE DESENHOS DE CATARINA QUINTAS

EXPOSIÇÕES
VENCEDORA DO CONCURSO DE APOIO À CRIAÇÃO ARTÍSTICA 2021

ATÉ 26 JUNHO
BEBER DA ÁGUA DO LILAU
RETROSPECTIVA DE NUNO BARRETO
Cartografia de emoções ATÉ 2 OUTUBRO

Foi em Luanda que tomei contacto HISTÓRIAS DE UM IMPÉRIO


COLECÇÃO TÁVORA SEQUEIRA PINTO
com as primeiras palavras do jovem poeta
1 ABRIL | AUDITÓRIO

O ENCONTROS IMPROVÁVEIS
meu exemplar da 1ª edição de “A Noção do Poema”, de Nuno
Júdice, tem escrito na página de abertura: “Luanda, Junho de
ESPECTÁCULOS

1972”. Eu tinha chegado há pouco a Angola, como oficial miliciano,


RECITAL DE VIOLINO E PIANO
e fizera-me acompanhar de um contentor cheio de livros, convencido de 9 ABRIL | AUDITÓRIO
que por lá não encontraria com que saciar a minha fome de leitura (havia,
à época, um grande desconhecimento das malhas com que o império se NASCENTE & POENTE
ORQUESTRA DE GUITARRAS E BANDOLINS
tecia). Creio que esse contentor nunca foi aberto, porque na Livraria Lello
(onde pontificava o sr. Felisberto Lemos) a oferta era muito superior à que 29 ABRIL | AUDITÓRIO
existia em Lisboa, dada a rede menos apertada da Censura (por razões que
não é difícil compreender). Foi pois em Luanda, quem sabe se deitado nas
LYVRO DA ILHA DE MACTAN
POR SETE LÁGRIMAS
areias do Mussulo, que tomei contacto com as primeiras palavras do jovem
poeta (23 anos) — maravilhado pelo que lia e de certo modo envergonhado
do que eu próprio, anteriormente, escrevera e publicara. VISITA | 10 ABRIL
Conheci-o em Lisboa nos dias claros de abril e fomo-nos cruzando
nos cafés e pastelarias onde, à época, se discutia política e poesia. Depois,
EM CONVERSA COM… BUDA
SERVIÇO EDUCATIVO

ele passou um largo período na Suíça e mais tarde foi durante sete anos SHAKYAMUNI
conselheiro cultural em Paris, pelo que só após o seu regresso iniciámos PARA CRIANÇAS [M/6 ANOS]
um convívio mais frequente. Entretanto, eu assistira feliz à sua consagração
livro após livro, OFICINAS | 11, 12 E 13 ABRIL
fizera parte do FÉRIAS DA PÁSCOA
júri que, em PARA CRIANÇAS [7-10 ANOS]
1985, atribuiu a
“Lira de Líquen” ATELIER | 30 ABRIL
o Prémio do ANDORINHA MÃE
Pen Clube, PARA BEBÉS [ATÉ 12 MESES]
exultara com
a publicação
da sua obra na CURSO ONLINE | 6 ABRIL A 18 MAIO
mítica coleção
de poesia da
INTRODUÇÃO À MITOLOGIA
CHINESA: DE PANGU A
CURSOS CONFERÊNCIAS WORKSHOPS

Gallimard (onde,
Nuno Júdice com Eduardo Prado Coelho nos finais de 2005 além dele, só HOUYI
figuram os
portugueses Camões, Pessoa, Eugénio, Ramos Rosa e Herberto Helder) e, em 23, 24 E 25 ABRIL
2013, com a atribuição do Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana. RETIRO DE YOGA NO
Nunca fui seu editor. Mas o seu nome vinha-me sempre à cabeça
quando algum jornalista me perguntava quais os autores que lamentava
CONVENTO DA ARRÁBIDA
não ter publicado (uma lista infinita...). Há anos abordei com a WORKSHOPS | 26 ABRIL; 3, 17 E 24 MAIO
Manuela, sua mulher, a hipótese de se organizar uma antologia da
sua poesia que funcionasse como introdução, para o leitor comum, a
KON’NICHIWA NIHON!
uma tão extensa bibliografia. O projeto não foi para a frente e ainda DESCOBRIR O JAPÃO
bem: porque agora, neste ano da graça de 2022, foi o próprio autor
WORKSHOP | 27 ABRIL A 25 MAIO
que resolveu escolher os seus poemas preferidos dos cerca de 40
(!) livros de poesia que publicou. O volume intitula-se “50 Anos de OLHAR O MUSEU ATRAVÉS
Poesia” e permite-nos percorrer o percurso sempre fascinante de DA DANÇA BUTOH
uma das grandes vozes da nossa poesia contemporânea. Fui à estante
buscar o meu velhinho exemplar da 1ª edição de “A Noção de Poema” CICLO DE CONFERÊNCIAS | 30 ABRIL A 4 JUNHO
e constatei que o poeta tinha escolhido alguns dos poemas que eu HISTÓRIAS DE UM IMPÉRIO
próprio assinalara no livro — como aquele que diz, profeticamente:
“Que planície/ dá guarida aos corpos/ dos soldados mortos?/ Quem, na
mecenas principal mecenas espectáculos seguradora oficial bilheteira online
solidão, terá congeminado/ a desgraça para um país [...]?” b

CONTACTOS Av. Brasília Doca de Alcântara (Norte) | Tel. 213 585 200 | info@foriente.pt
BILHETEIRA Tel. 213 585 244 | bilheteira@foriente.pt
Juliette Binoche, ao centro,
é a protagonista do filme

Ci
nascido a partir do polémico
livro de Florence Aubenas

ne
ma
companheiras de Marianne, que
nela acreditam e que a ajudam,
no dia em que a jornalista que
simula uma identidade falsa mostra
finalmente que necessitou da
mentira para atingir a verdade?
Coordenação João Miguel Salvador É um dilema moral que o filme
jmsalvador@expresso.impresa.pt vai gerir com pinças, um vetor de
perturbação essencial na narrativa
e que interpela o espectador. E
significou um trabalho suplementar
para Juliette Binoche, única atriz
profissional a trabalhar desta vez
‘sem rede’, isto é, rodeada por
não-atores. “Foi uma condição que
me impus a mim próprio para fazer
o filme”, acrescentou o cineasta.
“Uma vez escolhido o casting de não

A vida dupla
profissionais, passámos seis meses
em ensaios. Acabámos por formar
uma trupe familiar: não teria sido
possível chegar a este resultado de
outra maneira.”
“Ouistreham” nasceu da vontade
“Ouistreham —
G
rande repórter da imprensa Carrère nos encontros da Unifrance. de Juliette Binoche, que ficou
francesa, correspondente de “Colocarmo-nos na pele de alguém siderada quando leu o livro. Tentou
Entre Dois Mundos” guerra (passou cinco meses muito diferente de nós é uma que Florence Aubenas lhe cedesse
sequestrada no Iraque em 2005) e tentação fascinante para qualquer os direitos, esta resistiu. Mas
é o novo trabalho de igualmente crítica literária, a belga escritor e, neste caso, o assunto vai Binoche insistiu. E insistiu tanto
Florence Aubenas, pluma bem bem longe porque é a verdade da que Florence acabou por dizer-lhe
Emmanuel Carrère, conhecida dos diários “Libération” vida, a nível sociológico e político, que só aceitaria uma adaptação
sobre uma jornalista e “Le Monde”, assim como do “Le aquilo que a personagem central para cinema se esta fosse realizada,
Nouvel Observateur”, publicou procura.” precisamente, por Emmanuel
que se faz passar em 2010 um livro autobiográfico No filme, Aubenas chama-se Carrère. “A aproximação foi muito
em jeito de inquérito ao mundo (nome falso) Marianne, deixa lenta, feita de jantares na minha
por empregada do trabalho precário em França. família, amigos, o conforto da casa entre Florence, Emmanuel e
de limpeza para “Le Quai de Ouistreham”, assim
se chamou, recebeu na época uma
vida intelectual parisiense e, sem
dar cavaco a ninguém, começa
eu, o tempo passava e a resistência
dela tardava em quebrar”, contou-
entender a catadupa de prémios, gerando a acumular trabalhos precários, nos Binoche. “Cruzei-me mais tarde
em simultâneo uma enorme a todos dizendo que acaba de se com ela, por acaso, num elevador de
precariedade controvérsia em torno do modo divorciar, abandonada pelo marido, hotel durante um festival de Cannes.
em França como o livro foi concebido e dos
limites éticos do próprio jornalismo.
e que está disposta a aceitar tudo
que seja trabalho digno. Passa
Sentia-se um bocadinho culpada
que o filme não tivesse ido para a
TEXTO FRANCISCO FERREIRA É que a escritora não se limitou a semanas a fio nisto, a bater à frente. Arrancámos em seguida com
documentar a precariedade laboral porta de pequenas empresas de a rodagem, que beneficiou de todo
no hexágono: quis encarná-la, limpeza em cidades de província. este período de hesitações, de ‘sins’
senti-la na pele, vivê-la, de facto, do De esfregona na mão, desinfeta e de ‘nãos’.”
lado dos aflitos. lavatórios e retretes. À noite, “Ouistreham” é um filme que não
Imaginou então uma mulher no recato do quarto, descreve se deixa iludir, estão lá a violência,
francesa, solitária, perto da casa a sua jornada num caderno de a revolta, a amargura... “E a luta
dos cinquentas. Uma mulher com apontamentos. Acaba então por de classes”, continua Binoche. “A
pouca instrução, desesperada, se instalar na Normandia, junto ao nossa missão foi tornar visíveis os
à procura de um trabalho com porto de Ouistreham, famoso pelos invisíveis da nossa sociedade. É
QQQ rendimento equivalente ou até ferries que cruzam a Mancha e ligam possível fazer isso no cinema. Senti
OUISTREHAM inferior ao ordenado mínimo. Que Caen a Southampton. Mergulha essa missão como uma obrigação.
— ENTRE DOIS MUNDOS vida poderia ela ter? Que contas ali noutro mundo, limpando as Fui atriz neste filme, ocupando-me
De Emmanuel Carrère conseguiria pagar, o que lhe sobraria cabinas dos barcos a contrarrelógio, daqueles que não o são, ajudando-
Com Juliette Binoche, Hélène Lambert, para renda e alimentação? “Toda a madrugada fora. os a interpretar enquanto vivíamos
Louise Pociecka gente se lembra ainda do romance Mas o que fazer das relações juntos até re-humanizarmos aquilo
Drama M/12 em França”, contou-nos Emmanuel humanas, o que dizer às que eles representam.” b

E 60
E ainda...

THE CONTRACTOR —
MERCENÁRIO
ADEUS, IDIOTAS De Tarik Saleh
De Albert Dupontel James Harper (Chris Pine) é um ex-
Premiada comédia dramática francesa -membro das Forças Especiais norte-
— venceu seis Césares — sobre Suze -americanas à procura do seu lugar fora
Trappet, que ao descobrir uma doença do mundo militar. Ao entrar para uma
grave decide retificar erros do passado. empresa privada como operacional
Na adolescência viu-se forçada a aban- de missões clandestinas, reinventa-se
donar um filho e agora tudo o que quer profissionalmente e garante o sustento
é reencontrar a criança. Será possível? para a família — desde que se mantenha
Espera-a um verdadeiro labirinto buro- vivo. Em sala.
crático. Em cartaz.

DEPOIS DO AMOR
De Aleem Khan
COMPETIÇÃO OFICIAL Estreia do britânico nas longas, o filme
De Gastón Duprat, Mariano Cohn conta a história de Mary Hussain (Joan-
Penélope Cruz, no papel de uma co- na Scanlan, vencedora do BAFTA de 27 MArço
nhecida realizadora de cinema chamada Melhor Atriz), que descobre a fotografia
Lola Cuevas, lidera o elenco de uma de outra mulher na carteira do marido
comédia dramática sobre a criação do recentemente falecido. Que segredos Dia Mundial do Teatro
melhor filme de sempre — a pedido de esconderia Ahmed? As respostas estão entrada livre em todos os eventos*
um multimilionário, que quer ser lem- em Calais, a um ferry de distância pelo
brado por tal obra. Em exibição. canal da Mancha. Nos cinemas. 16h – Sala experimental
COMPANHIA DE TEATRO DE ALMADA

ESTRELAS DA SEMANA Além da dor


Francisco
Jorge Vasco Texto de Alexander Zeldin
Leitão Baptista
Ferreira Encenação de Rodrigo Francisco
Ramos Marques

A Audição QQ 16h – Sala Principal


The Batman QQ Q TEATRO MERIDIONAL
Casa Flutuante QQQ
Ilhas
O Crime de Georgetown Q
Encenação de Miguel Seabra
A Cruzada QQ QQQ
Drive My Car QQQ QQQQ 18h – Foyer do Teatro
fotografia © Rui Carlos Mateus

Um Herói QQQ QQQQ QQ LANÇAMENTO DO 8.º VOLUME


A História da Minha Mulher Q QQ DA COLECÇÃO O SENTIDO DOS MESTRES

Noite Incerta QQQ


Josef Nadj
Ouistreham — Entre Dois Mundos QQQ o Teatro e o invisível
Petite Maman — Mamã Pequenina QQQ QQQ QQQ Apresentação de Cláudia Galhós, com a presença do coreógrafo

A Rapariga e a Aranha QQQ QQQ *O levantamento dos bilhetes para os espectáculos (2 por pessoa) efectua-se na véspera

Resistência Q
Uma Réstia de Esperança Q Av. Prof. Egas Moniz, Almada
21 2739360 • www.ctalmada.pt
DE b MÍNIMO A QQQQQ MÁXIMO EXPRESSO
P
arece apropriado revisitar produção executiva de Ryan Murphy assistente e amiga Pat Hackett.
Andy Warhol nesta era de — o mesmo de “Glee”, “História de Era por volta das 9h da manhã que
selfies, de fragmentação da Horror Americana” e “American costumava ligar para lhe relatar o
fama e do “eu” enquanto objeto de Crime Story” —, a partir do livro que acontecera na véspera, num
atenção. “Ele teria adorado o nosso homónimo publicado dois anos após longo monólogo desestruturado que
tempo, o TikTok e os 15 minutos a morte de Andy Warhol, em 1989. Hackett anotava primeiro à mão e
de fama”, diz o ator Rob Lowe em O livro foi um monumental sucesso a que, durante a tarde, tentava dar
“Diários de Andy Warhol”, a série de vendas um pouco por todo o sentido datilografando-o. Disto
documental de seis episódios que mundo. Apesar das mais de 800 resultou um diário em bruto com
procura mostrar um novo olhar páginas que o compõem, é apenas 20 mil páginas e a noção de que o
sobre o lado íntimo do ícone da uma versão condensada e editada termo “ditado”, empregue umas
pop art. das memórias do artista tal como linhas acima, talvez não tenha sido
“A arte já se conhece, o artista não”, foram ditadas por telefone, entre bem escolhido para descrever o
dizia o teaser deste projeto escrito 24 de novembro de 1976 e 17 de processo caótico de recolha das
Coordenação João Miguel Salvador e realizado pelo documentarista fevereiro de 1987 (até cinco dias memórias por parte de Hackett.
jmsalvador@expresso.impresa.pt Andrew Rossi (“Page One: Inside antes de morrer, consequência de Foi ainda em 2011 que Andrew
the New York Times”), com uma operação à vesícula), à sua Rossi mergulhou nas páginas dos
“Diários de Andy Warhol”. Já o
tinha lido durante a adolescência,
mas desta vez releu-o com olhos

O lado íntimo de quem estava à procura do seu


próximo projeto, o sucessor do
documentário “Page One: Inside the
New York Times”. “O meu trabalho
já me tinha levado a investigar

de Andy
ícones — sejam institucionais ou
personalidades —, mas desta vez
quis debruçar-me sobre outra força
seminal da nossa cultura que povoa
o nosso imaginário, mas sobre a qual
não sabemos muito”, disse Rossi em

Warhol
entrevista à “Interview”, a revista
fundada em 1969 por Andy Warhol
e John Wilcock, e que desde então
mudou algumas vezes de mãos.
Rossi contactou Pat Hackett, que,
embora se mostrando recetiva a
falar com ele, o encaminhou para a
Produzida por Ryan Murphy, a série documental “Diários de Andy Warhol Foundaton, a instituição que
controla tudo o que está relacionado
Warhol” reúne imagens inéditas, entrevistas e, com recurso à com o legado de Andy Warhol (a
seu pedido, Gus Van Sant alterou o
inteligência artificial, dá a ouvir memórias do artista na sua própria voz título do musical sobre o artista que
TEXTO MARKUS ALMEIDA estreara em Lisboa em setembro

E 62
Andrew Rossi da personagem que encarava,
construída para consumo externo,
escolheu um ângulo para o público. Mas no seu círculo
novo e único sobre mais próximo, a sexualidade de
Warhol não era sequer tema. Tanto
o artista. A série que a série dedica três episódios aos
homens que mais o terão marcado.
documental foca-se “Escrevi os guiões de cada episódio,
na intimidade de quando terminei de reler os diários,
a partir das entradas do livro
Warhol e na forma que, na minha perspetiva, mais
como este revelavam sobre os seus desejos
e interesses românticos. A seguir,
encarava a sua analisei as obras de arte que ele
produziu nesse período e tentei
homossexualidade estabelecer uma ponte entre o que
se passava na sua vida pessoal e o
trabalho que ele estava a criar.” Com
esta abordagem, Rossi ficou com
uma espécie de diagrama de Venn
de 2021, e que tem circulado pela sobre as pessoas que marcaram
Europa desde então, de “Andy” para presença em determinados períodos.
“Trouble”). “Tentei perceber quem poderia
“Isso despoletou um processo de ajudar a descodificar o significado
aquisição dos direitos do livro que dessas pinturas, em relação ao que
demorou seis anos. O que essa se passava na sua vida.”
demora trouxe de positivo foi que “Diários de Andy Warhol” alterna
me deu a oportunidade de voltar a um número vertiginoso de imagens
ler os diários e de encontrar o que de arquivo com testemunhos
eu acredito que, de facto, seja um atuais — está lá toda a gente, de
ângulo novo e único sobre o Andy John Waters a Basquiat, passando
— um focado na sua vida amorosa e por Bowie e Debbie Harry. Traz um
íntima e na forma como encarava a novo olhar sobre o homem — mais
sua homossexualidade.” do que sobre o artista — a partir
Embora fosse conhecido pela das suas próprias palavras e, graças
extravagância, Warhol era muito a um dispositivo tecnológico de
discreto em relação à vida pessoal. inteligência artificial, na sua
Nunca admitiu publicamente ser gay própria voz.
— aliás, mais depressa responderia Por mais do que uma vez, Andy
que se considerava assexuado ou Wahrol disse que gostava de ser
celibatário, pois “sexo dá demasiado como uma máquina, e isso refletia-
trabalho”, como aparece a dizer na se na sua produção artística, mais
série. Era um aspeto da sua vida, virada para a quantidade, em
como todas as restantes facetas formatos facilmente replicáveis,
como a serigrafia. É por isso
bastante warholiano que Andre
Rossi tenha encomendado à startup
Resemble AI uma voz que emulasse
a do artista. “Eles criaram um
algoritmo que tentou capturar o seu
ANDY WARHOL FOUNDATION/NETFLIX

sotaque de Pittsburg, a cadência da


sua voz. Foi um prazer trabalhar
com eles.”
Rossi montou um retrato subjetivo,
é certo, mas bastante rigoroso
sobre a vida íntima de Warhol e
de como se relacionava com o seu
corpo artístico, das artes plásticas à
música, dos filmes à fotografia, da
ilustração à moda. b

Igreja de São Roque em Lisboa


DIÁRIOS DE ANDY WARHOL 31 março, 1, 2 e 3 abril às 21h30
De Andrew Rossi
Netflix, em streaming
2 e 3 abril também às 19h00 M/6

(Temporada 1)
Coordenação Luís Guerra
lguerra@blitz.impresa.pt

Ilustração da autoria de Amélia Muge,


uma das várias que acompanham
a edição de “Amélias”

Uma voz feita de muitas


A
inda procurávamos espreitar com “Múgica” —, nunca se trataria musical não foi o do que ‘estava a
30 anos depois de por entre as palavras (“A de “explicar os temas mas de falar dar na rádio’ mas o de gente que, em
“Múgicas”, as vozes noite entrelaça seus riscos de acerca das ideias de base sobre as Moçambique, cantava à minha volta.
sombra, e luzes no escuro são quase quais foram construídos”. Largámos, As minhas primeiras memórias do
de Amélia Muge penumbra, são gestos de gestos, então, o Paleolítico Superior, a action canto coletivo são, quando tinha
no afã do afã, parece um Pollock painting e Van Gogh, Miró e Chagall cerca de três ou quatro anos, ter ido
sobrepostas no sonhando a manhã”) quando, como com quem já nos havíamos cruzado para um miradouro de Maputo de
mil-folhas sonoro dos quem pensa alto, Amélia Muge deixa
cair: “Este disco está um bocadinho
antes, e, entrando pelo labirinto
dentro, a propósito de ‘Chove
onde se via um mar fantástico, com
as várias amas negras — umas 20 ou
arranjos e cenografia entre o canto dos Neanderthal e Muito, Chove Tanto’ (com texto da 30 —, dos vários meninos, e onde
o HAL 9000 do ‘2001 Odisseia no irmã, Teresa Muge), os contornos elas cantavam em língua ronga e
eletrónica de Espaço’.” Ela (e o coautor António tornam-se um pouco mais nítidos: dançavam. É evidente que não me
António José Martins José Martins) já tinham esclarecido
que, para um exercício de audição
“Este texto da Teresa remeteu-me
muito para as minhas memórias de
lembro nada do que elas faziam, isto
já é uma invenção, uma pura ficção,
TEXTO JOÃO LISBOA assistida de “Amélias” — 12º volume infância. Eu não comecei como os sobre uma experiência que eu sei
de um percurso iniciado em 1992 outros meninos. O meu universo que vivi. Quis fazer recuando eu,

E 64
pensando um pouco que se trataria
de Vozes Búlgaras numa geografia
“Eu não comecei criei duas caixas de ritmo e um
xilofone. Só no refrão aparece outra
completamente diferente. Foi como os outros voz e o violoncelo da Catarina.”
composta originalmente, há bastante Abandonadas na oficina, à espera de
tempo, para um cantor lírico que a meninos. O meu reparação ou do raio-Frankenstein
cantou no Mosteiro dos Jerónimos.
Agora, foi preciso esquecer
universo musical que lhes insuflasse vida feliz,
estiveram ‘D. Falcão’ (“Este poema
totalmente o arranjo original para não foi o do que da Hélia Correia é um dos temas
orquestra.” E Amélia, recordando,
justamente, a colaboração, durante
‘estava a dar na mais antigos. Esteve quase para
entrar no ‘Taco a Taco’. Deixei-o
a Expo-98, com as búlgaras do rádio’ mas o de em suspenso porque a melodia
Pirin Folk Ensemble (mas também, nunca me agradou muito, o lado
noutras circunstâncias, com Elena gente que, em instrumental também não, nunca
Ledda e Lucilla Galeazzi e os
corais Outra Voz, Cramol, Sopa de
Moçambique, conseguiu descolar. Retrabalhei a
melodia, e introduzi-lhe algumas
Pedra, Segue-me à Capela e Maria cantava à minha variações que faziam falta”), ‘Fica
Monda), completa: “A minha ideia
era ter como referências todas as
volta” Mais Um Bocadinho’ (“Foi composto
pelo Michales Loukovikas para as
experiências que fui vivendo com Maria Monda que não chegaram
AMÉLIA MUGE
vozes e com coros. A relação com a cantá-lo. É dos temas que mais
as Vozes Búlgaras era algo que me vai ser transformado ao vivo. Dá
apetecia perceber como haveria muito mais pano para mangas, é um
de estar presente neste trabalho. com esta ideia da voz não era um tema em trânsito”) e ‘Un Recuerdo’
Recusei por completo a ideia de recurso pequeno, era um recurso (“Há muito tempo que me apetecia
pôr-me a cantar como elas. A enorme. Ligado a toda a experiência fazer alguma coisa com a poesia da
situação é um pouco a mesma do e a todas as memórias. Não numa Alfonsina Storni. Seria possível fazer
‘Chove Muito, Chove Tanto’: tinha atitude de “antes era tão bonito, um tango só com vozes? Foi o tema
uma coisa na memória e procurei eu podia fazer isto, ai agora já mais difícil. Todas estas sílabas são
construir, a partir daí, associando- não posso”, mas como recurso a dificílimas de dizer, quase desisti.
lhe a recordação dos fins de tarde retirar de uma experiência vivida Foi preciso abandoná-lo duas ou
na Póvoa de Varzim a ver o voo das que nos permite ir um bocadinho três vezes...”). E, a deixar portas
gaivotas.” mais além. Isso, articulado com o abertas, há a ‘Versão Condensada do
Mas como surgiu, afinal, a ideia para conhecimento que tenho do trabalho Nascimento dos Desertos’: “Tinha
um álbum no qual, à exceção de José de outros músicos como a Laurie este poema há muito tempo. A
Salgueiro (percussões e fliscorne) Anderson, as Zap Mama ou, mais música foi já feita completamente
e Catarina Anacleto (violoncelo), recentemente, as Cocanha e os San dentro do espírito das vozes. É mais
apenas se escutam a(s) voz(es) Salvador. Houve sempre muita gente outra daquelas sobre as quais, em
de Amélia Muge sobrepostas no com quem trabalhei ou que ouvi e palco, vou variar imenso. Posso
mil-folhas sonoro dos arranjos e que iam tendo um bocadinho a ver fazer o que quiser porque, sobre
cenografia eletrónica de António com a minha própria experiência. esta base, ficará sempre bem.” Ou
José Martins? “Durante a pandemia Cada um ouve como pode e como apenas entreabertas: “Do ‘Múgica’
quando, aparentemente, não era sabe. Sabia que podia diversificar a — que era uma matriz de caminhos

vozes
possível fazer nada e a própria minha voz em matéria de timbres, musicais onde estava já tudo que,
disponibilidade mental nos obrigava de alturas, de ressonâncias. Tinha as depois, fui aprofundando — a
a estar quase todo o dia em frente minhas experiencias com os outros ‘Amélias’, comecei com o nome de
à televisão a tentar perceber o que e o conhecimento daqueles com família, vou acabar com o nome
se passava. Por outro lado, parecia quem nunca trabalhei mas sempre próprio. Não sei se acaba mesmo ou
que a única coisa que tínhamos era a me inspiraram. Uma voz é feita de se fecha apenas um ciclo. Não sei
como personagem, aquele tempo. voz, só contactávamos com as outras muitas vozes.” como vou iniciar outro. Se calhar, já
Até porque, se calhar, as memórias pessoas através do telefone. Perante O método arquitetural-Martins? não o farei.” b
que tenho não correspondem isto, pensei que fazer um novo “Além da melodia, temos as quatro
exatamente ao que elas faziam mas trabalho era quase uma questão vozes de um coro clássico (soprano,
aquilo que eu, com aquela idade e de sobrevivência mental. Por alto, tenor e baixo/barítono).
sendo de outra cultura, consegui outro lado, o que poderia eu fazer Dobradas, são sempre oito vozes que
absorver como experiência sonora que usasse o mínimo de recursos estão ali.” Adaptadas e configuradas
fortíssima.” possível dado que o contacto com à medida de cada canção: “O
Acerca de ‘O Tempo Arrefece’, outros músicos seria complicado? arranque de ‘O Meu Coração
António José Martins acrescenta Claro que ter o António José Martins Emigrou’ é um acorde pedal feito por
mais uma peça: “Dado o é logo possuir os recursos de uma um brinquedo, um pião, que, quando
carácter estranho e vagamente central nuclear. Pensei, pois, no é posto a girar, emite um som, um
fantasmagórico desta canção, Zé mais as vozes de mim. E foi isso pouco como o das taças tibetanas. QQQQQ
pensámos: ‘quais os coros cujos que aconteceu. À medida que se foi ‘A Prenda dos Amantes’ é o único AMÉLIAS
ambientes são mais misteriosos?’ As avançando com o trabalho, mais tema em que a Amélia está sozinha a Amélia Muge
Vozes Búlgaras! Este arranjo foi feito eu percebi que trabalhar apenas cantar (ou quase). Eletronicamente, Edição de autor

E 65
Um por todos
O
eletrizante álbum “Racine
Carrée”, de 2013, cimentou
QQQQ
o nome de Stromae quatro FEEDING THE MACHINE
anos depois de o artista belga ter Binker & Moses
caído no goto de, literalmente, Gearbox
meio mundo com o sucesso
‘Alors on Danse’. O eco criado A anterior edição do duo formado
por canções como ‘Papaoutai’, pelo baterista Moses Boyd e pelo
‘Formidable’ ou ‘Ta Fête’ fez-se saxofonista Binker Golding, “Esca-
sentir um pouco por toda a Europa, pe The Flames”, data de 2020, mas
com o músico a conquistar não contém uma gravação ao vivo de
apenas países francófonos como a 2017, ano em que saiu “Journey To
registar sucesso considerável em The Mountain of Forever” — álbum
territórios como Itália, Áustria ou que é, de facto, o antecessor do no-
Países Baixos. A aposta em canções víssimo “Feeding The Machine”. Pelo
com uma forte carga interventiva, meio, os dois músicos exploraram
agitadas por ritmos africanos e outras dinâmicas: Boyd ofereceu o
caribenhos, transformou-o na seu pulso a uma variedade de artistas,
maior estrela pop belga e, pelo de Jools Holland a Yazmin Lacey ou
caminho, num dos artistas mais Zara McFarlane; Golding puxou pelos
conspícuos a irromper no velho pulmões em discos de gente como
continente, nas últimas décadas. Maisha ou Sarah Tandy. “Tocar em
O silêncio de praticamente uma duo”, sugere o baterista em declara-
década que se seguiu a “Racine ções à revista “Jazzwise” enquanto
Carrée” poderia ter significado enquadra o novo encontro com o seu
um voto de esquecimento, mas companheiro, “mantém-nos alertas”.
Stromae regressa, agora, neste E, de facto, de aguçados sentidos
início de 2022, com o seu álbum parecem estar dotados estes dois
MICHAEL FERIRE

mais ambicioso, no qual se dedica músicos num novo trabalho em que


a aprimorar muitas das pistas que contam com a ‘mediação’ de Max
explorou enquanto percorria o Luthert, um contrabaixista que deixou
caminho que o trouxe até aqui. A o seu instrumento acústico em casa,
abertura ao mundo de “Multitude” “Multitude” é o primeiro álbum de Stromae desde 2013 surgindo nos Real World Studios (de
pode ser assumida, à partida, Peter Gabriel) com um sintetizador
como uma consequência indireta sua admiração por Cesária Évora ainda histórias de infiéis modular. Um instrumento usado para
de todas as viagens de mochila às não é um segredo), mas o músico incorrigíveis (‘Mon Amour’) e criar cenários granulares ou para in-
costas em que o músico embarcou parte aqui para novas paragens, ambições desmedidas (‘Riez’) terferir diretamente no som dos dois
com a mãe, quando era mais novo, piscando o olho ora à cumbia ou desconstruções de discursos solistas, estratégia criativa que ofe-
mas o disco agiganta-se como colombiana no lume brando de misóginos (‘Déclaration’). rece outro ângulo para o cruzamento
um testemunho tremendamente ‘C’est Que Du Bonheur’, ora ao O encerramento deste terceiro de jazz com eletrónica ao apontar
pessoal de todas as “personagens” instrumento de cordas chinês álbum de Stromae fica entregue a numa direção distinta daquela que,
que, segundo ele, cada um de nós erhu numa ‘La Solassitude’ que se duas canções que soam a metades por exemplo, valeu consenso crítico
encerra em si. debruça sobre os perigos da rotina da mesma moeda: ‘Mauvaise a Floating Points e Pharoah Sanders
Uma palavra num verso de numa relação amorosa. ‘Santé’, Journée’ e ‘Bonne Journée’ em “Promises”. Explorando todas
Stromae pode não ser apenas mais a canção que abriu as portas de afirmam-se como uma espécie de as possibilidades que se estendem
uma palavra escolhida ao acaso, “Multitude”, é uma celebração bálsamo para aqueles momentos entre o silêncio e a estridência, o trio
no entanto, o músico consegue e homenagem a todos aqueles em que não sabemos o que fazer viaja entre territórios da mais refinada
a proeza de não se deixar levar profissionais anónimos que “não connosco próprios e flutuamos quadratura rítmica, com Boyd a expor
demasiado pelo lado mais cerebral, têm coração para celebrações”, entre maus e bons pensamentos. toda a sua brilhante técnica, e outros
apostando em interpretações mas em “Multitude” encontramos A aceitação de que “o humor é de maior liberdade formal, com Binker
emotivas embrulhadas em ritmos uma questão de ponto de vista” — a sublinhar com intenso fôlego o
efervescentes. Se no rasgo de génio e que o pessimismo e o otimismo seu lugar no mapa do mais moderno
de ‘Fils de Joie’ canta, de forma são naturais e potenciam-se um ‘saxofonismo’ pós-Coltrane. “Feeding
dilacerante mas dignificante, sobre ao outro — é um perfeito reflexo The Machine” é uma obscura suíte em
a desumanização da mulher que do homem que reencontramos seis andamentos que ultrapassam os
se dedica ao sexo como profissão, em “Multitude”, um homem 50 minutos e nos cortam a respiração
numa sombria ‘L’Enfer’ mergulha mais consciente e com mais com uma feérica intensidade que no
num pesadelo muito pessoal, vida, mas também de um músico lado mais moderno do jazz britâni-
alimentado a sentimentos de QQQQ sem receio de abordar assuntos co só se tem manifestado quando
solidão e autodestruição. O amor MULTITUDE complexos nas letras que escreve, Shabaka Hutchings conduz xamâni-
pelas paisagens sonoras cabo- Stromae despretensiosamente, para as cas expedições ao centro da Terra.
verdianas já lhe vem do passado (a Mosaert/Universal suas canções. / MÁRIO RUI VIEIRA / RUI MIGUEL ABREU

E 66
E ainda...

RITA CARMO
FCG

QQQQ
MOZART: COSÌ FAN TUTTE SIMONE DE OLIVEIRA
Fink (bx), Nafornita (s), Pérez (ms), Coliseu de Lisboa, Lisboa, terça, 21h30
Arcayürk (t), Asselhorn (br), Fink (e), É o concerto de despedida de
Coelho (d), Orquestra e Coro Gulbenkian Simone de Oliveira, após 65 anos
Gulbenkian, Lisboa, dia 18 de carreira. Intitulado “Sim, Sou Eu...
Simone”, será uma celebração de
Depois da desastrosa “Bohème” no São décadas de canções marcantes.
Carlos, reconciliei-me com a ópera ao
vivo graças a esta brilhante produção
da “Così fan tutte” (1790), de Mozart —
uma noite de grande teatro e de música
sublime a cargo de elenco excecional.
Confesso que a abertura, apressada e
passando pelas geniais inflexões mozar-
tianas como gato por brasas, me deixou
preocupado. Mas assim que começou
o canto com o argentino Marcos Fink —
encenador e Don Alfonso consumado PEDRO ABRUNHOSA
— como mestre de cerimónias, “ficaram Campo Pequeno, Lisboa, hoje, 21h30
reparadas penas e penar” (como diria Depois de duas noites esgotadas
Shakespeare). Quaisquer cinco minutos no Porto, Pedro Abrunhosa atua em
desta representação trouxeram mais e Lisboa com a sua banda, os Comité
melhor teatro ao palco da Gulbenkian Caviar, e a Orquestra Clássica do
do que as duas horas e meia chatas da Sul. O músico deverá cantar a nova
“Bohème” algures. Quanto ao canto, as canção, ‘Que o Amor te Salve Nesta
diferenças eram as do dia para a noite. Noite Escura’, escrita em homena-
Os meios? Meia dúzia de cadeiras e gem ao povo ucraniano.
muita inteligência (de Fink, na ação
cénica, e de todos os intérpretes). Até
os figurinos saíram certos! É verdade que +380 LIGAR À UCRÂNIA
o ponto fraco residiu em Nuno Coe- CCB, Lisboa, terça, 19h
lho, um batedor de tempos (errados), Vários músicos atuam, a solo ou em
responsável por ocasionais desacer- dueto, num concerto transmitido
tos com a Orquestra e Coro. Mas não em direto para a cidade ucrania-
estragou o conjunto, e deu-se o milagre na de Lviv. O cartaz inclui Mário
com a sabedoria mozartiana de todos os Laginha com Cristina Branco e
cantores e o traquejo de Fink. Começo Salvador Sobral com André Santos,
pela extraordinária moldava Valentina entre outros. A partir de amanhã e
Nafornita (n. 1987), vencedora do famo- até quarta, o CCB recolhe também
so concurso da BBC Singer of the World bens a enviar para Lviv.
em 2011, que compôs uma Fiordiligi
sólida como uma rocha da cabeça aos
pés (agudos e graves magníficos). Um
dos mais exaltantes triunfos dos últimos
tempos. Na irmã Dorabella, a francesa
Natalie Pérez acertou do princípio ao
fim, enquanto a nossa conhecida (da
série Mozart com René Jacobs) Sunhae
Im nos brindou com uma Despina per-
feita. E se o tenor austríaco (de origem KYLE EASTWOOD
turca) Ilker Arcayürek (Ferrando) perdia Museu do Oriente, Lisboa, amanhã, 21h;
Casa da Música, Porto, domingo, 21h
qualidade quando forçava a voz, cantou
a dificílima ‘Un aura amorosa’ com uma Filho de Clint Eastwood, Kyle
liquidez, legato e controlo etéreo da é também músico de jazz. Vem
mezza voce. O jovem barítono alemão apresentar “Cinematic”, álbum em
Samuel Hasselhorn chegou, cantou e que reúne música de compositores
venceu. No final vibrei com a merecida com obras marcantes no cinema,
apoteose. / JORGE CALADO de Mancini a Morricone.
História de amor
“Vida de Artistas” foi a última encenação de Jorge Silva Melo
e uma prova admirável do seu papel, do seu legado e do mundo
de afetos que perdura para lá do seu desaparecimento
TEXTO JOÃO CARNEIRO

Coordenação Cristina Margato

F
cmargato@expresso.impresa.pt oi tudo muito rápido. O Jorge um choque. A morte é a tragédia. E aproximava a hora de ir para o teatro.
Silva Melo estava mal de saúde, com ela vem tudo aquilo que cada Mas que direito tinha eu de estar
tinha dado uma queda, feito um sente que perdeu com a morte constrangido quando aquelas pessoas
uma fratura complicada, a presença daquela pessoa; no caso do Jorge Silva estavam ali, na sala do São Luiz, a
nos ensaios começou a ser mais Melo, uma perda imensa. trabalhar, a preparar o espetáculo?
difícil, enfim; nada de agradável, com Havia depois a questão de saber se o Toda a gente foi particularmente afável,
a idade tudo se atrapalha, mas nos espetáculo anunciado para estrear o ensaio chegou ao fim.
Artistas Unidos as pessoas sabiam no dia 23 de março ia, de facto, Habitualmente, haveria uma conversa
como trabalhar com o Jorge, que acontecer. Custa perguntar estas com o encenador; o António Simão
continuava a organizar as coisas, a coisas a pessoas que ainda estão, estava ali à nossa frente, tinha acabado
dar indicações, a gerir a atividade. porventura, muito mais chocadas de dirigir o ensaio. Seria impertinente
Até que chega o e-mail a dizer que do que nós. A notícia da morte foi na falarmos ainda sobre a peça, seria
o Jorge Silva Melo tinha morrido. noite de segunda para terça, a igreja forçar as coisas? Era preciso perguntar,
Foi um choque, e muito violento. na quinta, o funeral na sexta-feira. sem grandes rodeios. “Para o Jorge não
Não só porque não estava a par E havia um ensaio também na sexta, havia nada mais importante do que
VIDA DE ARTISTAS dos últimos desenvolvimentos da à noite. Devo confessar que estava os ensaios, do que as estreias, do que
De Noël Coward doença nem da maneira como tudo nervoso, estive nervoso todo o dia, os atores, enfim, do que o teatro. Mais
Teatro São Luiz, Lisboa, até 10 de abril se tinha precipitado; mas a morte é e cada vez mais à medida que se importante até do que a própria morte.

JORGE GONÇALVES

Pedro Caeiro, Américo Silva e Rita Brütt


numa peça que Noël Coward estreou em 1933,
em Nova Iorque, e só em 1939 em Londres

E 68
Aliás, ele trabalhou mesmo até não “que faz o que lhe dá na gana, que
conseguir mais.” Posso ter silêncio na corre riscos, que sofre, que ama mais
sala? “Não há desconforto nenhum. do que uma pessoa”. E todos falam
Estamos aqui para falar da peça, de das suas personagens, daquilo que se
teatro, de atores, de Noël Coward, o passa, e a impressão é de que todos
contrário é que seria o desconforto.” têm com as personagens uma relação
Pronto. Podemos continuar. “Estava próxima, orgânica, íntima. Talvez
previsto que o espetáculo estreasse. num eco de qualquer coisa de quase
As coisas não estavam a correr da despudorado que a peça tem.
melhor maneira, já mesmo antes Afinal, trata-se da história de uma
desta peça. Mas estávamos prontos mulher, Gilda, e de dois homens,
e atentos para continuar, dentro Otto e Leo. Ela é decoradora, eles são
da nossa maneira de trabalhar.” O pintor e escritor, respetivamente. Há
Jorge Silva Melo tinha criado uma um outro homem um bocado mais
espécie de maquinaria, que pôs velho, amigo dos três, Ernest. É o
em funcionamento, com várias único com quem ela se casa, para
pessoas, “e ao fim de 20 ou 25 perceber, definitivamente, que aquilo
anos, mal de nós, que cá estamos, que quer é viver com os outros dois.
como o João, como o Pedro, como o E os outros dois querem viver um
Nuno, como eu, mal de nós se não com o outro e com ela. Gilda, Otto e
conseguíssemos executar as coisas. Leo amam-se, adoram-se e passam o
acid alice, ana pacheco, anah, arca,
Era sinal de incapacidade, ou de falta tempo a cair em todos os precipícios aril brikha live, bicep live, the blaze dj,
de atenção, ou de falta de respeito”. que as suas personalidades, as suas
Aquilo a que António Simão se refere, inseguranças, os seus defeitos e as bleid, charlotte de witte, chloé robinson,
julgo eu, é o que mais se aproxima de suas qualidades abrem a cada passo.
uma noção de escola e de uma noção E porque nenhum pode passar sem cruz, dengue dengue dengue live,
de transmissão de conhecimentos. nenhum dos outros. Sofrem imenso
Não se trata de cópia nem de e pagam um preço altíssimo por discos extendes crew, dixon, dj lycox,
automatismos, mas da transmissão fazerem aquilo que querem e, ao
de ideias, de processos, de modos de mesmo tempo, por não mentirem,
dj lynce, dj marfox, dj nigga fox live,
trabalhar, de que cada um se apropria
de acordo com as suas características
principalmente uns aos outros.
“Vida de Artistas”, que estreou em
dj shadow, dj stingray 313, dust devices live,
pessoais, individuais. Sobre esta 1933, em Nova Iorque, e só em 1939 elkka dj, ellen allien b2b dr. rubinstein,
peça, por exemplo, “não há muitos em Londres, é uma extraordinária
segredos. Simplicidade. Coisas história de amor, mas também é enchufada na zona, eu.clides live,
exatas, claras, leves, subtis”. E é já a uma história de desejo, de ciúme,
peça, “Vida de Artistas”, “Design for de brigas e de discussões. É uma evan baggs, fjaak live, floating points,
Living” no título original. história de um amor transbordante,
Como na anterior peça de Noël que parece ecoar ou irradiar do héctor oaks, helena guedes, honey dijon,
Coward que os Artistas Unidos
fizeram (“Vidas Íntimas”, 2020),
encenador desaparecido e pairar
sobre todas aquelas pessoas, as que
iamddb live, imogen, india jordan, jayda g,
está lá o brilhantismo da escrita, a fazem este espetáculo e as que com ka§par live, kampire, leon vynehall live,
precisão da estrutura dramatúrgica. ele viveram vidas inteiras em torno
Mas nesta peça o papel da mulher dessa coisa difusa e fugidia que se lewis fautzi, marum, moullinex,
é fundamental — Gilda. “É um polo chama teatro. Grandes alegrias,
aglutinador, positivo e negativo” grandes sofrimentos. Qualquer nicola cruz live, nídia, nina kraviz, nkisi,
— e os atores começam a chegar, coisa que, estranhamente, parece
já sem as roupas de cena, como que não acaba; como o fim da noia, otsoa, overmono dj, partiboi69,
se o espetáculo transbordasse do peça, que é só um momento antes
palco para a plateia, onde estamos de outro que já não vemos; o riso
pedro da linha b2b riot, percebes cru djs,
a conversar, e aquelas pessoas,
aproximando-se lentamente,
final serve para aliviar as tensões
e espantar as tristezas. Como dizia
phoebe, photonz, polo & pan live, pongo,
transportassem dois mundos e dois um dos atores, sobre os rapazes da poté dj, richie hawtin, rroxymore live,
tempos, o mundo e o tempo do história, “se nós não tivéssemos
palco, da peça, das personagens e aparecido, ela se calhar continuava a rui vargas, shaka lion, stingray 313 live,
dos atores, e o mundo e o tempo da viver com o Ernest”. “Nós” é aqui a
conversa, das outras pessoas e de palavra-chave. switchdance, thundercat live,
algumas pessoas que são as mesmas Encenação de Jorge Silva Melo.
do palco, numa espécie de outro Interpretação de Rita Brütt,
tiago marques, torres, total freedom,
papel, numa mudança de roupa, de
entoação, de registo.
Américo Silva, Ana Amaral, Antónia
Terrinha, Jefferson Oliveira,
trikk, valody, vil b2b cravo, violet live,
Muito teatral e muito real. Os atores Nuno Pardal, Pedro Caeiro, Pedro xinobi, yen sung, zé salvador.
falam da peça e das personagens. Cruzeiro, Raquel Montenegro e
De quando Jorge perguntou à Rita Tiago Matias. Cenografia e figurinos
Brütt se ela queria uma femme fatale. de Rita Lopes Alves. Som de Pedro
“Quero”, disse a atriz, que depois Chicó. Luz de Pedro Domingos. Um www.sonarlisboa.pt #sonarlisboa #sonar2022
veio a descobrir que Gilda era muito espetáculo dos Artistas Unidos e São
mais do que isso, era uma mulher Luiz Teatro Municipal. b
e@expresso.impresa.pt
MUSEUM OF THE CITY OF NEW YORK

“Prizefighter Walter Cartier”,

Retratos do artista Stanley Kubrick para a revista


“Look”, em 1949

enquanto jovem
M
uito antes de ser cineasta internacional que já a levou a Achou a imagem interessante
Antes de se afirmar — muito antes de saber Los Angeles, Le Locle (na Suíça), e captou-a no que parecia um
como realizador, que queria ser cineasta — Helsínquia, Trieste e, desde 26 de instantâneo mágico. Na realidade,
Stanley Kubrick tinha duas paixões fevereiro, Portugal. Kubrick já tinha a ideia de que a
Stanley Kubrick que acarinhava nos intervalos de Tudo começara com uma máquina realidade é sempre melhor quando
um percurso escolar medíocre e que fotográfica Graflex que o pai lhe encenada e esteve por ali longo
trabalhou como nunca chegou a uma universidade oferecera pelo seu 13º aniversário tempo a convencer o velho ardina
fotojornalista. Uma decente: a fotografia e o xadrez. Das
duas ele tiraria prazer e rendimento
e que o jovem Kubrick aprendeu
sozinho a usar, numa prática de
a ter uma expressão de profunda
tristeza. Foi com essa fotografia na
seleção das imagens (sim, há quem jogue xadrez a tentativa e erro que se tornaria mão que se dirigiu à revista “Look”,
dinheiro…), mas foi a fotografia que quase um método pessoal de ao tempo (com a “Life”) o lugar
que então fez está lhe deu uma primeira notoriedade, trabalho. Enquanto realizador de onde o fotojornalismo explodia,
em exposição em através dos trabalhos que publicou
na revista nova-iorquina “Look”,
filmes, habituar-se-ia a filmar cada
cena de vários pontos de vista e
e tentou vendê-la. A editora que
o atendeu achou graça ao rapaz
Cascais. Um cineasta entre 1945 e 1950. São mais de só tomar decisões definitivas na (que ainda nem 17 anos tinha) e
uma centena dessas fotografias montagem, contrariando a ideia ofereceu 25 dólares. Kubrick não
em construção que agora estão visíveis no Centro feita de muito cinéfilo de que o se deslumbrou e disse que ia ali
Cultural de Cascais (até 22 de maio), ponto de vista ‘justo’ (como diria ao “New York Post” ver se lhe
TEXTO JORGE LEITÃO RAMOS
em “Stanley Kubrick — Through Godard...) é um e um só. E, num pagavam mais. Não pagaram e o
a Different Lens”, uma exposição dia de abril de 1945, vinha da escola futuro realizador de “Shining”
com a curadoria de Sean Corcoran quando viu um vendedor de jornais voltou à “Look” e aceitou a oferta;
e Donald Albrecht, inaugurada no cujo rosto estava circundado de levou, ainda, a recomendação
Museum of the City of New York, em manchetes anunciando a morte do de que tornasse, quando tivesse
2018, e sequentemente em digressão Presidente Franklin D. Roosevelt. outras fotografias que pudessem

E 70
estar à altura dos pergaminhos da exposição ou a do casal que dança,
revista. A “Look” havia de utilizar a na grande fotografia ampliada para
imagem primeva no seu número de mural que a inicia). Não têm o grau
26 de junho de 1945. Essa fotografia de erotismo larvar da abertura
inicial não está na exposição de de “Lolita”, mas transportam a
Cascais, mas estão muitas das mesma energia de estar a mostrar
outras que Kubrick faria nos anos o que não era suposto vermos com
seguintes, primeiro como fotógrafo tanta intensidade.
‘freelancer’, depois como efetivo Curiosamente, o labor fotográfico
dos quadros da publicação. de Kubrick começa a revelar, a
Como é normal na profissão de partir de certa altura, contornos
fotojornalista, na generalidade de narrativa sequencial. O caso
dos trabalhos Kubrick não mais óbvio é o da série de imagens
fotografa o que quer, ele responde colhidas ao longo de uma jornada
a encomendas, as imagens diária do pugilista Walter Cartier
servindo de acompanhamento que culmina com o combate em
de textos escritos pelos redatores. New Jersey, à noite. Essa série
Isso explicará a extrema quase pode ser lida como trabalho
diversidade temática que a de pré-produção para o primeiro
exposição testemunha, onde documentário que ele produz,
encontramos desde o quotidiano fotografa e realiza em 1951 (“Day
do Metropolitano de Nova Iorque of the Fight”) e que repete a ideia
até sessões com personalidades da reportagem da “Look” num
como Montgomery Clift ou Leonard outro dia de combate de boxe de
Bernstein, as noites de verão na Cartier. A vontade de fazer cinema
cidade, um parque de diversões, a tinha começado a germinar e
sala de espera de um dentista ou a o documentário era uma prova
rodagem de um filme em exteriores. de iniciação a que outros se
Em todas está presente a afinação de seguiriam. E, em 1953, aconteceria
um olhar (o gosto pela composição, a primeira longa-metragem de
sempre a sobrelevar o milagre do ficção. Foi “Fear and Desire”, uma
instante perfeito, o trabalho sobre trapalhada, a demonstrar que a
luz e sombra), curiosamente pouco prosa fílmica é algo que não é fácil
contemplativo, muito acerado, frio, de dominar. O filme é tão débil
a mostrar, desde cedo, que Kubrick (embora visualmente interessante,
era um observador que não gostava capitalizando a experiência do
de pessoas, tal como o seu cinema, fotojornalista) que o realizador
genialmente cruel, tornará claro. o sequestrou, após a divulgação
Um olhar por vezes na fronteira limitada que teve na época, e,
do abusivo, deixando inferir uma mais tarde, quis bani-lo em
pulsão de voyeur, presente em muito definitivo, destruindo o negativo
do melhor cinema que fará. Estou original. Felizmente houve cópias
a lembrar-me daquela sequência sobreviventes e, anos após a morte
que, cem anos que viva, só o de Kubrick, um restauro permitiu
demónio da demência senil poderá uma redistribuição internacional
varrer do meu entendimento. É o (há mesmo várias edições em blu-
genérico de abertura de “Lolita”. ray). O realizador iria sair dessa
Tudo começa num espaço vazio, experiência com uma vontade
uma indiferente cortina ao fundo, o fremente de perfeição, que
chão fora de foco, a preto e branco. amadureceria ao longo dos filmes
E, de súbito, um pé feminino jovem seguintes (“Killer’s Kiss”, em 1955,
entra em grande plano pela direita e “Um Roubo no Hipódromo”,
e uma mão masculina acolhe-o, em 1956), antes da sua primeira
à esquerda. Para o acariciar? Não. obra maior, “Horizontes de Glória”
A mão pega-lhe na palma e uma (1957), cujo perfil pacifista e
outra mão começa a pintar as unhas anticastrense ditariam a proibição
do pé, sem esquecer o precioso pela censura, em Portugal. Mas
detalhe da introdução de algodões isso já são histórias de outros
interdigitais. O pé feminino expõe- contos. b
se, a mão masculina serve-o. É a
súmula perfeita de um filme genial
que, com toda a probabilidade, o
clima politicamente correto tornaria
impossível nestes dias de agora. É THROUGH A DIFFERENT LENS
uma atitude visual que já é nítida — STANLEY KUBRICK
em várias das imagens da “Look” PHOTOGRAPHS
(vejam-se as diversas fotos de pares De Stanley Kubrick
enamorados disseminadas pela Centro Cultural de Cascais, até 22 de maio
FRACO CONSOLO

Napoleão Bonaparte,
retratado por Jacques-Lou-
is David no óleo sobre tela
“Napoleon Crossing the
Saint-Bernard Pass” (1801),
no Museu de História de
França, em Versalhes

VCG WILSON/CORBIS VIA GETTY IMAGES


A INVENÇÃO
DA PAZ

E
HÁ MUITO QUE AS OPINIÕES PÚBLICAS SE MOSTRAM AVESSAS AOS CUSTOS MATERIAIS
E HUMANOS DA GUERRA. QUASE NINGUÉM SE IMAGINA A “MORRER PELA PÁTRIA”

spanta-nos a guerra, como se fosse intelectuais iluministas. Howard diz muito acertadamente que a Segunda
espantosa, quer dizer, “extraordinária” Guerra Mundial, talvez o único paradigma moderno de uma guerra
ou “inaudita”, segundo o dicionário, que justa, deixou claro que “o poder militar era necessário não apenas para
também sugere “enorme” e “medonha”, estabelecer a paz, mas também para a preservar”.
o que é mais adequado ao caso. Espanta Desde 1945, o debate sobre a guerra tem sido disputado entre os neo-
em especial os europeus, porque a única oitocentistas ditos “realistas” (frios, prudentes, cínicos), os liberais
guerra no continente desde 45 foi a da ex- “humanitários” (a causa é boa, as consequências nem sempre) e os neo-
Jugoslávia. Mas outros povos vivem em conservadores “nation-building” (opção desacreditada em catástrofes
guerra perpétua, e nunca tiveram sequer como a iraquiana). As opiniões públicas, por seu lado, há muito que se
a possibilidade de inventar a paz. mostram avessas aos custos materiais e humanos da guerra, ou mesmo
“The Invention of Peace” (2000), do da defesa. E quase ninguém se imagina a “morrer pela pátria”. Se
falecido historiador militar inglês nos surpreendeu a guerra iníqua movida pela Rússia, ainda mais nos
Michael Howard, parte da ideia de que a guerra é um facto antigo admirámos com a brava resistência da Ucrânia. Mas Howard notou o
e a paz uma invenção moderna, “artificial, intrincada e altamente seguinte, sobre outro invasor célebre: “Napoleão mobilizou contra si não
volátil”. Howard lembra que as descobertas arqueológicas e as apenas os governos do ancien régime mas os povos que eles governavam,
investigações antropológicas demonstram que “o conflito armado e desse modo fez com que percebessem que eram povos. Nada contribui
entre grupos políticos organizados” existiu em todas as épocas e tanto para um sentimento de unidade nacional quanto ter soldados
civilizações, pelos mais variados motivos: tribalismo, supremacia, estrangeiros aquartelados nas nossas aldeias.” b
irredentismo, independentismo, fronteiras, religiões, recursos. A paz, pedromexia@gmail.com
em contrapartida, não tem cartas de nobreza antes do Iluminismo, e Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia
de Immanuel Kant, que acreditava que repúblicas com entendimentos
semelhantes do que seja a “ordem justa” poderiam alcançar uma “paz
perpétua”. Escreve Howard: “A guerra continuaria a existir, avisou Kant.
Mas os seus horrores e despesas incontroláveis iriam gradualmente
indispor os povos, e acabariam por levá-los a abandonar a condição
anárquica que prevalecia entre Estados, em favor de uma ‘liga das
nações’ que garantisse colectivamente a segurança que agora cada uma
procura por si mesma.”
Claro que nada se passou bem assim, e que na I Guerra Mundial “os
franceses lutaram para repelir o invasor alemão; os russos, para salvar
os seus aliados sérvios e franceses; os austríacos, para preservar a
monarquia multi-étnica; os ingleses, para cumprir a sua obrigação
moral, para manter o equilíbrio de poderes e para conservar o statu
/ PEDRO
quo (...)”. E se o kantiano Woodrow Wilson julgou que a existência da MEXIA
Sociedade das Nações faria com que a Primeira Guerra tivesse sido a
última, sabemos o que depois aconteceu. Percebemos então que a guerra
não se previne apenas com tratados, organizações internacionais e

E 72
vícios
“PESSOAS SEM VÍCIOS TÊM POUCAS VIRTUDES”

A paz faz-se
à volta da mesa
Na hora de nos sentarmos à mesa não há guerras nem inimigos.
Ucranianos, russos, bielorrussos e moldavos a viverem no nosso país
são como irmãos que recordam os respetivos países através das
conversas, da música e dos sabores. Muito diferente da portuguesa,
a gastronomia tradicional eslava é motivo de união entre povos
TEXTO VERA LÚCIA MARQUES BOA CAMA BOA MESA

E 73
O
único restaurante russo de ou marinados como o chucrute ou
Lisboa, A Tapadinha cujo bife os pepinos “que muito agradam aos
tártaro tem fama antiga, dei- portugueses”.
xou de o ser. Pelo menos no nome, “até Para dar a conhecer o essencial dos
as coisas serenarem”, explica a geren- sabores e da cozinha do país natal, o
te, Isabel Nolasco. A palavra “russa” menu de degustação ucraniano é ser-
que se seguia a “cozinha”, foi recor- vido todas as sextas-feiras ao jantar e
tada do vinil da fachada principal do inclui uma dúzia de pratos que nunca
edifício situado na Calçada da Tapada, são fixos, entre entradas, principais e
mesmo por baixo da Ponte 25 de Abril. sobremesas. “Ȼɨɪɳ ɑɟɪɜɨɧɢɣ” (“Sopa
A mesma palavra, que dá nacionalida- de beterraba”), “ȼeɧiɝɪɟɬ” (“Salada
de à famosa salada (russa), foi apaga- de beterraba, feijão e fermentados”),
da, por alguém, da ardósia que, à porta “Ƚɨɥɭɛɰɿ” (“Couve recheada com
do restaurante, anuncia os pratos do carne e arroz”) e “ɉɟɪɟɰɶ y ɋɦɟɬɚɧɿ”
dia. E assim permanece. Para não fe- (“Pimentos assados com molho bran-
rir suscetibilidades e em consideração co com trigo sarraceno”) foram algu-
aos dois chefes que estão na cozinha, mas das receitas já servidas. Antes,
Viktor Kuzmak e a mulher, Valentina durante e depois repetem-se os sho-
Pryadka — ambos ucranianos. ts de vodka — oferta da casa — com
Na verdade, de russo A Tapadinha o tradicional um brinde pela nação
só tem mesmo a gastronomia. Foi cria- ucraniana: “Slava Ukraini”, ou seja,
do por uma portuguesa e os funcio- “Glória à Ucrânia”!
nários são portugueses e ucranianos. O “Bolo preto”, com fama de ser
À volta dos tachos e do fogão todos se mágico, é uma sobremesa também
entendem. Até porque, tal como na disputada por vários povos. “É como
ementa, é difícil traçar fronteiras ri- um milagre, que todos dizem que é
gorosas entre nacionalidades. “Rus- seu, dos ucranianos aos moldavos e
sa, ucraniana, moldava, bielorrussa. A aos romenos”, conta, a sorrir, Lídia
nossa ementa tem um pouco de cada Tsvek, natural de Chernivtsi, no su-
país”, explica Isabel Nolasco. O “Fran- doeste da Ucrânia, junto da fronteira
go à Kiev” (“Kotleta Kurinaia” n’A Ta- com a Roménia. “O que faz deste um
padinha), um dos mais pedidos, é um bolo tão especial, é o facto de todos os
excelente exemplo da fusão gastronó- ingredientes terem cor branca — ovos,
mica: “É um prato ucraniano que está leite, bicarbonato de sódio, óleo, vo-
na ementa de todos os restaurantes dka, açúcar e farinha —, mas, quando
russos”, assegura a responsável. O sai do forno, sai preto, como se fosse
mesmo acontece com os pratos de pei- um bolo de chocolate.” Mas a “magia”
xes fumados e marinados, que vários não se fica por aqui.
países eslavos reclamam como seus. “Oito horas é o tempo que demora
Ou os vegetais em conserva e os fer- a cozinhar no forno, sem se queimar!”
mentados, tão apreciados nesta parte Depois é preciso esperar mais três ho-
da Europa. ras, antes de o tirar do recipiente e po-
der servir. Uma das características da
MELANCIA FERMENTADA cozinha ucraniana é, precisamente, a
E BOLO PRETO confeção em fogo lento. A técnica que
Praticamente única e garantidamen- os chefes atualmente tanto aclamam
te ucraniana, como reclama Lídia Ts- e que dá pelo nome de slow cooking é
vek, é a “melancia fermentada, uma uma tradição muito antiga nos paí-
verdadeira bomba, receita da minha ses eslavos. “Como temos muito frio
avó”. Esta é uma das especialidades no inverno, as casas têm fogões a le-
que brilha no menu de degustação nha que estão acesos o dia todo, a co-
do restaurante de que é proprietá- zinhar e a aquecer as casas”, explica
ria, o SalVagem, em Queijas (Oeiras), Lídia Tsvek.
cuja cozinha é comandada pelo filho,
Bogdan. Visualmente muito atrativa, DE RESTAURANTE
esta melancia demora meses até estar A ARMAZÉM SOLIDÁRIO
pronta para levar à mesa. “O processo Svitlana Melnychenko ri quando per-
de fermentação é totalmente natural, guntamos se a famosa sopa “Bors-
sem quaisquer aditivos. A melancia é cht” é ucraniana ou russa. “Qual rus-
fechada dentro de um barril de madei- sa, qual quê! É ucraniana, é nossa! Os
ra e verificada com regularidade, para russos não têm receitas deles, o que
se perceber quando está no ponto”, poderá existir são receitas soviéti-
explica esta ucraniana a viver em Por- cas, mas essas pertencem-nos a todos.
tugal há duas décadas. De sabor mui- Ainda assim, garanto que a ‘Borscht’
to particular, “ou se ama ou se odeia”, é ucraniana”, reivindica. Preparada
acompanha carnes e peixes, ao lado com beterraba, batatas, carne, fei-
de outros legumes também “fermen- jão e couves, é muito mais que uma
tados ao natural e de forma artesanal” sopa. “Para muitos, especialmente

E 74
para quem trabalha no campo, é a A Tapadinha na nossa cozinha são portugueses, a
refeição do dia inteiro”, explica, re- Calçada da Tapada, 41, Lisboa forma como se cozinha é que dita a
velando que os dois filhos homens, Tel. 911 814 369 diferença”.
camionistas de longo curso, nunca
dispensam a companhia desta refei- SalVagem UM MUNDO DESCONHECIDO
ção nas viagens pela Europa: “Levam Rua António Lopes Ribeiro, 2, Queijas NAS PRATELEIRAS
sempre quatro ou cinco doses, porque Tel. 211 347 459 Os produtos de origem ucraniana e
alimenta bastante e é prática de se co- russa encontram-se com alguma faci-
mer em qualquer lado.” ɍɤɪɚʀɧɫɶɤɚɏɚɬ lidade em locais como a multinacional
Quando abriu as portas da Casa /Casa Ucraniana alemã Aldi, uma das maiores cadeias
Ucraniana (ɍɤɪɚʀɧɫɶɤɚɏɚɬɚ), na Pon- Rua da Fundação, 2, Pontinha de supermercados do mundo, a fran-
tinha, onde faz refeições tradicionais Tel. 968 880 457 cesa Auchan, ou, especialmente, na
do seu país, Svitlana Melnychenko, também alemã cadeia de supermer-
que tirou o curso de cozinha ainda Mini Mix, Porto cados Mix-Markt e Mini-Mix, que tra-
na Ucrânia, há mais de duas décadas, Rua de Grijó, 74, Porto balha especificamente com produtos
estava longe de imaginar que menos Tel. 224 074 811 da Comunidade dos Estados Indepen-
de um ano depois esta serviria de ar- dentes, países bálticos, Polónia, Romé-
mazém para bens doados aos refugia- Mix Mark, Lisboa nia e Balcãs. Portugal conta com mais
dos da guerra. “Nunca na vida pensei Avenida do Brasil, 90C, Lisboa de 20 lojas desta cadeia, onde é pos-
em tal coisa.” A sua casa serve tam- Tel. 217 951 184 sível encontrar peixes não enlatados,
bém de albergue a familiares que fu- como o tão apreciado arenque, a cava-
giram da cidade natal da família, Iva- Mini Mix, Albufeira la e a corvina fumados, ou os carapaus
no-Frankivsk, que já foi alvo de vá- Rua do Mediterrâneo, Lote 8, Loja A, secos “que se comem como petisco, a
rios bombardeamentos russos. “Os Cerro a Lagoa, Albufeira acompanhar a cerveja”, como parti-
homens foram lutar e as mulheres re- Tel. 289 100 075 lhou a funcionária de uma destas lojas
cusam-se a deixar os maridos e os fi- da grande Lisboa — cuja administração
lhos. Só quem tem crianças pequenas não se mostrou disponível para os es-
está a vir, como a minha irmã com a clarecimentos pedidos pelo Expresso.
filha e as netas.” Svitlana Melnychenko vai a esta
Em aflição diária vive também loja comprar, sobretudo, conservas de
Viktor Kuzmak, o chefe do restauran- peixes e alguns molhos, base para as
te A Tapadinha. “Os pais já têm mais suas receitas. Já Lídia Tsvek não dis-
de 80 anos e recusam-se a deixar a sua pensa o trigo sarraceno e a vodka pro-
casa. Todos os dias, o filho fala com vivem há muitos anos em Portugal duzida na Ucrânia. Mas muito mais há
eles, dizem que está tudo bem, mas e não nos conheciam, começaram a para escolher, desde simples snacks,
ninguém sabe até quando”, lamenta vir, juntos, ao restaurante. Entre eles a sobremesas, bebidas diversas e io-
Isabel Nolasco. A mesma angústia é não há guerras e não tem de haver, gurtes. As prateleiras das leguminosas
vivida por Lídia Tsvek: “Os meus fa- não é?” Isabel Nolasco diz que depois são extensas e variadas, sobretudo de
miliares não querem vir embora. Os das primeiras reações, as pessoas co- origem ucraniana, ou não fosse o país
homens estão a lutar e as mulheres fi- meçaram também a perceber que “a um dos maiores produtores de cereais
cam com eles. Incluindo a minha avó, maioria dos ingredientes que usamos do mundo. b
que já tem 99 anos. Como é que ela vai
sobreviver a este desgosto”, questio-
na-se a empresária.
Muitos mais leve e feliz é a vida à
volta da mesa, onde não há guerra e
se festeja, em conjunto e sem olhar a
origens, o que a terra dá. “Tenho mui-
tos amigos russos que vêm aqui comer
o que cozinho, tal como tenho ami-
gos portugueses, ucranianos e mol-
davos. Comemos e no fim dançamos
músicas populares ucranianas e por-
tuguesas também, e acabam por ser
momentos muito divertidos”, conta
Svitlana Melnychenko. Não por estes
dias. “Quando estou triste não consigo
cozinhar.” Por isso, por agora, a Casa
Ucraniana (ɍɤɪɚʀɧɫɶɤɚɏɚɬɚ) vai ficar a
funcionar somente como albergue de
bens doados.
O SalVagem, em Queijas Já no restaurante A Tapadinha,
(Oeiras), conta com um menu depois de uma primeira fase de boi-
de degustação onde brilha uma cote, o povo português mostrou a so-
MÁRIO CERDEIRA

especialidade desconhecida: lidariedade que o caracteriza e vol-


uma melancia fermentada, que tou a frequentar o espaço, embora a
demora meses a ficar pronta surpresa maior seja outra: “Ucrani-
anos e russos, casais e amigos, que

E 75
R ECE I TA
POR JOÃO RODRIGUES
(PROJECTO MATÉRIA)

PRODUTOS
& PRODUTORES
UAU Cacau
Se há quem tenha aproveitado a pandemia
para aprender a fazer pão ou tocar um instru-
mento, Tony Fernandes — qual Willy Wonka
— aproveitou para desenhar uma fábrica de
chocolate à sua medida. E não só a desenhou
como a viu nascer em poucos meses: no final de
2020 mudou-se para as novas instalações da
sua empresa, no Parque Empresarial da Ribeira
Brava. Quem o vê hoje, e à sua equipa, a produzir
chocolates e bombons artesanais e a vendê-los
em pontos centrais do Funchal, tanto na loja no
Mercado dos Lavradores como na primeira que
teve e ainda mantém, perto da Sé Catedral, não
adivinhará que tudo começou na cozinha de um
restaurante tradicional chamado A Estrela, já lá
vão 10 anos. “Trabalhava com o mestre choco-
lateiro Carlos Valente há uns quatro anos, mas
estava farto. Agarrei na minha mulher e pensei
que era agora ou nunca, então ficámos com o
restaurante”, conta. Problema: os bombons fa-
ziam sucesso mas o resto da oferta nem por isso.
“Comecei a ficar com dívidas, tive de despachar
o restaurante.” Mas não esmoreceu. Pediu um
ano para pagar as dívidas e transferiu o ateliê dos
chocolates para casa. Procurou parceiros locais
para acrescentar valor aos bombons — vinho
TIAGO MIRANDA

Madeira, rum agrícola, polpa de frutos locais — e


o negócio foi crescendo. Certo dia, um empre-
sário e empreendedor local, Maurício Marques,
ofereceu-se para ajudar Tony a fazer um projeto
para pedir apoios a fundo perdido e assim ex-

Bolo mármore
pandir o negócio. Assim foi. Tony conseguiu esse
apoio e abriu a primeira loja, na Rua da Queima-
da. Desde aí que é, pode dizer-se, o chocolateiro
de referência na Madeira. Sem se deixar, porém,

e creme de lima dormir à sombra desse reconhecimento. “Estou


sempre a fazer formações: já fiz umas 12, entre
Espanha, Bélgica e Itália”, conta. Na nova fábrica,
Tony trabalha com colaboradores que não
Tempo de preparação 1 dia | Tempo de confeção 45 minutos tinham qualquer formação específica. São apos-
tas pessoais suas, alguns com histórias de vida
complicadas, mas que se tornaram, entretanto,
BOLO MÁRMORE fofas e adicionar ao preparado. demolhadas e adicionar ao indispensáveis. “São umas máquinas”, elogia,
3 ovos / 150 g de açúcar / 1115 g de farinha Derreter a manteiga, adicionar o chocolate. enquanto estes vão reproduzindo algumas das
/ 80 g de natas / 25 g de manteiga / 25 g óleo e juntar aos ovos. Envolver e quando estiver um mais de 50 referências de bombons que fazem
de óleo / 2 g de levedura química Dividir o preparado a meio e creme homogéneo adicionar a parte do portefólio da Uau Cacau. Um deles, o
adicionar 35 g de cacau a uma manteiga até derreter. de maracujá, ganhou a medalha de ouro no Con-
curso Nacional de Chocolate em 2014.
CREME DE LIMA metade. Juntar as restantes natas frias e as
500 g de natas / 300 g de chocolate Untar as formas com óleo em raspas de lima.
branco / 2 folhas de gelatina / 4 limas / spray, verter os dois preparados Colocar no frio e deixar descansar PROJECTO MATÉRIA
50 g de manteiga em separado e mexer com um durante 24h. É um projeto sem fins lucrativos, desenvolvido
pelo chefe João Rodrigues, que pretende
Bater os ovos com o açúcar até palito de forma a formar ondas. No dia seguinte, usando a
promover os produtores nacionais com boas
esbranquiçar. Cozer a 170 graus Celsius até picar batedeira e umas varas, bater este práticas agrícolas e produção animal em respeito
Juntar a farinha e a levedura com um palito e sair limpo. creme até à consistência desejada. pela natureza e meio ambiente, enquanto
química. Ferver 250 g de nata, juntar as Servir o bolo com o creme de elementos fundamentais da cultura portuguesa.
Incorporar as natas até ficarem folhas de gelatina previamente lima. b Ler mais em projectomateria.pt

E 76
R ESTAU RAN T ES
POR FORTUNATO DA CÂMARA

Beleza americana perfumar a carne tenra, notas fumadas


e picantes de pimento jalapeño (sem
comparação com fast food de cadeia
ACEPIPE
Um carioca que foi músico e que agora afina a americana). Boa parceria com os “Ba- ‘Construir’
cozinha sulista dos EUA em pleno coração do Porto
ked beans” (€4,50), feijão fumado de
perfil adocicado pela mistura com mo-
infonarrativas
lho barbecue ao estilo americano. Na As fake news estão na
lógica caseira, a “Homemade sausa- ordem do dia, mas na área
ge” (€9/€14) é uma salsicha enrolada da restauração há outra
em cornucópia, feita de carnes frescas categoria que me ocorre:
as ‘flower news’. Um mundo
temperadas que são depois moídas e
‘florido’ onde cada novo
enfiadas na tripa por Leonel, que sur- espaço ou conceito que abre
ge com um suave sabor picante, pouca traz agarrado um texto flo-
gordura e aroma de fumeiro. À parte, reado que só exalta as quali-
o “Creamed Corn” (€5) um creme de dades. Grande parte destas
milho doce, jogou bem no contraste, narrativas coloridas são
mas o excesso de queijo creme tornou- escritas por ex-jornalistas
-o pesado e algo enjoativo. O processo convertidos em assessores
de comunicação. O cúmulo é
de fumagem das carnes, a par da mis- uma designação recente que
tura de especiarias, é um dos segredos vi: “Hospitality Marketing,
da casa. Ponto alto foi as “Beef Ribs”
RUI DUARTE SILVA

Food Journalist”. Como é


(€25/€40), uma vistosa costela de boi que as palavras ‘marketing’
onde o osso sai sem esforço após a cura e ‘jornalista’ encaixam na
de fumo de 8 horas sobre lenha de Jack mesma pessoa é um mistério
Daniel’s que é remédio santo. O aro- insondável..., adiante! O pro-
blema não é haver marketing
ma adocicado à superfície da carne,
e comunicação, é fingir que

S
oa quase a uma charada de crian- american barbecue, e estão na origem absorvida pela fumagem das aparas ele não existe.
ças abarcar várias ideias aparen- das cozinhas creoule e cajun. É um de barris do uísque americano, trouxe Fazer passar por ‘notícias’
temente desconexas. O elo que pouco desse legado que Leonel Ribei- equilíbrio entre o sabor cárneo pro- meras narrativas construídas
as une, dando-lhes sentido, chama-se ro serve no coração do Porto. Receitas nunciado e a delicadeza da gordura. A por agências de comuni-
Leonel Ribeiro. Cresceu no Rio de Ja- clássicas norte-americanas, sem ‘mi- salada fria “Coleslaw” (€5), de couve cação, não. Em França não
neiro, foi músico e tentou ser produ- mimis’ como se diz no Brasil, onde se crua ripada com molho de maionese, há esses falsos pudores.
tor musical, até que a vida desafinou… pode comer com as mãos... embora fez a rutura de sabores necessária. Marine Benady é assessora
de imprensa de gastronomia,
Segundo uma entrevista que deu no haja talheres! Nas bebidas reina a cerveja, com
e o seu site tem miniguias e
verão à revista “Inter Magazine”, as Chegou o “Creole Shrimp” (€10,90), opções de qualidade, num ambien- conselhos para: convidar um
vicissitudes e as desilusões fizeram- longe de ser o camarão estufado num te descontraído e serviço algo tími- crítico a ir ao restaurante,
-no olhar para a cozinha como algo pujante molho de tomate e ervas da do, mas afável, de Carla, a mulher de agradar e elogiar jornalistas,
redentor. No seu percurso autodidata, cozinha crioula, mas antes uma ver- Leonel. Nos doces, a “Peach pie with criar uma rede de jornalistas/
com alguma formação de cozinha em são frita com bom miolo dos crustáce- Jack Daniel gelato” (€5,50), é uma críticos e influenciadores,
França, passou por restaurantes cario- os num polme fofo, e com o contraste tarte morna de pêssego em calda ca- etc. A comunicação está
cas até se estrear como chefe do Em- agridoce do molho Alabama (uma mai- seiro, e o viciante gelado do uísque; cada vez mais eficaz e ter
muitos contactos é uma
pório Quintana, no mercado munici- onese de vinagre de cidra com rábano). depois o delicioso “Banana pudding”
arma para o negócio. Resta
pal do Rio. Aterrou no Porto em 2016, Ótima a “Brazilian Pork Belly” (€6,90), (€5), um creme denso do fruto. Ti- aos alvos dela não cederem,
esteve no brasileiro Capim Dourado pedaços crocantes de barriga de porco rando já ‘o elefante da sala’, os pratos mantendo os seus princípios.
decidindo depois apostar num nicho frita, a denotar confeção a dois tempos são descartáveis, de cartão rijo, mas de Embora haja quem opte pe-
de cozinha que apela às suas raízes com o choque térmico do frio antes da uso funcional. “Os clientes não recla- los fins, que os leva a serem
afro-brasileiras. fritura. Pele estaladiça, carne macia e mam?”, questionei. A explicação da apaparicados e alimentados
Talvez seja no churrasco que os gordura intramuscular nada enjoati- falta de espaço para copa e o lado in- por fabricantes de estórias
americanos exprimem um pouco de va, resultado: uns belíssimos torres- formal do churrasco (cheiro a comida de mesa. O telemóvel de
um jornalista é hoje uma
identidade gastronómica própria. mos! Impecáveis as “Chicken Wings” na roupa incluído), foi rematada com ferramenta de informação,
Os imigrantes africanos que se fixa- (€8,50), a mostrar que as asas de fran- humor: “Quem não gostar pode ir co- mas pode ser a porta para a
ram no Luisiana e noutras regiões do go podem ser um petisco irresistível. mer francesinhas.” Leonel Ribeiro é o submissão.
sul dos EUA são a inspiração para o Húmidas no interior e de fritura enxuta, jovem e corpulento Oldman BBQ, que
vestidas com o molho barbecue feito na trouxe para o Porto o churrasco à ame-
casa que exala suaves notas de uísque. ricana, onde a beleza está no rigor dos
O “Shoutern Fish Fry” (€11/€16,50) detalhes, e o sabor no fogo (fumo!) que
Oldman BBQ Experience eram uns suculentos filetes de pesca- arde sem se ver. Mais uma morada cos-
Rua das Taipas, 10 — Porto da com uma capa firme de farinha de mopolita a reter. b
Telefone: 912 916 361 milho e uns fiozinhos acídulos de mos-
Jantares de quarta-feira a sábado, tarda para contraditar. Muito bom o Desde 1976, a crítica gastronómica
e almoço ao domingo. “Fried Chicken” (€12,50/€19) ao es- do Expresso é feita a partir de visitas
Encerra à segunda e terça-feira. tilo do Alabama, desossado e de fritu- anónimas, sendo pagas pelo jornal
ra imaculada, tempero de especiarias a todas as refeições e deslocações

E 77
VI N H OS
POR JOÃO PAULO MARTINS

GETTY IMAGES
Sozinha ou acompanhada, eis a questão
Inovar ou continuar a tradição?

C
omo se pode ver, os vinhos que sele- e Melgaço, o domínio da Alvarinho é quase produzir demasiado, gerando depois vinhos
ciono hoje são todos feitos com uma absoluto mas a região ganhou fama secular… delgados e sem alma.
única casta. Por isso lhes chamamos com vinhos tintos! É essa tradição que vários Fazer vinhos varietais tornou-se uma prá-
vinhos varietais. Enquanto produtor secu- produtores estão a tentar recuperar, usando tica habitual e os consumidores passaram a
lar de vinho, Portugal nunca teve o hábito, castas como Brancelho, Alvarelhão, Cainho falar de castas e técnicas de produção como
ou tradição, de fazer vinhos de uma só va- tinto e Espadeiro, entre outras. A Alvarinho, nunca antes tinham falado. Nos anos 80 do
riedade. A principal razão, creio, deve-se ainda que referenciada desde o séc. XIX, século passado ninguém sabia dizer que cas-
ao facto de as vinhas antigas terem as cas- só ganhou protagonismo já nos anos 40 do tas estavam dentro da garrafa. Por isso o tinto
tas misturadas e, com frequência, brancas séc. XX. Poucas regiões apostavam em casta Romeira fazia grande figura porque, num mi-
com tintas na mesma vinha. Foi só quando (quase) única; os melhores exemplos pode- nicontrarrótulo, indicava Tinta Meuda, Bom-
se começou a plantar por casta, uma parce- rão ser a Bairrada onde a Baga dominava, e -Vedro e Trincadeira. Hoje fazer varietais é
la uma variedade, que se tornou mais viável Setúbal onde a Castelão ditava regras. Mes- um desafio porque a verdade é que são muito
fazer vinhos monocasta. Mesmo em regiões mo assim havia com frequência “castas de poucas as castas que se bastam a si próprias e
onde uma casta dominava, como é o caso de tempero”, o sal e a pimenta que ajudavam ao que têm tudo — aroma, sabor, acidez, corpo,
Bucelas e da Arinto, não havia tradição de se lote final. No caso do Douro — secularmente taninos, final. Ainda assim os vinhos varie-
usar apenas Arinto; juntava-se Esgana Cão dedicada apenas a produzir vinho do Porto tais têm muito para contar e não raramente
(que é idêntica à Sercial madeirense) e Rabo — a inexistência de varietais era óbvia. A Ro- encontramos enormes surpresas em castas
de Ovelha. Foi só nos anos 90, e na Quinta riz, do varietal que trago hoje, casta-rainha que por tradição eram usadas em lote, como
da Romeira, que surgiram, da responsabili- na Ribeira del Duero mas também em Rio- a Antão Vaz, a Encruzado e, claro, a Touriga
dade do enólogo Nuno Cancela de Abreu, os ja, é uma variedade madrasta e gera ódios de Nacional, só para citar algumas. E o exercício
primeiros vinhos feitos exclusivamente de estimação (nomeadamente no Dão) e alguns de descobrir “que casta é que aqui ficava bem
Arinto. Foi grande a novidade. Este produtor/ aplausos. Não se dá bem em qualquer terreno, para ajudar” é um ótimo pretexto para um
enólogo fez agora uma parceria com a quin- precisa de zonas bem arejadas e terrenos po- convívio de amigos. O vinho, sobretudo em
ta de Celões (20 ha de vinha), a quem adqui- bres para poder dar algo aproveitável. E digo épocas cinzentas, tem a virtude de nos trazer
re a uva para este Morgado. Já em Monção aproveitável porque, em terrenos férteis, pode momentos de prazer e ânimo. b
(OS PREÇOS FORAM INDICADOS PELOS PRODUTORES)

Morgado de Bucelas Churchill’s Estates Espumante João Portugal


Cuvée Arinto branco 2020 Grafite tinto 2019 Ramos Alvarinho
Região: Bucelas Região: Douro Grande Reserva 2014
Produtor: Soc. Agríc. Boas Quintas Produtor: Churchill Graham Região: Vinho Verde Monção e Melgaço
Casta: Arinto Casta: Tinta Roriz Produtor: J. Portugal Ramos
Enologia: Nuno Cancela de Abreu Enologia: John Graham/ Casta: Alvarinho
PVP: €13 Ricardo Nunes Enologia: J. Portugal Ramos
A vinha está implantada em terrenos calcários. PVP: €16,50 PVP: €39,90
O mosto fermentou em barrica nova e depois 7 mil garrafas. A Gricha tem 50 ha Parte do mosto fermenta em madeira oito
teve um estágio de 6 meses na madeira. dos quais 40 de vinha. 30% do vinho meses. O estágio em garrafa estende-se por
Dica: dourado na cor, aromas citrinos estagiam em madeira, nova e usada. 72 meses. Só então é posta a rolha de cortiça.
e de tosta de barrica, completados na boca Dica: o vinho revela-se ainda jovem, Dica: muito fino de perfil, combina um lado
por excelente untuosidade e envolvência. com taninos firmes, a dizer também de fruta citrina fresca com um tom austero,
Para peixes gordos ou com molho que tem longa vida em cave. de pedra raspada, tudo a puxá-lo para a
de manteiga/natas. A provar e a guardar. mesa, sobretudo para marisco.

E 78
as nossas recomendações Saiba mais sobre estas e outras sugestões em
boacamaboamesa.expresso.pt

Cozido à Os Courenses
portuguesa Rua José Duro, 27, Lisboa
Tel. 218 473 619
A Cozinha do Manel
Rua do Heroísmo, 215, Porto.
Tel. 919 787 598
Arroz de pato, à terça, tripas, à
quarta e sábado, e cozido à quin-
ta-feira, justificam visita frequente.
Aposta na cozinha de sempre,
com mão certa e forno a lenha
laborando com mestria o cabrito
e a vitelinha assados. Preço médio Generoso, com enchidos de
€25. qualidade superior, nacos gulosos
de frango, vaca, bem como nabo,
Tasquinha do Matias cenoura, grão e um arroz caldoso.
Rua da Ponte de Ucanha, Ucanha. Serve-se às quintas-feiras e aos
Tel. 254 678 241 sábados ao almoço. Pode sempre
Há milhos no pote, pataniscas optar por meia dose. Preço médio
com arroz de legumes, marrã com €20.
batata e várias carnes e peixes,
todos grelhados. Em dias certos Adega Tia Matilde
aparece o cozido à portuguesa e o Rua da Beneficência, 77, Lisboa
lombo grelhado com arroz e batata Tel. 217 972 172
salteada. Preço médio €20. Apesar do vasto sortido de cozi-
Axis Ofir Beach Resort Hotel nha regional, as terças-feiras ao
Casa D’Irene Avenida António Veiga, Esposende. Tel. 253 989 800 almoço são dedicadas ao cozido
Largo do Olmo, Malpartida. Uma imensa praia, rica em iodo, e o pinhal são elementos marcantes na paisagem de Ofir e envolvem com à portuguesa. Carne de vaca, en-
Tel. 271 574 254 vista ampla cada um dos 191 quartos e suítes, de onde se ouve a sinfonia do oceano. Nas vastas zonas trecosto, chispe, enchidos vários,
comuns, não falta nada para quando a nortada pede uma alternativa ao areal: campo de futebol, dois arroz e os legumes obrigatórios
courts de ténis e piscina, enquanto dentro de portas asseguram entretenimento para toda a família como neste prato, nada é deixado de
o bowling, a sala de jogos e o Spa. Espaço e panorâmica impressionam no restaurante. A partir de €55. fora. Preço médio €20.

David da Buraca
Restaurante Olea O Orelhas O Nobre Estrada da Buraca, 20, Lisboa.
Museu do Azeite, Travessa Rua Cesário Verde, 80, Queijas. Avenida Sacadura Cabral, 53 Tel. 217 606 247
dos Vales, 7, Bobadela. Tel. 214 164 597 Lisboa. Tel. 217 970 760 Começou como tasca onde se
Na carne, não faltam também Tel. 238 603 095 Bacalhau assado no forno, arroz de Aos pratos de conforto do dia, serviam petiscos para se trans-
estrelas, como o cabrito grelhado Ao domingo, há cozido à portu- pato, cabidela e cozido à portu- como as favas guisadas com formar num símbolo da cozinha
com migas de grelos ou o cozido guesa, feito numa panela de barro, guesa são sugestões a ponderar, entrecosto e o buffet de cozido à tradicional. O cozido é servido à
à portuguesa. Irene Frias é uma no forno, fechada com massa de pois a confeção de cada prato é portuguesa domingueiro, juntam- quinta-feira, mas atenção que uma
mulher da terra que recebe cada farinha. É a grande novidade deste feita com esmero. Termine -se clássicos como a sopa de san- travessa dá para duas pessoas. E há
cliente como se de família se espaço que tem o azeite como fio com as generosas farófias. tola e a perninha de cabrito assada sempre disponibilidade para pedir
tratasse. Preço médio €25. condutor. Preço médio €30. Preço médio €20. no forno. Preço médio €40. um reforço. A partir de €20.

MARÇO COM SABORES Pensão Borges


DO MAR EM ESPOSENDE Pensão Borges, Rua de
Camões, 4, Baião.
O final do primeiro trimestre Tel. 255 541 322
é anualmente celebrado com Com mais de 80 anos de
portas abertas, escolha a
novos sabores da confeção de
esplanada para experimentar as
peixes e mariscos do mar e rios
receitas tradicionais, como o Bazu-
de Esposende. 40 restauran- laque, entrada para o anho assado,
tes do concelho apresentam e a vitela, disponíveis ao domingo,
menus desenhados a pensar em dias de feira e feriados. Sábado
neste evento, e 15 participam Agrícola, que potencia o uso é dia de cozido durante todo o ano.
num concurso para a eleição dos produtos oriundos das Em época própria, há lampreia e,
do melhor prato com sabor quintas locais. Da programa- sempre, cabidela. Reserve espaço
a mar. As pastelarias locais ção fazem ainda parte vários para o creme de água.
também se associam com eventos online, onde se pre- Preço médio €20.
pão e doces tradicionais, bem tende a partilha de experiên-
como produtores de vinho, cias, se pode assistir a aulas de SELO DE QUALIDADE Em parceria com o Recheio, este
de cerveja artesanal, licores e cozinha e se explica a história símbolo é a garantia de que o restaurante em destaque utiliza
produtos das melhores origens e criteriosamente selecionados
até laticínios ou a Cooperativa da gastronomia local.

E 79
D ESI GN
POR GUTA MOURA GUEDES

Mais de 6500 arquitectos,


Obra do artista Olafur Eliasson designers e urbanistas russos
em homenagem à Ucrânia, um assinaram uma carta aberta em
dos vários artistas que se têm que condenam a invasão da
manifestado a favor deste país. Ucrânia, considerando-a
inaceitável.

Consequências
A Triennale di Milano, sob
Somos uma espécie que vive com a destruição dos a direcção de Stefano Boeri,
A fundação russa V-A-C seus e da cultura que produz há demasiado tempo encetou uma plataforma digital
sobre o confronto na Ucrânia, em
Foundation cujo novo edifício,
preparação da próxima trienal.

H
em Moscovo, está a ser
desenhado pelo arquitecto á uma frase antiga que diz que de pura liberdade, em que nada nem nin-
Renzo Piano suspendeu toda a “embora se atirem pedras às rãs a guém é forçado a participar e actos que
sua actividade, em solidariedade
brincar, elas morrem a sério e não têm assimetrias entre si, tal como a cul-
para com a Ucrânia.
de brincadeira”. Se às vezes temos algu- tura é assimétrica e é bela por isso mesmo.
ma capacidade de entendimento relati- Enquanto o mundo se revolta e torna
vamente a actos irreflectidos e imaturos vocal, de várias formas, a enorme solida-
cujas consequências são devastadoras, riedade com a Ucrânia e com o seu povo,
o que se assiste agora não se assemelha as bombas e os mísseis caem. Lentamente,
em nada a isso. Estamos a testemunhar estes objectos mortíferos, num desenho ab-
uma destruição propositada, consciente surdo de traço letal, matam pessoas como
e em massa de pessoas e de um patrimó- nós. E apagam do mapa arquitectura, arte,
nio histórico que nunca poderão voltar a design, cultura que pertencem a todo o
ser repostos. Vidas e cultura perdidas, um planeta. Algum desse património temo-lo
Peter Bankov, uma
crime contra a Humanidade. Uma perda registado em livros e em vídeo, mas a ar- dos mais proeminentes designers
Num simples texto escrito à mão,
o arquitecto Norman Foster dentro da Europa, em pleno século XXI, quitectura, o design urbano, a arte públi- russos, tem partilhado
explica por que razão pararam para lá do entendimento. ca vivem na relação com o ser humano e no seu Instagram dezenas
todos os projectos na Rússia. O que podemos fazer? Logo a 24 de com o espaço. Vivem em interligação com de novas peças gráficas
Fevereiro a UNESCO lançou o alerta, pe- a cidade desenhada, com a praça definida, a defender a Ucrânia.
dindo a “protecção das vidas e do pa- com o caminho que leva a um outro sítio,
trimónio ucraniano”. A partir desse mes- com a frequência com que olhamos para
mo dia temos vindo a assistir à tomada estas produções e as integramos nas nossas
de posição de inúmeros protagonistas na vidas, com os nossos passos enquanto nos
área da cultura contra esta guerra, mui- movemos, vivem nos olhos das crianças que
tos deles cortando relações com a Rússia, passeiam. Mesmo que no nosso quotidiano
parando projectos, retirando a participa- a cultura pareça não ter peso, ela rodeia-nos
ção russa de eventos. Muitos outros ma- e é ela que nos inspira a sermos melhores.
nifestam-se da forma o mais visivelmente Somos uma espécie que vive com a
possível, o que hoje em dia significa o uso destruição dos seus e da cultura que pro-
O ateliê suíço
Herzog&DeMeuron, que tem dos meios de comunicação e das redes so- duz há demasiado tempo. As consequên- Com a devastação de Oleshky,
arquitectos de mais de 40 ciais, criando obras de comunicação grá- cias destes actos não nos levam a mais a casa obra de arte de Polina
nacionalidades, é um mais um fica, eventos, debates, conferências, ins- nenhum sítio que não o da animalidade. Rayko, descrita como museu
entre as centenas de estúdios talações, textos, música, utilizando todos Há seguramente um erro de desenho nacional de arte, pode ter-se
que também pararam os seus os meios de produção e criação cultural que não estamos a ver. b perdido. Uma entre centenas e
projectos na Rússia. que têm disponíveis, tornando o trabalho centenas que desaparecerão.
cultural parte da luta contra a insanidade Guta Moura Guedes escreve de acordo
da guerra na Ucrânia. São actos de força e com a antiga ortografia

E 80
M O DA
POR GABRIELA PINHEIRO

Dicas & Regras


Chegou a
micro-nano-saia
O regresso em grande — ou melhor,
em pequeno — da minissaia

C
om a chegada da primavera, co- Valentino, também foram pelo caminho
meça também a contagem de- mais curto no que diz respeito a esta pe-
crescente para um guarda-roupa ça-chave que regressa agora em grande,
mais leve. As temperaturas aumentam ou melhor, em pequeno. As microssaias
e algumas peças diminuem na mesma chegaram para destronar as chamadas
proporção. É o caso da minissaia, que hot pants ou microcalções, por norma
andou algo desaparecida em temporadas em ganga, e que já haviam desafiado a
anteriores, mas que nesta estação volta lei do comprimento mínimo garantido.
com uma dose de ousadia extra pela mão A ajudar à festa, as cinturas descem,
— ou tesoura — de alguns designers, pelo que a quantidade de tecido se re-
como Miuccia Bianchi Prada, que nos vela ainda menor.

FOTOGRAFIAS GETTY IMAGES


mostrou até onde pode subir uma saia. Mas se nesta tendência o pano é
Foi no desfile da Miu Miu que fomos sur- pouco, os modelos disponíveis são mui-
preendidos por um dos incontornáveis tos, o que permite variar o estilo, en-
must-haves da primavera: a minissaia tre a versão colegial e um visual mais
ultracurta e com efeito desfiado, como se sexy. De pregas, justas e drapeadas ou
encurtá-la tivesse sido um capricho de em materiais mais encorpados como o
última hora. Podemos desde já garantir cabedal, a escolha é sua. Numa atitude
que há cintos mais compridos! mais ecológica, que tal dar umas tesou-
Balmain, Versace, Dolce & Gabba- radas criativas a uma velha saia? En-
na e até marcas tradicionalmente mais curtar para lhe prolongar a vida, é esse
conservadoras, como Emporio Armani e o segredo! b
MINISSAIA EM GANGA
SUSTENTÁVEL

Shopping H&M
€24,99

MINISSAIA EM GANGA
COM TACHAS
H&M STUDIO SS22
€99

MINISSAIA COM CINTO


LARGO E PEDRARIA
MINISSAIA COM MINISSAIA EM Dolce & Gabbana
BOLSOS DE CHAPA GANGA COM BOTÕES €1150
IRIS X H&M METÁLICOS
€49,99 Balmain
€790

MINISSAIA EM RENDA
COM ATILHOS
MINISSAIA Guess Jeans
EM LAMÉ €90
COM PRINT MINISSAIA DE PREGAS
LEOPARDO COM BOLSOS VISÍVEIS
Dolce & Gabbana Miu Miu
€695 Preço sob consulta

E 81
T ECN O LOGIA
POR HUGO SÉNECA

A nitidez
desejada
De 8K ou de 4K? A escolha entre estas
duas modalidades de ultra-alta reso-
lução terá de ser feita pelos consumi-
dores no dia em que tentarem comprar
os novos televisores Neo QLED da
Samsung. A nova gama de TV chega
ao mercado com quatro opções, com
preços que crescem proporcionalmen-
te com a dimensão do ecrã. O QN95B,
de 139 centímetros
(55 polegadas),
custa €2599,99
e opera com 4K,
mas não com 8K.
No topo da gama
encontra-se o
QN900B, de 215
centímetros (85
polegadas) de ecrã,
apto para o 8K e
preço recomendado de €11.999,99.

Três vezes 12 Pelo meio figuram ainda o QN900B,


mas na versão de 190 centímetros (75
polegadas) e um preço de €7699,99,
e o QN800B, de 165 centímetros (65
Os topos de gama da Xiaomi chegam ao mercado no dia 1 de abril polegadas) e preço de €3999,99.
Estes dois modelos estão aptos tanto

N
para 4K como 8K. Todos estes ecrãs já
a Xiaomi há três novos topos de gama disponíveis: o 1, que é o mais avançado da Qualcomm, a versão 12X conta contam com uma fonte de luz Quantum
12 Pro, 12 e 12X chegam ao mercado nacional a 1 de com um processador Snapdragon 870. Na versão Pro é pos- Mini LED com tecnologia 14-bit HDR
abril, tendo como principal chamariz a capacidade sível optar por 8 ou 12 gigabytes (GB) de RAM, enquanto a 12 Mapping, que promete melhorar a qua-
de gravação e produção de imagens, com ferramentas que e a 12X dispõem apenas de 8 GB. As capacidades de arma- lidade de imagens mais escuras. Quan-
mais parecem ter saído de um estúdio de cinema. Para isso, zenamento variam entre 128 e 256 GB para os três mode- tum Matrix e Shape Adaptive Light são
os três telemóveis têm, na traseira, câmaras triplas que los. Nas baterias há uma ligeira diferença: A versão Pro tem outras tecnologias que prometem ir ao
captam vídeos na modalidade 8K da ultra-alta resolução uma bateria de 4600 miliamperes hora (mAh), enquanto encontro de quem aprecia o detalhe.
— mas com algumas diferenças. O Pro tem três câmaras de as outras duas têm baterias de 4500 mAh. Os três ecrãs são Além de colunas multidirecionais da
Dolby Atmos, os quatro televisores re-
50 megapíxeis e um sensor que promete avanços na foca- AMOLED e suportam tecnologia HDR 10+. Estão protegidos
correm a tecnologia que orienta o som
gem e na captação da luminosidade. O 12 e o 12X juntam ao com vidros Gorilla Glass Victus. A versão Pro tem ecrã de 17 consoante a ação que passa no ecrã.
sensor principal de 50 MP uma lente ultragrande angular centímetros (6,73 polegadas), mas as outras duas versões Hubs que facilitam a conexão a eletro-
de 13 MP e uma telemacro de 5 MP. Enquanto as versões têm ecrãs de 15,9 centímetros. Todos estão preparados para domésticos e a videojogos completam
12 Pro e 12 dispõem de um processador Snapdragon 8 Gen Wi-Fi 6. Preços a partir de €849. b a lista de atrativos.

A REALIDADE RECOMENDADA OS TABLETS AGRADECEM O NOVO NOVA O CENTENÁRIO DO EDGE


Os óculos de realidade virtual da Meta A loja Play, da Google, vai passar O Nova 9 SE, da Huawei, chega ao mercado O browser Edge prepara-se para chegar
Quest passaram a ser recomendados a apresentar nos resultados de pesquisa com 108 megapíxeis (MP) nas câmaras à sua 100ª versão. Depois do lançamento
para maiores de 13 anos. A marca detida indicações sobre o grau de otimização traseiras e um ecrã de 17,2 centímetros da versão experimental, o navegador
pela Meta (que também detém o Facebook) de diferentes apps para o uso em tablets. (6,78 polegadas). O processador é um da Microsoft deverá expandir-se
anunciou que vai disponibilizar controlos A otimização para tablets será definida tendo Snapdragon 680, da Qualcomm, e conta pela internet fora tendo como principal
parentais que permitem bloquear conteúdos em conta três categorias e poderá influenciar com 8 gigabytes (GB) de RAM e 128 GB novidade a estreia de um novo leitor
para adultos e apurar qual a utilização diretamente a hierarquia dos resultados, de armazenamento. A bateria tem 4000 de ficheiros PDF. Sincronização de apps
que é feita pelos adolescentes que podem que passam a ser distintos para telemóveis miliamperes hora (mAh) e carrega em 36 usadas por mais de um computador e ainda
usar os óculos. Os controlos parentais ou tablets. Os indicadores têm em conta minutos. Vem equipado com o sistema uma funcionalidade que atesta que
surgem após uma notícia que dava conta a capacidade para apresentar modo operativo HarmonyOS, mas acede às redes os diferentes sites visitados estão a operar
de que os óculos de realidade virtual panorâmico, possibilidade de uso de mais móveis de quinta geração (5G). Preço: dentro da normalidade fecham a lista
davam acesso facilitado a conteúdos de uma janela em simultâneo ou €359,99, com desconto de €50 para quem de novidades desta versão centenária
para adultos. compatibilidade com dispositivos dobráveis. encomenda antes de 8 de abril. do Edge.

E 82
AU TO M ÓVE IS
POR RUI CARDOSO

CONDUÇÃO
Sentados ao volante do Mitsubishi
Eclipse Cross temos todos os
comandos à mão, incluindo a alavanca
da caixa de velocidades automática.
A visibilidade é ampla, dada a maior
altura ao solo deste carro. Dois botões
permitem, seja poupar bateria na
estrada, guardando-a para a condução
citadina (modo Save), seja selecionar
a tração para os pisos.

Híbrido e com tração total


Um SUV mais igual que os outros: 4x4 e motor híbrido

A
s pessoas em geral gostam dos obrigando a uma condução mais cui- MULTIENERGIAS
SUV porque são versáteis, es- dada em modo híbrido puro, quando
paçosos e têm uma posição
FICHA TÉCNICA passamos a arrastar o peso morto da
Ainda que a tração seja sempre elétrica
(à frente ou integral) no Mitsubishi
de condução mais alta. E porque é Mitsubishi Eclipse Cross PHEV bateria, que representa umas boas Eclipse Cross a forma como é gerada
moda, claro. Quando se trata de sair Preço €53.000 dezenas de quilos (o equivalente a pode variar. De origem
do asfalto e entrar em caminhos não Motor Motorização híbrida adulto e meio). Dependendo da con- predominantemente elétrica (híbrido
pavimentados é que podem ser elas. Potência combinada 201 cv dução, podemos esperar consumos série), ficando o motor térmico/gerador
Ainda que sejam mais altos que os Velocidade máxima (km/h) 162 (em modo híbrido) da ordem dos 6,5 para situações de aceleração; e com
Aceleração (0-100 km/h) 10,9 base no motor de combustão (híbrido
automóveis comuns e que possam a 8,5 litros (de gasolina) aos cem. Se
Bagageira (l) 471 paralelo), funcionando o motor elétrico
ter um controlo eletrónico de tra- tivermos possibilidade de voltar a
Depósito de combustível (l) 43 traseiro quando necessário.
ção mais aperfeiçoado, só têm tração Comprimento/largura/altura (m) pôr à carga mal a bateria se esgote,
ao eixo da frente. Uma simples lama 4,55/1,81/1,69 os consumos caem a pique. Existe a
superficial ou uma rampa em terra Autonomia elétrica 55 km opção de guardar a carga da bateria
um pouco mais inclinada ou abaula- Tempo de carga de 4 a 7 horas para onde a condução 100% elétrica
da e podemos ficam em apuros. Não (8 a 16 A) ou 25 minutos (rápido) faça mais sentido, ou seja, os trajetos
é retórica: já me aconteceu e precisei Consumo combinado (l/100 km) urbanos (o chamado modo Save). É
da ajuda de um jipe a sério para me 2,0 (WLTP) Classe 1 com Via Verde.
desenvencilhar... Emissões de CO2 (g/km) O espaço é generoso, incluindo
A nova versão do Mitsubishi Eclip- 46 (WLTP) na bagageira (471 l). Pode adaptar-se
se, agora designada Cross, traz algu- a tração ao tipo de piso (neve, terra,
mas novidades neste domínio e já nos etc.). O sistema híbrido permite dois
permite algum à vontade (ainda que um terceiro motor, este térmico, a ga- tipos de condução: predominante-
sem exageros) fora de estrada. Veja- solina, debitando 98 cv e garantindo mente elétrica (híbrido série), fican- REGENERAÇÃO
mos porquê. Tem dois motores elétri- 193 Nm de binário. Nada disto se soma do o motor térmico/gerador para si- Tal como nos carros 100% elétricos a
bateria, o condutor pode fazer a gestão
cos, cada qual em seu eixo, o que ga- aritmeticamente e portanto a potên- tuações de aceleração; e com base no
da regeneração da energia na travagem
rante tração total. São 82 cv e 137 Nm cia combinada é de 201 cavalos. motor de combustão (híbrido para-
e desaceleração graças às patilhas junto
à frente e 95 cv e 195 Nm atrás. Já dá Como em quase todos os híbri- lelo), funcionando o motor elétrico ao volante. Ao circular em modo 100%
para não atascar na primeira armadi- dos PHEV, há dupla personalida- traseiro quando necessário. A bateria elétrico podemos assim aumentar a
lha do caminho. A tração é portanto de: hipereconómico enquanto te- pode carregar em modo rápido (25 autonomia e jogar com o efeito de
sempre elétrica e garantida por uma mos carga na bateria para andar minutos para 80% da capacidade). As retenção, o mesmo que se verificaria se
bateria que tanto pode carregar na to- em modo 100% elétrico (à volta de patilhas no volante permitem gerir a usássemos uma mudança mais baixa
mada como em andamento, graças a meia centena de quilómetros), mas regeneração de energia. b num carro convencional.

E 84
DIÁRIO DE UM
PSIQUIATRA
POR JOSÉ GAMEIRO

CONTRA A
INDIFERENÇA
Adeus
Através da marca A Maria Cereja, Susana
A idade não perdoa. Apesar de teres nascido
Cereja Almada passa mensagens sobre saudável, os achaques foram surgindo

C
conceitos predefinidos na sociedade
e temas tabu. onheci-te há quase 30 anos. Estavas arrumado a um canto, lá para
Ao invés de os evitar, representa-os em peças os lados de Coimbra. Como quase sempre acontece nas relações
como brincos e colares, dando-lhes forma importantes que nos acontecem na vida, foi por acaso. Um dia passei
e feitios para que possam passar mensagens, lá para tratar de um assunto e vi-te, meio triste, no escuro, provavelmente
mesmo que subliminares, a quem as usa a pensares que nunca mais irias viver e ser útil. Falei com quem te tinha ido
e a quem passa por elas. Feitas em argila de buscar longe e te tinha adotado, à espera que alguém te levasse.
polímero, um material de moldagem macio Estavas cheio de feridas provocadas por quem te tinha tratado mal e
e maleável, não tóxico, e composto por te tinha abandonado numa praia de Marrocos, sabe-se lá a fugir de quê.
partículas de PVC, cada peça é única, Combinei com quem te tinha dado casa e guarida, que queria ficar contigo.
pensada, desenhada e moldada totalmente Faltavam-te alguns bocados. Uns encontrámos cá, outros meti-me num
à mão. Pode vê-las e adquiri-las na página de avião e fui desencantá-los na América profunda. Uma das tuas pernas, a mais
Instagram ou Facebook, A Maria Cereja – more importante, a da frente, veio dentro de uma mala. Quando na Portela me
than earrings. perguntaram o que era, emocionaram-se e deixaram passar. Era ainda no
tempo em que os sentimentos atenuavam os deveres.
Foste cuidadosamente reparado por alguém que te respeitava e te olhava
como se fosses um bebé a necessitar de cuidados básicos para sobreviveres.
No dia combinado fui-te buscar. Estavas lindo, pronto para te levar a
passear. Fizeste-me logo uma surpresa, desataste a correr sem que eu, nem
tu, tivéssemos a noção da velocidade, mas lá te consegui parar. E passeaste
muito. Cá e lá fora, não posso dizer que tenhas cruzado o mundo, mas ainda
conheceste muitas terras. Vieste viver para perto de Lisboa. Quando não
passeavas estavas num lugar quentinho, resguardado das intempéries do ar
salgado que não te fazia bem. Durante a semana pouco te via, tinha de ganhar
a vida para te sustentar, nunca foste barato.
EM PROL DA SUSTENTABILIDADE Ao fim de semana acelerávamos e levantávamos voo. Eras muito suave,
previsível, se eu praticasse todos os procedimentos eras completamente
A Opticalia aposta na sustentabilidade com a Trendi Eco, uma coleção obediente. Mais do que os meus filhos. Mesmo quando te punha em posições
composta por 16 armações, fabricada num material biodegradável com 45% estranhas, tinhas tendência a voltar a ficar direito. Ao longo destes tantos
de origem vegetal. Trata-se de um material injetado, o que pressupõe um anos só me pregaste um susto. Devias estar maldisposto, talvez a precisar de
aproveitamento de 100% da matéria-prima. O compromisso ambiental não descanso. Decidiste, quando estávamos a chegar ao Algarve, fraquejar na
se limita às armações, já que o estojo é feito com poliéster reciclado e as perna que te tinha trazido da América. Não te obriguei a nada, dei-te tempo,
lentes com bioplástico 100% biodegradável, que se decompõe em carbono, passeámos pelo país durante umas horas e quando voltámos tratei-te com
água e massa biológica. É uma coleção pensada e criada para minimizar ao ainda mais meiguice. Esticaste a perna e não acabámos no hospital.
máximo a pegada ecológica, uma vez que a sua produção reduz as emissões Fomos a Paris algumas vezes ver os grandes, nunca me deixaste
de CO2. A coleção Trendi Eco está à venda esta primavera nas óticas do grupo envergonhado, até querias ir direto, mas sempre te disse descansas um bocado
Opticalia em Espanha, Portugal, México, Colômbia e Marrocos. e eu tomo um café. Até uma vez conseguiste carregar com sete até Marrocos
opticalia.com e nem um gemido. Eras admirado no chão e no ar. Quando cresceste ficaste
muito mais caro, é natural, as exigências são maiores. Arranjei-te um pai, o
Manuel. Eu continuei a mãe, mas o casal sempre se deu bem. Mas a idade não
perdoa. Apesar de teres nascido saudável, os achaques foram surgindo e as
medicações e intervenções cada vez mais caras.
Mas o prazer de passear contigo mantinha-se inalterável. Mesmo que fosse
TONS DA só para ir tomar um café a Évora, a Portimão, a Santa Cruz, a Ponte de Sor, ou
PRIMAVERA ir ver Lisboa, a ponte, o Espichel. A elegância com que ias para o ar, o prazer
físico, mas difícil de descrever, que me davas a tirar os pés da terra, ficará para
A marca portuguesa Lemon sempre gravado no registo das emoções fortes. Os teus ‘pais’ tomaram uma
Jelly lançou duas novas cores na decisão racional, deixar-te ir viver para outro país, que te pudesse dar uma
coleção primavera-verão – argento boa vida. Um país com mais recursos, menos burocrático, em que acreditem
e baby rose. O tom rosa-claro dá a mais e com menor controle, que és bem tratado.
todos os looks um toque delicado Vai ser bom para ti. Vais ver do ar o Duomo, a Galleria Vittorio Emanuele,
para complementar o estilo mais a Piazza Mercanti. Dormes em Bresso, mas estás perto de tudo o que há de
feminino. Já o tom cinza promete mais belo na Europa. Partiste há uma semana. Os teus ‘pais’ já estão a ser
intensificar os visuais. Estas duas acompanhados, não fiques preocupado. E podes ter a certeza que te iremos
cores são parte integrante de um visitar.
conjunto de novidades que a Lemon Até sempre Saratoga. b
Jelly está a preparar, garantindo que josemanuelgameiro@sapo.pt
se vão tornar “verdadeiros essenciais
de verão”.
lemonjelly.com
PASSAT E M POS
POR MARCOS CRUZ

Sudoku Fácil Palavras cruzadas nº 2410

3 1 2 4
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
8
8 1 3 5 6 7 1
5 8 9 7
2
7 4
6 4 1 3 3
6 7 3 5 9 1
4
7
8 3 6 5 5

Sudoku Muito difícil 6


8 5
7
7 6 9
2 1 3 8
5 9
9
3 4 1 2
8 4 10
4 5 1
1 7 6 11
6 7
Horizontais Verticais Soluções nº 2409
1. O chapéu dos gangsters 2. Conta 1. Onde se guardam abafos 2. O seu HORIZONTAIS
Soluções a história do troiano antecessor secretário-geral é português. Deus dá 1. treinadores 2. euro;
Fácil Muito difícil dos romanos. A dinastia portuguesa o frio consoante a que se tem 3. São nó; es 3. uma; atreita
2 5 7 9 6 1 3 8 4 4 2 7 8 3 1 9 6 5
que deu novos mundos ao mundo lucros 4. A maior ilha do Mediterrâneo. 4. tirolês; nas 5. onírico;
4 3 6 8 7 2 1 5 9 6 3 5 9 4 7 1 8 2
3. Jamais. Gardner atriz 4. Opõe-se No meio deste 5. Espadas curtas. Ala 6. não; mi; Ada 7. ir;
1 9 8 5 3 4 2 7 6 9 1 8 2 5 6 7 3 4
5 7 3 1 4 6 8 9 2 7 4 1 3 8 5 2 9 6 ao analógico 5. Berço de uma santa Deslocar-se 6. Tosquia-se. Morte paparoca 8. ceramista
9. andaimes 10. rã; IC;
9 8 4 3 2 5 7 6 1 5 9 2 1 6 4 3 7 8 Teresa. Letra repetida. Iniciais de um grega 7. Insolente ma non tropo
tu 11. La Lys; saber
6 2 1 7 9 8 5 4 3 8 6 3 7 9 2 4 5 1 arquipélago brasileiro 6. O rosário 8. O reino que Fernando o Católico
7 6 9 2 5 3 4 1 8 3 7 4 5 1 8 6 2 9
tem-nos 7. Feita de bronze. Determina uniu ao de Castela. A dobrar exprime VERTICAIS
3 1 5 4 8 9 6 2 7 1 8 9 6 2 3 5 4 7
a quantidade 8. Átomo eletricamente ceticismo 9. Com a forma de um 1. teutónica 2. ruminar;
8 4 2 6 1 7 9 3 5 2 5 6 4 7 9 8 1 3
carregado. Juntei. Liga metálica ingrediente da omelete. Acaba nua 3. erário; CD 4. Io;
9. Livro do Antigo Testamento. Passe em conclusão 10. Com martelo or; Peary 5. alimárias
a mão pelo pelo 10. Está do outro na bandeira comunista 11. Divisão 6. antecipam 7. dorso;
lado 11. Brilha. Poeta grego em elementos métricos. Letra repetida ameis 8. arisca
Palavras Cruzadas Premiados do nº 2408 9. reinados 10. estalactite
“Beco das Almas Perdidas”, de William L. Gresham, 11. asa; aa; tua
para Mário Medeiros, de Coimbra; “Violeta”, de
Isabel Allende, para Isabel Figueira, do Funchal;
“A Ilha”, de Victoria Hislop, para Rosa Maria
Figueiredo, de Santiago de Riba-Ui. Participe no passatempo das Palavras Cruzadas enviando as soluções por correio para
Rua Calvet de Magalhães, 242, 2770-022 Paço de Arcos ou por e-mail para passatempos@expresso.impresa.pt

E 87
DEIXAR O MUNDO MELHOR

42 SEMANAS PARA OS 50 ANOS DO EXPRESSO

ISABEL JONET
“ESTES REFUGIADOS
VÊM POR UM
LONGO TEMPO”
Começou a fazer voluntariado com propor, apesar de não existir total recetividade à carências alimentares. Um milhão de pessoas vive com
12 anos? mudança. Muita gente, muitos países, é muito difícil menos de €250/mês, dois milhões de pessoas com
Ter uma atividade voluntária fazia conciliar uma máquina institucionalmente pesada. menos de €450. Estas pessoas têm de ser ajudadas com
parte da educação que os meus comida, com apoio em remédios e, muitas vezes, com
pais nos deram. No verão, ia todas Conseguiu fazer propostas que fossem concretizadas companhia.
as terças e quintas de manhã para nos sete anos que passou em Bruxelas?
OUÇA O PODCAST o Hospital de Sant’Ana, na Parede, Digo sempre que pessoas desassossegadas não têm Presidiu à Federação Europeia dos Bancos
EM EXPRESSO.PT apoiar os bebés internados. Nessa vidas sossegadas, mas também não dão sossego aos Alimentares?
altura, as mães não podiam estar com outros. Sempre que podia, propunha coisas diferentes, Cinco anos. A Federação Europeia dos Bancos
os bebés nos hospitais, mas os voluntários podiam entrar. mas nem sempre tudo aquilo que nós achamos que pode Alimentares congrega todos os Bancos Alimentares
ser otimizado é implementado… que há na Europa e está ligada à Global Food Banking
Do liceu ficou mais alguma experiência interessante? Network. Os Bancos Alimentares que existem na
Quando se tem 14 anos, como eu tinha quando foi se Regressa de Bruxelas, com a família, e vai para o Banco Ucrânia, na Polónia e na Grécia foram abertos quando eu
deu o 25 de Abril, e se vive este dia no Liceu Nacional Alimentar? era residente da Federação, com o nosso modelo.
de Oeiras, fica-se com muito boas recordações. Das Quando voltei quis ter um trabalho voluntário. Tinha
RGA (reuniões gerais de alunos), dos amigos de todas as decidido não regressar à empresa onde me tinham Como está a acompanhar e a ajudar a Ucrânia?
cores políticas, foi um tempo muito interessante. O Liceu dito que teria lugar enquanto os meus dois filhos mais Estou ligada à construção da plataforma WeHelpUkraine.
Nacional de Oeiras era extraordinário, tinha um padrão velhos estivessem a fazer a adaptação. Na altura tinha org. e em contacto com o Banco Alimentar de Kiev
de ensino elevadíssimo e professores ótimos. três filhos, agora tenho cinco. Fui ter com o José Vaz e com os Bancos Alimentares da Polónia, Hungria e
Pinto e com o José Carlos Mardel Correia que tinham Roménia. Ajudamos no que precisam: os medicamentos
Depois vai para a Faculdade... começado o Banco Alimentar ano e meio antes. Entrei, que vão daqui para lá, se [têm bulas] em português não
Para Economia, na Católica, mas podia ter ido para e, um mês depois, o José Vaz Pinto convidou-me para podem ser usados, porque eles não percebem. O nosso
qualquer outro curso que tivesse matemática, desde que a direção. Apaixonei-me pelo potencial que o Banco trabalho é ajudar empresas portuguesas a transportar
não fosse Medicina. Alimentar poderia ter se fosse desenvolvido com [outro] alimentos para um destino seguro, entregá-los a
modelo económico. entidades seguras, como o Banco Alimentar de Kiev ou
Gosta de matemática? um dos Bancos Alimentares na Polónia, que os levam
Sim. Tenho uma cabeça muito analítica. Escolhi a Porque se chama Banco? a quem realmente precisa. O Banco Alimentar de Kiev
Universidade Católica para não fazer o Serviço Cívico. É um banco de circulação, tem um conjunto de ativos está em articulação com grandes instituições como
Naquela altura [1976] perdia-se um ano no serviço cívico que não são financeiros, mas sim comida que é angariada a Cruz Vermelha Internacional e, de forma articulada,
[antes de entrar numa universidade pública]. A Católica para não ser destruída. Parte do nosso trabalho é lutar ajuda as pessoas.
era privada, poupava-se esse ano. contra o excedente alimentar. Outro ativo que temos é o
voluntariado, que não estava desenvolvido em Portugal. Já pensou ir à Ucrânia?
O curso de Economia preparou-a para a sua atividade O Banco Alimentar foi a entidade que mais fez pelo Eles não precisam de mim agora. Vão precisar cá. Os
no Banco Alimentar? voluntariado jovem neste país. A noção de que os jovens refugiados que estão a chegar vêm por um longo tempo,
Só fui para Economia, em vez de ir para Gestão, porque e as crianças podem ser voluntários, participar, tornando têm de ser acolhidos e inseridos no mercado de trabalho.
não gostava de contabilidade. O que sei fazer é gerir. Na o voluntariado uma cultura de cidadania, é um legado São bons trabalhadores, há muitas mulheres com filhos e
Católica aprendi a ver de forma diferente. É para isso que que o Banco Alimentar deixa. temos de ajudar os filhos a frequentarem a escola. É esta
servem os cursos superiores. integração plena que vai permitir que estas mulheres
O que funciona melhor hoje? reconstruam a vida e, finda a guerra, regressem à Ucrânia
Depois, foi para Bruxelas? Há 29 anos não existia modelo de gestão, praticamente ou tragam os maridos. b
Casei com um colega de turma, em setembro de 1982. não havia informática nas empresas e a distribuição dos
O Nuno foi para a tropa em outubro, e quando saiu da alimentos às instituições era feita com uma máquina de
tropa, em 1985, foi logo para Bruxelas, e eu fui a seguir. calcular com rolo. O Fernando Alves Martins, que era
Trabalhei na DG10 (Direção-Geral de Comunicação) da IBM, ajudou a profissionalizar a informática, e isso
como agente temporária e depois fui para o Comité permitiu replicar a ideia noutros pontos do país. Agora, há
Económico e Social. 21 Bancos Alimentares que contribuem para alimentar
4% da população portuguesa. POR
Como funciona a máquina em Bruxelas? É lenta? FRANCISCO
É muito pesada, mas também depende daquilo que Parte da população portuguesa continua a passar fome? PINTO
queremos fazer. Quem quer fazer coisas consegue Há uma parte da população portuguesa que tem graves BALSEMÃO

E 88
Uma solução de poupança com risco
SURWHJLGRHFRPYDQWDJHQVȆVFDLV
Fale já com o seu agente para saber
WXGRVREUHHVWDRSRUWXQLGDGH

Para mais informações consulte o nosso site, onde também tem disponível o Documento de Informação Fundamental do
produto. Não dispensa a consulta de informação pré-contratual e contratual legalmente exigida. Tranquilidade é uma marca da
Generali Seguros, S.A. registada na ASF com o nº 1197
ESTRANHO OFÍCIO

JOÃO FAZENDA
SOBRE AS VANTAGENS
DE ESTAR NA MERDA

A
A CRÍTICA GRATUITA DEVE SER A ÚNICA COISA
GRATUITA QUE NINGUÉM APRECIA

merda tem muito má imprensa, bater o recorde. É um gosto viver num universo em que as coisas estão
isso é certo. Não sei que interesses organizadas assim. Incompreensivelmente, há quem persista no erro do
obscuros se movimentam contra a compromisso sério e da responsabilidade. Há um número surpreendente
merda, mas a verdade é que não há de pessoas que se queixa de só receber críticas gratuitas. Aquilo de que
quem a defenda. A única voz que estão à procura, dizem, é de críticas construtivas. Não se compreende. A
ousa contrariar a narrativa oficial crítica gratuita deve ser a única coisa gratuita que ninguém aprecia. Devo
continua a ser a de Jorge Sousa dizer que as críticas gratuitas são as minhas preferidas: normalmente são
Braga de quem recordo, sempre descabeladas, maldosas, injustas. Ou seja, são para ignorar. As críticas
que posso, os lúcidos versos: “A construtivas, por outro lado, vêm de alguém que, analisando o nosso
merda é a única coisa/ que não se procedimento, descobriu mesmo um modo de o melhorar. Levar em
pode conspurcar.” De resto, sem consideração uma crítica construtiva vai, inevitavelmente, dar trabalho.
querer parecer paranóico, dir-se-ia Na pior das hipóteses, até pode contribuir para nos tirar da merda. Deus
que está em curso uma conspiração: workshops e livros de auto-ajuda me livre! b
prometem tirar-nos da merda, amigos e familiares comunicam-nos que Ricardo Araújo Pereira escreve de acordo com a antiga ortografia
não gostam de nos ver na merda, a publicidade teima em fingir que a
merda não existe. Parece que não se pode estar na merda sossegado. Eu
estou na merda desde 1974, e é uma condição que recomendo. Trata-se
de uma garantia de invulnerabilidade. Ninguém nos pode pôr na merda,
por mais que se esforce. Muitos tentam, nenhum consegue — e alguns,
por causa disso, ficam na merda, prémio que não mereciam. Quando
se está na merda, todas as expectativas são excelentes — o que, sendo
óptimo por um lado, por outro constitui um problema. Se alguma dessas
expectativas se concretiza pode muito bem tirar-nos da merda, resultado
que não se deseja. Quem está na merda não tem nada a perder, e não há
modo de vida mais descansado do que esse. Muita gente tenta sair da
merda através de um método completamente absurdo: dar o seu melhor.
Não é boa ideia. É um procedimento aconselhado pelas pessoas que não
estão na merda, ou que fingem não estar (o que é pior ainda), e, como
tudo o resto que essas pessoas sugerem, não resulta. Nunca devemos
dar o nosso melhor. Há demasiados músculos em tensão, demasiado
peso sobre os ombros, demasiada rigidez. Ainda há dias estava a ler um / RICARDO
livro de entrevistas a vários atletas em que quase todos confessavam ter
obtido as suas melhores prestações quando não estavam a tentar. Ou
ARAÚJO
seja, se o objectivo é bater um recorde, o melhor é a gente borrifar-se em PEREIRA

E 90
Desde

28.550€ *

Entrada inicial 5.710,00€


Montante financiado 22.840,00€

TAEG 8,0%

hyundai.pt Hyundai Portugal

Você também pode gostar