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E DI TOR A AU TOGRAFIA

R io de Jane i ro, 2 0 1 5

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Editora Autografia
Editora Autografia Edição e Comunicação Ltda.
Av.Rio Branco, 185, sala 2105 ­– Centro
Cep: 20040-007
Rio de Janeiro

Revisão: Daniel Russell Ribas e Zeh Gustavo


Tela da capa: Pepe Lazcano
Editoração eletrônica: Guilherme Peres

pedagogia do suprimido
Zeh Gustavo

2ª Edição
Novembro de 2015
ISBN: 978-85-5526-XXX-X

Todos os direitos reservados.


É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem
prévia autorização do autor e da Editora Autografia.

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SUMÁRIO

INTROGOGIA, 13

O quinze-tudo
INTERDICÇÕES, 18
RÉ FLEXOS,  19
CRIANSCENDÊNCIA, 20
LONGÍNQUO JARDIM DAS INFÂNCIAS RABISCADAS,  22
SABIÁ SABIA JÁ,  24
MENINO ESCANGALHADO VISITA UM CEMITÉRIO,  25
CLASSE DE ALFABEATIZAÇÃO,  26
AO PIANO, DONA EVA,  27
TIA EULÁLIA,  30
O QUINZE-TUDO,  31
TRANSCIRCUNFERÊNCIAS DO PODER,  32
RAIA A NOITE QUE TUDO EXPÕE,  34
VASO DE INSÔNIA,  35
CONTO FUNESTO,  36
MANHÃZINHA, 37
O TAL SONHO,  38
FÁBULA DO ABISMO PRÓPRIO, EM TOM MENOR,  41
O CONTO DO REENCARNADO,  45
PROCESSO, 47
DE SUGESTA EM SUGESTA,  48
METAPOESIA DO SUPRIMIDO,  49

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DA ESCOLA,  50
(DES)EMBARQUE, 52
SUSPENSO, 53
TRISTÓRIA DE DOIS,  54
ONDE SÓ RESTAM PEDAÇOS,  56
GURUFIM DE UMA ÁRVORE,  58
ADULTOS NÃO EXISTEM,  59
APITOS PARA QUEM NÃO FAZ FÉ COM AGASALHOS,  60
VIDA NEM VOLTA,  63
CONTINUA, 64
A SAGA-SORTE DA ESPÉCIME TRÔPEGA CONTRA OS SERES
EM MASSA,  65
PÁGINA A VIRAR, SAVEIRO PELO MAR,  67

O sol nas sacadas dos edifícios de coração urbano


ESCANINHO DE NÃO-SERES,  72
CENÁRIO-BRASA, 73
A RADUAN NASSAR,  74
A CONTA DA CARNE,  75
AUTO( DE )FLAGELO E (DIS)SOLUÇÃO,  77
CRASES HISTÓRICAS,  78
A EDUCAÇÃO DOS SUPRESSORES,  79
PEDAGOGIA DO SUPRIMIDO,  82
ATO DE DESPIR A ROUPA DO TRÂNSITO,  84
VARAL DE CASA,  86
VENTILADOR DE CHÃO,  87
RONRONANTE, 88
SUICÍDIO SEM MELADO,  89
CIRURGIA REPETIDA,  90
ENCRUZAS, 91

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FERNANDO TOLEDO E NEWTON CAVALCANTI,  92
MATÉRIA PARA A NÃO-SUPRESSÃO,  96
GRITO NO TETO TAPADO TOPA COM
A GRAVIDADE SEM TOCÁ-LA,  98
O RAMAL DAS HESITAÇÕES SEM FIM,  99
TEXTO-RÃ, 101
A SOCIEDADE DO ESCAPE (II),  103
POEMA DAS CINCO DA TARDE,  105
CASA DE CAMAS,  106
ABANDOLO, 108
O AMOR SUPRIMIDO,  109
MUNDO Ê,  111
AOS 50,  112
PIADA INTERNA,  113
ENCALHES, 114
MUNDO É TEIMOSIA,  115
A SABEDORIA DO JÁ-MORTO, PORÉM AINDA EM ESTADO
DE CHUTE,  116
BÊBADO, 118
ÂNIMO VÂNDALO,  121
VIVER SERESTA,  123
A COR DO EXÍLIO,  125
NA GARE, COM DELIRIUM TREMENS, 127
O SOL NAS SACADAS DOS EDIFÍCIOS DE CORAÇÃO
URBANO, 130
A DOR ME CIMENTA,  132

Faixa-bônus
INFORMES DA VIA VIVA,  136
A FACE DO ENLACE,  139

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DEDICATOS

a Renan Sardinha,

entre óculos e de lanterna na mão


procurando o campo de pouso, direto da
cápsula da viola voadora

à Vida,

em sua forma e face Caroline

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Navio bêbado
pêndulo do medo,
o homem da proa
sob o gelo
naufraga a seco:
o outro lado avesso
de si mesmo
no seu mar
de menos

Mário Chamie, em “Caravana Contrária”

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z e h g u s t a v o

INTROGOGIA

I
O futuro dos oprimidos e seus opressores, todos
operários vivos do sistema torpe construído
para a negação final das vozes, era o alvo alto da ação
didática de Paulo Freire. Invocava-lhe o espírito-mestre
a interrupção deste fluxo, em prol da erupção de um
homem-mulher consciente e despido da condição
aparentemente sinequanótica de vítima-algoz.
Eis a peça-tese para um educar libertário:
instituir-se uma Pedagogia do Oprimido.

Já esta Pedagogia do Suprimido trata-se de


uma palavra mambembe sobre um
passado-presente que engendrou um não-futuro.
Quiçá um estudo agoniológico.
Ou um reflexo da sombra de um soldado que desertou
do exército de si mesmo mas ainda ouve, vez ou outra,
o sino que estrila do pulso de sua veia estrangulada.

13

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pedagogia do suprimido

II
Primava aquela Pedagogia primeira
de mui maior esperança que esta, que entretanto
ordenha, sim, suas aguardânsias, e as traga
como uma draga perdida, autoprivada das asas.

A Pedagogia do Oprimido gostaria


um homem que gerisse o próprio húmus.
Neste ponto o encontro, sendo que o suprimido
ojeriza a plástico. (A merda se perdeu
no meio do caminho de pedras?)

No futuro daqueles opressores e oprimidos,


que lá se confundiam,
cá se imiscuem suprimidos e supressores.
Só a avenida do exílio é que já não é a mesma.

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z e h g u s t a v o

III
Profeta, Freire supunha o vínculo-vício
que aproximaria sectários de esquerda e de direita,
oportunos ambos aos turnos de um trabalho
executado com vistas
à inanição das almas e organismos,
domesticados. O ritmo da inércia o que forneceu
foi toda uma pedagogia dialeticamente orquestrada
para a fermentação e superação
do ser de energia vital.

A este sujeito amplamente espoliado até virar


um objeto-número de um espetáculo fantasmagórico
ora apelidamos, carinhosamente:
suprimido.

15

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O quinze-tudo

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Não queria essa chance de me mostrar descrente.

Mário Bortolotto, em “Um bom lugar pra morrer”

Esta suástica imóvel, congelada, morta – a roda da vida


invertida, a vida ao avesso, de cara-atrás, que andamos a
viver (...) – e esta raiva de estar preso, perdido, num labirinto
de cristal, impecavelmente invisível – eu empurro esta parede
de vidro – eu dou um murro neste gelo.

Miguel Gullander, em “Perdido de volta”

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pedagogia do suprimido

INTERDICÇÕES

letras que não causaram cor


notas riscadas para a sombra dos discursos
horizontes desviados segundo a inapetência do dia
ditos olvidos de uma canção primeira
milharais de memórias despencadas aqui e acolá

o futuro todo ainda por desacontecer

18

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z e h g u s t a v o

RÉ FLEXOS

menino serelepe soca os dentes


contra a porta, range raiva, sabe
falsa a decoração em volta (o mundo sempre
tão frio embora cáustico)

com o medo já a lhe auscultar,


o molde rude de traços
flácidos (os modos sempre
tão plásticos dos demenos à solta)

comprende o que lhe aprontam e sofre


porque, num súbito, fica logo velho-novo em
seu invólucro de demônios sãos
trancafiados no motor de quem é interno
de sua própria condição (tão pouca)
e se vê inconforme à mão única (brinde
general)

19

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pedagogia do suprimido

CRIANSCENDÊNCIA

era tevê
e a criança aprontava no prato;
a mãe ralhava, disso:

olha o urso pimpão atravessado na janela!


olha o pinguinzinho aprendendo a andar!
lá vem a foquinha batendo palma com os pés!

- e desciam goela triste


algumas garfas da boia seca
daquela mãe de legumes frios,
que fazem bem;
e o que era afinal esse vídeo que a mãe botava
para distrair do gosto mau das coisas?

mãe, por que a foquinha não solta aquele urso?


eles bem podiam ir bater palma juntos,
imitando o pinguinzinho!

20

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z e h g u s t a v o

criança comia, vídeo findava...


já era sobremesa
e um pardalzinho doce apontava à frente da vista
gulosa, do mundo que agora fazia sentido
- a criança dibdjobava, comendo aves tortas!

janta boa, mãe!


tem mais?

21

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pedagogia do suprimido

L O N G Í N Q U O J A R D I M DA S
I N FÂ N C I A S R A B I S C A DA S

I
toldos calmos
me cobertam
enquanto
palitos de mola
me cortam
perfurando os meus eixos

II
tolos calvos
me cobram
conforme
os seus revólveres de boca
me curram
ao passo que preparam a manada
para o mercado de trabalho

22

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z e h g u s t a v o

III
todos calados
se cobrem
embora
tenham páginas de menos
a correr
no tempo que urge dar cabo instantâneo de tudo

23

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pedagogia do suprimido

SABIÁ SABIA JÁ

Tocava a voz do Gonzaguinha:


a lua só olhando pro sol,
do lago de fora do poço jardinal de aguardânsias.
Era recreio, gente pequena na correria
maravilhosamente clara do pátio algo tão imenso
para aquelas idades.

Observei de ao-longe, em meus


sobressaltos de lampejos:
menina-vento escalava a mureta da escolinha.
Nada tão alto, senão para ontem.

Mas ela caiu. Houve água vermelha


por todo frasco de sustos. Banho fresco
de amargura adentro.

Primeira experiência com a arte. E com a morte.

24

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z e h g u s t a v o

MENINO ESCANGALHADO
V I S I TA U M C E M I T É R I O

tamborripilantes sons silentes que assaltam todos


choro, dor – é a vida que vai
já dificultosa, mas ele há de crescer

25

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pedagogia do suprimido

C L A S S E D E A L FA B E AT I Z A Ç Ã O

a massa do giz no quadro, estou


a ler palavras pioneiras, mundo pouco
na memória, coisa toda por construir
eu olho os sons já me entranhando
nas estranhezas das coisas

menina bonita a apontar o lápis,


turma ao lado, salas contíguas
o acaso já aprontando suas vizinhanças

a menina: já dá para lhe adivinhar


o arfar das ânsias boas, primeira
vista de intensidades a viver
– e seriam as tantas!

no recreio ela leva um tombo


eu caio junto e ela me some
eu já sei ler: é meu futuro,
ali de passagem,
só para eu ficar avisado
sobre com o que estou lidando

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z e h g u s t a v o

A O P I A N O , D O N A E VA

I
Dona Eva era braba. Lecionava música
e castigamento. O castigamento era
o aluno, fanfarra ou colhido a esmo de exemplo,
segundo um barulho denunciante e qualquer,
ficar plantado frente à parede, sussa sussa,
qual cão defronte à sua televisão de galetos
em padaria das antigas.

Criançada maneira, nesse coisado de condições,


nem late nem berra. Espia. E ri, no soslaio, de
compadrios. Tais proezas até afamam o indivíduo,
que fica todo-todo, sendo assuntado pelos recreios.
Meninada glosa, unta de homenagérios
a veinha ranzinza das notas de melodia dura.

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pedagogia do suprimido

II
Errada vez, fui eu o pego. Descostumava,
desses dissos. Parede! A turma se aquietara.
Os sons sumidos, contados sopros
em esvaziar de turbilhões: punição. Só eu ali e
meu ouvido mouco, diante do horizonte pintado de
branco-rabiscos.

Eu, que já era ainda calado, tossi.


Retorci, com desculpas.
Bronca, cisma. E os risos suspeitos voltaram cedo
à sala, contornando os silêncios.

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z e h g u s t a v o

III
De início me reprovei, de cair no ato
de me isolarem, qual bagunçador; desse doravante
com carimbação de empedernido, sapeca, ora digo,
calcado em meus despois:
té que gostei da experiência de ser a margem
da pauta alheia, badernudo das claves tortas,
suspeito de ruaça ante a fadiga da ensinação
rançosa, cacarética, formol.

De futuro resulta que me sobreveio


este tocar porta da boca afora
um cantarolar desafinante, sincopido
nas divisagens, bocudo na atiração
do descomum pelas ventas das vozes.

Solfejo de Dona Eva foi é pro brejo!

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pedagogia do suprimido

TIA EULÁLIA

Tia Eulália não era de xiba,


mas de história; me chamava de
seu delinquente juvenil
e me dava notas altas de boletim;
me protegia da biologia e das perigosas exatas,
de um modo geral. (Não à toa, tempo mostrou.)

Tia Eulália não era da xiba,


mas revelava querer
juntar Marx e Freud
pruma teoria-mundo outra,
a Tia Eulália camarada.

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z e h g u s t a v o

O QUINZE-TUDO

Ah, meus quinze anos!

Com quinze anos levei um tiro na bunda,


comi a professora de português, passei
um cadiço de fome e desabrigo,
trabalhei na lanchonete americana escrota
com sua ética protestante de minhoca,
conheci quem eram meus pais, tracei umas
putas lúdicas de graça em Copacabana
e descobri que meu futuro seria escrever,
me embriagar, criar coisas inúteis e
com elas homenagear
a luta dos indiferentes à queda
e a algaravia dos quebradiços de gente,
sob o céu de deuses cínicos. Pelo menos
até que na avenida só permaneçam
o trem vazio o ônibus enguiçado a bicicleta sem trava a moto
estraçalhada
e alma alguma na carne frágil, cena incerta.

Eu olhava longe.

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pedagogia do suprimido

TRANSCIRCUNFERÊNCIAS DO PODER

Tinham roubado nossa bebida,


trazida das Minas Gerais. Cachaça
da boa! Mal sabiam as sabichonas
direitrógradas do queridoso Colégio Pedro II
que nossa pinga, da boa, fora trazida de
presente das mãos, limpas, do maior
cedeefe da paróquia do museu.

Havíamos ajambrado uma cerimônia mata-aulas,


na sala do grêmio estudantil,
para troço de deglutição da iguaria fina
que nos tornava meninotes muito mais interessantes.
Tudo sem vítimas, claro.
Porém, a pelegada do grêmio estudantil
que não nos era simpática resolveu trabalhar:
roubaram nosso líquido estimulante!
E, para fechar o caixão – e éramos tão novos,
naquele tempo: nos armaram um flagra
para com a direção.

32

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z e h g u s t a v o

Ano seguinte, fomos transferidos


do convívio da molecada-bem
daquela unidade escolar.
Ano seguinte, a molecada-bem daquela unidade escolar,
quiçá para demonstrar que podia
nos substituir à altura (!?!),
tratou de fazer circular pelos corredores outros baratos,
um cardápio de produtos bué de mais sofisticados
na química do endoidar.

Dechavados os vínculos segundo a carreira dos anos


e seus hiatos, cada um para seu lado,
continuamos todos bebendo.
Não sei do pessoal outro, dos pelegantes de
primeira viagem que nos entregaram.
Contudo, nunca nos arrependemos de nada.
Tinham roubado nossa bebida.
Foram longe demais!

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pedagogia do suprimido

RAIA A NOITE QUE TUDO EXPÕE

Eu deito e ouço as portas rangerem,


as paredes se estapearem,
os lençóis sendo arrancados
sobre minha cama
que treme.

Eu ergo e meço as pontes outroramente atravessadas,


o teto que pintei com escassa tinta,
os lenços molhados a germinar
fora do alcance de minhas pálpebras
que gemem.

Eu insisto e me sobrevém um sono fraco,


sonhos me riem novamente,
eu sou criança e durmo entre afagos
dentro de minha casca,
que teme.

34

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z e h g u s t a v o

VA S O D E I N S Ô N I A

como dormir
se pressinto acordar

ainda pior?

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pedagogia do suprimido

CONTO FUNESTO

Perdi um som quando ele tava a se encostar


na ponta da minha língua.
Perdi depois a língua.

Perdi uma palavra quando ela pendia já do traseiro


para a ponta de minha caneta.
Perdi depois a caneta.

Achei um cinzeiro desbarafutado de utilidades.


(Eu que achara tão-cedo as inutilidades!)
Despejei as minhas cinzas
que não havia visíveis.

Achei minha face.

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z e h g u s t a v o

MANHÃZINHA

Eu nem estava de barriga pro cimo,


não botei o rei pra dentro de festa nenhuma;
apenas sonhei que tinha morrido
e o céu estava azul anil.

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pedagogia do suprimido

O TA L S O N H O

A barca aportou durante o frio, sem estias.


Névoa, névoa de dar nos nervos.
(Parece cedo mas o dia sabe a noite.)
A cidade esvazia para as casas.
Eu chego a avenida para o meu
foco de horizonte. Exercito caber de novo
entre cadeiras-pessoas dispostas
em desuso.

No caminho os conhecidos, deformados


pela distância.
Eu olho aquilo com torpor e encanto.
Eu os reconheço. Eles não me veem.
Ouço um choro, que me alegra
e mente sobre o tempo que está
para estourar nossos miolos.
“Naquele tempo”*...
Alguém me interrompe mas não há ninguém,
tampouco músicos tocando. O choro
não existe fora de mim. É o som quem me sonha.

* “Naquele tempo”: choro de Pixinguinha e Benedito Lacerda.

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z e h g u s t a v o

O alguém que me interrompeu


vaga cegueta entre estações,
alguém-mulher
apaixonada pelo vazio ora ofertado.
(Me faz lembrar com amargueza
minha vida de sentir amores sucumbidos.)
O alguém cheira meu hálito e grita, intimadamente.
Depois me beija, rindo-se toda, louca, sina.
Doravante adere a minhas entranhas.
Juntos somos uma mesma carne de almas em erratidão.
(Será isso o amor?)

E então lá vou eu, perdida a visão do lúgubre.


As névoas percebem.
O choro do som me somatiza, alto.
Eu desço três tons e noto que começo a parar.
Minha amada, baixaltiva e dançareta,
escorrega por nossas entranhas
em passos difíceis de andar.
Ainda canta suas últimas oitavas, eu a ouço.
Então nos separamos, grudaolhados.
(O sonho nos untou mas por ora tudo é penar.)

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pedagogia do suprimido

Eu me sinto fincado no ar.


É tarde e o tempo está carregado.
Meu sangue podrado jorra pelos amanhãs.
Sangro liberto e vai amanhecer.
Os conhecidos vão embora.
A barca apita formato valsa.
Minha amada vira ostra. Eu, vala.
(A refletir em suas águas mornas
a criança apavorada que se afogou pelos ares.)
A cidade me seca entre cabides de vento em pó.
A poça de sangue assusta e acalma, apaga:
A morte inevitável desata a trabalhar
até que eu acorde.

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z e h g u s t a v o

FÁ B U L A D O A B I S M O P R Ó P R I O ,
EM TOM MENOR

I
A noite deserta não deixa presépios para o sol.
Eu tenho um palanque-precipício pronto,
onde eu posso cair e esperar – a morte
é um sujeito mesmo estranho, sem nome próprio
em suas casacas quadradiças.

Conquanto debaixado, ando acimesmado


de mim. A morte imune que se dane com
suas casacas pra lá!

O sonho é meu.

Há um dialeto de intervalo, diagramado pelos ares.


Gestos ágeis do vento permitem aos convivas
que cada qual se sirva do cheiro acre do próprio lodo.
Isso é muito foda!

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pedagogia do suprimido

Em certo momento o ocre se veste de santo demente.


Sortilégios decapitam a velocidade das coisas. As
sombras se cumprimentam, impontuais. Nenhuma
carapuça já me serve de guia. Desse jeito vão me soltar
pelas ruas, para viver de outras trapaças comezinhas.

Será que depois dessa confusão toda que armei


(em mim)
os sentimentos retroagirão de seu estado de rochas
e pulsarão de novo em veias de sangue?!

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z e h g u s t a v o

II
Jogo meu corpo à frente.
Sem mais escalas, o sonho é meu.

Os cães estão a ganir seus gases.


A um passo do meio do fim
sumiram todos os bois-formiguinhas
e seus cartões de crédito
e seus cartões de ponto eletrônico
e seus cartões de visita
de quem está sempre numas de ida sem volta.

Nos meus sonhos os cães não farejam decretos


e os bois-formiguinhas perdem sempre no final.
O sonho é meu.

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pedagogia do suprimido

III
Uma passarinha aponta seus bicos
de seios rosas para a lua. As setas
esquecem suas senhas. Lotes
de lajes falhas se despem e avoam.
As lojas encerram suas portas.
Bola sete, caçapa do canto, bilhar!
Nenhum atalho, só trajetos.

Dou adeus aos bois-formiguinhas:


Tchau, otários!
Os cães, de lobos já não têm mais nada.
Sigo, só, sem, sambo. O abismo é meu.

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z e h g u s t a v o

O CONTO DO REENCARNADO

Caminhava, me repetindo,
várias imagens de um eu-próprio
buscante andador.
Dentre elas,
achei um corpo, findado.
Descaminhei: outro corpo,
só que menos, retalhado, moído
de vidas, roído de artes.
Não me chamei atenção no momento
daquele instante.

Mais alaranjado, perpassei


a cerca do pássaro que avoava
no acima da minha cuca
uns bons quinze olhares adistante.
(Não dá para medir o nada em metros.)
Não consegui mais: havia solidão
perfazendo círculos de terra árida,
pingando em forma de asas-grilhões.
O pássaro da cerca me nadava,
estático – e esteticamente.

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pedagogia do suprimido

Eu piquei mula.
Tinha que agir rápido
- e só parei
quando o primeiro corpo secou no entre de meus braços barcos.
(Era a criança de mim que rugia?)

Quando findo o turno,


não havia então senão o pássaro
e o segundo corpo, o mesmo;
os piores varões restados
pisantavam a terra do céu que escorria
das árvores, no rumo do mar alto exausto,
câmara lenta, tremeção,
papo furado, última estação.

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z e h g u s t a v o

PROCESSO

I
não obstar a dor de ser sentida
obstruir o caminho mais óbvio-fácil
bandalhar o esqueleto dos objetos herdados para sufocamento

II
acreditar que encabresto alguma crise
ter que meu corpo ocupe uma vida
pôr meus delírios a fabricar guisados de letras sonsas

III
enxergar os olhos do sonho permanecente
topar falar as línguas impopulacras
pesquisar cronótopos reagentes a tal estágio de massacre

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pedagogia do suprimido

D E S U G E S TA E M S U G E S TA

correr por fora da tocaia


partir pra dentro
mergulhar no asfalto molhado
perder sem arrepender
beijar no escuro
descer a escada em procura de seu infinito oval
sair de fininho
catar afetos no varejo
subir do poço vazio
depois tornar a descer
parar no último bar da esquina
repetir o fluxo até exaurir
tocar a fila aparte à indiferença
desfiar a memória com agulha fina
cochilar imprestavelmente
espiar os escombros
desafiar a medicação
seguir deixando a vida agir
chilrear chilrear chilrear

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z e h g u s t a v o

M E TA P O E S I A D O S U P R I M I D O

Se é para ser contempô,


então lá vai. Este indivíduo, que escreve,
convém retratá-lo como um expressionista surreal
em êxodo de si, depauperado de ismos,
retrô pacarai e deposto a compor uma
práxis comezinha, palhaça e guerrilheira.

Por gentileza, quebrem logo, pois,


minhas rótulas, e me desmascarem
em praça púbica. Só uma dúvida:
Vou-me embora cantando ou assobiando?

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pedagogia do suprimido

DA E S C O L A

a Marcelo Mirisola

Miri catava azulejo, para lamber. Isso quando molecote,


Mirimsola, meia-cueca. Azulejo ficou pequeno,
Miri foi e atacou parede. Lambia, enxugava
as lágrimas – independente de elas se manifestarem
aos olhos. Brincava também com elas, que afinal
não faziam sentido nenhum (como tudo).

Parede ficou pequena. Miri passou a lamber revista.


Revista era bom de lamber porque tinha lá umas
representações do corpo feminino perfeito,
e isso era bacana. Para lamber. E sonhar. E para outros
coisados também.

Azulejos azuis, filhos mortos, mongoloides sem


sorte, tias ouvindo forró num radinho FM de um domingo à tarde,
meios-fios vomitados, bancos de praça sem pombos.
Como as revistas, as paredes e os azulejos, as palavras
envelhecem e morrem. E a língua de Miri continua
relhando outros coisos para cutucar e lamber.
E virar livro. Livreco. Livrão.

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z e h g u s t a v o

Vez-quando, nosso bebo-autor ouve


a voz do avô: “Não mexa aí, Vagulino Mirim.”
E ele continua mexendo, de provocação:
repuxa sua linguagem torpe para cima,
sobe na latrina, avacalha com seu próprio
encalhe de condição e sapateia, espalhando
o merduncho e o cansaço do caminho brabo,
fosso avante.

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pedagogia do suprimido

(DES)EMBARQUE

o mundo todo lá fora


e eu tolo à espera
de coisas presentes, sem véu

o invólucro que se ressente


cambaleia de déu em déu
à cata do que ainda possa bulir

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z e h g u s t a v o

SUSPENSO

um assobio me entorta
sentimento lúdico
cotovia

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pedagogia do suprimido

TRISTÓRIA DE DOIS

I
Na porta da avenida
um coió assobiava;
Manoel Bocó catava Maria Nuvem,
e ela trancada numa laje de fadas e fossos.

II
No pente da amizade
só um café era possível;
não se fumava senão vitrolas,
largadas ao desbordoar dos laços.

III
Na parte de antanho
Manoel cultivava memórias no jardim;
ia se propagando uma epidemia de sono de tudo,
enquanto Maria Nuvem lia num sofá de lona.

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z e h g u s t a v o

IV
No prato da aurora
só um caroço que havia na manhã durmosa;
não se firmava outralgo,
senão um lampião vagaria no horizoponte.

V
No ponto dos hojes,
Bocó entrequantas se insatisdizia. Suas ruas
andavam suadas de desesperança.
Maria Nuvem irrepartira os rumos dos ambos?

VI
Na ponta de amanhãs
um carimbó assomava. Desensabida,
Maria Nuvem catava Manoel Bocó,
que se ira, ensimesclado de lanhos e lenhas.

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pedagogia do suprimido

O N D E S Ó R E S TA M P E DA Ç O S

I
a mulher, ela vai embora
não sem antes cegar o homem
e cegar-se, tornando-os despertencidos,
um e outro dependurados
de ponta-cabeça
no varal dos dias corridos

II
a mulher que vem embora
(de outro)
para dentro curtida
de si
a mesma

traz a carga que a faz partir-se


– é de tralhas que carrega
peito fundo de amor intruso
que a aperta
e sufoca

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z e h g u s t a v o

III
o homem continua
de poça em poça
salta fora bandido
de sina
sem meios

se permanece na cidade-barulho
– esta zonzeia com sua face de embrulhos;
preocupadiço, na beira depreda
a boca da mulher diante do precipício
e queima

IV
ambos tecem despedidos
seu fio-rasgo,

não há mais transes,


pois estão vendados

e o porvir é seco

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pedagogia do suprimido

GURUFIM DE UMA ÁRVORE

colo meigo
busto surdo
eu gozo dentro
o fruto morde
a terra frita
o corpo gela
o solo empasta
a seiva chora

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z e h g u s t a v o

A D U LT O S N Ã O E X I S T E M

a Godard e Brás Cubas

Um caderno de infâncias renegado,


preenchido de matéria escolar e buzanfices riscadas,
presumivelmente esquecido,
é capaz de contar e descontar a história toda de uma existência.

Decerto o menino educara o homem,


o menino que foi se truncando para conseguir criar
o homem;
o filho criara o pai crescido.

O homem que queria ficar menino


dentro do caderno de rasuras
e conhecimentos de gente grande,
o moleque que pisava leve
e corria solto:
pode ele perder o mote de desenhar palavras tortas
e cavucar lira boa?

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pedagogia do suprimido

A P I T O S PA R A Q U E M N Ã O FA Z
FÉ COM AGASALHOS

a Noel de Medeiros Rosa e Paulo Vanzolini

I
Há causas de mais
para somenos de tempo.
(A vida é só uma fatia casual.)

Quando comecei só havia um poema,


repedito muito.
Quando terminei, nem ele.

II
As palavras pedem sangue
e ele escorre.
O verbo berra bem
no oco que escondemos.

(Os ocos só fazem os ecos.


Ecos fazem sombras,
que fazem gritos,
que fecham parêntesis.)

A linguagem nos língua.

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z e h g u s t a v o

III
Eu me projeto
parando
aqui.
(O eu é só uma ilusão geral
em território maior de vácuos.)

IV
O fim do fio-filme me alude:
o dia vai mesmo estrilar?

V
O agora pede ficagem. O corpo vai me adiando,
no intuito de amanhecer da penumbra. Eu me vadio.
Só por essa hora bêbedo e saliente,
meu carro torto observa arguto uma dona leve
e suas tranças de algodão doce-perigo.

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pedagogia do suprimido

VI
Os turnos virados acarretam um termo viciado
(como o de todos, só que mais profundo).
Bem cedo, me desço de viela em viola,
decoro a ladeira com um último bigode de chope
e deixo a raiz do chão me devorar.

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z e h g u s t a v o

V I DA N E M V O LTA *

I
A vida é mesmo uma só, não volta.
O tempo que o relógio marca se esvai.
E de minuto em minuto, no conta-gotas
do mundo, cada momento é um retorno
prum nada.

Origem que não se sabe, destino que não se tem


– e o que resta tão-somente é sofrer de saudade.

II
A vida nem sempre termina com a morte.
Tem vida que se morre em vida também.
O tempo é um deus natimorto. Quem nasce
vai morrendo aos poucos a vida vivida
na morte da hora.

Origem que não se tem, destino que não se sabe


– o hoje é festa e o amanhã é um dia sem ninguém.

* Poema composto a partir e para melodia de Renan Sardinha.

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pedagogia do suprimido

C O N T I N UA

por entre os olhos


a mágoa de mar
amontoa seus pedregulhos,
córregos interrompidos,
margens frustradas

não há horizontes
sem o enfrentamento da correnteza,
nem sem que os olhos marejem,
vez em quando,
do sal que arde as feridas
e aguça o viço,
rumo à próxima topada

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z e h g u s t a v o

A S A G A - S O R T E DA E S P É C I M E T R Ô P E G A
CONTRA OS SERES EM MASSA

mesmo se-quando me entranho em seus antros


eu me permaneço estranho; só o vício-voz
é capaz de me enredar em um vértice
de ene vetores e mais de dizentas impossibilidades,
que eu vou tragando cuspindo
em meu disfarce de não-ator

minha face (re)marcada manca;


o olhar é firme-direto, escorreito,
para um onde de leitos macios-nunca,
aguados de vinha, comas que me aguardam
para alhures
(alhures é terreno fértil adubado em mente
dizem que insana)

alheios se enfurnam em fugas, eu me espanto


com suas fugas retas de realidades-ficção,
com direito a férias breves gozadas em
intervalos-curvas nos quais se aproximam
mas eu sou assustador, embora eu seja apenas
o susto, o busto do ventre-elo surrupiado,
ser assaz distante e logo, incerto e perto
demais, um tanto ontem-agora-já

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pedagogia do suprimido

prostrado cambaleio diante dos sãos-seus


que se enfiaram nesta tola rede
de rotinas-burgos, vida murcha em trajetos-fios
de uma mola que os enforca enroscados tensos

observativo, eu me despertenço disso


justo porque me entrego em (res)sentido contrário,
de horizonte em despediço, vogas-vieses várias,
perfazendo um desatalho arrebentado de naufrágios-giros

a onda (nenhuma, bolor, pá de cal) passa,


eu me viro sob o ar (raro-efeito) que me respira
e desvario sonso com meu corpo a desandar
pelo solo braseado, tosteando no forno lento-ágil,
à temperatura morna de uma geração de gelo

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z e h g u s t a v o

PÁ G I N A A V I R A R , S AV E I R O P E L O M A R

a Sérgio Ricardo

A sede não foi feita para secar;


trata-se de planta que rega a garganta
enquanto a voz resta entravada,
ou de silêncios que esmiúçam as
pálpebras de qualquer possibilidade
de sorriso calmo, ante o sofrimento que arremata
os trilhos-poros da carne-alma, toda.

O que rege a fome não vê hora,


sequer vislumbra logo um amanhã;
madrugamento arrefeceu o viço dos olhos
da espera, que não cessa,
e os olhos vidram, sem nem cochilo nenhum,
só um pranto em desidrato.

O sono, aliás, nunca vem;


se para a insônia não há cuidado sem bulas,
quem não desdenha da luta para a qual foi trajado
não conserva mais o desenho-desejo
do afago-sonho, tornado inútil.

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pedagogia do suprimido

O leito está vago, que jeito que tem?


A estrada, torta,
se inclina melhor por sobre os ombros,
que pesam e pesam o seu carregamento sem flores,
vaga sem mora, morada de estragos em desvarios altos
para além dos fastios diários, fatura que se paga no couro
que apanha guenta sangra cospe lanha berra e ri.

Cada droga-suporte sufoca no entanto o seu alívio;


é tempo de marcar um carnaval de ócios fluidos
para adiante, há um manto de cânticos,
inté-mais-ver-a-dor que o coro vai marchar destemido,
sempre e sempre, bafo de pinga e traço de gente
contra o vento-fuso e a dona maré sem prumo,
e é assim que um longo dezembro se esvai,
despedido entre vielas após o cortejo de amores mortos.

Manchado de vinho, vômito e viola o céu se recompõe.

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O sol nas sacadas
dos edifícios de
coração urbano

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Não, os comprimidos não estão me adiantando. (...)
Sei lá, sei lá por quê. Estou me lembrando de uma letra de
tangaço. Carregada. E em que o osso, o buraco e o nervo da
coisa ficam mais embaixo. Diz, corta, rasga que me quero
morrer abraçado ao meu rancor.

João Antônio, em “Abraçado ao meu rancor”

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pedagogia do suprimido

ESCANINHO DE NÃO-SERES

Um livro de amarguras me sobreassalta


– hoje eu vou sorrindo de teimoazia,
com meus pés zoteando por sobre os escombros
dos tantos outros de mim que abortei pelo caminho.

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z e h g u s t a v o

CENÁRIO-BRASA

a folha timbrada com os papéis


que me neguei a assinar (autoboicorte)
dança e cantareja suas transparências no espaço

a foto de um fato que eu nego


fareja meu subconsistente
de lembranças arredias (rol das desexistências)

duas fossas que me auxiliam quando tropeço


envergam fuzuês nos seus de-fora e só assim
eu fujo e forjo a farda para a briga (reamanhe-
cimento)

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pedagogia do suprimido

A R A D UA N N A S S A R

... e tendo eu exprimido todo o meu discordamento


e combinado comigo de tossir em cima
da carapuça que não me servisse,
atiraram-me para debaixo do tapete e
me pisaram com força de cotidiano;
meu raciocínio deve estar esmigalhado
em alguma página dessas

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z e h g u s t a v o

A C O N TA DA C A R N E

Tudo bem que minhas mãos me escrevessem.


Até vai.
Mas daí a minhas pernas escorregarem páginas
são outros quatrocentos!
Meu corpo tem falado demais.
Minha cabeça tá pendendo a virar papel.
Meus olhos tornaram-se recipientes de objetos.
Palavras me leem e me conotam para dicionário.
Tenho muito medo de virar um livro.
Preferia virar uma citação, ou uma nota de rodapé.
Um livro inteiro, não, nunca!

Meu peito vibra e toca percussão.


Meus brônquios falham intervalos musicais.
Meu coração manca o pulso das notas.
Minha voz desafina a música interior de meu corpo.
Não tenho qualquer harmonia.
O descompasso é um erro constante
no piano de meus dias.
Pois então, qual o tom?
Tava tudo bem que minha língua solfejasse
sons internalizados.

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pedagogia do suprimido

Mas: como uma barriga roncar integridades de partituras?


Tenho muito medo também de virar um som imenso
de volumes cantados.

Pra completar, minha memória


vem redesconstruindo lugares. Minha vida
fica de cenário. Eu sou o eu. Eu sou o outro.
Mudo de temperatura a cada cruzamento
de vias em caos.
Eu sou é variado, já me disse um médico que eu matei.
(Eu adoro matar médicos embora não.)
E, tá, beleza que eu protagonizasse um filme, o meu filme.
Mas: receio demais estar vivendo apenas uma cena
– cela única, ceia breve, festa pouca e tchau.

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z e h g u s t a v o

AU T O ( D E ) F L A G E L O E ( D I S ) S O L U Ç Ã O

caminhões alucinados pairando


na estrada abandonada
o esmo a se preencher de sentidos

eu dirigindo a minha carroceria


vaga em rota de fuga
por entre os cortes

sangrando
hirto
e rindo

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pedagogia do suprimido

CRASES HISTÓRICAS

Nas guerras há rapazes e moças.


Por dentre, muros ratos. Passam.
Transnoites complementam as tardes
– os dias não terminam.
A tuberculose e a hepatite assanham.
Há impérios entre classes e classes de formigas.
Deus reclama espaço quando lhe falta.
Uma enunciação não basta para eu desperdiçar
o que eu digo.
Somos raros no tumulto de berros e bezerros.

As algemas são aberrações de quem morreu


mas vai trabalhar toda manhã.

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z e h g u s t a v o

A EDUCAÇÃO DOS SUPRESSORES

I
De método cirúrgico carece aquele a quem é
conformado instituir-se como um supressor.
Seu bisturi é de corte virtual, o apito sopra por imagens,
seus apagadores do moral alheio pontuam
em projetores de arranque pausado, protegidos
pelo barulho tanto em derredor.

Supressores são educados para lanhar:


não deixam sujeira, só ferida. A faca brilhosa
que aprendem a manejar só cabo possui e oferta.
Seu gume só lâmina salta é do olhar de sociopata-boi.

Déspotas, veem novelas e se entopem de


batatas fritas, pré-fabricadas. De sobremesa,
uma gelatina.

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pedagogia do suprimido

II
Um bom supressor jamais descuida
da criação de robôs de geladeira e homens de plasma,
assim como de se manter informado sobre
programas de trânsito e previsões meteorológicas.
O relógio funciona para o supressor profissional
não como um dispositor das horas que passam sem fim,
mas como um contador do tempo útil a dispor
para a organização das coisas.
Um supressor acredita no que está fazendo,
mas isso também pouco importa.

O supressor é antes de tudo um prático.


Cavalo da objetividade, deve, além do nada,
nem se preocupar com o ser nem o haver-se.
Um supressor doma seus impulsos, adestra
a força implosidora, os amores brutos,
a intensidade tola com que muitos
tenderiam a perder seus dias em tarefas
dignas de espíritos ingênuos.

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z e h g u s t a v o

Por fim, um supressor médio-sábio – gênios


de qualquer arte são nocivos ao produto comum! –
multiplica e divide com os demais seu pesadelo são:
tratar com a seriedade de um ceifeiro o ofício
encetado de racionar a vida.

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pedagogia do suprimido

P E DA G O G I A D O S U P R I M I D O

Duas ou três dores não bastam;


são necessárias mais doses
do veneno do mesmo,
cinco ou seis horrores, diários.

Meia hora de trânsito


em nada interfere, precisamente.
A rotina de muitos perdidos
é que denota o engarrafamento-mor.

O tráfico de zero ou mil quilos de granadas ocas,


a banana oferecida à tragédia parente,
os donos de cães sem farelos
nem apetites-ossos,
– ninguém toca nem pende, para o talo
de ser, mais ou menos que outro ninguém.

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z e h g u s t a v o

Quantos olhos desacordados soam o sino,


é tanta a cidade que acorda vazia
– a gritaria torna a turba surda, logo muda.
Rua e nula vai virando a aura andante
que passa gingando sem rastro,
em desenredo letal pelo chão de plástico
de dias tão móveis.

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pedagogia do suprimido

AT O D E D E S P I R A R O U PA D O T R Â N S I T O

depois de golfar
eu engulo as
minhas próprias carnes chupadas
(vísceras de engodo
se escancaram pela manhã)

cansado eu fisgo e solto


o sótão das almas encarniçadas
para aliviar minha calma que mente

a ansiedade anterior morreu nua,


porque só existe, além de um sofá velho,
uma baía de esgotos
para que possamos lamber salivas vizinhas
no térreo que corrói as horas

um ex-trago me bate na fuça,


derramando-se por minha barba
de traços azuis e pontas de fibra gasta

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z e h g u s t a v o

suor fétido, calça rasgada:


eu descontinuo, ao passo que
crispas de soslaio amarguram as vielas
(tripas de rebarbas de vozes cospem no meu fígado)

há um lapso-intervalo
que age sobre mim, veloz;
e então eu volto

e caio
com o corpo em viés de luta
(vias de enxofre esganiçam altas hordas)

as vigas do naufrágio
tombam durante a noite-escrúpulos,
após a lida alienada;
lua interna sucumbe,
diária paga,
multa morta

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pedagogia do suprimido

VA R A L D E C A S A

saco de roupas no espelho frio sem jardins nas margens


olhos bem frustrados de sopa
uns tantos freios a calçar os pés,
desterro: mais um dia a nos enxugar,
porta adentro

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z e h g u s t a v o

VENTILADOR DE CHÃO

Sempre acho que o ventilador de teto


virá abaixo, cortamentando tudo
tão plasticamente quanto o Tarantino
oferta o sangue de suas personagens.

Tento me esquecer e olho de novo para cima.


Vejo o ventilador de teto vir descendo,
disposto a cortar tudo. Tão plasticamente
que eu não desejo escapar à cena.

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pedagogia do suprimido

RONRONANTE

entre morcegos
a história toca gaitas em agonia;
dos silêncios não se pode lembrar
senão a textura

entre mangas
a fome corta pedras em sopa;
dos trejeitos não se deduz
senão o padecer

entre marujos
a melancolia esquece espirros em choro;
dos abandonados não se espera
senão um deserto

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z e h g u s t a v o

SUICÍDIO SEM MELADO

estirado no chão da cama virada de lençóis tão vesgos


observo o fosso que existe entre as horas
mortas e as melhores

espirro álcool no motor do horizonte vazio que me rói


e o silêncio se mantém, o silêncio grita calado
por entre meus ossos

esbarro na sombra deixada pelo meu oco de vida,


escrevo um pouco, gramo outra uca
e me deito debaixo do chão

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pedagogia do suprimido

C I R U R G I A R E P E T I DA

silêncio pesa

corpo nesta hora é fardo


que agride

a dor que poda


eu já nem sinto

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z e h g u s t a v o

ENCRUZAS

A morte pode se dar sem fiapos.

Na restinga, deslembrado, dorme um sujeito


finúsculo, em escamas. Apenas alguns desfazeres
e uma lida, tola.

Em sentido contrário, os passantes. Pessoas


idas. Muitos afazeres contraídos
pela vida, planta.

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pedagogia do suprimido

FERNANDO TOLEDO E
N E W T O N C AVA L C A N T I

I
Fiz uma conta e descobri:
O novo só é gestado nu e descabelado.
O novo típico gosta a audições entredentes.
E gosta também a limbo, a gota, a chão.
 
Por sua vez, mudo que é mudo não cala:
toca instrumentos inexistidos
ou parcamente frequentados.
Mudo sabe bem a alma do mar
quando barco faz calo em onda.
 
II
O pintador Newton Cavalcanti
gargalhava trôpego e sincero
perante seus três conhaques
que não findavam, enchidos de si.
O escrevista Fernando Toledo encerrava
a noite trafegando ideias para
copos sorridos roucos.

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z e h g u s t a v o

Lembro que havia uma alegria


de fumaça torta no comigo daquele tempo.
E o bar ganhava uma aura!
As pessoas caíam e o sol nem sequermente
ameaçava proximação.
 
Eram filhos um do outro.
Certa vez Newton amostrou ao Fernando
um samba surreal que ele tintalhara
pra modo de homenageá-lo.
Toledo, birrento, detestou o cheiro da instalação
e escorregou impropérios àquela poesia
aquosa e musga,
espalhada pelos ares do chão
no teto que dividiam.
Depois se deitou no lavabo e dormiu.

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pedagogia do suprimido

III
Vai passando, e fica.
Caba que cede, ao ir-se
dos ventos. Nem se despede.

Memória a registrar:
a chaminé dos enredos-risos.

Mas todo bar um dia encerra suas portas.

IV
Há um luto que luta, apesar.
Uma briga que abriga.
(Os lugares são todos comuns, mesmo.)
A vida se esfrega no soturno
e segue, contorcida,
ausência adentro.

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z e h g u s t a v o

E eis que já passa um cado de tempo cedo que


Fernando Toledo e Newton Cavalcanti
se escaparam.
Moda: fabricar caixinhas de fósforo
de marcar vidências.
Jeito: chamegar fogo-som,
desentralhar chama-imagem.
Deve de ter sido isso o mote
da retirice desavisada, suponho eu
aqui do meu lado vazio.
 
Antes, porém, aqueles ambos plantaram 
um recado na porta dos cacos
à esquerda de quem fica, entre os assoalhos:
Casa sem poeira não fica de pé.

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pedagogia do suprimido

M AT É R I A PA R A A N Ã O - S U P R E S S Ã O

ao Terreiro de Breque

A morte é elementar demais para a morte:


apagamento leve, que enleva em sua subtração.

Mas a morte fica toda-toda quando, de levada,


adquire estatuto em vida: anulações em rota cega,
caprichos negociados junto ao naufrágio das vontades,
beijos débeis, linhas retas para odes bestas
ao conforto e ao mesmo, cantos sem alma, esconderijos
de boicote, corpos costurados em autoflagelo, seres
dóceis às jaulas, empedramentos, rotinas
(indispostas) em apertamentos-muros constituem
trancadiças de apologia à morte em vida.

O murro na morte também não a derruba:


do lado dela há muitos, em mutirão.
(O próprio sistema encobre a morte.)

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z e h g u s t a v o

A cela da morte, esbelta, suga a trilha,


cada uma, logo nula. O cadáver está sempre em
reforma. O catapulso da morte vai tolhendo o tolo
até alcançar o seu desistir-se. Aí é mole.

Lutar seja bom, não obstante a derrota


(em termos). A frota dos encalços distribuídos,
qual tralhas, pela morte ao longo do caminho vivo
costuma, entretanto, lograr respeitos aos trajetos
de mancos e mangadores, tontos e tortos;
estes perseguem a morte para atraí-la e surrupiarem-se
de seu destino de personagens-dejetos.
Assim é que a enganam:
respirando névoas rubras, bebendo em demasia
de sambas-fossos num terreiro de águas fortes.

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pedagogia do suprimido

G R I T O N O T E T O TA PA D O T O PA
C O M A G R AV I DA D E S E M T O C Á - L A

embora eu não levante minhas mãozinhas


para o céu quando o chão começa a tremer,
não dá para negar que meu corpo-só esteja
desmontando
diante de tanta negação-outra,

vielas encurtadas, vieses encobertos:

são vidas que venho encontrando


e enterrando diariamente dentro
de meu coração em trâmite
do doce para o amargoso

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z e h g u s t a v o

O R A M A L DA S H E S I TA Ç Õ E S S E M F I M

A vida não merece nossos sonhos


Antônio Fraga

A vida despendida gira em voltas


cujo eixo se desloca louco, pêndulo
no vento que trabalha o destino.
O rumo, tantas vezes, tem feitio
amarguroso ou, no mínimo, um jeito
ambíguo no acarinhamar, quando se faz.

O osso do rosto ruge e entope o tempo


que resta, com seus abandonos. O ranço
do que ficou sem tino tem na espera manca
seu consolo. A dúvida indevida é uma rota
que vira limbo, em vértice de ponto achado
mas partido. Distenso, o conto vai perdendo
o seu enredo, devagar para o nunca.

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pedagogia do suprimido

O modo de desvirar esse oco sem âmago


toma contornos indefiníveis, o olho
não está mais nu. A sombra jaz no ambiente
pegado em pouco afeto, que se permanece.
A linha invisível, para a dissolução do estado
vigente, encontra-se ainda rabiscada, em voga
porém silenciada, sob escombros, em febre
dissidente. Falta o passo, um primeiro e sonoro
Basta! – mas quem é que vai?

O sonho adormece, então. Sem explicações,


mas ainda sonho, ainda vida, ainda espera. E só,
entre as sobras de um saldo liquidado.

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z e h g u s t a v o

TEXTO-RÃ

Lábios em roxo, o frio nas mãos


e a fratura pelo freio exposta na ponta do nariz.
No dorso, estrada; espinha nos olhos
reflete alagamento contido, mundo rijo.
O cio é cuidado em tranças e trancado em estojos
de maquiar; contra os riscos, a maquinação
e o nada desvario (este vive mais calado
mas sabe o que tá fazendo).

O medo treme a vida, que tramita


mesmo com a outra mantida à espreita,
aquela silente, vinda dos dentros.
A espera, por fora, entremeia o que
a selva interna aguça para provar logo mais,
no aguardo do rio que vai desaguar (já está
anunciado nos melhores microjornais!),
lambendo tudo em seus entornos.

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pedagogia do suprimido

Sua foz, na tez, observa o desenrolo e


troça, angariado. E daí observeja,
até que se despeça rumo àquele tempo-espaço
de trocas e sabores, noites que falam alto
e berram suas pequenezas e delírios tortos
em desagravo ao resto morno das outras,
que jazem, escolhas mortas.

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z e h g u s t a v o

A S O C I E DA D E D O E S C A P E ( I I )

a Raoul Vaneigem

Toda a morte atual se concentra em um anuário


de desencontros. O desencontro é a unidade da fuga,
o jugo autoimposto a que se submete o corpo
vagante do escravo que ainda respira, por (tão) pouco.

A desistência demove o participante quando


diante de seu próprio jogo, e consequentemente
da sua possibilidade de achar o que perdera,
sem saber, para a rotina que centrifuga
sua experiência. O fracasso sentimenta
a passagem nula, pelo mundo,
da zumbizada operante por imagens.

O espelho-tevê dos vivos-mortos se estrutura qual


um abismo colorido, cumprido com negações.
Nesta peça em desenredo, as trocas se dão por via
digital, com toques de luva consentidos entre
peles de plástico, tapas sem ardor nem graça,
trepadas sem odor, redes de humor
sem húmus nem torpor.

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pedagogia do suprimido

A reta da corrida se enxerga de olhos tapados;


para cuidar as carências, os prazeres convergidos
ao virtual pelas feras bestas acanhadas,
o canto seco e opaco entoado
em um vale de lágrimas contidas e risos amordaçados.

Quando a noite termina, os ratos voltam


para suas cabanas-apês, para se esquecerem de novo
de si, e zerarem também por fora.
Na jugular, só a marca, apenas a flor-ferida de outra
chance perdida de contorno da morte em vida,
um sertão de desertos e seu rosário de desterros.

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z e h g u s t a v o

P O E M A DA S C I N C O DA TA R D E

risos de manteiga de cacau


bolinam flores entorpecidas,
olhos atentos de acaraú
perfazem o teatro ensimesmado das gentes;
ao fundo, os ecos de vozes-rios,
antejanelas da origem destrancada

troças e assobios
operam decomposições em tijolos trocados,
queridentes de um lugar-futuro diverso do de agora,
em ritmo de relógios difusos
que assustam o trem das horas natimurchas

perto de um fim-início há um silêncio alongado,


um cachorro ganindo sua tendinite
em pleno oásis de ossos
e um dia que não acaba,
amanhecenoitece em sentidos musgos,
entre não-palavras e palavras-sim
imaginadas durante o desenterro dos beijos

e chove muito

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pedagogia do suprimido

CASA DE CAMAS

A cama trepada por toda a casa


alargava.
Por desembaixo, sombras de variadas
espécimes alagavam o que restava
de habitamentos.
Os lodos faziam progressão geométrica
nali. As paredes se ouviam
dentre os silêncios, até o teto.
Logo se vê que não havia espaço
para sentimentos que não deitados
nos entraves de uma escuridão
aquosa e insolúvel.
(Mas os sentimentos teimavam
em haverem-se, indassim.)
 
Por mais que uma montanha cumprimentasse,
à tarde, a janela solitária que se residia ocamente,
os olhos não viam a montanha nenhuma.
A janela era fortemente frágil,
estilhaçadamente inquebrantável. 

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z e h g u s t a v o

Vai daí que as pessoas,


elas entonce tratavam de envergalhar os olhos
para os ouvidos das paredes escorridas de ruídos.
O cheiro daquele enxergar memorialístico
das paredes fazia um bem danado às pessoas.
(Será que todas andavam de bunda virada pra lama?!
Não me alembro.)
 
A verdade é que, como não podiam mais outrarem-se,
tampouco tocavam pífanos, nem tubas.
O solo vinha de dentro, bastante sentido e entristado.
E a cama crescia, gozada de alicerces em SPL
(Sombras Paredes Lodos).

Aos poucos os sentidos foram resultando


em formigamentos. A janela firmava de dor.
Já a casa...
A casa, toda a casa, logo foi ela
quem sumiu dentro de alguém.

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pedagogia do suprimido

ABANDOLO

sou capaz de compunhar três sambas de dor em um mês


esse mês morre mesmo assim

o composto das sortes é acondicionado


em temperatura mórbida

esse tempo é de abandolo


córrido é o dia
do capataz de programas sem ardor

cão doente é o homem fiel


ao sistema que controla
seu horário interno
sua veia velha de guerra

sim sou incapaz de trocar o turno das coisas


mas faço três sambas de amor de uma vez

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z e h g u s t a v o

O AMOR SUPRIMIDO

o que era para ser esbarra


num cisco-soluço em piscina curta;
súbito vê-se inundado,
há um oceano que o esmaga de palavras vagas
vazadas por filhos da puta que riem gordos
num vídeo barulhento com sinais
de miséria luxenta pelos poros e tiros

não demora e jorra um sangue limpo,


a tortura é híbrida, húmus oco

o que era para ser esbarra:

a) nos olhos da vítima assaltada pelo medo (de ser);


b) nos beijos amarelos do algoz diário
que se deita em sua cama de molas frouxas;
c) no sexo meia-boca de toda noite;
d) no investimento sólido do casal no banco;
e) no soco do cedimento da alma
por tão pouco

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pedagogia do suprimido

seu sol seu visto


seu ócio de cova rasa
restam mórbidos em transvarios de sonhos fortes
a tara contida
a gana que fenece a cada acordar
neste giro sem sina
sem sal nem viço

o que era para ser


durou apenas um intervalo,
tornou passado,
joia ex-rara

o que era para ser


virou cisma, apenas,
plantagônica
que se rasga
em fogo brando
para ter o gosto de sofreviver
um pouco mais

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z e h g u s t a v o

MUNDO Ê

À espera de dias vermelhos


sopram adiante nossas velhas cinzas.

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pedagogia do suprimido

AOS 50

minutos do segundo tempo


ou aos 12 segundos de idade
compus uma infância fetal
para viver
minha desmemória
e assim me defender da
zumbizada em volta

aos 30, menos ou mais,


essa infância se inertenizou
e foi então dependurada
num subúrbio gentil
de cantos tortos
para mode causar
admiração de vespas

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z e h g u s t a v o

P I A DA I N T E R N A

eu sou o mim-negado
frêmito do fel à sombra
rosto demo lelé em asfixia

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pedagogia do suprimido

ENCALHES

A caravana persistente desvenda


um catálogo de explorados a cada visita.

A coleta sela um compromisso


entre extirpados; só há silêncios
neste varal de desistências.

O calejo revela um contingente


de adormecidos em órbitas de suor.

Nenhuma voz, por enquanto, foi capaz de ceifar


aquilo que sustém novelo tão infame que produz
o costume de costurar-se a si próprio
(bocas olhos ouvidos tripas),
que se impôs e impera, lento no sufocar,
com seu sopro de ar letal a comprimir
todos os ossos. De ecos e fósseis são feitos
os que restam.

Empreendido mais um turno das pedradas;


emparedadas, embora sem termo, as alternativas
de trajeto distinto, ao final só se veem
estilhaços e espatifados, em manutenção de sua
corredeira de negações.

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z e h g u s t a v o

MUNDO É TEIMOSIA

o tempo é um traço, não existe;


o que existe é o moinho de quem insiste
e a herança das traças, por sobre o percorrido

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pedagogia do suprimido

A SABEDORIA DO JÁ-MORTO, PORÉM


A I N DA E M E S TA D O D E C H U T E

Saber como se dá a morte não faz, necessariamente,


bem ao vivemundo
– embora seja sua única chance de escapar.
Essa pedagogia tem sabores próprios, alterna
seus meios, joga e é assim-assim com a sorte.
A energia posta no entender este muro torna
o indivíduo um pensadoido, um escrevinha,
um ser andrajante – e isso não é bom para a morte,
que vai reagir. O mecanismo mantém protegentes
do sistema letal de prontidão, a vigiar os atos, fabricar
os fatos, e a cabeça que se verte contrária
leva pancadas sutis e fundas, com seu corpo
reivindicador a penar ébrio à procura de base
para seu tropeçar gingado, única estratégia de engano
perante a desdita que se reforça, dia após dia.

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z e h g u s t a v o

De fora, a pressão só aumenta. As armas massacram e


vão entocando o sujeito para seu dentro, inda que berre.
Sua expressão tende para a morte, conquanto
discordante, com o tanto que luta
e sinta tudo. Essa interioridade em expansão, última
válvula da vivência por sobre a morte, é carcomida,
em quase-sempre, pelo cansaço da peleja. Ao final,
ou próximo dele, a morte, vitoriosa, toca o sujeito
para escanteio, ele mesmo desprovido de forças
para atuar contra o seu destruinte
ora internado, voraz, dentro de si.

O dado interessante, que faz com que se invertam


os papéis, com a morte, agora, procurando entender
como um seu neofiliado ainda chuta, é que o indivíduo
já derrotado, porém infiltrado acerca dos desígnios
da morte, em vida ainda, portanto, sorri, de deboche:
de soslaio, inventa noites e palavras, brinca
de sobe-ruínas e segue de copo na mão, bar após bar,
enruado, lanhando sangue por bairros enfumaçados,
cambaleativo; até derramar-se, de todo.

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pedagogia do suprimido

BÊBADO

a Fernando Palhaço

I
Meu bêbado segue sob forte massacre.
Ele me chega em casa todo dia exausto.
Não dorme, deita rosnando. Fica a acordar
ao longo da madrugada e, quando finalmente
é posto ao despertar, mostra-se ainda mais destruído.
Bebe café, pinga colírio e vai consumar o dia;
sob o forte massacre.

Meu bêbado é fraco. Não sabia que era


tão fraco este bêbado franco que ranqueia dores
no corpo-dó,
qual equilibra seus cabelos raros
pela penumbra velha das horas vagas.

Meu tempo engole meu bêbado.


Tenho dúvida da existência de ambos,
mas confio mais na existência do meu
bêbado fraco franco frágil que na do meu
tempo flácido frenético frígido.

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z e h g u s t a v o

Meu bêbado ogro drena o sangue silencioso


que esse meu tempo oco finge não derramar.
O tempo expira. O bêbado vai tragando.
Seus bens de bêbado são beijos depenados
de um amor sem lugar no tempo. Seu lugar,
biroscas depredadas onde o vento que trabalha
para o tempo não adentra, só cobra à saída as
horas pendidas. Bêbado, envidraçado; posta-se,
debaixo da lua, curtindo trapos e tangos
e troças e tremoços,
ainda preparando transas com o que lhe resta de tempo.

II
Vidrado segue o meu bêbado forte sob massacre.
Não sabia que era tão forte, fraco. Não sabia
que se sofria tanto, dentro e fora de si. É de manhã
e ele me sinaliza algo sobre o sol da feira por que
passeamos e eu lhe pago um caldo de cana, o pastel
ele não quer – já não tem gosto, massaroca vaziúda.
Muita gente assim que passa, também.

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pedagogia do suprimido

Doravante é cumprir tabela, com tantas mortes


pesando nas costas rasgadas de lembranças.

Um dia o meu bêbado vai, de vez. Ficará o seu


último chapéu, guardador das suas sentilezas – o seu,
o meu último abrigo, sob forte massacre.

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z e h g u s t a v o

 N I M O V N DA L O

O vândalo é a voz que se insurge ainda em estágio


de descalamento, de grito desrecalcado,
de uivo que penetra
os vãos do vento ordenheiro e pede passagem,
polo humano-urbano alcançado após se principiar
uma tentativa nova de dessupressão,
por parte do ser desvivo.

Vândalo se faz rio da vaga que tudo pode tomar,


argamassa que prepara a terra para edifício vindouro.
Vândalo se desloca e desaloca as coisas de seu lugar
de vício e vileza. Vândalo institui o desafogo
ao desabrigo, um hangar para a angústia
que planava sem gosto pelos ares,
zero que se assume um, um que se percebe mil e mais.

O vândalo é o poeta encardido diante de seu precipício


postergado, é a hora de se jogar, o sopro reacendido
quando se vislumbra no horizonte o monte
que se achava perdido no mapa.
É o rosto da malta-plebe, dos pingentes e pobres-diabos,
reacionados de vigor, reincorporados de si.

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pedagogia do suprimido

Monstro! O vândalo assobia uma canção e ela


é bela e faz chorar e faz doer também. Vidros
não se quebram por merreca. Bancos não pegam
fogo à toa. Amém aos policiais confinados chupando
balas de borracha! Uma salva ao estilhaçamento
da desalma dos supressores de plantão!

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z e h g u s t a v o

V I V E R S E R E S TA

a Eduardo Gudin e Roberto Riberti

O ventre do velho ateu guarda o pó abandonado


na beirinha atômica dos tempos,
com ciência de vir do pó que ao pó retorna.
Contra subserviências, revolve o vento,
descobre as atas recônditas
das combinações espúrias do sagrado,
reinventa e obra, malgrado o sangue que jorra
de suas púrpuras e o faz pulsar, dor adiante.

O velho ateu subverte aquilo que vige a espoliar


quem sofre. Incomoda, não se amolda fácil.
Seu sopro emborca a fome dos que têm raiva;
a barca de sua sede se embebe de canto
e dispõe de seu dorso
para errar pelo trajeto que houver – e intentar e tentar,
isso sempre, mesmo que se torne
um sem, um quase, um só. Seu movimento, atento
ao longo do curso do rio caos, é brisa pesada
– sua reza perdida é para um Deusvio, em devir.

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pedagogia do suprimido

A brasa é o fato que veste quem se despe


do manto do medo e enfrenta a corredeira,
mesmo quando atingido pela correnteza.
Poeta da noite, enxergador de sombras,
o velho ateu não se dobra. Verve isenta de mão única,
pode um mero chapéu compor a sua túnica pagã.
Quanto tonto, anda torto, sim, porque sincero
é o que cambaleia, livre é o trôpego em seus desapegos.
Porém não cai sem que chegue ao cais. Insiste.
Na margem, age. Pelo que urge e sente. Não só assiste
e espera. Se preciso, ruge, lida, luta, muda.

Interrupção do vácuo é a vida preenchida


pelo velho ateu: vírgula que torna o discurso palatável,
tecido de fios vários, veia solta, vela que
apronta e desaponta com o corpo a navegar,
córrego de artérias pululantes, via de amor e lira,
seresta que percebe o amanhã, pegada
nas manhas da terra,
vez que vale pelo rastro: voz que não se cala
a germinar o caldo-arte do que virá.

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z e h g u s t a v o

A COR DO EXÍLIO

O barco que aporta sem ancorar


os sentimentos que deporta constitui
uma vaga mansa a transnoitar o corpo
para o onde em que mora distante
quem lhe espera de retorno.

O copo que não ousa por ora transbordar


contém o fel que se resguarda, após
forçosa partida. Nada dessa água é líquida
o suficiente para diluir o sentido do laço
perfazido no idílio.
Quem chega só vem em parte.

Se é aceitável, na forma, tal aparte,


o teor desse aniquilamento consentido
funga o pó do sofrimento sem removê-lo;
as aparências desenganam, o sorriso é amarelo.

O sonho ainda falha. O pulso quase que cala.


O sono está carcomido. A poeira não baixa.
O solo cede ante as pisadas dos pés que teimam
em continuar na lida, embora sem estômago nem sede.
O olhar viaja.

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pedagogia do suprimido

Perto-dentro, quem age é a saudade


da terra perdida, quem fala é o suor que bafeja
no colo, a lambida de felicitude cuja completidão
se acha extraviada. Os órgãos viraram vigas em decepamento,
as vísceras expostas no mercado dos ossos de vidro
estão prestes a pôr tudo em desabar.

Marca a pele da memória um beijo proibido,


um amor secular que molha o passar dos dias
com seu ritmo lento de algoz cujo véu
arrancado revelou uma vítima terna e acuada,
bebê do tempo esquecido debaixo de um céu nublado.

Nessa página de exílio costurado tenso


se pode contudo ensejar o porvir, via projeto-curva
de ato corajoso que se tem a tomar, no logo prazo:
o voo derradeiro, a volta à vida tesa,
novamente querida, ao som
de violões e sob a lógica de um desvario ameno,
um alheamento lúdico, o corpo em sexo de alquimia
com seu lugar-origem de carícias, sem mais dolo
nem abandono, nunca mais solidão.

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z e h g u s t a v o

NA GARE, COM DELIRIUM TREMENS

meu eu apagado se empresta


aos préstimos, volume de elo
rompido com o selo
com o qual atribuem
como verdadeiro o real-fantasia que corre
pelas ruas arrebenta o sangue enfeita os egos

o meu desemprego é o de todos


mas a prostração assumida é só minha, ninguém tasca!
não dá mais que me atiro no extremo
trêmulo da ligeira unção do que moraria
ainda como vida, na cidade-fantasma

meu ócio é tão-somente desterros


dolos em lodo espalhados ao
longo do infinito
da avenida que entope
de carros-poeira zuniiiiiiiiindo desalentos

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pedagogia do suprimido

eu me exprimo em papel-tela
qual prosa já sem contador nem personagem
só fatos tortos jorrados em borro tarde morta
tetos em desabares sob picotes-edifícios do céu
texto surrupiado
sem tronco

junto a mim apenas trombolhos


andarilhando
e meus sonhos que só remetem a pisca-piscas enterrados
na areia da praia de criança
que rasteja pela terra da lembrança arredia

ainda farejo o solo,


no colo um trem de brinquedo para quem quiser partir
em gesto infértil sacolejo minhas saudades
seu gosto de tudo
o gozo padecido sobre o nada que somos
então parto marco padeço
meço que
todo adeus pode ser gentil

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z e h g u s t a v o

e brinco, manco
bronco e brindo
abro a mão desfaço o soco
fica o som fito o sol
vou-me só

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pedagogia do suprimido

O S O L N A S S A C A DA S D O S E D I F Í C I O S
DE CORAÇÃO URBANO

O sol vai descendo rasgando a cabeça


dos enfermos. Apitos estrilam, buzinaços
conclamam para a conformação dos termos
e términos. A luz trabalha em turnos
ininterruptos, que nem homens,
que nem mulheres, que nem crianças.
Que nem máquinas.

Os cães ladram e as caravanas lucram. Os covardes


deitam de camisa para dentro e mochila nas costas.
Os bêbados se queixam e choram no meio da rua
enclausurada entre prédios, a rua cujo destino-trânsito
vem de vias abertas que se foram congestionando
até perderem por um ralo destapado as suas veias,
vértebras, vozes, vãos, vieses, vômitos, vísceras.
A rua soluça. Ninguém pode atentar para nada
passando assim tão rápido.

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z e h g u s t a v o

Por outro ângulo, o logos triunfal:


números, sistemas, paralelas.
E loucos que perseveram perpendiculando as coisas,
cruzando qual cachorros, ganindo que nem deviam fazer
os homens, as mulheres, as crianças que trabalham
em turnos ininterruptos para as máquinas
que fazem os números, os sistemas, as paralelas
sem ruas-outras. A luz da lua também apita,
em retirada.
E o sol novamente vem descendo para rasgar
a cabeça decrépita dos internos pois terminou
mais um dia e logo vai terminar
mais uma noite também.

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pedagogia do suprimido

A D O R M E C I M E N TA

Dói o meu ouvido direito.


Percorro alucinações. Revigoro a convivência
com defuntos presentes de minha história.
Beijo um dos fantasmas na boca. Mordo os seus
lábios frígidos de calores passados.

As pessoas são entornos que me correm


contra.
(A meu favor têm as que se embriagam,
insatisfeitas e emocionadas
de uma dor-beleza de verdade.)
Do lado de fora da carcaça
ora estou invisível, ora sou deplorável.

Mais uma moça se prepara para abandonar


meus lençóis vesgos e meus lenços puídos
de choro costurado.
Volte mais tarde, baby.

Não tem mais ninguém.

Eu volto para minha cama ensopada de febres,


sem fé mais em nada.

O que que há?


Alguma coisa tá sempre faltando.
Alguma coisa muita coisa.

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z e h g u s t a v o

O destino me acena confirmado.


O desatino me aplaude oninquieto.

As águas me rebanham para dentro.


Ondas cortesãs me adotam, me acolhem
com seu céu permanente de oscilações de humor.

Um lusco-fusco me prevalece nesse momento novo


de término. Já posso sonhar de espelho.
Um último tesão amorosamigo me acomete.
Os corpos continuarão as suas vagas cheias de prosa
mas o tempo disso dura sempre pouco.

Estou surdo, mas ouço rumores:


a vida é só uma escada torta descendo.

Conto palavras, uma por nenhuma.


(A maior parte das tintas fundas do mundo
se escondeu num deserto.)

Os sons vão se perdendo mas


eu não aceito me despedir.

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Faixa-bônus

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Quando se apagam as luzes é que eu me vingo espiando as
estrelas, às vezes no meio de uma festa, em pleno comício,
com a presença do presidente ou de sua fotografia: os
tambores de repente surdos, aquele murmúrio de mar
noturno, cada um querendo dizer o impossível, os fósforos
acesos e as trevas (...).

Nos esgotos também corre a alma de um rio (...).

Campos de Carvalho, em “A chuva imóvel”

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pedagogia do suprimido

I N F O R M E S DA V I A V I VA

I
O defunto é mortinato: tem a sorte de gerar
livros árvores, cantos de brisa e até prantos
só de lira e riso.
Pós-ocaso, renasce, veste-se de linhas renhidas
e opera, frutifica. Floresce pela voz rouca
que entoa guerreira
uns cânticos loucos em louvor às margens insubmissas,
próprios de uma parte do mundo que fugiu
de ser aterrada para consumo e insiste em germinar.

E, dum nada-átimo de tempo gélido, sopra vento


fresco. Faz-se um milagre: o vil se torna
um véu que, deposto, escancara face obscura
de tormenta de que o poeta-homem
deve livrar não só a si, mas todo o universo!

Sua prosa é de espécime combatente,


ar comovido, samba de embalo que sentimenta
o porvir, sol impoente, desintervalo, lua
a brilhar fundo nos olhos
de cada ser movente em seu vigor de remontagem
de cenário aparentemente diluído
ao fogo pelo malogro.

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z e h g u s t a v o

II
A arma que se usa na briga rima em direção contrária
à do rio leso de tino tragicômico. O sono mórbido
de barulho atômico se quebra por um chamamento
de amor à causa-vida, pela entrega diante do
itinerário-sonho, refornido de brasas.
O vate se regenera em si, das suas mar-
gens, suas personas, seu menino
de olhar para as coisas
na sede de rebuscá-las em essência e viço,
esse isso tão denso que jamais se deveria
deixar abandonar pelo caminho.

A tez infante deste ente que se retoma pleno


põe-se a amortecer o peso do pesadelo antes
penteado sobre as costas, ministra o remédio-apelo
para que seja superada a coça ministrada em dose forte
pela rotina que apaga e desmancha, cansa.

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pedagogia do suprimido

É a hora e a criança artista, via viva, lhe repuxa


um gargalhar ingênuo-intenso de dentro
para fora da alma combalida,
pede brincagem e se instala para as lutas vindouras,
ocupa com jeito o peito então amargo e aflito.

Eis que o artesão que graceja de demiurgo se reacha,


e de pronto não rechaça a peleja que venha. E age,
em prol de sua obra-filha que caminha por aí brejeira,
brasilínea, fiando as contas na troca-soma
das histórias que apronta, em desafio.

Embaralha-se, mas sedimenta; se perde,


mas perpetua.

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z e h g u s t a v o

A FA C E D O E N L A C E

a Caroline Peres Couto

I
Um luto, para ser morto, necessita de que
não se use de disfarce; deve pois ser encarado,
e seu leito, sacudido.
Pois que surge outro rosto vivo da mesma face
da parte parceira que zumbia, fracasso
andante, tombadilho rouco, coração
de vidro espicalhado. Lata velha carcomida,
isso que era! Cachorro ganindo roto, órfão afoito
lambido de praga, desamigo, ensifinado.

Essa outra parte, da parte morrida, vagava, também,


moribunda, anestesia, sobrevida apenas, teimosia:
em água inerte, fogo não ardia. Tanto quanto consumida,
ia-se, mal consumada, pelo tanto que podia. Faltava-se.

Entre as vistas, o enlace, denso, íntimo, âmago.


Rosto a rosto, sem vestes, é reposto o amor teso
oriundo de um tempo não findo, tipo
outroramente, infinito, plano esguio e fundo.

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pedagogia do suprimido

Resulta, da ungida junção, qual cartas


dispostas no tabuleiro dos encontros:
face quente, nua, que fulgura, ora una.
Destino pôs aprumo nos rumos. Falharam-se;
hoje abundam, recheosos de ambos, em
guarda-espera de seus futuros, olhos
e corpos formando espelhos mútuos.

II
Distância que glosa é mera geografia:
pior distância é a próxima, se em vazio de paixão
se mora. Já a hora lá na frente se alcança,
que sentimento puro é criança que não fenece,
só cresce e apura seu sabor e lume.

Os olhos vez-outra marejam,


mas perto está quem não se deixa apartar.
Se a saudade aperta, mesmo sob torta regência
a via se cumpre, pulsa e nutre, se afina pela cor
do que supre. No cais desse porto-amor,

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z e h g u s t a v o

casa dos sonhos remontada, peça por peça


a vida se retoma, na veia. O ponto achado
não se verga, nem quebra, está sob reza forte,
fez seu norte no tempo e no vento. Doravante
o barco se rema é à vela, belalumiado.

Sobre o chão da cidade-caos, uma vírgula:


livros, cios, bons delírios que anunciam sua chegada.
O verão que trate de secar os choros,
a chuva que molhe
os poros e vãos. Haverá decerto lírios pré-
dispostos para nova Construção, então lá vamos nós!
As mãos seguirão entrelaçadas, semeando atentas,
espalhando da sua chama, pró-
criando, amuitão.

No último canto da página, dá-se adeus


ao pranto: até um dia!

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Este livro foi composto
em Electra LT pela Editora
Autografia e impresso em
papel pólen soft 80 g/m².

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