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R io de Jane i ro, 2 0 1 5
pedagogia do suprimido
Zeh Gustavo
2ª Edição
Novembro de 2015
ISBN: 978-85-5526-XXX-X
INTROGOGIA, 13
O quinze-tudo
INTERDICÇÕES, 18
RÉ FLEXOS, 19
CRIANSCENDÊNCIA, 20
LONGÍNQUO JARDIM DAS INFÂNCIAS RABISCADAS, 22
SABIÁ SABIA JÁ, 24
MENINO ESCANGALHADO VISITA UM CEMITÉRIO, 25
CLASSE DE ALFABEATIZAÇÃO, 26
AO PIANO, DONA EVA, 27
TIA EULÁLIA, 30
O QUINZE-TUDO, 31
TRANSCIRCUNFERÊNCIAS DO PODER, 32
RAIA A NOITE QUE TUDO EXPÕE, 34
VASO DE INSÔNIA, 35
CONTO FUNESTO, 36
MANHÃZINHA, 37
O TAL SONHO, 38
FÁBULA DO ABISMO PRÓPRIO, EM TOM MENOR, 41
O CONTO DO REENCARNADO, 45
PROCESSO, 47
DE SUGESTA EM SUGESTA, 48
METAPOESIA DO SUPRIMIDO, 49
Faixa-bônus
INFORMES DA VIA VIVA, 136
A FACE DO ENLACE, 139
a Renan Sardinha,
à Vida,
INTROGOGIA
I
O futuro dos oprimidos e seus opressores, todos
operários vivos do sistema torpe construído
para a negação final das vozes, era o alvo alto da ação
didática de Paulo Freire. Invocava-lhe o espírito-mestre
a interrupção deste fluxo, em prol da erupção de um
homem-mulher consciente e despido da condição
aparentemente sinequanótica de vítima-algoz.
Eis a peça-tese para um educar libertário:
instituir-se uma Pedagogia do Oprimido.
13
II
Primava aquela Pedagogia primeira
de mui maior esperança que esta, que entretanto
ordenha, sim, suas aguardânsias, e as traga
como uma draga perdida, autoprivada das asas.
14
III
Profeta, Freire supunha o vínculo-vício
que aproximaria sectários de esquerda e de direita,
oportunos ambos aos turnos de um trabalho
executado com vistas
à inanição das almas e organismos,
domesticados. O ritmo da inércia o que forneceu
foi toda uma pedagogia dialeticamente orquestrada
para a fermentação e superação
do ser de energia vital.
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INTERDICÇÕES
18
RÉ FLEXOS
19
CRIANSCENDÊNCIA
era tevê
e a criança aprontava no prato;
a mãe ralhava, disso:
20
21
L O N G Í N Q U O J A R D I M DA S
I N FÂ N C I A S R A B I S C A DA S
I
toldos calmos
me cobertam
enquanto
palitos de mola
me cortam
perfurando os meus eixos
II
tolos calvos
me cobram
conforme
os seus revólveres de boca
me curram
ao passo que preparam a manada
para o mercado de trabalho
22
III
todos calados
se cobrem
embora
tenham páginas de menos
a correr
no tempo que urge dar cabo instantâneo de tudo
23
SABIÁ SABIA JÁ
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MENINO ESCANGALHADO
V I S I TA U M C E M I T É R I O
25
C L A S S E D E A L FA B E AT I Z A Ç Ã O
26
A O P I A N O , D O N A E VA
I
Dona Eva era braba. Lecionava música
e castigamento. O castigamento era
o aluno, fanfarra ou colhido a esmo de exemplo,
segundo um barulho denunciante e qualquer,
ficar plantado frente à parede, sussa sussa,
qual cão defronte à sua televisão de galetos
em padaria das antigas.
27
II
Errada vez, fui eu o pego. Descostumava,
desses dissos. Parede! A turma se aquietara.
Os sons sumidos, contados sopros
em esvaziar de turbilhões: punição. Só eu ali e
meu ouvido mouco, diante do horizonte pintado de
branco-rabiscos.
28
III
De início me reprovei, de cair no ato
de me isolarem, qual bagunçador; desse doravante
com carimbação de empedernido, sapeca, ora digo,
calcado em meus despois:
té que gostei da experiência de ser a margem
da pauta alheia, badernudo das claves tortas,
suspeito de ruaça ante a fadiga da ensinação
rançosa, cacarética, formol.
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TIA EULÁLIA
30
O QUINZE-TUDO
Eu olhava longe.
31
TRANSCIRCUNFERÊNCIAS DO PODER
32
33
34
VA S O D E I N S Ô N I A
como dormir
se pressinto acordar
ainda pior?
35
CONTO FUNESTO
36
MANHÃZINHA
37
O TA L S O N H O
38
39
40
FÁ B U L A D O A B I S M O P R Ó P R I O ,
EM TOM MENOR
I
A noite deserta não deixa presépios para o sol.
Eu tenho um palanque-precipício pronto,
onde eu posso cair e esperar – a morte
é um sujeito mesmo estranho, sem nome próprio
em suas casacas quadradiças.
O sonho é meu.
41
42
II
Jogo meu corpo à frente.
Sem mais escalas, o sonho é meu.
43
III
Uma passarinha aponta seus bicos
de seios rosas para a lua. As setas
esquecem suas senhas. Lotes
de lajes falhas se despem e avoam.
As lojas encerram suas portas.
Bola sete, caçapa do canto, bilhar!
Nenhum atalho, só trajetos.
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O CONTO DO REENCARNADO
Caminhava, me repetindo,
várias imagens de um eu-próprio
buscante andador.
Dentre elas,
achei um corpo, findado.
Descaminhei: outro corpo,
só que menos, retalhado, moído
de vidas, roído de artes.
Não me chamei atenção no momento
daquele instante.
45
Eu piquei mula.
Tinha que agir rápido
- e só parei
quando o primeiro corpo secou no entre de meus braços barcos.
(Era a criança de mim que rugia?)
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PROCESSO
I
não obstar a dor de ser sentida
obstruir o caminho mais óbvio-fácil
bandalhar o esqueleto dos objetos herdados para sufocamento
II
acreditar que encabresto alguma crise
ter que meu corpo ocupe uma vida
pôr meus delírios a fabricar guisados de letras sonsas
III
enxergar os olhos do sonho permanecente
topar falar as línguas impopulacras
pesquisar cronótopos reagentes a tal estágio de massacre
47
D E S U G E S TA E M S U G E S TA
48
M E TA P O E S I A D O S U P R I M I D O
49
DA E S C O L A
a Marcelo Mirisola
50
51
(DES)EMBARQUE
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SUSPENSO
um assobio me entorta
sentimento lúdico
cotovia
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TRISTÓRIA DE DOIS
I
Na porta da avenida
um coió assobiava;
Manoel Bocó catava Maria Nuvem,
e ela trancada numa laje de fadas e fossos.
II
No pente da amizade
só um café era possível;
não se fumava senão vitrolas,
largadas ao desbordoar dos laços.
III
Na parte de antanho
Manoel cultivava memórias no jardim;
ia se propagando uma epidemia de sono de tudo,
enquanto Maria Nuvem lia num sofá de lona.
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IV
No prato da aurora
só um caroço que havia na manhã durmosa;
não se firmava outralgo,
senão um lampião vagaria no horizoponte.
V
No ponto dos hojes,
Bocó entrequantas se insatisdizia. Suas ruas
andavam suadas de desesperança.
Maria Nuvem irrepartira os rumos dos ambos?
VI
Na ponta de amanhãs
um carimbó assomava. Desensabida,
Maria Nuvem catava Manoel Bocó,
que se ira, ensimesclado de lanhos e lenhas.
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O N D E S Ó R E S TA M P E DA Ç O S
I
a mulher, ela vai embora
não sem antes cegar o homem
e cegar-se, tornando-os despertencidos,
um e outro dependurados
de ponta-cabeça
no varal dos dias corridos
II
a mulher que vem embora
(de outro)
para dentro curtida
de si
a mesma
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III
o homem continua
de poça em poça
salta fora bandido
de sina
sem meios
se permanece na cidade-barulho
– esta zonzeia com sua face de embrulhos;
preocupadiço, na beira depreda
a boca da mulher diante do precipício
e queima
IV
ambos tecem despedidos
seu fio-rasgo,
e o porvir é seco
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colo meigo
busto surdo
eu gozo dentro
o fruto morde
a terra frita
o corpo gela
o solo empasta
a seiva chora
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A D U LT O S N Ã O E X I S T E M
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A P I T O S PA R A Q U E M N Ã O FA Z
FÉ COM AGASALHOS
I
Há causas de mais
para somenos de tempo.
(A vida é só uma fatia casual.)
II
As palavras pedem sangue
e ele escorre.
O verbo berra bem
no oco que escondemos.
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III
Eu me projeto
parando
aqui.
(O eu é só uma ilusão geral
em território maior de vácuos.)
IV
O fim do fio-filme me alude:
o dia vai mesmo estrilar?
V
O agora pede ficagem. O corpo vai me adiando,
no intuito de amanhecer da penumbra. Eu me vadio.
Só por essa hora bêbedo e saliente,
meu carro torto observa arguto uma dona leve
e suas tranças de algodão doce-perigo.
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VI
Os turnos virados acarretam um termo viciado
(como o de todos, só que mais profundo).
Bem cedo, me desço de viela em viola,
decoro a ladeira com um último bigode de chope
e deixo a raiz do chão me devorar.
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V I DA N E M V O LTA *
I
A vida é mesmo uma só, não volta.
O tempo que o relógio marca se esvai.
E de minuto em minuto, no conta-gotas
do mundo, cada momento é um retorno
prum nada.
II
A vida nem sempre termina com a morte.
Tem vida que se morre em vida também.
O tempo é um deus natimorto. Quem nasce
vai morrendo aos poucos a vida vivida
na morte da hora.
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C O N T I N UA
não há horizontes
sem o enfrentamento da correnteza,
nem sem que os olhos marejem,
vez em quando,
do sal que arde as feridas
e aguça o viço,
rumo à próxima topada
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A S A G A - S O R T E DA E S P É C I M E T R Ô P E G A
CONTRA OS SERES EM MASSA
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66
PÁ G I N A A V I R A R , S AV E I R O P E L O M A R
a Sérgio Ricardo
67
68
ESCANINHO DE NÃO-SERES
72
CENÁRIO-BRASA
73
A R A D UA N N A S S A R
74
A C O N TA DA C A R N E
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AU T O ( D E ) F L A G E L O E ( D I S ) S O L U Ç Ã O
sangrando
hirto
e rindo
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CRASES HISTÓRICAS
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I
De método cirúrgico carece aquele a quem é
conformado instituir-se como um supressor.
Seu bisturi é de corte virtual, o apito sopra por imagens,
seus apagadores do moral alheio pontuam
em projetores de arranque pausado, protegidos
pelo barulho tanto em derredor.
79
II
Um bom supressor jamais descuida
da criação de robôs de geladeira e homens de plasma,
assim como de se manter informado sobre
programas de trânsito e previsões meteorológicas.
O relógio funciona para o supressor profissional
não como um dispositor das horas que passam sem fim,
mas como um contador do tempo útil a dispor
para a organização das coisas.
Um supressor acredita no que está fazendo,
mas isso também pouco importa.
80
81
P E DA G O G I A D O S U P R I M I D O
82
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AT O D E D E S P I R A R O U PA D O T R Â N S I T O
depois de golfar
eu engulo as
minhas próprias carnes chupadas
(vísceras de engodo
se escancaram pela manhã)
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há um lapso-intervalo
que age sobre mim, veloz;
e então eu volto
e caio
com o corpo em viés de luta
(vias de enxofre esganiçam altas hordas)
as vigas do naufrágio
tombam durante a noite-escrúpulos,
após a lida alienada;
lua interna sucumbe,
diária paga,
multa morta
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VA R A L D E C A S A
86
VENTILADOR DE CHÃO
87
RONRONANTE
entre morcegos
a história toca gaitas em agonia;
dos silêncios não se pode lembrar
senão a textura
entre mangas
a fome corta pedras em sopa;
dos trejeitos não se deduz
senão o padecer
entre marujos
a melancolia esquece espirros em choro;
dos abandonados não se espera
senão um deserto
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C I R U R G I A R E P E T I DA
silêncio pesa
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ENCRUZAS
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FERNANDO TOLEDO E
N E W T O N C AVA L C A N T I
I
Fiz uma conta e descobri:
O novo só é gestado nu e descabelado.
O novo típico gosta a audições entredentes.
E gosta também a limbo, a gota, a chão.
Por sua vez, mudo que é mudo não cala:
toca instrumentos inexistidos
ou parcamente frequentados.
Mudo sabe bem a alma do mar
quando barco faz calo em onda.
II
O pintador Newton Cavalcanti
gargalhava trôpego e sincero
perante seus três conhaques
que não findavam, enchidos de si.
O escrevista Fernando Toledo encerrava
a noite trafegando ideias para
copos sorridos roucos.
92
93
III
Vai passando, e fica.
Caba que cede, ao ir-se
dos ventos. Nem se despede.
Memória a registrar:
a chaminé dos enredos-risos.
IV
Há um luto que luta, apesar.
Uma briga que abriga.
(Os lugares são todos comuns, mesmo.)
A vida se esfrega no soturno
e segue, contorcida,
ausência adentro.
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M AT É R I A PA R A A N Ã O - S U P R E S S Ã O
ao Terreiro de Breque
96
97
G R I T O N O T E T O TA PA D O T O PA
C O M A G R AV I DA D E S E M T O C Á - L A
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O R A M A L DA S H E S I TA Ç Õ E S S E M F I M
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100
TEXTO-RÃ
101
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A S O C I E DA D E D O E S C A P E ( I I )
a Raoul Vaneigem
103
104
P O E M A DA S C I N C O DA TA R D E
troças e assobios
operam decomposições em tijolos trocados,
queridentes de um lugar-futuro diverso do de agora,
em ritmo de relógios difusos
que assustam o trem das horas natimurchas
e chove muito
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CASA DE CAMAS
106
107
ABANDOLO
108
O AMOR SUPRIMIDO
109
110
MUNDO Ê
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AOS 50
112
P I A DA I N T E R N A
eu sou o mim-negado
frêmito do fel à sombra
rosto demo lelé em asfixia
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ENCALHES
114
MUNDO É TEIMOSIA
115
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BÊBADO
a Fernando Palhaço
I
Meu bêbado segue sob forte massacre.
Ele me chega em casa todo dia exausto.
Não dorme, deita rosnando. Fica a acordar
ao longo da madrugada e, quando finalmente
é posto ao despertar, mostra-se ainda mais destruído.
Bebe café, pinga colírio e vai consumar o dia;
sob o forte massacre.
118
II
Vidrado segue o meu bêbado forte sob massacre.
Não sabia que era tão forte, fraco. Não sabia
que se sofria tanto, dentro e fora de si. É de manhã
e ele me sinaliza algo sobre o sol da feira por que
passeamos e eu lhe pago um caldo de cana, o pastel
ele não quer – já não tem gosto, massaroca vaziúda.
Muita gente assim que passa, também.
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 N I M O V N DA L O
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V I V E R S E R E S TA
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A COR DO EXÍLIO
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eu me exprimo em papel-tela
qual prosa já sem contador nem personagem
só fatos tortos jorrados em borro tarde morta
tetos em desabares sob picotes-edifícios do céu
texto surrupiado
sem tronco
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e brinco, manco
bronco e brindo
abro a mão desfaço o soco
fica o som fito o sol
vou-me só
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O S O L N A S S A C A DA S D O S E D I F Í C I O S
DE CORAÇÃO URBANO
130
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A D O R M E C I M E N TA
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I N F O R M E S DA V I A V I VA
I
O defunto é mortinato: tem a sorte de gerar
livros árvores, cantos de brisa e até prantos
só de lira e riso.
Pós-ocaso, renasce, veste-se de linhas renhidas
e opera, frutifica. Floresce pela voz rouca
que entoa guerreira
uns cânticos loucos em louvor às margens insubmissas,
próprios de uma parte do mundo que fugiu
de ser aterrada para consumo e insiste em germinar.
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II
A arma que se usa na briga rima em direção contrária
à do rio leso de tino tragicômico. O sono mórbido
de barulho atômico se quebra por um chamamento
de amor à causa-vida, pela entrega diante do
itinerário-sonho, refornido de brasas.
O vate se regenera em si, das suas mar-
gens, suas personas, seu menino
de olhar para as coisas
na sede de rebuscá-las em essência e viço,
esse isso tão denso que jamais se deveria
deixar abandonar pelo caminho.
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A FA C E D O E N L A C E
I
Um luto, para ser morto, necessita de que
não se use de disfarce; deve pois ser encarado,
e seu leito, sacudido.
Pois que surge outro rosto vivo da mesma face
da parte parceira que zumbia, fracasso
andante, tombadilho rouco, coração
de vidro espicalhado. Lata velha carcomida,
isso que era! Cachorro ganindo roto, órfão afoito
lambido de praga, desamigo, ensifinado.
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II
Distância que glosa é mera geografia:
pior distância é a próxima, se em vazio de paixão
se mora. Já a hora lá na frente se alcança,
que sentimento puro é criança que não fenece,
só cresce e apura seu sabor e lume.
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