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AS MAOS

DOS PRETOS
Antologia do Conto Moçambicano

Orgânização e Prefácio de
Nelson Saúte
3." edição

Nelson Saúte nasceu em Maputo, Moçambique, em 1967.


Formado em Ciências de Comunicâção, fbi jomalista
e docente univeBitário. Tübâlhâ nos PoÍos e Caminhos de
FerÍo de Moçambique, como gestor, desempenhando o cargo
de administrador executivo da empresa. Publicou volumes
de poesia, de ficção e de entÍevistas, compilou e organizou
antologias de poesiâ e de contos.Os seus livros estão
publicados em Moçambique, PoÍtugal, Brasil, Itátia
e Cabo Verde. É autor da Dom QuiÍote, onde deu à estampa
O Apóstolo da Desgraça (coítos), Os Naffadores
da Sobreiyência (roÍÍtÀnce\. As Mãos dos Pretos
rantologiâ do conto moçambicano) e Nunca Mais C S(ibÍldo
(ântologia de poesia moçâmbicana).

lnoCíxtu &Sitw
DOM QUXOTE
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Índice

l'retâclo . . t3
ORLÂNDO MFNDF\ 23
O Eanoi âgndece &s Áu6ê útologi.dos
tôdâ â dispodibilidade e ml.borâçío Boas VidalMamà . . . 25
úr@@ pdível êb obn
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- O Galo c a Galinha & Raça . 37
ANÍBAr ATELUTA 49
Públiaróo Dom Qui!ú
- Mbehle 51

1050 124 Lisbo2. Pômgâl ]osÉ CRÁwrRlNFrA 59

R6.MdG odo, s dn€itos - Hamina


"Faz
Hara-quirí, nos Tbmpkt da
d. edo om I lcgillãçrô en vigor Araújo
Rxa ..... 61

@ 2000, Nelsod Saúrê. Públieçós Dom Quixote - Mamana Fanisv ,,.,...... 65

JoÀo DlÁs 73
Cipi dê: Mignêl Imbiúa
-lrdiuiduo prero 75
AscÊNCro DE FREITÀS 81
1.. edição: F«.rêirô de 2001
3.. ediÉô: Mârço dc ,02 -Lakuni.kaà 83
D.úis lesd n." 2i6 t98/07 úRcÍLro DE LEMos 93
Pé-impi.sáor vtiM
Pmduç6s GiáÍid, Ldâ.
Impqsão e râhmento: Mru.l Beó6t & Iilhos, t-!a - Zampuxgana 95

IS BN: 973-972-20- 193 I '6


Insisti, brandamente, estendendo-lhe a mãor pro- PAULINA CHIZIÁNE
mete não vendê-lo a ninguém, Zefania...
Seus olhos, flamejaates, perderam um pouco da lui As Cicatrizes do Amor
pesâdâ. Mas disse sim. Jurou por tudo. Até pela máe.
-
Dobrei a esquina da Salvador Allende, pela Princesa.
Volvidos segundos voltei atrás para saber desse pobre-
zinho encantado: o indelével Zefania. Aí estava ele à
procura de alguém que Ihe comprasse o meu presente:
um pedaço do fundo do rio. Realmente, para os durcs Foi a p meira mulher a publicar urh tomance em
tempos qúe corÍem, nos inundam, uma insignificância. Moçambique. Pa ina Chiziane nasceu em Manjacaze'
na prouincia de Gaza, a t d-e Junho de 1955. Éftio-
Jako 1989 aista, tndo publicado tràs romances: Balada de funor ao
(ln O Yemo, (1990),Yentos do Apocalipse (1991) e O Séti'
Conto Moçambicano - Dd Oralidadz à EscriA mo lvatnerto (2000).
org. Maria Luísa Godinho e Lourenço do Rosário,
Te Corá Editora, fuo de Jareiro, 1994.)

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AS CICATRIZES DO AMOR

Diabos me levem se náo estou bem nesta rodada de


mulheres sentadas nâ âreia e os homens nâs câdeiras.
Todas as gargantas regem-se na fonte do uputo que
flui aos borbotóes. O ambiente confortável é de gente
humilde, sincera, andrajosa e descalça.
A brisa suleste brinca no chapéu dos cajueiros. Os cor-
pos exsudados pelo verão deliram com os beijos das
brisas. O céu nublado transfere o cinzento feio para a
traasparência do Índico. Corvos em rwoada grasnam
agouros que ninguém liga. Quem entra na caserna de
Maria, bebe alegrias e esquece o resto. É verdade, sim.
Nesre campo de deslocados na Inhaca, o poro crisre
recria felicidade.
Uma moscâ bailando ao vento, despista-se, cai no
meu copo e debate-se louca. Que azar!
- Que sorte! A mosca dá sorte, menina!
Sorre? Sorre, sim senhora, confirmarn os sorrisos.
Com a ponra da unha removi a inrrusa, vazei o coPo
num trago. não ia a sorre volarilizar-se.
Semicerrei as pá.lpebras sorvendo a delícia daquele
paraiso de miséria. O uputo é bom e a bebida fresca;
a música é dos pássaros e o ca.lor dos sorrisos. As máos

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de todos espalmam-se em apertos vigorosos, frenéticos, mais veloz que a estrela cadente. Balra os olhos para a
com saudações de boas-vindas, compadre, vai um copo, terra infértil, salpicada de ervas tisnadas.
náo vaii O vulcáo da recordação explodiu narrativas; as lavas
Álguém, folheia um jornal velho. caíram como soco nas gargântas abafando os acordes,
- Veja isto, compadre. Duas crianças abaadonadas calem-se todas as bocas, a comadre é que fala!A voz de
pelas mães. Maria fez-se ouvir das profundezas do tempo.
A dona de casa deixa de farfalhar, estampa olhos no nkmbro-me da noite sem lua, quando debaixo do
jorna.l machucado tentando identiÍic-ar os rosdnhos dos
caiueiro disse sim, ao homem dos rrieus sonhos. O ré-
infelizes.
gulo de Matutuíne, meu pai, disse náo a esse, pobte,
- O que Ihes aconteceui sem gado para lobolar a filha do rei. Ao meu homem
Alguém as deitou fora. fu mulheres estão doidas.
ulrrajado não resrou outra alrernari\r §enão Procurâr
- São efeitos do PRE respondeu o outro. - Se os
- o lenitivo das mágoas do outro lado da fronteira, em
pais comprarem o leite para os meninos, náo sobra nada
para os copos. Não há dúvida. A maldade grassâ nos ]ohannesburg, deixando-me o ventÍe semeado. Nos
nove meses de gesta, minha alma em suplício consumiu
dias que passam.
facadas. Quinze dias depois do nascimento da criança,
- A maldade nasceu antes da humanidade. A culpa o meu pai disse: fora desta casar.
cabe às mãeq mrs é de loda â sociedâde 5enrenciou a
mulher Relaro de manga verde com sâI, ârrePiànte. eÍci-
tante, câtivando e atençáo de todos os olhos e ouvidos.
- Não fuja da verdade comadre, que a culpa está com Vamos. conta-nos rudo. Maria. pereciam incitrr s vo-
as mulheres. O que dizes é suruma da bebedeira, estás
embriagada, sim. zes em silêncio.
A voz de limáo do homem duro era palha seca na nSupliquei clemência à humanidade; recorri à ami-
fogueira tosca. zade. Em vão. A amizade abraça a riqueza que é beleza,
O que vocês não sabem disse Maria - é que cada e náo a tristeza que é leprosa. Àmor verdadeiro só a terra
nascimenro tem uma hisrória e cada acçào. uma razão. dá, quando no frm da jornada ela diz: repousa nos meus
Na m inha juvenrude comeci o me.mo crime. ou me- braços por toda a eternidade. Amarrei a capulana bem
lhor, ia cometê-lo, Tudo por causa desse amor âmar- firme; com o bebé bem seguro nr( costas. iurei: os em-
gure, âmor escravatura, que transtorna, que enfeitiça, pecilhos que obstam a minha esüada seráo removidos
fazendo do amante a sombra do amado. pela minha máo. Chegarei aJohannesburg, minha tera
Maria entristece. Ergue os olhos para o céu na súpli- de promissáo. Abandonei a casa no ritual dos galos cer-
ca do silêncio. A mente recua na tralectória distante, rando as cortinas vesperais. Segui o rasro do cruzeiro

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{
V

do sul, caminhei dias, e noites suficientes para contar amor que me fazia chorar; pela terra máe que deixei;
todas as estrelas do firmamento». pelo câsâmeflto conveniente que tecusei; Pelo funeral
Retalhos da vida, revolteando as entranhas de quem digno que a minha filha teria, com lágrimas e cânticos,
as escuta. Atençáo! O que aqui se conta, está a aco[- e eu, â visitâr a sepulturâ, levando em cada dia um
tecer agora!, em qualquer parte do mundo. E tu bailas, ramo de flores multicolores bem aconchegadas no Pei-
Maria, o streep-tease das batucadas da tua amargura, to, com poses de noiva que nunca fui. De repente o
que a embriâguez revolveu-te a língua. Desaos o lenço corâção pulsou: uma moitâ cruzou o horizonte dos
e a capulana. Da blu.a iá levantada. e.preiram o..eios meus olhos. Será ali, será ali, o cemitério da minhâ
surrados de mil beijos, desfraldas as cortinâs dos reus filha, e à noite, batidos de corvos deliciar-se-ão com o
segredos, és indecente, Maria! corpo frágil do meu rebento, ai!...,
uMas a vida é mesmo isto. Irmáo é aquele que te Tapas os olhos arrepiada, fremes de dor. Maria, o
abraça, na desgraça. Do outro Iado da fronteira, en- relato ultrapassa o limiar de uma recordação. É uma
contrei um desconhecido que me deu o conforto, repou- revivência, um quadro bem evidente nos arquivos da
so e dinheiro para prosseguir a marcha. Entrei num tua memó a, e nós não largamos um só suspiro, hipno-
comboio. A criança enfraquecida deixou de chorar. rizados pela tua dor.
O corpinho frágil incendiou-se num fogo húmido mais uMergulhei na moita, paraíso ilícito. Os amantes
abtasante que o calor de Dezembro para logo a seguir também lá estavam, protegendo os abraços dos olhares
arrefecer mais do que todas as madrugadas. Enquanto indiscretos, e eu nem os vi, empenhada que estava nâ
o comboio vence a disráncia. o\ pa\sageirol conver- minha tarefa secreta. Adeus, fruto do prazer e dor; amor
sam, riem, a criança apaga-se, faça alguma coisa. Deus de fervor, adeus! Abandonava o Iugar em passos de fuga;
dos milagresl O que será de mim, sozinha, num país o casal que me espiava lançou gritos, alarmando os Ían-
esttanho, com uma criança morta nos braços? Ventre seuntes que me rodearam. Uma velhota enxotou os
meu, abre-te, quero devolver este ser à sua origem. Apelo curiosos levou-m€ à sua casa para tratar da criança.
do desespero. Mas onde reside o poder dos homens, se Nem com isso desisri dos meus intentos. A latrina da
nem as parcelas do próprio corpo obedecem ao seu câsâ era mesmo ideâl pâra a consumaçáo do meu acto.
comando? Abandonei o comboio. Abri caminho com Esperei que a velhota adormecesse. Em váo. Era mais
golpes rápidos dos cotovelos entre â multidão de ne- vigilante que todos os anjos da guarda. O sono venceu-
gros caminhando para os cantos mais recônditos dos -me. No sonho vi â miúa pequena já crescidinha, rindo
guettos. Meus olhos inquietps procuravâm umâ lixeira, em gargalhadas rasgadas nos braços do pai. O choro da
uma vala, uma coÍrente de água, esgotos, para desfâzer- criança interrompeu o meu sonhoJ transportando-me
-me do meu fardo. Tiágica peregrinaçáo! Chorava pelo para o novo sonho desta vez bem mais real: a criança

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sorrial vencendo a agonia. Deus dos milagres, respon- Porque escondes os olhos, Mariai Ta.lvez te envergo-
deste às minhas súplicas, obrigado. Os espíritos do mar nhes dos teus actos, talvez re arrependas do teu relato,
venceram o mal, amém! Pelo sinal da Sanra Cruz». ou mesmo te revoltas contra a sociedade que te con_
Eu, pecador, me confesso. Sorvi a taça do abominá- duziu aos caminhos da tragédia. As cicatrizes do amor
vel, fluindo da garganta da autora. Com o simples relan- rasgârâm as crostas e jorralam um liquido sangue que
cear da vista tentei penetrar no secreto de cada alma. escorre pelas curvas das uas pálpebras'
Afinal quem somos nósl Em quantos vendavais nos A filha em questão, preparou a flecha que disparou
espiralamos até galgar o degrau do presentel Agora per- cettelta.
gunto, Maria: que razões te levam a desvendar os apo- - Máe, eras capaz de jogar-me na fossa, a mim?
sentos da miséria ao público, estampando a vergonha - Perdoa-me, querida. Eu náo queria dizer nada.
e a desonra no rosto dos teus filhos? Apenas gostaria que or.eres humanos rivessem mrir
Bailas, Maria, agora completamente desnuda. Ás ruas humanidade, amor e fraternidade.
curvas sáo ardentes, confirmam os homens, mas as tâ- Na caserna de Maria há uma mulher que chora, e os
tuagens que exibes são as mais secreras e as mais sagradas soluços sincronizam com a makwayela das palmeiras.
do teu mundo. Os corvos em revoada grasnam agouros! as nuvens já
uE depois caí nas mãos de uma farsante que me obri- abalaram e o sol voltou a abrasar. As águas do Índico
gou a trabalhar para ela, com arneaças de denúncia por balançam com mais força sob o domínio do vento sul.
violação da fronteira. Seis meses durou a prisão bem No coraçáo da noite haverá tempestade
como o plano de evasão. Maldição!Aprendi a má lição.
Antídoto para a vigarice: vigarice e meia. Um dia a Outubro 1989
velhaca embriagou-se demasiado. Roubei-lhe todos os
valores e desapareci. Como uma pena voando ao venro,
(h O Conto Moçambicano Da Oralitradc à Escrita,
balancei de poiso em poiso, contornando vilas, cida- org. Maria Luísa Godinho e Lourenço do Rosário,
des, até alcançar o objecto da minha aventura: o meu Tê Corá Editora, Rio de Janeiro, 1994 )
homem!,
- E depois?
- Ah, a vida é um jogo de ntchuva: cheio aqui, va-
zio ali. Conheci a verdadeira felicidade ao lado do meu
marido.
* E a criarrça?
- É aquela ali, e já me deu dois netos.

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