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Atas das II Jornadas de Estudos


Medievais: Incorporar a Arte e
Engendrar a História - Goiânia, 2018
Lorena da Silva Vargas

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II JORNADAS DE ESTUDOS MEDIEVAIS
INCORPORAR A ARTE E ENGENDRAR A HISTÓRIA

UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

29 a 31 de outubro de 2018

ATAS

Cristiane Souza Santos


Láisson Menezes Luiz
Lorena da Silva Vargas
(Orgs.)

GOIÂNIA
2019
Os artigos foram transcritos de acordo com os originais enviados à comissão organizadora do
evento, sendo, portanto, de inteira responsabilidade de seus autores e autoras os conceitos, a
formatação, as imagens e todos os demais conteúdos neles veiculados

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


GPT/BC/UFG

J82 Jornadas de estudos medievais (02.: 2019: Goiânia, GO).


Atas da II Jornadas de Estudos Medievais / organizadores, Láisson
Menezes Luiz, Lorena da Silva Vargas e Cristiane Souza Santos. –
Goiânia: Faculdade de História da UFG, 2019.
106 p.: il.

ISBN: 978-85-54944-03-2
Tema do evento: Incorporar a arte e engendrar a história

1. História – Idade média. 2. Arte - História. I. Luiz, Láisson


Menezes. II. Vargas, Lorena da Silva. III. Santos, Cristiane Souza. IV.
Tema do evento.

CDU: 94(100)”05/...”
ORGANIZAÇÃO

Comissão organizadora

Adriana Vidotte (UFG)


Caio Victor Chaves da Silva (UFG)
Cristiane Souza Santos (PUC-GO)
Graciele de Souza Lima (UFG)
João Roberto Vilela Dutra (UFG)
Láisson Menezes Luiz (UFG)
Lorena da Silva Vargas (UFG)
Raimundo Carvalho Moura Filho (UFG)
Samuel Tolentino da Silva (UFG)

Comissão científica

Adailson José Rui (UNIFAL)


André Luis Pereira Miatello (UFMG)
Bruno Tadeu Salles (UFOP)
Cláudia Regina Bovo (UFTM/UNIFAL)
Flávia Aparecida Amaral (UFVJM)
Flávia Galli Tatsch (UNIFESP)
Marcelo Cândido da Silva (USP)
Néri de Barros Almeida (UNICAMP)
Renata Cristina de Souza Nascimento (UFG/UEG/PUC-GO)
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ................................................................................................................... 6

NOS CAMINHOS DE COMPOSTELA: A PEREGRINAÇÃO GALEGA A PARTIR


DO LIBER SANCTI JACOBI
Cristiane Sousa Santos ............................................................................................................... 9

DOM DINIS E O PAPEL DO TROVADORISMO NA CULTURA POLÍTICA


MEDIEVAL IBÉRICA
Felipe Ferreira de Paula Pessoa ................................................................................................ 19

O IDEAL DE CAVALARIA NA OBRA TIRANT LO BLANC DE JOANOT


MARTORELL (SÉCULO XV)
Láisson Menezes Luiz .............................................................................................................. 29

A ESTÉTICA GÓTICA NA CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA DA CATEDRAL DE


BARCELONA NO SÉCULO XV
Lorena da Silva Vargas............................................................................................................. 40

TÚMULOS FEMININOS E A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA FAMILIAR NO


REINO MEROVÍNGIO: ALGUMAS QUESTÕES A PARTIR DOS OBJETOS DA
RAINHA AREGONDA († c. 580)
Marina Duarte Sanchez ............................................................................................................ 53

O CULTO DE IMAGENS: A ICONOLATRIA NA VISÃO DE JOÃO CALVINO


Millena Gabrielle da Costa
Renata Cristina de Souza Nascimento ...................................................................................... 67

O INTERESSE MONÁSTICO NA CONFECÇÃO DA VIDA DE SÃO GODRIC NA


INGLATERRA NO SÉCULO XII
Raimundo Carvalho Moura Filho ............................................................................................. 77

REFLEXÕES ACERCA DAS VIRTUDES ATRIBUÍDAS AO SULTÃO SALADINO


NA CRÔNICA “A RARA E EXCELENTE HISTÓRIA DE SALADINO” DE IBN
SHADDÃD (SÉC. XIII)
Samuel Tolentino da Silva ........................................................................................................ 84

AS PRÁTICAS PAGÃS E AS ESTRATÉGIAS DE CONVERSÃO DA IGREJA


CRISTÃ NO REINO SUEVO
Vitor M. Guimarães
Márcia S. Lemos ....................................................................................................................... 95
APRESENTAÇÃO

Sim, a roda gira (...). Ela continua a nos conduzir, em frente, a uma história alargada
aos limites de um planeta.1

Celebradas em Goiânia entre os dias 29 e 31 de outubro de 2018, as II Jornadas de


Estudos Medievais: Incorporar a Arte e engendrar a História deram sequência à iniciativa
discente dos dez núcleos que compõem o Laboratório de Estudos Medievais – LEME em
promover um espaço de encontro e debate no âmbito das pesquisas em História Medieval
desenvolvidas por seus membros. Sem dúvidas, as Jornadas de Estudos Medievais vêm sendo
um sopro de ânimo a todos os envolvidos, ânimo para seguir acreditando na pesquisa em
nosso país, a pesar de todos os desafios. Esta edição, de modo extremamente significativo,
teria início no dia seguinte a uma das mais importantes disputas presidenciais da história
brasileira, proporcionando, para além das discussões acadêmicas por meio de comunicações e
conferências, reflexões acerca do tempo presente, do ser medievalista na atualidade, bem
como o sempre atual, mas nem sempre destacado, diálogo entre passado e futuro. Imersos na
incerteza, é na leitura de pesquisas de historiadores em formação, como as que seguem nestas
atas, que encontramos perspectiva, é no apoio de nossos professores e orientadores que
encontramos forças e é na sala de aula que encontramos refúgio. Buscando colocar em prática
tudo o que aprendemos nesse fascinante mundo acadêmico, inovamos com as possibilidades
do presente e fazemos a roda do conhecimento girar.
Fomos e somos sinais de resistência em nosso tempo. A iniciativa tomada em agosto
de 2017 pelos discentes do Laboratório de Estudos Medievais – LEME de criação de um
evento no qual os pesquisadores graduandos e pós-graduandos pudessem trocar ideias,
experiências e fortalecer a formação mútua, passou a tomar corpo nas I Jornadas de Estudos
Medievais, realizadas em Belo Horizonte em novembro do mesmo ano. Seguindo com a
periodicidade e itinerância do evento, decidiu-se, em assembleia discente ocorrida durante a
edição organizada pelo núcleo UFMG, que a segunda edição do evento, em 2018, estaria a
cargo do núcleo UFG, o que muito nos honrou. O tema da presente edição, Incorporar a Arte
e engendrar a História, foi escolhido frente às iniciativas de trabalho do LEME/UFG que,
buscando a interdisciplinaridade com áreas como Filosofia, Música, Literatura, Artes Visuais
e Arquitetura, vem procurando expandir os modos de se pensar o medievo, ampliando as

1
FEBVRE, Lucien. Marc Bloch: dix ans aprés, Annales. Économies, Societés, Civilisations. 9 (2): 145-147,
1954, p. 147.
6
possibilidades de análise no campo das Artes e das Ciências Ambientais, como vinha
desenvolvendo. Cabe a nós, jovens medievalistas, tocar à frente essa roda das múltiplas
possibilidades, emergente no início do século XX.
Muito nos alegram os resultados desta edição e nos animam as perspectivas positivas
que encontramos, dentro das Jornadas, para seguir nos próximos anos. Não somos os
primeiros e não seremos os últimos a nos deparar com o desafio de perpetuação do saber,
afinal, aprendemos que a vida é luta. Agradecemos à nossa coordenadora, Profa. Adriana
Vidotte, que confiando integralmente em nossas ideias, foi pilar para a realização desta
segunda edição, como é para o LEME/UFG. Agradecemos ainda aos membros dos demais
núcleos que participaram, possibilitando o cumprimento do intuito primordial deste evento: a
interação entre pesquisas e pesquisadores do Laboratório de Estudos Medievais. A iniciativa
de realizar um evento aberto aos pesquisadores externos ao LEME foi ainda uma experiência
positiva vivenciada nesta edição, visto que a proposta de apresentação das pesquisas
produzidas no Laboratório foi cumprida e enriquecida com contribuições de membros de
outros grupos de estudos, cujas pesquisas foram também apresentadas, discutidas e
publicadas, enriquecendo e ampliando, a nosso ver, os debates e possibilidades de
abordagens. Agradecemos, por fim, à Faculdade de História e ao Programa de Pós-Graduação
em História da UFG pelo apoio prestado.
Apresentamos, a seguir, os textos completos de algumas das comunicações proferidas
durante os três dias de realização das II Jornadas de Estudos Medievais. Consistem em
referências para uma diversidade de temas desenvolvidos dentro e fora do LEME, no labor
das salas de aula das universidades brasileiras. Que sejam lidos e relidos, pois apesar das
dificuldades em se fazer pesquisa no Brasil, apesar das dificuldades individuais e do momento
político no qual vivemos, deparamo-nos com a seriedade de pesquisas de jovens apaixonados
pela História Medieval, que têm nas mãos o honroso fardo de fazer a roda da inovação e do
conhecimento histórico seguir girando para além desse tempo.

Lorena da Silva Vargas


Interlocutora do LEME/UFG

7
TEXTOS COMPLETOS
NOS CAMINHOS DE COMPOSTELA: A PEREGRINAÇÃO GALEGA A PARTIR
DO LIBER SANCTI JACOBI

Cristiane Sousa Santos1

Resumo: As peregrinações rumo à Santiago de Compostela constituem-se a terceira maior em


importância para a tradição cristã ocidental. Compostela, segundo a tradição abriga o sepulcro
que mantém as relíquias do apóstolo Tiago Maior, um dos mais diletos discípulos de Jesus
Cristo. No apogeu do culto as relíquias no século XII, a Sé Compostelana sob o prelado de D.
Diego Gelmírez, elaborou uma série de documentos que visavam a legitimação da presença
das relíquias jacobeias em “Hispania”. O mito compostelano, se insere em diferentes
abordagens. Nesse sentido, intentamos descrever neste texto a relação entre as relíquias, as
peregrinações e o desenvolvimento social e religioso de Santiago de Compostela. Para tanto,
na primeira parte nos ocupamos em introduzir a tradição compostelana. Em seguida, tratamos
à respeito da relação entre o culto às relíquias e a Cristandade Medieval, as peregrinações e
por fim, apresentamos algumas considerações em torno da importância das relíquias
compostelanas para a promoção e a legitimação do culto jacobeu.

Palavras-chave: Relíquias, Santiago de Compostela, peregrinações.

1. INTRODUÇÃO

Apresentar o mito jacobeu, se constitui em um prazer, que se converte em apreciação


pela tradição cultivada e preservada em Santiago de Compostela há cerca de doze séculos,
quando no bosque Libredón situado na mais distante e ocidental diocese do reino das
Astúrias, na Galiza, um eremita de nome Pelágio, conforme dita a tradição teria avistado
“umas” luzes que indicavam o local onde as relíquias do apóstolo Tiago o Maior - como é
nomeado nas Sagradas Escrituras -. Como dita a narrativa, o eremita procurou o bispo da
diocese, Teodomiro de Iria Flávia, que após dias de jejum e oração alcançou a revelatio.
A partir da descoberta das relíquias em terreno galego, o culto se instituiu em um curto
período um templo surgiria e em poucos séculos, daria lugar a uma imponente basílica
românica que atrairia milhares de peregrinos e motivaria o florescimento de Compostela e dos
itinerários rumo à cidade, assim como os hospitais e uma produção intelectual que deixaria
como herança importantes documentos da literatura hispânica medieval. A mais notória
dessas fontes documentais, a saber: o Liber Sancti Jacobi proveniente do século XII encerra

1
Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). É professora nos Ensinos
Fundamental e Médio na rede estadual de Ensino em Goiás desde 2015. Membro do LEME/UFG. E-mail:
lyrasley@gmail.com

9
em si a tradição, construção e a transmissão do culto compostelano na Galiza e
posteriormente para toda a civilização medieval do Ocidente.
Tiago o Maior seria segundo a tradição, irmão de João Evangelista estaria entre os
apóstolos mais queridos por Cristo. Uma outra fonte de igual relevância para o estudo sobre o
tema jacobeu, a Historia Compostela (LIBRO PRIMEIRO, Cap. 1, p. 19) corrobora tal
assertiva quando situa, “ségun el precepto del Señor, Santiago, hermano de San Juan apóstol y
evangelista” e o Liber Sancti Jacobi sacramenta que, “fué Santiago, [...] a aquél, en verdade,
le fué concedida, [...] la gloria inestimable no desdenó transfigurarse [...] sobre el monte
Tabor ante su vista”. Após a Assunção de Jesus Cristo, S. Tiago, como também os outros
apóstolos teria partido de Jerusalém, para evangelizar os povos. Tiago tria partido, para os
confins do Ocidente para predicar no território da Galiza. Com muito esforço, o apóstolo teria
arregimentado doze apóstolos como fez o seu Mestre e após certo tempo teria retornado à
Jerusalém, sendo posteriormente preso, condenado e executado.
Conforme as fontes mais importantes a versar sobre o mito compostelano, Herodes
Agripa teria mandado prender e degolar o santo apóstolo. Nas palavras da Historia
Compostelana, após a paixão de Tiago, Herodes teria ordenado que seu corpo e a cabeça – o
apóstolo teria sido degolado – fossem jogados fora da cidade, para que fossem consumidos
pelos cachorros. Os discípulos de São Tiago prevenidos para que transladassem o seu corpo
para a região hispânica para dar-lhe sepultura, se apossaram do corpo do apóstolo para
transportá-lo de forma miraculosa à Galiza.
O terceiro livro do Liber Sancti Jacobi amplia a tradição ao apresentar uma elaborada
trama permeada pelos aspectos das mirabilia, para narrar as adversidades enfrentadas pelos
discípulos de S. Tiago para sepulta-lo em terras hispânicas. Ao chegar no local indicado para
o sepultamento de seu mestre os discípulos de São Tiago, enfrentaram um dragão, o exército
de um rei e até amansaram bois, a fim de provar a santidade das relíquias que transportavam
para a dona do local do sepulcro, uma senha que ambas as narrativas denominam, Lupa, que
comovida com milagres apresentados aos seus teria cedido o lugar para abrigar o corpo de
São Tiago até a revelatio no século IX (entre 830-840), quando teria ressurgido o culto ao
apóstolo São Tiago em terras hispânicas.
As notícias em relação à pregação de Tiago na Hispania fazem parte da cultura oral
hispânica e os primeiros registros só começaram a aparecer no século VI. Após a descoberta
do sepulcro – possivelmente entre os anos 820 e 830 -, a documentação se expande, sobretudo

10
para legitimar a presença das relíquias na Hispania2. O apóstolo que teria sido o
evangelizador apenas da parte mais ocidental da Península Ibérica, no século IX tem o seu
patronato estendido a toda Hispania.

2. PEREGRINAÇÕES E RELÍQUIAS EM SANTIAGO DE COMPOSTELA

Os cultos as relíquias estiveram inerentes à prática cristã de veneração no Ocidente, na


desde a Antiguidade e atingiram novos significados na Idade Média. Nas palavras de
Nascimento (2014, p. 106), as relíquias “são realidades materiais que têm por objetivo
aproximar o homem do sagrado, cumprindo um papel cultual e espiritual, sendo fundamentais
para o entendimento das práticas, dos rituais e das crenças cristãs”. Quanto às relíquias dos
santos é tênue a relação das mesmas com Cristo, tendo em vista que os santos são
notoriamente “moradas” de Cristo. “A memória dos santos é preservada pelas suas relíquias,
porque testemunharam a vitória de Cristo sobre a morte até mesmo em sua morte sangrenta,
que imita a Paixão de Jesus” (SCHMITT, 2007, p. 286).
A espiritualidade do homem medieval reúne um conjunto de obrigações dos fiéis junto
a Deus. Preces, esmolas, jejuns, penitências e as peregrinações, as longas viagens a locais
onde os santos repousavam espaços de veneração às relíquias sagradas. “Las peregrinaciones
tienen entre los cristianos dos Orígenes distintos: uno, la veneración a los Santos Lugares, es
decir, a aquellos que el Salvador había santificado com su presencia mortal; el outro, el culto
de los santos y de sus relíquias”. (VAZQUEZ DE PARGA, L., LACARRA, J.M., URÍA RÍU,
1945, p. 11). Esses movimentos tem uma dual dinâmica, além de ser uma forma de
penitência, era o meio pelo qual se tornava possível, o contato com as requisitadas relíquias.
[...] “el peregrino se mueve por causas religiosas, honrar a un mártir, un santo intermediario
privilegiado con Dios, pero más accesible porque “they also remained men´s skin a cuya
tumba se acude a rezar a la búsqueda de un benefício para el alma”. (DÍAZ, 2001, p. 57).
O peregrino sentia-se realizado, um escolhido por Deus ao se aproximar de uma
relíquia, pois, muitas eram as virtudes associadas a esses objetos. Outros fiéis que também
foram classificados como peregrinos eram aqueles que partiam em Cruzada. Na condição de
penitência, o peregrino é sempre um estrangeiro em terra estranha, um homem que procura a
espiritualidade, separando-se de seu mundo comum e enfrentando uma série de perigos e

2
Segundo López-Mayán (2011, p.41), “o documento mais antigo a tratar sobre as circunstancias da descoberta é
a Concordia de Antealtares (1077)” e outros testemunhos mais tardios como o Cronicón Iriense, escritos em
Santiago em fins do século IX.

11
adversidades. Quanto maiores fossem os perigos enfrentados nas peregrinações, mais santa e
purificadora sua realização se tornava. Dessa forma, os fiéis e até mesmo os clérigos,
consideravam as viagens peregrinatórias como um exercício ascético e uma nobilíssima forma
de penitência.
O homem medieval estava profundamente convencido de que só uma dolorosa
expiação podia obter a remissão dos seus pecados. O grande processo do esforço ascético é
sempre dirigido contra a carne e, em particular contra o corpo, terreno predileto das
manifestações maléficas. Por isso, o corpo deve ser mortificado. (MEDEIROS, 2009, p. 48).
Os fiéis acreditavam que Deus intervinha de modo direto nos direitos individuais e
coletivos. Deus é Senhor de uma justiça imanente que retribui a cada fiel segundo as suas
obras. As peregrinações que do século VIII em diante ganharão um apelo maior, constituem-
se em um movimento cristão que colaborará para uma maior proximidade entre a devoção
professada pela doutrina cristã e os anseios populares, como também por possibilitar a
produção de importantes documentos, tais como as hagiografias.
Caracterizada como uma prova espiritual, a peregrinação se constituía em uma dura
ascese, na qual o peregrino vestido em sua indumentária especial – os instrumentos da rota
eram antes da viagem, benzidos, o cinto e a sacola, o cajado com nó grosso e o cantil e por
fim o manto – preparava o seu testamento, e “como o monge, de certa maneira ele morria para
o mundo quando pegava a estrada. E ao retornar, era outro homem”. (SOT, 2002, p. 354).
Para os homens que se deslocavam, os fatores materiais e espirituais eram os aspectos
motivadores, grosso modo, para a maioria, não só nenhum interesse material os retinha em
suas casas como o próprio espírito do cristianismo os impelia à estrada, seguindo assim as
palavras de Cristo difundidas pela Igreja, “deixe tudo e segue-me”. Além disso, os grupos de
peregrinos detinham em seu interior homens oriundos de todos os setores da civilização
medieval.
Ao final de sua marcha, o peregrino intenta ver ou tocar uma imagem, uma estátua, um
sepulcro, procurando encontrar na fé o transcendente. Ao tocar o túmulo, tenta estabelecer um
contato com o santo e através deste com Cristo. O encontro não se apresenta de forma
sensorial ou mesmo intelectual, mas sim na ordem existencial. Os fiéis esperam através de
esta experiência estabelecer contato com algo que ultrapasse a experiência humana. (SOT,
2002).
A peregrinação a Compostela confunde-se com a lenda elaborada entre os séculos VIII
e XII, que se destina a afirmar a pregação do apóstolo Tiago, o Maior na Hispania. Até o
século IX, o alcance da peregrinação jacobeia era caracterizado como um culto local, as

12
crônicas citam poucos estrangeiros na empresa das vias peregrinatórias jacobeias. Contudo, o
culto a São Tiago alcançou tamanha importância que no século XII, determinados pecados só
podiam ser perdoados através da peregrinação a Compostela.
Desde o século IX, data do descobrimento do sepulcro, o apóstolo São Tiago tem sido
um dos mais notáveis protagonistas da história da Igreja, seja na Península Ibérica ou na
Europa Ocidental. “A devoção ao apóstolo São Tiago, discípulo direto de Jesus Cristo e
evangelizador do Ocidente, estava na origem mesma do fato cultural e sociológico da
peregrinação ocidental”. (SINGUL, 1999, p. 62). Incialmente, o Caminho de Santigo
constituía-se como uma peregrinação suplementar da peregrinação a Roma, em razão das
dificuldades de se peregrinar a cidade apostólica. Com a morte de Carlos Magno no século
IX, o Império carolíngio entrou em crise e Roma se tornou um lugar de inquietação social,
devido ao esfacelamento do Império, suscitando as dificuldades supracitadas.
No século X já é possível encontrar nas narrativas, a presença de peregrinos
estrangeiros e obviamente de célebres figuras como o rei Afonso X, o Sábio, S. Francisco de
Assis e Santa Isabel de Portugal, a Rainha Santa. “Os primeiros peregrinos valões, flamengos
e alemães apareceram desde o princípio do século XI. No fim do século, eram ingleses e
italianos: a peregrinação a Compostela ganhou uma dimensão internacional na Europa”.
(SOT, 2002, P. 361).

El primer registro de peregrinación, Alemania lo tenemos en el año 1072, cuando


Sigfrido I, arzobispo de Maguncia, cansado del peso de la mitra renuncio a su cargo
y peregrino a Compostela [...] Ansgot de Brunwell fue por su parte el primer
peregrino inglês constatado que visito Compostela, al conservarse dos cartas suyas
al obispo Robert de Linconl y al Cabildo de la catedral de Santa María, donde les
manifiesta su intención de fundar en Burwell un priorato dependiente de la abadía de
Sauve Najeure (Buerdos), por la caridade y el amor que hacia él habían demonstrado
cuando volvia de su peregrinación. (COSTOYA, 1999, pp. 35-36 apud CASCO,
2010, p. 33).

No século XII, a peregrinação alcança grande importância e o Liber Sancti Jacobi,


demonstra bem esse cenário, como também, colabora no aumento dos números de peregrinos
convidando-os a seguirem o Caminho de São Tiago.
Paulatinamente intensifica-se a peregrinação, que atinge o seu apogeu no século XII.
O locus Jacobi é neste século transformado em arcebispado, e o seu primeiro arcebispo, Diego
Gelmírez, toma importantes medidas político-administrativas e culturais para fomentar a
peregrinatio e para embelezar a catedral e a cidade, com o beneplácito da poderosa Abadia
borgonhesa de Cluny. (MALEVAL, 2005, p. 19).

13
A devoção a Tiago constitui-se no principal motivo das peregrinações, a motivação se
dava em torno da devoção que se tinha a São Tiago; “o peregrino empreendia a viagem
pietatis causa, como fizeram monges, bispos e alguns santos como São Francisco de Assis e
Santa Isabel de Portugal, a rainha santa”. (SINGUL, 1999, p. 63).
Outras causas são verificáveis, tais como a empresa de pessoas que partiam em
peregrinação pelas almas de terceiros, para agradecer uma graça atendida ou para se preparar
para pedir ao Santo determinado favor.
Na Baixa Idade Média generalizaram-se os componentes testamentários, pelos quais
os herdeiros do morto tinham que realizar a peregrinação a São Tiago ou mandar um
intermediário rezar pela alma do defunto. A pessoa que fazia a peregrinação, familiar ou
peregrino de aluguel, realizava-a no lugar do defunto, para que a alma do morto, ou a de
algum familiar, obtivesse as correspondentes satisfações espirituais. Em suma, os benefícios
da peregrinação eram para os defuntos ou para seus familiares, motivo pelo qual o herdeiro, se
não fosse pessoalmente a Compostela, tinha a obrigação de contratar uma pessoa que assim o
fizesse. De tal jeito desenvolveu-se essa prática de peregrinação, que se constituíram grupos
de romeiros profissionais, que empreendiam o Caminho de Santiago por encomenda em troca
de um montante em dinheiro, em representação de uma pessoa viva ou morta. (SINGUL,
1999, pp. 63-64).
Muitos peregrinos também seguiam o caminho, mas através da peregrinação forçada.
A peregrinação como penitencia era imposta, seja pelas instituições canônicas ou pelos
tribunais seculares. A penitência canônica obrigava o peregrino penitente a se dirigir a
Santiago de Compostela, a duras penas, fazendo grande esforço físico, praticar o jejum, e
vestir-se com poucas vestimentas, não raro, alguns seguiam nus. Quanto as peregrinações
penitenciais dos criminosos eram comum o uso de pesadas correntes que tornavam ainda mais
difícil a peregrinação.
É notável a colaboração dos reinos asturianos e castelhanos-leoneses e da Abadia de
Cluny para o sucesso da peregrinação a Santiago de Compostela. Essa conjuntura tornava
assim, favorável, a organização e promoção de toda uma infraestrutura física e assistencial.
Em relação aos aspectos comerciais, o Caminho de Santiago, desde os primórdios das
peregrinações assumiu um importante papel. Através das vias de peregrinação, comerciantes
transportavam as suas mercadorias e promoviam mercados, além de abastecer o Caminho e a
cidade de Santiago de Compostela. “Os arcebispos composteláns tiveron que se preocupar de
garanti-lo abastecimento da Cidade do Apóstolo, que non estaba preparada para responder a
demanda da poboación floante de peregrinos”. (PAIVA ALVES, 2011, p. 60).

14
Segundo López-Mayan, o desenvolvimento de Santiago se inseriu em um movimento
urbano e geral, isto em razão de sua condição de Sé apostólica, que atraía os peregrinos, mas
também um amplo número de favores dos reis, “desejosos de contar con en el respaldo del
Apóstol, y el interés de la jerarquía eclesiástica, que estableció en Compostela gran cantidad
de comunidades religiosas, base del perfil eminentemente clerical de Santiago” (LÓPEZ-
MAYAN, 2011, p. 53), e de suas atividades socioeconômicas e culturais.
O Caminho de Santiago proporcionou a origem de diversas cidades e de instituições
de apoio aos peregrinos, assim como colaborou para a difusão de inúmeras narrativas a tratar,
seja do itinerário e os milagres em torno da veneração das relíquias de São Tiago como
também dos princípios da Sé compostelana e sua expansão. Alguns dos milagres que são
narrados no Liber Sancti Jacobi se passam nos caminhos que levam a Santiago de
Compostela. Sejam quais forem os motivos que impulsionavam os fiéis a se dirigirem ao
Caminho de Santiago, são inegáveis o legado e a representatividade que o culto jacobeu
suscitou no imaginário dos homens do Ocidente Medieval.

3. CONSIDERAÇÕES

A concepção do Códex, sobretudo como um instrumento de legitimação da presença


das relíquias do Santo Apóstolo, também traz em si imagens do período em que foi escrito. É
uma obra que abrange tantos aspectos não apenas históricos, como também os litúrgicos e
literários.
Como o Liber Sancti Jacobi se constitui em uma obra narrativa destacamos alguns
pressupostos teóricos em favor da utilização do discurso narrativo na concepção do
conhecimento histórico. Como salienta Veyne, “um acontecimento histórico não é só o que
acontece, mas o que pode ser narrado, ou que já foi narrado em crônicas e lendas”. (apud
RICOEUR, 2010, p. 282).
Dessa forma, não somente as narrativas descritas no Liber Sancti Jacobi, mas outras
narrativas provenientes do medievo que tratem sobre a tradição e da história de Compostela e
os milagres de S. Tiago nos possibilita um passeio pelo caminho de construção do mito e sua
fundamentação como referência para a Cristandade.
Conforme assinalou Marc Bloch (2001) ao traçar uma comparação entre a tradição
cristã da Crucificação e Ressurreição, o que importa não é saber se Jesus foi crucificado e
depois ressuscitou. “O que agora se de compreender é como é possível que tantos homens ao
nosso redor creiam na Crucificação e na Ressurreição”. Portanto, em nossa percepção o que

15
importa é entender as razões da tradição jacobea, razões que como Bloch afirma, são
“humanas, é claro; a hipótese de uma ação providencial escaparia à ciência”. Ora, as
narrativas nos aproximam A tais objetos. Albuquerque Júnior (2007) em defesa da narrativa
lembra que “a memória, como a História, são uma escritura sem fim, nem origem”. Isto, pois,
já dizia Agostinho de Hipona (2014), “a memória retém o esquecimento” e por que supomos
na memória construída em torno mito de São Tiago de Compostela, memórias possam ainda
testemunhar sobre os homens que se prontificaram a seguir o Caminho de Santiago. Se “a
história é a ciência dos homens no tempo” como afirmou Bloch (2001) o produto do
historiador, fundamentado nos monumentos do passado é a imaginação de uma intriga, que
nos possibilita vislumbrar, os fragmentos e os mesmos nos aproximam por que não dizer, de
um Imaginário desses homens que alimentava a tradição.
Partimos da definição que Le Goff faz do Imaginário para situá-lo como o fator de
incentivo às tradições, mitos e lendas. “O termo “imaginário” trata-se de uma história da
imaginação da criação e do uso das imagens que fazem uma sociedade agir e pensar, visto que
resultam da mentalidade, da sensibilidade e da cultura que as impregnam e animam”. (LE
GOFF, 2011, p. 13).
Sendo assim, através da pesquisa que estamos desenvolvendo, entendemos estar
empreendendo a análise de aspectos do Imaginário Social dos medievais em relação à tradição
compostelana, suscitando novos aspectos do mito e das peregrinações através da memória
preservada nas narrativas que discursam sobre esse fenômeno do medievo Ocidental. Partindo
dos postulados do discurso de Paul Ricoeur (2010, p. 251) “na qualidade de narrativa, toda
história versa sobre algum grande sucesso ou algum grande fracasso dos homens que vivem e
trabalham juntos, em sociedades ou nações ou em qualquer outro grupo organizado de modo
duradouro”. Assim como também, é possível estabelecer através desta análise, além, dos
aspectos culturais contidos no imaginário, as representações que o mito compostelano
influenciou no espaço público e político da Hispania da medieval.

4. REFERÊNCIAS

Fontes

HISTORIA COMPOSTELANA o sea Hechos de D. Diego Gelmirez primer arzobispo de


Santiago. Traducida del latin al castellano por R.P. Fr. Manuel Suarez com notas aclaratorias
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18
DOM DINIS E O PAPEL DO TROVADORISMO NA CULTURA POLÍTICA
MEDIEVAL IBÉRICA

Felipe Ferreira de Paula Pessoa1

Resumo: Esta comunicação é um recorte da pesquisa de doutorado em desenvolvimento cujo


objetivo é compreender o papel do trovadorismo na cultura política ibérica durante o reinado
de Dom Dinis, rei que ficou conhecido pela alcunha de o trovador. Por meio da análise das
cantigas de Dom Dinis presentes nos cancioneiros ibéricos e do Pergaminho Sharrer
problematiza-se a relação entre o estilo musical destas cantigas e a cultura política na corte
dionisina, apresentando questões acerca das relações nobiliárquicas e o trovadorismo; de
modelos de emulação e originalidade comparando o contexto ibérico, occitânico e parisiense;
e os possíveis papeis que o trovadorismo exercia na cultura política medieval. A discussão
proposta fundamenta-se no modelo corporativo e nos conceitos de emulação e hibridismo
musical.

Palavras-chave: Cantigas galego-portuguesas; cultura e poder; História Política.

Nas linhas da história, reis são, normalmente, objetos de estudo a partir de seus feitos
enquanto administradores, políticos, conquistadores, juízes, legisladores e guerreiros.
Principalmente, quando o contexto de um rei é a baixa Idade Média, período em que a
nobreza e a monarquia ainda estavam fortemente representadas pelo ideal de cavalaria.
Também sob estes aspectos, Dom Dinis (1261 - 1325) é uma figura bastante interessante e um
profícuo objeto de estudo para a história. No entanto, a historiografia - seja ela a nossa
contemporânea história acadêmica ou mesmo as crônicas do séc. XIV ao XVI - coloca-o
como um rei sábio, culto, poeta. A criação da primeira universidade, de importantes mosteiros
e o fato de saber escrever são alguns dos pontos que exaltam a figura deste “muito alto, e
muito esclarecido príncipe”2. Porém, sua mais intrigante relação cultural fora com o
trovadorismo: D. Dinis, rei poeta, rei trovador. Intrigante pois foi um rei cujo imaginário
popular português coloca-o como extremamente poderoso e abastado; D. Dinis foi um rei que
fez tudo quanto quis, como diz o conhecido ditado3. Por que um rei de tamanha expressão,
tanto no cenário político interno como com relação à Península Ibérica, dedicou-se à poesia
trovadoresca? Em que medida este culto ao poético-artístico oferece-nos pistas das
concepções e ações políticas na monarquia dionisina? Qual o papel do trovadorismo no
reinado de Dom Dinis?

1
Mestre em música pela Universidade de Brasília, é professor no CEP-Escola de Música de Brasília.
Atualmente, é doutorando do PPGHIS-UnB. felipe7cordas@gmail.com
2
PINA, Rui de. Crônica de D. Dinis (Cr. Dinis). Torre do Tombo, Portugal.
3
PIZARRO, J. A. de Sotto Mayor. D. Dinis. Lisboa: Círculo de Leitores e Centro de Estudos Portugueses/
Temas e Debates. 2008, p. 331.

19
Estas perguntas dão o foco da pesquisa de doutorado em andamento da qual esta
comunicação deriva. Almejando iluminar um cenário para possíveis respostas penso ser
importante discutir, primeiro, a relação da nobreza ibérica com as práticas trovadorescas,
visando pensar o contexto político e cultural de D. Dinis, para, posteriormente, ver quais
escolhas que o rei poeta toma pra si acerca de estilos, práticas e relações sociais. A seguir,
busco problematizar a relação de poder e o universo simbólico que as estruturas sociais
medievais atribuem ao rei. A partir destas reflexões acredito ser possível dar uma maior
acuidade ao olhar analítico sobre as cantigas de D. Dinis.

Emulação e hibridismo na nobreza ibérica

O trovadorismo caracterizou-se como um movimento poético-musical com ampla


circulação na nobreza medieval. De origem occitânica, compôs parte da cultura nobiliárquica
e cavaleiresca, disseminando-se ao norte da França, na região germânica e, também, na
Península Ibérica. À parte os diversificados agentes que compunham e interpretavam as
canções, entre jograis e nobres, foram trovadores também reis de destacado prestígio para a
historiografia. D. Dinis se enquadra num círculo social trovadoresco cuja ascendência se fez
também por reis trovadores, seu avô Alfonso X, de Castela e Leão, e seu pai D. Afonso III, de
Portugal.
Também consagrado pela cultura de seu reinado, Alfonso X, o sábio (1221 - 1284),
legou-nos um dos maiores corpus de cantigas com notação musical, as Cantigas de Santa
Maria (CSM), com cerca de 427 poemas e melodias alternando-se entre dez cantigas de
milagres e uma de louvor. Pizarro sugere que esta extensa obra em galego-português faz parte
de um projeto de dirigismo cultural que buscava referenciar a identidade e a autonomia
regional. “Daí a importância da obra cultural de Afonso X, especialmente a historiográfica,
como a Estoria de Espanha ou a General Estoria. Por fim, o uso da língua castelhana, que
evidenciou o uso político da cultura como instrumento de unificação.”4 De fato, além de um
caráter modelar que as cantigas assumem ao pôr a virgem no lugar da mulher amada, há ainda
um direcionamento em relação ao povoamento de determinadas regiões recentemente
conquistadas e fábulas morais que evocam, na virgem e nas virtudes, a salvação5.

4
Id. p.57.
5
KNAUSS, Jéssica. Law and order in Medieval Spain: Alfonsine legislation and the Cantigas de Santa Maria.
Açedrex Publishing, 2011, ps. 383 (e-book).

20
Porém, as CSM podem aproximar-se da escola trovadoresca occitânica em sua
estrutura modelar, mas distanciam-se no que tange a estrutura poética, rítmica e melódica,
apontando como influência para o zajal e o muwashshah árabes. Manuel Pedro Ferreira
defende que as Cantigas de Santa Maria apresentam duas formas principais: o virelai e o
rondel-andaluz. Apesar de certa polêmica da origem do virelai, em que se questiona o maior
ou o menor grau de influência do zajal nesta forma musical, o rondel-andaluz apresenta-se
como forma originária da região ibérica, uma vez que não se encontra na tradição além-
Pirineus6.
Para Ferreira, as Cantigas de Santa Maria diferenciam-se das tradições trovadorescas
occitânicas caracterizando-se por um alto grau de hibridismo com a cultura árabe. O
musicólogo fundamenta parte de seu argumento na análise da notação musical mensurada -
com registro também do ritmo e não só da altura - cujos padrões rítmicos não encontram
paralelos à luz da escrita francesa, mas são correspondentes aos exemplos da tradição clássica
árabe7. Assim, as CSM se revelam um projeto muito mais complexo de Alfonso X que trazem
novos olhares para o proposto dirigismo cultural a partir desta característica híbrida,
suscitando uma orientação de integração cultural, como as conclusões de Ferreira apontam.
O grau de hibridismo nas Cantigas de Santa Maria é de facto extraordinário: nelas
surgem agregadas a devoção cristã, modelos franceses de contrafacta devocionais e
formas e ritmos andaluzes, o que permitiu à música ser potencialmente um veículo
de integração cultural nos territórios recentemente conquistados no sul da Península.
As melodias foram tomadas das tradições mais diversas, incluindo o repertório de
corte com circulação internacional e o canto litúrgico.8

Contudo, Ferreira também chama atenção para a relação de tensão que Alfonso X teve
com a nobreza e mesmo com seu filho Sancho IV, que insurgiu contra o pai e assumiu o
reinado. No centro das práticas culturais desta nobreza insurgente, estava a tradição poética da
Aquitânia e seu estilo palaciano a se opor ao projeto cultural do rei sábio.9
Por outro lado, D. Afonso III (1210 - 1279) fora conhecido como “o bolonhês”,
apelido dado tanto em virtude de seu casamento com a condessa Matilde de Bolonha, como
pelas suas relações de parentesco, pois o monarca era primo co-irmão de Luís IX de França,
de Carlos de Anjou, rei de Nápoles, e primo em terceiro grau do rei de Aragão, também conde
de Provença10. Vale destacar a sua formação na corte francesa, de onde grande parte de seu

6
FERREIRA, Manuel Pedro. Emulação e hibridismo na Península Ibérica: antecedentes medievais. In: Revista
Portuguesa de Musicologia, nova série, 2/1: 2015, p. 144.
7
Id. p. 145.
8
Ibid.
9
Ibid.
10
PIZARRO. D. Dinis… Op. cit. 2008, p. 66.

21
séquito também trouxe influências para o ambiente culto da nobreza portuguesa11. Assim, a
poesia de D. Afonso III e de sua cúria régia mais emulou os valores culturais franceses do que
inovaram em processos híbridos ao estilo do rei sábio de Castela.
À época de D. Afonso III já haviam se desenvolvido algumas formas trovadorescas
com traços originais em Portugal. Justamente a partir da região de Compostela, onde o
caminho à Santiago atraía diversos trovadores, emerge uma nova forma poética com base na
língua galego-portuguesa. De caráter mais popular, fazendo uso corriqueiro de refrão e
estrofes mais curtas, a cantiga de amigo surge pouco antes de 1200 e apresenta, dentre seus
diferenciais, o eu lírico feminino. O pergaminho Vindel trouxe-nos uma amostra de sete
cantigas de amigo de Martim Codáx que elucidam também caráter rítmico e melódico das
cantigas. Além deste gênero, também se cultivaram as cantigas de escárnio e mal-dizer, em
que fervorosas intrigas nobiliárquicas ganhavam publicidade por meio de ataques diretos ou
indiretos.
No entanto, o fine amor provençal não fora somente imitado, há um processo de
originalidade também na emulação e adaptação nas cantigas de amor. Cantando o amor cortês
a partir do eu lírico masculino, a cantiga de amor, diferentemente do modelo francês, trouxe
para si o refrão, presente em grande número das cantigas deste gênero nos três códices que
guardam tais obras12. Ferreira aponta para a relação que Portugal e a Galiza tiveram com as
cantigas uma vez que o galego-português, a língua literária, correspondia à língua falada pela
nobreza, o que se diferenciava em Castela, e o que favorecia a promoção dos gêneros em
galego-português que tomaram como modelo as canções dos trovadores da Aquitânia13.
É neste contexto que D. Dinis é educado e recebe sua formação cultural, de uma
nobreza com fortes ligações francesas e da relação com o avô14. Todavia, devemos evitar tirar
conclusões demasiadamente genéricas sugeridas por esses laços. D. Beatriz de Castela, mãe
de D. Dinis, mostrou-se sempre próxima ao seu pai, o rei sábio, inclusive em questões que a
contrapuseram frente ao filho, levando-a finalizar seus dias no reino de Castela. Essa
desavença auxilia-nos também na interpretação da relação entre avô e neto. Em decorrência
dos cancioneiros que chegaram até os tempos atuais e do parentesco próximo, muitas

11
Id. p. 319.
12
Tratam-se dos Cancioneiros da Biblioteca Nacional de Portugal, do Cancioneiro da Vaticana e do Cancioneiro
da Ajuda, o único contemporâneo às cantigas. Os cancioneiros recebem o nome das bibliotecas em que se
situam.
13
FERREIRA. Emulação… Op. cit. 2015, p. 143.
14
Válido lembrar que D. Afonso III casou-se, também, com D. Beatriz de Castela, filha de Alfonso X. As
questões acerca de seu divorcio ou não com a condessa Matilde de Borgonha ainda são debatidas, porém, os
filhos e o casamento só são registrados e reconhecido após a morte da condessa. Essas questões são bastante
exploradas por PIZARRO (2008).

22
associações foram feitas entre D. Dinis e Alfonso X. Os dois reis de maior produção
trovadoresca são aproximados pela historiografia tradicional em termos poéticos, estilísticos e
políticos. Contudo, como já fora mostrado antes a partir das análises do musicólogo Manuel
Pedro Ferreira, as Cantigas de Santa Maria, de Alfonso X, apresentam natureza bastante
diferente dos gêneros galego-portugueses tradicionais, as cantigas de amor, de amigo e de
escárnio e mal-dizer.
Além disso, logo ao assumir o trono, D. Dinis rompeu com a mãe e o avô, pondo-os de
fora da zona de influência política da cúria régia e, ainda, quando Sancho IV, filho de Alfonso
X, rebelou-se contra o pai e buscou o trono, D. Dinis preferiu apoiar o tio ao avô, como
mostra Pizarro a partir das palavras do próprio rei sábio: “[e] voltamo-nos para o rei de
Portugal, que era nosso neto, filho da nossa filha, […] Assim que mais o vimos amigo do
nosso inimigo que nosso”15. Logo, tanto no jogo político como na cultura promovida, D.
Dinis afastou-se da influência do avô e do híbrido projeto de integração cultural, optando pela
tradição occitânica das cantigas. O que levanta questionamentos acerca da afirmação de
Pizarro, em que o historiador propõe que “o monarca português, que, se politicamente nunca
apoiou o avô, foi um admirador e émulo confesso da sua obra”16.
Não questiono diretamente a admiração quanto à veia poética do avô, mas ao processo
de emulação em sua obra, sim; o que se faz ainda mais intenso quando iluminamos o
ambiente que D. Dinis cresceu e os trovadores com que lhe eram próximos. Pizarro, em
contrapartida ao elogio retórico acima, fornece uma importante lista destes nobres:
D, Dinis, por isso, conviveu desde muito novo com esse ambiente culto e aberto a
novas correntes literárias, como também conviveu com os seus principais actores, ou
seja, os trovadores, muitos deles membros da nobreza, e mesmo das linhagens mais
antigas e poderosas do reino, como D. Afonso Lopes de Baião ou o conde D.
Gonçalo Garcia de Sousa, ou o influente mordomo-mor de seu pai, D. João Pires de
Aboim. De resto, quando D. Afonso III constituiu casa para seu filho herdeiro,
alguns cavaleiros que a integravam eram filhos ou irmãos de trovadores, como é o
caso de Pêro Anes Coelho, de Martim Fernandes Cogominho, ou de João Anes
Redondo, ou mesmo trovadores, como é o caso de João Pires Velho, que como se
recordarão foi um dos embaixadores que foi a Barcelona, em nome de D. Dinis,
receber a rainha D. Isabel de Aragão.17

Ou seja, não apenas uma influência cultural, esses trovadores circulavam nos
principais meios aristocráticos do reinado do Bolonhês e de D. Dinis, sendo influências
políticas importantes e exercendo cargos de destaque. Não somente o gosto poético de D.
Dinis é evidenciado, mas as relações estéticas que D. Dinis promove no seio de seu grupo

15
PIZARRO. D. Dinis … Op. cit. 2008, p. 104.
16
Id. p. 320.
17
Id. p. 319.

23
social. Trata-se de uma nobreza que guarda valores nobiliárquicos à moda francesa, aos ideais
do amor cortês e da cavalaria enquanto representações simbólicas de sua classe. D. Dinis, ao
afirmar-se como trovador, afirma-se como parte dessa nobreza; não apenas parte, mas como a
cabeça. Assim, penso ser importante olhar para as estruturas de poder medievais a partir de
sua própria ótica e procurar entender os meandros que dão contorno ao que representa o poder
real e quais as suas formas de atuação.

O modelo corporativo e as formas simbólicas do poder

Recheando as análises historiográficas tradicionais, o discurso de uma contraposição


entre movimentos centralizadores e descentralizadores estiveram no cardápio das explicações
históricas. De Norbert Elias a José Mattoso18, essa explicação ainda se reproduz em
historiografia mais recente, como no caso de Pizarro e Carvalho Homem19. No entanto,
Hespanha apresenta-nos uma interpretação que visa partir de uma compreensão propriamente
medieval como forma de se pensar e organizar a sociedade. Para ele, a perspectiva de um
poder centralizado aposta muito mais num olhar recente que busca o reconhecimento de
origens de um Estado moderno no passado do que na própria compreensão social histórica.
“Já antes temos dito que a ideia de que o poder político se concentra num único pólo - daí se
derramando para as entidades que, na periferia o exercitam, corresponde a uma matriz muito
recente estabelecida a partir dos finais do séc. XVIII”20.
Dessa forma, as concepções de um Estado centralizador precoce na Península Ibérica
se contrapõe a uma perspectiva de um poder plural pelo qual a sociedade se compreendia e se
estruturava, não ficando ao cargo das capacidades do rei articular, ou não, o poder.
Diferentemente do monopólio, “o poder político aparecia disperso por uma constelação de
pólos relativamente autônomos, cuja unidade era mantida, mais no plano simbólico do que no
plano efectivo, pela referência a uma cabeça única”21. Trata-se de uma organização supra-
individual em que a analogia do corpo está fundamentada sob uma ordem da natureza, a partir
da qual a sociedade se auto-representa e em que todos os órgãos desta se auto-regulam.

18
Referência aos trabalhos clássicos destes dois intelectuais: ELIAS, Nobert [1939]. O processo civilizador, vol.
2. Rio de Janeiro: Zahar, 1993; e MATTOSO, J. História de Portugal, vol.2: A monarquia feudal (1096 - 1480).
Lisboa: Editora Estampa, 1997.
19
Pizarro (2008) toma de base para sua biografia de Dom Dinis a recente publicação de Carvalho Homem sobre
a História de Portugal.
20
HESPANHA, António Manuel. As vésperas do Leviathan. Coimbra: Almedina, 1994, p. 296.
21
Id. p. 297.

24
O rei coloca-se, assim, como uma cabeça que ordena, que diz a justiça, mas que não
aniquila os poderes e funções dos demais órgãos do corpo humano. Hespanha ainda contribui
afirmando que
A função da cabeça (caput) não é, pois, a de destruir a autonomia de cada corpo
social (partium corporais operativo propria), mas a de, por um lado, representar
externamente a unidade do corpo, e, por outro, manter a harmonia entre todos os
seus membros, atribuindo a cada um aquilo que lhe é próprio, garantindo a cada qual
seu estatuto […]; numa palavra, realizando a justiça (comutativa).22

Assim, a ideia de auto-governo pelas partes e uma cabeça representativa da justiça e ordem
permite que esta teoria corporativa possibilite uma ampliação da visão de poder e das funções
reais para uma sociedade cuja personalidade jurídica é coletiva. Esta teoria filosófico-social
pretende modelar normativamente a sociedade, sendo que “[a]través dela, e das regras
concretas acerca do governo da cidade que delas continuamente se desentranha, a imagem
corporativa institucionaliza-se, transformando-se numa máquina de reprodução de
símbolos”23. Contudo, não se trata de uma imagem simbólica estática mas sim dinâmica, que
se atualiza e se legitima a partir de um “permanente e interminável jogo de reflexos”24.

O rei, a nobreza e as cantigas

A função do rei está longe de ser um centro absoluto de poder, mas uma cabeça
simbólica pela qual as relações de poder são representadas. Falamos também em como a
nobreza portuguesa se representava culturalmente por meio do trovadorismo. Assim, D. Dinis
se apresenta como um símbolo cultural e político; um primus inter pares que diz a justiça, que
canta o amor, os valores morais e “civilizatórios”25.
D. Dinis compôs 73 cantigas de amor, 51 cantigas de amigo, 10 cantigas de escárnio e
mal-dizer, e ainda 3 pastorelas. Contudo, restaram-nos apenas sete melodias encontradas em
1996 no Pergaminho Sharrer. Encontrado na Torre do Tombo, em Portugal, nomeado a partir
do pesquisador que o encontrou: Harvey Sharrer. Apesar de se encontrar em um estado
bastante prejudicado, o dedicado trabalho musicológico e paleográfico de Manuel Pedro
Ferreira traz algumas conclusões importantes acerca do estilo musical e poético das sete
cantigas registradas no manuscrito.

22
Id. p. 300.
23
Id. p. 306.
24
Ibid.
25
Pretendemos, em outro momento, desenvolver as questões acerca das relações entre centralização e modelo
civilizatório propostas pela historiografia tradicional e suas críticas.

25
Após uma extensa análise comparativa da forma musical, do ritmo e das
características mélicas, Ferreira identifica uma forte influência tanto provençal como do norte
da França. Porém, o musicólogo não reduz o estilo das cantigas a apenas este aspecto,
propondo que “[a]pesar dos aspectos que revelam influência transpirenaica, tanto as formas
musicais como o estilo melódico predominante nas cantigas têm um caráter fortemente
individualizado”26. Se as cantigas apresentam um estilo particular de D. Dinis ou um estilo
corrente na corte portuguesa quanto as cantigas de amor palacianas, ainda carecemos de
material para conclusões. No entanto, a possibilidade de relacioná-las aos modelos franceses e
contrapô-las ao modelo das CSM, de Alfonso X, apontam para algumas importantes
conclusões primárias. Essa escolha estilística revela-nos tanto as representações e interesses
políticos da nobreza ibérica como o lugar que esta prática artística ocupou na estrutura
política.
D. Dinis trovador é o rei que representa a cabeça desta nobreza, e seus versos
simbolizavam, mais do que uma poesia ficcional, um modelo simbólico de comportamento,
de estilo e de cultura. Ferreira alude à expressão “Canto coroado” para referir-se ao caráter
não apenas estilístico, mas político das trovas dionisinas, habitualmente, utilizada para referir-
se à ornamentação melismática27 do canto secular. Contudo, Ferreira amplia o significado
desta expressão para caracterizar as cantigas do Rei trovador a partir do tratado medieval De
Musica, do teórico francês contemporâneo de D. Dinis, Johannes de Grocheio, que propõe o
uso do termo para “designar uma canção em língua vulgar, de alto nível artístico, composta e
apreciada pela melhor aristocracia, e caracterizada por uma pulsação rítmica pausada e
regular”28. Assim, compõe-se uma relação entre o estilo das cantigas e a ideia de modelo
estético e social para a alta nobreza.
A coroação significa a atribuição de uma dignidade hierárquica superior, comparável
à de um monarca. O monarca medieval, como juíz supremo, representa o primado da
Razão, e como “lei animada em terra sua”, corporiza o Bem em que a comunidade
se reconhece; um “canto coroado” é assim, conceptualmente, um modelo de
racionalidade artística e de bondade poético-musical. 29

Logo, o poder real é também simbolizado nas formas de elaboração cultural, e as


cantigas se tornam um dos meios pelo qual D. Dinis exerce seu poder, principalmente, perante
a nobreza que o rodeia que, como foi dito, está recheada de nobres e trovadores. Entretanto,

26
FERREIRA, Manuel Pedro. Cantus coronatus: 7 cantigas d’El-Rei Dom Dinis. Lisboa:FCT/Kassel: Edition
Reichenberger. 2005, p. 104.
27
Forma de ornamentação na qual se canta mais de uma nota sob uma mesma sílaba.
28
FERREIRA. Cantus coronatus… Op. cit. p. 12.
29
Ibid.

26
não é apenas para essa nobreza que a arte do rei almeja ser ouvida, ampliando-se para um
círculo mais amplo de baixa nobreza e burguesia.
Sabe-se que o trovadorismo não foi uma prática apenas circundante à nobreza. Uma
grande diversidade de atores se propôs a “encontrar” seus versos e compor suas trovas. Dessa
forma, a estrutura que coloca um nobre poeta a compor as trovas e os jograis a interpretá-las
não pode ser limitadora a única maneira de circulação e apreciação das cantigas. Le Goff
aponta que
se o status social dos trovadores fora, desde o princípio, bastante diverso, incluindo
lado a lado grandes senhores, pequenos e médios nobres, burgueses e plebeus a
serviço de valores essencialmente aristocráticos, ao longo do século XIII o número
de trovadores não nobres aumenta, embora sua produção continue frequentemente
marcada pela cortesania.30

Isto aufere a esta prática uma ampla diversidade de vozes que entoavam seus versos em
espaços que vão do Paço ao burburinho citadino.
Essa complexa teia de relações que se abre monta um campo de representações onde o
rei, como trovador, procura se apresentar como uma referência artística tal qual o é no plano
político. Estabelece-se um jogo no qual as armas são os versos e melodias entoados. As
estruturas sociais são postas à prova no teatro trovadoresco e se constrói um espaço de ficção,
mas que ao mesmo tempo é um reconhecimento da realidade. Barros propõe que, neste
espaço, “a um poeta - e mais ainda quando este pode contar com a sedução dos sons musicais
- é por vezes dada a licença para dizer, sob o manto protetor do ritmo, das sonoridades
envolventes e das imagens poéticas, o que jamais poderia ser dito em prosa corrente”31,
dando, assim, por meio do teatro trovadoresco, a possibilidade de subversão ou manutenção
da ordem.
Um rei trovador é um monarca que se põe neste campo de batalhas simbólicas onde “o
fio da voz é ainda mais cortante que o fio da espada”32. Legitimar-se artisticamente, no
contexto dionisino, é uma forma de se legitimar perante a pluralidade de poderes atuantes em
seu reinado. Se tomarmos o modelo corporativo como fundamento teórico-filosófico para
interpretar o mundo simbólico de representações das cantigas percebemos que as práticas
trovadorescas são também espaço político no qual o rei se coloca como a cabeça do reino.
Assim, nada mais apropriado do que um “Canto coroado” para representar a qualidade das
trovas reais. Contudo, não é apenas uma adjetivação qualitativa, trata-se de uma escolha

30
LE GOFF, Jacques. Heróis e maravilhas da Idade Média. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 232.
31
BARROS. Música e poder no trovadoresco ibérico do século XIII. In: Tema & Matizes, vol 10, Paraná, 2006,
p. 38.
32
Ibid.

27
estética. Os próximos passos da pesquisa se destinarão a buscar nas cantigas elementos que
subsidiem a relação desta escolha com as questões políticas que envolveram o reinado de D.
Dinis e elucidar o papel das cantigas na cultura política medieval.

Referências

Fontes

Lopes, Graça Videira; Ferreira, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas Medievais Galego
Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA.
Disponível em: <http://cantigas.fcsh.unl.pt>.

Bibliografia

BARROS, José D’Assumpção. Música e poder no trovadorismo ibérico do século XIII. In:
Temas & Matizes, vol. 10, Paraná, 2006. p. 37 - 44.

FERREIRA, Manuel Pedro. Cantus coronatus: 7 cantigas d’El-Rei Dom Dinis.


Lisboa:FCT/Kassel: Edition Reichenberger. 2005.

______________. Emulação e hibridismo na Península Ibérica: antecedentes medievais. In:


Revista Portuguesa de Musicologia, nova série, 2/1: pp. 135-150, (2015), ISSN 0871H970
disponível em < http://rpmHns.pt>

HESPANHA, António Manuel. As vésperas do Leviathan. Coimbra: Almedina, 1994.

KNAUSS, Jéssica. Law and order in Medieval Spain: Alfonsine legislation and the
Cantigas de Santa Maria. Açedrex Publishing, 2011 (e-book).

LE GOFF, Jacques. Heróis e maravilhas da Idade Média. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

PINA, Rui. Crônica de Dom Dinis. Torre do Tombo, Portugal. Disponível em:
http://purl.pt/313/4/#/0.

PIZARRO, José Augusto de Sotto Mayor. D. Dinis. Lisboa: Círculo de Leitores e Centro de
Estudos Portugueses/ Temas e Debates. 2008. Série Reis de Portugal

28
O IDEAL DE CAVALARIA NA OBRA TIRANT LO BLANC DE JOANOT
MARTORELL (SÉCULO XV)

Láisson Menezes Luiz1

Resumo: Este trabalho visa refletir sobre as representações da cavalaria medieval presentes
em Tirant lo Blanc, obra escrita por Joanot Martorell (1413-1468). Ao longo das páginas
dessa novela de cavalaria, podemos acompanhar as aventuras guerreiras do cavaleiro Tirant,
desde o momento em que ele era apenas um aprendiz da cavalaria, até ele se tornar um
cavaleiro de grande fama. Esta obra fez parte da grande erupção dos romances de cavalaria do
século XV, em que podemos observar as seções cortesãs e combates, histórias de amor e
choques entre exércitos, bem como os acontecimentos relacionados com aquele contínuo
“errar” que disseminou homens pela Ásia, África e Europa, em busca de riqueza e fama.
Portanto, esta a obra é um importante documento para a compreensão das relações sociais,
políticas, culturais e imaginárias das pessoas no século XV.

Palavras-chave: Idade Média, Literatura, Cavalaria.

Buscamos neste trabalho, fazer uma reflexão sobre as representações da cavalaria e do


cavaleiro medieval na obra Tirant lo Blanc, escrita por volta de 1460, pelo autor valenciano
Joanot Martorell (1413-1468). Um dos interesses que motivaram a construção deste trabalho,
foi saber que esta obra depois de finalizada foi muitos requisitada, principalmente pelos
príncipes e membros da nobreza que encomendaram algumas traduções desse livro. O caso
mais conhecido foi o do príncipe D. Fernando de Portugal (1433-1470), filho do rei D. Duarte
(1433-1438) e da rainha Leonor de Aragão (1433-1438), que encomendou a tradução com
Martorell, como podemos observar em uma carta que Martorell escreveu respondendo ao
príncipe D. Fernando, dizendo que,

como a referida história e ações do citado Tirant estão em língua


inglesa, e foi do agrado de vossa ilustre senhoria rogar-me as vertesse
em língua portuguesa, julgado que eu, por ter permanecido algum
tempo na ilha da Inglaterra, deveria conhecer melhor que outros
aquela língua [...] vou atrever-me a verter não apenas da língua inglesa
para a portuguesa, mas ainda da portuguesa para o vernáculo
valenciano [...] (MARTORELL, 2004, p. 5-6).

Se houve uma tradução para o português, esta não sobreviveu ao tempo. Esta obra,
chegou até os nossos dias, através de alguns fragmentos de uma edição escrita em catalão de
1497 e outra escrita em castelhana, datada de 1511. Apesar da obra ter feito um relativo

1
Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás.
Bolsista Capes/Fapeg. Membro do LEME/UFG. Email: laissonmenezes@gmail.com

29
sucesso nos finais do século XV, não se pode dizer o mesmo dos séculos seguintes, pois
permaneceu “esquecida” entre os séculos XVI ao XIX, esta só voltou a cena em meados do
século XX, graças aos trabalhos, análises e estudos do filólogo e historiador Martin de Riquer.
Além dos motivos citados acima, outro fator que motivou ainda mais a elaboração
dessa proposta de pesquisa, foi a pouca atenção que os historiadores deram a esta obra. De
uma maneira geral os historiadores pouco se aventuraram a fazer suas pesquisas a partir de
romances de cavalaria, principalmente dos livros oriundos da península ibérica, onde muitos
ficaram relegados aos estudos literários e filológicos (ALBERTO, 2013, p. 344). Mesmo
sendo considerado um dos tesouros produzidos no final da Idade Média, ainda tem muito a se
conhecer não apenas sobre essa obra, mas sobre o autor e o contexto no qual estava inserido.
Sobre a obra que pretendemos analisar, esta conta nos seus quatrocentos e oitenta e
sete capítulos, distribuídos ao longo de suas mais de oitocentas páginas, a história do
cavaleiro Tirant desde quando é armando cavaleiro pelo rei da Inglaterra, sua entrada na
ordem de cavalaria, na qual ele acaba se destacando, o que faz que ele ganhasse fama e glória
e ficasse conhecido em várias regiões, momento em que ele passa a percorrer diversas regiões
da Europa e África, até a sua morte em Constantinopla onde ele foi nomeado César, o grande
imperador da Grécia.
Com relação ao autor Joanot Martorell, as informações sobre a sua vida são escassas.
Sabe-se que nasceu na cidade de Valência por volta de 1410 e que pertenceu a uma nobre
família de Gândia, região que fica próxima a Valência. Além de ter morado na Inglaterra onde
provavelmente se tornou cavaleiro e teve contatos com diversas fontes que serviram de base
para a criação da sua obra, há também indícios de que residiu por um tempo em Sicília e
Portugal, vindo a falecer em 1468.
Percebemos que além de aparecer marcas de alguns romances de cavalaria, Joanot
Martorell utilizou como base diversos autores para escrever a sua obra, entre essas referências
podemos citar Francesco Petrarca (1304-1374), Giovanni Boccaccio (1313-1375), Bernat
Metge (1340-1413), Jean de Mandeville (1300-1371), Guido dele Colonne (1210-1287),
Dante Aliguiere (1265-1321), Ramon Llull (1232-1316), Juan Rodriguez del Padrón (1390-
1450) entre outros. Além dessas referências Martorell utilizou outras obras como crônicas,
biografias entre outros documentos oficias afim de garantir uma maior veracidade dos fatos
narrados (SASOR, 2008, p. 109-110). Há também influências da Crônica Catalana, escrita no
século XIV por Ramon Muntaner (1256-1336). Nesta crônica acompanhamos o personagem
Roger de Flor (1267-1305), que provavelmente serviu de fonte de inspiração para Joanot
Martorell.

30
Percebemos que um dos objetivos de Joanot Martorell ao escrever a sua obra seria a de
resgatar o prestígio militar da cavalaria, ou seja, evitar que a honra e a virtude do cavaleiro
caíssem no esquecimento pois como nos mostra o próprio Martorell,

[...] a fragilidade de nossa memória submete facilmente ao


esquecimento não apenas os atos envelhecidos pelo afastamento no
tempo, mas também os atos recentes de nossos dias. Daí, pois, ter sido
mui oportuno, útil e conveniente colocar por escrito as gestas e
histórias antigas dos homens fortes e valorosos, para que sejam
espelhos bem límpidos, exemplos e ensinamento virtuoso para a nossa
vida [...] (MARTORELL, 2004, p. 7).

Por isso, Martorell alerta os seus leitores para que não se esqueçam das inúmeras
histórias que foram escritas com o objetivo de evitar que os ensinamentos da virtude caíssem
no esquecimento. Entre essas histórias ele cita aquelas que estão contidas nas sagradas
escrituras e os atos dos santos padres. O autor cita também as batalhas narradas por Homero
em suas obras, bem como aquelas histórias que estão contidas nas obras de Tito Lívio, Cipião,
Aníbal, Pompeu, Otávio, Marco Antônio. As fábulas poéticas de Virgílio, Ovídio e Dante.
Assim como os milagres e atos admiráveis dos apóstolos e dos mártires.
Neste sentido, buscamos neste trabalho analisar a partir da visão de Joanot Martorell,
qual seria o modelo ideal de cavaleiro e quais os requisitos necessários para entrar em uma
ordem e exercer o ofício da cavalaria. Com base nisso, analisaremos, sobretudo aqueles
capítulos em que o autor aborda sobre a arte da cavalaria, ou seja, aqueles capítulos em que
ele explica o que é a cavalaria, quais os requisitos que uma pessoa deve possuir para se tornar
um cavaleiro, quais as funções e os deveres do cavaleiro.
Logo nos primeiros capítulos Martorell deixa claro os assuntos que tratará ao longo de
sua obra. Segundo o autor, o livro se dividirá em sete partes, onde

a primeira parte versará sobre as origens da cavalaria; a segunda sobre


a condição e ofício da cavalaria; a terceira sobre o exame que deverá
fazer o gentil-homem ou o nobre que deseja receber a ordem da
cavalaria; a quarta sobre a forma como deve tornar-se cavaleiro; a
quinta sobre o que significam as armas de cavaleiro; a sexta sobre os
atos e costumes afetos ao cavaleiro; a sétima e última sobre a honra
que se há de prestar ao cavaleiro (MARTORELL, 2004, p. 9).

Neste trecho, percebemos que essas sete partes em que o autor divide o livro estão
diluídas ao longo de toda a obra. Vale ressaltar, que essa divisão apontada por Joanot

31
Martorell, é a mesma divisão feita pelo filósofo Ramon Llull no prólogo de sua obra O livro
da ordem de cavalaria, escrita por volta de 1279-1283. Além do prólogo, percebemos que
Martorell utiliza ao longo outras partes do livro de Ramon Llull para narrar a história do
cavaleiro Tirant, como veremos mais adiante.
Com relação à Tirant, este aparece pela primeira vez apenas no capítulo XXVIII, onde
este, junto com outros homens, haviam saído da Bretanha rumo a Londres, para participar do
casamento do rei da Inglaterra com a filha do rei da França, onde também seriam realizadas
lutas armadas entre os cavaleiros do reino. Mas em um determinado ponto da viagem, Tirant
adormece sobre o seu cavalo fazendo-o com ele siga por um caminho diferente dos seus
companheiros. Tirant desperta quando o seu cavalo interrompe os passos para beber água,
assim que acorda o cavaleiro se vê de frente com um eremita, que de acordo com a descrição
de cavaleiro, possuía uma

[...] barba mui crescida, alvíssima e com as vestes quase desfeitas, de


aparência pálida e frágil, o que era resultado da demasiada e
permanente penitência que fazia; os olhos, tinha-os bastante fundos,
em decorrência do excesso de lágrimas choradas. Seu aspecto era de
um homem admirável e de imensa santidade. (MARTORELL, 2004,
p. 50)

Após se admirar com a figura do eremita, Tirant desce do cavalo e faz uma reverência,
o eremita o recebe com um sorriso, após isso Tirant e o eremita sentam-se e o primeiro se
apresenta, dizendo que se chamava“[...] Tirant lo Blanc, porque meu pai foi senhor da Marca
de Tirânia, que pelo mar fez frente com a Inglaterra, e minha mãe, filha do duque da
Bretanha, chama-se Branca; por isso houveram por bem chamar-me Tirant lo Blanc”
(MARTORELL, 2004, p. 50).
Depois de uma longa conversa com o eremita, Tirant explica o objetivo da sua viagem,
que era ir até Londres para a celebração do casamento do rei da Inglaterra com a filha do rei
da França, e também participar dos torneiros e consequentemente receber a ordem da
cavalaria. Quando Tirant mencionou que o seu intuito era sagrar-se cavaleiro, o eremita soltou
um suspiro e entrou em profunda reflexão, preocupado Tirant pergunta, o que o atormentava,
o eremita então responde, dizendo que no passado havia sido um cavaleiro, e que “[...] há bem
cinquenta anos recebi a ordem de cavalaria em regiões da África, numa grande batalha contra
os mouros” (MARTORELL, 2004, p. 51). Tirant fica maravilhado ao saber que o eremita
havia sido cavaleiro e pede que este lhe fale mais sobre a ordem de cavalaria, pois mesmo

32
tendo frequentado a corte do rei da França, Castela e Aragão, nunca tinha ouvido falar na
ordem de cavalaria.
O eremita fala a Tirant, que tudo o que ele precisava saber a respeito da ordem de
cavalaria estava descrito em um livro intitulado Árvore de batalhas. Joanot Martorell não
menciona, mas esta obra é um tratado de direito de guerra, dividido em quatro partes, que foi
redigida em francês pelo prior Honoré Bovet (1345-1405), entre os anos de 1386 a 1389, que
ele dedicou ao rei francês Charles VI (1380-1422). Neste tratado, Bovet reflete sobre a guerra
a partir de um ponto de vista jurídico, para isso ele utilizou como referências as escrituras,
decretos, leis e a própria filosofia, com o intuito de discutir sobre a tribulação da Igreja, a
dissensão entre reis e príncipes cristãos e o desacordo entre as comunidades. Entre os assuntos
abordados por Honoré Bovet, chama-nos a atenção aqueles que dizem respeito a atividade da
cavalaria, bem como aqueles ligados a cavalaria enquanto grupo legitimado pelo rei. Para
Bovet, a cura para os problemas da cristandade e consequentemente para os males do reino,
seria um bom cavaleiro, ou seja, um bom serviço militar a disposição do reino (DRUCIAK,
2016, p. 57-69).
Aqui, podemos ter uma noção, do significado do exercício da cavalaria para Joanot
Martorell. Provavelmente tendo como base a obra de Honoré Bovet, no capítulo XXXII, o
eremita lê para Tirant uma parte do livro Árvores de batalha, para explicar como se fundou e
por que foi organizada a ordem da cavalaria. Começa dizendo que há muito tempo atrás a
caridade, a lealdade e a verdade estavam ausentes do mundo e que por isso nasceram a injúria,
a falsidade e a má vontade. Com o intuito de estabelecer a justiça e a caridade reuniram-se
pessoas de diferentes povos onde

[...] se elegeu o mais amável, de maior cordialidade, mais sábio, mais


leal, mais forte, de coragem mais elevada, com mais virtudes e bons
costumes do que todos os demais. Em seguida, procurou-se entre
todos os animais qual seria o mais belo, que corresse mais, suportasse
maior esforço, e melhor se adaptasse ao serviço do homem: o cavalo
foi escolhido e deram-no ao homem eleito entre os milhares. A esse
homem deu-se o nome de cavaleiro, pois havia-se ajustado o mais
nobre animal ao mais nobre homem. (MARTORELL, 2004, p. 52-53).

Posteriormente o autor cita o povoamento de Roma feito por Rômulo, seu primeiro rei,
que com o objetivo de que a cidade de Roma fosse lembrada com honra e nobreza, o rei
escolheu mil jovens que melhor sabiam manusear uma arma e “[...] armou-os e sagrou-os
cavaleiros, dando-lhes títulos e altas nobrezas e nomeando-os capitães de outras pessoas e

33
defensores da cidade; foram chamados milites [...]” (MARTORELL, 2004, p. 53). Mas o
eremita explica a Tirant que desde aquele tempo não era qualquer pessoa que poderia entrar
para a ordem de cavalaria, eram selecionados apenas os homens com grande coragem, os mais
fortes, leais e piedosos, que se comprometessem em defender as pessoas simples, evitando
que essas fossem abusadas.
O eremita segue explicando a Tirant, as qualidades e os requisitos que se dever ter
para ser um bom o cavaleiro. Uma pessoa que deseja entrar para a ordem de cavalaria tem que
ser mais

[...] denodado e valente que todos os demais, a fim de que possa


perseguir os maus, sem medo dos possíveis perigos; por outro lado,
deve ele ser afável e gentil em tudo e acessível às pessoas de qualquer
nível: eis por que ser cavaleiro significa grandes sacrifícios e fadigas”
(MARTORELL, 2004, p. 53).

Além disso, o eremita diz que desde o início, o cavaleiro foi criado para manter a
lealdade e a justiça em todas as coisas. Outra obrigação do cavaleiro apontado pelo eremita
seria defender a santa madre igreja, isto é, “ele não deve retribuir o mal com o mal: ao
contrário, deve ser humilde e perdoar com generosidade aqueles que o tenham prejudicado,
para que passem para seu lado; o cavaleiro deve defender a Igreja [...]” (MARTORELL, 2004,
p. 54).
Após abordar sobre o papel e a importância do cavaleiro na sociedade, o eremita passa
a explicar para Tirant o significado da armadura e das armas utilizadas pelos cavaleiros, ou
seja, as propriedades das armas defensivas e os significados das armas ofensivas. Com relação
as armas defensivas, que compreende a armadura, ele explica a Tirant que esta representa a
igreja, ou seja, deve permanecer enclausurada e murada pela proteção do cavaleiro, este
também deve defende-la contra todos aqueles que desejam destruí-la. Em seguida, o eremita
segue explicando a Tirant o significado de cada uma das partes da armadura do cavaleiro,
segundo ele,

À semelhança do elmo que deve ficar na ponta mais alta do corpo,


também mais elevada deve estar a coragem para amparar e manter o
povo, não permitindo que nem o rei nem ninguém lhe cause mal ou
dano. Os antebraços e manoplas significam que ele não deve mandar
ninguém em seu lugar: ele próprio deve ir, cabendo-lhe com os braços
e as mãos defender a Igreja, o povo que é bom e quantos levem vida
conduta. As proteções do braço significam que o cavaleiro deve
impedir que os homicidas e nigromantes causem mal ou dano às

34
igrejas. O arnês das pernas significa que, se o cavaleiro ouve ou sabe
que alguém quer causar dano à Igreja ou que infiéis vieram para fazer
mal à cristandade – deve ele sair em sua defesa, indo mesmo a pé para
a batalha, caso não possa fazê-lo a cavalo (MARTORELL, 2004, p.
56).

Depois de explicar a origem e a função do cavaleiro, no capítulo XXXV, o eremita


explica a Tirant o significado das armas ofensivas do cavaleiro.
Assim como a armadura, as armas ofensivas utilizadas pelos cavaleiros também
possuem vários significados, ligados principalmente a proteção da Igreja. O eremita começa
pela lança, que deveria ser longa e de ferro, pois assim o cavaleiro conseguiria afastar todos
aqueles que desejassem fazer mal a Igreja, além disso “[...] da mesma forma que a Igreja é
imensa, deve o cavaleiro agir tão intensamente que seja tido e temido por todos, mesmo pelos
que jamais o tenham visto; ele deve ser temido assim como a lança é respeitada e temida nos
enfrentamentos” (MARTORELL, 2004, p. 57). Ramon Llull (2010, p. 77), também aponta a
importância da lança para o cavaleiro, só que para ele a lança é dada ao cavaleiro para que
este combata a falsidade, possuindo assim o significado da verdade, que para o autor é a base
da esperança.
Outra arma fundamental para o exercício da cavalaria, é a espada. Sobre a função e o
papel da espada na sociedade medieval, inicialmente, muito antes de se falar em cavalaria, a
espada era utilizada no processo de coroação dos reis francos no Ocidente. O rei e a partir do
século IX, os condes e príncipes são representados portando principalmente a espada, pois
esta representava o símbolo de sua autoridade sobre os homens, o seu poder de justiça.
Portanto, a espada inicialmente,

para os “grandes” (os únicos que, nos textos mais antigos, recebem a
atenção dos redatores), a entrega da espada não marca, portanto,
apenas, nem mesmo sobretudo, sua entrada em uma cavalaria que
ainda viria a nascer. Ela tem um significado social e político mais que
profissional ou militar (FLORI, 2005, p. 32-33).

Ao explicar o significado e a função da espada para Tirant, o eremita diz que esta é a
arma mais nobre e digna que o cavaleiro pode carregar, na qual pode ser utilizada de três
maneira:

[...] primeiramente, defendendo a Igreja, matando e ferindo aqueles


que a queiram prejudicar. Como a ponta da espada que fura tudo o que
alcança, assim deve o bom cavaleiro furar e atingir quantos desejem

35
prejudicar a cristandade ou a Igreja, não tendo piedade deles nem
mercê alguma, ferindo-os por todos os lados com a espada. A correia
da espada significa que o cavaleiro deve cingir-se do cinto da
castidade da mesma maneira que prende a espada no corpo. O pomo
da espada significa o mundo, por isso o cavaleiro se obriga a defender
a república. A cruz significa a verdadeira Cruz, na qual quis padecer e
morrer nosso Redentor para remir a natureza humana. O mesmo deve
fazer todo bom cavaleiro: morrer pelo restabelecimento e conservação
de tudo o que se disse acima – morrendo por essa causa, sua alma irá
direto para o paraíso. (MARTORELL, 2004, p. 57).

Com a leitura desse trecho, podemos perceber que a utilização da espada pelo
cavaleiro, além de ter como objetivo manter a justiça, ela também tem um caráter religioso,
onde a função a seria proteger a religião cristã daqueles que desejassem prejudica-la. Função
que também é destacada por Llull (2010, p. 77), “ao cavaleiro é dada a espada, que é feita à
semelhança da cruz, para significar que assim como nosso Senhor Jesus Cristo venceu na cruz
a morte na qual tínhamos caído pelo pecado de nosso pai Adão, assim o cavaleiro deve vencer
e destruir os inimigos da cruz com a espada”.
Outro instrumento indispensável para o exercício da cavalaria é o cavalo, um dos
animais mais importantes e mais utilizados durante a Idade Média, pois desempenhavam
diversas atividades, como animal de carga e tração, meio de transporte e a partir do século XII
e XIII passou a ser utilizado nas charretes e nos arados, principalmente nos lugares onde as
terras eram mais pesadas. Os cavalos utilizados nas guerras eram considerados os animais
mais nobres, sua estrebaria ficava o mais perto possível da casa do seu senhor, e na maioria
dos casos esses animais recebiam acomodações e tratamentos bem superiores aqueles
destinados aos servos. (DELORT, 2017, p. 76-77).
Ao abordar sobre a importância do cavalo, o eremita diz a Tirant que este animal
representa o povo, sendo assim, como o cavaleiro defende o cavalo em batalha para que não
lhe seja causado nenhum mal, assim deve também proteger as pessoas, para que estas não
sejam exploradas. O significado que Martorell (2004, p. 57) aponta sobre o cavalo e a
utilização desse para o exercício da cavalaria é diferente da visão de Llull, segundo o filósofo,

[...] o cavalo é dado ao cavaleiro para significar nobreza de coragem e


para que seja, montado a cavalo mais alto que outro homem, e seja
visto de longe, e mais coisas tenha debaixo de si. E que antes que
outro homem esteja em tudo o que convém à honra de Cavalaria
(LLULL, 2010, p. 83).

36
Enquanto para Martorell o cavalo deveria ser utilizado pelo cavaleiro para a proteção
das pessoas, para Llull o significado do cavalo está mais ligado para a nobreza do cavaleiro,
pois este lhe dá uma superioridade sobre os demais.
Outra peça fundamental para o cavaleiro são as esporas, segundo Llull, estas são dadas
ao cavaleiro para

[...] significar diligência e esperteza e ânsia com que possa manter


honrada sua Ordem; porque assim como com as esporas esporeia o
cavaleiro seu cavalo para que se apresse e corra o mais velozmente
que possa, assim diligência faz apressar as coisas que convêm ser, e
esperteza faz o homem guardar de ser surpreendido, e ânsia faz
procurar o arnês e a despesa que é mister à honra de Cavalaria
(LLULL, 2010, p. 79-81)

Para Martorell, as esporas douradas que o cavaleiro usa também possui muitos
significados, pois essas, são colocadas nos pés para que o cavaleiro se lembre de que não deve
cometer traição, maldade ou qualquer outro ato que venha a infringir a honra da cavalaria.
Além de serem utilizadas para fazer o cavalo correr, a espora tinha como objetivo “[...]
estimular as pessoas a tornarem-se virtuosas, tanto é certo que um cavaleiro virtuoso basta
para gerar muitos virtuosos; contrariamente, deve aguilhoar os maus para que se tornem
temerosos” (MARTORELL, 2004, p. 57).
Além de apontar a importância e o significados da armadura e das armas utilizadas
pelos cavaleiros, Martorell ainda aponta que além disso, um bom cavaleiro deveria ter um
coração duro e forte contra aquele que são falsos e impiedosos, mas também, deveria ter um
coração brando, compadecendo-se sobretudo com aqueles que possuíssem uma vida reta, e
que fossem pacíficos e leais. Não deveria conceder piedade para aqueles que merecessem a
morte, pois se assim o fizer estaria condenando a sua própria alma (MARTORELL, 2004, p.
57).
Por fim, o eremita termina dizendo a Tirant que entrar para uma ordem de cavalaria é
algo para se levar a sério, pois além de ter que seguir o que foi exposto acima, o cavaleiro
também tinha como função proteger a população indefesa contra todos os aqueles que lhe
viesse a fazer mal, isto é, o cavaleiro deverá “[...] proteger as solteiras, viúvas, órfãos e
mulheres casadas, caso alguém queira ofendê-los, violentando-os e tomando-lhes os bens: os
cavaleiros são obrigados a expor-se a qualquer perigo, se forem chamados por alguma mulher
honrada a defende-la” (MARTORELL, 2004, p. 59).

37
Vimos que o eremita explica a Tirant que entrar para uma ordem de cavalaria exige do
cavaleiro muito esforço, devido a tantas renúncias e obrigações, pois segundo o eremita,
aquele que não cumpre com as suas obrigações terá a sua alma lançada no inferno.
Depois que Tirant aprende com o eremita esses breves ensinamentos sobre a cavalaria,
ele decide retomar o caminho para Londres, afim de participar do casamento real e receber e
ingressar na ordem de cavalaria, como último conselho o eremita diz a Tirant que

[...] já que tendes tanta vontade de receber a ordem da cavalaria,


recebei-a com renome e fama, ou seja, no dia em que a receberdes,
realizai feitos de armas para que os vossos parentes e amigos saibam e
que viveis para preservar e servir a ordem de cavalaria”
(MARTORELL, 2004, p. 62).

Ao partir, Tirant recebe do eremita o livro Árvore de batalhas, para que este mostre ao
rei e aos cavaleiros para que eles saibam o que realmente é a ordem de cavalaria. Tirant
agradece e promete que no seu regresso passaria por ali para contar ao eremita sobre os novos
cavaleiros e os festejos no qual havia participado.

Considerações finais

A partir dessa breve análise sobre a cavalaria e cavaleiro na obra Tirant lo Blanc de
Joanot Martorell, podemos compreender um pouco sobre o ideal de cavalaria e de cavaleiro
que se tinha nos finais da Idade Média na Península Ibérica.
Como coloca Jaume Aurell (2015, p. 197), os textos históricos são produtos do mundo
social de seus autores, e neste sentido devem ser percebidos como espelhos da sociedade e
geradores de realidades sociais, isto é, “quem elabora os textos históricos atua
simultaneamente como leitor do mundo ao seu redor e como escritor deste mundo. [...] No
texto histórico se tece o discurso que reflete uma realidade social, mas que ao mesmo tempo
constrói esta realidade”.
Neste sentido, podemos dizer que Tirant lo Blanc, reflete provavelmente às vivências
do autor Joanot Martorell, pois segundo alguns críticos este “viveu realmente como um
verdadeiro cavaleiro medieval e conheceu autênticos cavaleiros andantes da época, como
Felip Boyl, Jacme de Vilaragut, Don Pero Maça, entre outros” (CASSAR, 2008, p. 2).
Ao longo do texto, percebemos que um dos objetivos Joanot Martorell, se deu no
intuito de “iluminar” aqueles que pertenciam a cavalaria, apresentando-lhes exemplos de bons

38
costumes, afim de evitar que estes cometessem atos monstruosos e caíssem em vícios. Pois
somente os homens virtuosos seriam merecedores de honra, glória e fama.

Referências

Fontes

BOVET, Honoré. L’Arbre des batailles. Paris: Ernst Nys, 1883.

LLULL, Ramon. O livro da ordem de cavalaria. 2ª edição. Tradução: Ricardo da Costa. São
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39
A ESTÉTICA GÓTICA NA CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA DA CATEDRAL DE
BARCELONA NO SÉCULO XV

Lorena da Silva Vargas1

Resumo: A memória consiste, segundo o pensamento aristotélico, na propriedade humana de


captação do mundo sensível pelos sentidos externos, análise pelos sentidos internos e
compreensão por meio da formação da imagem ou do imaginário. O desenvolvimento visual,
artístico e arquitetônico, nesse sentido, seria legitimado pela causa mnemônica e cada vez
mais presente no cristianismo, a ponto de ser a arte gótica a maior expressão sensorial já
vivida desde a Antiguidade Clássica. Nesta comunicação, analisaremos como tal estética
influiu para a construção da memória da Catedral de Barcelona no século XV, a partir do
simbolismo dos elementos empregados, especificamente no interior do templo. Por meio dos
usos atribuídos àquele edifício e dos objetivos religiosos cumpridos pelo gótico,
identificaremos como o imaginário é aplicado ao lugar para a construção da memória e como
é possível, frente ao conceito de paisagem desenvolvido no período, afirmar a existência de
uma paisagem interna referente ao interior da Catedral

Palavras-chave: memória, arte gótica, Catedral de Barcelona

Introdução

Originalmente edificada no século IV, seria apenas em 1298 que a Catedral de


Barcelona iniciaria seu maior processo de ampliação, que duraria 150 anos, com o qual
recebeu as características góticas vigentes no período. Enquanto sede do bispado e local de
culto frequentado especialmente pela nobreza e burguesia, a Catedral era o marco dos
principais acontecimentos da cidade, das celebrações dominicais às celebrações em honra a
confrarias, aniversariantes e falecidos, de batizados a casamentos – celebrados com uma
semana de festejos. O espaço interno da Catedral corresponde a uma paisagem composta por
múltiplos elementos que evocam a memória e mexem com a sensibilidade do observador,
fazendo da Catedral uma paisagem de memória.
A utilização de aspectos visuais para a memorização, consiste em um método
provindo da Antiguidade, segundo o qual as imagens captadas pelo olhar seriam constituídas
pela mesma substância da imaginação e da memória, por isso seriam mais facilmente
memorizadas. “Desde a Antiguidade as imagens, e como elas a escrita, estão vinculadas à
memória. Se Platão se expressou sobre o nexo entre memória e escrita, a arte mnemônica
romana reforçou o nexo entre memória e imagem. ” (ASSMANN, 2011, pp.238-39). Além

1
Mestranda em História pela Universidade Federal de Goiás – PPGH/UFG e bolsista CNPq. Membro do
LEME/UFG. E-mail: lorenasvargas@hotmail.com

40
disso, a propriedade imagética de evocar emoções seria superior à dos demais sentidos,
possibilitando o armazenamento de fatos e impressões acerca de algo de modo muito mais
eficaz. A retomada gradual dos estudos sobre a memória no medievo, acarretaram de forma
igualmente gradual a abertura, principalmente religiosa, aos sentidos, como forma de
propagação ideológica e aproximação humana ao sentimento religioso.

A estética da Catedral de Barcelona

Emergente em um contexto no qual a utilização sensorial passava a ser cada vez mais
utilizada em prol do conhecimento científico e do saber religioso, em uma abertura à
observação, à audição, ao toque e ao perfume de tudo o que circunda o ser humano, o gótico
revela a proposta de uma arte entregue cada vez mais aos sentidos e à apreciação estética em
nome da fé. A pretensão de Suger foi criar uma arquitetura que revelasse a grandeza divina,
que trouxesse à Terra a Jerusalém Celeste e possibilitasse o encontro físico com o
transcendente por meio da simbologia dos elementos empregados. Em termos técnicos, a
estética arquitetônica embasava-se na harmonia das formas, cuja perfeição, não deixando de
lado a numerologia, trabalhava para a difusão da imagem da perfeição divina. As altas
catedrais que pretendiam tocar o céu, cujas gárgulas em formas de animais reais e fantásticos
lembravam ao homem dos perigos aos quais estava suscetível no mundo, criavam um
ambiente de temor, temor que deveria ser transferido a Deus. O mesmo Deus que pune,
entretanto, é o mesmo que acolhe. Ao adentrar à Catedral, a pequenez humana fica ainda mais
evidente em um espaço cuja mensagem é a salvação. Adentra-se, nada menos, que ao corpo
de Cristo, onde a cabeça seria a abside, os braços o transepto, o corpo a nave maior, os pés a
entrada do edifício e o coração a cruz e o altar, local da entrega de Jesus e do ponto alto do
rito litúrgico, trazendo à tona a memória da Santa Ceia. Jesus Cristo, enquanto memória
primeira do cristianismo e do templo cristão, está lembrado por toda parte. Enquanto igreja
dedicada à Santa Cruz, a Catedral de Barcelona carrega inúmeros crucifixos presentes desde a
torre, em pedra (Figura 1), até o coro e os vitrais, em pintura, como no vitral de Santo Antônio
(Figura 2), onde a cruz de Barcelona aparece no topo, relembrando o sacrifício de Cristo. A
pia batismal (Figura 3), por sua vez, evoca o batismo de Jesus no Rio Jordão e marca o
primeiro passo para a vida de uma pessoa “justa”: a cristianização, também recebida, segundo
a inscrição de uma lápide localizada próximo à pia batismal, por seis índios levados da
América por Colombo para receberem o santo batismo na Catedral de Barcelona, na presença

41
do rei Fernando, o Católico em abril de 1493, o que ressaltaria ainda mais o prestígio daquele
edifício.

Figura 1: Terraço, Catedral de Barcelona. Figura 2: Vitral de Santo Antônio, Catedral


Arquivo pessoal, 2018. de Barcelona.
Arquivo pessoal, 2018.

Figura 3: Pia Batismal, Catedral de Barcelona.


MARTÍ I BONET, 2010, p. 80.

42
Característica do gótico são também as capelas laterais localizadas ao longo de todo o
templo (Figura 4). Servindo como espaços isolados dedicados às variadas celebrações, as
capelas buscavam fomentar a oração individual e o culto à diversidade de santos que
correspondia às devoções dos vários grêmios da cidade, que possuíam, inclusive, no caso dos
de maior prestígio e representatividade, marcas de seu ofício esculpidas na Catedral, como o
grêmio dos sapateiros, cujo padroeiro era São Marcos (Figura 5).

Figura 4: Planta da ampliação da catedral românica Figura 5: Lápide em referência ao grêmio


(em vermelho) para a gótica (em preto). dos sapateiros, Catedral de Barcelona.
MARTÍ I BONET, 2010, p. 16. MARTÍ I BONET, 2010, p. 155.

Assim como as capelas, as abóbadas em cruz eram uma característica gótica que
rompia com a estrutura geométrica dos templos românicos. Ao encontro de cada nervura
encontram-se as chamadas chaves de arco, pedras que garantem a sustentação dos arcos e
carregam figuras heráldicas, de santos e, principalmente, da Virgem Maria, ressaltando-se a
Mãe de Misericórdia que acolhe os fiéis (Figura 6) e a cena da Anunciação. Tais pedras,
entretanto – 160 no total – são localizadas a uma distância de aproximadamente 25 metros do
solo. Segundo Josep María Martí i Bonet (2010, p. 73): “(...) os escultores [...] faziam aquelas
obras magistrais para serem vistas por Deus que, estando no céu, tudo vê. Eram, então, obras
para Deus e não apenas para os homens. ”. Ainda assim, a simples identificação de um espaço
ornado seria esteticamente aprazível e atrativo aos sentidos humanos, o que já justificaria de
certo modo sua presença. A memória da Virgem Maria, assim como dos santos, assume lugar
de destaque na Catedral de Barcelona. Dedicada à Santa Cruz, a Catedral dedica-se ainda à

43
Santa Eulália, padroeira da cidade, guardando seus restos mortais em um sarcófago gótico que
narra a vida da santa, contendo elementos românicos reaproveitados da antiga tumba
localizada na Basílica de Santa María del Mar até 878, quando Frodoí, bispo de Barcelona,
decide transladar os restos mortais de Santa Eulália para a Catedral, local considerado mais
apropriado para receber tão importante relíquia. O sepulcro em mármore (Figura 7)
substituiria a antiga tumba em 1339, narrando o martírio de Santa Eulalia em completa
policromia.

Figura 6: Chave de arco em referência à Mãe de Misericórdia, Catedral de Barcelona.


MARTÍ I BONET, 2010, p. 73.

Figura 7: Sepulcro de Santa Eulália, Catedral de Barcelona.


https://www.catedralbcn.org/index.php?option=com_content&view=article&id=31&Itemid=84&lang=ca.
Acesso em 20 de outubro de 2018.

Segundo São Francisco de Assis, Deus, enquanto fonte de toda beleza, faz de suas
criaturas reflexos de sua suprema beleza. Nesse sentido, partimos para a utilização da luz
enquanto uma das maiores características da estética gótica. Além do já utilizado círio pascal,

44
símbolo de vida por meio do Cristo ressuscitado, os vitrais seriam o elemento de maior
propagação estética da simbologia luminosa. Representante da presença divina, a luz, que
adentra o templo por meio dos 108 vitrais policromados da Catedral de Barcelona, representa
a mais nítida manifestação de Deus naquela paisagem e o maior contato que Ele realiza com
os fiéis, depois da eucaristia. Ainda nos vitrais, as cenas representadas evocam passagens
bíblicas, como a ressurreição de Jesus, representada pelo Noli me tangere (Figura 8), e
momentos das vidas dos santos, como o milagre de São Nicolau representado no vitral
dedicado a este santo (Figura 9), levando os fiéis ao conhecimento religioso e à reminiscência
do que já seria conhecido.

Figura 8: Noli me tangere, Vitral de Santa Maria Figura 9: Vitral de São Nicolau de Bari, 1405,
Madalena, 1495, Catedral de Barcelona. Catedral de Barcelona.
Arquivo pessoal, 2016. AINAUD, 1997.

A utilização artística na referida Catedral, entretanto, transcende o intuito de exaltação


da memória religiosa. A presença do escudo da Catalunha, bem como brasões reais, bispais e
aristocráticos em chaves de arco, como o do bispo de Barcelona Pere Planela (século XIV),
empregados ali como memória das famílias que financiaram a construção daquelas obras,
exaltava tanto seu prestígio na Terra quanto a garantia de seu lugar no céu. Do mesmo modo,
os brasões reais e bispais, como em uma disputa pelo poder terreno, deixam ali sua marca não
apenas como legado, mas como reafirmação de sua autoridade política e religiosa, naquele
momento, possuindo espaço em vitrais como o de Santa Eulalia (Figura 10), onde aparecem o
45
escudo do bispo Pons de Gualba e o escudo da Coroa de Aragão, o vitral de Santo Estêvão
(Figura 11), repleto do escudo de Barcelona, além do vitral de São Silvestre (Figura 12), onde
bustos de bispos e cardeais ocupam as extremidades da obra.

Figura 10: Vitral de Santa Eulália, 1385, Catedral de Figura 11: Vitral de Santo Estêvão, Catedral de
Barcelona. Barcelona.
Arquivo pessoal, 2018. Arquivo pessoal, 2018.

46
Figura 12: Vitral de São Silvestre, 1386, Catedral de Barcelona.
Arquivo pessoal, 2018.

De modo geral, tudo o que se fazia memória no interior do templo requeria respeito e
submissão por parte dos fiéis, de Jesus eucarístico às menções políticas, afinal, apenas os
escolhidos por Deus eram dignos de um lugar em sua casa. Em alguns casos, como o do
conde de Barcelona Ramon Berenguer I e de sua esposa Almodis, além de seus brasões,
encontram-se na Catedral seus restos mortais. O mesmo ocorre com reis como Alfonso, o
Liberal (1291), Frederico (1320), Jaume, conde de Urgel (1347), Constança da Sicília (1302),
Maria de Chipre (1322), Sibila de Fortià (1406), incluindo o corpo incorrupto de Santo
Olegário (século XII). Um episódio narrado por Joan Amades em seu livro Tradicions de la
Seu de Barcelona, diz respeito à exigência de um bispo, cujo nome não é identificado, de
colocar seu escudo na região mais visível da Catedral, como lembrança de sua gestão na
diocese. Os fieis, discordando daquilo, decidiram suspender as doações para a construção da
Catedral, que permaneceu sem avanços até a morte do bispo, quando seu escudo foi retirado e
as obras retomadas. Dentre as figuras ilustres cuja memória se preserva na Catedral, sob
auxilio da arte, está o canônico Lluís Desplà, que aparece junto ao próprio Cristo descido da
Cruz nos braços de Maria segundo a obra Pietat Desplà, de Bartolomé Bermejo datada de
1490 e localizada na sala capitular da Catedral (Figura 13). Bastante representativa da pintura

47
gótica do final do medievo, Pietat Desplà utiliza do enfoque emocional das personagens e da
paisagem a fim de levar o fiel observador a tomar as dores da cena.

Figura 13: Pietat Desplà, 1490, Bartolomé Bermejo, Catedral de Barcelona.


MARTÍ I BONET, 2010, p. 58.

Além das pinturas em tela, foram elaborados para a Catedral de Barcelona uma série
de retábulos no século XV, localizados em cada uma das capelas laterais. Com cores vivas e
perspectiva, os retábulos, assim como os vitrais, representam cenas bíblicas, como o retábulo
da Transfiguração de Jesus (Figura 14), ainda que sejam, em grande parte, dedicados à
representação da vida dos santos. Podem ser encontrados tanto como pinturas quanto como
esculturas, sendo este último o modelo que melhor revelaria o poder econômico da diocese.
Partindo para o coro, nota-se nas cadeiras – também conhecidas como misericórdias – que a
memória atua, na grande parte dos casos, não pela exaltação religiosa ou política, mas pela
lembrança de atividades cotidianas realizadas na cidade, como a prática de esportes,
especificamente ping-pong (Figura 15) e hóquei (Figura 16). Seria apenas no século XVI, em
ocasião da celebração do décimo nono capítulo da ordem do Tosão de Ouro, que seriam
pintadas nas cadeiras do coro a heráldica de cada um dos cinquenta cavaleiros ali presentes
(Figura 17).

48
Figura 14: Retábulo da Transfiguração do Senhor, 1452, Bernart Martorell,
Catedral de Barcelona.
MARTÍ I BONET, 2010, p. 90.

Figura 15: Misericórdia representando uma partida Figura 16: Misericórdia representando uma partida de
de ping-pong, Catedral de Barcelona. hóquei, Catedral de Barcelona.
MARTÍ I BONET, 2010, p. 138. MARTÍ I BONET, 2010, p. 138

Figura 17: Coro ornado com os escudos dos cavaleiros da ordem do Tosão de Ouro, 1519,
Catedral de Barcelona.
Arquivo pessoal, 2018.

49
Voltando-nos ao âmbito externo da Catedral, há dois elementos em especial que
merecem destaque. Em primeiro lugar, o sino, denominado Honorata que, soado pela primeira
vez em 1393, era o elemento que passava a marcar o tempo e a reger a vida urbana naquela
cidade, a partir de então. Em segundo lugar, dentre as 160 gárgulas que fazem parte da
Catedral, a que representa um elefante (Figura 18), símbolo de força e vigor, datada do século
XV, guarda a lenda segundo a qual, no dia em que a tromba do referido elefante cair, chegará
o juízo final e o mundo acabará. Daquele momento em diante, por duas vezes a tromba do
elefante caiu, e em nenhuma delas o mundo acabou.

Figura 18: Gárgula de elefante, séc. XV, Catedral de Barcelona.


Arquivo pessoal, 2018.

Findo o presente apanhado de elementos caracterizadores da presença gótica na


Catedral de Barcelona, é possível perceber como a memória, para além de seu fim religioso,
foi ferramenta fundamental para as mudanças e permanências sociais naquela sociedade,
valorizadora das gestas, recorrendo aos sentidos e às emoções enquanto elementos
propulsores da memorização. Percebe-se ainda, como a utilização artística cumpriu objetivos
no templo que foram muito além de uma simples função catequética. Citando Taranilla de la
Varga: “A catedral, como um livro com páginas de pedra e vidro profusamente ilustradas,
convida à leitura continua de todos seus elementos através da contemplação visual. ”,
possibilitando o desvendamento de enigmas, o encontro de histórias e a perpetuação da
memória.
50
Referências bibliográficas

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51
TARANILLA DE LA VARGA, Carlos Javier. Breve Historia del Gótico. Madrid: Ediciones
Nowtilus, 2017.

52
TÚMULOS FEMININOS E A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA FAMILIAR NO
REINO MEROVÍNGIO: ALGUMAS QUESTÕES A PARTIR DOS OBJETOS DA
RAINHA AREGONDA († c. 580)

Marina Duarte Sanchez1

Resumo: Os túmulos aristocráticos merovíngios são principalmente conhecidos por seus


luxuosos mobiliários funerários. Os depósitos, não sendo reflexos passivos do pertencimento
à aristocracia, sofrem variações segundo as diferentes identidades dos inumados (como
gênero, idade, matrimônio), manipuladas pelas famílias no momento de sua seleção. Essa
variação se dá pelas diferentes funções desses indivíduos na construção e reprodução de sua
memória familiar, prática fundamental na legitimação de sua posição social e de seus direitos
aristocráticos. A partir da apresentação do túmulo da rainha Aregonda († c. 580), o artigo tem
por objetivo levantar algumas questões sobre a especificidade feminina na materialização
dessa memória, buscando, portanto, pensar o papel social das mulheres e das práticas
funerárias dentro das estratégias mais amplas de disputas pelo poder no seio da aristocracia
merovíngia.
Palavras-chave: Família; Mulheres; Arqueologia Funerária.

Cum iam Ingundem in coniugio [Chlotharius] accipisset et eam unico amore


diligeret, suggestionem ab ea accepit, dicentes: ‘Fecit dominus meus de
ancilla sua quod libuit et suo me stratui adscivit. Nunc ad conplendam
mercide, quid famula tua suggerat, audiat dominus meus rex. Praecor, ut
sorore meae, servae vestrae, utilem atque habentem virum ordinare
dignimini, unde non humilier, sed potius exaltata servire fidelius possem.
Quod ille audiens, cum esset nimium luxoriosus in amore Aregundis incedit
et ad villam, in qua ipsa resedebat, dirigit eamque sibi in matrimonio sociavit.
Quae accepta, ad Ingundem rediens, ait: ‘Tractavi mercidem illam inplere,
quam me tua dulcitudo expetiit. Et requirens virum divitem atque sapientem
quem tuae sorori deberem adiungere, nihil melius quam me ipsum inveni.
Itaque noveris, quia eam coniugem accepi, quod tibi displicere non credo’ 2.

1
Graduanda em História pela Universidade de São Paulo. Membro do LEME/USP. https://usp-
br.academia.edu/MarinaDuarteSanchez
2
“[Clotário I] Já casado com Ingunda, a quem honrou com um amor único, recebeu dela uma sugestão: ‘meu
senhor, ela o disse, você fez comigo, sua criada, o que lhe agradou e me levou a sua cama. Para engrandecer sua
bondade, que o senhor meu rei queira me escutar. Digne-se, eu te peço, a escolher um marido para minha irmã,
que é sua escrava, que seja competente e afortunado, para que eu não tenha mais vergonha dela e que, um pouco
mais orgulhosa, eu possa te servir de maneira mais fiel’. Escutando seu pedido, o rei, que era lascivo em excesso,
se inflamou de amor por Aregonda [irmã de Ingunda] e foi até a villa que residia para se casar com ela. Quando
ele a esposou, retornou para Ingunda e lhe disse: ‘Eu resolvi conceder a graça que sua gentileza me pediu.
Procurando um homem rico e inteligente para casar com sua irmã, não encontrei ninguém melhor que eu mesmo.
Saiba, então, que eu a tomei como esposa, algo que, creio eu, não é para se aborrecer’”. Gregório de Tours,
Gregorii episcopi Turonensis historiarum libri X. KRUSCH, B.; LEVISON, W.; HOLTZMANN, W. (Eds.)
Monumenta Germaniae Historica, Scriptores Rerum Merowingicarum, t. I (Hanover, 1937 – 1951), IV, 3,
pp. 136-137. Tradução nossa.

53
O trecho acima, retirado dos Libri Historiarum Decem, de Gregório de Tours, é a
única menção significativa que temos da rainha Aregonda († c. 580)3 na obra. O bispo a
menciona apenas mais uma vez, quando nomeia as esposas do rei Clotário I († 561) e seus
filhos. A descoberta de seu túmulo na Basílica de Saint-Denis (França), em 19594,
possibilitou, pois, um avanço nos estudos sobre a rainha merovíngia, tanto sobre sua própria
história biológica quanto sobre os sepultamentos femininos no período.
A rainha pôde ser identificada através do anel que portava, onde estava gravado
ARNEGVNDIS em torno do monograma REGINE (rainha – fig. 1)5. Outra evidência é o
cruzamento das fontes escritas e arqueológicas, visto que, pela análise das ossadas e dos
objetos, o sepultamento seria contemporâneo a Aregonda, segundo as informações
cronológicas de Gregório de Tours6.
No ano de 2003, um projeto multidisciplinar, coordenado pelo Musée d'Archéologie
Nationale, em Saint-Germain-en-Laye, retomou as pesquisas sobre o complexo funerário da
basílica, recuperando objetos e vestígios orgânicos coletados dos túmulos, que estavam
dispersos em laboratórios e exposições de museus7. Foi possível analisar treze das quarenta e
sete sepulturas, determinando o gênero e a idade dos inumados. Também foi feita uma análise
de DNA nas ossadas, revelando que pelos menos quatro desses indivíduos tinham relações de
parentesco8. Graças aos novos métodos de análise do tecido dentário, a idade da rainha no
momento de sua morte foi corrigida para aproximadamente 61 anos, e não 45, como antes se
acreditava9.
As joias depositadas com Aregonda apresentam muitos sinais de desgaste e de
reparação, contemporâneos ao sepultamento. Três pares delas (os brincos, os broches

3
Esposa do rei Clotário I († 561) e mãe do rei Chilperico I († 584).
4
Cf. FLEURY, M; FRANCE-LANORD, A. Das Grab der Arnegundis in Saint-Denis. Germania, Franfurt am
Main, 40, 2, 1962, pp. 341- 359; FLEURY, M. Nouvelle campagne de fouilles de sépultures de la basilique de
Saint-Denis (mars 1957-mai 1958). Comptes rendus de l’Académie des Inscriptions et Belles Lettres, Paris,
1958, pp. 137-150.
5
PÉRIN, Patrick. Portrait posthume d’une reine mérovingienne. Arégonde († c. 580), épouse de Clotaire Ier (†
561) et mère de Chilpéric Ier († 584). Le corti nell’Alto Medioevo, Settimane di Studio dela Fondazione Centro
Italiano di Studi Sull’Alto Medioevo LXII, Spoleto, 24-29 abril 2014, p. 1002.
6
Ibid., pp. 1035-1042.
7
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les restes organiques humains, animaux et végétaux trouvés en 2003. In: ALDUC-LE BAGOUSSE, Armelie
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8
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interdisciplinaires”. In: FRIESINGER, Herwig; VON FREEDEN, Uta; WARMERS, Egon (Orgs.). Glaube, Kult
und Herrschaft: Phänomene des Religiösen im 1. Jahrtausend n. Chr. in Mittel- und Nordeuropa. Akten des 59.
Internationalen Sachsensymposions und der Grundprobleme der frühgeschichtlichen Entwicklung im
Mitteldonauraum, 2009, p. 174.
9
Ibid., p. 178-179.

54
discoides e as fivelas de seu sapato – figuras 2-4) não são simétricos, sugerindo uma
qualidade inferior de execução10. Algumas partes da fivela de seu cinto e de seus broches
possuem vidro vermelho, não sendo completamente decorados com granadas (muito comuns
nas joias merovíngias) ou com outras pedras preciosas. Esses podiam ser indícios de uma
condição inferior desse túmulo, mesmo considerando a presença de tecidos coloridos e o
espaço funerário privilegiado11, o que seria surpreendente dado o estatuto de rainha que
Aregonda possuiu. No entanto, veremos que outros fatores, para além da posição social,
influenciaram na escolha dos depósitos das inumações merovíngias.
Nosso objeto neste artigo é de abordar, a partir dos sepultamentos femininos, a
construção da memória familiar como uma estratégia de manutenção e expansão do poder das
famílias aristocráticas. Algumas questões acerca do túmulo da rainha Aregonda serão
levantadas, a fim de demonstrar como essa memória pode ser construída de maneiras
diferentes, dependendo das identidades individuais do inumado e do lugar que ocupa nas
disputas por poder.
Primeiramente, é necessário contextualizar a mudança nas práticas funerárias que
ocorreu no final do século V com o aparecimento dos “túmulos de chefe”, modelo no qual o
sepultamento de Aregonda se enquadra. Esse padrão, que desapareceu no século VIII, é
facilmente identificável pelas suas características geográficas (é encontrado entre as regiões
do Sena e do Reno), temporais (aparece no final do século V, tem seu apogeu no século VI e
gradativamente desaparece nos séculos VII e VIII), e pela semelhança estilística dos objetos e
da organização interna dos túmulos. Dentro do modelo, homens são sempre enterrados com
armas e mulheres com joias, o que nos permite identifica-los como membros da aristocracia12.
O túmulo de Childerico I, pai de Clóvis I, encontrado em Tournai (Bélgica) no século XVII, é
considerado seu precursor, assim como um dos mais ricos sepultamentos da Alta Idade
Média13.

10
PÉRIN, Patrick. Portrait posthume d’une reine mérovingienne. Arégonde († c. 580), épouse de Clotaire Ier (†
561) et mère de Chilpéric Ier († 584), p. 1013.
11
Na época merovíngia, o ambiente religioso era reservado para os sepultamentos reais e de indivíduos que
ocupavam cargos muito próximos ao rei. PÉRIN, Patrick. “Les tombes mérovingiennes de la basilique de Saint-
Denis: Nouvelles recherches interdisciplinaires”, p. 174.
12
Cf. DUMÉZIL, Bruno. “Tombes de Chefs”. In: DUMÉZIL, Bruno (dir). Les barbares. Paris: PUF, 2006, pp.
1294-96; HALSALL, Guy. Cemeteries and Society in Merovingian Gaul: Selected Studies in History and
Archaeology, 1992–2009. Leiden: Brill, 2010; PÉRIN, Patrick. “L’expansion franque (vers 486 - vers 540)”. In:
Les Francs, précurseurs de l’Europe, Musée du Petit Palais, 1997; EFFROS, Bonnie. Merovingian Mortuary
Archaeology and the Making of the Early Middle Ages. Los Angeles: University of California Press, 2003.
13
LE JAN, Régine. “O historiador e suas fontes: construção, desconstrução, reconstrução”, trads: Flávia
Aparecida Amaral e Robson Murilo Grando Della Torre, Revista Signum, 17, 1, 2016, pp. 14-15.

55
Desde a metade do século XIX, estudiosos começaram a questionar o significado
dessa prática de deposição de bens, além do sentido que esses objetos poderiam portar.
Naquele momento, eles foram interpretados como símbolos de sobrevivência pagã na
sociedade merovíngia, onde a conversão ao cristianismo seria apenas superficial14. Um
exemplo seria Jean-Benoît-Désiré Cochet (1812 - 1875), que, ao analisar a prática de
deposição de objetos de maneira pejorativa, reforçou um antagonismo entre os merovíngios e
a cultura carolíngia, momento no qual tal costume desapareceu15.
Para os seguidores de Gustaf Kossinna (1858 - 1931), isto é, os adeptos da teoria
histórico-culturalista, a função dos depósitos seria a de manifestação da identidade étnica do
inumado. Logo, os “túmulos de chefe” teriam pertencido aos líderes francos, que se utilizam
do ritual funerário e se enterram com seus objetos supostamente característicos para reafirmar
seu lugar no grupo étnico e se opor às práticas romanas16. Os broches foram os objetos mais
utilizados na defesa desse tipo de interpretação. Podendo ser de vários tipos (como discóides,
ansées, Gleicharmige, ou com formato de animais), eles são recorrentes em túmulos
femininos desse modelo e, como são associados à vestimenta, auxiliam na reconstrução das
vestes utilizadas pela inumada17. Para o histórico-culturalismo, sua função seria, pois, de
simbolizar determinada etnia, onde as mulheres que o portavam serviriam de ícones passivos
da identidade do grupo18.
Desde a metade do século XX, arqueólogos contrários a tais interpretações de caráter
biológico analisaram esse fenômeno como fruto de uma afiliação cultural e política19. Um
exemplo é Patrick Périn, que defende que a função dos depósitos seria de demonstrar o lugar
social ocupado pelos guerreiros a serviço do rei merovíngio, que reivindicariam essa ligação
através do uso de objetos de estilo franco20. Seguindo essa linha interpretativa, o nível de
riqueza de um túmulo corresponderia à posição do inumado na hierarquia, firmemente

14
EFFROS, Bonnie. Merovingian Mortuary Archaeology and the Making of the Early Middle Ages, p. 65.
15
Cf. COCHET, Jean-Benoît-Désiré. La Normandie souterraine, ou Notices sur des cimetières romains et
des cimetières francs explorés en Normandie. Paris: Derache, 1855, 2 ed.; COCHET, Jean-Benoît-Désiré. Le
tombeau de Childéric Ier roi des francs, restitué à l’aide de l’archéologie et des découverts récentes.
Brionne: Gérard Monfort, 1978, reeditado.
16
HALSALL, Guy. Cemeteries and Society in Merovingian Gaul: Selected Studies in History and
Archaeology, 1992–2009, p. 23.
17
EFFROS, Bonnie. “Dressing Conservatively: women's brooches as markers of ethnic identity?” In:
BRUBAKER, Leslie; SMITH, Julia M. H. (eds.). Gender in the early medieval world. East and West, 300-
900. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 164.
18
Ibid., p. 167.
19
DUMÉZIL, Bruno. “L’identité franque au VIe siècle”. In: Nos Ancêtres les Barbares: voyage autour de
trois tombes de chefs francs. Paris: Somogy éditions d’art, 2008, pp. 23-32.
20
PÉRIN, Patrick. “Possibilités et limites de l’interprétation sociale des cimetières mérovingiens”, Antiquités
Nationales, 30, 1998, p. 171.

56
controlada pelo poder real21. O fato dos depósitos serem mais intensos no começo do período
merovíngio, nas regiões ao norte do Sena, isso é, nos primeiros territórios dominados pelos
francos, foi visto como um indício de sua expansão territorial22.
No entanto, ao contrário de Patrick Périn, Guy Halsall vê o aparecimento dos
“túmulos de chefe” como um sinal de desestabilização das relações políticas causadas pelo
enfraquecimento da ordem romana no norte da Gália, no final do século V. Graças ao vácuo
de poder, os chefes bárbaros teriam ascendido a novas posições de autoridade e a novas fontes
de riqueza, mas a falta de uma hierarquia estável e completamente legítima durante as
primeiras gerações teria gerado uma forte rivalidade por essas posições. Consequentemente, a
morte de um chefe seria um elemento extremamente desestabilizador, caso a sucessão dos
herdeiros não estivesse bem afirmada no grupo, visto o cenário de competição entre as
elites23.
Não é claro se a legitimidade familiar dos primeiros reis francos baseava-se em uma
continuidade hereditária, o que faria de Clóvis o único sucessor possível de Childerico à
realeza24. Dessa maneira, é possível deduzir sua aspiração a herdeiro legítimo, através da
organização de um funeral opulento para seu pai25.
A riqueza, portanto, mesmo não sendo suficiente por si só para garantir uma posição
de poder, legitima-a de fato através de sua exibição26. Ela permite a compra de terras e de
lealdade, mas também é um marcador de distinção nas cerimônias públicas, através da
promoção de banquetes e da organização das celebrações funerárias. Assim, a dilapidação da
riqueza seria característica dos períodos de forte mobilidade social e de competição política,
revelando-se para essa sociedade como um claro indício de pertencimento à aristocracia27.
O estatuto de liberdade de um indivíduo era uma qualidade jurídica, diferente de sua
posição na hierarquia, que precisava ser reconhecida socialmente. Pertencer às elites
significava ser membro uma família estimada como legítima detentora de direitos políticos.
Portanto, as cerimônias funerárias seriam uma estratégia de poder, que, através da

21
DUCHET-SUCHAUX, Gaston; PÉRIN, Patrick. Clovis et les Mérovingiens, vers 250 - 751. Paris: Éditions
Tallandier, 2002.
22
PÉRIN, Patrick. “Possibilités et limites de l’interprétation sociale des cimetières mérovingiens”, p. 177.
23
HALSALL, Guy. Cemeteries and Society in Merovingian Gaul, p. 28.
24
LE JAN, “O historiador e suas fontes: construção, desconstrução, reconstrução”, p. 18.
25
FISCHER, Svante; LIND, Lennart. “The Coins in the Grave of King Childeric”, Journal of Archaeology and
Ancient History, 14, 2015, p. 6.
26
As fontes não permitem concluir se todos os que são ricos detinham o poder. DEVROEY, Jean-Pierre.
Conclusion. La richesse, entre réalités matérielles, pratiques sociales et représentations. In: DEVROEY, Jean-
Pierre; FELLER, Laurent; LE JAN, Régine (eds.), Les élites et la richesse au Haut Moyen Âge, Turnhout:
Brepols Publishers, 2010, p. 511.
27
Ibid., p. 514.

57
materialização de uma memória familiar, ligaria a autoridade de seus ancestrais com o direito
de seus herdeiros28.
A afirmação da memória é central nas disputas políticas, pois ela permite que um
indivíduo se situe em um grupo familiar, que não se formava apenas pelas relações de sangue;
era composto tanto pela família “biológica” como pelos parentes da esposa ou esposo aliados,
pelos seus escravos e dependentes, e também por seus ancestrais. Em seu interior, se
estabeleciam relações de dominação, de reciprocidade e de proteção. O parentesco era, pois,
baseado no reconhecimento social da relação, e não um fato dado e natural de qualquer
sociedade na história. Ele determinava as formas e os modos de funcionamento das
instituições, dos grupos sociais e das representações do poder29.
Contudo, a materialização da memória familiar não impactava apenas o modo como
esses indivíduos se representavam, tanto em vida como em seus funerais. Ela tem impactos
materiais, legitimando a possessão de terras e de tesouros, o direito de exercer honores, mas
também afirmava a legitimidade de uma sucessão, tanto no que diz respeito ao poder local
como em uma linhagem real30. A importância do modelo de “túmulos de chefe” pode ser
deduzida a partir dessa noção de memória familiar, que buscava se ligar a um passado e a
ancestrais comuns, desde Childerico I.
Mesmo dentro do padrão, existem variações na escolha dos depósitos, que dependem
das identidades individuais dos inumados. No entanto, no caso masculino, a posição social do
inumado parece ser o grande fator determinante para a seleção. Através da análise
comparativa dos sepultamentos, é possível inferir uma escala crescente, onde o grau de
riqueza e a quantidade de armas depositadas acompanham o cargo que um homem ocupava e
sua proximidade com o poder real31. Contudo, no caso feminino, podemos notar que outros
fatores podem ter afetado como seriam representadas, como sua idade, pertencimento ou não
à vida religiosa e seu “estado civil” 32.
Tais condições são cruciais para analisar as representações distintas materializadas nos
túmulos, pois dizem respeito às diferentes atribuições sociais dentro das camadas mais altas
da sociedade. Consequentemente, é possível que essas diferenças dentro dos “túmulos de

28
LE JAN, Régine. Famille et pouvoir dans le monde franc (VIIe-Xe siècle). Paris: Publications de la
Sorbonne, 2003, p. 28.
29
Ibid., pp. 88-91.
30
DEVROEY, Jean-Pierre. Conclusion. La richesse, entre réalités matérielles, pratiques sociales et
représentations, pp. 31-34.
31
Cf. MORSEL Joseph. L'Aristocratie médiévale. La domination sociale en Occident (Ve-XVe siècle).
Armand Colin, Paris, 2004, p. 158.
32
HALSALL, Guy. Cemeteries and Society in Merovingian Gaul, p. 311.

58
chefe” sejam sinais da construção de uma memória familiar, que é exposta de diferentes
maneiras segundo o papel do indivíduo dentro das estratégias de poder.
Ao estudar cemitérios na região de Metz, Guy Halsall nota que, enquanto poucos
meninos adolescentes são enterrados com armas (objetos especificamente masculinos),
meninas da mesma idade são enterradas com um grande número de artefatos
caracteristicamente femininos (como joias). Esta tendência pode significar que um possível
papel do gênero feminino (sua importância nas trocas matrimoniais a fim de criar ou reforçar
alianças familiares) era reconhecido anteriormente ao masculino, o que afetou como as
meninas eram representadas nos funerais33.
Desde que nasciam elas seriam esposas em potencial, ao passo que os homens
obtinham seu estatuto social (através do exercício de cargos administrativos) conforme
cresciam. A necessidade de reforçar esse papel de grande importância atribuído às mulheres
se traduz na ênfase de objetos femininos de alto valor depositados em seus túmulos, mesmo
nos de meninas ainda muito jovens34.
As joias, de maneira geral, são uma constante, mesmo nos sepultamentos mais
simples35. Sua presença sistemática sublinha sua importância na representação feminina, pois
a beleza da mulher é um fator contribuinte para o prestígio da casa familiar: “Parure de son
époux et de la maisonnée, la femme aristocratique est forcément belle”.36
Bonnie Effros afirma que as fíbulas encontradas nesses sepultamentos, longe da
interpretação étnica, foram vistas como símbolos de outras identidades, como o pertencimento
à aristocracia (dado o valor desses objetos37) e a identidade de gênero (já que apenas mulheres
38
são encontradas com esses objetos) . Para a autora, ver a manifestação de etnia como o
objetivo primordial do depósito mortuário restringe o potencial interpretativo das funções
simbólicas dos broches associados a esses túmulos39.
Alguns objetos também podem sofrer alterações em como eram usados e por quem.

33
Ibid., p. 302.
34
JAUBERT, Anne Nissen, La femme riche. Quelques réflexions sur la signification des sépultures féminines
privilégiées dans le Nord-Ouest européen. In: DEVROEY, Jean-Pierre; FELLER, Laurent; LE JAN, Régine
(eds.), Les élites et la richesse au Haut Moyen Âge, 2010, p. 314.
35
JAUBERT, Anne Nissen. La femme riche. Quelques réflexions sur la signification des sépultures féminines
privilégiées dans le Nord-Ouest européen, p. 315.
36
“Adorno de seu marido e de sua casa, a mulher aristocrática é necessariamente bela.” Tradução minha. JOYE,
Sylvie. Les élites féminines au haut Moyen Âge. In: L’historiographie des élites dans le haut Moyen Âge.
Travaux préparatoires, LAMOP. http://lamop.univ-paris1.fr/W3/elites/joye.pdf.
37
A maioria das fíbulas encontradas é feita com granadas (algumas de origem indiana) ou com outras pedras
preciosas. Logo, é possível deduzir o alto custo de fabricação desse tipo de joia. PÉRIN, Patrick. Cloisonné. In:
DUMÉZIL, Bruno (Org.). Les barbares, 2016, pp. 420-423.
38
EFFROS, Bonnie. “Dressing Conservatively: women's brooches as markers of ethnic identity?”, p. 166.
39
Ibid., p. 179.

59
Isabelle Cartron, por exemplo, discute a presença de cintos nos túmulos femininos, objetos
associados ao universo masculino, apontando outro fator influenciador: o “estado civil” da
mulher enterrada. Mulheres que ainda eram casadas no momento de sua morte são enterradas
com cintos ao lado de suas cabeças. Já no caso de mulheres viúvas, os cintos são encontrados
em volta de suas cinturas40. Essa prática pode marcar um desejo de reforçar ligações entre as
famílias do casal, evocando seus laços de parentesco.
Esses vínculos também se fazem presentes nos túmulos de abadessas, que
desempenhavam um papel importante como intermediárias do acesso familiar ao sagrado.
Isso permitiria não só o controle da região e dos arrendamentos monásticos, mas também uma
legitimidade sacralizada do poder exercido por determinada família41. Logo, a organização
funerária de seus túmulos é semelhante em nível de riqueza e de depósitos daqueles de
aristocratas laicas, evocando suas origens familiares42.
A idade também é um fator determinante. Segundo Halsall, o estresse gerado em um
grupo seria ainda mais agudo no caso do falecimento de um homem jovem, que
possivelmente deixaria herdeiros ainda muito novos, ou de uma mulher jovem, que pode ter
dissolvido laços de alianças recentes através do matrimônio. Logo, túmulos de indivíduos
mais jovens (entre quinze e quarenta anos) são encontrados com mais objetos (e de maior
valor também) do que aqueles de pessoas mais velhas43.
Podemos observar essa tendência se compararmos o túmulo de Aregonda com a da
rainha Visegarda († c. 540)44, encontrado na Catedral de Colônia (Alemanha), que morreu
com aproximadamente 28 anos. Também não há muitas menções à jovem nas Histórias de
Gregório de Tours; a passagem mais significativa se refere a seu longo noivado com o rei
Teodoberto I, que, por se relacionar com uma nobre galo-romana chamada Deutéria, se
recusava a se casar com a princesa, e sobre sua morte poucos anos após o rei finalmente a
esposar45. Descoberto em 1959, debaixo do coro da catedral, o túmulo da jovem rainha era

40
CARTRON, Isabelle. “Variations autour d’un objet: La ceinture des femmes du haut Moyen Âge”. In:
JÉGOU, Laurent; JOYE, Sylvie; LIENHARD, Thomas; SCHNEIDER, Jens (eds.) Splendor Reginae. Passions,
genre et famille, Turnhout: Brepols, 2015, p. 129 - 138.
41
LE JAN, Régine. Femmes, pouvoir et société dans le haut Moyen Âge. Paris: Picard, 2001, p. 17.
42
GAILLARD, Michèle. Female Monasteries of the Early Middle Ages (Seventh to Ninth Century) in Northern
Gaul: Between Monastic Ideals and Aristocratic Powers. In: BURTON, Janet; STÖBER, Karen (Orgs.). Women
in the Medieval Monastic World Turnhout: Brepols, pp. 75-97.
43
HALSALL, Guy. Cemeteries and Society in Merovingian Gaul, p. 206.
44
Filha do rei lombardo Wacho († 539).
45
“Cumque iam septimus annus esset, quod Wisigardem disponsatam haberet et eam propter Deuteriam accipere
nollet, cuniuncti Franci contra eum valde scandalizabantur, quare sponsam suam relinqueret. Tunc commotius,
relicta Deuteria, de qua parvolum filium habebat Theodobaldum nomen, Wisigardem duxit uxorem. Quam nec
multo tempore habens, defuncta illa, aliam accepit. Verum tamen Deuteriam ultra non habuit.” Gregório de
Tours, Gregorii episcopi Turonensis historiarum libri X. KRUSCH, B.; LEVISON, W.; HOLTZMANN, W.

60
extremamente rico – com mais de 100 objetos depositados. Muitas joias eram decoradas com
pedras preciosas, principalmente granadas almandinas e pérolas. A quantidade de moedas
encontradas também foi notável46.
Em comparação com o túmulo da rainha Aregonda, percebemos que o gasto feito com
a mulher mais nova foi consideravelmente maior. Como dito anteriormente, sua morte já em
idade avançada (por volta de 60 anos) possivelmente não gerou uma grande tensão social.
Aregonda já tinha se casado há anos, era viúva e seu filho, Chilperico I, já era rei da Nêustria
desde 561 (cerca de 20 anos antes da morte de sua mãe).
Em contrapartida, a morte de Visegarda, casada após um longo noivado arranjado por
seu pai e Teodorico I (pai do noivo, Teodeberto I), pode ter abalado as relações entre as
famílias reais (provavelmente já estremecidas pela recusa constante de matrimônio por parte
de Teodeberto). Além do mais, a morte de uma mulher ainda jovem elimina, mesmo que
momentaneamente, a possibilidade de herdeiros, extremamente importante para a sucessão de
uma linhagem. Dessa maneira, o estresse causado por sua morte pode ter exigido um maior
investimento na manifestação pública de sua imagem durante a cerimônia funerária e na
materialização da memória familiar real merovíngia (através do modelo “túmulos de chefe”)
ligada a ela, em uma tentativa de reforçar o laço entre as duas famílias. Além do mais, pela
comparação, percebemos que a idade de ambas as rainhas afetou de maneira mais
significativa em suas representações do que sua posição social semelhante.
Voltando ao caso de Aregonda, com a ideia de memória em mente, podemos
apresentar uma alternativa para classificação de seu túmulo, que não de valor inferior. Similar
ao que propõe Isabelle Cartron e Dominique Castex para a “Dama de Jau-Dignac”47, as
marcas de uso e de reparo também fazem parte do processo de materialização da memória
familiar. Como mencionado anteriormente, essa construção depende da identidade do
inumado, que infere sobre seu lugar nas disputas por poder. Para uma mulher da idade de
Aregonda, o tipo de memória apropriado seria a memória de uso desses objetos, isso é, da
possessão dessas joias por ela (ou por sua família) já há muitos anos. As marcas, portanto,
agregariam esse tipo de valor simbólico específico, ligado também à memória familiar
expressa através de uma mulher mais velha. É um tipo de valor diferente daquele agregado

(Eds.) Monumenta Germaniae Historica, Scriptores Rerum Merowingicarum, t. I (Hanover, 1937 – 1951),
III, 27, p. 124.
46
PÉRIN, Patrick; WAMERS, Egon. Königinnen der Merowinger. Adelsgräber aus den Kirchen von Köln,
Saint-Denis, Chelles und Frankfurt am Main. Regensburg: Schnell Steiner, 2013, pp. 79 – 87.
47
CARTRON, Isabelle; CASTEX, Dominique. Identité et mémoire d'un groupe aristocratique du haut Moyen
Âge: le site de "La Chapelle" à Jau-Dignac et Loirac (Gironde). In: ALDUC-LE BAGOUSSE, Armelie (Org.)
Inhumations de prestige ou prestige de l'inhumation? Expressions du pouvoir dans l'au-dela (IVe-XVe
siecle), 2009, pp. 151-174.

61
nos objetos de Visegarda, que são intrinsicamente (pelos materiais e pela produção) mais
caros.
A análise dos objetos encontrados nos túmulos nos possibilita estudar as diferentes
qualidades associadas às finadas que suas famílias gostariam de demonstrar, sendo que essas
representações estão associadas à construção da memória familiar. A fim de materializá-la e
afirmá-la, as famílias manipulavam diferentes elementos segundo suas identidades
individuais. Em outras palavras, diferentes membros ocupavam diferentes funções dentro das
estratégias familiares de poder, e para cada um deles, um tipo de memória precisava ser
exposta. Nesse sentido, as práticas funerárias e o papel social feminino devem ser
compreendidos dentro das estratégias familiares mais amplas de disputas pelo poder.
As famílias aristocráticas no Reino dos Francos se mantinham no poder através de
trocas e contratos, e como tal, deviam renová-los periodicamente sob pena de
desaparecimento do lugar social que ocupavam e de rompimento das alianças 48. O reforço da
memória familiar é uma estratégia de legitimação de direitos e de expansão da influência de
um grupo. Seu estudo, a partir da arqueologia funerária, se mostra extremamente prolífico,
não só pelo quase silêncio das fontes escritas sobre o gesto funerário49, mas para o estudo das
variações de lugares sociais ocupados por mulheres na Gália merovíngia, assim como os
diferentes valores atribuídos a elas, materializados no tipo de riqueza funerária.

48
LE JAN, Régine. Femmes, pouvoir et société dans le haut Moyen Âge, p. 15.
49
As menções a funerais e sua organização não são muito numerosas nas fontes escritas, referindo-se a apenas
membros das dinastias reais, sobretudo da época carolíngia e do gênero masculino. As passagens sobre enterros
femininos muitas vezes se limitam a relatar se a mulher em questão foi enterrada ou não com os pais. JAUBERT,
Anne Nissen, La femme riche. Quelques réflexions sur la signification des sépultures féminines privilégiées dans
le Nord-Ouest européen, p. 305.

62
Figuras

Fig. 1 – Anel da rainha Aregonda50.

Fig. 2 – Broches da rainha Aregonda51.

50
PÉRIN, Patrick. Portrait posthume d’une reine mérovingienne. Arégonde († c. 580), épouse de Clotaire Ier (†
561) et mère de Chilpéric Ier († 584), p. 1050.
51
PÉRIN, Patrick; WAMERS, Egon. Königinnen der Merowinger. Adelsgräber aus den Kirchen von Köln,
Saint-Denis, Chelles und Frankfurt am Main, p. 108.

63
Fig. 3 – Brincos da rainha Aregonda52.

Fig. 4 – Fivelas da rainha Aregonda53.

Bibliografia

Fontes

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LEVISON, W.; HOLTZMANN, W. (Eds.) Monumenta Germaniae Historica, Scriptores
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Spoleto, 24-29 abril 2014.

52
PÉRIN, Patrick; WAMERS, Egon. Königinnen der Merowinger. Adelsgräber aus den Kirchen von Köln,
Saint-Denis, Chelles und Frankfurt am Main, p. 108.
53
Ibid., p. 109.

64
Geral

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l'inhumation? Expressions du pouvoir dans l'au-dela (IVe-XVe siecle). Publications du
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66
O CULTO DE IMAGENS: A ICONOLATRIA NA VISÃO DE JOÃO CALVINO

Millena Gabrielle da Costa1


Renata Cristina de Souza Nascimento2

Resumo: João Calvino (1509-1564), importante professor e teólogo cristão de origem


francesa, foi um dos precursores da Reforma Protestante. Até os 24 anos de idade, Calvino era
católico, e, em 1533 converteu-se ao protestantismo, o que resultou em um papel histórico
fundamental no processo da Reforma com o Calvinismo. Estabeleceu diversas modificações e
introduziu novos pensamentos na Igreja: eliminou o ritual e a música instrumental da missa,
despiu as igrejas de vitrais, quadros e imagens, reduziu o culto a um sermão entre quatro
paredes sem as relíquias, objetos de veneração no âmbito de uma religião, sendo elementos
construtores de espiritualidade. Em seu Tratado das Relíquias, ele enfatiza o exame destes
objetos, ressaltando sua natureza falsa e idólatra, além de criticar a presença simultânea das
mesmas relíquias em igrejas e cidades diferentes.

Palavras-chave: Culto de imagens; iconolatria; Calvino.

João Calvino (1509-1564), professor e cristão de origem francesa, foi um dos mais
importantes teólogos do protestantismo, e, foi um dos precursores da Reforma Protestante.
Enquanto Lutero agiu pelo espírito, para dar ‘forma’ ao novo movimento, Calvino
sistematizou as diversas doutrinas, teorizou as bases do cristianismo, da teologia cristã.
Calvino nasceu em 10 de julho de 1509. Seu pai pertencia às camadas médias da cidade e
trabalhava como secretário do bispo e na biblioteca da catedral na cidade de Noyon, este, usou
de seus benefícios eclesiásticos para custear os estudos de Calvino.
Calvino foi estudar em Paris, local em que conheceu o humanismo e as teorias que
iam contra o mesmo. Conheceu também as doutrinas de Wyclif, Huss e Lutero. Após sua
formação como Mestre de Artes em 1529, dedicou-se à jurisprudência. Recebeu sua licença
para praticar a advocacia em 1530, antes, aprofundou-se nos estudos humanistas. Até os 24
anos de idade, Calvino era católico, e, em 1533 converteu-se ao protestantismo, o que resultou
em um papel histórico fundamental no processo da Reforma com o movimento religioso
conhecido por Calvinismo. Perseguido em Paris, onde o protestantismo foi declarado ilegal,
Calvino abandonou a França e instalou-se na Basileia, Suíça, onde em 1536, publicou sua
obra fundamental, “As Institutas”, que reunia suas doutrinas protestantes. Calvino acabou
passando por Genebra, onde recebeu um convite para permanecer ali, visto que este local

1
Graduanda em História (Universidade Estadual de Goiás) e, bolsista PIBIC/UEG/CNPQ.
2
Pós-Doutora em História e, professora da Universidade Federal de Goiás, Universidade Estadual de Goiás
(UEG) e da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (Mestrado em História). Participante/ Pesquisador do
Núcleo de Estudos Mediterrânicos (NEMED/UFPR) e da Rede Luso - Brasileira de Estudos Medievais.

67
acabara de aderir ao protestantismo. Calvino ficou na cidade durante dois anos, e, visando a
reestruturação do governo eclesiástico segundo as Escrituras, elaborou então um novo código
litúrgico e cível dos cultos, uso dos sacramentos e costumes que os fiéis deveriam respeitar,
este, foi tão severo que Calvino acabou sendo expulso pelo conselho municipal.
Entre 1538 e 1541, João Calvino permaneceu em Estrasburgo, no Leste da França,
onde reformou a liturgia e as instituições paroquiais, ao mesmo tempo, que dirigia
pessoalmente uma congregação. Nessa época, conheceu Martinho Lutero e participou de
vários conclaves entre católicos e protestantes. Em setembro de 1547, Calvino retornou a
Genebra a pedido das autoridades, para impedir a tentativa do cardeal de restaurar o
catolicismo. Aplicando na íntegra suas austeras ideias religiosas, organiza a igreja de Genebra
através das “Ordenações Eclesiásticas”. Após eliminar seus opositores, torna-se governante de
Genebra, tanto sob o aspecto religioso como no político e econômico. Genebra passa a ser o
principal centro protestante da Europa.
Não se sabe ao certo o que levou Calvino a abandonar a fé romana. Mas,
provavelmente, através de seus estudos das Escrituras, da antiguidade cristã e enquanto
frequentava locais em que se encontrava com humanistas, Calvino chegou à conclusão de que
teria de abandonar sua fé atual e a comunhão romana que praticava e seguir o caminho dos
protestantes.
Por meio de uma conversão repentina, Deus subjugou e preparou minha mente para
ser ensinada a respeito das coisas espirituais, o que aconteceu de forma mais intensa
do que se esperaria de uma pessoa da minha idade. Tendo, deste modo, recebido
uma amostra e algum entendimento da verdadeira piedade, fui imediatamente
estimulado com um desejo tão intenso de fazer progresso neste conhecimento que,
embora não tenha abandonado por completo os outros estudos, buscava-os com
menos fervor (CALVINO, 1999 apud LAWSON, 1951: p. 21).

Em seus estudos das Escrituras e da antiguidade cristã, Calvino conhecia os dogmas


protestantes e concluía que em algumas localidades, as mesmas eram usurpadas e forjadas em
favor dos líderes, devido a estes questionamentos, Calvino estabeleceu diversas modificações
e introduziu pensamentos na Igreja: eliminou o ritual e a música instrumental da missa, despiu
as igrejas de vitrais, quadros e imagens, reduziu o culto a um sermão entre quatro paredes sem
objeto algum, objetos estes conhecidos por relíquias.
As relíquias são objetos de veneração no âmbito de uma religião, sendo elementos
construtores de espiritualidade. Podem ser objetos pessoais ou partes do corpo de um santo,
ou personagem considerado sagrado. Para o protestantismo essas práticas são desaprovadas.
Sendo assim, na Reforma Protestante, precisamente na segunda metade do século XVI, João

68
Calvino procurou demonstrar a hipocrisia que caracterizava esta veneração, pois a mesma
levava os fiéis a um ato de iconolatria.
Em primeira instância, no primeiro volume de As Institutas ou Tratado da Religião
Cristã (1985), Calvino enfatiza o distanciamento entre Deus e o homem que atribui forma
visível a Deus e a estabelece como ídolo para si. Em seu Tratado das Relíquias (1543), João
Calvino reforça o exame destes objetos, ressalta sua natureza falsa e idólatra. Fundamenta sua
crítica no erro que seria deixar de buscar Cristo na palavra, nas comunhões e consagrações -
sacramentos- e nas graças espirituais, para entreter-se com vestes, capas, tecidos, ou objetos
de uso pessoal, como a manjedoura de Jesus Cristo citada pelo próprio Calvino, isto para ele,
tornou-se a “raiz de todo mal (p. 135)”, seria esse para ele o primeiro vício dos cristãos.
A Bíblia condena imagens e representações de Deus (1985, p. 118); para justificar
essa afirmação, o teólogo cita a passagem bíblica de Salmos 115.4 e 135.15: “Os ídolos das
gentes prata e ouro [são], obras das mãos dos homens (CALVINO, 1985: p. 118).” E, também
no segundo volume desta mesma obra já citada (As Institutas, 1985), Calvino inicia sua fala a
respeito das imagens e relíquias, através do segundo mandamento das Escrituras: “Não farás
para ti imagem esculpida, nem figura alguma das [cousas] que estão no céu acima, ou na terra
embaixo, ou nas águas que estão debaixo da terra. Não [as] adorarás, nem [lhes] darás culto
[Êxodo 20:4-5] (CALVINO, 1985: p. 115).” Os deuses da madeira, da pedra, do ouro, da
prata, ou de outro qualquer material inanimado e corruptível, corrompe a glória de Deus. Por
isso, cita Êxodo 20.4.
Ainda, no livro de Deuteronômio, é possível notar facilmente a oposição de Deus
diante as representações de qualquer maneira e/ou espécie:

Guardai, pois, com diligência a vossa alma, pois semelhança nenhuma vistes no dia
em que o Senhor, vosso Deus, em Horebe, falou convosco, do meio do fogo; para
que não vos corrompais e vos façais alguma escultura, semelhança de imagem,
figura de macho ou de fêmea; figura de algum animal que haja na terra, figura de
alguma ave alígera que voa pelos céus; figura de algum animal que anda de rastos
sobre a terra, figura de algum peixe que esteja nas águas debaixo da terra;
(Deuteronômio 4.15-18).

Os gregos, pensavam que, bastava eliminar a prática de esculpir imagens, entretanto,


não somente as representações esculturais são condenadas, mas, o Senhor proíbe sua imagem
talhada tanto quanto em representações modeladas -gravuras-. O sudário que envolveu o
corpo de Jesus Cristo, pode ser um exemplo a respeito desta temática, pois, sua “efígie” é ali
representada. Mas, isto, sendo um acontecimento/milagre excelente, não poderia ter escapado
das Escrituras. Além disso, os evangelistas não relatam que as mulheres ou os discípulos

69
carregaram os tecidos, mas, dão a entender que os deixaram no sepulcro, visto que este era
protegido por guardas, que possivelmente se apropriaram dos panos depois. Ainda, os
sudários encontrados possuem a representação de todo o corpo de Cristo, mas, segundo o
evangelista São João, Jesus Cristo foi amortalhado segundo o costume dos judeus:

Podemos entender esse costume não somente observando os judeus hoje, que ainda
o cultivam, mas a partir de seus livros, que descrevem o modo antigo. Envolve-se o
corpo até os ombros, e em seguida envolve-se a cabeça dentro de um véu, atrelando-
o a quatro lados (CALVINO, 2017: p. 155).

E com o que Pedro viu: os panos de um lado, onde o corpo foi envolvido, e de outro
o sudário -espécie de lenço ou véu, e não um tecido grande que envolveria todo o corpo-, que
havia sido posto na cabeça, exposto no evangelho, se confirma este costume dos judeus.
A mesa da Última Ceia é outro exemplo citado por Calvino, a mesma, segundo ele,
encontra-se em Roma, na Igreja de São João de Latrão, o pão na Espanha, em São Salvador, e
a faca utilizada para cortar o cordeiro pascal está em Tréveris, na Alemanha. Mas, Calvino
relembra que Cristo estava em um lugar emprestado para celebrar a ceia, e, ao ir embora,
deixou a mesa, além disso, não há relatos de que a mesma tenha sido retirada pelos apóstolos.
Outro argumento utilizado por Calvino, é a destruição de Jerusalém, portanto, a probabilidade
de encontrar essa mesa após setecentos ou oitocentos anos é mínima. Ainda, as mesas
utilizadas naquela época, possuíam formatos distintos dos atuais, pois, as pessoas se deitavam
para comer, não comiam sentadas (Mateus 26.20).
Há um pedaço do pão que ‘miraculosamente’ alimentou cinco mil homens no deserto
em Roma, na Igreja de Santa Maria Nova, outro pedaço em São Salvador, na Espanha. As
Escrituras alegam que houve porções de maná que foram guardadas para lembrança do pão
com que Deus alimentou o povo de Israel no deserto (Êxodo 16.33), mas, dos cinco pães que
sobraram, não há relatos de que estes tenham sido reservados com o intuito de ser consagrado
à relíquia. Calvino ainda afirma que nenhuma história antiga da igreja nem escritor, doutor
algum mencionam este fato. Por isso, para ele, é mais fácil ainda criticar a presença deste pão,
e que foi feito depois de muito tempo.
A cruz é outra representação importante para os cristãos, mas, mesmo considerado
correto a mesma ter sido encontrada por Helena, mãe do imperador romano Constantino, e,
que muitos doutores antigos escreveram sobre esse processo de certificação da cruz, Calvino
ainda critica esse encontro e a presença de muitos pedaços da mesma espalhados pelo mundo
todo. Para ele, considerando que Helena tenha se esforçado tanto para encontrar a cruz
verdadeira, Deus milagrosamente a mostrou à Helena. A cruz encontra-se em Jerusalém,

70
disso, não há dúvidas por parte dos fiéis, mas, “esse fato é contestado também pela história da
igreja, que informa que Helena separou em Constantinopla, em uma colina de pórfiro, no
meio do mercado, enquanto outra parte, segundo consta, foi colocada em um estojo de prata e
confiada à guarda do bispo de Jerusalém (CALVINO, 2017: p.147).” Calvino, afirma então
que, a história é mentira ou a crença que se tem hoje sobre a cruz verdadeira é uma opinião
‘frívola’ e ‘vã’.
Sobre a mesma cruz, há relatos de sua presença em diversas localidades, o que leva
Calvino a criticá-las. Calvino relata que em algumas dessas localidades, há lascas enormes,
como em Sainte-Chapelle de Paris, em Poitiers e em Roma, local este em que se encontra um
crucifixo inteiro construído com a madeira da cruz. Segundo Calvino, se houvesse a junção de
todos estes materiais encontrados, seria possível construir um barco, entretanto, o evangelho
afirma que a cruz podia ser carregada por um homem, em virtude de seu peso inferior. Ainda,
há diversas histórias sobre a chegada destes elementos. Alguns dizem que foram os anjos que
os trouxeram, outros, que caíram do céu. Os de Poitiers, por exemplo, foram trazidos por uma
donzela de Helena, que os teria roubado, e, como estava em fuga, teria se perdido cerca de
Poitou, antiga província francesa, ainda, falam que a donzela era manca (p. 148).
Calvino chama os cultos que utilizam imagens para a representação de Deus por ritos
supersticiosos, as relíquias são relacionadas de forma direta à cobiça, e esta, à superstição:
“...a cobiça pelas relíquias praticamente nunca é desprovida de superstição; e, pior ainda, é a
mãe da idolatria, que geralmente a acompanha (CALVINO, 2017: p. 136).” Ainda, nesta
transgressão das Escrituras, Calvino confirma que Deus aponta um grosseiro defeito no
homem quando o mesmo pratica estes ritos, sendo ele a idolatria exterior, já mencionada
também no fragmento do Tratado das Relíquias.
Acreditava-se que as manifestações e sinais divinos poderiam servir de base para
futuras imagens. Deus se manifestou de diferentes formas, como em nuvem e fumaça
(Deuteronômio 4:11), em forma de pomba pelo Espírito Santo (Mateus 3.16; Marcos 1.10;
Lucas 3.22), sob a forma de homem, sendo esta a manifestação em Cristo, os milagres
realizados também por Cristo, entre outros. Deus, de fato, exibiu sua presença mediante
alguns sinais, como já mencionado, entretanto, Calvino afirma que todos os sinais que Deus
manifestava, se ajustavam a seu método de ensinar e ao mesmo tempo advertiam os homens.
A respeito dos milagres, pode-se citar a crítica que Calvino fez no momento em que
Jesus Cristo ressuscitou Lázaro (João 11.38-44), pois, defendiam a preservação da terra em
que Cristo pisou no momento deste milagre, mas, após a destruição de Jerusalém -já

71
mencionada-, quando todas as coisas e locais se mudaram na região da Judéia, não seria
possível que alguém demarcasse de forma perfeita a localidade deste acontecimento.
Outro milagre bastante importante, e citado por Calvino, é a transformação da água
em vinho nos cântaros -também chamados de talhas- em um casamento em Caná da Galiléia,
localizado na Bíblia em João 2.1-11. Estes cântaros, teriam sido encontrados
aproximadamente mil anos após este acontecimento, o que seria improvável sua existência
por tanto tempo. Ainda, há locais que afirmam além da existência das talhas, a existência
também do vinho, mas, Calvino afirma a facilidade de reconhecer que é mentira, pois, estas
talhas não suportam mais que nove litros, algumas ainda menos; sendo que na época em que o
milagre ocorreu, os cântaros aguentavam aproximadamente 268 litros, e, especificamente a do
casamento, entre 80 e 120 litros (2017, p. 144). Ainda, para Calvino, estas afirmações não
passam de tramas para enganar o povo simples.

Quando consideramos tudo isso, que mais resta a dizer, a não ser que tudo foi
tramado para enganar o povo simples? E, de fato, os hipócritas, tanto padres quanto
monges, confessam que é isso mesmo, chamando as relíquias de pias fraudes, ou
seja, enganações piedosas, para comover o povo e induzir a devoção (CALVINO,
2017: p. 143).

Um exemplo de iconolatria desta conspiração contra os mais simples são as vestes de


púrpura, em que Pilatos cobriu Cristo por zombaria, visto que era chamado de Rei. Segundo
as Escrituras (Marcos 15:17), era uma roupa preciosa, portanto, não deveria ser jogada ao
abandono, por isso, após zombarem de Cristo, a mesma não deveria ter sido esquecida por
Pilatos e seus homens. Calvino diz que para aumentar a farsa, eles mostram manchas de
sangue na roupa, mas para ele, os zombadores não permitiriam que estragasse um manto real,
colocando-o mesmo de brincadeira sobre os ombros de Jesus Cristo. Quanto a esta túnica, há
muitas, e “parece ser mais propícia a emocionar os simples e leva-los à devoção (CALVINO,
2017: p. 150).”
São João Batista, antigo cronista da igreja, foi enterrado pelos discípulos após ser
decapitado, e, segundo Teodoreto, seu sepulcro em Sebaste, cidade da Síria, foi aberto pelos
pagãos, que queimaram seus ossos e jogaram as cinzas ao vento. É acrescentado ainda, por
Eusébio, que alguns homens foram ao local e recolheram um pouco da cinza, que foi levada a
à Antioquia e enterrada por Atanásio em uma muralha. A cabeça, é afirmada por Sozomeno,
outro cronista, afirmou que foi levada pelo imperador Teodósio para a cidade de
Constantinopla. Segunda as histórias antigas ainda, o corpo todo foi queimado, menos a

72
cabeça, e todos os ossos e cinzas se perderam, alguns, porém, foram levados escondidos pelos
ermitãos de Jerusalém.
Há relatos de relíquias da Santa Virgem, seus ossos, dizem, porém, não ter como
possuí-los, pois defendem que o corpo da mesma não estava mais na terra. Mas, afirmam que,
para confirmar a presença de algo da Virgem na terra, os cabelos e o leite, por exemplo, ou,
contar a quantidade de lugares em que cada um está presente, seria algo impossível,
principalmente o leite, pois, segundo Calvino, a presença do mesmo está em diversas
localidades, das mais simples como os vilarejos, às mais sofisticadas como os conventos de
monges ou freiras. Calvino faz uma dura crítica há respeito desse leite:

Há tanto leite que, se a Santa Virgem tivesse sido uma vaca leiteira por toda a vida,
dificilmente conseguiria tal proeza. E novamente devo perguntar como esse leite,
exibido por toda a parte em nossos dias, foi colhido e mantido até hoje (CALVINO,
2017: p. 162).

Em Charroux, na diocese de Poitiers, o abade vangloria-se de ter a pele -de Jesus


Cristo- cortada na circuncisão, visto que não podem declarar possuir o corpo natural de
Cristo, alguns afirmam guardar um ‘pedacinho’ do mesmo. O abade que diz possuir a pele da
circuncisão, possui também dentes e cabelos, mas a ideia central neste fragmento é a pele,
pois, de qual localidade foi sua partida é o que Calvino deseja saber, pois, no evangelho de
Lucas afirma-se que Jesus Cristo foi circuncidado: “E, quando os oito dias foram cumpridos
para circuncidar o menino, foi-lhe dado o nome de Jesus, que pelo anjo lhe posto antes de ser
circuncidado (Lucas 2.21). ” Entretanto, não há relatos de que a pele tenha sido preservada
para servir de relíquia.
Há a questão do sangue de Cristo, que dizem que não poderia ser encontrado, a não
ser de forma miraculosa. Porém, o mesmo, é exibido em mais de cem locais. Em um dos
locais, em Poitou, há algumas gotas que teriam sido escolhidas por Nicodemos em sua luva;
em outros locais, há frascos inteiros, como em Mântua, por exemplo. Em outros, vasos cheios,
como em Roma, em São Eustáquio. Ainda, Calvino diz que os homens não se contentam com
o sangue puro e, o misturam com água, assim como saiu do corpo de Jesus quando ele foi
ferido na cruz.
Como dito, não poderiam afirmar possuir o corpo de Cristo, afirmam pequenas partes
do mesmo ou objetos que foram utilizados por ele. A manjedoura em que foi posto logo ao
nascer, é exibida em Roma, na Igreja de Santa Maria Maior. Na mesma cidade, mas em outra
igreja -Igreja de São Paulo Extramuros-, está o tecido que o embrulhou; mas, há também
‘trapos’ desse tecido em São Salvador, na Espanha. Seu berço também está localizado em
73
Roma, juntamente com a roupa que a Virgem Maria fez para ele. Há ainda, diversos outros
objetos. Mas, o que preocupa de fato João Calvino, não é o local que encontraram essas
relíquias tanto tempo após a morte de Cristo, mas, que em todo fragmento ou parte da história
evangélica, não há sequer nenhuma palavra sobre isso.
No livro da sabedoria de Salomão, citado também por João Calvino, há a afirmação
de que os ídolos, são objetos concedidos em honra a um morto, no intuito de cultivar, de
forma supersticiosa, sua memória. Este é um antigo costume, mas, não é a primeira fonte
desse mal, pois, Moisés relata quando Raquel furta os ídolos de seu pai (Gênesis 31.19),
sendo isto um vício, assim, Calvino conclui então que a imaginação do homem é uma “fábrica
de ídolos”. Outro exemplo, é, que antes de Abraão nascer, seus antepassados, inclusive Terá -
pai de Abraão e de Naor-, prestavam culto a falsos/outros deuses.

A tal representação segue-se, de pronto, a adoração, pois, uma vez que os homens
julgavam contemplar a Deus nas imagens, nelas também O adoraram. Alfim, nelas
fixados tanto em espírito quanto em visão, começaram todos a embrutecer-se e a
deslumbrar-se [com elas] e a nutrir[-lhes] admiração, como se [nelas] residisse algo
da Divindade. É já evidente que os homens se não atiram ao culto das imagens antes
que hajam sido embebidos de certa opinião mais crassa, não, por certo, que [as]
tenham por deidades, mas porquanto imaginam nelas habitar algum poder da
Divindade (CALVINO, 1985: p.124).

No livro De opere monachorum [Do trabalho dos monges] de Santo Agostinho,


Calvino cita o dizendo que o santo se queixava de certos “colportores” de relíquias e
indulgências que já em sua época faziam um comércio cruel e desonesto movimentando sem
parar as relíquias de mártires, induzindo o povo simples a crer que os ossos recolhidos nas
proximidades eram ossos de santos. Este povo, quando acusado de idolatria, respondia que
não adoravam a representação visível, mas a deidade que ali habitava invisivelmente. Mas,
não somente estes, pois os gentios, afirmavam que não adoravam nem a imagem, nem a
“potestade” ali representada, mas, visualizavam a representação material como um sinal da
entidade que deveriam cultuar (2017).
No II Concílio de Nicéia, em 787, houve argumentos falaciosos, segundo ele, sobre
a decisão das imagens, esta, ocorreu de forma iconólatra, assim, foi decretado que as imagens
não deveriam apenas estar presentes nos templos, mas que estas, ainda fossem veneradas.
Dessa forma, todo o discurso de João Calvino se negava, entretanto, sua preocupação maior
era que ficasse evidente aos leitores a que ponto a iconolatria tenha se extravasado. Todos os
exemplos de relíquias citados, possuem diversos fundamentos que são utilizados para
persuadir o povo à iconolatria. Segundo Calvino, a igreja não se contentava em seduzir e

74
enganar os mais simples, como, quando além de mostrarem madeira comum no lugar da
madeira da cruz ao povo, decidem que era necessário adorar a madeira, o que é nomeado por
Calvino de ‘doutrina diabólica’.
Para Calvino, a igreja não teve objetivo maior senão juntar todo um ‘mar de
mentiras’. Nessa ocupação, se sentiram tão livres que não tiveram dificuldade alguma de
forjar alguma relíquia. Há pessoas que poderiam questionar a verossimilhança da exibição de
modo tão autêntico destes objetos, os detalhes possuídos por eles, detalhes de onde e por
quem vieram. A respeito disso, Calvino diz que não se pode recuperar a verossimilhança de
mentiras tão evidentes. Ainda, para ele, isto não é algo além de zombaria contra Deus.
O intuito de Calvino para com os fiéis e leitores do Tratado das Relíquias, é, apesar
de sua maior vontade inicial ser reunir todo o repertório dos ‘objetos sem valor’ que ele
chama por ‘relicário’, é oferecer uma “advertência, para sacudir os que estão dormindo e fazê-
los pensar que talvez se trate da totalidade, quando de uma tão pequena porção já se encontra
tanto a criticar (CALVINO, 2017: p. 141).” Ele ainda afirma que se houvesse uma busca
mais rígida dos diversos objetos presentes no mundo, e desta fizesse uma lista, poderia ser
visto claramente o quanto as pessoas foram cegas e o quanto há de treva e estupidez em toda a
terra.
Afirma ainda que, como foi possível o trabalho que muitos tiveram ao afirmar a
veracidade de algum objeto, é possível também que as pessoas, diante a advertência que
Calvino fez, também se deem ao trabalho de pensarem a respeito para se protegerem de
zombarias semelhantes. Faz, além disso, relação destas mentiras com a “guerra”:

Ouçam a verdade enquanto lhes é claramente mostrada e entendam que, por meio de
uma especial providência de Deus, os que buscam seduzir o pobre mundo com falsas
relíquias estão demasiado cegos para precaver-se contra a descoberta de suas
mentiras; pelo contrário, como os midianistas, após furados seus olhos, levantaram-
se uns contra os outros. Assim, podemos enxergar que fazer guerra a si mesmos,
desmentindo-se mutuamente (CALVINO, 2017: p. 181).

Calvino conclui que o melhor a ser feito em relação a iconolatria, seria abolir entre
os cristãos essa “superstição pagã” que consiste na canonização de relíquias, sendo elas as de
Jesus Cristo ou as de algum santo. Ainda, refere-se a essa prática uma “imundície” e que não
deve ser tolerada na igreja. Ele recorre a Bíblia para lembrar que no Antigo Testamento, os
homens não eram, em sua grande maioria, como os atuais; as cerimônias, por exemplo, eram
feitas em maiores quantidades e as sepulturas eram bem mais “vistosas” e detalhadas que as
de sua época, mas isso, para revelar a glória e grandiosidade a partir de figuras o que hoje são

75
representadas simplesmente por palavras. Entretanto, não está escrito que deve-se tirar os
santos de seus sepulcros para transformá-los em bonecos. Cita ainda Abraão, o pai de todos os
fiéis, que não foi erguido de seu sepulcro, nem Sara, e muito menos o de Moisés que foi
ocultado por vontade de Deus e jamais encontrado.
João Calvino constata então que, o motivo do Senhor querer esconder da vista dos
homens, a imagem de seus fiéis, era evitar que principalmente o povo de Israel que viveram
no mesmo momento que seus seguidores, mas também aos homens presente, caíssem em
idolatria. A canonização, segundo o reformador, foi introduzida na igreja quando tudo foi
pervertido e profanado, parte pela estupidez da autoridade católica e evangélica, parte também
pela cobiça, e parte porque não resistiram ao costume após ter sido estabelecido.
Mas, Calvino não afirma que a culpa é somente da autoridade que representava a
igreja, “de igual o modo, o povo buscou ser enganado, entregando-se a loucuras pueris, em
vez de à verdadeira adoração a Deus (CALVINO, 2017: p. 183).” Ele conclui então que para
corrigir o erro, todas as coisas que começaram mal e foram estabelecidas contra a razão
devem ser totalmente destruídas. Todavia, como isso não é possível, ele alerta e aconselha que
um comunique a outro, para que seja alcançada a compreensão dessas coisas que, para ele não
passam de mentiras.

A BÍBLIA. Tradução de João Ferreira de Almeida – Edição Revisada e Corrigida, 4ª


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BORGES, Jáder. João Calvino – teólogo profícuo. In: Reforma e Reformadores. São Paulo:
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LAWSON, Steven J. A arte expositiva de João Calvino. São Paulo: Editora Fiel, 2008.

76
O INTERESSE MONÁSTICO NA CONFECÇÃO DA VIDA DE SÃO GODRIC NA
INGLATERRA NO SÉCULO XII

Raimundo Carvalho Moura Filho1

Resumo: O propósito desta comunicação é discutir os intentos hagiográficos que permearam


o ideal de santidade evidenciado na Vida de São Godric. A análise incidirá, além da vita, em
cartas bispais escritas igualmente em Durham na segunda metade do século XII. Essa última
tipologia documental apresenta evidências sobre os interesses beneditinos na aquisição do
eremitério de Ficnhale, sobretudo porque os monges forjaram uma carta, entre 1181 e 1195,
onde expressavam a condição de legítimos herdeiros do legado espiritual de Godric.

Palavras-chave: Mosteiro. Durham. São Godric.

Introdução

Em um estudo que hoje é um clássico sobre a vida eremítica e anacorética na Idade


Média, Louis Gougaud apontou que São Godric, um eremita de Finchale que viveu entre fins
do século XI e meados do século XII, não teria integrado efetivamente as estruturas formais
do priorado beneditino de Durham. Para o autor, embora Godric estabeleceu contatos com os
monges beneditino, ele permaneceu, contudo, “secular durante toda a sua vida”.
(GOUGAUD, 1928, p.08). No entanto, A vida de São Godric e as cartas bispais de Durham
datadas de fins do século XII, e excepcionalmente uma considerada falsa, podem jogar luz
sobre as relações entre o eremita e a instituição monásticas à qual ele passou a ser considerado
(se não integrada efetivamente) como um associado ao mosteiro.
A constatação de que, no contexto inglês dos séculos XI e XII, não há registros de
regras escritas para os eremitas nos leva a perguntar como se deu a intervenção de casas
monásticas nas práticas ascéticas dos solitários que se estabeleciam em sua órbita. Além do
mais, na Inglaterra ao contrário do que ocorreu no mesmo período no Continente, sobretudo
na França, o fenômeno eremítico ali não fundou novas casas monásticas. O que houve foi uma
aproximação dos anacoretas às casas já existentes, sobretudo porque geralmente esses
religiosos se estabeleciam próximo à instituição monástica, como foi o caso de Godric, cujo
eremitério ficava significativamente próximo de Durham a ponto de monges e outros
visitantes irem de encontro a ele. No entanto, a falta de regras escritas não significou a
ausência da intervenção monástica nas práticas dos eremitas. Os mosteiros recorreram a

1
Mestrando e Bolsista (CAPES) no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Goiás,
PPGH/UFG. Membro do LEME/UFG. Email: raimundo.hist.cesi@gmail.com

77
diversos mecanismos, tais como: uma orientação espiritual prática, representada pela visita de
monges ao eremitério do asceta e também a construção de celas nas dependências da Igreja
para os reclusos.

O interesse monástico na confecção da Vida de São Godric na Inglaterra no século XII

A VSG, acreditamos, também fazia parte das tentativas do seu autor, Reginald e os
monges beneditinos de Durham, em controlar as práticas ascéticas do eremita exaltando suas
qualidades de simplicidade e a devoção a São Cuthbert, cujas relíquias estavam sob a
administração do mosteiro. Assim, ao passo que os monges buscaram relegar a posteridade
um ideal de santidade, encarnado por aquele asceta de Finchale, evidenciaram também o
interesse em modelar as suas práticas ascéticas, aproximando-as dos princípios beneditinos. A
vita pode indicar, nessa acepção, o processo pelo qual um eremita poderia ser vinculado ao
priorado.
A confecção da VSG foi iniciada quando o eremita ainda estava vivo, na segunda
metade do século XII. Antes de seguir a vida eremítica, São Godric foi descrito como um
comerciante que alcançou lucros com a atividade comercial de longa distância, sobretudo
entre a Inglaterra e a Dinamarca. Em uma de suas viagens, ele estabeleceu contato com Inner
Farne, ilha considerada sagrada desde que São Cuthbert, santo anglo-saxão do século VII
havia vivido lá como um eremita. O desejo de São Godric em abandonar os seus bens
“mundanos” e seguir uma vida eremítica nasceu a partir do contato com essa localidade. Foi a
partir dessas viagens, entre negócios e peregrinação que:

Ele [São Godric] começou a ansiar por solidão e a manter sua mercadoria em menor
estima do que até agora ... E agora ele havia vivido dezesseis anos como
comerciante, e começou a pensar em gastar em caridade, com a honra e serviço de
Deus, os bens que ele havia adquirido tão laboriosamente.
(DURHAM, 1918, p.419).

O ideal eremítico almejado por São Godric teria sido originado por meio do contágio,
precisamente por intermédio daquele santo eremita que ocupava, nas circunstâncias do século
XI e XII, um papel de primeira importância no imaginário social no norte da Inglaterra. Desde
a transladação das relíquias de São Cuthbert para Durham, em finais do século X, a localidade
passou a ocupar um papel importante enquanto centro religioso no norte da Inglaterra.
No século XII, as novas casas monásticas, como os cistercienses e os premonstratenses
realizaram fundações próximas à Durham. Ainda assim, durante todo o século XII, as

78
fundações realizadas nessa localidade eram dependentes da abadia beneditina, exceto a
fundação agostiniana em Baxterwood. Esta, no entanto, foi dissolvida ainda no século XII.
Para afirmarem o seu domínio, o priorado beneditino iniciou a fundação de células por
diversas localidades no norte. A aquisição do eremitério de Finchale e a posterior fundação de
uma célula dependente do priorado nessa localidade é uma evidência do interesse monástico
em manter o seu domínio.
As cartas bispais, datadas de finais do século XII, indicam aspectos dessa dinâmica, o
interesse do priorado na aquisição do eremitério de Finchale. Se a confecção da Vida de São
Godric buscou aproximar o eremita do priorado a partir das orientações e conselhos
espirituais, e que após a morte do santo eremita as suas relíquias ficariam sob a posse do
priorado, as cartas bispais revelam o sucesso da instituição na a aquisição do eremitério de
Finchale.
A fundação do priorado de Finchale ocorreu em 1195, no mesmo ano que em que o
então bispo de Durham concedeu essa localidade para os monges beneditinos. Por outro lado,
é uma carta falsa que pode jogar luz sob a importância que o eremitério assumiu para os
beneditinos no curso do século XII. O bispo, segundo a carta, havia concedido essa localidade
a São Godric para que nela ele pudesse desenvolver suas práticas. No entanto, ficou acordado
entre o bispo e Godric, com o consentimento dos monges, que após a morte do eremita,
Finchale passaria a ser propriedade do priorado de Durham. Esta carta tem sido negligenciada
pela historiografia e, ao contrário do foi apontado em um estudo sobre as dinâmicas que
configuraram a aquisição do eremitério pelos monges negros, ela não revela uma postura
inescrupulosa de seus autores.
Assim como a fabricação de relíquias, a falsificação de documentos, inclusive por
aqueles tidos como centrais na conservação da verdade, os membros da Igreja, foi comum na
Idade Média. O historiador Hilário Franco Júnior sugere que uma interpretação para essa
prática pode ser encontrada nas condições mesmo em que tais falsificações foram
engendradas. Falsificar, assim, não seria inventar uma mentira ou que estivesse ligado a
aspectos morais, como uma postura anacrônica poderia propor. Registrava-se o que era tido
como verdadeiro. Como o mesmo autor aponta, “não se acreditava em um determinado fato
porque ele era interpolado, ao contrário, ele era interpolado porque se acreditava nele”.
(FRANCO JÚNIOR, 2010, p.133).
Se considerarmos a data imaginada da aquisição do eremitério evidenciado nessa
carta, que data de 1110-1116, no momento mesmo em que São Godric dava curso às suas

79
práticas ascéticas, a ligação do priorado com o eremitério seria anterior ao que propõe as
demais cartas bispais de finais do século XII.

Carta de Ranulf Flambard bispo de Durham, dirigido a todos os seus homens,


franceses e ingleses, de Durham, concedendo e confirmando para Algar, seus
sucessores como prior, e aos monges de Durham o eremitério de Finchalee, com
seus campos, pescaria e tudo o mais adjacente, como, com o acordo dos monges, o
Bispo havia concedido ao Irmão Godric para ser mantido por este durante a sua
vida.

A reinvindicação do legado espiritual de São Godric (do “irmão Godric”, como ele é referido
na carta) e de seu eremitério evidencia a importância que a posse das relíquias do santo, do
culto e das peregrinações assumia para o priorado. De um ponto de vista político e
econômico, a promoção do culto a São Godric sob a tutela da abadia, significava ganhos
materiais e a também afirmava o domínio da instituição monástica em relação às outras casas
do norte. Entre fins do século XI e meados do século XII, as peregrinações ao priorado de
Durham se intensificaram, sobretudo com a promoção do culto a São Cutbert que, como
indicado, desempenhou um papel central na vida eremítica de Godric:

No caminho, ele muitas vezes tocou na ilha de Lindisfarne, onde St Cuthbert tinha
sido bispo e na ilha de Farne, onde aquele Santo tinha vivido como uma eremita, e
onde St Godric (como ele mesmo poderia dizer depois) passou a meditar na vida do
santo com lágrimas abundantes. Daí ele começou a ansiar por solidão.

Antes de se tornar bispo de Lindisfarne, São Cuthbert havia se dedicado a uma vida
eremítica na ilha de Inner Farne, em Northumberland. Segundo Beda, após alguns anos no
mosteiro, São Cuthbert finalmente pôde “com a bênção do abade e dos irmãos que o
acompanhavam, retirar-se para o segredo da solidão que tanto cobiçara”. (A VIDA DE SÃO
CUTHBERT: CAPÍTULO XVII). Com a posse das relíquias, os monges se preocuparam em
difundir o culto de São Cuthbert norte da Inglaterra a partir do desenvolvimento de células 2. A
confecção da VSG, nas circunstâncias em que se intensificava o culto àquele santo da Alta
Idade Média, atendia a intentos semelhantes, ou seja, o de afirmar a legitimidade do priorado
de Durham enquanto herdeiros do legado de São Godric que era, segundo seu hagiógrafo,
devoto do santo anglo-saxão.

2
As células desenvolvidas pela comunidade beneditina de Durham eram localizadas em locais que remetessem a
uma ligação com o itinerário de São Cuthbert. Uma espécie de culto secundário que poderia ser executado não
necessariamente em Durham, essas células não deixavam de ser a expressão do controle beneditina em volta das
relíquias de São Cuthbert a medida que pretendiam estabelecer os locais de peregrinação.

80
Quando a Vita de São Godric foi iniciada, a aquisição formal do eremitério não estava
garantido para os monges de Durham. No entanto, o priorado buscou uma aproximação com o
eremita, mesmo este não integrando as estruturas formais da instituição. A escrita
hagiográfica empreendida por Reginald de Durham buscou difundir o culto de um santo
eremita que, sob a tutela do priorado, fosse digno de culto no post mortem. (TUDOR, 1979:
68-72). As tentativas dos monges beneditinos de Durham em cristalizar o controle sobre o seu
eremitério refletia o interesse pelo prestigio em ter um santo eremita associado ao mosteiro e
também indica as tensões com as casas monásticas que se difundiram no norte da Inglaterra
ao longo dos séculos XI e XII. A promoção do culto a São Godric no século XII indicava a
maneira pela qual os monges beneditinos pretendiam manter o seu domínio sob o condado de
Durham. Assim como desenvolvimento do culto a São Cuthbert, o culto a São Godric no
priorado de Finchale passou a atrair peregrinos de diversas localidades, embora Durham
continuasse a ser, no norte da Inglaterra, o principal foco de peregrinação ao longo do século
XII.
Não obstante Finchale não está diretamente ligado aos locais sagrados relacionados à
trajetória de São Cuthbert, essa ilha atraiu os monges de Durham que estavam interessados em
evitar uma futura fundação de novas casas religiosas rivais. Outro motivo que pode estar
associado ao interesse de Durham por Finchale é fato de que essa ilha era alvo de pessoas que
buscavam isolamento, em viver na solidão do deserto metafórico. A partir do século XII,
Godric foi visitado por diversas pessoas em busca de orientação espiritual e curas milagrosas.
Os monges de Durham também o visitaram e o estabelecimento desse relacionamentos pode
indicar o interesse em reivindicar o legado do santo. (LUFF, 2001: 66).

Considerações finais

A difusão do culto a São Godric foi, assim como no mesmo período o processo de
solidificação da devoção a São Cuthbert, a partir da posse das relíquias do santo, o que o
conduziu ao papel de patrono do mosteiro de Durham, uma preocupação premente dos
monges negros no século XII. A VSG, enquanto produto do meio sociocultural tinha, além da
finalidade de tornar conhecida a vida do santo, buscava também associar a sua trajetória ao
mosteiro. Atendia, portanto, aos interesses em divulgar um modelo de santidade, a eremítica,
aos valores beneditinos de moderação e obediência. A VSG assim como as cartas bispais do
século XII, evidencia o interesse do priorado no legado de São Godric e de seu eremitério.
Dentre as cartas bispais que ao longo desse século buscaram legitimar a posse do eremitério,

81
aquela considerada falsa é significa porque a data da posse efetiva de Finchale, segundo o que
determina o bispo do condado de Durham, se daria quando da morte do eremita, pois deveria
“ser mantido por este durante a sua vida”. Duas tipologias de documentos diferentes, mas com
pontos que podem ser conectados. A primeira, a partir de representações sobre a atividade de
São Godric, como a necessidade de intervenção do mosteiro em suas práticas ascéticas e a
importância dos ensinamentos dos monges, buscou relegar á posteridade um modelo de
santidade eremítica e alinhada aos princípios beneditinos. Com as cartas bispais, buscou-se
formalizar a posse do eremitério e do legado de São Godric, sobretudo em um período em que
o surgimento de novas casas monásticas poderia ameaçar o domínio de casas tradicionais.
Assim, é significativo que o mosaico religioso do condado de Durham no século XII, ao
contrário dos demais da Inglaterra no mesmo período, não sofreu alterações no sentido de não
ter tido, durante todo o século XII, fundação de novas casas religiosas.

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82
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83
REFLEXÕES ACERCA DAS VIRTUDES ATRIBUÍDAS AO SULTÃO SALADINO
NA CRÔNICA “A RARA E EXCELENTE HISTÓRIA DE SALADINO” DE IBN
SHADDÃD (SÉC. XIII)

Samuel Tolentino da Silva1

Resumo: Este trabalho tem como proposta refletir sobre as virtudes do líder mulçumano
Saladino (1137-1193), apresentadas na crônica árabe “A Rara e Excelente História de
Saladino”, composta no contexto das Cruzadas. Esse escrito foi composto entre 1198 e 1228,
pelo cronista árabe Bahã al-Din Ibn Shaddãd (1145-1234) que esteve a serviço do sultão
sendo seu confidente pessoal. Saladino, procedente de uma tribo curda seljúcida, nasceu em
Tikrit no norte do Iraque e atuou principalmente nas regiões que compõem o território do
Egito, da Síria e da Palestina. A obra de Ibn Shaddãd é composta por um prólogo e duas
partes. Nosso foco de analise é a primeira parte do escrito, na qual Ibn Shaddãd cria uma linha
do tempo e descreve a trajetória de Saladino (1130 – 1193), iniciada com seu nascimento e
desenvolvida com a descrição de sua formação militar educacional até sua ascensão em que
adquiriu prestígio quase mítico, tornando-se um chefe político reconhecido tanto pelos
muçulmanos como pelos cristãos. Assim, a proposta é apresentar as virtudes atribuídas ao
sultão não somente enquanto líder, mas também enquanto homem no cenário árabe medieval.

Palavras-Chave: Saladino. Virtuosidade. Ibn Shaddãd.

Este trabalho tem como objetivo refletir sobre as virtudes do líder mulçumano Salah
al-Dunya wa’l-Din, conhecido no ocidente como Saladino (1137-1193), a partir da fonte, a
crônica A Rara e Excelente História de Saladino2, composta entre 1198 e 1228 pelo cronista
árabe Bahã al-Din Ibn Shaddãd (1145-1234) que nasceu em Mosul no Norte do Iraque em 10
de março de 1145 e esteve a serviço do sultão3 Saladino.
Ibn Shaddãd foi um estudioso do Corão4, livro sagrado muçulmano, também da
tradição profética (Hadith) e das leis mulçumanas. Em Bagdá, tornou-se um estudante
residente na Madrasa5. Posteriormente, ocupou o cargo de professor assistente por um período

1
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Federal de Goiás – Campus
Samambaia. Bolsista pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES-UFG.
Membro do LEME/UFG. E-mail: samuel_tolentinodasilva@hotmail.com. Orientadora: Dra. Armênia Maria de
Souza.
2
A edição utilizada para a construção deste trabalho trata-se de uma tradução do árabe para o Inglês da fonte Or
al-Nawãdir al-Sultãniyya wa’l-Mahãsin al-Y~usufiyya by Bahã’ al-Dîn Ibn Shaddãd (Século XII), realizada por
D.S. Richards.
3
O historiador Albert Abibi Hourani afirma que nesse contexto para descrever dinastias como seljúcidas e
abássidas não se utilizava o termo “califa”, mas sim, denominava-se “sultão” que quer dizer mais ou menos
“detentor do poder”. Já para o estudioso Peter Demant, o termo sultão refere-se a uma autoridade política;
governador (sem conotação religiosa, ao contrário de califa).
4
Na língua portuguesa há duas formas de grafia para designar o livro sagrado dos muçulmanos: Corão e
Alcorão. No trabalho usa-se Corão, forma já consagrada no português.
5
Escola religiosa ou teológica – tradicionalmente o lugar onde o ulemá era formado na lei e doutrina islâmica.
Matthew S. Gordon afirma que à medida que floresciam os muitos ramos da educação islâmica, surgiu à

84
de quatro anos. Ao retornar a sua cidade natal continuou atuando no ensino. Logo após, foi
nomeado para o cargo de Juiz do exército, recebendo responsabilidades Judiciais e
administrativas na cidade de Jerusalém.
A fonte em análise foi composta após a morte do sultão. Dessa forma, a obra
produzida por Ibn Shaddãd se trata de uma biografia póstuma. O autor de certa forma
apresenta-o em duas facetas: a primeira, apresentando sua intimidade, seu nascimento e sua
educação; e a segunda, a sua vida enquanto ídolo guerreiro no mundo islâmico. Assim,
estrutura-se a divisão de sua obra, se tratando de um relato biográfico objetivado na
perpetuação da imagem de Saladino. Nosso foco de análise é a primeira parte do escrito, na
qual Ibn Shaddãd discorre acerca da trajetória de Saladino, iniciada com seu nascimento e
desenvolvida com a sua formação militar educacional até sua ascensão em que adquiriu
grande prestígio.
Saladino procede de uma família com grande carreira militar, pertencia à tribo dos
Seljúcidas, povo nômade da religião islâmica sunita. Nasceu em Tikrit no Norte do Iraque e
foi educado com seu pai aprendendo os padrões morais e boas maneiras, até que sinais de boa
fortuna, liderança e senhorio manifestaram-se.
Ibn Shaddãd descreve a trajetória de Saladino destacando seu ensino militar, literário
e religioso rigoroso. O sultão surgiu no mundo islâmico inspirado pela Jihad (Guerra Santa
Árabe) cuja base doutrinaria prometia o paraíso aos combatentes que viessem morrer em
batalha nas mãos dos infiéis pelo nome de Alá. O Objetivo principal do movimento Jihadista
era a conquista dos territórios não submetidos ao islamismo, sendo permitido efetuar ataques,
pilhagens e matanças, se necessário fosse, sobre os povos que não se submetessem ao Islã.
(REHS6, 2002, p. 17; FLORI, 2013, p. 357)
O medievalista Jacques Le Goff também faz referência à formação educacional e
militar de Saladino, afirmando que o sultão começou a emergir a sombra do pai Ayyûb e do
tio Shîrkûh. Ambos estavam a serviço do turco Zengi, senhor soberano em Mossul e Alepo.
Com base nas experiências vivenciadas por eles, Saladino foi introduzido em uma educação
militar e literária rigorosa, estruturada pelo seu desenvolvimento na escrita árabe, e também
uma educação religiosa, fundamentada nos preceitos do livro sagrado muçulmano o “Corão”.
Saladino venceu importantes batalhas sobre os cruzados cristãos que haviam se estabelecido
na Palestina, todavia, o maior título de glória entre os muçulmanos foi à tomada de Jerusalém

necessidade de edifícios para abrigar alunos e salas de aula. Acredita-se que a madrasa (colégio religioso) tenha
surgido no leste do Irã por volta do século X.
6
A sigla REHS é utilizada neste trabalho para referir-se à obra “A Rara e Excelente História de Saladino” do
autor Bahã’ Al-Dîn Ibn Shaddãd.

85
em 1187. Segundo Le Goff, até os dias atuais, Saladino continua sendo o modelo de cavaleiro
guerreiro e religioso que põe em execução a Jihad contra os cristãos, e uma referência de
príncipe justo e sábio. (LE GOFF, 2013, p. 198)
Nesse sentido, esta pesquisa tem como recorte espaço-temporal o século XII d.C. nas
regiões que compõem o território da Palestina, Síria e o Egito, pois é o cenário de atuação de
Saladino. Na região síria ele mobiliza forças e levanta o fervor religioso dos muçulmanos
egípcios e sírios na iniciativa de derrota dos cruzados europeus que haviam estabelecido
estados cristãos na Palestina e também na costa síria no final do século XI.
Como nossa fonte de análise se trata de uma crônica construída por Ibn Shaddãd
sobre o sultão Saladino, é importante compreendermos essa tipologia de obra. Susani Silveira
Lemos França (2006, p. 119), conceitua crônica, a partir da perspectiva do fazer histórico no
medievo, sendo objetivado no registro de memória. O fazer histórico dos cronistas estava
centrado no registro daquilo que está submetido ao tempo, pois se acreditava que o objeto de
registro possuía uma característica de efemeridade, ou seja, passível de esquecimento. Então,
para que não houvesse perca, a memória de tal objeto era registrada através da crônica. É com
base nesta mesma ideia de registro de memória que Ibn Shaddãd constrói a Rara e Excelente
História de Saladino e é através dela que registra a memória dos grandes feitos e virtudes do
sultão.
França (2006, p.132-137) delimita quatro aspectos que se destacam no fazer histórico
da crônica: o viés “Político”, explicado pelo domínio real sobre o fazer histórico, acima de
tudo uma história sobre o poder com conotação política. Neste contexto, os registros
históricos eram centrados nos feitos dos grandes líderes. A função “Documental”
fundamentada na necessidade de preservação do passado. Dessa forma, a organização cronista
dos feitos possibilitava uma forma de documentar fatos passados, fortalecendo o que a autora
determina como o “perseguir a verdade”. Somando a função documental tem-se uma
característica metodológica, considerando que as crônicas poderiam ser usadas como
certidões oficiais. Por fim, a questão “pedagógica” da crônica, com o objetivo de ensinar aos
leitores qualidades dos indivíduos explicitados. A crônica, nossa fonte em análise, é composta
por ambas vertentes, apresentadas acerca do fazer histórico da crônica.
Na obra Ibn Shaddãd apresenta também uma abordagem que destaca não o fato de o
sultão estar inserido no poder, mas as qualidades que possuía. Sendo assim, constrói uma
imagem de um detentor de virtudes; é a partir delas, de sua postura e suas façanhas que
Saladino é mitificado. “A memória, como propriedade de conservar certas informações,
remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem

86
pode atualizar impressões ou informações passadas ou que ele representa como passadas”. A
obra A Rara e Excelente História de Saladino trata-se de um relato biográfico objetivado na
perpetuação da imagem do sultão, tornando-o um mito. Esse escrito foi construído a partir de
informações pessoais, coletadas por intermédio da convivência com o sultão. (LE GOFF,
1994, p.423)
Maurice Halbawchs expõe a existência de duas maneiras de se acessar a memória,
sendo elas na forma coletiva ou individual. A memória coletiva é ocasionada a partir da
junção de recordações de um grupo de pessoas, ou seja, para que se obtivesse acesso à
memória era necessária a presença de outro indivíduo e gradualmente se daria a construção da
memória, porém, expande sua discussão e da fé a existência de uma memória individual da
qual é formulada intimamente pelo indivíduo. (HALBWACHS, 1990, p.26)
Halbawchs (1990) em suas discussões acerca da memória coletiva apresenta
exemplos de como indivíduos podem rememorar fatos, e dá referência à fase infantil. Isso não
representa que sejam recordações estritamente individuais. Todavia, podem se tratar de
lembranças influenciadas por outros indivíduos, localizados dentro de uma coletividade ou
mesmo de um grupo restrito, a partir de tal pressuposto, podemos afirmar a influência da
memória coletiva na construção da memória individual. A maioria destas lembranças se
remete a fatos que possuem grande repercussão, e mesmo que estejam registrados no âmbito
coletivo, se tornam parte integrante da memória individual. (HALBAWCHS, 1990, p. 38-39)
Ibn Shaddãd cria uma linha do tempo da vida de Saladino analisando seu nascimento
até chegar a sua ascensão política e militar. Em tese consideramos então que Ibn Shaddãd não
esteve presente em todos os momentos da vida do sultão, reafirmamos a ideia de apropriação,
na qual a memória coletiva é migrada para um posicionamento individual. Dessa forma, vê-se
que a construção da memória individual se torna quase interdependente da memória coletiva.
Partindo deste pressuposto podemos acreditar então que por mais que Ibn Shaddãd
tenha se comprometido em apresentar todas as virtudes do sultão, os fatos registrados em sua
obra foram selecionados mesmo que aleatoriamente.
Sendo a memória seletiva, é importante destacarmos que “lembrança” e “memória”
são distintas. A lembrança por sua vez é fragmentada e sem localização, é uma peça de um
grande quebra-cabeça; mais é a partir da lembrança que se toma caminho para a memória, não
se busca reconstruir lembranças, mas sim a partir de uma reminiscência reconstruir uma
memória. (HALBAWCHS, 1990, p. 38-39)
Quanto à construção histórica estruturada pela memória, a lembrança é fragmentada.
Todavia, é a partir dela que se chega à memória, entende-se então que o exercício de

87
rememorar nos faz acessar informações do passado, sendo o passado campo de trabalho da
história. A partir de tal analogia percebemos que Ibn Shaddãd utiliza-se deste processo para
construir a obra REHS, pois para discorrer acerca da vida e das conquistas de Saladino ele
acessa a memória dos fatos localizada no passado, e é a partir desta memória que ele constrói
A Rara e Excelente História de Saladino registrada por intermédio da crônica já caracterizada
como fonte historiográfica. (HALBAWCHS, 1990, p.39)
Como já abordado anteriormente, a obra analisada nesta pesquisa REHS trata-se de
um relato biográfico construído a partir das próprias experiências do autor Ibn Shaddãd. Com
base neste fato, é necessário analisarmos a linha de pensamento desenvolvida por ele para que
então identifiquemos a utilização da memória na construção de sua obra.
Podemos apontar uma dualidade na construção do escrito, não sendo a memória
individual o único agente de impacto, mas sendo Ibn Shaddãd influenciado também pela ação
da memória do grupo, ou seja, da memória coletiva. O autor deixa claro que o seu objetivo é
apresentar as virtudes e os feitos do sultão com base na sua experiência própria sendo ele
testemunha ocular, todavia, apresenta também momentos dos quais não teve participação
direta, como por exemplo, o nascimento do sultão e suas batalhas, e para que viesse abordar
os temas em sua obra, ele se apropria de informações presentes na memória coletiva da
sociedade.

Da memória compartilhada passa-se gradativamente à memória coletiva e a suas


comemorações ligadas a lugares consagrados pela tradição: foi por ocasião dessas
experiências vividas que fora introduzida a noção de lugar de memória, anterior às
expressões e às fixações que fizeram a fortuna ulterior dessa expressão. (RICOEUR,
2007, p. 157)

Como se fosse um processo cíclico tem-se a construção da História em que se acessa


a memória (seja ela coletiva ou individual), e a partir dela registram-se fatos, efetivando o
fazer histórico concluindo assim em historiografia. O objetivo da história é então o de
estabelecer uma ponte entre o passado e o presente, restabelecendo assim uma continuidade
interrompida.
Cabe como obrigação apresentar a diferença entre memória coletiva e História. Na
concepção de Halbawchs (1990):

A memória coletiva se distingue da história: é uma corrente de pensamento continuo


de uma continuidade que nada tem de artificial, já que retém do passado somente,
aquilo que ainda está vivo ou capaz de viver na consciência do grupo que a mantém.
A história obedece, assim fazendo, somente a uma necessidade didática de
esquematização. (HALBAWCHS, 1990, p.82)

88
É importante apontar a seleção como uma grande falha na utilização da memória
para a construção do conhecimento histórico. Porém, conclui-se que grande é a contribuição
da memória para com o fazer histórico e para a construção histórica e historiográfica, pois é
através da memória que se acessa o passado, passado este até então desconhecido ou talvez
ainda não registrado.
O autor, no início de sua obra, destaca o seu compromisso em registrar os feitos e as
qualidades do Sultão, se mantendo como uma testemunha ocular fidedigna de suas virtudes. A
ideia do registro das “virtudes” serve como uma forma de apresentar e exemplificar
comportamentos a serem desenvolvidos para gerações posteriores. Sendo assim, daremos
ênfase à discussão anterior que trata do fazer histórico da crônica, quanto a sua função de
imortalização do passado e também a sua utilização como aspecto pedagógico. Assim, afirma
que:

I was so enslaved by his favour to me, affected by his true friendship and the service
I owed him that it is encumbent on me to set forth all his virtues that I have direct
knowledge of and to relate all his excellent qualities that I have known. (REHS,
2002, p. 14)7

O intuito de Ibn Shaddãd não era de apresentar o sultão bem como era em aspectos
físicos, mas sim, apresentar o processo histórico pelo qual passou, dando ênfase a suas
virtudes e construindo a imagem do modelo de guerreiro, líder, estrategista, libertador e
unificador do mundo árabe-muçulmano no cenário das Cruzadas. Quando Ibn Shaddãd cria
uma imagem idealizada de Saladino como um portador de virtudes, não destaca o fato de o
sultão estar inserido no poder e possuir grande representatividade política. O foco é enfatizar
as qualidades que possuía. Desse modo, constrói uma imagem de um indivíduo detentor de
virtudes. É a partir delas, de sua postura e suas façanhas que Saladino é mitificado. Nesse
sentido, no relato consta que:

Saladin was just, gentle and merciful, a supporter of the weak against the strong.
Each Monday and Thursday he used to sit to dispense justice in public session,
attended by the jurisconsults, the Qãdīs and the doctors of religion. The door would
be opened to litigants so that everyone, great and small, senile women and old men,
might have access to him. (REHS, 2002, p. 23)8

7
Eu estava tão escravizado por seu favor por mim, afetado por sua verdadeira amizade e serviço que eu o
prestava que é minha incumbência levantar todas as suas virtudes de que eu tive conhecimento direto e relatar
todas as excelentes qualidades que eu conheci. (REHS, 2002, p.14, tradução nossa).
8
Saladino foi apenas, gentil e misericordioso, um defensor dos fracos contra os fortes. A cada segundas e terças-
feiras ele costumava sentar-se para distribuir justiça em sessão pública, em que participavam jurisconsultos,
Cádis e doutores da religião. A porta deveria ser aberta para o litigante para que todos, grandes e pequenos,
mulheres senis e homens velhos, pudessem ter acesso a ele. (REHS, 2002, p. 23, tradução nossa)

89
O autor não se limita em atribuir qualificações ao seu objeto, e às exalta como sendo
intrínsecas do sultão, ou seja, qualidades que constituem uma essência própria de sua
personalidade. O pressuposto de um líder gentil, misericordioso e defensor dos fracos contra
os fortes é de forma veemente uma representação da manifestação da justiça em Saladino. O
autor também o apresenta em suas variáveis como um sujeito público, que não se restringe ao
seu círculo de liderança, mas sim, expande sua esfera de experiências ao público.
Neste sentido, a aproximação com os diversos grupos sociais representaria na ótica
de Ibn Shaddãd um exemplo de sua simplicidade. É mencionado na obra que mesmo após as
cerimônias de propagação de justiça, o sultão se colocava a disposição para receber petições
do povo. Segundo o cronista, seria uma forma utilizada por Saladino para descobrir injustiças
no reino e trazê-las resolução. Estas petições seriam analisadas com base no que Deus
colorará em seu coração em companhia de um de seus funcionários. Paulatinamente percebe-
se que Ibn Shaddãd vai modulando uma imagem que almeja construir sobre o sultão Saladino,
adequando-o quase que a um líder “perfeito”. (REHS, 2002, p. 23)
Em seu relato Ibn Shaddãd enfatiza a benevolência do sultão para com os outros e
sua fidelidade aos princípios pregados pelo Islã. Todavia, mantém de forma rígida seu
posicionamento caracterizando seu objeto como sendo um líder justo, e para justificar tal
adjetivo relaciona sua justiça ao fato do não direcionamento de benefício e prioridades a seus
familiares, uma vez que sua vontade tinha poder de lei e seu posicionamento era de líder
absoluto. Desse modo, de forma implícita, deixa transparecer aquilo que no seu olhar
supostamente seria um modelo, ou seja, para ele a escolha de um governante em não
beneficiar com postos ou cargos de confiança seus familiares, representaria um modelo de
líder justo. Assim, hipoteticamente associamos tal ideia a uma situação oposta, suponhamos
que nos antecedentes da ascensão de Saladino tal pratica era comum nos governos de outros
líderes, isso responderia, no olhar do cronista, um líder injusto.
O fragmento explicitado abaixo está na fonte em análise, momento em que Ibn
Shaddãd, no primeiro capítulo da obra, relata acerca de uma disputa entre Taqī al-Dīn
sobrinho de Saladino e Ibn Zuhayr. Associamos o relato abaixo à discussão realizada no
parágrafo anterior, referindo-se à iniciativa do cronista em assimilar as características de um
líder justo. Segundo o autor:

I have seen him, when a man called Ibn Zuhayr from Damascus appealed to him
against Taqī al-Dīn, his nephew, send for him to be brought to the court of justice.
This was done, although the former was a courtier of the sultan, and then the dispute
between them was heard, (...) and Taqī al-Dīn was one of those whom Saladin held

90
most dear and respected, but he did not favour him in the matter of justice. (REHS,
2002, p. 23)9

Entre as principais características explicitadas por Ibn Shaddãd, a justiça possuiu


grande representatividade em sua trajetória. Ao não beneficiar seu sobrinho, mesmo com o
grau de parentesco, demonstra justiça em seu julgamento. A partir do contexto em que é
estabelecida justiça entre Taqī al-Dīn e Ibn Zuhayr podemos afirmar também um caráter
estrategista desenvolvido por Saladino. Ao estabelecer-se como líder justo garante apoio da
população, considerando que a justiça gera sentimento de estabilidade jurídica na estrutura
social. (REHS, 2002, p. 23)
Ibn Shaddãd aponta a generosidade e a caridade como sendo também grandes
virtudes do sultão. Na construção da imagem de Saladino, o autor reforça a ideia de que não
se apegava aos bens materiais e distribuía suas riquezas e posses aos outros. Em função disso
os funcionários do pleito real temiam que o reino passasse por um momento de crise
decorrente a um período de escassez. Dessa forma, escondiam do sultão certa quantidade de
dinheiro como forma de precaução, no caso de que um momento de instabilidade os
surpreendesse. Segundo o autor mesmo em meio a uma crise Saladino seria generoso para
com o outro. (REHS, 2002, p. 25)
Analisando o relato de Ibn Shaddãd percebe-se sua intenção em delimitar a imagem
de um líder que se coloca no lugar do outro, dando ênfase a este tipo de qualidade mesmo
dentro do confronto direto com os cristãos. O cronista caracteriza-o como sendo um líder
humano e tolerante que direcionou auxílio aos necessitados. É nesse sentido que na obra o
autor relata um exemplo dessa qualidade do sultão: “Quando ele tomou Acre, ele libertou
todos os prisioneiros de seu estreito confinamento. Eram por volta de 4.000 pessoas. Para
cada um ele pagou custas para permitir que eles alcançassem suas cidades e suas famílias”.
(REHS, 2002, p. 38)
Em outro exemplo a respeito de Saladino, Ibn Shaddãd relata que:

His cushion was sometimes trodden on when people crowded in on him to present
petitions, but he was not at all affected by that. One day my mule shied away from
the camels White I was riding in attendance on him, and it pressed painfully on his
thigh, but he was smiling. On a windy and rainy day I preceded him into Jerusalem,
when it was very muddy. My mule spattered him with mud, so that it ruined al lhe

9
Quando um homem chamado Ibn Zuhayr de Damasco apelou a ele contra Taqī al-Dīn, seu sobrinho, mandou
que o trouxessem perante a corte de justiça. Isto foi feito, mesmo o último sendo um cortesão do sultão, e quando
a disputa entre eles foi ouvida, (...) e Taqī al-Dīn foi um dos quais Saladino tinha mais querido e respeitado, mas
ele não o favoreceu na matéria de justiça. (REHS, 2002, p.23, tradução nossa).

91
was wearing, but once again he was laughing. I wanted to drop behind him on that
account, but he would not let me. (REHS, 2002, p. 34)10

Neste relato Ibn Shaddãd objetiva-se em identificar Saladino como um líder humano,
cordial e de fácil sociabilidade. Assim, o cronista consegue de pouco a pouco ir delineando
uma identidade própria do sultão, pois sua análise acaba divergindo de uma visão
estereotipada de Sultões rudes e violentos, ou seja, no seu relato o sultão Saladino foge do
constructo de um modelo tradicional. Contudo, houve um momento no contexto das cruzadas,
de forma mais especifica no cerco a cidade de Cezaréia contra o Rei da Inglaterra (Ricardo
Coração de Leão), que alguns de seus emires curdos recusaram-se a obedecer as suas ordens e
o sultão enfurecido os deixou e seguiu para a batalha.

Saladin’s son, al-Zahir related to me that on that day he was so fearful of him that he
did not dare fall into his sight, although he had charged deeply [into the enemy] that
day. (...)There was not a single emir who did not shake with fear and believe that he
was about to be arrested and reprimanded. (...) I came into his presence just after a
loto f fruit had arrived from Damascus. He said, “Fetch the emirs so that they can eat
some.” My worries were dispelled and I went to seek the emirs, who presented
themselves very fearfully, but they found him in a happy and relaxed mood which
restoed their confidence, trust and contentment. They left him planning to break
camp, just as if nothing at all had happened.’ Consider such forbearance which is not
met with in times like these nor related of men of his position in previous
generations. (REHS, 2002, p. 34-35)11

A partir deste fato Ibn Shaddãd caracteriza Saladino como um homem benevolente e
de grande paciência. No entanto, podemos acreditar que a ação do sultão para além de sua
benevolência tinha trajes de estratégia política e militar. Uma vez que se porventura entrasse
em conflito ou até mesmo desse cabo dos emires, poderia gerar um momento de instabilidade
interna, levando em consideração que se encontrava em meio a um conflito com os cristãos e
necessitava de apoio militar.

10
Sua almofada por vezes era pisada quando as pessoas se aproximavam dele para apresentar petições, mas ele
não era afetado por nada disto. Um dia minha mula se esquivou dos camelos, enquanto eu estava cavalgando em
assistência a ele, e o pressionou fortemente à coxa, mas ele estava sorrindo. Num dia de vento e chuva eu seguia
com ele em Jerusalém, que estava cheia de lama. Minha mula o sujou de lama, o que arruinou tudo o que ele
estava vestindo, mas uma vez mais ele estava rindo. Eu queria me prostrar perante ele por causa disso, mas ele
não me deixou. (REHS, 2002, p. 34, tradução nossa).
11
O filho de Saladino, al-Zahir, relatou-me que naquele dia ele estava com tanto medo dele que não ousava cair
em seu olhar, mesmo ele tendo lançando-se profundamente no inimigo aquele dia. (...) não havia um único emir
que não tremesse de medo e acreditasse que estaria próximo de ser preso e recriminado. (...) eu fui à sua
presença logo após a chegada de frutas de Damasco. Ele disse: Adentre os emires para que eles possam comer
algumas. Minhas preocupações dissiparam-se e eu procurei os emires, que estavam bastante amedrontados, mas
eles o acharam num humor feliz e relaxado que restaurou as suas confianças e contentamento. Eles o deixaram
planejando atacar o inimigo, como se nada houvesse acontecido. Considere tal tolerância que não é encontrada
em tempos como este nem relacionada com homens de sua posição em gerações anteriores. (REHS, 2002, p. 34-
35, tradução nossa).

92
When the lord of Sidon visited him at Nazareth, I saw how the sultan honoured him
and received him graciously, ate a meal with him and, in addition, proposed that he
should convert to Islam, telling him of some of its special excellencies and urging
him to take the step. (REHS, 2002, p. 35)12

Têm-se no fragmento acima um exemplo de contato pacífico entre um Muçulmano e


um Cristão em condições igualitárias, destacando, porém, que neste contexto mulçumanos e
cristãos se encontravam em conflito em função da busca do poderio sobre a cidade de
Jerusalém. Em comparação a outros momentos, Ibn Shaddãd apresenta a situação com o
intuito de mais uma vez qualificar Saladino como sendo um exemplo de cavalheiro generoso,
com grande modéstia, um sultão que se apresenta de forma receptiva a todos os convidados,
que não permite que aqueles que o visitassem saíssem de sua presença sem terem sido
alimentados. (REHS, 2002, p. 35)
O relato do cronista não desaponta por se tratar de uma cena incomum, porém ainda
sim é passível de crítica, já sabemos que no contexto se passava por um momento de conflito
entre cristãos e muçulmanos, pode-se acreditar então que a visita do senhor de Sídon a
Saladino, não representava apenas uma visita corriqueira, mas que possivelmente poderia ter
como objetivo a busca por acordos ou alianças entre ambos. Mas ainda assim, Ibn Shaddãd
não deixa de engrandecer a figura do sultão, reafirmando que suas virtudes se estendiam
mesmo aqueles considerados infiéis perante o Islã. (REHS, 2002, p. 35)
Fez-se necessário o debate acerca das qualidades do sultão, uma vez que demonstra
virtudes pessoais na figura de Saladino, não o apresentando como um líder que é carregado
somente de virtudes políticas e militares, mas sim, como um diferencial dentro de uma
linhagem de governantes, que em sua grande maioria, são conhecidos por serem temidos e
não como indivíduos de sensibilidades, como homens generosos, bondosos e tolerantes. Em
suma, as virtudes supracitadas pertencem a uma variedade de qualidades imortalizadas por
Ibn Shaddãd que cumpre com sua tarefa de registrar os feitos e expor todas as virtudes e as
excelentes qualidades dos quais ele teve conhecimento direto.

FONTE

IBN SHADDÃD, Bahã al-Din - The Rare and Excellent History of Saladin (A Rara e
Excelente História de Saladino), Tradução: D.S. Richards. England: Ed. Ashagate, 2002.

12
Quando o senhor de Sídon o visitou em Nazaré, eu vi como o sultão o honrou e o recebeu graciosamente,
comeu uma refeição com ele e, além disso, propôs que ele devesse se converter ao Islã, discorrendo sobre suas
qualidades especiais e o urgindo a dar esse passo. (REHS, 2002, p. 35, tradução nossa).

93
REFERENCIAS

DEMANT, Peter. O Mundo Muçulmano. São Paulo: Contexto, 2014.

FRANÇA, Susani Silveira Lemos. Os Reinos dos Cronistas Medievais (Século XV). São
Paulo: Annablume; Brasília: Capes, 2006.

FLORI, Jean. Guerra Santa: Formação da ideia de cruzada no Ocidente Cristão. Campinas,
SP: Editora da Unicamp, 2013.

GORDON, Matthew S. Conhecendo o Islamismo: Origens, crenças, praticas, textos sagrados,


lugares sagrados. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

HALBWACHZ, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, Editora: Revistas dos
Tribunais, 1990.

HOURANI, Albert Habib. Uma História dos povos árabes / Tradução Marcos Santarrita. –
São Paulo: Companhia da Letras, 1994.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: UNICAMP, 1994.

LE GOFF, Jacques. Saladino. In: LE GOFF, J. (Org.). Homens e Mulheres da Idade Média.
São Paulo: Estação da Liberdade, 2013, p. 197-200.

RICOEUR, Paul. A Memória, a História, o Esquecimento. Campinas, SP: Editora da


Unicamp, 2007.

94
AS PRÁTICAS PAGÃS E AS ESTRATÉGIAS DE CONVERSÃO DA IGREJA
CRISTÃ NO REINO SUEVO

Vitor M. Guimarães1
Márcia S. Lemos2

Resumo: O cristianismo, credo surgido na região da Palestina, estabeleceu-se no Império


Romano como uma crença das camadas baixas e médias da sociedade urbana, conquistou
adeptos na aristocracia e, no século IV, tornou-se o credo oficial do Estado. A Igreja se
expandiu pelo Ocidente chegando até a Hispânia, região onde se instalou o reino Suevo, mas
encontrou dificuldade para empreender o processo de conversão. As práticas pagãs greco-
romanas e germânicas ainda permaneciam no cotidiano das pessoas, muitas vezes inseridas na
própria atividade laboral. O objetivo desta comunicação é, portanto, destacar as estratégias
desenvolvidas pelo clero para constituir a hegemonia de seu sistema de interpretação no Reino
Suevo. Para perscrutar o tema, selecionamos o discurso de Martinho de Braga em Da
correção dos rústicos e a crônica de Paulo Orósio, História contra os pagãos. As fontes
serão analisadas a partir do arcabouço teórico de Pierre Bourdieu.

Palavras-chave: Igreja cristã. Reino Suevo. Práticas pagãs.

O objetivo desse estudo é colocar em foco a ação da Igreja Cristã no Reino Suevo e
sua relação com as permanências das práticas pagãs entre os séculos V e VI. Nesta
comunicação, pretendemos destacar as estratégias utilizadas pelos clérigos para converter e
corrigir a comunidade de fiéis que ainda praticava os cultos ancestrais, mesmo no âmbito
doméstico. Para alcançar o proposto, organizamos o texto em três partes articuladas: o
surgimento do cristianismo e sua expansão pelo Império Romano a partir do século III; a
formação do Reino Suevo na Hispânia e as estratégias de conversão.
O cristianismo, surgido na Palestina, foi um movimento religioso dissidente que se
organizou a partir da crença na realização da Promessa, conforme o previsto na tradição
veterotestamentária. Os judeus que acreditaram ser Jesus o novo Davi, o Cristo, acabaram
dando origem ao novo culto. Os cristãos, por meio da propaganda de sua fé, ganharam
adeptos, inicialmente, entre as camadas baixas e médias da sociedade urbana do Império
Romano. Ao chegarem a Roma, tiveram Paulo como interlocutor e se estabeleceram na
capital do Império ainda assimilados ao judaísmo. Tanto no âmbito social quanto entre os
autores do alto Império, o cristianismo era considerado como superstitionis novae et
maleficae (CHEVITARESE, 2006, p. 166), ou seja, as práticas monoteístas cristãs, segundo a

1
Mestrando do Programa de Pós- Graduação em Letras: Cultura, educação e linguagens na Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia, UESB, Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia,
FAPESB, Brasil.E-mail: vitor.mguimaraes@hotmail.com
2
Profa. Dra./Orientadora – Departamento de História – UESB. E-mail: marcialemos.uesb@gmail.com

95
concepção civil romana, eram vistas como maléficas. A perseguição aos cristãos no Império
Romano foi uma ação intermitente que variou no tempo e no espaço. O imperador Décio (249
- 251), pretendendo afirmar seu poder na sociedade romana, motivava a população numa luta
contra quem ameaçasse a ordem imperial e os cultos ancestrais. Os cristãos, que não
compartilhavam das atividades cívicas em homenagem aos deuses tutelares, se constituíram
num problema político.
Na concepção romana, religião e civismo não se separam. Cultuar os deuses tutelares
era um dever cívico que garantia o equilíbrio na sociedade, a prosperidade do Império, como
também evitava catástrofes. Os cristãos, ao não participarem dos cultos imperiais, em função
da sua fé monoteísta, por vezes, eram considerados subversivos. Além disso, segundo Silva
(2006, p.243), Tácito, historiador do século II, acusou o cristianismo de magia (superstitio),
uma falsa religião professada por estrangeiros, tornando-os uma ameaça à segurança do
Estado. Assim, podemos considerar que a adoração a um deus só, o culto doméstico e o
individualismo3 tornavam o cristianismo um problema político institucional.
O cristianismo só alcançou estabilidade sob o governo de Constantino, após 313. A
partir dessa data, ficou estabelecido que todos os cultos existentes dentro do Império eram
lícitos, inclusive o cristianismo, que foi beneficiado por várias medidas adotadas pela domus
imperial, entre elas, a devolução dos bens confiscados e a reconstrução dos templos destruídos
no período da grande perseguição promovida por Diocleciano (303-311). A aproximação de
Constantino da Fé cristã ainda hoje é objeto de debate, mas é inegável a influência deste
imperador na organização da Igreja e na transformação do cristianismo em religião oficial do
Estado.
O êxito da Igreja e os privilégios concedidos pelo Estado Romano para o novo culto
instigou a hostilidade entre cristãos e pagãos4. A partir dos monarcas sucessores de
Constantino começaram a aparecer medidas que procuravam coibir as práticas pagãs, em
especial os sacrifícios, os ritos de adivinhação e a magia considerada maléfica. Por fim, no
governo de Teodósio I, por meio do Edito de Tessalônica, promulgado em 380, a fé cristã
tornou-se o culto oficial do Império Romano.
A Igreja apropriou-se do modelo administrativo dos romanos e organizou sua
estrutura eclesiástica de modo similar nos centros urbanos das províncias, onde os bispos,

3
São aspectos que tornam o cristianismo uma ameaça (ROSA, 2006, p. 137-158).
4
O termo paganismo foi difundido no século V para definir os adeptos do politeísmo, no entanto, a origem desse
termo remete aos que habitam do pagus, como o próprio Paulo Orósio atesta em sua História contra os pagãos.
Com a difusão do cristianismo pelos centros urbanos, o pagão - o homem do campo que preservava seus cultos
ancestrais - passou a ser identificado como aquele que era adepto das tradições germânicas e greco-romanas.

96
alguns oriundos da elite letrada, se constituíram enquanto autoridades locais (GARCÍA
MORENO, 1990). Foi desse modo que o clero cristão expandiu a nova fé pelas províncias do
Império. A Hispânia, anexada como província entre os séculos III e I a.C., além de sua
localização privilegiada – região fundamental durante as Guerras Púnicas5 -, também fornecia
importantes recursos minerais e força de trabalho para o Império.
Os Suevos, junto com os Vândalos e os Alanos, no processo de migração ocasionada
pelos conflitos com os Hunos, atravessaram a fronteira romana em 406. Chegaram a Hispânia
no ano de 409 e estabeleceram-se na região de Braga, onde os Suevos, por meio de sorteio
entre os povos germânicos migrantes, acabaram se fixando. Em um primeiro momento, os
Suevos viveram do saque às comunidades galaico-romanas, mas a região não favorecia esse
tipo de atividade em virtude da sua pouca produtividade agrícola. A necessidade de
aproximação com a população local levou a formação do reino (ORLANDIS, 2011, p. 13-29).
Quando os Suevos se fixaram na Hispânia ainda eram pagãos. Requiário, filho de
Réquila, se converteu ao cristianismo niceno em 448, sendo a primeira conversão de um
monarca germânico. Seu sucessor, Remismundo, abraçou a fé ariana6, inaugurando um novo
capítulo da história religiosa do reino. O retorno da monarquia a fé nicena ocorreu através de
Martinho de Braga no século VI.
A Igreja Cristã teve muita dificuldade no processo de conversão na Europa ocidental.
Impor a sua interpretação de mundo implicava em preparar os clérigos para ensinar a doutrina
e combater as tradições pagãs, expressas no uso de amuletos, de ervas com finalidades
curativas, de orações votivas, de sortilégios e tantas outras práticas. Assim, a insatisfação do
clero com essas permanências deu origem a um conjunto de estratégias que buscava tornar o
cristianismo hegemônico.
Construir a hegemonia da Igreja significava estabelecer uma compreensão da
realidade a partir dos valores cristãos, ou seja, estabelecer o cristianismo como único sistema
de interpretação do mundo para orientar as práticas cotidianas do fiel.
No entanto, a superação das praticas pagãs ligadas ao cotidiano ou a atividade laboral
era uma empreitada complexa, fazer com que o fiel fosse à igreja no domingo não era tão
difícil, o desafio consistia em fazer com que ele destruísse o altar que estava em casa e
5
A região tornou-se o local estratégico para o Império Romano cortar o suprimento logístico dos cartagineses,
que ameaçavam chegar a Roma. Assim, os romanos, apoiados por vários povos da região Ibérica, derrotaram os
cartagineses e passaram a dominar o litoral mediterrâneo como estratégia militar fundamental para a vitória.
(SILVEIRA, 2001, p. 19-32)
6
Segundo (LEMOS, 2004, p.39), o arianismo defendia que Cristo, por ter sido criado pelo Pai, não era da
mesma substância Dele, era inferior. O concílio de Niceia condenou tal ideia, pois contrariava o dogma da
trindade. Ao adentrar no Império Romano muitos povos bárbaros já conheciam a fé ariana.

97
abandonasse o amuleto, a crença na sorte ou nos deuses do panteão greco-romano.
Cristianizar o espaço privado, ou melhor, “os corações”, tornou-se o grande desafio dos
clérigos dos séculos V e VI no Reino Suevo.
Para entender esse processo utilizamos a noção de campo, conforme a perspectiva do
sociólogo francês Pierre Bourdieu:

Compreender a gênese social de um campo, e aprender aquilo que faz necessidade


especifica da crença que o sustenta, do jogo de linguagem que nele se joga, das
coisas materiais e simbólicas em jogo que nele se geram, é explicar, tornar
necessário, subtrair ao absurdo do arbitrário e do não-motivado os actos dos
produtores e as obras por eles produzidas e não, como geralmente se julga reduzir ou
destruir (BORDIEU,1989 p. 69).

O campo é um lugar de tensão, onde os agentes estão posicionados e divergem em


suas concepções. Dentro do campo religioso se produz e se reproduz a crença por meio do
habitus, um conhecimento adquirido que orienta e situa o sujeito no espaço. A Igreja cristã
forma sua ortodoxia e pretende criar práticas e concepções de mundo, maneiras de pensar e de
viver. Na relação de força, os pagãos preservam suas práticas enquanto o clero cristão elabora
estratégias de conversão para normatizar os comportamentos e tornar sua interpretação
legítima e única.
Para identificar e compreender as estratégias utilizadas pelo clero, utilizamos dois
autores cristãos que elaboraram diferentes discursos com objetivos comuns: Da correção dos
rústicos de Martinho de Braga e História contra os pagãos de Paulo Orósio. Apresentam
formas distintas de relacionar o empreendimento em favor do processo de conversão e contra
as práticas pagãs. O sermão evidencia a luta diária do clero na correção das práticas
consideradas desviantes; já a crônica de Paulo Orósio afirma uma nova concepção de mundo
baseada na doutrina cristã.
Paulo Orósio, historiador cristão do século V, nascido na Hispânia, viveu no período
das grandes migrações germânicas no Império Romano, quando fugiu para Hipona, onde
encontrou seu contemporâneo o Bispo Agostinho, que o motivou a escrever a História contra
os pagãos, redigida entre 416-417 com forte carga religiosa. A obra, escrita em latim, é
dividida em sete livros que narram os fatos da criação até o contexto do autor. Nesta crônica,
Paulo Orósio narrou a história de quatro grandes impérios: o assírio, o macedônio, a
cartaginês e o romano. Deste modo, os sete livros da História contra os pagãos se propõe a
contar uma história universal e providencialista.

98
Martinho de Braga, bispo metropolitano, reconhecido como natural da Panónia,
partiu para a Hispânia com a missão pastoral e exerceu papel predominante na conversão dos
reis suevos. Durante o II concílio de Braga (572), o bispo Polémio destacou sua dificuldade
com as superstições praticadas por sua comunidade. Em resposta, o bispo bracarense escreveu
Da correção dos rústicos, uma carta que tinha por finalidade a instrução pastoral, mas
também um sermão encomendado, de caráter descritivo e exortativo que pretendia fornecer
um modelo de ação para corrigir os rústicos, vistos como aqueles que praticavam o
paganismo. Escrita em 574 em língua latina, o discurso pastoral procurava explicar as origens
das práticas pagãs, narrando da criação do mundo até a ressurreição de Cristo, e afirmar a
superioridade do cristianismo.
Uma característica importante na difusão do cristianismo foi a relação da Igreja com
as estruturas de poder, conforme enuncia Silva:

O estreitamento do relacionamento com as autoridades romanas favorecia a


ampliação do número de fiéis e o fortalecimento do cristianismo. Nesse
empreendimento, as cidades, apesar da progressiva perda de importância no cenário
político-econômico do período, podiam ocupar lugar de destaque como núcleos de
irradiação da fé, considerando que muito ainda precisava ser feito acerca da
cristianização no espaço rural – cada vez mais influente (SILVA, L. R. da., 2002, p.
71).

A posição das autoridades eclesiásticas tornou-se um elemento fundamental na


propagação da fé cristã:

Em efecto, durante los años conflictivos Del siglo V cuado poco a poco se van
derrumbando las autoridades y el aparato administrativo Del Imperio, vemos
muchos o bispos erigirse em verdaderos representantes de sus ciudades y actuar
como tales[...]es entonces cuando observamos a los o bispos erigirse em verdaderos
representantes de los intereses de sus conciudadanos hispano romanos, o mejordic
ho, de la aristocracia fundiaria a la que pertenecían. 7 (GARCÍA MORENO, 1990, p.
239)

Desta maneira, entre os séculos V e VI, do lado ocidental do Império, o refúgio foi
encontrado na Igreja sob a tutela dos bispos. De modo gradual e contínuo, as populações os
concebiam como juízes e lideranças morais. Além disso, podemos destacar a assistência
desenvolvida pela Igreja, como a criação de hospitais, albergues e orfanatos (SILVA, L. R.

7
De fato, durante os anos conflitantes do quinto século, quando as autoridades e o aparato administrativo do
Império gradualmente entraram em colapso, vemos muitos bispos se estabelecerem como verdadeiros
representantes de suas cidades e agirem como tal [...] quando observamos os bispos se tornam verdadeiros
representantes dos interesses de seus concidadãos hispano-romanos, ou melhor, da aristocracia fundiária a que
pertenciam.

99
da., 2002, p. 65-82). A influência religiosa e política dos bispos se consolidou dentro dos
reinos germânicos convertidos ao cristianismo.
Outra estratégia utilizada pelo episcopado no processo de conversão foi a
aproximação com os monarcas germânicos. Martinho de Braga e Isidoro de Servilha, na corte
Sueva e Visigótica, foram fundamentais na conversão de Miro (572) e Recaredo (589) ao
cristianismo niceno. Segundo Feldman (2008, p.178), a monarquia goda, para manter a
estabilidade e a continuidade do Reino, precisava legitimar seus sucessores por meio de um
forte aparato ideológico. Já a Igreja necessitava de uma monarquia forte para promover a
difusão do Evangelho. A aliança entre as duas Instituições buscava garantir a unidade
religiosa e política. A aproximação entre o clero e a monarquia permitiu a promulgação de
leis que condenavam práticas (THOMPSON, 1971, p. 362-365) consideradas subversivas e
seus agentes, como os magos e adivinhos.
As comunidades monásticas, estabelecidas na Hispânia, tornaram-se uma estrutura
fundamental para a propagação do cristianismo. Adornado de caráter carismático, o monge
conquistava a população rural e mediava a relação com os povos ditos “rústicos”, aqueles que
viviam no campo, contribuindo com a difusão e organização das regiões rurais do Reino:

Além de reunir a população local para eventos litúrgicos, os mosteiros foram


responsáveis pela manutenção do saber formal da época (notadamente teológico),
seja por suas escolas, seja pelo estudo e leitura cotidiana (individual ou coletiva)
praticada pelos monges. (MARQUES, 2008. p.83).

O monge, dessa forma, transformou-se num importante agente do processo de


conversão, seu modelo de vida inspirava os fiéis, pois era visto como um homem santo. O
monastério cumpriu uma função essencial na mediação entre o cristianismo e a cultura pagã,
visto que “o trabalho pastoral tornou-se um imperativo para a Igreja que, tanto queria difundir
a fé cristã, quanto mantê-la viva, coerente e ‘purificada’ das influências da religiosidade pagã”
(MARQUES, 2008, p. 84).
A insatisfação do clero com as permanências pagãs fez com que a Igreja elaborasse
estratégias de transformação dessa realidade. A Instituição procurou destruir templos,
substituir costumes, alterar signos e sobrepor o calendário de festas pagãs com datas cristãs.
O historiador Jacques Le Goff (1980), no ensaio “Cultura clerical e tradições
folclóricas na civilização merovíngia”, elenca as estratégias utilizadas pela Igreja. Para o
autor, a eliminação de templos pagãos e a destruição dos seus ídolos, a desnaturação dos

100
temas tirando o seu significado original e, às vezes, encobertos por meio da obliteração eram
instrumentos de recusa das “tradições folclóricas” pela “cultura eclesiástica”.
O historiador francês, Jean-Claude Schimitt, cita uma carta do papa Gregório Magno
ao Arcebispo Melito, na qual o Papa instrui o seu companheiro a destruir os templos pagãos, a
benzer o local com água benta e a colocar relíquias e altares. Essa estratégia também é
empregada nos bosques, onde a população rural adorava seus deuses (SCHMITT, 1992, p. 38-
39).
Contudo, o maior desafio da Igreja era cristianizar as práticas cotidianas. Para tanto,
empreendeu grande esforço no sentido de alterar o calendário (tempo) e o entendimento das
pessoas para que se efetuasse uma conversão genuína. Era importante que as antigas formas
de contar o tempo fossem alteradas, pois desse modo a Igreja possuiria o monopólio do
tempo, comandando a hora de trabalhar, as datas festivas que interessavam ao cristianismo e
ao mesmo tempo abolindo as festas pagãs. Segue aqui um exemplo de Martinho de Braga que
procurava corrigir as ações do seu público:

De igual modo, um outro embuste se intrometeu entre homens ignorantes dos


campos para pensarem que o início do ano são as calendas de janeiro, o que é uma
falsidade total e completa. Na verdade, segundo diz a Escritura santa, o início do
primeiro ano ocorreu a oito das calendas de Abril, no equinócio (Da correção dos
rústicos, 10, 1).

Segundo a concepção romana, janeiro era uma homenagem ao deus Jano e


significava o fim de um tempo e o começo de outro. Martinho procurava convencer o cristão a
seguir o sentido da temporalidade prevista nas escrituras sagradas, inclusive sobre os dias da
semana:

Que loucura é, pois essa que o homem baptizado na fé de Cristo não cultua o dia de
domingo, em que Cristo ressuscitou, e afirma cultuar o dia de Júpiter, de Mercúrio,
de Vênus e de Saturno, que não são senhores de qualquer dia, antes foram adúlteros,
magos e iníquos e morreram com má reputação na sua pátria? Pelo contrário, como
dissemos, sob disfarce desses nomes é prestada honra e veneração a demônios, por
homens estultos (Da correção dos rústicos, 9, 10).

No âmbito cotidiano, os sermões converteram-se em um importante recurso para a


propagação das ideias concebidas no âmbito da doutrina cristã. Matinho de Braga, em sua
carta-sermão, Da correção dos rústicos, utilizou a estratégia da refutação, buscava convencer
a população que os deuses cultuados pelos pagãos tinham suas origens nos enganos diabólicos
e sobreviviam na ignorância da comunidade rural:

101
Além disso, aliás, muitos demônios dos que foram expulsos do céu figuraram como
patronos, seja no mar seja nos rios seja nas fontes sejam nas florestas, e há homens
que, na sua ignorância de Deus, de modo semelhante, lhes prestam culto, como se
fossem deuses e lhes oferecem sacrifícios. No mar, realmente, dão-lhe o nome de
Neptuno, nos rios o de Lâmias, nas fontes o de Ninfas, nos bosques o de Diana, que
tudo são demônios malignos e espíritos nefandos (Da correção dos rústicos, 8, 10).

O discurso do Bispo desqualifica as crenças pagãs com o objetivo de convencer os


cristãos batizados a não mais praticarem seus ritos ancestrais. Assim, ele se preocupou com as
ações do seu público e propôs que este fosse instruído conforme a visão de mundo pregada
pela doutrina cristã. A organização do seu discurso a partir da narrativa bíblica da criação do
mundo e a apresentação da origem dos deuses romanos, por meio de uma linguagem menos
adornada, se constituem numa estratégia para o clero se aproximar da comunidade rural.

Quem quer que despreze o sinal da cruz de Cristo e volte a olhar para esse sinais, já
perdeu o sinal da cruz que recebeu no baptismo. O mesmo se passa com aquele que
se atém a outros sortilégios congeminados por magos e homens de mal; ao sortilégio
do símbolo santo e da oração dominical que recebeu com a fé de cristo, pois não se
pode cultuar ao mesmo tempo a Deus e ao diabo (Da correção dos rústicos, 16,
27).

Na citação acima, o bispo de Braga exorta e adverte os cristãos sobre a sacralidade


do batismo, afirma que aquele que permanece praticando o paganismo perde o sacramento.
De certa forma, isso significava a exclusão da comunidade de cristãos.
A utilização do sermão com intenção exortativa demonstra que o clérigo elaborou
um mecanismo para a boa percepção dos seus receptores, defendia a utilização de uma
linguagem simples e compreensível para acessar o entendimento dos fiéis. Essas estratégias
discursivas aparecem na Instrução dos catecúmenos de Agostinho de Hipona, que precedeu
Martinho. Agostinho, bispo de Hipona (cidade do Norte da África), considerado o Pai da
Patrística, instruiu os membros do clero sobre como proceder na conversão e correção de seus
fiéis. Para o Bispo, era fundamental que o sacerdote mantivesse o ânimo durante o sermão,
que a narrativa não cansasse o fiel e que a doutrina fosse explicada por meio da analogia. Tais
estratégias pedagógicas estão presentes no texto agostiniano.
A obra de Agostinho é precisamente um modelo para outros clérigos. Ele, portanto,
instruiu os padres como receber os neófitos e organizar os sermões: “Se nos entristece o fato
de que o ouvinte não nos acompanha somos obrigados a descer, de alguma forma, das alturas
do pensamento e demorar-nos na lentidão das sílabas... tão longe, tão baixo!” (A instrução
dos catecúmenos 15, 1). O bispo quer que a mensagem cristã seja compreendida, não
importando o grupo ou o nível de instrução da comunidade:

102
Também é muito diferente haver poucos presente, ou muitos; havê-los cultos ou
incultos, ou uns e outros serem da cidade ou do campo – ou uns e outro ao mesmo
tempo; ou haver uma mistura total no povo.
Essas circunstâncias influenciarão inevitavelmente aquele que vai narrar e
explicar...e a exposição trará em si como reflexo da afecção do ânimo daquele por
quem é proferida. Essa mesma diversidade impressionara diversamente os ouvintes,
mesmo porque eles próprios se impressionam mutuamente, com a sua presença, de
diverso modo (A instrução dos catecúmenos, 23, 21).

O bispo de Hipona assim estabelece algumas estratégias para a melhor percepção dos
seus ouvintes: “Escolheremos alguns dos passos alegóricos dos Livros dos Santos e,
narrando-os com cuidado, explicando-os e desvendando-os, nossa exposição se tornará mais
agradável” (A instrução dos catecúmenos, 18, 2). O culto cristão era considerado enfadonho
pelos recém-convertidos, por isso a necessidade de uma exposição agradável, pois, nas
missas, durante os sermões, o público permanecia em pé.
A partir do texto de Agostinho é possível verificar a preocupação com a instrução do
seu público, em especial, dos homens que viviam no campo, uma caraterística também
presente no discurso de Martinho de Braga que percebeu a necessidade de uma linguagem
considerada mais popular e acessível para corrigir os “rústicos”.
Paulo Orósio, também anterior a Martinho, ao narrar sobre as invasões germânicas
enuncia os perigos de haver um líder pagão:

Assim se Roma tivesse caído nas mãos dum chefe pagão e idolatra não apenas
persuadiria inevitavelmente os demais pagãos à implantação dos cultos aos deuses,
mas também lançaria uma perigosa confusão no seio dos cristãos. – E isto porque
estes ficariam aterrados com o preconceito e, por outro lado os primeiros seriam
encorajados pelo exemplo. Por esta razão, Deus justo dispensador do gênero
humano, quis que perecesse o pagão inimigo (História contra os pagãos, VII, 37).

Observamos que Orósio justifica, através da narração histórica, o papel do líder na


proteção da crença cristã. Além disso, percebemos em seu discurso o caráter providencialista
ao destacar que Deus quis que o rei pagão, Radagaiso, fosse derrotado, identificando o pagão
como inimigo da fé cristã. O cronista ainda afirma a invalidade da crença em oráculos,
conforme verificamos nos demais discursos analisados:

Logo, por que motivo fora abolida a crença nos oráculos da Pitonisa de Delfos muito
antes do império de César e do nascimento de Cristo, como atestam os próprios
escritores pagãos? – fora proibida pelo facto de haver sido desprezada.
Mas por que é que foi desprezada a crença nesses oráculos senão porque foi tida na
conta falsa, ou vã ou duvidosa?

103
É por isso que o poeta8 sabiamente advertiu: afastam-se sem consultar a sacerdotisa
e odeiam a gruta de sibila (História contra os pagãos, VI,15).

Percebemos a aproximação entre os discursos de Paulo Orósio e Martinho de Braga,


ambos acreditavam que a consulta a adivinhos não possuíam efeito concreto, e por isso eram
vãs e falsas:

Não está claro para a vossa compreensão que os demônios vos mentem nessas
vossas observâncias que em vão praticais e que vos enganam com os augúrios a que
prestais atenção com tanta frequência? Na verdade, como diz Salomão em sua
grande sabedoria: adivinhação e augúrios são coisas vãs; e quanto mais andar
inquieto o homem com elas, tanto mais vive no engano o seu coração (Da correção
dos rústicos, 12, 1).

Constatamos que em diferentes regiões, os clérigos queriam destruir a sobrevivência


das práticas pagãs. Entre as estratégias adotadas, destacamos: o processo de expansão do
cristianismo associado às estruturas romanas, contribuindo para a conversão dentro das
cidades; o fortalecimento do bispo como liderança religiosa e civil, transformando a igreja em
refúgio da população num contexto de guerras e organização dos reinos bárbaros; a
aproximação do clero das cortes germânicas, a conversão do monarca e a constituição de leis
civis que proibiam e coagiam as práticas pagãs.
No cotidiano, tanto o monge quanto o bispo tornaram-se mediadores entre a cultura
pagã e o cristianismo. O clero regular trabalhou em prol da dessacralização da natureza, da
alteração de calendários e da apropriação de imagens familiares ao universo das comunidades
rurais. Já o episcopado empenhou-se na adaptação dos sermões para torná-lo um mecanismo
importante na conversão e correção.
A Igreja, portanto, no processo de afirmação da sua doutrina, procurava apresentar o
cristianismo “como um sistema de interpretação do mundo e, como tal, fundamento de um
conjunto de práticas que visam a agir sobre ele” (BASTOS, 2003, p. 44). Dessa forma, os
discursos clericais buscavam influenciar o conjunto das práticas públicas e privadas no
cotidiano das pessoas e procuravam mudar seus hábitos. O objetivo da Igreja cristã era a
reprodução de sua crença e a destruição do habitus que se constituísse numa ameaça para a
sua hegemonia dentro do campo religioso. Nesse campo, os pagãos preservavam a seu habitus
enquanto a Igreja procurava moldar uma sociedade a partir de suas próprias concepções e
tornar a sua interpretação legítima e única. Como um sistema de interpretação do mundo, o
cristianismo buscou estabelecer as relações sociais, maneiras de viver, de vestir, de pensar e

8
Virgílio em Eneida, livro II, v.452.

104
de se comportar conforme a doutrina. Os bispos, enquanto uma elite consagrada em meio a
monarquia, conquistou a estabilidade da Igreja cristã no Reino Suevo abolindo o arianismo e
garantindo um forte aliado na luta contra o paganismo. Assim, a aproximação entre as duas
Instituições apontava para uma unidade religiosa e política que servia aos interesses das duas
partes.

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