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A CANÇÃO POPULAR BRASILEIRA E O VIOLÃO:

ANÁLISE DE PROCEDIMENTOS CRIATIVOS E ADAPTATIVOS EM DOIS


ARRANJOS PARA VIOLÃO SOLO

Renato Candro

RESUMO: Este artigo tem como proposta identificar alguns procedimentos utilizados
na prática do arranjo de canções para o violão solista com o intuito de acrescentar uma base
de conhecimento àqueles que querem se iniciar ou se aprofundar nessa área. Para isso, dentro
da questão idiomática do instrumento, investigaremos características como escolha de
tonalidades, texturas, condução de vozes, adaptação e coincidência rítmica, introduções,
interlúdios e soluções harmônicas sem, no entanto, entrar no mérito do estilo de cada
exemplo. Utilizaremos arranjos feitos por violonistas que têm um trabalho consolidado sobre
o aspecto proposto pelo tema do presente artigo.

PALAVRAS-CHAVE: canção; música popular brasileira; violão; arranjo.

Os arranjos partem de um ponto básico: melodia com alguns acordes. Por exemplo,
quando eu fiz o Cochichando do Pixinguinha, esse foi um tema que eu parti de uma
melodia com cifras e vi que tinha muito acorde que não estava certo. Então
consultando meu amigo Laurindo de Almeida, ele disse pra eu ir fazendo como
achasse certo que ia sair bonito.1 (Carlos Barbosa Lima)

1
Em entrevista à revista Brazilian Guitar Magazine nº8, p.24. Em http://brazilianguitar.net/magazine/BGM-
008.pdf, consultado em 01/05/2012.
1
O Brasil é um país com uma forte tradição violonística. Há uma extensa linhagem de
compositores, executantes e arranjadores - que trabalhou com a temática da música popular e
seus estilos como o maxixe, o choro, o samba, o baião e a bossa nova – que vai desde João
Pernambuco (1883 - 1947) passando por vários nomes de expressão como Armando Neves
(1902 - 74), Aníbal Augusto Sardinha (1915 - 55), Dilermando Reis (1916 - 77), Baden
Powell (1937 - 2000) e continua viva, ainda hoje, com Paulo Bellinati, Marco Pereira,
Egberto Gismonti, Guinga e tantos outros nomes que não caberia aqui citá-los. Todos eles
trabalharam como solistas e alguns também como músicos acompanhantes para cantores e
cantoras de música popular brasileira.
O violão também serviu e serve de instrumento de acompanhamento para a maioria
dos compositores de canção popular brasileira.
Dentro da prática instrumental, tomar um tema do cancioneiro e usá-lo como
material para criar arranjos foi e continua sendo procedimento constante. Também é comum
que cada violonista faça suas próprias alterações nos arranjos mesmo quando as peças tenham
sido escritas originalmente para o instrumento. Essas variações se dão na forma, na
tonalidade, na harmonia, no caráter e até mesmo em interlúdios construídos entre seções, de
maneira que se pode dizer que o executante, criando sua própria maneira de tocar, se apropria
e se transforma em co-autor da peça.
O que se pode verificar, até mesmo na citação de Carlos Barbosa Lima, é que a
carência de sistematização ou material acadêmico que aborde o assunto é grande.
Encontramos apenas uma dissertação de mestrado de Fanuel Maciel de Lima Junior (2003,
Unicamp) que trata do assunto. No entanto, para todos os exemplos ele se utiliza de arranjos
de sua própria autoria e a dissertação acaba por parecer mais um método do que uma pesquisa
acadêmica sobre uma prática. Acreditamos que seja mais interessante verificar quais foram os
procedimentos utilizados por violonistas que têm um trabalho sério e extenso nesse sentido.
Afinal, como proceder para realizar um arranjo para o instrumento? Longe de querer
chegar a um sistema, procuraremos ao menos apontar alguns caminhos utilizados levando em
consideração um estudo prévio de harmonia, contraponto e análise musical.

2
1. CARACTERÍSTICAS FUNCIONAIS DO VIOLÃO

1.1 Produção do som

Há várias formas utilizadas para gerar o som no instrumento no que se refere ao


ataque das cordas. Uma das mais utilizadas é o dedilhado, onde cada dedo da mão direita2 fere
uma corda específica possibilitando basicamente o arpejo ou o ataque das notas dos acordes
da mesma maneira que são executados ao piano.

Figura 1 – Prelúdio nº1 - Bach - exemplo: Renato Candro

Na execução de escalas ou melodias diatônicas é comum usar o dedo médio e o


indicador tocando alternadamente a mesma corda.

Figura 2 - Estudo nº7 - Villa-Lobos

Às vezes esses mesmos dedos tocam várias cordas ao mesmo tempo quando se
aumenta a amplitude de seus movimentos e possibilitando tocar acordes em uma velocidade
maior do que usando um dedo para cada corda. Baden Powell utilizou essa técnica em vários
arranjos e performances ao vivo.

2
p – polegar, i – indicador, m – médio, a – anular.
3
Figura 3 - A lenda do Abaeté - Dorival Caymmi - Arr: Baden Powell

Quando, em melodia acompanhada, se faz necessária a manutenção do ritmo,


costuma-se usar o dedo anular (a) para as notas da melodia, o dedo indicador e o médio para a
harmonia e o polegar para os baixos.

Figura 4 - Samba do avião - Tom Jobim - exemplo: Renato Candro

Mais usado pelos violonistas espanhóis, o rasgueado consiste em deslizar


rapidamente o polegar pelas cordas alternando com os dedos indicador, médio ou anular.
Obtém-se um efeito entre o glissando produzido na harpa e o ataque plaqué onde as notas são
tocadas exatamente ao mesmo tempo. Sua representação na partitura tende a ser feita por
meio do símbolo de arpejo.

Figura 5 - Batucada - Isaías Sávio

Outras técnicas menos comuns:


Pizzicato: Tocam-se as cordas com o polegar abafando-se as mesmas com a região
palmar externa da mão. Obtém-se um som percussivo com diminuição da duração das notas.
Tambora ou tambor: Bate-se verticalmente a lateral externa do polegar sobre as
cordas na região próxima ao cavalete. Imita o som de um tambor misturado com a ressonância
das cordas.
4
Campanella: notas em graus conjuntos tocadas em cordas diferentes. Deixa-se que o
som das mesmas se misture. O mesmo efeito é obtido no piano tocando graus conjuntos com
pedal de sustentação.

1.2 Tonalidades mais frequentes

É fato que, apesar de ser um instrumento harmônico, o violão tem certas limitações a
respeito da escolha das tonalidades para o arranjo. Nele a transposição não é feita
simplesmente alterando as distâncias equivalentes das teclas como no piano. A pestana -
técnica usada para se obter a mesma distribuição das notas dos acordes em outra tonalidade -
que se realiza prendendo-se várias cordas com o indicador (dedo 1), exige um maior esforço
muscular e destina um dos dedos mais hábeis da mão a um serviço próprio da peça de mesmo
nome (pestana) existente no instrumento e que limita sua escala próximo à mão ou cabeça do
instrumento.
O recurso de usar cordas soltas que estejam relacionadas com o tom da música pode
oferecer uma execução menos complicada e mais sonora, ao mesmo tempo em que a
negligência com esse fator pode dificultar bastante ou até mesmo inviabilizar o arranjo.
Indicações desse cuidado podem ser observadas no repertório violonístico.
Villa-Lobos, em seus 12 Estudos para violão, usou como centros tonais3 as
armaduras de Mi menor (estudos I, VI e XI), Lá maior (estudo II), Ré maior (estudo III), Sol
maior (estudo IV), Lá menor (estudos V e XII), Mi maior (estudo VII), Dó sustenido menor
(estudo VIII), Fá sustenido menor (estudo IX) e Si menor (estudo X). Os únicos tons em
sustenido são relativos aos outros que têm como tônica uma nota natural.
Baden Powell, em algumas de suas composições e arranjos, utilizou Ré menor
(Consolação, Berimbau e Canto de Ossanha), Ré maior (Carinhoso e Eu sei que vou te amar),
Lá maior (Valsa de Eurídice e Dindi), Mi menor (A lenda do Abaeté), Mi maior (Gente
humilde) e Lá menor (Chão de estrelas).
Marco Pereira, em seu álbum Valsas Brasileiras, utilizou em seus arranjos e
composições os tons de Ré maior (Beatriz, Eu te amo e Valsa negra), Lá maior (Eponina), Lá

3
A preferência desse termo em vez de tonalidade se deve particularmente a alguns desses estudos onde,
aparentemente, Villa utilizou procedimentos não tonais como nos estudos IX e X.
5
menor (Marta), Mi menor (Desvairada, Manhãs de sol, Valsinha e Luiza), Sol maior (Carta de
pedra) e Mi maior (Emotiva nº1).

Figura 6 - cordas soltas e afinação do violão

Pela afinação do instrumento4, indicada na figura acima, pode-se aferir que


determinadas tonalidades - Lá maior/menor, Ré maior/menor, Mi maior/menor, Sol
maior/menor - permitem que as fundamentais de tônica, subdominante ou dominante, estejam
localizadas em cordas soltas. Isso é de grande valia para a música tonal que representa a maior
parte do repertório de canção e sua consequente adaptação ao violão.

2. CARACTERÍSTICAS DE UM ARRANJO

Samuel Adler, no livro The Study of Orchestration, procura mostrar as diferenças de


abordagem do material musical com relação à prática da transcrição ou do arranjo:

Transcrição é a transferência de uma obra previamente composta de um meio


musical para outro. Arranjo envolve em maior grau o processo composicional, pois
o material pré-existente pode ser apenas uma melodia – ou mesmo parte de uma -
para a qual o arranjador tem que fornecer uma harmonia, contrapontos, e muitas
vezes até o ritmo, antes de pensar na orquestração. (ADLER, 1989, p.512)

Presume-se, a partir disso, que a transcrição procura preservar as características da


composição musical quando criada para um determinado meio - uma sonata para piano - no
momento em que ela é transposta para outro meio, como no caso de uma orquestração. Para
que esse procedimento seja válido, é necessário que a composição tenha todas as informações
estruturais como harmonia, condução de vozes e texturas.
No universo da canção popular - diferentemente de um lied de Schubert, por
exemplo – o que se encontra, normalmente, é apenas a partitura da linha melódica
acompanhada de cifras que vez ou outra nos indica uma linha de baixo através de suas
4
O violão é transpositor de oitava, soa uma oitava abaixo do que o som escrito.
6
inversões. Esse sistema de cifragem carrega em si o problema de não demonstrar a condução
das vozes nem a região em que os acordes devem ser realizados. Além disso, quando se
procura demonstrar através dele uma apojatura harmônica ou um baixo pedal, surgem
simbologias que dificultam a compreensão do que se pretende. É comum aparecerem cifras
como A/B (Lá maior com baixo na nota Si) quando através de análise do material se percebe
4-3
que o acorde em questão deveria ser uma suspensão do tipo V7 (B7sus4), ou algo mais
desconcertante como Dº/Eb (tétrade diminuta com baixo na nona menor), que seria uma
tentativa de mostrar um I7 atacado por uma apojatura harmônica em que 6-5, 4-3 e 9-8.

Figura 7 – Exemplo de cifragem duvidosa - Beatriz - Songbook Chico Buarque vol.4

Figura 8 - apojatura harmônica em Beatriz – Chico Buarque e Edu Lobo

Pode-se dizer que, em geral, o material encontrado - pela falta de informações com
que é registrado - se faz próprio à prática do arranjo e permite um grau de liberdade enorme
ao arranjador. Como nem mesmo o andamento ou caráter da peça são explícitos, a audição da
canção se torna imprescindível, inclusive para verificar a correção da escrita em relação à
gravação original.
A primeira escolha se faz sobre preservar ou não o caráter da canção. Para um arranjo
mais próximo das intenções do compositor é importante compreender as principais
características harmônicas e rítmicas do estilo em questão, assim como levar em consideração
a relação texto-melodia e suas intenções narrativas.
Outra maneira é aquela que cria relações de harmonia, ritmo e textura diferentes
daquelas contidas na canção, inserindo acordes de passagem, dominantes secundárias,
alterando os modos maior/menor, fragmentando ou ornamentando o motivo, criando

7
contrapontos em relação à melodia ou criando introduções, interlúdios e codas. A qualidade
variável desses resultados depende do grau de conhecimento do arranjador e de seus objetivos
artísticos e não será assunto de análise desse artigo.

3. PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE

Investigaremos entre os trechos das partituras originais das canções e dos arranjos,
quais procedimentos - escolha de tonalidade, criação de introduções, tipos de
acompanhamento, fragmentação do motivo ou da melodia e/ou introdução de acordes
secundários - foram tomados para a adaptação dos temas ao idioma do violão solista. Nem
sempre a parte analisada terá sentido harmônico fechado com cadências. A escolha dos
trechos será feita com base no interesse do desenvolvimento do arranjo.
Colocaremos sempre a partitura original com uma análise das questões melódicas e
harmônicas seguida do arranjo e dos nossos apontamentos.
Para compreensão das cifras fica estipulado que:
- Acordes X9, Xm9, X7(9) e Xm7(9) têm 7m e 9M
- Acordes Xadd9 ou Xm(add9) são tríades com 9M adicionada
- Acordes Xº são tétrades diminutas
- Acordes Xm7(b5) ou Xø são tétrades meio-diminutas e Xm9(b5) são tétrades meio-
diminutas com 9M adicionada
- Acordes X6 ou Xm6 poderão ser encarados como tríade com 6M adicionada ou
inversão de acordes menores ou meio-diminutos
- Acordes X7M, Xm7M, Xmaj7 e Xm(maj7) são tétrades maiores ou menores com
7M

8
4. ANÁLISES
4.1 - Beatriz – Chico Buarque e Edu Lobo5

Figura 9 – Beatriz - Songbook Chico Buarque vol. 4

Analisaremos da introdução ao compasso 19.


A música está em Mib maior e tem uma introdução escrita que passa pela harmonia:
1 5
Compassos 1-8: | IV9 | vi6/4 | ii7 | I7 It+6/IV | IV9 | vi6/4 | ii7 | iiø | da qual se pode deduzir

5
A partitura foi revisada porque havia discordâncias entre ela e as várias gravações ouvidas para análise.
9
uma linha de baixo descendente Láb, Sol, Fá e Mib (tônica). Na repetição o Fá no baixo é
suspenso por um compasso para chegar ao Mib na entrada do tema – caminho diatônico entre
as fundamentais da subdominante e da tônica. Do compasso 1 ao 4, a melodia em terças
paralelas com Mib no soprano acaba por impor ao acorde do segundo compasso uma sexta
adicionada (Dó) – acorde que pode ser visto como um vi6/4 de passagem – até que no terceiro
compasso há uma aceleração rítmica e a melodia descende com apojatura em Sib e continua
Láb, Sol, salta para Mib e volta ao Sol. Este por sua vez, terça de Eb7M se transforma numa
sexta aumentada em relação ao baixo Sibb - o acorde foi enharmonizado na cifragem A7 em
vez de Sibb76 - onde apenas o baixo é resolvido.
Os compassos 5 ao 8 repetem a idéia dos quatro primeiros com pequena alteração no
oitavo compasso onde surge a nota Dób, 5dim de um iiø (mistura de modos). Este mesmo
acorde é usado em inversão para acomodar o que poderia ser uma apojatura melódica Láb-
Sol, transformando-a em notas de acorde. Aqui podemos ver que a sonoridade do compasso 9
representada pela cifra Dº/Eb – figura 7, conforme o Songbook – seria mais bem definida por
Fø/Eb, que é o próprio acorde do compasso anterior.

Figura 10 – Coerência na cifragem

Quando o tema começa a harmonia é:


9 13 17
Compassos 9-19: | iiø2 I7 | I7 | ii9 | ii9 | I6/5 | I6/5 | IV9 | IV9 | Ctº4/3 | Ctº4/3 | I6/4 |
Aqui a linha do baixo toma o sentido oposto do que ocorre na introdução, caminhando
da tônica até a subdominante diatonicamente até atingir o cromatismo através da sensível
artificial Lá. Nesse ponto, o acorde Aº teria função de dominante da dominante. Uma parte
dessa promessa é realizada com a subida do baixo para Sib, porém, podemos enxergar nesse
acorde um Iº6/4 (Ebº/Bbb) com função de Ctº indo para I6/4 (Eb7M/Bb) de passagem.7
Melodicamente, o tema se comporta de maneira motívica, sendo atacada por apojatura,
6
Procedimento comum na cifragem visto que esse sistema não se presta a informar funções harmônicas, mas
apenas a mostrar os acordes como modelos ao executante. Os acordes de sexta aumentada costumam ser
chamados de dominantes substitutas e escritas como subV. GUEST, Ian. Arranjo- método prático, vol.2, p. 20.
7
Ctº - Common-tone diminished chord. KOSTKA, Stefan e PAYNE, Dorothy. Tonal Harmony, p.433 e
ALDWELL, Edward e SCHACHTER, Carl. Harmony and Voice Leading, p.553.
10
resolvendo, saltando descendentemente para nota do acorde ou outra apojatura (comp. 10) e
ascendendo novamente ora por grau conjunto, ora por arpejo, ora por pentatônica (comp. 10),
até atingir outra apojatura.
O motivo principal está interrompido no compasso 11. Seu desenvolvimento posterior
propõe que as notas Sib – Sol fossem Sib – Lá.

+ np
+

np np
+ +

Figura 11 - Formalização da melodia

Veríamos então o caminho Sol, Lá, Sib, Dó, e já estaríamos esperando que aparecesse
uma nota Ré e finalmente Mib – que surge no compasso 19 após uma interrupção. Vemos
também que se o acorde do compasso 13 fosse iii7 ao invés de I6, a proposta de manter a linha
melódica sempre nas terças dos acordes seria cumprida e a formalidade da música estaria
mais bem assegurada.

Beatriz – Arranjo: Marco Pereira

11
Figura 12 – Beatriz - livro de partituras Valsas Brasileiras

O primeiro detalhe a ser notado é que o arranjador marcou o caráter que a peça deve
ter ao ser executada. Além disso, detalhou dinâmica e expressão. Informações imprescindíveis
para se entender a atitude que se deve ter no momento da execução.
Marco utilizou scordatura8 afinando a sexta corda em Ré, tônica da tonalidade
escolhida para a elaboração do arranjo. Com esse tom, foram obtidas as fundamentais da
tônica e da dominante em cordas soltas. Com a scordatura, a nota Sol3 (fundamental de
subdominante) na quinta casa da sexta corda permite a obtenção dessa fundamental quando
surgem notas mais agudas na melodia como no compasso 14, o que seria inviável com
afinação padrão.
A harmonia da introdução é:
1 5
| IV | I6 | ii | I Fr+6/IV | IV7 | I6 | ii iiø2 |
A linha do baixo se comporta como na canção original, em um caminho diatônico
entre a subdominante e a tônica. A primeira diferença que se nota é que, pelo fato da melodia
em terças paralelas ter sido abolida, ouve-se mais claramente o I6, proposto no original, como
harmonia do segundo compasso. Nos dois primeiros compassos a melodia em Ré no soprano

8
A afinação das cordas soltas de todos os instrumentos de corda pode ser alterada para conseguir certos efeitos
timbrísticos ou sob alguma consideração prática. ADLER, Samuel. The study of orchestration, p.44.
12
é rearticulada9 e acompanhada por uma voz no contralto, primeiramente em terças e depois
em quartas. Ao se acelerar o ritmo melódico – mudança de gesto – a melodia tem caráter de
voz solo. O acorde de sexta aumentada, It+6 no original, é aqui uma Fr+6 que se resolve de
maneira mais correta - Láb→Sol e Fá#→Sol.
Dos compassos 5 ao 8 vemos que a melodia é feita uma oitava acima acompanhada
por intervalos de sexta – o que traz alguma novidade para a reapresentação do mesmo
material. No momento da aceleração rítmica a melodia é feita em terças, o ritmo harmônico
também é acelerado e encurta a introdução em um compasso.
Podemos observar, no arranjo da introdução, um cuidado em tratar o material que se
repete de forma a preenchê-lo com novidades. Em um momento a melodia aparece
acompanhada de pequenos blocos, depois em solo, é reapresentada uma oitava acima com
outros blocos e finalmente é acompanhada por terças paralelas.
Na entrada do tema a harmonia segue:
8 12 16
Compassos 8-18: | iiø2 I9 | I9 | ii | ii9 | I6/5 | I6/5 | IV | IV | Ctº4/3 | Ctº4/3 | I6/4 |
Com harmonia praticamente idêntica à do original, a novidade aqui é uma expansão da
duração das apojaturas que duram um compasso inteiro enquanto o acompanhamento parece
imitar10 a figuração em graus conjuntos e arpejos ascendentes da melodia anterior. Esse
recurso ajuda a manter a unidade da canção e do arranjo ao fazer uso do material contido na
melodia adaptado ao acompanhamento, e pode ser um bom recurso quando a melodia se
comporta dessa forma, com durações longas e curtas se alternando.

Figura 13 – Imitação da melodia no acompanhamento

9
É comum a rearticulação de notas no violão devido a curta sustentação dos sons.
10
Não me refiro aqui a uma imitação estrita tonal ou real, mas apenas à imitação do gesto.
13
4.2 – Asa branca – Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira11

Figura 14 – Asa branca – caminho melódico - Songbook As 101 melhores canções do século XX, vol. 2

A música está na tonalidade de sol maior e tem forma binária com coda:
| A ||: B :|| Coda |
Na gravação original de 1947 há uma introdução onde o tema é tocado na íntegra pela
sanfona antes da entrada da voz. O ritmo é de baião e os instrumentos usados são a sanfona, o
zabumba e o triângulo.
A harmonia do tema é:
1 5 9 13
| I | I | IV | IV | I | V7 | I | I | V7/IV | V7/IV | IV | IV | V7 | V7 | I | I |
17 21 25 29
|V7/IV | V7/IV | IV | IV | V7 | V7 | I7 | IV I7 | I7 | IV I7 | I7 | IV | I7 | IV | I | I |

11
A partitura foi revisada porque havia discordâncias entre ela e a gravação original ouvida para análise.
14
O tema é construído a partir de um motivo básico:

Figura 15 - motivo principal

Que é retrabalhado com uma pequena aceleração rítmica e diminuição:

Figura 16 - aceleração rítmica e diminuição do motivo

É possível verificar um caminho melódico de vai de Ré5 até Dó5 nos compassos 1-3,
volta a Ré5 no compasso 5 e desce até Si4 no compasso 7 com CAI. Volta a Ré5 no compasso
9 e desce gradativamente até Sol4 no compasso 15 com CAP. Esse caminho garante a
formalidade da canção com grande clareza. Tudo está de acordo com a construção
característica de uma peça tonal, como, por exemplo, na Sonata K.331 de Mozart.

Figura 17 - melodia da Sonata para piano nº11- K.331 - W. A. Mozart

No solo da sanfona é usado o modo mixolídio, bastante comum em músicas de origem


nordestina12, onde também é claro o caminho descendente entre Fá5 e Sol4 (figura 14).

12
LIMA, Luciano Chagas. Radamés Gnattali: Os Quatro Concertos para Violão Solo e Orquestra, p.43.
15
Asa branca – Arranjo: Diogo Carvalho

Figura 18 – Asa branca - Violão Solo MPB vol.1

A tonalidade escolhida foi Lá maior, obtendo as fundamentais de tônica,


subdominante e dominante em cordas soltas. A mudança para compasso quaternário oferece
um pouco mais de leveza para o arranjo e é justificável, pois não foi usado o ritmo binário do
baião como base para a elaboração do mesmo.

16
Diogo manteve a forma binária e pouco alterou a harmonia:
1 5 9
| I I6/4 | IV IV6 | I V7 | I | I V2/IV | IV6 iv6 | V V2 | I6 I | I V2/IV | IV6 iv6 | V V2 | I7 |
13
| I V | I7 | I V | I |
É importante ressaltar que a escrita para violão é bastante subjetiva no que se refere à
duração das notas no dedilhado. Como não há uma indicação gráfica que especifique quando
as notas devem ser sustentadas, como o símbolo de pedal usado na escrita para piano, muito
da execução se deve à prática. No primeiro compasso, as duas colcheias Dó# e Lá serão
sustentadas até sua rearticulação mais adiante no compasso. Isso não obscurece a melodia
porque o envelope sonoro do instrumento, principalmente das cordas mais agudas, é
caracterizado por um curto ataque e um decaimento muito rápido.

1seg. 5seg. 10seg.

piano

violão

Figura 19 – Comparativo dos envelopes sonoros do piano e do violão – nota Dó4

Temos um arranjo bastante simples que faz parte de um livro direcionado para
iniciantes. Mesmo assim podemos encontrar algumas soluções interessantes.
Na exposição da parte “A”, iniciada por anacruse sem acompanhamento, a melodia é
entremeada por notas do acorde de maneira a construir um padrão rítmico de duas colcheias e
uma semínima. O baixo vai de Lá para Mi, e o que se mostra num primeiro momento como
uma má abertura – Lá maior com Mi no soprano e no baixo – é justificado no movimento
contrário da passagem do compasso 1 para o 2 - Mi→Ré, Dó#→Ré - que evita uma repetição
do baixo Lá, ou uma oitava paralela caso a linha do baixo fosse Lá→Dó#→Ré. O trítono, no
final do compasso 3 é resolvido corretamente.

17
Na parte “B” vemos uma nova atitude perante um novo material13. Entre os compassos
8 e 9 o baixo salta uma oitava acima e, usando uma região mais aguda, inicia uma linha
descendente conseguida através das inversões dos acordes (figura 17). Além disso, deixa de
ser atacado na cabeça do primeiro tempo conferindo a ele uma nova rítmica:

Figura 20 - Ritmo do baixo no compasso 5.

O cromatismo descendente no baixo - retórica de lamento14 - coincide com a letra que


versa: “eu preguntei a Deus do céu. Por que tamanha judiação?”, o que gera uma ótima
relação prosódica que não existia no original.
No compasso 12 surge a melodia do solo de sanfona em modo mixolídio.

Figura 21 - Asa branca – Ritmo do baixo e condução de vozes

O ataque da nota Sol5 é acompanhado por Si4 gerando uma boa condução em sextas.
Há também um novo motivo rítmico no baixo de acordo com a idéia de tratar cada novo
material com um acompanhamento diferente. No compasso 16, o único ponto com rítmica
sincopada prepara a re-exposição do tema.
Na casa 2, ainda antes de finalizar, há mais uma novidade nos baixos que dão um novo
caráter ao solo. Verificando a linha principal vemos uma boa condução das vozes com sextas
paralelas, quinta de trompa, oitavas por movimento contrário e novamente sextas. O único
ponto onde a condução poderia ser melhor é quando o baixo atinge o Mi mais grave. Se o

13
É uma prática composicional comum a mudança de gesto na proximidade de cadências ou na passagem entre
as partes musicais.
14
A dissonância de semitom é considerada útil para retratar os afetos tristes, não só devido à sua proporção
imperfeita e dissonante, mas também devido à sua pequena abrangência ou extensão. BARTEL, Dietrich.
Musica Poetica – Musical-Rhetorical figures in German Baroque Music, p.48.
18
baixo em Ré fosse mantido, a cadência plagal que existe na composição seria mantida e ao
invés de uma nona teríamos uma terça indo para oitava através de movimento contrário. Mas
com isso se perderia o motivo do baixo. Isso demonstra que há momentos em que o
arranjador tem que escolher entre vários fatores para colocar no papel aquilo que julgar
necessário para o objetivo do seu trabalho.

Figura 22 - Final alternativo

Ainda nota-se no final do arranjo, em terminação feminina, a lembrança dos


compassos 6 e 7 através do mesmo cromatismo Fá#→Fá→Mi.

5. CONCLUSÃO

Uma das primeiras coisas que chamaram a atenção durante a pesquisa de repertório
adequado para nosso trabalho foi a baixa qualidade das transcrições. Tanto das melodias e
harmonias das canções como dos arranjos gravados por violonistas que, na maioria das vezes,
não deixaram partituras de suas execuções. Este fato se torna um empecilho grandioso para a
pesquisa e dificulta o entendimento de uma prática que tem mais de um século de existência.
Pudemos notar no arranjo de Marco Pereira para “Beatriz” que, mediante a escolha da
tonalidade de Ré maior, a opção de scordatura foi fundamental para a elaboração do mesmo.
Sem ela seria fisicamente impossível alcançar as notas mais agudas no compasso 5 assim
como a realização do acompanhamento a partir do compasso 10.
Um ponto importante a destacar foi a atitude de abandonar a linha melódica feita em
terças paralelas na introdução concebida na partitura original. Com isso foi conseguido um
tratamento mais elaborado dessa linha, com abordagens diferenciadas relacionadas aos
diferentes trechos e principalmente no que se refere ao fato do material ser repetido. Esse tipo
de procedimento vai além da simples adaptação da canção para um instrumento solista e é
encontrado constantemente na orquestração da música clássica. Um exemplo bastante
característico é a peça “Boléro” de Maurice Ravel (1875-1937), em que o tema vai sendo
orquestrado de diferentes maneiras a cada repetição.
19
O alargamento da duração das apojaturas na entrada do tema foi muito interessante
para conseguir a imitação no acompanhamento do gesto contido na melodia. Já que em um
arranjo instrumental para canção se perde justamente a letra, que é o âmago do estilo, pode ser
interessante pensar em aumentações e diminuições dos motivos assim como na exclusão de
notas repetidas que poderiam figurar na melodia apenas para fazer justiça ao número de
sílabas das palavras usadas no texto. Isso, porém, depende dos objetivos musicais que se
pretendem com essa prática.
No arranjo de Diogo Carvalho para “Asa branca” a mudança de tonalidade para Lá
maior possibilitou que a melodia ficasse em uma região um pouco mais brilhante que no tom
de Sol maior, além de obter as fundamentais de tônica, subdominante e dominante em cordas
soltas. Com essa alteração, a quinta nota da escala, recorrente na melodia, foi conseguida na
primeira corda solta e permitiu que a terça, recorrente tanto na melodia quanto no
acompanhamento, fosse obtida na segunda corda, fazendo com que houvesse uma economia
na movimentação da mão esquerda e facilitando a execução. Essa tonalidade ainda permitiu a
que as sétimas da dominante secundária e da dominante principal estivessem em cordas soltas
nos compassos 5 e 7 respectivamente.
Pudemos verificar uma preocupação em relação à condução das vozes. Isso, apesar de
senso comum em qualquer música composta com fundamento, é digno de nota dentro dessa
prática por, infelizmente, não ser recorrente. Muitas vezes o violão é visto como um
instrumento onde se faz música com base em formas preconcebidas de acordes para a mão
esquerda, o que pode levar a dobramentos e conduções de vozes indesejáveis musicalmente.
Também é notável a preocupação em reformular o acompanhamento de maneira a
caracterizar cada parte ou repetição da peça com um caráter próprio.
Coincidência ou não, a inserção de um baixo cromático descendente - historicamente
utilizado como tendo relação com o lamento - em um ponto onde a letra fala da tristeza, cria
relações ocultas de prosódia. Este procedimento pode ser altamente recomendado quando se
deseja trazer relações extramusicais para o arranjo de forma a enriquecê-lo.
Por se tratar de um artigo, não houve espaço aqui para um maior aprofundamento do
assunto que poderia ser conseguido através da especulação de outras formas de arranjo ou da
análise de um número maior de peças. Mas, mesmo cientes dessa deficiência, esperamos que
nosso trabalho contribua para uma discussão proveitosa sobre um assunto que está vivo e
ocorrendo neste mesmo momento.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Company, 2002.

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