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Coleção Ciências da Linguagem

Aplicadas ao Ensino - Volume VII

LITERATURA E ENSINO:
REFLEXÕES E PROPOSTAS
Organizadores
Lucrécio Araújo de Sá Júnior
Andrey Pereira de Oliveira

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Coleção Ciências da Linguagem
Aplicadas ao Ensino - Volume VII

LITERATURA E ENSINO:
REFLEXÕES E PROPOSTAS
Organizadores
Lucrécio Araújo de Sá Júnior
Andrey Pereira de Oliveira

Natal, 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

REITORA REVISORA
Ângela Maria Paiva Cruz Nara Juscely Minervino de
Carvalho Marcelino
VICE-REITORA
Maria de Fátima Freire Melo Ximenes CAPA
Ismênio Souza
DIRETORA DA EDUFRN
Margarida Maria Dias de Oliveira EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Quatro Z Dois
EDITOR
Helton Rubiano de Macedo PRÉ-IMPRESSÃO
Jimmy Free
SUPERVISÃO EDITORIAL
Alva Medeiros da Costa SUPERVISÃO EDITORIAL
Alva Medeiros da Costa
CONSELHO EDITORIAL
Cipriano Maia de Vasconcelos (Presidente) SUPERVISÃO GRÁFICA
Ana Luiza Medeiros Francisco Guilherme de Santana
Humberto Hermenegildo de Araújo
Herculano Ricardo Campos
Mônica Maria Fernandes Oliveira
Tânia Cristina Meira Garcia
Técia Maria de Oliveira Maranhão
Virgínia Maria Dantas de Araújo
Willian Eufrásio Nunes Pereira

Divisão de Serviços Técnicos


Catalogação da publicação na Fonte. UFRN/Biblioteca Central Zila Mamede

Literatura e ensino: reflexões e propostas / Lucrécio Araújo de Sá Júnior; Andrey Pereira de


Oliveira (Orgs). – Natal, RN : EDUFRN, 2013.
(Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino; v. VII)

315 p.

ISBN 978-85-425-0033-2

1. Gramática - Ensino. 2. Ciências da linguagem. I. Lucrécio de Sá Júnior II. Andrey Pereira


de Oliveira

RN/UF/BCZM 2013/00 CDD 000


CDU 000.00/00

Todos os direitos desta edição reservados à EDUFRN – Editora da UFRN


Av. Senador Salgado Filho, 3000 | Campus Universitário
Lagoa Nova | 59.078-970 | Natal/RN | Brasil
e-mail: edufrn@editora.ufrn.br | www.editora.ufrn.br
Telefone: 84 3215-3236 | Fax: 84 3215-3206

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APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO

Com muita satisfação, o Grupo de Estudos Linguísticos do


Nordeste (GELNE) traz a público a coleção Ciências da Linguagem
Aplicadas ao Ensino. Apresentam-se aqui reflexões no âmbito da lin-
guística teórica e aplicada e da literatura, cujo objetivo principal é dis-
cutir questões sobre o ensino de Língua(gens).
Nos volumes desta colecão, publicam-se capítulos que mate-
rializam temas abordados pelos conferencistas e pelos expositores
das mesas-redondas que integraram a programação da 5ª edição do
Encontro das Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino (ECLAE),
realizada em Natal no período de 11 a 15 de outubro de 2011.
Nesse contexto, importante se faz destacar que o ECLAE
foi idealizado e realizado, em 2001, pela diretoria do GELNE, gestão
2000-2002, então sediada na Universidade Federal do Ceará, sob a pre-
sidência da Profa. Dra. Maria Elias Soares. Em continuidade ao projeto,
foram realizadas mais quatro edições do Encontro: na Universidade
Federal da Paraíba, em 2003, sob a presidência do Prof. Dr. Dermeval
da Hora; na Universidade Federal de Alagoas, em 2007, sob a presi-
dência da Profa. Dra. Maria Denilda Moura; na Universidade Federal
do Piauí, em 2009, sob a presidência da Profa. Dra. Maria Auxiliadora
Ferreira Lima; e na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em
2011, sob a presidência do Prof. Dr. Marco Antonio Martins. Na sua
quinta edição, o Encontro contou com a participação de mais de mil
sócios do GELNE inscritos com apresentação de trabalho, em diferen-
tes áreas temáticas.
A coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino
constitui-se de sete volumes, assim organizados: no volume I, reú-
nem-se capítulos voltados ao Ensino de Gramática; no volume II,
discute-se o Ensino de Língua Portuguesa tendo em vista as teorias
dos gêneros textuais/discursivos; no volume III apresentam-se as con-
tribuições da Linguística Textual ao Ensino de Língua Portuguesa;
no volume IV, diferentes capítulos sistematizam reflexões sobre o
Ensino da Leitura e da Escrita; no volume V, põem-se em tela impor-
tantes contribuições da Sociolinguística e da Linguística Histórica
para o Ensino de Língua Portuguesa; no volume VI, são abordadas

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questões sobre Práticas discursivas várias e o Ensino de Língua(gem);
e, no volume VII, congregam-se capítulos voltados ao Ensino de Literatura.
Temos certeza de que esta coleção constitui uma obra de refe-
rência na qual se apresenta um rico panorama das recentes discus-
sões sobre o ensino de Língua e Literatura. Trata-se de um material
escrito por pesquisadores especialistas de diferentes universidades
brasileiras e do exterior, que conduzem suas reflexões valendo-se de
vertentes teóricas várias consolidadas no cenário da área de Letras e
Linguística. É indubitável que estas publicações trazem uma impor-
tante contribuição para a formação de professores nos cursos de Letras,
assim como para o exercício de professores nos ensinos Fundamental
e Médio.

Natal, agosto de 2013.

Marco Antonio Martins


Maria das Graças Soares Rodrigues
Editores da coleção ECLAE

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SUMÁRIO

Apresentação ................................................................................................9

LITERATURA E ENSINO: A EDUCAÇÃO DO ESTÉTICO


O professor de literatura
Gustavo Bernardo ......................................................................................15
O que faz um professor de literatura? Breves reflexões
intempestivas
Andrey Pereira de Oliveira ..................................................................... 25
Literatura e ensino: o espaço do leitor e da leitura
Germana Maria Araújo Sales ..................................................................35
Literatura para Além do Ensino: o texto literário como
formador do sujeito
Rosanne Bezerra de Araújo, Paulo Henrique da Silva Gregório e
Valeska Limeira Azevedo Gomes ............................................................59
Porque (não) precisamanos ler (e ensinar) literatura:
Carmem Sevilla Gonçalves dos Santos ..................................................71
Educação e poesia: o aprendizado do estético
Marly Amarilha ...........................................................................................93

PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NO ENSINO DE LITERATURA

Leitura e literatura na prática docente: Considerações acerca do


letramento literário
Linduarte Pereira Rodrigues .................................................................107
O ato de ler: possibilidades e perspectivas para ensino de
literatura no Ensino Médio
Lucrécio Araújo de Sá Júnior .....................................................................129
A abordagem do poema no ensino médio: algumas alternativas
José Helder Pinheiro Alves .....................................................................139

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POÉTICAS DA ORALIDADE E ENSINO
"Movência" de paradigmas no cordel: do canto ao ciberespaço
Beliza Áurea de Arruda Mello ..............................................................165
Língua solta / Trava-língua cultura popular em atividades de leitura
Maria Claurênia Abreu de Andrade Silveira .....................................181
" É Hip Hop na minha embolada": inscrituras nordestinas do
corpo e da voz
Amarino Oliveira de Queiroz ...............................................................207

LITERATURA AFRO-BRASILEIRAS

Literaturas africanas e afro-brasileiras no contexto escolar


sob a lei 10.639/03
Rosilda Alves Bezerra ......................................................................................239
Literatura infanto juvenil: leitores, personagens e entrelaces
etnicorraciais
Maria Anória de Jesus Oliveira ....................................................................279

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APRESENTAÇÃO

Em um dos aforismos que compõem seu curioso livro O


avesso das coisas, o poeta Carlos Drummond de Andrade constata que
“Leitura é uma fonte inesgotável de prazer, mas a maioria não tem sede
ou não sabe como dessedentar-se” (ANDRADE, 2003, p. 926).
Uma afirmação dessa natureza, quando apreendida com a
devida consideração, deve motivar os professores que lidam com a lei-
tura, principalmente aqueles que lidam cotidianamente com manifes-
tações literárias, a uma reflexão sobre o descompasso percebido pelo
poeta entre o prazer da leitura e a falta de motivação dos potenciais lei-
tores. Literatura e ensino, ensino de literatura, literatura sobre ensino e
demais derivações são expressões que merecem ser objeto de reflexão
docente.
É essa ordem de questões que formam o fio comum que
une os quatorze artigos que compõem o presente volume. Cada um dos
artigos, a partir das orientações teóricas e das preocupações particula-
res de seus autores, aborda uma das faces dessa relação entre literatura
e ensino, seja desenvolvendo reflexões conceituais, seja apresentando
propostas para a prática docente.
Seus autores são professores oriundos de diversas institui-
ções de ensino superior de diferentes regiões do país. É uma amostra
bastante representativa dos trabalhos apresentados nas mesas-redon-
das dedicadas à literatura durante o V ECLAE, sediado na UFRN, no
segundo semestre de 2011.
De modo a potencializar a leitura cruzada dos artigos, eles
estão dispostos em quatro blocos: o primeiro deles – Literatura e
ensino: a educação do estético – traz discussões de questões como a
natureza da literatura, os modos de leitura do texto literário, as espe-
cificidades do “ensino” da literatura, a atuação do leitor e o potencial
humanizador da poesia. O segundo – Práticas Pedagógicas no Ensino
de Literatura – apresenta, além de reflexões sobre o letramento, pro-
postas de procedimentos didáticos para o trabalho da literatura em
ambientes escolares, com destaque para o ensino médio. O terceiro
bloco – Poéticas da oralidade e ensino – promove uma ampliação do
conceito de leitura que parece instaurado no aforismo drummondiano.

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Há, neste, considerações sobre manifestações da literatura oral típicas
da cultura popular, tais como: cordel, trava-língua, hip-hop e embo-
lada, bem como reflexões sobre suas possíveis incorporações na prá-
tica escolar. Por fim, o quarto, e último, bloco de artigos – Literaturas
afro-brasileiras – é composto por discussões acerca da inserção da
literatura afro-brasileira no contexto escolar brasileiro, bem como pela
análise do modo como relações étnico-raciais são manifestadas em
obras da literatura infanto juvenil.
Pela relevância da temática que atravessa todos os artigos,
assim como pela variedade com que tal temática é desenvolvida em
cada um dos textos, cremos que o presente livro possa contribuir para a
necessária e permanente reflexão sobre a questão da literatura e ensino.

Lucrécio Araújo de Sá Júnior


Andrey Pereira de Oliveira
Organizadores

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LITERATURA E ENSINO:
A EDUCAÇÃO DO ESTÉTICO

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O PROFESSOR DE LITERATURA
Gustavo Bernardo
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

Em 1973 – crianças, vocês nem sonhavam em nascer –, eu


dava a primeira aula da minha vida. Esse acontecimento, de que as
minhas fatigadas retinas nunca se esquecerão, se deu numa turma do
antigo Mobral - Movimento Brasileiro de Alfabetização de Adultos –,
na favela do Borel, Rio de Janeiro. Na formatura dessa turma, os alunos
se cotizaram e deram dois presentes ao jovem professor: uma camisa
social bem colorida da Casa José Silva, famosa na cidade naquela
época, e uma garrafa de vinho do Porto.
Tomei o vinho, é claro, mas não cheguei a usar a camisa, se
sempre visto no máximo camiseta Hering bem amassada, é o meu
uniforme oficial. Entretanto, o carinho daqueles senhores e daquelas
senhoras, todos muito mais velhos do que eu, foi tão forte que pror-
rompi, como diria Nelson Rodrigues, em verdadeiras lágrimas de
esguicho.
Naquele instante descobri três coisas sobre a minha vida: pri-
meiro, que eu era um professor; segundo, que de repente eu gostava de
ser professor; terceiro, que eu também era um chorão da melhor quali-
dade. Deve ter sido esse meu lado chorão, bem dramalhão, que fez com
que eu privilegiasse sempre, no correr da profissão, os pontos de lite-
ratura aos assuntos de língua portuguesa. Eu até me excitava com uma
boa Oração Subordinada Substantiva Subjetiva Reduzida de Gerúndio,
mas o que me emocionava mesmo era um conto de Érico Veríssimo ou
um poema de Fernando Pessoa.
Cedo entendi que a literatura não é uma disciplina como as
outras. Logo, me irritavam as tentativas mediocrizantes, mas compe-
tentes, de torná-la uma disciplina comum, transformando-a, por exem-
plo, em história – mas numa história pré-positivista–, na qual os séculos
se alternam naquela gangorra estúpida entre a razão e a emoção. Dentre
aqueles estilos todos gestados pela mistura incoerente de nacionalismo
e cientificismo do século XIX, me incomodava o valor desmedido que
os livros didáticos atribuíam, justamente, ao estilo que denega a pró-
pria ficção que pratica; a saber: o estilo realista.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

Nunca consegui entender, por exemplo, Machado de Assis


como realista. Com o tempo, descobri que nem Machado de Assis con-
seguia se entender como realista, se na verdade ele foi o maior adver-
sário que o realismo já teve. É dele a frase que tomei como lema e que
explorei em ensaio recente: “a realidade é boa, o realismo é que não
presta para nada” (apud Bernardo, 2011).
Esta mesma aversão ao realismo me levou a concordar com
Sigmund Freud, quando ele reconheceu o “educar” como uma das três
profissões impossíveis – as outras são “governar” e “psicanalisar”. O
que é impossível na educação é controlar os seus efeitos. Se abando-
narmos a pretensão tecnicista e arrogante de controlar os efeitos do que
fazemos em sala de aula, nos encontramos livres para experimentar;
livres para fazermos o melhor que pudermos; nos encontramos livres
para olharmos no rosto do aluno real e não no desenho de um modelo
abstrato.
Essa liberdade toda nos permite seguir o único método de edu-
cação que presta: o método do exemplo. Se quero ensinar a ler, devo
dar o exemplo e ler todos os dias e, de tudo um pouco, mas, principal-
mente, ler a ficção que nos faz ver o mundo sob outras perspectivas e
que nos torna outros. Se desejo ensinar a ler, além do exemplo de estar
constantemente lendo, devo mostrar para o aluno o que estou lendo,
deixando muito claro que não me encontro, coitado, acorrentado àquele
livro didático.
Livros didáticos podem ser úteis, mas no Brasil eles se torna-
ram os anti livros. Seu sucesso, responsável por vendas maciças até ao
governo, que gasta bilhões de reais por ano com a compra e a distribui-
ção de milhões de livros didáticos, tem relação direta, não se iludam,
com a destruição das bibliotecas escolares, desde os anos 60, e com a
desvalorização salarial e moral do professor, que também se dá desde o
advento da ditadura militar.
A desvalorização salarial todos sentimos no bolso, mas a des-
valorização moral nem sempre é perceptível. Se lembrarmos que no
começo da moda do livro didático os professores se indignavam ao
receber o “livro do professor” com as respostas dos exercícios – “quem
esse autor pensa que é, sugerindo que eu não saberia responder a essas
perguntas simples!” – e que hoje já não adotam livros didáticos, em

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

que o “livro do professor” não venha com a chave de respostas, enten-


deremos um pouco do que estou chamando de desvalorização moral.
Perdemos o orgulho do nosso saber. Perdemos, talvez, o nosso próprio
saber.
Não bastasse a praga dos livros didáticos, na nossa cadeira
somos assaltados pela praga das “adaptações literárias para jovens”
dos clássicos da literatura mundial. O que são as “adaptações literárias
para jovens” dos clássicos da ficção senão uma espécie de “pedagogia
fahrenheit”? Trata-se, sem meias palavras, de um crime de lesa-litera-
tura, isto é, de um crime contra os corações e as mentes de gerações
inteiras. Nós, professores, não percebemos que, adotando adaptações
para jovens, tornamo-nos cúmplices desse crime e queimamos os livros
que deveríamos amar.
Considero as adaptações literárias para jovens uma praga,
mesmo quando bem feitas, porque o mal que fazem se torna mais difí-
cil de perceber. Todas as adaptações são obviamente muito menores do
que os originais que adaptam, corroborando a tese de que a velocidade
da vida moderna exige livros cada vez mais finos. Ora, essa exigência
implica outra: deve-se ler cada vez menos. Deixa-se implícita a derra-
deira exigência: deve-se pensar cada vez menos, até que, finalmente,
todos parem de pensar. Nessa “tendência para o monossílabo como
forma de comunicação, de degrau em degrau vamos descendo até o
grunhido”, já advertia o escritor José Saramago.
Adaptadores e professores se justificam dizendo que têm boa
intenção: querem divulgar os grandes autores para jovens leitores
que de outra forma não os conheceriam. No entanto, ler o “grande”
na forma “pequena” torna o grande pequeno! Na verdade, essa prá-
tica impede a compreensão e, até, o conhecimento do verdadeiramente
grande. Jovens que leem uma adaptação crescem convencidos de que
já leram o livro que, de fato, nunca leram. Pior! Muitos professores que
adotam adaptações nunca leram, eles mesmos, os textos originais, e
estão convencidos de que já sabem o que ainda não sabem.
Todas as adaptações de “O engenhoso fidalgo Dom Quixote
de La Mancha”, de Miguel de Cervantes, só mostram as derrotas ridí-
culas do Cavaleiro da Triste Figura, como a luta contra os moinhos de
vento, apagando as suas muitas vitórias e os seus muitos momentos de

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sabedoria. O elogio quixotesco da loucura contra a loucura da razão


dominante ecoa elogio equivalente do filósofo Erasmo de Rotterdam,
leitura preferencial de Cervantes, mas na adaptação torna-se apenas o
riso cruel do leitor frente à loucura alheia.
Nenhuma adaptação de “Alice no país das maravilhas”, de
Lewis Carroll, enfrenta os seus paradoxos lógicos. O episódio em que
Alice cresce e diminui até se deformar numa menina de cabeça enorme
e corpo pequenino é emblemático do dilema das adaptações dos clás-
sicos. Nossa época e ensino acabam produzindo Alices ao contrário:
leitores de corpo enorme (alimentados a Toddynho) e cabeça mínima
(alimentada por adaptações e outras facilitações).
A única maneira de levar os jovens à leitura dos clássicos está
em levá-los a ler cada vez mais e melhor, e sem pular etapas. Há litera-
tura de excelente qualidade para todas as idades. Por que adotar livros
em miniatura? Não importa que a intenção dos adaptadores e dos pro-
fessores seja “boa”; o resultado é um crime de lesa-literatura, que afeta
tanto o livro, que perde a oportunidade de ser lido adiante, quanto o lei-
tor, que perde a oportunidade de ser desafiado. Reforça-se a cultura do
facilitário, do digestível, vendendo o gato no lugar da lebre, e a adap-
tação no lugar do livro original. Através dessa “pedagogia fahrenheit”,
queimam-se nossas melhores esperanças.
Essa prioridade que empresto ao texto original, recusando seu
recorte em pedacinhos no livro didático e sua facilitação redutora na
adaptação escolar, nos leva ao problema do método: como ler um texto
literário e como ensinar a ler um texto literário?
O filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser (2002), que estudo
em mais de um livro, nos diz que há dois modos de ler literatura, ambos
válidos e complementares. Gosto das orientações dele, mas acrescen-
taria outros três modos, todos igualmente válidos, o que nos deixa com
cinco modos de leitura. Vamos a eles.
Flusser nos diz que se pode ler o texto literário ou como res-
posta ou como pergunta. No primeiro caso, lemos literatura como a
resposta do autor à pergunta que o seu tempo e os autores que o for-
maram lhe fizeram. Então, tentamos entender essa resposta, para o que
se faz necessário, antes, entender a pergunta geradora. Relacionamos

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

a obra do autor às questões e às obras do seu tempo e fazemos o que


Flusser chama de “crítica”, e eu chamaria de “análise”.
No segundo caso, lemos literatura como uma pergunta para
nós. Logo, tentamos respondê-la, usando o texto como um pré-texto da
nossa reflexão, isto é, do nosso próprio texto. Assim como o autor ten-
tou responder à pergunta que lhe faziam, nós nos colocamos no lugar
dele e tentamos responder à pergunta que ele nos faz, realizando o que
Flusser chama de “especulação”.
As duas maneiras de ler não são excludentes nem puras. Ao
criticar e analisar, acabo levantando algumas especulações novas.
Para melhor sustentar minha especulação, recorro a alguma análise.
Contudo, há quem prefira ler predominantemente de maneira crítica –
essas pessoas tendem a escrever tratados sobre o assunto, procurando
esgotá-lo. De outra parte, há quem prefira ler predominantemente de
maneira especulativa - essas pessoas tendem a escrever ensaios sobre o
assunto, procurando explorá-lo e ampliá-lo.
Flusser e eu pertencemos, decerto, ao segundo grupo, o dos
ensaístas especuladores, mas precisamos ler os tratados produzidos
pelo primeiro grupo, assim como os do primeiro grupo precisam ler,
queremos crer, os nossos ensaios. Qual modo de leitura a escola privi-
legia? Resposta fácil: a escola privilegia a leitura analítica, porque ela
supõe controle da informação e do conhecimento. Essa leitura é neces-
sária, claro, mas restringir-se apenas a ela nos impede de apreender o
espírito dos autores que nos interessam e nos mobilizam: o espírito da
dúvida, da inquietação, da investigação e da invenção.
A leitura especulativa, porém, não deixa de ser arriscada. Ao
admitirmos, e mesmo valorizarmos, a subjetividade do leitor e sua
capacidade de também escrever o mundo, podemos criar hordas de
“viajantes de maionese”, isto é, de pessoas interessadas tão somente
em dizer o que pensam, mesmo que mal pensem. A solução, como sem-
pre, é o diálogo. Dessa forma, nós, leitores especulativos, precisamos
ler muito atentamente os tratados dos leitores analíticos, para tentar
controlar um pouco o nosso delírio reflexivo. De sua parte, os leitores
analíticos precisam ler muito atentamente os ensaios dos leitores espe-
culativos, para tentar controlar um pouco o seu delírio controlador e
enquadrador.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

Acrescento aos dois modos de Flusser mais três outros modos


de leitura, todos igualmente válidos e complementares: a leitura ingê-
nua, a leitura crítica e a leitura teórica. Tais leituras não são excluden-
tes; ao contrário, se somam e se devem realizar nessa ordem. A leitura
teórica depende da leitura crítica que depende, por sua vez, da leitura
ingênua.
A leitura ingênua é a primeira leitura. Mesmo que não sejamos
mais ingênuos, devemos ler um texto pela primeira vez como se fôs-
semos ingênuos, procurando recuperar o prazer, o espanto e a admira-
ção de nossas primeiras leituras – quando ainda não fazíamos Letras;
quando ainda não éramos “intelectuais”; quando ainda não interpretá-
vamos tudo segundo Fulano ou segundo Beltrano. O que caracteriza
a primeira leitura é o envolvimento e a entrega ao texto. No caso do
texto literário, é aquilo que chamamos de “suspensão da descrença”.
Suspendo minha descrença de que aquela história não seja verdadeira e
a leio como se fosse a verdade mais verdadeira do mundo.
Sinto que o texto me presenteia com verdades mais fortes do
que as do cotidiano; que o narrador é um ser de perspectiva privile-
giada; que os personagens me são mais caros e mais próximos do que
as pessoas que me cercam; que as cidades da história se encontram no
horizonte à minha espera. Leio como se eu mesmo ainda fosse ingênuo;
como se ainda me maravilhasse com o mistério das coisas e com as
explicações fantásticas para esse mistério.
Todo texto que merece ser lido merece ser, também, relido. A
segunda leitura, todavia, deve ter uma qualidade diferente da primeira,
se não quer ser apenas um gesto repetitivo ou reiterativo. A leitura crí-
tica é essa segunda leitura. É quando se relê o texto para entendê-lo
melhor; para relacioná-lo com os outros textos que se conhece e, tam-
bém, com os textos que influenciaram e determinaram o autor com que
trabalhamos (esse modo de leitura é semelhante ao segundo modo de
Flusser).
O que caracteriza a segunda leitura é a compreensão dos pro-
cessos de construção e de recepção do texto. No caso do texto literá-
rio, poderíamos chamar esta compreensão de “suspensão da suspensão
da descrença”. Suspendo minha suspensão anterior da descrença para
ver o texto como uma construção imaginária de um autor real. Volto

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

a entender que o texto não me fornece nenhuma verdade literal; que


o narrador não é o autor; que os personagens não são pessoas; que as
cidades da história não estão no mapa. Ao vê-lo assim, entretanto, não
perco o prazer encantado da primeira leitura; antes, acrescento a ele um
novo prazer, propriamente intelectual: o da compreensão dos processos
de criação.
Na verdade, a segunda leitura acaba por “ler” a primeira lei-
tura: ela me permite refletir sobre o quê e como li da primeira vez; me
permite pensar por que o texto me afetou e me mobilizou; por que vere-
das me interessou. Desse modo, nem jogo fora a primeira leitura nem
fico preso apenas nela. A segunda leitura me ajuda a entender melhor
não apenas o texto literário, mas também – talvez sobretudo – a mim
mesmo. A entender como penso e como sinto.
Todo texto que merece ser lido e relido merece ser, ainda, re-re-
lido. A terceira leitura, todavia, deve ter uma qualidade diferente das
anteriores, para valer à pena. A leitura teórica é esta terceira leitura. É
quando levantamos questões sobre e a partir do texto, para incorporar-
mos melhor as nossas leituras no nosso próprio pensamento. Tomamos
o texto, então, como uma pergunta para nós, à qual procuramos respon-
der, assim como o autor respondeu, através do seu texto, às perguntas
do seu tempo e lugar (esse modo de leitura é semelhante ao segundo
modo de Flusser).
A terceira leitura é especulativa ou, dizendo de outra maneira,
teórica. Ela define o que chamamos de teoria, ao contrário da impres-
são corrente de que “aplicamos” determinada teoria em determinado
objeto (o texto literário, no nosso caso), como se estivéssemos apli-
cando uma injeção ou realizando uma cirurgia. A teoria é o conjunto
de questões que um objeto nos propõe e, ainda, o que fazemos com
elas. O que caracteriza a terceira leitura é que ela parte da leitura do
texto para mergulhar, de cabeça, na leitura do mundo. Dizendo de outra
maneira: porque se aprendeu a ler textos, pode-se ler o mundo como
um texto; logo, pode-se ler melhor o próprio mundo que nos cerca e do
qual fazemos parte integrante. Podemos chamar essa maneira de ler de
“suspensão da crença”.
Se leio o mundo como um texto, me dou conta de que não vejo
direta e propriamente o mundo, mas apenas discursos sobre o mundo

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

e sobre a realidade. Consigo suspender minha crença acrítica nas coi-


sas, ou seja, nas explicações que me deram sobre as coisas, e posso
exercitar a dúvida sobre elas, perguntando: “por que tem de ser assim
e não assado?”. Suspendo minha crença no mundo para vê-lo como
uma construção discursiva de mundo, o que me permite construir o
meu próprio discurso e defender o meu próprio olhar, sem, entretanto,
excluir os demais.
Ao ver e ler assim, não perco o prazer encantado da primeira
leitura nem o prazer intelectual da segunda leitura. Antes, acrescento a
cada um deles um novo prazer, propriamente filosófico: o de transcender
os limites da matéria – aqueles a que atribuo o nome genérico de “rea-
lidade” - pela dúvida e pelo pensamento. Como diria René Descartes:
“dubito ergo sum, vel quod item est, cogito ergo, sum” – “duvido;
logo, existo, ou, o que é o mesmo: penso; logo existo” (Descartes,
1999). Recupero essa sentença para recordar que só se pensa através
da dúvida. Ora, a origem daquilo que chamamos de literatura é uma
dúvida radical: “por que o mundo tem de ser assim e não assado?”. O
econhecimento dessa dúvida é fundamental para aquilatar a qualidade
pensamento da literatura e do pensamento sobre a literatura.

É esta dúvida que quero deixar aqui hoje.

REFERÊNCIAS

BERNARDO, Gustavo. O problema do realismo de Machado de Assis. Rio


de Janeiro: Rocco, 2011.
DESCARTES, René. Meditações. In: Descartes. São Paulo: Nova Cultural,
1999. (Coleção Os pensadores)
FLUSSER, Vilém. Esperando por kafka. In: Da religiosidade: a literatura e
o sendo de realidade. São Paulo: Escrituras, 2002.

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O QUE FAZ UM PROFESSOR DE LITERATURA?:
BREVES REFLEXÕES INTEMPESTIVAS
Andrey Pereira de Oliveira
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

Os colégios orgulham-se dos homens ilustres que estudaram


neles e que resistiram à massificação escolar.
A educação faz-se com dose maior e menor de mentiras vitais,
responsáveis pela continuação da vida social (ANDRADE,
Carlos Drummond de. O avesso das coisas: aforismos).

1.
“O que faz um professor de literatura?” Eis uma pergunta cap-
ciosa que envolve o sujeito já na ambiguidade de sua formulação, pois
contém, em si, não uma, mas duas indagações. Primeiramente, ao se
fazer tal questionamento, pode-se estar querendo saber o que o profes-
sor de literatura (enquanto ser ativo) faz; ou seja, pergunta-se sobre o
resultado de sua prática, de sua ação. Nesse primeiro sentido, a inda-
gação: “O que faz um professor de literatura?” é sinônima desta outra:
“Um professor de literatura faz o quê?”. Por outro lado, invertendo-se
a lógica, ao se fazer tal questionamento inicial, pode-se estar querendo
saber como – ou de que – é feito um professor de literatura; ou seja, o
professor (enquanto ser passivo) é um produto, um resultado de algo e
é sobre esse algo que se pergunta. Nesse segundo sentido, a indagação:
“O que faz um professor de literatura?” é sinônima desta outra: “O que
torna alguém um professor de literatura?”.
Em síntese, em nossa pergunta inicial: “O que faz um professor
de literatura?”, estão contidas estas outras: “Um professor de literatura
faz o quê?” e “O que torna alguém um professor de literatura?”. Não
é difícil percebermos que refletir sobre estas duas questões significa,
respectivamente, uma reflexão sobre a prática docente e sobre a forma-
ção do professor, e estas não podem se dar, senão conjuntamente, pois
uma boa prática profissional pressupõe uma boa formação, ao mesmo
tempo em que não se pode planejar uma formação sem que se saiba,
de antemão, qual deverá realmente ser a prática profissional. Pedindo
desculpas pela analogia mais do que grosseira, poderíamos dizer que

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

só decidimos que programas instalar no computador quando sabemos


a que ele se destinará!
Parecerá obvio afirmar que o professor de literatura destina-se
a ensinar literatura. O problema é que essa obviedade é apenas apa-
rente, pois já não é tão óbvio assim afirmar um conceito plenamente
satisfatório e irrefutável nem de literatura nem de ensino. Eis, portanto,
mais duas questões para a nossa lista: “O que é literatura?” e “O que é
ensino?”. A essas ainda podemos somar uma terceira questão: “A lite-
ratura é passível de ser ensinada?”.
Esses questionamentos cobram do professor uma reflexão
sobre os princípios de suas ações docentes, e, enquanto ele não lhes
conceber respostas, mesmo que provisórias, estará como que ao leme
de um navio que não sabe governar, que não sabe de onde veio nem
aonde precisa chegar. Como seria possível “dar aulas” de literatura sem
partir conscientemente de uma conceituação do que seja literatura, de
qual seja sua função? Como motivar o aluno a doar-se às atividades de
leitura do texto literário sem ser capaz de lhe propor uma razoável jus-
tificativa para seu empenho? Como atuar como professor, como educa-
dor, sem antes estar consciente do que tal função significa?
A não ser que aceite fazer o papel de autômato, de máquina
sem raciocínio e sem vontade própria, o sujeito que se propõe a ensinar
(no caso aqui específico, ensinar literatura) precisa enfrentar tais inter-
rogações. Principalmente, se o educador tem como premissa a ideia de
que educar é emancipar, ele, antes de qualquer outro, é quem precisa
emancipar-se, não aceitando passivamente os princípios que lhe são
impostos, seja pela “autoridade” dos livros, seja pelo olhar vigilante
dos que o cercam. Emancipando-se, o educador deve seguir o princípio
libertador contido na pedra angular da filosofia de René Descartes:
“dubito ergo sum, vel quod item est, cogito ergo sum”, que pode ser
assim traduzido: “duvido; logo, existo, ou, o que é o mesmo, penso;
logo, existo” (citado em BERNARDO, 2007, p. 28). Duvidar para afas-
tar os comodismos de pensamento, os preconceitos, as ideologias fala-
ciosas. Pensar para, por si só, por conta própria, num ato de liberdade e
responsabilidade, refletir criticamente sobre as premissas de sua ativi-
dade. Só assim, no ato permanente da dúvida e do pensamento, o indi-
víduo pode se reconhecer como sujeito, como ator, e não como objeto

26

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

de um sistema. Só posso assumir de forma plena o papel social de pro-


fessor de literatura, quando questiono o que significa “ser professor” e
o que significa “literatura”. Só assim me reconheço como sujeito e me
livro, pela consciência, do risco da reificação.
Curiosamente, todavia, a Universidade, que, a priori, deveria
privilegiar os momentos de questionamento e reflexão, não lhes tem
servido de campo fértil. Os cursos de formação de professores têm
funcionado como máquinas de fabricar professores, que, por sua vez,
cada vez mais embrutecidos1, têm se assemelhado a meras antenas de
retransmissão de dados pré-fabricados. Restringindo-nos aos Cursos
de Licenciatura em Letras, podemos nos perguntar: “em que momento
os alunos são estimulados a se questionar sobre a importância do que,
de fato, é o Curso de Letras, sobre a sua serventia, sobre o porquê
de tal elenco de disciplinas que lhes são impostas no ‘pacote curricu-
lar’?”. Limitando-nos à área de literatura, podemos nos perguntar: “em
que momento os alunos são estimulados a se questionar sobre o por-
quê de se estudar literatura; o porquê de se estudar Fogo Morto e não
Pedra Bonita; o porquê de se estudar José Lins do Rego e não Armando
Fontes; o porquê de se estudar apenas a literatura brasileira, relegando
a literatura universal?”. Na Universidade, esses numerosos porquês têm
sido ignorados. O que deveriam ser tomados como principais objetos
de questionamento e de reflexão são recebidos como verdades aprio-
rísticas. Eis uma possível resposta a quem ousar fazer tais questões:
“As coisas são assim porque assim têm sido”. Dessa forma, toma-se a
pergunta como resposta e, na tautologia, perde-se o questionamento.
Os atos reflexivos limitam-se às superfícies das questões,
não aos seus fundamentos. A cada semestre, o professor da disciplina
Literatura Brasileira III reflete com seus alunos sobre “Versos íntimos”,
de Augusto dos Anjos. Eles refletem sobre o conjunto de vogais que for-
mam tal assonância; refletem sobre o arranjo métrico, rímico, rítmico
ou estrófico; refletem sobre os desvios de ordem semântica que produ-
zem as metáforas; refletem sobre o sistema de significado resultante
do arranjo estrutural das partes; refletem sobre a posição do poema no
conjunto da obra do poeta; refletem sobre a posição do poeta na escola

1
Utilizo os termos “emancipação” e “embrutecimento” com a mesma concepção que os
expõe Jacques Rancière (2005).

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

literária a que se filia e, ainda, refletem sobre a posição do poeta no


contexto maior da literatura brasileira ou universal. O curioso é que
dificilmente alguém para para refletir sobre as próprias reflexões: “Por
que estudar as assonâncias, a métrica, a rima, o ritmo, as metáforas, o
arranjo estrutural, a posição do poema na obra do poeta e do poeta num
contexto maior?”; “Por que estudar ‘Versos íntimos’, de Augusto dos
Anjos?”; “Por que estudar Augusto dos Anjos?”; “Por que estudar um
poema?”; “Por que estudar literatura?”. Por fim: “Por que estudar?”.
Às vezes, um ou outro aluno, num instante de lucidez ou de
total ausência dela, questiona o porquê de se estudar tal ou tal texto
literário. Nesses momentos, alguns professores blindam-se com as
famosas tautologias, afirmando algo como: “Deve-se estudar este texto
porque ele é importante”; “Deve-se estudar este texto porque todos o
estudam (inclusive eu, há dezenas de anos)”; “Deve-se estudar este
texto porque ele estará no livro didático de seus alunos, e você preci-
sará estudá-lo com eles”. Outras vezes, diante do questionamento do
“aluno inquieto”, outros professores, conscientemente ou não, lançam
mão de uma arma ainda pior que as tautologias: o silêncio irônico. Tal
silêncio irônico grita a todos que aquele indivíduo que está lhe ques-
tionando o porquê do estudo de tal texto ou é um tolo que lhe faz uma
questão cuja resposta deveria ser óbvia para todos, ou é um preguiçoso
que, para esquivar-se da atividade, tumultua o ambiente com perguntas
sem sentido. Tanto as tautologias como o silêncio irônico são atos de
embrutecimento.
O que muito raramente fazem esses professores é aceitar o
questionamento como um convite para a reflexão, e é essa ausência de
reflexão que ultrapassa as questões superficiais, que faz com que os
alunos de licenciatura, futuros professores, permaneçam ou se trans-
formem em assimiladores passivos, repetidores, mera plateia do conhe-
cimento que se desenrola à sua frente, mas infinitamente longe de si.
Sem a ousadia do questionamento, sem o hábito da reflexão, eles nunca
se postam como atores, como autores, como construtores do saber.
Mas, como os alunos podem se tornar construtores do saber
se, em muitos casos, o saber já é servido como um prato feito? Eis um
ponto que diz respeito à ideia de “ensinar literatura”. Um traço impres-
cindível a qualquer manifestação artística é o seu caráter polissêmico.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

No caso particular dos textos literários, um dos fatores que melhor os


define é, justamente, a gama das diversas possibilidades de leitura que
eles carregam em potência.
Todavia, não são raros os momentos em que, na prática
cotidiana da aula de literatura, as atividades são planejadas e realizadas
de modo positivista, em que se elege uma leitura como a única possível.
Adotando essa postura monossêmica, num descompasso flagrante
entre o conceito do objeto de estudo e a abordagem em sala de aula,
o professor de literatura, irônica ou ingenuamente, desconsidera justa-
mente aquilo que faz a literatura ser literatura. Mira-se na polissemia e
mata-se na literatura.
Outro procedimento bastante frequente nas aulas de litera-
tura é a leitura e discussão das chamadas “fortunas críticas”, ou seja,
dos textos de referência que, muitas vezes, em lugar de ser um suporte
secundário à apreciação do texto literário, assume a condição de prota-
gonista. Sobre essa prática, Mário Quintana destila sua ironia:
Essa mania de ler sobre autores fez com que, no último cente-
nário de Shakespeare, se travasse entre uma professorinha do interior e
este escriba o seguinte diálogo:
– Que devo ler para conhecer Shakespeare?
– Shakespeare (QUINTANA, 1998, p. 75).
Ou, ainda:
– Você ainda não leu O significado do Significado?
– Mas eu estou só esperando que apareça O significado do
Significado do Significado (QUINTANA, 1998, p. 91).
Obviamente, a leitura da leitura dos outros pode nos tornar
mais sagazes e enriquecer nossa leitura do texto literário em si. O
problema se dá quando lemos a fortuna crítica antes de lermos a obra
literária, isto porque tal procedimento condiciona-nos a enxergar na
obra literária exatamente aquilo que o crítico nela vira. Ainda mais
grave, e, infelizmente, não pouco frequente, é quando a leitura da obra
literária nem precede nem sucede à leitura do discurso crítico, pois este
parece bastar-se por si mesmo. Eis uma prática pedagógica que nos faz
lembrar a célebre Alegoria da Caverna, de Platão, em que os homens,

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

em vez de terem contato direto com as coisas do mundo, só interagiam


com suas sombras.

2.
Vez por outra, circulam uns ditos populares chistosos que ferem
fundo alguns professores: “Quem sabe faz, quem não sabe ensina (e
quem não sabe nem ensina, ensina Educação Física)”. Há, ainda, outra
versão, mais desenvolvida:
Quem ‘não dá pra’ engenheiro, ensina Matemática; quem ‘não
dá pra’ médico, ensina Biologia; quem ‘não dá pra’ advogado
ou político, ensina História; quem ‘não dá pra’ latifundiário (ou
sem-terra), ensina Geografia; quem ‘não dá pra’ pra jornalis-
ta ou escritor, ensina Português; e quem ‘não dá pra’ pra mais
nada, ufa, faz Pedagogia (citado em BERNARDO, 2007, p. 46).
Tal espécie de piada retrata bem a imagem geralmente asso-
ciada aos professores em nosso país. Na base desses chistes, há a ideia
de que o indivíduo torna-se professor não por vocação ou escolha, mas,
sim, por incompetência, por inabilidade prática. Se sou incapaz de ser
um escritor, tenho que me conformar em ensinar Literatura. Há, junto
a essa perspectiva, uma inversão da lógica mais tradicional, que reza
que o professor é, justamente, aquele indivíduo que, pelo grau elevado
do seu saber, adquire a autoridade de ensinar. Já, na lógica invertida
dos chistes, ensinar é função não do sábio, mas do ignorante e incom-
petente, cuja figura máxima associa-se ao pedagogo, justamente aquele
que, depois de se dar conta de que não sabe fazer nada, passa a ensi-
nar a ensinar! Eis um retrato melancólico, porém verdadeiro, do modo
como a educação é encarada no Brasil.
Podemos nos indignar e não dar crédito a essas anedotas.
Podemos dizer que são coisas de ignorantes, que não merecem atenção!
Mas, essa atitude é mais uma recusa à reflexão; é mais uma oportuni-
dade perdida para a emancipação, pois negar-se ao debate é alimen-
tar o embrutecimento. Há outro ditado popular que afirma que “Em
toda brincadeira há um fundo de verdade!”. Se pensarmos um pouco
sobre os chistes, realmente podemos nos indagar: “Por que será mesmo
que alguém escolheria ser um professor de Literatura em vez de ser
um escritor?”. A essa questão há uma resposta possível: “No Brasil, o

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

professor é pessimamente remunerado, mas num país de não leitores,


quem se aventura a viver de literatura, com raríssimas exceções, morre
de fome!”. Mas poderíamos também nos indagar: “Por que será mesmo
que alguém escolheria ser um professor de Biologia em vez que ser um
médico?”. Nesse caso, a remuneração não nos serviria como base para
rebater coisa alguma. Como nós, professores, educadores, podemos
sair dessa enrascada?
Eis onde acredito ser fundamental o papel da interdisciplinari-
dade nessa época da, tão propalada, “crise dos paradigmas”. Pensando
como professores de Literatura, poderíamos nos indagar sobre os ele-
mentos da Linguística, da História, da Geografia, da Sociologia, da
Antropologia, da Psicologia, etc. que poderiam nos auxiliar em nosso
estudo, por exemplo, de um romance de Clarice Lispector. De fato,
ao exercício pleno do estudo ou do ensino de Literatura, é imprescin-
dível uma mente interdisciplinar. Não é suficiente conhecer apenas a
Teoria da Literatura ou a língua em que o texto foi escrito, porque um
texto literário (eis uma “possibilidade” de conceituação) é um signo
complexo de base verbal, que se estrutura como um mosaico intertex-
tual e, num processo de poiesis que transcende a mimesis, transfigura
e condensa, numa linguagem desautomatizada, múltiplas inquietações
filosóficas, fatos históricos, espaços geográficos, relações sociais,
aspectos antropológicos e psicológicos dos seres humanos. O texto
literário, como um signo de alta complexidade, parece postar-se diante
do leitor como a famosa esfinge clássica, a ameaçá-lo: “Decifra-me ou
devoro-te!”.
Fica, dessa forma, facilmente constatada a importância de
uma perspectiva ampla, interdisciplinar, como base da formação per-
manente do professor de literatura. Todavia, defendo que a interdisci-
plinaridade não deve ficar restrita apenas ao momento “final”, que é a
prática docente. Acredito que uma apreensão interdisciplinar de mundo
deve estar presente desde o início da formação do professor. Eis uma
proposta de resposta a uma das tantas perguntas elencadas acima: “o
que faz um bom professor de literatura (e não apenas um bom professor
de literatura, mas todo e qualquer indivíduo crítico!) é a sua forma-
ção interdisciplinar”. Isso porque só numa perspectiva múltipla, des-
compartimentada, o indivíduo pode efetivamente tornar-se um Sujeito

31

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

emancipado. Enquanto mais ampla, enquanto mais “humanística”


minha perspectiva, tanto menor o risco de eu ter de aceitar premissas
alheias de modo acrítico. Apenas com uma mente interdisciplinar o
indivíduo pode tornar-se efetivamente um sujeito reflexivo. Nessa pers-
pectiva, defendo que a interdisciplinaridade tanto nos ajuda como meio
mais abrangente de abordar nossos objetos de pesquisa ou de ensino,
quanto nos auxilia numa pesquisa ontológica, a partir da qual nos ques-
tionamos constantemente sobre quem somos. Acredito que apenas atra-
vés do ato constante da reflexão – da reflexão interdisciplinar ampla,
que questiona as barreiras do conhecimento e que não teme a ruína
das bases que nos parecem mais sólidas – é que podemos dar sentido
à nossa prática docente e nos encontrar enquanto sujeitos-professores.
Sabemos que o conhecimento não é algo fragmentado. Nós,
profissionais da educação, é que tratamos de fragmentá-lo nos esta-
belecimentos de ensino, em respeito a um didatismo que prima pela
organização serial do conhecimento. Essa serialização que, podendo
até “otimizar” a produção industrial, quando aplicada ao ensino, não
otimiza. Embrutece.
Para encerrarmos com uma atmosfera de otimismo, lembra-
mos que do nosso lado sempre estarão a esperança e a imaginação. E,
como otimismo em excesso em vez de emancipar, embrutece, lembra-
mos, também, de outras palavras do velho Quintana: “A esperança é
um urubu pintado de verde”; “A imaginação é a memória que enlou-
queceu” (QUINTANA, 1998, p. 58).

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Carlos Drummond de. O avesso das coisas: aforismos. Rio de


Janeiro: Record, 1987.
BERNARDO, Gustavo. Redação pelo argumento. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
QUINTANA, Mário. Caderno H. 7. ed. Porto Alegre: Globo, 1998.
RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação
intelectual. Tradução de Lílian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

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LITERATURA E ENSINO:
O ESPAÇO DO LEITOR E DA LEITURA
Germana Maria Araújo Sales
Universidade Federal do Pará

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

O nosso sistema de instrução pública não merece de modo al-


gum o nome de educação nacional. É em todos os ramos – pri-
mário, secundário e superior – apenas um acervo de matérias,
amontoadas, ao menos nos dois primeiros, sem nexo ou lógica,
e estranho completamente a qualquer concepção elevada da
Pátria. (José Veríssimo – A Educação Naciomal, 1890).
Na primeira metade do século XX ecoou pelo Brasil a célebre
frase de Monteiro Lobato: “um país se faz com homens e livros”, que
se estabeleceu como um jargão e virou lugar comum nas campanhas
nacionais para formação de leitores1, como também no discurso oral
dos professores, profissionais de Letras que ansiavam encontrar a fór-
mula mágica da sedução para a leitura.
Entretanto, no cotidiano da sala de aula, a simpatia para os
livros, constitui um dilema presente, que dirige o profissional da área
de Letras a enfrentar, entre outras, as seguintes aflições: primeiramente
se pergunta, quase que constantemente, sobre o conceito de Literatura?
Se, por acaso esta questão for atendida com êxito, sua angústia se dirige
a outro ângulo e se interroga como ensinar aos alunos o valor do texto
literário? Porém, tal ponto implica em outro mais ansioso: como des-
pertar nos alunos o interesse pela leitura e, consequentemente, formar
leitores?
Essas indagações são perenes aos professores da área de
Letras, habilitados a exercer a docência que tem como alicerce a leitura
e a intimidade com os livros. O trabalho com a leitura e o exercício
desta prática provoca expectativas que não serão satisfeitas, pois as

1
Entre as campanhas empreendidas em prol da leitura, cito: campanha Doe um livro
[http://doeumlivro.galeon.com/]; concurso Ler é 10 [http://www.itabuna.ba.gov.br/edu-
cacao/v1/archives/doc/10_concurso_regulamento.pdf]; campanha Leitura, a melhor
viagem [http://www.emdec.com.br/eficiente/repositorio/Trabalhos_ANTP_17/1021.
pdf]; campanha Ler para crescer [http://lerparacrescer.folhadaregiao.com.br/2012/01/
populacao-pode-ajudar-na-biblioteca.html]; campanha Por um Brasil literário [http://
www.brasilliterario.org.br/envie_depoimento.php]; projeto Leitura: a melhor viagem
[http://www.acampinas.com.br/nossa-cidade/noticia/emdec-pede-doacoes-para-pro-
jeto-de-leitura-20111017]; Campanha doe um Livro [http://www.lotufoengenharia.com.
br/imprensa/?CategoriaCod=1&NoticiaCod=90].

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

inquietações diante desta matéria que não é exata, mas sim subjetiva,
não se apaziguam. Para amenizar nossas dúvidas e aflições há de se ter
muita paciência e persistência, pois trabalhar com Literatura consiste,
deveras, num caso de sedução e amor e, por conseguinte, há de se ter
esmerada dedicação. Desta forma, a primeira parte deste texto expõe
algumas discussões de especialistas da área acerca da questão mais
pungente: o conceito de Literatura.
Inúmeros estudiosos já se debruçaram sobre o assunto2 e, hoje,
entender e classificar um texto como literário parece mais simples, sim-
ples mesmo. Ainda diante de toda subjetividade que cerca nossa área,
identificar uma obra como literária tornou-se quase exato. Mas deve-
mos ter cuidado, pois, ao discorrer sobre Literatura, há de ter pondera-
ção, indispensável concentração, muita cautela e seriedade.
O conceito de Literatura, assim como outros não é estático, pois
se altera e se modifica e evoluiu com o passar dos séculos. No século
XVIII Raphael Bluteau considerava que o termo literatura deveria ter
os seguintes significados: erudição, “sciencia”, noticia das boas letras
(BLUTEAU, 1727). Já no século XIX, de acordo com o Diccionario da
Língua Portugueza de Antonio de Moraes Silva, Literatura era consi-
derada como o conjunto das produções literárias d’uma nação, d’um
paiz, d’uma epocha: “Os Lusiadas são a obra capital da literatura
Portuguesa.” (SILVA, 1878).
Nos tempos atuais, o dicionário Houaiss define Literatura
como: “Ensino das primeiras letras, uso estético da linguagem escrita;
arte literária, conjunto de obras literárias de reconhecido valor estético,
pertencentes a um país, época, gênero etc.; conjunto de escritores, poe-
tas etc. que atuam no mundo das letras, numa determinada sociedade;
disciplina escolar composta de estudos literários”3.
Ao avaliarmos as três definições, verificamos que as mudan-
ças mais substanciais no conceito de literatura são aquelas que con-
sideram o valor estético do texto e a referência à disciplina escolar

2
Sobre o conceito de Literatura, convém consultar os seguintes autores, textos e obras:
ABREU, Márcia. Cultura Letrada – literatura e leitura. São Paulo: UNESP, 2006;
BARBOSA, João Alexandre. Literatura Nunca é Apenas Literatura. In: www.crmario-
covas.sp.gov.br/pdf/ideias_17_p021-026_c.pdf; LAJOLO, Marisa. Literatura:leitores &
leitura. SP: Ed. Moderna, 2011; ZAPPONE, Mirian Hisae. “Afinal, o que é literatura?”
In: BONNICO, Thomas & ZOLIN, Lúcia Osana. Teoria Literária: abordagens históricas
e tendências contemporâneas. Maringá: Ed. da Universidade de Maringá. 2009.
3
Este conceito foi retirado do dicionário virtual http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?ver
bete=literatura&x=8&y=11&stype=k, consultado em 02/09/2011.

36

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

composta de estudos literários. No que tange à existência da disciplina


Literatura, sabemos que a alusão a este fim não poderia vir no século
XVIII e ainda não na primeira metade do XIX, uma vez que esta maté-
ria só é concebida a partir de 1860 e é somente nos anos novecentos que
se considera o texto estético, ao qual é aferido como “bom” e “belo”.
Contudo, não são somente as qualidades estéticas suficientes para que
o texto alcance a distinção de literário.
Portanto, convém observar os seguintes textos:
“Deus permita que tenhas chegado sem perigo a casa dessa
boa gente. Eu não sei o que se passa. mas há coisa misteriosa
que eu não posso adivinhar. Meu pai tem estado toda a manhã
fechado com o primo, e a mim não me deixa sair do quarto.
Mandou-me tirar o tinteiro; mas eu felizmente estava preve-
nida com outro. Nossa Senhora quis que a pobre viesse pedir
esmola debaixo da janela do meu quarto; senão, eu nem tinha
modo de lhe dar sinal para ela esperar esta carta. Não sei o que
ela me disse Falou-me em criados mortos; mas eu não pude
entender... Tua mana Rita está-me acenando por trás dos vidros
do teu quarto...”

***
“Há mulheres que dizem: Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto, ajudo a escamar,
abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha, de vez em quando
os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como “este foi difícil”
“prateou no ar dando rabanadas” e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez atravessa a
cozinha
como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa, vamos dormir.
Coisas prateadas espocam: somos noivo e noiva”. 

***

37

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

“O homem que eu amo...


Tem o mistério em seu olhar, enigmas incontáveis, que eu pro-
curo desvendar;
Traz sempre um sorriso nos lábios, uma palavra de carinho;
Possui sonhos, mas não vive de fantasias;
Traz na boca palavras sedutoras que me encantam e me fazem
adormecer em silêncio mergulhando em teu corpo, viajando
em seu mundo.
Envolvendo-me num abraço, explorando o meu beijo me
fazendo caminhar em busca de emoções e aventuras;
É a chama que me aquece, a luz que ilumina os meus dias,
força que me protege contra todos os males;
Possui um nome, uma história em que eu faço parte dela.
O homem que eu amo é apenas... Você!”
Após a leitura dos trechos anteriores, quais deles os leitores
julgariam como literário? Quais os critérios utilizariam para essa defi-
nição? Apenas a escrita do texto seria suficiente para classificar um
texto como literário, ou não?
O leitor, certamente sopesará sua resposta e concluirá, em
princípio, que somente os textos inscritos e impressos em papel comum
talvez não sejam suficientes para uma classificação. Mas e se fossem
apresentados, por exemplo, as seguintes imagens da capa e folha de
rosto, referentes ao primeiro texto exposto, somados à leitura do texto
integral:

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

A edição se apresenta em capa dura, na qual o leitor dispõe da


referência ao título da obra e ao nome e foto do autor, Camilo Castelo
Branco, o que já é suficiente para ser identificado como um dos mais
notáveis romancistas do Romantismo Português, celebrizado nesta
geração pelos sublimes enredos de amor4. E, na folha de rosto, há
algumas informações preciosas acerca do romance, como a referência
à edição monumental, do ano de 1891, acompanhada dos enriqueci-
dos estudos especiais de Manuel Pinheiro Chagas, Ramalho Ortigão e
Teófilo Braga5 e ilustrada com desenhos realizados por J. J. de Souza
Pinto, Caetano Moreira da Costa Lima e José d’ Almeida e Silva6.

Além das considerações acerca da materialidade da obra,


levará o leitor em conta o fato de ser Camilo Castelo Branco um dos
autores da Literatura Portuguesa, mais retomado como temática para
trabalhos finais, como Dissertações de Mestrado, Teses de Doutorado

4
Camilo Castelo Branco foi um dos escritores mais marcantes da Literatura Portuguesa,
quer pela sua biografia atribulada e tempestuosa, quer pela vasta obra que registrou
inegavelmente sua passagem pelo mundo das letras românticas da literatura ocidental.
A lista das obras de Camilo, encontram-se no Anexo I.
5
Os três autores referidos, Manuel Pinheiro Chagas, Ramalho Ortigão e Teófilo Braga,
foram importantes figuras da intelectualidade portuguesa e destacaram-se como escri-
tores, jornalistas e até atividades políticas. Ramalho Ortigão, por exemplo, foi uma das
principais figuras da Geração de 70 e fez parte da constituição do grupo “Os Vencidos
da Vida”, do qual fizeram parte, além de Ramalho Ortigão, o  Conde de Arnoso, Antero
de Quental, Oliveira Martins e Guerra Junqueiro.
6
Pintores portugueses que se dedicaram à pintura histórica, com importantes exposições
na época.

39

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

e Teses de Livre docência no Brasil?7 Ou ainda, considerará o leitor, o


fato da obra ter sido traduzida para diversos idiomas e ser uma das mais
adaptadas do autor?8
Quanto ao segundo texto divulgado à apreciação, qual seria
a consideração sobre o conceito de literário, se tivessem ciência, os
leitores, que o poema em tela tem como título “Casamento” e está ins-
crito no livro Poesia Reunida, de autoria da mineira Adélia Prado9,
publicado em 1991? E, além dessa informação, em que colaboraria
para identificar o poema como literatura, ou não, saber que a obra de
estreia desta autora, sob o título Bagagem, foi elogiado pelo seu conter-
râneo Carlos Drummond de Andrade, em crônica no Jornal do Brasil,
chamando a atenção para o trabalho ainda inédito da escritora? Qual
avaliação é possível fazer sobre esta autora e sua obra, ao ter informa-
ções que o lançamento do seu primeiro livro foi prestigiado por nomes,
como: Antônio Houaiss, Carlos Drummond de Andrade, Clarice
Lispector, Affonso Romano de Sant’Anna, Nélida Piñon, Alphonsus de
Guimaraens Filho e Juscelino Kubitscheck. Ajudaria na sua definição

A plataforma Lattes do CNPq registra 385 trabalhos sobre Camilo Castelo Brancos,
7

desses, 174 são trabalhos realizados por Doutores da área, mas observa-se que o número
de trabalhos elencado na plataforma, informa somente trabalhos finais, pois um dos
pesquisadores que se debruça sobre Camilo Castelo Branco e sua obra, lista, além da
sua Tese de Livre docência O romance de Camilo: uma introdução, USP 2006, com-
põem seu currículo os artigos: Aspectos do amor em Camilo: da heroína romântica à
mulher comum. Revista Letras, 1997; A Imagem de Camilo Castelo Branco Na Cultura
Portuguesa: O Gênio Amoroso e Sofredor. Com Textos, 1997;
A Coleção Saraiva: Um rosto brasileiro para Camilo Castelo Branco. Convergência
Lusíada, 2005; Camilo Castelo Branco. Convergência Lusíada, 2006. Camilo Castelo
Branco: de personas e emplastos. Tempo Brasileiro, 2007. Os capítulos de livros:
“Camilo Castelo Branco e o Naturalismo: pistas para um novo olhar”. In: Dialogia na
Literatura Portuguesa, 2006; “Machado, Faustino e Camilo: a literatura lusófona no
oitocentos, um mapa em construção”. In: Machado de Assis e suas múltiplas vozes,
2008; “Oralidade, memória e ficção na obra de Camilo Castelo Branco”. In: Narrativas
em metamorfose, 2009; “Camilo: limites do desejo no mundo do capital”. In: Leituras
do desejo em Camilo Castelo Branco, 2010; “De Amores, Cartas e Memórias: Camilo na
Lente Prismática de Manoel de Oliveira”. In: Manoel de Oliveira: Uma Presença, 2010.
O romance foi adaptado paro cinema, inclusive no cinema mudo, em 1921, e em outras
8

versões, nos anos de 1943, 1979 e 2008. Também teve sua versão para a teledramaturgia,
no ano de 1965.
Adélia Prado publicou 07 (sete) livros de poemas, 08 (oito) obras em prosa e 06 (seis)
9

antologias, além da participação em parceria com Lázaro Barreto, Lya Luft e Marcos
Mendonça. (a relação das obras de Adélia Prado, encontram-se no Anexo II).

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

ter conhecimento que Adélia Prado foi a vencedora do Prêmio Jabuti de


Poesia, com a obra O Coração Disparado10, no ano de 1978, como tam-
bém saber que a obra da poetisa brasileira foi traduzida para o inglês,
espanhol e italiano11, e que sua obra já inspirou inúmeros trabalhos
acadêmicos?12
Sobre o terceiro texto apresentado à avaliação dos leitores,
cabem algumas informações primárias, para que seja ajuizado como
literário, ou não, dentre elas saber em qual suporte o texto foi veiculado,
a autoria e em quais domínios especializados recebe avaliação positiva.
O terceiro texto disposto a ser analisado como literário, ou não, é de
autoria de Valéria Lopes, escritora paulista que publicou 05 cartas, 16
pensamentos, 29 frases, 04 mensagens e 261 poesias no site http://www.
recantodasletras.com.br/, o que totaliza 315 textos, com 7948 leituras.
Além dessas informações, não foi possível encontrar outros elementos
que apontem para uma ampla circulação da obra da autora, nem tam-
pouco se parte dos seus mais de 300 textos encontram-se publicados no
formato livro, editado por importantes editoras, como também nenhum
dado foi encontrado sobre estudos acerca dos textos divulgados neste
site, nem que a obra desta autora tenha sido premiada por algum júri
especializado.
10
Coração disparado é a segunda obra de Adélia Prado e com a consignação do Prêmio
Jabuti em 1978, consagrou a autora como uma importante autora feminina da poesia
brasileira. A obra embrenha-se em temas que se referem à religiosidade e que passaram
a marcar a gênese de sua obra. 
São as seguintes as traduções da obra de Adélia Prado: Thirteen poems. Tradução de
11

Ellen Watson. Suplemento do The American Poetry Review, jan/fev 1984; The headlong
heart (Poesias de Terra de Santa Cruz, O coração disparado e Bagagem). Tradução de
Ellen Watson, New York, 1988, Livingston University Press; The alphabet in the park
(O alfabeto no parque). Tradução de Ellen Watson, Middletown, Wesleyan University
Press, 1990; El corazón disparado (O coração disparado). Tradução de Cláudia
Schwartez e Fernando Roy, Buenos Aires, Leviantan, 1994; Bagaje. Tradução de José
Francisco Navarro Huamán. México, Universidade Ibero-Americana no México; Poesie.
Antologia em italiano, precedida de estudo do tradutor Goffredo Feretto. Publicada pela
Fratelli Frilli Editori, Gênova.
12
Há 519 referências a trabalhos acadêmicos que tomam a poesia de Adélia Prado como
tema, entre Trabalhos de conclusão de curso, Monografias de Cursos de Especialização,
Dissertações de Mestrado e Teses de Doutorados, na plataforma do CNPq. Desses, 264
são trabalhos de Doutores da área. Além dos mais de 500 trabalhos, a produção da
autora, também foi matéria para artigos publicados em revistas especializadas e traba-
lhos apresentados em eventos, que resultaram na publicação em anais. Algumas referên-
cias dos trabalhos realizados e publicados encontram-se no Anexo III.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

E agora, como refletirá o leitor prudente e bem formado?


Certamente, para responder à questão, este leitor compreenderá que
a literatura abarca vários mundos, inclusive o das obras bem vendidas
à época da sua publicação13 e que se tornaram célebres anos depois,
como o mundo das mulheres que assinam as obras (embora nem todas),
ao pensar que até bem pouco tempo, os nomes femininos sequer cons-
tavam entre o grupo de obras elevadas. Tal consideração não deve levar
em conta que as idiossincrasias em torno da literatura possam garantir
a todos os textos o valor de literário. Para reconhecer a camada privile-
giada que pode ser chamada de Literatura (com L maiúsculo), deve-se
tomar por base que por traz de cada texto deve estar o arcabouço da
tradição14 e não devemos esquecer que a base constituinte desta tra-
dição é “burguesa, branca, masculina e bem alfabetizada” (LAJOLO,
2001. p. 11)
Os textos aludidos para o exercício proposto demonstram que
a Literatura tem dessas e outras experiências. Como aquela em que
o aluno perguntou ao professor: “Porque Drummond pode suprimir
vírgula?” Qual seria a resposta imediata na cabeça de todos nós? Por
que Drummond é Drummond? Será que o seu aluno se convenceria
com essa resposta? Aqueles que já conhecem Drummond como um
poeta brasileiro de primeira ordem, podem simplesmente se conformar
e entender que se trata de um autor literário, mas como fica o leitor
comum e os alunos – leitores em formação?
Pois é, as coisas não são tão simples assim.

13
A obra Amor de Perdição, do romancista português, Camilo Castelo Branco, foi uma
das obras mais lidas durante o século XIX, em Portugal, contando onze edições, só
neste século: Com a 1ª. edição no ano de 1862, publicado pela editora Porto. No ano de
1864, vem a público a 2ª. edição, “melhorada, e revista pelo autor”, também, editada
pela Porto. A 3ª. edição do romance surge três anos depois da 2ª. Em 1869, pela mesma
editora. Já na década de 1870, do século XIX, em 1876, é publicada a 4ª edição da obra,
que contaria sua 5ª. edição já em 1879. A 6ª edição do romance é divulgada no ano de
1887 e no ano de 1891, a editora Porto lança uma Edição monumental. Dois anos depois
deste lançamento, em 1893, vem à lume a 7ª edição e em 1895, a 8ª. edição. A 9ª. e a 10ª.
edição encerram o século XIX, confirmando o numero expressivo de edições de um
mesmo romance, o que nos faz inferir, que correspondia ao anseio do público.
14
Ao citar a tradição como uma referência para o reconhecimento do texto como literário,
João Alexandre Barbosa cita Fernando Pessoa, que, em 1916, escrevendo sobre a moder-
nidade da literatura, que: “No mais pequeno poema de um poeta deve haver sempre
alguma coisa por onde se note que existiu Homero.”

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

Para reconhecer um autor ou texto como literário, de acordo


com João Alexandre Barbosa15, deve-se ter um repertório mínimo para
discernir entre o que é literatura e entender em que sistema o texto
está inserido para que seja considerada Grande Literatura. Atualmente
já sabemos que não basta somente o valor estético do texto, mas é
necessário entendê-lo no conjunto de instituições responsáveis pela sua
divulgação e consagração, como propõe Marisa Lajolo:

Para que um texto seja considerado literatura é preciso algo


mais do que interação entre seu autor e seus leitores. A litera-
tura tem que ser proclamada e só os canais competentes podem
proclamar um texto ou um livro como literatura.
Quem são esses canais?
[...]
Canais competentes são as instâncias – instituições, eventos,
publicações, titulações – às quais cumpre apontar e atestar a
literariedade dos textos em circulação. Cabe aos canais compe-
tentes – espécie de cartório que reconhece e autentica as firmas
– estabelecer e afiançar o valor ou a natureza artística e literária
de uma obra.
Para que uma obra seja considerada parte integrante da tradição
literária de uma dada comunidade ou tradição cultural, é neces-
sário que ela tenha o endosso dos canais competentes aos quais
compete a literarização de certos textos, isto é, a proclamação
de um texto como literatura ou não-literatura (LAJOLO, 2001,
p. 18).
Para reconhecer um texto como literário e entender que o
valor da obra não é uma questão própria ao texto, mas a concepção
de um conjunto de fatores, como foi listado anteriormente e, para dar
cabo deste conceito, cabe como primeira tarefa ao professor, ter um
conhecimento aprofundado acerca das obras literárias, principalmente
das grandes obras em língua portuguesa, bem como um reconhecido
número de obras da literatura ocidental.
De posse desse conhecimento, o profissional está abalizado
para responder às questões suscitadas no início do texto, pois dominante
15
As discussões empreendidas por João Alexandre Barbosa encontram-se no texto
“Literatura nunca é apenas Literatura”, apresentado no Seminário Linguagem e
Linguagens: a fala, a escrita, a imagem e publicado no site http://www.crmariocovas.
sp.gov.br/pdf/ideias_17_p021-026_c.pdf. Consultado em 10/09/2011.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

do acervo necessário que lhe dará domínio do conhecimento da histó-


ria da literatura, estará apto a apresentar ao jovem, excelentes leituras
e assim formar leitores. Esta derradeira ação só se efetivará se o pro-
fessor tiver como hábito costumeiro a leitura, o contato diário com a
leitura e, desta forma, afiançar aos seus alunos o direito à literatura.
Mas para alcançar este patamar, há de se vencer ainda uma
brecha nos cursos de letras e, portanto, na formação dos futuros pro-
fessores da área. Quando formados, aqueles docentes que assumem a
disciplina de Língua Portuguesa, algumas vezes, não se reconhecem
como professores de Literatura e, portanto, desprezam esta formação
fundamental, desconhecendo suas obrigações básicas de profissional
de letras, que se estendem além do conhecimento profundo da língua,
mas que inclui a intimidade com as obras literárias, conforme afiança
Marisa Lajolo:

O professor de Português deve estar familiarizado com uma


leitura bastante extensa de literatura, particularmente da bra-
sileira, da portuguesa e da africana de expressão portuguesa.
Frequentador assíduo dos clássicos, sua opção pelos contem-
porâneos pelas crônicas curtas ou pelos textos infantis deve
ser, quando for o caso, mera preferência. Em outras palavras:
o professor de português pode não gostar de Camões nem de
Machado de Assis. Mas precisa conhecê-los, entendê-los e ser
capaz de explicá-los (LAJOLO, 2002. p. 22).
Ciente da sua função, não deve o professor eximir da sua cáte-
dra o conteúdo fundamental com a desculpa que tem mais aptidão para
determinada linha específica, mas sim conscientizar-se que ao assu-
mir o magistério nas turmas de ensino médio deve dominar os conhe-
cimentos concernentes às matérias de Língua Portuguesa, Redação
e, igualmente, Literatura. Pode, por acaso o estudante do Curso de
Farmácia se negar a conhecer o princípio ativo de determinado grupo
de medicamentos ou pode o licenciado em Física recusar-se a explicar
os princípios da eletricidade, por se sentir atraído somente pela mecâ-
nica e privar o aluno dos demais conteúdos referentes à disciplina? A
resposta natural é não e, desta feita, para não distanciar os alunos do
conhecimento completo, o professor da área de Letras tem por dever
estabelecer uma relação estreita com os livros; constituir um contato

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

periódico, frequente, com uma estante repleta de livros como parte


obrigatória da decoração e da mobília da casa, cuja consulta deve ser
corriqueira. Além do ambiente privado que deve favorecer e estimular
a elaboração das aulas de Literatura ou Língua Portuguesa, a escola
deve dar a contrapartida com uma biblioteca e/ou uma sala de leitura,
que atenda às necessidades do conteúdo, mas novamente entra em cena
o professor, uni co que pode afiançar a assiduidade dos alunos a esses
espaços de leitura e torná-los íntimos à comunidade escolar.
Entretanto, devemos refletir ainda sobre o percurso do profes-
sor de literatura, para localizarmos onde se inicia seu trajeto, quais os
agentes que predominam nessa teia de relações e que determinam o
final da cadeia. O papel do professor na escola básica, seus vícios e
reproduções de ensino resultam, principalmente, da sua formação no
ensino superior, quando as aulas de literatura têm sua carga horária
dedicada, quase exclusivamente à discussão de textos teóricos e um
restrito contato com os textos literários. Daí resulta algumas questões:
O que conhecem os licenciados em Letras da obra de Machado de
Assis além de Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro?
Têm conhecimento, os jovens professores, da obra do romancista José
de Alencar, além dos romances Iracema, Guarani, Senhora e Lucíola?
Têm informação sobre o Olavo Bilac cronista ou suas informações
estão restritas a um ou dois poemas do escritor brasileiro? Têm notícia
sobre a ocorrência da produção em prosa de autoria feminina brasi-
leira, no Brasil oitocentista? E depois dos primeiros anos de formados,
quais os rumos tomados pelos professores? Como se dá a relação des-
ses docentes com os livros? Qual a periodicidade das leituras desse
profissional das letras? Quantos livros leem por ano? Reconhecem os
escritores brasileiros, contemporâneos? Se o encontro marcado entre
professores e a leitura literária está assíduo, bom sinal. Se não, como
podem os professores dar conta de convencer seus alunos para a reali-
zação de uma tarefa, se o mediador sequer conhece ou aprecia muito
pouco a prática a que propõe seu educando? Ou seja, como pretendem
os professores incentivar o hábito da leitura entre os alunos, se este não
faz parte do seu cotidiano?
Se avaliarmos esse panorama, verificamos que o panorama é
mais complicado do que parece. Não devemos cobrar dos alunos uma

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

postura que não temos, pois o caminho é de mão dupla e, quando afir-
mamos que temos muitos problemas para ministrar boas aulas, dentre
eles, que nossos alunos não leem, esquecemos-nos de reconhecer que
nosso déficit com a leitura existe e deve ser extinto.
Para refletir sobre o ensino de literatura devemos avaliar todos
os componentes dessa agremiação, composta além dos professores das
Instituições de ensino superior, dos outros atores que somam este sis-
tema: os professores da escola básica e seus alunos. E, por esta razão,
não esqueçamos que a responsabilidade maior cabe a nós, professores,
seja das universidades, seja do ensino médio, pois cabe a nós cumprir
o ofício de leitores profissionais e, portanto, capazes de identificar e
escolher um bom texto, reconhecendo não somente seu valor estético,
mas avaliando o lugar que esta produção ocupa perante os grupos capa-
zes de legitimar seu valor.
Entretanto, todas essas atribuições não são suficientes para
sustentar que a literatura tenha seu lugar garantido como disciplina
importante e valorizada, seja por professores ou alunos. Para conti-
nuar nossa reflexão, há ainda outros fatores aos quais devemos remeter,
como a necessidade de uma metodologia, a presença dos livros numa
sociedade díspar e a determinação dos interesses pela leitura.
Esses três itens são fundamentais para conduzir nosso papel de
professores, pois de nada adianta o conhecimento vasto de textos literá-
rios se o professor não fizer uso de um método. Todavia, tais experiên-
cias metodológicas e práticas docentes de caráter inovador incluindo a
inserção de tecnologias nos processos de ensino e aprendizagem dos
alunos não serão suficientes para conduzir o andamento das aulas, se
os docentes apenas tangenciarem o conhecimento das obras literárias
e ignorarem as realidades sociais dos discentes, sejam eles de clas-
ses privilegiadas ou menos favorecidas e, se pertencem a este último
grupo, aumenta a responsabilidade do docente em incentivar o acesso
à leitura, pois “é importante que as classes menos favorecidas tenham
acesso à cultura letrada, sob pena de manterem as diferenças sociais”.
(BORDINI & AGUIAR, 1993. p. 12).
É imperativo reconhecer, nesse contexto, que os jovens
leitores não assumem, também, as leituras que nós gostaríamos que
constituíssem sua prática. Grande parte do que escolhem para ler não

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

comportam obras conceituadas como Grande Literatura, mas sim


o que cai no gosto de todos e faz a moda do momento. Esse gosto,
geralmente, está diante do que é novo, dos textos publicados na
contemporaneidade e que alcançam os milhões de vendas. Ao aceitar
as particularidades dos anseios joviais, não supõe, entretanto, subtrair
do aluno a parte da Alta Literatura dos séculos passados, como a do
nosso século que não alcança tantos milhões assim. Se abatermos essa
parte do conhecimento do aluno, impediremos a visão da historicidade
da literatura, desconsiderando as formas lingüísticas e as conexões
com a tradição. Convém sim que aproveitemos a alfabetização cultural
de cada aluno, sem contudo abater dele, as opções variadas de leituras,
que incluem os clássicos no original, como também suas adaptações
que enriquecem o leque de cada um:
[...] é muito estranho que a Escola, o ensino pense o aluno como
uma página em branco e não faça nada para aproveitar a alfa-
betização cultural que ele traz, só porque esta é diferente – não
uma alfabetização de letrinhas, mas uma alfabetização cultu-
ral, oferecida, por exemplo, pela televisão. Quer dizer, o leitor,
de certa maneira, também está condenado à cultura e, portanto,
lê nos textos do passado elementos que a sua experiência cultu-
ral foi capaz de lhe oferecer.
Dentro disso tudo, qual é a singularidade da literatura, da cria-
ção literária? É uma coisa que tem de interessar a todo mundo
(BARBOSA, p. 24).
Enfim, os trabalhos em sala de aula, dirigidos a partir das
nossas cobiças pessoais e das nossas obrigações, devem estar norte-
ados pela competência e responsabilidade para com o magistério.
Especificamente, no caso das Letras, o nosso retrato diante da profissão
que abraçamos, é o real caso de amor que estabelecemos com os livros,
ou não. A nossa representação mais honesta é a galeria de livros com
os quais temos intimidade e os quais somos capazes de indicar e tornar
objeto de atração para os nossos alunos. No mais, se a nossa identidade
literária for uma página em branco, não conseguiremos obrigar, nem
tampouco convencer nossos alunos do direito que eles têm à leitura.
Portanto, de nada adianta aos professores a procura por fórmulas ou
soluções mágicas que tornem as aulas um verdadeiro altar de reverên-
cia, se cada docente não desempenhar sua profissão com a dedicação

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

e capacidade necessárias para obter os resultados desejados. Deve-se


ainda, questionar as práticas metodológicas que rebaixam o texto a um
segundo plano e apresentem ao aluno a costumeira e insistente asso-
ciação do texto às imagens, ao cinema e ainda às dramatizações do
próprio texto literário, como fórmula capaz de provocar o interesse do
aluno. A manutenção dessas práticas retira de cena o objeto próprio da
aula de literatura e o torna secundarizado, de uso restrito, resumido,
amputado e muitas vezes ausente. É diante desse cenário que Rildo
Cosson (CONSSON, 2009) afirma que estamos perante a falência do
ensino de literatura. Portanto, se ainda há empenho para discussões
que envolvam esta matéria, se estudiosos estão reunidos para dialo-
gar sobre metodologias, práticas e atuações acerca do ensino de litera-
tura, é porque permanecem os esforços para que esta não se transforme
numa matéria acessória, dispensável e obsoleta.
Para finalizar não quero deixar a impressão de que o profes-
sor é o único responsável pelo bom andamento da sala de aula, mas
reforço que ele é o agente primeiro, pois como mediador torna-se peça
primordial no trânsito com os alunos. Sei, igualmente, que cabe ainda
a reflexão sobre as condições em que muitos professores conduzem
suas aulas, sejam carentes na estrutura, seja no descaso das autoridades
que não privilegiam os ganhos monetários da profissão. Não obstante à
contramão dos descasos não devemos deixar de lado as iniciativas posi-
tivas, como os projetos de incentivo à docência, o empenho na aquisi-
ção de livros para as bibliotecas escolares e o estímulo à capacitação de
docentes16. Se aportarmos numa via de mão dupla, em que há esforços

16
Para a capacitação de docentes são relevantes as iniciativas como o PARFOR (Plano
Nacional de Formação de Professores da Educação Básica), que tem como objetivo
formar professores que atuam na educação básica e ainda não são graduados. Para a
realização da ação, há 90 instituições de educação superior, entre as quais estão refe-
ridas as universidades federais, as universidades estaduais e os institutos federais, que
gerenciam a oferta dos cursos. O plano concretiza a Política Nacional de Formação
de Professores, estabelecida pelo Decreto 6755/2009, que prevê um regime de coope-
ração entre União, estados e municípios, para a elaboração de um plano para a for-
mação de professores que atuam nas escolas públicas. A ação faz parte do Plano de
Desenvolvimento da Educação (PDE), em vigor desde abril de 2007. Outra iniciativa
de promover a melhoria dos professores é EAD (Educação a Distância) é a modalidade
educacional na qual a intervenção didático-pedagógica nos processos de ensino e apren-
dizagem acontece com o uso de meios e tecnologias de informação e comunicação, entre
estudantes e professores desenvolvendo atividades educativas em lugares e/ou tempos

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

das partes interessadas, como e porque justificar as pernas bambas da


nossa disciplina no ensino médio?
Assim sendo, não sei se por excesso de romantismo ou por
amor demasiado à profissão que abracei, ainda acredito que como pro-
fessores, somos responsáveis por nossas escolhas e livres para seguir
o caminho profissional, pois partindo do princípio que os pais, geral-
mente sonham com filhos que sejam médicos, advogados, engenheiros
ou dentistas, ser professor deve ter sido uma opção particular, sem dívi-
das para com a família, mas com débitos futuros, para com os alunos.
Portanto, para cumprir a frase célebre de Monteiro Lobato,
devemos principiar com pequenas ações: fazer que a nossa escola se
construa de homens e livros e assim, edificar uma nação literária, com
homens e livros numa interação fiel, cúmplice e profunda, que garanta
o espaço do leitor e da leitura literária. E, para retornar às questões sus-
citadas nas primeiras páginas deste capítulo, espero que já tenhamos
uma resposta para qual dos textos sugeridos, possa ser considerado
literário, ou não.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, João Alexandre. A Biblioteca Imaginária. São Paulo: Ateliê,


1996.
_______________. A Leitura do intervalo: ensaios de critica. São Paulo:
Iluminuras, 1990.
_______________. “Literatura nunca é apenas literatura”. In: http://www.
crmariocovas.sp.gov.br/pdf/ideias_17_p021-026_c.pdf
BLUTEAU, D. Raphael. Vocabulario Portuguez, & latino, aulico, anatomico,
architectonico (...), l.. ed. 1698. Suplemento Tomo I, Lisboa, 1727.
BONNICO, Thomas & ZOLIN, Lúcia Osana. Teoria Literária: abordagens
históricas e tendências contemporâneas. Maringá: Ed. da Universidade de
Maringá. p. 48, 2009.

distintos. Esta definição está presente no Decreto 5.622, de 19.12.2005, que regulamenta
o Art. 80 da Lei 9.394/96 (LDB). Essas informações constam no site
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=13583&Ite
mid=970.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

BORDINI, Maria da Glória; AGUIAR, Vera Teixeira. Literatura: a formação


do leitor (alternativas metodológicas). 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1993.
COSSON, Rildo. Letramento Literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2009.
LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo:
Ática, 2002.
_______________. Literatura: leitores & leitura. São Paulo: Moderna,
2001.
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Língua Portugueza. Lisboa, Typ
de Joaquim Germano de Sousa Neves, 1878, 7. ed.

ANEXO I.

Obras de Camilo Castelo Branco

Os Pundonores Desagravados (1845);


O Juízo Final e o Sonho do Inferno (1845);
Agostinho de Ceuta (1847);
A Murraça (1848);
Maria. Não Me Mates. Que Sou Tua Mãe (1848);
O Caleche (1849);
O Marquês de Torres Novas (1849);
O Clero e o Sr. Alexandre Herculano (1850);
Anátema (1851);
Inspirações, (1852);
Salve, Rei! (1852);
Mistérios de Lisboa (1854);
A Filha do Arcediago (1854);
Folhas Caídas apanhadas na lama (1854);
Livro negro de Padre Dinis (1855);
Cenas Contemporâneas (1855-56);
A Neta do Arcediago (1856);
Onde Está a Felicidade? (1856);
Um Homem de Brios (1856);

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

Lágrimas Abençoadas (1857);


Cenas da Foz (1857);
Carlota Ângela (1858);
Vingança (1858);
O Que Fazem Mulheres (1858);
O Morgado de Fafe em Lisboa (Teatro) (1861);
Cenas da Foz (1861);
A doida do Candal (1861);
Doze Casamentos Felizes (1861);
O Romance de um Homem Rico (1861);
As Três Irmãs (1862);
Amor de Perdição (1862);
Memórias do Cárcere (1862);
Coisas Espantosas (1862);
Coração, Cabeça e Estômago (1862);
Estrelas Funestas (1862);
Cenas Contemporâneas (1862);
O Arrependimento (1863);
Anos de Prosa (1863);
Aventuras de Basílio Fernandes Enxertado (1863);
Enxertado (1863);
A Gratidão (1863);
O Bem e o Mal (1863);
Estrelas Propícias (1863);
Agulha em Palheiro (1863);
Amor de Salvação (1864);
A Filha do Doutor Negro (1864);
Vinte Horas de Liteira (1864);
Memórias de Guilherme do Amaral (1865);
O Esqueleto (1865);
A Sereia (1865);
A Enjeitada (1866);
O Olho de Vidro (1866);
A Queda dum Anjo (1866);

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

O Santo da Montanha (1866);


O Salto da Montanha (1866);
A Bruxa do Monte Córdova (1867);
O Senhor do Paço Ninães (1867);
O Judeu (1867);
Os Mistérios de Fafe (1868);
O Retrato de Ricardina (1868);
Os Brilhantes do Brasileiro (1869);
A Mulher Fatal (1870);
Theatro comico: A Morgadinha de Val d’Amores; Entre a Flauta e a Viola
(1871);
A Infanta Capelista (1872);
Voltareis ó Cristo? (1872);
O Carrasco de Victor Hugo José Alves (1872);
O Regicida (1874);
A Filha do Regicida (1875);
A Caveira da Mártir (1876);
Novelas do Minho (1875-1877);
Eusébio Macário (1879);
A Corja (1880);
A senhora Rattazzi (1880);
Suicida (1880);
A Brasileira de Prazins (1882);
O vinho do Porto (1884);
O General Carlos Ribeiro (1884);
O Assassino de Macario (1886);
D. Antonio Alves Martins: bispo de Vizeu (1889);
Sá de Miranda (1894).

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

ANEXO II

OBRAS DE ADÉLIA PRADO:

POESIA:
- Bagagem, Imago – 1976;
- O coração disparado, Nova Fronteira – 1978;
- Terra de Santa Cruz, Nova Fronteira – 1981;
- O pelicano, Record – 1987;
- A faca no peito, Rocco – 1988;
- Oráculos de maio, Siciliano – 1999;
- A duração do dia, Record – 2010.

PROSA:
- Solte os cachorros, Nova Fronteira – 1979;
- Cacos para um vitral, Nova Fronteira – 1980;
- Os componentes da banda, Nova Fronteira – 1984;
- O homem da mão seca, Siciliano – 1994;
- Manuscritos de Felipa, Siciliano – 1999;
- Filandras, Record – 2001;
- Quero minha mãe, Record – 2005;
- Quando eu era pequena, Record – 2006.

ANTOLOGIAS:
Mulheres & Mulheres, Nova Fronteira – 1978;
Palavra de Mulher, Fontana – 1979;
Contos Mineiros, Ática – 1984;
Poesia Reunida, Siciliano – 1991 (Bagagem, O Coração Disparado, Terra
de Santa Cruz, O pelicano e A faca no peito);
Antologia da poesia brasileira, Embaixada do Brasil em Pequim – 1994;
Prosa Reunida, Siciliano – 1999.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

EM PARCERIA
A lapinha de Jesus (com Lázaro Barreto) - Vozes – 1969;
Caminhos de solidariedade (com Lya Luft, Marcos Mendonça, et al.) - Gente-   2001.

PARTICIPAÇÃO EM ANTOLOGIAS
- Assis Brasil (Org.). A poesia mineira no século XX. Imago, 1998;
- Hortas, Maria de Lurdes (Org.). Palavra de mulher, Fontoura, 1989;
- “Sem enfeite nenhum”. In Prado Adélia et ali. Contos mineiros. Ática, 
1984.

ANEXO III
Os trabalhos aqui listados estão elencados em ordem cronológica:
Fundamentos filosóficos da poética de Adelia Prado: subsídios antropológi-
cos para uma filosofia da educação. USP, 1996. (Dissertação de Mestrado) por
Cecilia Canalle; Lendo Bíblias em Adélia Prado, UFRJ, 1998. (Dissertação de
Mestrado) por Vania Cristina Alexandrino Bernardo;
Dialogismo e Polifonia em Adélia Prado. GEL - Grupo de Estudos Lingüísticos
do Estado de São Paulo, 2000. (Anais) por Mariza Norico Kitazono de
Carvalho;
Seis mulheres em verso. Cadernos Pagu, 2000. (Artigo) por Maria Lúcia Dal Farra;
A poesia e o sagrado: traços do estilo de Adélia Prado. USP, 2002. (Dissertação
de Mestrado) por Isabel de Andrade Moliterno;
Erotismo e Religiosidade na Obra de Adélia Prado. UEL, 2002. (Monografia)
por Viviane Maria Moraes Pinto;
O sagrado e o profano nas poéticas de Hilda Hilst e Adélia Prado.
Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2003. (Dissertação de Mestrado) por
Goimar Dantas de Souza;
A Comunicação na Prosa poético-jornalística de Adélia Prado. PUC/SP,
2003. (Tese de Doutorado) por Janne Marcia Augusto Paiva;
Epifanias do real: o olhar lírico de Adélia Prado. UEFS, 2004. (Dissertação
de Mestrado) por Claudilis da Silva Oliveira;
O verbo divino de Adélia prado: poesia. Vértices, 2004. (Artigo) por Vania
Cristina Alexandrino Bernardo;
A poesia de Adélia Prado: um poder infernal. PUC/SP, 2005. (Dissertação de
Mestrado) por Neusa Cursino dos Santos Steiner;

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

O carpe diem horaciano na poesia de Adélia Prado. CIELLI/UEM, 2007.


(Anais) por Cristian Pagoto e Aécio Flávio de Carvalho;
A representação da dor na linguagem poética de Adélia Prado. UFBA, 2007.
(Monografia) por Altamirando Monteiro Santana Junior;
Adélia Prado: itinerário até bagagem – esboço da escritora quando jovem.
Revista UEPG, 2007. (Artigo) por Ubirajara Araujo Moreira; 
O feminino na prosa de Adélia Prado. CESJF, 2008. (Dissertação de Mestrado)
por Ana Lúcia de Mello;
Poesia e individuação: a transcendência na obra de Adélia Prado. SBPA,
2009. (Monografia) por Maria do Carmo Viegas Araújo;
Poesia e Poética de Adélia Prado. UFPB, 2009. (Monografia) por Sônia
Tavares de Luna;
As faces da morte no universo poético de Adélia Prado. UFPA, 2009. (Trabalho
de conclusão de curso) por José Feliph do Nascimento Sousa;
A sensualidade feminina nos olhos de Adélia Prado e Carlos Drummond.
Funec, 2009. (Monografia) por Alessandra Cristina Vieira;
Dialogia contemporânea: entrecruzamento de vozes entre Adélia Prado, can-
tares de Hilda Hilst e Cântico dos Cânticos. Revista de Educação, Linguagem
e Literatura da UEG-Inhumas, 2010. (Artigo) por Sueli de Fátima Alexandre;
A religiosidade na poesia de Adélia Prado. UENP, 2010. (Trabalho de conclu-
são de curso) por Dirlei Alves do Carmo;
O estilo da narradora de “solte os cachorros”: uma abordagem sociolinguís-
tica. V Colóquio Internacional – Educação e conteporaneidade, 2011. (Artigo)
por Jossineide Maria de Souza e Ana Paula Barbosa Andrade;
Um imaginário noturno: “o mundo poético” de bagagem de Adélia Prado.
Revista Letras, UFSM. (Artigo) por Letícia Raimundi Ferreira;
Na linguagem poética de Adélia Prado a expressão teológica: relações do
eu-lírico com Deus. Teoliterária, 2011. (Artigo) por Marco Antonio Palermo
Moretto;
Inspiração e poiésis na poesia de Adélia Prado. UFMG, 2011. (Anais) por
Evaldo Balbino; A voz do feminino na poesia contemporânea de Adélia
Prado, Adriana Calcanhoto e Angélica Torres. UNB, 2011. (Dissertação de
Mestrado) por Ismênia Pereira da Costa Santana;
A mística da cozinha: de Heráclito a Adélia Prado. IJI-Universidade do Porto,
2011. (Artigo) por Jean Lauand; Adélia Prado: poética e modernidade. UERJ,
2011. (Dissertação de Mestrado) por Heloisa Valeria Mangia Torres.

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LITERATURA PARA ALÉM DO ENSINO: O TEXTO
LITERÁRIO COMO FORMADOR DO SUJEITO
Rosanne Bezerra de Araújo
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Paulo Henrique da Silva Gregório
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Valeska Limeira Azevedo Gomes
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

1. LITERATURA: UMA EXPERIÊNCIA HUMANA

O presente artigo aborda o sentido da literatura na formação


cultural do indivíduo, bem como a importância do desenvolvimento
da capacidade crítica do leitor, tomando por base ideias de estudiosos
como Antoine Compagnon, Antonio Candido e Tzvetan Todorov. Este
último, filósofo e linguista búlgaro radicado na França desde 1963, é
autor de várias obras na área de pesquisa linguística e teoria literária.
Seu pensamento inicial mantinha o foco na crítica literária e filosofia
da linguagem, seguindo a linha estruturalista de Roland Barthes. Em
um segundo momento, o crítico desenvolveu pesquisas sobre a alteri-
dade, sobre as diferenças entre grupos sociais e culturais. A partir de
então, sua visão um tanto formalista e estruturalista da literatura foi
abrindo espaço para a relação entre literatura e o meio social no qual
ela se desenvolve.
Em seu livro A literatura em perigo, publicado em 2007,
Todorov expõe a sua preocupação diante da forma como se enca-
minham os estudos literários. A literatura por ela mesma parece ser
eclipsada, dando lugar a outros discursos que afastam o texto lite-
rário do real. Esse estudioso reivindica, então, o valor da literatura,
pois somente ela parece ser capaz de preencher a existência humana
de sentido, ampliando o nosso universo e incitando-nos “a imaginar
outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo” (TODOROV, 2010, p. 23).
Diante disso, a proposta deste artigo é a de promover uma reflexão
acerca do texto literário como centro do processo educacional, princi-
palmente nos cursos de literatura. Conforme Todorov, o estudo da lite-
ratura tende a se tornar mais científico, distanciando-se da sociedade,
a partir do surgimento das correntes formalista e estruturalista. Desde
então, a ligação da literatura com o seu contexto histórico-social vem
sendo rompida e, consequentemente, o aluno é iniciado no estudo lite-
rário por meio do contato com textos de crítica, de história literária, em
vez do texto literário propriamente dito. É válido ressaltar, entretanto,
que, longe de criticar o formalismo-estruturalismo, buscamos um

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

equilíbrio entre a recepção do texto literário e a vida contemporânea.


Acreditamos que, para além de uma abordagem interna da obra, o leitor
deve compreender a significação da obra e o contexto que a envolve.
Ainda em A literatura em perigo, Todorov escreve sobre a
ameaça que paira em relação ao valor da literatura, quando esta passa a
ser estudada como um pretexto para servir a áreas como a sociologia, a
psicologia, a historiografia, a linguistica, além de outras. Certamente, é
possível se realizar uma análise psicológica de textos de Virginia Woolf,
por exemplo, mas é preciso que essa análise complemente a riqueza do
texto literário e não se sobreponha a ele. O mesmo ocorre com a aná-
lise linguística/semiótica do texto. É possivel detalhar a poeticidade do
texto, as imagens construídas através da relação paradigmática/sintag-
mática nele contida, porém não se deve privilegiar as ferramentas de
análise utilizadas pelo crítico em detrimento da natureza humana do
texto literário, o qual deve ser experimentado como uma vivência do
leitor, um evento, pois cada leitura é um acontecimento, um ganho de
valores, de uma vivência poética.
É diante dessa ameaça, ou seja, do perigo de as ferramentas
críticas (narratologia, sociologia, historiografia, filosofia, dentre outras)
comprimirem a humanidade presente no monumento literário que o
livro de Todorov se impõe como uma elegia à literatura: a literatura
por ela mesma. Em um dos capítulos, o autor avalia como a literatura
vem sendo estudada nas escolas francesas, uma vez que seus próprios
filhos são alunos de uma dessas escolas. Verifica-se que os professores
exigem um conhecimento sobre o texto e não do texto literário. Isso
significa que a crítica passa a se tornar mais importante, e a voz literá-
ria termina servindo de pretexto para confirmar aquele discurso crítico
guiado pelo professor. Essa experiência real de aprendizado dos seus
filhos na escola foi o que inspirou Todorov a escrever A literatura em
perigo.
Se fôssemos escrever uma elegia à literatura, começaríamos
defendendo que a literatura nos proporciona uma vida paralela a nossa.
A literatura nos faz viver, sentir, amar, temer, sofrer, regozijar através
de seus personagens e das histórias que eles vivenciam. Quem nunca se
emocionou ao ler uma grande obra da herança cultural da humanidade?
Vivemos a angústia de Hamlet diante da descoberta do assassinato

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

do seu pai e torcemos para que o assassino seja devidamente punido.


Sonhamos acordados como Segismundo em La vida es sueño, de
Calderón de la Barca, e confundimos o real com o sonho, como acon-
tece com Quixote, o herói de Cervantes. O leitor busca uma Dulcinéia,
um amor, um evento em sua vida, assim como se passa com persona-
gens de inúmeras obras. Por isso, é possível afirmar que vivemos uma
vida paralela. Mergulhamos no mundo sombrio de Dostoievski com
Raskólnikov, em Crime e castigo, até tocarmos o fundo, assim como
chegamos a sentir o gosto amargo da náusea sartreana através do per-
sonagem Antoine Roquentin que descreve as paredes amareladas do
Café, comparando-as à cor do queijo.
A literatura parece abrir os nossos sentidos para o mundo. O
conhecimento humanístico é indispensável para que o indivíduo possa
ver o seu presente com um olhar crítico amadurecido sobre a realidade.
As palavras de Ítalo Calvino, em Por que ler os clássicos, a respeito da
obra de Gadda, descrevem bem essa relação entre mundo/literatura. O
mundo, assim como uma alcachofra, oferece a possibilidade de ser des-
folhado continuamente até o infinito. A literatura pode ser desfolhada
através de leituras novas que descortinam e abrem novas dimensões e
interpretações para o leitor (CALVINO, 1995, p. 205).
A literatura lida com a condição humana, com a natureza do
homem, sua mortalidade e o mistério de sua existência, expondo as
relações entre os homens em sociedade, bem como a sensação de aco-
lhimento ou estranhamento do homem em relação ao mundo.
Assim como o texto literário possui o poder de elevar o nosso
espírito, também pode fazer o leitor despertar para o vazio que o cir-
cunda e para questionamentos metafísicos insondáveis. De fato, através
dos textos literários, podemos ver a vida de forma singular a cada leitura
realizada, pela lente dos livros. Sentimos que vivemos numa realidade
árida e hostil, mas a exemplo de nossos heróis e heroínas como Fausto,
Hamlet, Anna Karenina, Stephen Dedalus, Raskólnikov, Robinson
Crusoé − só para citar alguns personagens da literatura universal –,
seguimos adiante, em busca de um evento, através do misto de fatos
escritos e fatos reais. Buscando dizer a si mesmo, o poeta/escritor
encontra sempre, na linguagem, a alteridade.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

2. LITERATURA NO ENSINO: PARA QUÊ?

Há quem discuta acerca da necessidade de se estudar o texto


literário e da relevância que tal estudo possa ter para a nossa vida. É
comum, inclusive, encontrarmos publicações cuja proposta é tentar
encontrar uma resposta para a pergunta: “para que serve a literatura?”.
No contexto escolar, em que muitos alunos se mostram insatisfeitos
com a ideia de estudar o texto literário, por não enxergarem uma apli-
cabilidade palpável dessa prática, tal discussão atinge proporções mais
abrangentes. Quanto ao professor, este muitas vezes não sabe como
proceder diante dos desafios de abordar a literatura em sala de aula
e promover discussões que possam vir a desenvolver a competência
dos alunos enquanto leitores. Os livros didáticos, por sua vez, mui-
tas vezes direcionam o foco para a história da literatura, enquanto o
texto literário serve apenas para ilustrar características específicas de
um dado movimento. Vemos, assim, que a problemática que gira em
torno do ensino da literatura envolve vários elementos. Partindo des-
sas questões, torna-se pertinente trazer à tona a relação entre literatura
e a forma como ela costuma ser trabalhada em sala de aula, levando
em consideração uma suposta finalidade do texto literário, a visão que
os alunos, em geral, têm de seu estudo, e, também, as condutas do
professor. Para realizarmos essa reflexão, tomamos como base, princi-
palmente, algumas ideias de Antoine Compagnon (2009) presentes na
obra Literatura para quê?, na qual o referido estudioso discute assuntos
como os valores que a literatura transmite ao mundo, a sua utilidade
para a vida e a necessidade de inseri-la no contexto escolar.
A tentativa de definir o que é literatura e qual a função que esta
exerce na sociedade é frequente entre os críticos. Por ser tão ampla e
rica, a literatura não cabe em nenhuma definição. Afinal, que conhe-
cimento é esse que só a literatura consegue dar ao homem? Qual defi-
nição humanista abrange o monumento literário? E qual a sua função?
Como bem afirma Compagnon (2010, p. 34), a literatura possui uma
função individual e social e pode ser caracterizada como sendo a puri-
ficação de emoções, tais como o temor e a piedade, de acordo com o
pensamento de Aristóteles. O conhecimento literário é, portanto, um
conhecimento humano que nos permite compreender o comportamento

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

das pessoas e a vida social. Diferentemente do conhecimento filosó-


fico e científico, o conhecimento literário não busca uma verdade,
pois a literatura é a própria verdade. Em outras palavras, a literatura
é a verdade que somos, uma humanidade repleta de contradições, de
acúmulo de experiências diante das vicissitudes do amor, da vida e da
morte. A literatura é a própria vida, é o retrato da existência humana
com suas guerras, conflitos, paixões e regozijos. É esse sentido da lite-
ratura que devemos passar para nossos alunos, mostrando-lhes que o
texto literário traz um ensinamento sobre nós mesmos.
Diante do mundo prático e mecanicista em que vivemos hoje,
juntamente com o advento dos aparatos tecnológicos − internet, filmes,
televisão, jogos etc. -, obviamente a sedução pelo mundo da leitura é
prejudicada. No contexto do século XXI, o texto literário perde espaço
para tais aparatos por meio dos quais as pessoas têm acesso a inúme-
ras informações que são, muitas vezes, rapidamente assimiladas e, em
certos casos, descartadas com semelhante rapidez. Diferentemente, a
experiência de leitura de uma obra literária – seja um romance como
Crime e Castigo ou uma peça como Hamlet –, exige um esforço maior
por parte do leitor, no que diz respeito à percepção dos elementos trazi-
dos à tona na obra e dos sentidos que se escondem nas suas entrelinhas.
No texto clássico O narrador, Walter Benjamin (1994) dis-
cute acerca da desvalorização das narrativas orais, que vêm perdendo
espaço para os veículos de informação e, mesmo, o romance, o qual,
segundo esse estudioso, vai de encontro ao aspecto coletivo das nar-
rativas orais por ser vinculado ao livro, tratando-se, portanto, de uma
experiência individual. Parece pertinente acrescentarmos a esse pensa-
mento benjaminiano a ideia de que, se o romance foi um dos indícios
de que a narrativa oral estava em vias de extinção, o próprio romance –
juntamente com outros gêneros literários - encontra-se ameaçado pelo
avanço cada vez mais acelerado da tecnologia.
O desafio do professor de Literatura é, desde cedo, despertar
nos alunos a noção de que é preciso haver um equilíbrio entre a necessi-
dade de acompanhar os constantes avanços tecnológicos e a necessidade
de dedicar tempo à leitura de obras literárias, as quais nos convidam a
vivenciar uma verdadeira experiência humana. No contexto escolar, tal
estímulo à prática da leitura envolve o trabalho do professor, que deve

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

atuar como principal divulgador da relevância que a literatura tem na


nossa vida, e dos pais dos alunos, que devem assumir, primeiro, o papel
de leitores, para, a partir daí, poderem transmitir aos filhos a ideia de
que ler obras literárias é algo prazeroso.
Há várias estratégias que podem ser utilizadas na escola, como
dramatização do texto literário – principalmente quando se tratar de
um texto literário cujo gênero é o dramático –, leitura de poemas, gru-
pos de leitura organizados pelo professor, bem como o trabalho com
o texto literário associado a atividades que incentivem a reflexão do
aluno acerca de sua forma, conteúdo e sentido. Esses são mecanismos
que, no nosso entendimento, podem despertar, de maneira eficaz, o
gosto dos alunos pelas obras literárias, incentivando-os a enxergar a
experiência de leitura como uma experiência humana, e não algo que
deva ser desconsiderado, por não ter nenhuma “utilidade” prática.

3. LITERATURA: UM DIREITO DE TODOS

A ideia do desenvolvimento tecnológico como meio de estimu-


lar o desinteresse de alunos para os textos literários nos direciona para
outra discussão. Mesmo com o avanço tecnológico, com o crescimento
urbano e com a inserção das mídias no cotidiano informacional do
homem nos tempos modernos, não foi possível superar as dificuldades
a que grande parcela da população está sujeita, como a fome, a má
distribuição de renda, a falta de possibilidades culturais e de educa-
ção, além de outras. Ou seja, a massa condenada à miséria é excluída
desse desenvolvimento por que passa o mundo. Se, por um lado, há o
progresso, por outro, abre-se um fosso entre esse e o acesso à literatura
e à educação. É refletindo sobre essas questões que Antonio Candido
(1995) estabelece relações entre os direitos humanos e a literatura,
mostrando que esses direitos incluem a luta por um estado de acesso de
todos aos diferentes níveis de cultura.
Ao mesmo tempo em que chegamos a um nível máximo de
racionalidade técnica e domínio sobre a natureza, permanecemos,
ainda, com um nível alto de irracionalidade, quando se trata de garan-
tirmos às massas não só comida ou moradia, por exemplo, mas também
o acesso à cultura e, de modo especial, à literatura. Com o progresso

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

industrial, aumentamos o conforto, mas excluímos dele grandes con-


tingentes populacionais, condenados à miséria. Essa situação é ainda
mais evidente no Brasil, pois a distribuição de bens é extremamente
desigual.
Sempre pensamos que o saber, a instrução e a técnica condu-
zem à felicidade coletiva. No entanto, mesmo as linhas promissoras
da História – a saber: Liberalismo e Socialismo – falharam. Afinal, a
barbárie parece predominar no decorrer da História. A grande barbá-
rie do nosso tempo é saber que é possível encontrar a solução de tan-
tos problemas e, no entanto, não haver um empenho significativo dos
aparelhos ideológicos de Estado para que haja uma mudança. Trata-se
da dificuldade em transformar a possibilidade teórica em prática, em
realidade.
Mas, apesar de todo esse pessimismo, Antonio Candido (1995)
observa que o pensamento está mudando e que estamos caminhando
para o despertar da consciência. A hipocrisia generalizada do discurso
político é um exemplo disso. O discurso incorporou as afirmações de
esquerda, mostrando que não é mais indiferente ao sofrimento alheio.
Candido (1995) chega a pensar na possibilidade de um progresso em
relação ao sentimento do próximo, no intuito de provocar a reflexão
sobre os direitos humanos. Pensar em direitos humanos implica reco-
nhecer que aquilo que é importante e indispensável para nós também
o é para o próximo. Mas é preciso ter consciência e passar por uma
autoeducação para se pensar dessa forma.
E o que é indispensável ao ser humano? Candido (1995) cita
Joseph Lebret, fundador do movimento “Economia e Humanismo”,
que atuou no Brasil entre os anos 1940 e 1960. Este sociólogo fran-
cês estabeleceu uma distinção entre os bens compressíveis e os bens
incompressíveis: os primeiros são dispensáveis, a exemplo dos cosmé-
ticos, enfeites, etc; os incompressíveis são bens indispensáveis, que não
podem ser negados a ninguém, como o alimento, a casa, a roupa.
E a literatura? Seria a literatura um bem incompressível ou
não? Admitir que a arte, o lazer, a literatura e o desenvolvimento do
pensamento crítico são indispensáveis ao semelhante exige um esforço
da classe favorecida. Para Candido (1995) os bens incompressíveis não
são somente aqueles que asseguram a sobrevivência física, mas os que

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

garantem a integridade espiritual. Assim, são incompressíveis o direito


à opinião, ao lazer à arte e à literatura.
A literatura é necessária ao equilíbrio social do homem assim
como o sonho é necessário ao equilíbrio psíquico, ou seja, a literatura é
uma necessidade universal, e, portanto, um direito humano. Sua função
é a de recriar a realidade no texto, sendo este uma forma de expressão,
uma forma de conhecimento. A literatura corresponde a uma necessi-
dade universal que deve ser satisfeita, sob pena de mutilar a personali-
dade. Ela pode ser um instrumento consciente de desmascaramento de
situações como a miséria, a servidão e a mutilação espiritual. Por isso,
é preciso tornar a fruição da literatura um bem indispensável a todos. É
necessário que a literatura erudita deixe de ser privilégio de pequenos
grupos.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelo fato de a leitura de uma obra literária nos proporcionar


uma experiência humana – seja nos levando a uma reflexão sobre nós
mesmos ou sobre a sociedade – consideramos a literatura um meca-
nismo de formação do sujeito. Nesse processo formador por meio da
literatura, faz-se necessário, em primeiro lugar, atentarmos para as
observações de Todorov, e priorizarmos a nossa própria experiência
de leitura, antes de nos deixarmos influenciar pela leitura de outrem,
a qual deve ser somada a nossa, mas nunca substituí-la. Um segundo
ponto para o qual devemos atentar é a maneira como essa visão da
literatura como experiência humana é disseminada no contexto esco-
lar, tendo em vista a relevância deste, quando se trata de formar bons
leitores. Nesse sentido, cabe ao professor e aos pais incentivarem os
alunos a lerem obras literárias, despertando-lhes o interesse por esse
tipo de leitura, o qual se encontra ameaçado pelo fluxo constante de
informações oferecidas pelos mais diversos aparatos tecnológicos, com
os quais os alunos, cada vez mais cedo, têm contato. Por fim, deve-se
buscar tornar mais acessível essa literatura para além dos limites da
escola, possibilitando que a população de baixa renda – que, muitas
vezes tem de se contentar com uma casa para morar, comida e bebida
na mesa, ou seja, com os bens considerados incompressíveis –, também

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

tenha direito a desfrutar da formação humana que a literatura tem a


nos oferecer.

REFERÊNCIAS

ADORNO, T. W. Educação e emancipação.  4. ed. Trad. Wolfgang Leo Maar.


São Paulo: Paz e Terra S/A, 2006.
BENJAMIN, Walter. “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai
Leskov”. In: ________________. Magia e técnica, arte e política: ensaios
sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 197-221.
CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
CANDIDO, Antonio. “O direito à Literatura”. In: ______. Vários escritos.
São Paulo: Duas Cidades, 1995. p. 235-263.
COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê? Trad. Laura Taddei Brandini.
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2009.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2009.
PINHEIRO, Hélder. Poesia na sala de aula. João Pessoa: Ideia, 2002.
TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Trad. Caio Meira. Rio de
Janeiro: DIFEL, 2010.

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POR QUE (NÃO) PRECISAMOS LER
(E ENSINAR) LITERATURA?
Carmen Sevilla Gonçalves dos Santos
Universidade Federal da Paraíba

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

No seu texto sobre autoridade na escola, Yves de La Taille


conta que não é raro um aluno perguntar na sala de aula: “Para que
serve o que o senhor ou a senhora está procurando me ensinar?”. O sen-
tido dessa indagação costuma ser pragmático, explica o autor. Contudo,
quando o aluno pergunta: “Para que serve ler Machado de Assis?”, ele
diz: “[...] penso que devemos responder francamente: para as exigências
concretas do dia-a-dia, nada! Em compensação, para podermos fugir
desse cotidiano, cujo peso acaba por asfixiar a todos, é ótimo ler uma
boa literatura [...]” (1999, p. 25).
O pensamento do estudioso da psicologia cognitiva problema-
tiza algo que já conhecemos: “como ensinar ou justificar o ensino da
literatura, cujo interesse nela deveria ser intrínseco, todavia, não o é?”.
Esta é, sem dúvida alguma, uma questão de âmbito interdisci-
plinar, pois envolve não somente os planos didáticos, mas os psicológi-
cos (cognitivo e afetivo), literários, sociológicos, antropológicos, para
citar os mais evidentes.
Na busca de ao menos discutir esta indagação, uma vez que
respondê-la não cabe nos limites deste trabalho, convidamos o leitor
a fazer um zoom de modo a focalizar a (não) necessidade de lermos (e
ensinar) literatura pela interface da Antropologia Literária, proposta
por Wolfgang Iser e a Teoria Sociocultural do Desenvolvimento e da
Aprendizagem, da perspectiva de Lev S. Vygotsky
É importante neste momento sermos movimentados pelos
novos ventos que têm dirigido e motivado uma Antropologia Literária
que busca responder indagações, algumas delas formuladas já na Teoria
do Efeito Estético. Como work in progress, a Antropologia Literária
tem ainda muito que refletir, antes sobre as perguntas que julga perti-
nentes a uma teoria literária do que acerca de determinadas respostas
que acredita ter encontrado. O fato é que quer seja através de uma teo-
ria do efeito estético, quer seja através de uma antropologia literária, a
contribuição de Wolfgang Iser à teoria da literatura é inegável e faz de
seu mentor um homem admirado até por seus antagonistas.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

1. NO PRINCÍPIO ERA A TEORIA DO EFEITO ESTÉTICO

É preciso sintetizarmos, ainda que muito rapidamente, a teoria


do efeito estético antes de adentrarmos na Antropologia Literária, uma
vez que esta se depreende daquela.
Para W. Iser, o efeito é compreendido como o processo e o
resultado da interação texto e leitor. Deste modo, o efeito não é exclu-
sivo nem do texto nem do leitor; antes, os efeitos estão em potência no
texto e se atualizam através da leitura. É importante considerar a dis-
tinção estabelecida por Iser (1974), a partir da qual os efeitos dos textos
literários serão por ele teorizados: o polo do texto e o polo do leitor. O
conceito de comunicação permeia toda a teoria do efeito estético, por
isso o texto literário interviria no mundo, nas estruturas sociais domi-
nantes e na literatura existente.
É importante ter em mente que a expressão “interação texto e
leitor” se trata de uma metáfora, pois o leitor ao qual o teórico alemão
faz referência é o leitor implícito, ou seja, as estruturas textuais do texto
que apresentarão os vazios a serem preenchidos. O leitor implícito não
é igual à ficção do leitor (= leitor fictício = leitor modelo), embora
ambos estejam figurados na estrutura textual.
Assim, é possível inferirmos o tipo de liberdade vivenciada
pelo leitor (real). Resquícios de uma postura imanentista são detectá-
veis quando o conceito de leitor implícito supõe as condições de atua-
lização do texto inscritas na estrutura textual. Quando Iser (1996, v.1,
p. 73) diz que “a concepção do leitor implícito enfatiza as estruturas de
efeitos do texto, cujos atos de apreensão relacionam o receptor a ele”,
fica nítida a ênfase de sua investigação no polo artístico, pois é através
do leitor implícito - pertencente à estrutura textual - que o leitor (real)
é relacionado ao texto. O leitor (real) se relaciona ao texto unicamente
pelo texto, salve-se a necessidade da repetição da palavra texto.
O significado de uma determinada obra é apresentado pela res-
posta à indagação acerca do que acontece ao leitor quando, através da
leitura, dá sentido aos textos de ficção. Esta questão torna-se a mola
propulsora não apenas da teoria proposta por Iser, mas dos estudos
da estética da recepção de cunho histórico ou normativo (SANTOS,
2009).

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

Afunilando ainda mais a pergunta sobre a função de textos


literários em seu contexto, Iser postula que o efeito produzido pelos
textos literários libera um acontecimento. A investigação em torno
dessa elaboração é o interesse central de uma teoria do efeito estético.
Para descrever o efeito estético é necessário analisar o processo de lei-
tura, uma vez que tal efeito é evidenciado apenas ao se ler o texto.
Tal descrição implica, portanto, em observar os processos provocados
pelos textos literários.
O efeito estético acontece na relação dialética entre texto
(reformulação de uma realidade já formulada), leitor e sua interação.
O adjetivo “estético” indica as propriedades imaginativas e perceptivas
do leitor. Para Iser (1996, v.1, p. 17), “uma tarefa da teoria do efeito
seria [...] ajudar a fundamentar a discussão intersubjetiva de processos
individuais de sentido da leitura, bem como a da interpretação”.
O caráter virtual da obra é um pressuposto inicial de suma
relevância para o desenvolvimento dos demais construtos na teoria do
efeito estético, pois, nessa virtualidade, se garante o seu aspecto inte-
racional. Por isso, Iser (1996, v.1) adverte para não se perder a primazia
da relação texto e leitor, evitando a concentração do estudo em apenas
um dos polos, o que acarretaria o desaparecimento da obra.
De acordo com Borba (2003), a vivência de um efeito de sig-
nificado (ou experiência estética), transfigurada em uma significação
(resposta à experiência estética, permitindo um repensar das normas do
contexto pragmático do sujeito leitor), seria um dos pontos mais impor-
tantes da teoria do efeito. A permissão para a passagem - do significado
à significação - seria indício da impossibilidade de o conceito de leitor
implícito ser compreendido fora do processo comunicativo.
A relevância da mudança de questão sugerida pelo novo para-
digma é assim revelada: ao invés de “qual é o significado da obra?”
ou “o que ela quis dizer?”, interessa agora “o que acontece ao leitor
quando, com sua leitura, atualiza os textos ficcionais?”. Desse modo,
a significação passa a ter uma estrutura de evento e não mais de ver-
dades pré-dadas a serem descobertas. A significação é, em si mesma,
um evento não relacionado à denotações de realidades empíricas ou
inferidas.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

Stierle (2002) converge em nossa direção, quando aponta a


formulação iseriana como uma teoria “cujas constantes se encontram
apenas no lado do próprio texto. Em Iser, as constantes são sempre – e
apenas – constantes do texto, que têm a função de gerar as variáveis
da recepção”. Luiz Costa Lima (2002), por seu turno, entende o leitor
implícito como solicitante de um leitor ideal capaz de reconstruí-lo.
Esta depreensão é feita porque não é qualquer leitor que consegue se
pôr em implicitude. Logo, entendemos o conceito de leitor implícito
como elo de comunicação entre texto e leitor somente para certos leito-
res (SANTOS, 2009).
É nesta brecha que associar Wolfgang Iser a um teórico do
quilate de Lev S. Vygotsky, psicólogo da educação, com o intuito de
inserir o leitor (real) em suas formulações, parece-nos uma instigante
ideia para a concreção de estratégias mobilizadoras que impliquem
num (re)pensar sobre o ensino da leitura de literatura.
Antes ainda de passarmos para a articulação sugerida
acima, mostraremos em que desembocou a teoria do efeito estético: a
Antropologia Literária.

2. ...E FEZ-SE A ANTROPOLOGIA LITERÁRIA

A reflexão propiciada por suas formulações permitiu a assun-


ção por Iser (1999a) de que novos caminhos precisavam ser trilhados em
busca das respostas às perguntas propiciadas pela teoria do efeito esté-
tico. Interessada no engajamento do leitor numa atividade que envolve
um fingimento, a teoria iseriana trata dos atos impulsionados por tal
fingimento, mesmo sendo este uma ilusão. O fato de empenharmo-nos
em “atos de fingir” nos denuncia como apreciadores da vivência de
ilusões. Depreende-se que a vivência do fingimento, por assim dizer,
pode revelar algo sobre nós.
Iser (1999a) constata que a transposição de foco do autor para
o leitor passou a ser um requisito importante numa teoria que buscava
considerar o que havia sido negligenciado ou, até mesmo, ignorado
por uma estética da produção. Investigar o que acontece quando lemos
tornou-se, portanto, indispensável para uma teoria que percebe o leitor
enredado no texto e capaz de observar seu próprio enredamento. Em

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

outros termos, os seres humanos parecem precisar desse tipo de fingi-


mento. Sendo assim, Iser (1999a) afirma que:
Em face dessa aparente necessidade, ou se reconhece que uma
teoria do efeito não pode mais explicá-la, ou se amplia essa
mesma teoria a tal ponto, que o estudo do processamento do
texto dá lugar a um estudo do que o meio pode revelar acerca
das disposições que caracterizam a constituição humana. Nesse
segundo caso, uma antropologia literária seria um desdobra-
mento direto da teoria do efeito estético, uma vez que procura
responder a perguntas que esta última formulou, mas deixou
sem resposta (ISER, 1999a, p. 66).
Isso é necessário, sobremodo, por conta de nossa articulação
com a Teoria Sociocultural, pois é possível vislumbrar que nesta esfera,
a da Antropologia Literária, a teoria vygotskiana mostra-se útil para,
através do leitor de literatura, exibir com ela uma interface.
Igualmente relevante é a constatação de que os planos propos-
tos por Vygotsky para a análise do comportamento e do funcionamento
mental abrangem com inteireza o projeto iseriano, tanto aquele postu-
lado na teoria do efeito estético, como o previsto para uma Antropologia
Literária. Cada um dos processos necessários e desencadeados no ato
da leitura é envolvido pelo plano microgenético (concernente à “con-
figuração única das experiências vividas por cada indivíduo em sua
própria história singular”). O plano sociogenético, por sua vez, englo-
baria a história da recepção literária de cada grupo cultural, ao passo
que o nível da ontogênese revelaria a evolução dos efeitos da leitura
na história dos indivíduos integrantes dos grupos culturais. Por fim,
o plano da filogênese relacionar-se-ia à necessidade antropológica de
ficcionalizar. Se o plano mais abrangente, o filogenético, englobaria
todos os outros, o menor deles, o microgenético, contém, por sua vez,
o nível filogenético, pois as “microatividades” desenvolvidas no ato de
ler já fazem parte dessa necessidade antropológica de ficcionalização
(SANTOS, 2009).
Com o intuito de “compreender a auto interpretação humana
que se faz por meio da literatura”, foi necessário o delineamento de
uma heurística que cobrisse duas condições prévias: a de mapear o
novo território e a de estar ligada “àquelas disposições humanas que
também constituem a literatura” (ISER, 1999a, p. 66). Iser apontou o

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fictício e o imaginário como termos pertinentes a esta heurística, visto


que preenchem as condições mencionadas. O fictício e o imaginário
são de naipe antropológico, portanto, não se restringem à literatura.
A interação entre eles é regulada pelo jogo e somente na interação
contextual é que podem ser delimitados, em virtude de não possuírem
determinação transcendental (ISER, 1999a; 2002).
Para discutir a ficcionalidade dos textos ficcionais, a partir de
uma justificação heurística baseada na relação ternária entre real, fic-
tício e imaginário – oposta ao “saber tácito”, que compreende os tex-
tos ficcionais como aqueles não relacionados à realidade –, Iser (1983;
1993) empreende uma interessante linha argumentativa. A repetição
da realidade dentro do texto ficcional não se esgota na referência; ela
é, então, um ato de fingir. O fingir, por outro lado, não pode ser infe-
rido dessa realidade que se repetiu. Logo, se faz necessário um elo
que se relacione à realidade repetida, a saber, o imaginário. O ato de
fingir adquire, portanto, sua função primordial: “provocar a repetição
no texto da realidade vivencial, por esta repetição atribuindo uma con-
figuração ao imaginário, pela qual a realidade repetida se transforma
em signo e o imaginário1, em efeito do que é assim referido” (ISER,
1983, p. 385-386).
De acordo com Iser (1983), não faz mais sentido a oposição
entre real (“mundo extratextual, que, enquanto faticidade, é prévio ao
texto”) e fictício (“ato intencional, para que, acentuando o seu ‘cará-
ter de ato’, nos afastemos do seu caráter, dificilmente determinável, de
ser”).2 Isto porque tal imposição, ao considerar o ato de fingir como
transgressão de limites, não pode mais suportar um sistema referen-
cial. Tendo os atos de fingir funções determináveis, infere-se, pois, que
eles podem ser apreendidos. Assim, para os atos de fingir estabelece-
rem a relação entre os elementos da tríade explanada, é preciso que se

1
“Como não se trata de, face ao texto literário, determinar o imaginário como faculdade
humana, mas de circunscrever as maneiras como ele se manifesta e opera, com a escolha
desta designação aponta-se antes para um programa do que para uma determinação.
Trata-se de descobrir como o imaginário funciona, para que, a partir dos efeitos descri-
tíveis, abram-se vias para o imaginário – proposta que, no presente ensaio, é trabalhada
pela conexão entre o fictício e o imaginário” (ISER, 1983, p. 413).
2
Cf. notas no final do texto de Iser (1983a).

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

atendam várias funções durante a mediação, não perdendo de vista,


contudo, seu matiz transgressor.
No texto literário é possível distinguir três atos de fingir: a
seleção, a combinação e a autoevidenciação ou autodesnudamento
(ocasionando o como se). Iser (1999a, pp. 69-70) sumariza a seleção
como incorporação de elementos retirados de “incursões nos campos
de referência extratextuais”, podendo também invadir outros textos,
engendrando a intertextualidade, ao passo que aumenta a complexi-
dade do jogo. A combinação, por sua vez, atravessa fronteiras intra-
textuais, “variando de significados lexicais a fronteiras transgredidas
pelos protagonistas das narrativas”. A autoevidenciação ou autodesnu-
damento, finalmente, ocasiona um ato de duplicação: o como se, isto
é, “a evidenciação de que algo deve ser tomado apenas como se fosse
aquilo que designa”.
A seleção e a combinação já tiveram sua formulação ini-
ciada no Ato da leitura. Mais tarde, foram mais bem configuradas
no The Fictive and the Imaginary: charting Literary Anthropology e
no Prospecting: from Reader Response to Literary Anthropology, ao
passo que o autodesnudamento foi acrescentado, e as noções sobre o
imaginário vêm tomando cada vez mais espaço nas últimas formula-
ções do teórico alemão.
Deslocando esse raciocínio para uma forma antropológica de
pensar a relação triádica, deduzimos que para a (necessária) mobiliza-
ção do nosso imaginário, precisamos do fictício. É o fictício, então, o
elemento ativador, provocador de movimentos do imaginário. Desse
modo, a ficcionalidade só pode ser um ato consciente promovido por
indeterminações, e sem o imaginário não teríamos como preencher a
moldura conformada pelo ato de fingir. Iser (1999a, p. 75) arremata que
a “interação entre o fictício e o imaginário pode então ser vista como
encenação (enactment)” do processo de “modos de construir, de fabri-
car mundos (ways of worldmaking)3, cuja forma paradigmática reside
na literatura”.
A Antropologia Literária é ainda um work in progress, por
isso entendemos que, antes de nos engajarmos na busca de suas respos-
tas, faz-se necessário uma configuração mais bem delineada de suas

Conceitos extraídos de Nelson Goodman.


3

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principais indagações. Afinal, os atos de fingir implicados na litera-


tura inspiram questões por demais abrangentes e profundas, conforme
vemos em Iser (1993, p. 213)4:

Por que nós queremos pensar o impensável[?] [...] [ou por que
queremos] a extraordinária dualidade de pensar o impensável,
descrever o inacessível, unir o que não pode ser unido[?] – tudo
isto tem suas raízes na posição descentrada do homem; ele é,
mas não tem a si mesmo. Querer ter a si mesmo como ele é,
significa necessitar saber o que ele é.
Seria impossível aos seres humanos, portanto, a presentifica-
ção plena (todas as possibilidades) de si próprios, já que a cada momento
é alcançável apenas a possibilidade (realizada) daquela contingência (e
o ser humano é mais que isso, “mais que uma possibilidade limitada de
si mesmo”). À encenação, por conseguinte, caberia o papel de transpor
esta impossibilidade, permitindo-lhes a abertura do leque de suas pos-
sibilidades no constante autodesdobramento (“composição e decom-
posição de mundos fabricados”). A alternância de mundos fabricados,
não podendo ser apreendida, só pode ser encenada, por conseguinte,
também em suas “potencialmente inúmeras variações” (ISER, 1999a,
p. 77). Daí Iser atribuir à encenação um caráter transcendental.
Ao extrapolar o conceito de interpretação para tradução
e incluir os objetos não textuais, como a relação entre culturas ou a
inserção de alguém numa cultura estrangeira, Iser propõe, como estra-
tégia operacional, os movimentos recorrentes (recursive) extraídos do
modelo cibernético de compreensão cultural baseado no looping recor-
rente (recursive looping).
Assim, o looping recorrente seria a estratégia adequada para
operar com a tradução entre as culturas, uma vez que ele mesmo cor-
responde ao mecanismo através do qual uma cultura é configurada.
Em outros termos, para Iser (1994) “uma cultura é um sistema autopo-
ético que continuamente gera suas organizações, assim bem como as

[...] Why we should want to think the unthinkable[?] […] The extraordinary duality of
4

thinking the unthinkable, picturing the inaccessible, bridging the unbridgeable — all
this has its roots in the decentered position of man: he is, but he does not have himself.
Wanting to have oneself as one is, means needing to know what one is.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

alterações ocorridas em tal organização autogerada.”5 Utilizar os loo-


ping recorrentes para operar as interpretações/traduções consiste em
aplicar seu próprio movimento de autogerar-se.
O looping recorrente, todavia, é apenas uma das muitas estra-
tégias disponíveis para a interpretação e é aplicável quando as intera-
ções ocorrem entre sistemas.
Como temos visto, Iser faz jus à formulação de teoria soft que
apresenta em How to do theory, por exemplo. Assim, é dado a “juntar
pedaços” de outras teorias e/ou disciplinas, no intuito de marcar um
ponto de partida cognitivo. Mas ele o faz como Riquelme (1999, p. 213)
disse: “além do uso seletivo de elementos de certas disciplinas, sem,
contudo, rejeitar esse uso ou essas disciplinas para selecionar elemen-
tos de outras disciplinas, no intuito de criar uma posição favorável a
reformulações”. Com a antropologia literária não foi diferente. Iser
baseou-se, sobretudo, no trabalho de Clifford Geertz (principalmente,
1973) e Eric Gans (1985, 1993), dentre outros.
Na tentativa de demonstrar que a “humanidade não pode ser
subsumida sob nenhum sistema de referência preexistente”, Iser (1999b,
p. 157) recorre à antropologia gerativa de Eric Gans. Para a antropolo-
gia gerativa, exposta por Iser, a hipótese da “cena originária” explica
não apenas como a humanidade se desenvolveu, mas também como
evoluiu “o padrão explicativo para as vicissitudes da cultura humana
decorrentes daquela”. Dentro da heurística da “hipótese originária” de
Gans (19956), não seria mais possível a introdução de nenhum outro
elemento para a explicação dos diversos fenômenos da cultura humana,
de modo que tal cena se constituiria em unidade mínima. Tratar-se-ia
da cena mínima, na qual o ato de representação é estabelecido. Esta
cena refere-se a um roteiro que poderia descrever, de acordo com Gans
(1985 apud ISER, 1999b, p. 158):
uma cena de caça na qual um grupo de caçadores com armas
rodeia o corpo de sua vítima [...]. Semelhante roteiro pode
quando muito ter um valor heurístico [...], mas há o risco de
que esse modelo persuasivo não passe de um mito de origem

5
[…] a culture is an autopoetic system that continually generates its organizations as well
as the shifts occuring in such a self-generated organization.
6
Disponível em: < http://www.anthropoetics.ucla.edu/ap0102/mimesis.htm>.

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à moda moderna. A hipótese mínima não exibe esse defeito


por ser construída retrospectivamente a partir do seu resulta-
do necessário – isto é, o ato da representação – ao invés de
progressivamente, partindo de um suposto estado pré-humano.
Os detalhes da cena são irrelevantes, importando sobretudo o
ato da representação [...] [que faz] as mãos hesitarem quando
estendidas em direção ao objeto, interrompendo-se o gesto pelo
temor que cada um sente de sofrer represálias por parte dos
outros. Essa hesitação converte o gesto de apropriação em gesto
de designação e o locus do corpo na cena original da represen-
tação (GANS, 1985, apud ISER, 1999b, p. 158).
É o cancelamento/adiamento da satisfação apetitiva que
transforma a cena em evento originário. O acontecimento originário é
concebido como uma lacuna, portanto. Para Gans (1995, p. 47), “desig-
nar é renunciar, adiar a posse através da representação”. Segundo Iser
(1999b, p. 158), entender a origem do homem como Gans a propõe,
revolucionária ao invés de evolutiva, “equivale a afirmar que a huma-
nidade saltou para a existência por meio da ficção” ou “o ato da repre-
sentação, enquanto adiamento do conflito, demonstrou ser uma ficção
explicativa da diferenciação da humanidade em relação ao reino ani-
mal”. Assim, o ato da representação constitui o padrão básico da antro-
pologia gerativa.
Seguindo o raciocínio de Gans (1985 apud ISER 1999b, p.
159), foram as imagens estéticas efetuadas por cada indivíduo da cena
originária diante do objeto, cuja apropriação era vedada a todos, que
propiciaram vida ao gesto da representação. Suspender a satisfação
apetitiva transforma o mero objeto em objeto de desejo; portanto, a
contemplação estética é acompanhada de desejo. A própria contempla-
ção é o momento estético, pois não se trata apenas da imagem indivi-
dual da satisfação desejada, mas da imagem pública do objeto desejado.
Iser (1999b, p. 160) diz que se “a formação de imagens for algo
compartilhado, um sentido de coletividade começará a emergir, um
grupo será estabelecido. A representação da ausência mobiliza o ima-
ginário, que transforma a interdição num sentimento de coletividade”.

To designate is to renounce, to defer possession through representation.


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Literatura e ensino: reflexões e propostas

Depreende-se que a cultura não se origina diretamente do que


é dado, mas antes de sua transformação. Logo, ela pode ser conside-
rada como fenômeno emergente.
A Antropologia Literária iseriana, por assim dizer, abre um
campo interdisciplinar que extrapola em muito os objetivos de sua
Teoria do Efeito Estético, de modo particular, como também, de forma
geral, os objetivos dos estudos literários ora desenvolvidos.

3. AS PARALELAS PODEM SE ENCONTRAR BEM ANTES


DO INFINITO

A relação contida na construção do binômio significado/sen-


tido de um texto literário revela uma interdependência entre apren-
dizagem e desenvolvimento. Ora, sabemos por Vygotsky (1998) que
a primeira impulsiona o segundo. Se ficcionalizar corresponde, por-
tanto, a uma disposição básica que ativamos através da encenação
para nosso autodesdobramento humano, e se tal encenação nos per-
mite “sermos e termos a nós mesmos”, uma vez que favorece o ultra-
passe das possibilidades circunstanciais, então a consideração da
Zona de Desenvolvimento Proximal pode ser novamente conside-
rada. Transformar Níveis de Desenvolvimento Potencial em Níveis de
Desenvolvimento Real é a metáfora per si de uma antropologia literária
que queira considerar um leitor real, ao menos, como pano de fundo.
Um segundo ponto para se ressaltar diz respeito ao fato de
que a nossa interação com a literatura cria Níveis de Desenvolvimento
Potencial, o que significa dizer que aumenta nossas possibilidades de
autodesdobramento.
Em terceira via, é preciso considerar que a ZDP8 favorece a
interação do leitor com os vazios que impulsionarão o seu imaginário.
Se o fictício pode facilitar ou anular a mobilização do imaginário, então
há que se considerar a ZDP na relação; caso contrário, o fictício pode
não cumprir seu papel, ou seja, apesar de não deixar de ser fictício,
pode não ativar o imaginário de determinados grupos de leitores reais.
Se o fictício é a porta para abrir ou fechar o mundo ao imaginário, do

ZDP equivale a Zona de Desenvolvimento Proximal.


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mesmo modo a ZDP pode ajudar a abrir ou fechar esta porta. Por mais
que Iser se arme de conceitos totalizantes (umbrella concepts) para evi-
tar a armadilha da reificação, não podemos esquecer, mais uma vez,
que quem se “autodesdobra” na “busca de ser e ter a si mesmo”, em se
tratando de literatura, é sempre um leitor real.
Consideramos possível que a literatura forneça o ponto de
partida. Contudo, temos dúvidas se é possível realizar este tipo de
investigação sem reificações, pelo menos do modo como Iser parece
ter pensado. Até o momento, temos visto o teórico alemão utilizar-se
muito mais de outras disciplinas, dentre elas, a psicologia, para com-
preender a interação texto-leitor (a fenomenologia da leitura) do que o
seu contrário.
A relação do homem com o mundo, para Vygotsky, é sempre
mediada. Os elementos mediadores podem ser de dois tipos: os ins-
trumentos e os signos. A importância dos instrumentos na atividade
humana está intimamente influenciada pelas noções marxistas. Para
ele,
a invenção e o uso de signos como meios
auxiliares para solucionar um dado problema
psicológico [...] é análoga à invenção
e uso de instrumentos, só que agora no
campo psicológico. O signo age como um
instrumento da atividade psicológica de
maneira análoga ao papel de um instrumento
no trabalho (VYGOTSKY, 1998, p. 70).

Segundo Vygotsky (1998), apesar da analogia que equipara


signos e instrumentos, tendo como base seu caráter mediador, eles não
exaurem completamente o conceito de atividade mediada, e a função
que cada um realiza é bastante diferenciada. As diferenças residem
na maneira como cada um deles orienta o comportamento. Enquanto
os instrumentos funcionam como condutores da influência humana
sobre o objeto da atividade, tendo, portanto, uma orientação externa
e proporcionando mudanças no objeto para o controle e o domínio da
natureza, os signos, por sua vez, não modificam em nada o objeto da
operação psicológica: a atividade é interna, dirigida para o controle do
próprio indivíduo.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

Há, todavia, uma relação entre o controle da natureza e o


controle do comportamento, “assim como a alteração provocada
pelo homem sobre a natureza altera a própria natureza do homem”
(VIGOTSKI, 1998, p. 73).
Se o uso de meios artificiais muda as operações psicológicas
e o uso de instrumentos amplia a gama de atividades operáveis atra-
vés das novas funções psicológicas, então o termo função psicológica
superior pode referir-se à combinação entre o instrumento e o signo na
atividade psicológica (VYGOTSKY, 1998, p. 73).
É com o auxílio dos instrumentos psicológicos, os signos, dos
quais a linguagem seria o mediador social por excelência, que o homem
pode controlar sua atividade psicológica.
As operações externas realizadas através dos instrumentos
são reconstruídas no nível intrapsicológico do indivíduo, num processo
denominado de internalização. Este processo, de acordo com Vigotski
(1998, p. 75), passa por uma série de transformações: uma operação
que representa uma atividade externa é reconstruída e passa a ocorrer
internamente; um processo interpessoal é transformado num processo
intrapessoal e a transformação, por sua vez, é o resultado de uma longa
série de eventos ocorridos durante o desenvolvimento. Assim, todo
desenvolvimento, para o autor russo, parte do social para o individual:
as experiências são primeiramente vivenciadas num nível interpes-
soal, mais tarde são reelaboradas internamente, incorporando o nível
intrapsicológico (SANTOS, 2009; 2011).
Seria a participação do sujeito em atividades - instrumental
e socialmente mediadas - que formaria sua consciência. O processo
de internalização que permite a reconstrução das operações externas
(vividas no âmbito interpessoal) no plano intrapsicológico é o processo
de formação da consciência.
É possível observarmos a ênfase dada por Vygotsky à
interação social no desenvolvimento das funções superiores. Em
outras palavras, os processos de intercâmbio social são fundamentais
na construção de nossas características tipicamente humanas. Diante
disso, enquanto para Vygotsky (1991) o desenvolvimento segue-se à
aprendizagem, porque esta cria a área de desenvolvimento potencial,
para Piaget, a aprendizagem seguia-se ao desenvolvimento. Cabe-nos,

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

portanto, explicitar agora conceitos como Nível de Desenvolvimento


Real (NDR), Nível de Desenvolvimento Potencial (NDP) e Zona de
Desenvolvimento Proximal (ZDP).
Para Vygotsky, não basta delimitar o nível de desenvolvimento
alcançado por um indivíduo, ou seja, aquelas aquisições por ele já con-
solidadas para poder combinarmos o aprendizado a ser oferecido. Se nos
referimos a futuro, é preciso demarcar, no mínimo, dois níveis de desen-
volvimento: o primeiro seria o NDR (Nível de Desenvolvimento Real)9,
que se relaciona com “o nível de desenvolvimento das funções mentais
da criança que se estabeleceram como resultado das funções mentais
da criança já completados” (VIGOTSKI, 1998, p.111, grifo do autor); o
segundo, seria o NDP, concernente à capacidade da criança de realizar
tarefas com a ajuda de adultos ou colegas mais avançados. Tarefas a
serem, posteriormente, executadas sem a ajuda de outrem. A distância
entre o Nível de Desenvolvimento Real e o Nível de Desenvolvimento
Potencial é denominada de Zona de Desenvolvimento Proximal10
(ZDP). A ZDP “define aquelas funções ainda não amadurecidas, mas
que estão em processo de maturação, funções que amadurecerão, mas
que estão presentemente em estado embrionário” (VYGOTSKY, 1998,
p. 113).
Embora Vygotsky tenha se referido em seus trabalhos ao
desenvolvimento infantil, visto seu interesse pela gênese e evolução
das funções mentais superiores, é importante frisar que estes níveis,
assim como os demais conceitos explanados, não se referem apenas ao
desenvolvimento da criança. Em primeira mão, porque a relação entre
desenvolvimento e aprendizado é contínua durante todo o ciclo vital e,
como nossos processos mentais estão sempre em evolução, sobretudo
ao nos depararmos com áreas de conhecimento diversificadas e novas,
então podemos considerar os níveis de desenvolvimento, postulados
por Vygotsky, para todas as aprendizagens humanas no decurso da vida
do sujeito.
Numa segunda via, a diversidade sociocultural que fun-
damenta a individualização do pensamento tem, como uma de suas

9
Alguns estudiosos utilizam também a nomenclatura NDA (Nível de Desenvolvimento
Atual), como por exemplo, Alvarez e Del Rio (1996).
10
Alguns estudiosos utilizam a nomenclatura Zona de Desenvolvimento Próximo.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

consequências, a permeabilidade da linha divisora entre adulto e


criança, no que concerne ao pensamento superior. Esta compreen-
dida como a sobreposição da fala ao pensamento. Portanto, pensar
torna-se uma atividade mediada, não havendo nas palavras de Frawley
(2000, p. 92, grifos do autor) “nada essencialmente adulto ou infantil,
já que todos têm o mesmo problema de gerenciar a individualização em
relação ao grupo.” Deste modo, “a natureza de pensar pode redefinir
o adulto como criança ou vice-versa [...]. As categorias de ‘adulto’ e
‘criança’ [...] são propriedades emergentes do desempenho metacons-
ciente on-line” (FRAWLEY, 2000, p. 92).
Numa terceira linha, nota–se que os processos sociais nos quais
estamos inseridos são históricos, portanto, em constante mudança.
Deste modo, se as interações sociais mudam a nossa consciência e, por
conseguinte, nossa subjetividade e nossa ação sobre a natureza, uma
vez que a consciência e a subjetividade são consequência, por assim
dizer, da internalização das vivências sociais reconstruídas num nível
intrapsicológico, então a relação entre desenvolvimento e aprendizado
é mesmo ininterrupta e nunca conclusa.
Num processo interacional real entre leitor e texto, muitos
são os caminhos a serem seguidos entre um e outro elo, enquanto um
mesmo caminho tem ida e volta, além de muitas formas de ser percor-
rido. Assim, não podemos entender os vazios de modo fixo ou unilate-
ral. Dito de outra forma: o texto possui vazios, e a estrutura cognitiva
do leitor também as possui!
Podemos, então, sintetizar a associação da Teoria Sociocultural
de Vygotsky à Antropologia Literária de W. Iser em três amplos pontos:
a) A relação entre aprendizagem e desenvolvimento, na qual, no
modo vygotskiano, a primeira alavanca o segundo, é análoga à
relação iseriana entre formulação do objeto estético e signifi-
cação que promove um salto na experiência do leitor. As impli-
cações do entrecruzamento apontam, primeiramente, para a
relevância do processo interativo entre texto-leitor (real), e, em
segundo lugar, para a necessidade de se considerar a Zona de
Desenvolvimento Proximal, construída na interação do leitor
com o texto, pois somente neste espaço é que o sentido/significa-
ção pode ser efetivamente construído(a);

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

b) A interação entre perspectivas (como mediação social) e leitor


(real), na contraposição de tema e de horizonte, cria Níveis de
Desenvolvimento Potencial – NPDs – diferenciados, de acordo
com seus diversos leitores. Logo, podemos dizer que a leitura
de literatura gera níveis de desenvolvimento nesta área, prepa-
rando seus leitores para outros textos. E o mais importante: a
literatura pode alargar as ZDP´s, propulsionando os Níveis de
Desenvolvimento Potencial para adiante, ao mesmo tempo em
que leitores mais exigentes estimulam o processo criativo da lite-
ratura. Estas implicações teóricas têm repercussões práticas, se
quisermos pensar na área de formação de leitores de literatura, e
pode propiciar a abertura de pesquisas no referido campo;
c) A depreensão de que não é apenas a existência de lugares vazios
que incita o leitor a um preenchimento: o modo como estes
vazios se apresentam informa ao leitor sobre sua ação cognitiva.
Se os aspectos textuais não cumprem sua função no processo
de mediação entre o leitor (real) e sua ação para a formulação
do objeto estético, então alguns vazios do texto podem não ser
percebidos, ou virem a constituir-se em um impedimento para
ler, ao invés de funcionarem como desafiadores à compreensão.
Outra situação é a de um leitor que, lendo um texto fora de sua
ZDP, pode atribuir, ao texto, vazios que na verdade são falhas
pertinentes ao seu processo cognitivo. Em outras palavras: os
vazios podem ajudar ou emperrar a efetivação da experiência
estética, se não estiverem em consonância com a ZDP de seus
leitores.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que trazemos à baila é, portanto, o fato de que o leitor real


precisa ser considerado, se não no que diz respeito a uma psicologia
específica da leitura, mas como alguém a quem efetivamente estamos
nos referindo o tempo todo, direta ou indiretamente, mesmo que não
cheguemos nele no sentido concreto do termo, mas ele precisa estar
presente, ao menos, no cenário teórico.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

Não é apenas a teoria da literatura, na vertente iseriana de


sua antropologia, que no momento usa do fictício para compreender
a urgência humana e seus autodesdobramentos. A própria psicologia
tem, de certo modo, se preocupado ou se voltado para a literatura com
novos olhares e interesses. De acordo com Gans (199811), “como nós
frequentemente ouvimos, nós passamos nossas vidas contando histó-
rias; narrativa é nossa fonte de sentido”12, e a psicologia, em suas mais
variadas vertentes, tem prestado atenção às narrativas.
A leitura de literatura, por si só, a despeito de qualquer pedago-
gização que se lhe imponha, da forma denunciada por Larrosa (2006),
permite o alargamento e o autodesdobramento do ser humano, como,
aliás, corroborado pela antropologia literária. Assim, parece-nos bas-
tante profícua a nossa imersão nestes tópicos: “como a leitura de litera-
tura, usando o saber prévio de seus leitores, pode extrapolá-lo em prol
de si mesmos?”; “Bastaria ativar o saber prévio e favorecer a interação
texto-leitor?”. Talvez não precisemos de métodos ou técnicas, pois elas
podem estar carregadas de autoritarismo para “ensinar o gosto pela
literatura”, ao passo que ela fala por si, contanto que tenhamos a ousa-
dia e o desprendimento de permitir ao leitor vivenciar sua liberdade
com o texto. A solidão da leitura, como a vê Larrosa (2006), pode quiçá
ser mais produtiva que nossos autoritários monólogos acerca do que
é preciso ler e como se deve ler. Se considerarmos a atividade do lei-
tor comum, da forma demonstrada por Pressler (1999, p. 36), o profes-
sor não precisaria funcionar como uma “muleta”, mas sim como “um
moderador e guia no aprofundamento teórico e histórico dessa percep-
ção, reconhecendo que o ato de ler é uma atividade emancipativa no
sentido de Paulo Freire.” O papel de moderador é consonante ao modo
como Vygotsky vê a função docente.
No que se refere ao âmbito da leitura de literatura por crianças,
poderíamos propor a seguinte linha investigativa: a existência ou não
de diferença entre a construção de sentido/significação por crianças
que leem diretamente um texto e esta mesma construção em crianças
que ouvem a história lida por um adulto; a diferença entre a construção

11
Disponível em: <http://www.anthropoetics.ucla.edu/ap0302/narrative.htm>.
12
As we frequently hear, we spend our lives telling stories; narrative is our source of
meaning.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

de sentido/significação entre crianças que ouvem o adulto lendo a


história e aquelas crianças que ouvem o adulto contando a história; a
forma da leitura (entonação, ritmo, ênfase) dada por um adulto compre-
endida como o preenchimento de vazios; a postura corporal e expres-
são facial como reveladores de certos preenchimentos de vazios pelo
adulto, influenciando, assim, a criança que ouve; as características da
interação texto-leitor que a difere de modo mais perspícuo da interação
texto e ouvinte mediada por outro leitor (SANTOS 2009; 2011).
São muitas as portas abertas para novas configurações na arte
de seduzir com e para literatura, afinal, não é apenas a existência de
lugares vazios no texto que incita o leitor a um preenchimento: o modo
como os vazios são apresentados informa ao leitor sobre sua ação cog-
nitiva. Os vazios podem ajudar ou emperrar a efetivação da experiência
estética, se não estiverem em consonância com a ZDP de seus leitores.
A leitura e o ensino de literatura são importantes não apenas
pelo que há de interessante no ato de adentrar–se ao mundo literário,
mas, sobremodo, pelo que isso pode proporcionar ao indivíduo cogniti-
vamente falando. O texto literário pode ser um excelente pretexto para
ampliar a ZDP dos leitores e esta, por sua vez, propiciará a leitura com
mais destreza de textos literários, ampliando assim os sentidos de vida
da pessoa, em todos os sentidos que sentido e vida possam ter.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

REGO, T. C. Vygotsky: uma perspectiva sócio-histórica da educação.


Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
RIQUELME, J. P. “Navegando no espaço não-euclidiano da antropologia
literária: uma resposta aos nossos esforços”. In: ROCHA, J. C. de C. (Org.).
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(Autores) Psicologia e Pedagogia: bases psicológicas da Aprendizagem e do
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VYGOTSKY, L. S. Pensamento e Linguagem. Trad. de Jéferson Luiz
Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
______________. A formação social da mente. Trad. de José Cipolla
Neto, Luís Silveira Mena Barreto e Solange Castro Afeche. 6. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1998.

13
Diferentemente da editora Martins Fontes, a editora Moraes optou pela grafia Vygotsky.

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EDUCAÇÃO E POESIA:
O APRENDIZADO DO ESTÉTICO
Marly Amarilha
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

Para contemplar a proposta de discutir “Literatura e ensino:


a educação do estético”, coloquei-me no desafio de falar sobre poe-
sia, visto que estamos desenvolvendo no nosso grupo “Ensino e
Linguagem”, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação
da UFRN, um projeto sobre poesia e formação do leitor no ensino
fundamental, de maneira que, assim, compartilho com vocês algumas
reflexões iniciais sobre o tema. “Educação e poesia: o aprendizado do
estético” é uma proposição focal para o início desta caminhada.
A primeira observação que o título da proposta assinala é que:
se sentimos necessidade de falar de poesia e da relação educação e poe-
sia, é porque ou ela não faz parte de nossas vidas ou porque dela temos
pouca consciência. Começo, então, por pensar que a última estação do
ensino da poesia não é o seu aprendizado, mas a consciência sobre ela.
E, se a poesia na linguagem verbal é uma realização possível do esté-
tico, o razoável é começar pelo estético.
A palavra “estética”, como sabemos, etimologicamente, vem
do grego, aesthesis, e quer dizer sentido, ou seja, ampliando, podemos
dizer que é experiência pelos sentidos. Assim, aprender o estético é
expandir a visão sobre a própria identidade humana. Os sentidos estão
presentes permanentemente em nossa existência, na nossa corporei-
dade, mas aprendê-los é descobrir suas potencialidades. Nesse inven-
tar da própria condição, reinventamos também a nossa maneira de ser
e de ver o mundo que nos circunda; nesse desvelar-se, entramos em
contato com as forças primevas da nossa sensibilidade.
Como estamos preocupados com a educação para o estético,
recorremos a alguns pressupostos que envolvem o processo de ensino e
aprendizagem. Sabemos que não existe aprendizagem sem o desenvol-
vimento da atenção. É com a atenção que aprimoramos a percepção, a
sensibilidade e a reflexão. Pensemos, então, sobre essa atitude da qual
depende muito das nossas aprendizagens: a atenção.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

Para Kastrup (2005),


há dois modos distintos e complementares de atenção, o recog-
nitivo e o inventivo. O modo recognitivo estaria relacionado ao
reconhecimento dos objetos e à sua atuação no desempenho das
tarefas diárias, enquanto o inventivo seria caracterizado pela
capacidade do sujeito encontrar-se com o inesperado e proble-
matizar (KASTRUP, 2005, p.1279).
Portanto, a cognição inventiva se concentra na possibilidade
de ir além da capacidade de executar tarefas. Nesse quadro, a apren-
dizagem também se apresenta nas formas recognitiva e inventiva. Na
forma recognitiva, a aprendizagem se refere ao processo de adaptar-se ao
preexistente, a responder perguntas; portanto, trata-se da aprendizagem
do reconhecer, mais do que do inventar. Nessa lógica desenvolvida por
Kastrup “invenção é uma potência que a cognição tem de diferir de si
própria” (2005, p.1274). Então, nessa lógica da cognição inventiva, trata-
-se de dotar a aprendizagem da potência de invenção e de novidade,
ou seja, de intercambiar a condição de aprendiz respondente com a de
aprendiz de invenção. Assim, “o mecanismo circular da aprendizagem
aponta que a atenção é ao mesmo tempo condição e efeito de um pro-
cesso de aprendizagem” (KASTRUP, 2005, p. 1276).
A experiência estética, nesse caso, é exemplar e aplica-se à
questão que nos propusemos discutir. A experiência estética exige o
desempenho de uma atenção sensível, diferente da atenção que utiliza-
mos para dar conta de atividades cotidianas. Portanto, a educação para
a estética via cognição inventiva não é um saber que se acumula, mas
é um saber que se cultiva: cultivo de si como ser de percepção; cultivo
dessa atitude atencional diferente que pode ser aplicada no aprendizado
da poesia como estamos propondo. Assim, não se trata apenas de adap-
tação ao mundo, mas de atentar para inventar cotidianamente o mundo,
aprender a visão inaugural como assinala Manoel de Barros, a quem
solicito a companhia para esta caminhada:
Por viver muitos anos dentro do mato/moda ave /O menino pe-
gou um olhar de pássaro – /Contraiu visão fontana. Por forma
que ele enxergava as coisas/por igual/como os pássaros enxer-
gam./ As coisas todas inominadas. Água não era ainda a palavra
água. Pedra não era ainda a palavra pedra. E tal. /As palavras

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

eram livres de gramáticas e / podiam ficar em qualquer posi-


ção./ Por forma que o menino podia inaugurar[...].Como se fosse
infância da língua (BARROS. 2004, p.11- grifo nosso).
Nessa atitude inaugural, conforme enuncia o poeta, o sentido
da visão se apresenta de imediato em “o menino pegou um olhar de
pássaro”, “contraiu visão fontana”. Essa analogia entre a visão física e
a visão pensamento mostra o uso do mundo material para expressar os
conceitos que iluminam o aprendizado do estético. Nessa perspectiva
de ampliar o olhar para acolher o mundo e reinventá-lo por essa percep-
ção primeira, outros sentidos são também convocados. Como podemos
ler, a seguir:
“Pois Pois”
O Padre Antônio Vieira pregava de encostar as orelhas na boca
do bárbaro.
Que para ouvir as vozes do chão
Que para ouvir a fala das águas
Que para ouvir o silêncio das pedras
Que para ouvir o crescimento das árvores.
E as origens do Ser. Pois Pois.
Bernardo da Mata nunca fez outra coisa
Que ouvir o perfume das cores
Que ver o silêncio das formas
E o formato dos cantos. Pois Pois.
Passei muitos anos a rabiscar, neste caderno, os escutamentos
de Bernardo
Ele via e ouvia inexistências.
Eu penso agora que esse Bernardo tem cacoete para poeta
(BARROS, 2005, p.47)
No relato acima, encontramos enunciado outro sentido: a
audição. Na mesma situação inaugural, Manoel de Barros coloca os
“escutamentos” como etapa de aprendizado; ensinamento do Pe. Vieira
“encostar as orelhas na boca do bárbaro” e lá escutar as origens. O
sentido de aprendizado de invenção está presente em todo o texto e

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

é enfatizado no verso “ele via e ouvia inexistências”. Ora, ser capaz


de ouvir e ver inexistências promove o poeta e o aprendiz de poesia
à condição de ser protagonista de descobertas que escapam ao senso
comum e aos sentidos nos seus usos corriqueiros; é de fato, reinven-
tar. As percepções se entrelaçam entre imagens e sonoridades em rela-
ção intersensorial, contudo não estão ali de maneira previsível, mas
inesperadas, novidadeiras, como legítima cognição inventiva, onde não
se podem estabelecer normas, mas onde seja possível “ver o silêncio das
formas” ou “ouvir o silêncio das pedras”. Observamos, nessa lógica,
que os sentidos da visão, da audição são colocados como os verdadeiros
canais de educação da sensibilidade. Eles sempre estiveram ali, na
condição do infante humano para facilitar-lhe a entrada no mundo das
significações, entretanto, é como se a dimensão da experiência para o
estético devesse ser relembrada, reinaugurada, reinventada.
Podemos, assim, compreender que a arte, a experiência esté-
tica, estabelece um estado de exceção (KASTRUP, 2005). Nessa expe-
riência, ocorre a suspensão da lógica do senso comum na apreensão do
real, para que a esse real o sujeito retorne de outra maneira, com outro
olhar, com outra sensibilidade. Como sugere o poeta, experimentar
outra abordagem para os próprios sentidos da visão, da audição: “ver
e ouvir o silêncio”, como que reorientando o corpo para outros usos.
Lembremos que o aprendizado da educação estética não, necessaria-
mente, irá produzir um poeta, aquele que escreve poemas, mas, sim,
um ser sensível, um ser que vive a vida na sua dimensão poética. Ora,
de há muito, educadores de diferentes tendências filosóficas buscam a
educação integral do ser humano. Portanto, colocar na pauta da forma-
ção de crianças e de jovens a educação para o estético é uma maneira
de realizar esse ideário.
Explorando esse caminho, podemos formar um leitor tão sen-
sível quanto o poeta que produz um poema, pois, a invenção do leitor
na leitura que faz de um texto, de um poema, pode ser tão inventiva
como aquele que o escreveu. Ao aprender a fazer “escutamentos” como
Bernardo, também o leitor pode inventar-se como ser capaz de desco-
brir outras escutas, outras visões no mundo ao seu redor, na leitura que
faz.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

Inventar, de acordo com a etimologia da palavra do latim inve-


nire, significa compor com restos arqueológicos (apud KASTRUP,
2005,p.1278). Em assim sendo, o percurso em busca da matéria inau-
gural, na natureza como na palavra, poderá promover o investimento
da sensibilidade e do intelecto como componentes da experiência de
leitura. De maneira que “inventar- se” como leitor sensível ao poético
desvela um processo de cognição inventiva, visto que demanda atenção
a um só tempo concentrada e aberta: concentrada na busca arqueoló-
gica do que está escondido e, ao mesmo tempo, na busca aberta a múl-
tiplas significações e invenções que se apresentam como virtualidades
no texto. Como quando Manoel de Barros descobre a “Escova”:
...No começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque
ficavam sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois
aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles fa-
ziam o serviço de escovar osso por amor. E que eles queriam
encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações [...] Logo
pensei de escovar palavras. Por que eu havia lido em algum
lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos. [...]
Eu já sabia também que as palavras possuem no corpo muitas
oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu
queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar
de cada uma (BARROS, 2003, I).
Assim, por extensão, aprender a ler poesia significa estar
atento à audição, ao ritmo, à provocação imagética da palavra, dei-
xando-se sensibilizar por sua potência escondida em camadas históri-
cas da linguagem. Se bem observarmos, a poesia nos é intrínseca. Está
na natureza humana. Nosso corpo biológico é portador de virtualida-
des poéticas: carregamos em nós, nas nossas sonoridades, nos nossos
movimentos, na nossa respiração o ritmo que é a evidência da pulsão da
vida. Não há ser vivo sem ritmo, mas somos os únicos a usarmos dessa
capacidade com imaginação. Pensamos e criamos sobre o ritmo as mui-
tas possibilidades de nos vermos, de nos inventarmos. Com a voz, que é
sopro de vida, exploramos as múltiplas possibilidades do que sentimos
e dizemos, pois “o corpo que a voz traz à linguagem é uma superfície
sensível, uma pura afecção” (LÓPEZ, 2011, p. 60). Com a melodia da
voz, impregnamos de música muito do que sentimos, do que pensamos.
Assim, “o sentido é em boa parte musical” (LÓPEZ, 2011, p. 61) e,

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

quem sabe, cheio de oralidades remontadas. No ritmo, flui a vida como


a percebemos, como a inventamos. Ritmo não como medida do movi-
mento, mas como os acentos que julgamos significativos de assinalar
na fluência da fala, da palavra no poema. Daí, a presença da melopéia
como base estruturante na composição poética, como a descreve Pound
(1977), mas não só isso: “o verso, a frase-ritmo, evoca, ressuscita, des-
perta, recria” como lembra Otavio Paz (1970, p. 109).
É justamente a “frase-ritmo” que mais chama a atenção das
crianças que estão participando da nossa pesquisa. Em fase explora-
tória, perguntamos: “Você gosta de poesia?”, “O que você sabe sobre
poesia?”. Nas respostas registramos: “Palavras que rimam, sei que é
legal, admirável, interessante”; “Poesia é uma frase que rima, ela é
legal, especial”. Meninas e meninos, na faixa etária dos 9 a 10 anos,
demonstraram unanimidade em reconhecer a particularidade da melo-
péia como traço que distingue a poesia. Sabemos, no entanto, que
reconhecer as marcas textuais é apenas um aspecto da atenção que
esperamos o aprendizado da poesia promover.
Acreditamos que possamos falar do aprendizado estético pelo
cultivo, em uma pedagogia do contato frequente, processo em que se
atualiza a virtualidade poética de que somos portadores, ganhando
assim o sentido de diferenciação, isto é, não apenas se adaptando ao
previamente estabelecido, mas exercendo a sensibilidade para a des-
coberta, constantemente. Pedagogia da invenção ou da reinvenção, em
que se exercite o surpreendente, o novo. Como podemos ver na Oficina
- lugar onde se elabora, onde se fabrica, onde se inventa, onde se con-
serta, proposta por Manoel de Barros:
“Oficina”
Tentei montar com aquele meu amigo que tem um olhar des-
comparado, uma Oficina de Desregular a Natureza. Mas faltou
dinheiro na hora para a gente alugar espaço. Ele propôs que
montássemos por primeiro a Oficina em alguma gruta [...]. E
por de logo achamos uma na beira da estrada. Ponho por caso
que até foi sorte nossa. Pois que debaixo da gruta passava um
rio. O que de melhor houvesse para uma Oficina de Desregular
Natureza! Por de logo fizemos o primeiro trabalho. Era o
Besouro de olhar ajoelhado. Botaríamos esse Besouro no can-
to mais nobre da gruta. Mas a gruta não tinha canto mais nobre.
Logo apareceu um lírio pensativo de chão. Pensamos que sendo

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

o lírio um bem da natureza prezado por Cristo resolvemos dar


o nome ao trabalho de Lírio pensativo de Deus. Ficou sendo
(BARROS, 2006, IV).
Nesse compasso, o leitor experimenta aquela atenção tensa,
concentrada e aberta. Como a percepção é imprevisível, essa imprevi-
sibilidade gera respostas variáveis, subjetivando a experiência do esté-
tico. Assim, o ensino pela cognição inventiva não pode jamais prever
uma resposta pronta, segura, controlada, pois é da natureza do apren-
dizado e do poético o imprevisível, o direito ao inacabado. As associa-
ções imagéticas, inesperadas e sem censura na exploração da fanopéia
(PROUST, 1977) como em “besouro de olhar ajoelhado”, “lírio pen-
sativo de Deus”, alertam sobre as possibilidades de rupturas lógicas
que instigam o ensino e a aprendizagem da singularidade atencional
que pode desenvolver a cognição inventiva. Explorando o imagético, as
construções linguísticas inovadoras mostram o potencial da imagina-
ção e da língua, como reconhece Manoel de Barros no
“Tributo a J.G. Rosa”
Passarinho parou de cantar.
Essa é apenas uma informação.
Passarinho desapareceu de cantar.
Esse é um verso de J.G. Rosa.
Desapareceu de cantar é uma graça verbal.
Poesia é uma graça verbal
(BARROS, 2005, p. 23).
Assim como Manoel de Barros reconhece a invenção de
Guimarães Rosa, uma de nossas crianças também reconhece o gracejo
com a língua como da natureza da linguagem em forma poética: “eu
sei que [é] bonito com rimas e cheio de graça” (www. poesiaeinfancia,
2011), afirma a jovem leitora.
A atitude atencional diferente, reclamada à formação do poeta
ao olhar a natureza e a língua, também se aplica ao leitor aprendiz da
poesia. Nesse caso, espera-se que a esse leitor sejam dadas oportunida-
des de convívio com a língua, que provoquem o desenvolvimento dos
sentidos e da imaginação. Assim sendo, uma educação para o literário,

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

para a poesia, deve supor uma mudança de percepção sobre o mundo,


sobre si e sobre a linguagem (AMARILHA, 2006). Como ocorre no
episódio de “Cabeludim”.
De outra feita, no meio da pelada um menino gritou: Disilimina
esse, Cabeludinho. Eu não disiliminei ninguém. Mas aque-
le verbo novo trouxe um perfume de poesia à nossa quadra.
Aprendi nessas férias a brincar de palavras mais do que tra-
balhar com elas. Comecei a não gostar de palavra engavetada.
Aquela que não pode mudar de lugar. Aprendi a gostar mais das
palavras pelo que elas entoam do que pelo que elas informam.
Por depois ouvi um vaqueiro a cantar com saudade: Ai morena,
não me escreve/ que eu não sei a ler. Aquele a preposto ao verbo
ler, ao meu ouvir, ampliava a solidão do vaqueiro (BARROS,
2003,VIII).
Na academia, nossas experiências estão sob permanente vigi-
lância intelectual, daí a dificuldade em driblar essa lógica do sistema
e permitir a fluência da experiência estética. Mas, por que seja difí-
cil, mal compreendia, seremos omisso na formação estética de nossos
jovens? Será que realmente aceitamos a difundida ideia de que a poesia
é inútil? A rigor, entendemos que a educação para a estética seja pos-
sível e necessária. Promover a degustação de textos que surpreendam,
que chamem a atenção sobre sua inventividade, parece ser um caminho
possível. Entendemos que, no ensino e aprendizagem do estético, via
poesia, a experiência de leitura deve ser o foco, o que é lógico, tautoló-
gico, mas permanece necessário de se declarar.
Nesse processo, aprender a ler poesia significa estar atento à
audição, à provocação imagética, às virtualidades semânticas da pala-
vra estruturada em logopeia (POUND, 1977), deixando-se sensibili-
zar por sua potência inventiva. Por meio dessa experiência dupla da
surpresa e da regularidade no convívio com a poesia, experimentar o
abandono das formas preestabelecidas e cultivar bem como acolher o
aprendizado e o ensino da língua e da literatura em sua potência inven-
tiva. Então, a educação estética pode ser compreendida como o exercí-
cio para a invenção. Invenção que não é espontânea, mas conquistada
(KASTRUP, 2005). “A poesia está guardada nas palavras”, afirma o
poeta (BARROS, 2005, p. 19), mas sem o trabalho arqueológico, de
interlocução entre o declaro e o virtual, sem esse trabalho inventivo

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

do leitor que ali permanecerá em estado de latência. É possível que


sem esse exercício de estética muitos possam viver toda uma vida.
Entretanto, entendemos que melhor seria que essa vida fosse também
vivida na sua dimensão inventiva, na sua dimensão poética, consciente
daquilo que nos é dado como herança virtual, pois é nessa dimensão
estética que nossa autonomia e sensibilidade se singularizam e, por-
tanto, se humanizam.

REFERÊNCIAS

AMARILHA, Marly. “Educação para a sensibilidade: a leitura mul-


timodal do poema para a infância”. In: Revista Educação em
Questão. Natal: Centro de Educação. Programa de Pós-Graduação em
Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. v. 41, n.27, jul. dez.
2011, p.139-163.
________________. A multimodalidade na leitura do poema e do
livro de poesia em aprendizes da escola fundamental – estudo longitudi-
nal. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Conselho Nacional do
Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. Natal-RN/ Brasília-DF.
2010 (Projeto de pesquisa).
________________. Alice que não foi ao país das maravilhas: a leitura
crítica na sala de aula. Petrópolis-RJ: Vozes, 2006.
BARROS, Manoel de. Tratado geral das grandezas do ínfimo. São Paulo:
Record, 2005.
_________________. Memórias inventadas: A Infância. São Paulo:
Planeta, 2003.
_________________. Poemas rupestres. Rio de Janeiro: Record, 2004.
_________________. Memórias inventadas: A Segunda infância. São
Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2006.
_________________. Memórias inventadas: A Terceira infância. São
Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008.
DUARTE Jr., João Francisco. Fundamentos estéticos da educação. 4. ed. São
Paulo: Papirus,1995.
KASTRUP, Virginia. “Políticas cognitivas na formação do professor e o problema
do devir-mestre”. In: Educação e Sociedade. Campinas, v. 26, n. 93, p.1273-1288,
Set./Dez.2005. Disponível em: www.cedes.unicamp.br. Acesso em: 07.10.2011.  

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

KASTRUP, Virginia . “A aprendizagem da atenção na cognição inventiva”.


In: www.psicologia.ufrj.br/pospsi/aprendizagem.pdf Acesso em 06.10.2011.
LÓPEZ, Maximiliano Valério. “O corpo inaudito: para uma poética do dis-
curso em educação”. In: PASSOS, Mailsa Carla Pinto; PERREIRA, Rita
Marisa Ribes (Org.) Educação experiência estética. Rio de Janeiro: Nau, 2011.
PAZ, Octavio. El arco y la lira. México: Fondo de Cultura Economia, 1970.
POUND, Ezra. ABC da literatura. Tradução de Augusto de Campos e José
Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1997.
disponível em: http//:www.poesiaeinfancia.forums-free.com. Acesso em:
05.10.2011.

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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS
NO ENSINO DE LITERATURA

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LEITURA E LITERATURA NA PRÁTICA DOCENTE:
CONSIDERAÇÕES ACERCA DO LETRAMENTO LITERÁRIO
Linduarte Pereira Rodrigues
Universidade Estadual da Paraíba

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

A literatura é a escola da complexidade humana,


do entendimento da vida (EDGAR MORIN).

1. PRIMEIRAS PALAVRAS

Buscando apresentar algumas reflexões acerca da possibili-


dade de trabalhar com a leitura literária em âmbito escolar, iniciaremos
um espaço de discussão no que se refere aos processos de letramento
mediados pela literatura, com ênfase na relação professor x aluno e
leitura x literatura. O foco é a imagem do profissional do ensino da
leitura e da literatura em língua materna, o espaço escolar e as práticas
de letramento utilizadas junto aos alunos, procurando observar o que é
atingido com o ideal de educar letrando.
Para tanto, destacaremos os modelos de letramentos presentes
nas páginas da literatura para, assim, poder (re)pensar a postura mais
adequada para o professor de leitura e literatura em uma sociedade pós-
-moderna (BAUMAN, 1998, 2001, 2007). A aula de leitura, através da
literatura, tem se mostrado pouco favorável à construção de um espaço/
momento de atenção ao pensamento social que impõe discussões sobre
os sentimentos e as sensibilidades humanas. Nossa sociedade experi-
menta medos e angústias de um início de século, além das novidades
tecnológicas que virtualizam as práticas dos sujeitos, encurtam distân-
cias, mas os separam das experiências individuais em sociedade.
Partiremos da constatação de que a aula de literatura figura na
prática docente como história literária: concentra-se em lembranças de
épocas travestidas em estilos, cronologicamente, medidos e pautados
por linearidades históricas. Proporemos para a escola um ensino de lei-
tura/literatura que possibilite ao aluno o “prazer do texto” (BARTHES,
2006), não enxergando a literatura apenas como um objeto estético ou
adereço para o espaço escolar, mas como produto da sociedade e da
vida, na cultura e na história.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

2. LETRAMENTO E LITERATURA

Os estudos do letramento são, hoje, um campo promissor de


investigação e elaboração de métodos que buscam reunir pesquisas
interessadas – com a descrição e a explicação da influência da escrita
– na constituição de sujeitos aptos para uma convivência social salutar.
Dessa forma, cabe percebermos que o fenômeno do letramento extra-
pola o mundo da escrita, tal qual ele é concebido pelas instituições de
ensino.
Na maioria das vezes, a escola não se interessa pelo letramento
enquanto prática social, mas pelo letramento como imposição de uma
tecnologia de códigos que se prestam à elaboração de textos e sua
reprodução sem nenhuma função social, isto é, a alfabetização. Esta
tecnologia, que há muito tempo é prioridade no universo escolar, gera
a competência individual do sujeito de codificar e decodificar letras e
números, no entanto, ela não é a solução para fazer do aluno um sujeito
leitor, não só de textos escritos graficamente, mas, acima de tudo, leitor
de mundo: uma competência de leitura que extrapola o textual, que
atinge o discurso em suas múltiplas formas.
Por esta razão, nos apegamos à ideia subjacente aos teóricos
que, como Street (1984) e Kleiman (2001), sustentam que as práticas de
letramento dominantes na escola são consideradas parciais e equivoca-
das. Elas são denominadas de modelo autônomo de letramento. Neste
modelo, as práticas de letramento não são capazes de formar leitores
culturalmente preparados para as diversas situações de interação entre
sujeitos, indivíduos habilitados para ler num espaço que está além dos
muros da escola. Para o modelo autônomo de letramento, há apenas
uma maneira de letrar, e esta está diretamente associada ao progresso
individual do sujeito, à sua civilização, tendo em vista a mobilidade
social.
Do outro lado da corrente, há um modelo de letramento melho-
rado e que objetiva ser a luz que iluminará as coordenadas do educa-
dor comprometido com um trabalho voltado para práticas plurais de
letramento. Segundo Street (1984), este é um modelo ideológico de
letramento. Neste modelo, plurais são as formas assumidas pela escrita
no domínio das instituições e nos contextos de produção, circulação e

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

reprodução, em que a escrita atravessa as práticas socioculturais dos


grupos e suas relações. Para Kleiman (2001), contrário ao modelo autô-
nomo, o modelo ideológico de letramento não pressupõe uma relação
causal entre letramento e progresso ou civilização, ou modernidade,
pois, ao invés de conceber um grande divisor entre grupos orais e letra-
dos, ele pressupõe a existência e investiga as características de grandes
áreas de interface entre práticas orais e práticas letradas (KLEIMAN,
2001, p. 21).
É aí que entra a literatura.
A literatura, especificamente a literatura oral é, como diria
Câmara Cascudo, o nosso primeiro leite intelectual. É, para Antonio
Candido, o que dá sentido ao humano. Sendo assim, ela não pode ser
ignorada na escola nem deve ser pensada para a escola, porque a litera-
tura ocupa um espaço na sociedade, na família.
A escrita literária tem o poder de criar mundos que são obras
do imaginário humano. Por essa razão, ela estabelece uma relação entre
o humano e o social, pois o homem lê o mundo, cria histórias, amplia
pensamentos que explicam as coisas ao seu redor e deixa tudo isso
registrado em forma de literatura.
Pensamos, então, a literatura nos moldes barthesiano, “não
como um corpo ou sequência de obras nem um setor de comércio ou
de ensino, mas como grafo complexo das pegadas de uma prática: a
prática de escrever” (BARTHES, 2007, p. 16). Para o autor, a literatura
assume vários saberes:
Num romance como Robinson Crusoé, há um saber histórico,
geográfico, social, técnico, botânico, antropológico (Robinson
passa da natureza à cultura). Se, por não sei que excesso de
socialismo ou de barbárie, todas as nossas disciplinas deves-
sem ser expulsas do ensino, exceto uma, é a disciplina literária
que deveria ser salva, pois todas as ciências estão presentes no
monumento literário. [...] a literatura [...] é a realidade, isto é, o
próprio fulgor do real (BARTHES, 2007, p. 17-18).
Barthes (2007, pp. 17-18) explica que a literatura trabalha nos
interstícios da ciência, estando sempre atrasada ou adiantada com
relação a esta. Para ele, “a ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para
corrigir essa distância que a literatura nos importa”. Por seu turno, o
autor acrescenta que “o saber que ela mobiliza nunca é inteiro nem

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

derradeiro”. Enfatiza, ainda: “a literatura não diz que sabe alguma


coisa, mas que sabe de alguma coisa; ou melhor, que ela sabe algo das
coisas – que sabe muito sobre os homens”.
Como percebido, há uma dependência entre ambas: a literatura
descreve e figurativiza o homem, seu espaço e tempo; a ciência analisa,
buscando explicar esta relação, daí se dá sua importância. A literatura é
a representante das letras. Ela é a possibilidade de o homem transitar do
científico ao humano; por isso, seu destaque junto às ciências humanas.
Ela quebra as fronteiras entre estes dois domínios e liga o homem ao
seu passado e ao seu futuro, num projeto que dá vida a um futuro no
hoje, concretizando o mito do homem melhorado, da vida eterna, pois
os homens figurativizados nas páginas da literatura se tornam eternos,
eternos modelos do homo sapiens.

3. A FIGURA DO PROFESSOR NAS PÁGINAS DA


LITERATURA BRASILEIRA

Neste tópico, buscaremos refletir acerca de duas questões: i)


Quais modelos de letramento estão presentes nas narrativas literárias?;
ii) Qual a postura mais adequada ao professor para a aula de leitura e
de literatura?
Perguntas como essas nos fazem pensar acerca do papel que
a literatura exerce na sociedade e em prol de um letramento escolar,
literário e ideológico.
Diante dessa inquietação, cabe-nos lembrar que a literatura
deixou armazenada em suas teias discursivas modelos de posturas pro-
fissionais adotadas pelo educador no ambiente escolar. Em suas narrati-
vas, personagens ganharam formas descritas (intencionalmente?) para
apresentar um registro do ensino nas várias fases do desenvolvimento
da educação nacional. O professor ganhou vida em performances que
devem ser analisadas com o intuito de nos servir de exemplo para um
repensar de nossas práticas.
Para tanto, ampliaremos as interrogações iniciais, sintetizando-
-as para os fins propostos neste estudo. Nesta perspectiva, cabe-nos
indagar: i) o modelo de letramento que está presente nas narrativas lite-
rárias é condizente com a realidade social do sujeito figurativizado?; ii)

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

seria a figurativização do professor, nas páginas da literatura brasileira,


a representação de uma realidade social de época, descrita e preservada
como registros antropológicos literários?
A primeira consideração que iremos fazer sugere que a litera-
tura que desenha o profissional de ensino, adotando uma prática voltada
para um modelo autônomo de letramento, aponta para a aula de litera-
tura. Pensamos que essa recorrência não é gratuita; ela perpassa a ideia
de que, por tempos, há uma consciência da inadequação da postura do
profissional do ensino da leitura e da literatura no espaço escolar, e que
esta atitude reflete socialmente nas produções literárias e discursivas.
Para tratarmos desse fenômeno, cabe-nos apresentar um estudo
anterior realizado por Zilberman (2001, p. 122-129), do qual coleta-
mos algumas amostras, acerca da presença da figura do professor em
atividade na escola e fora dela. A autora destaca algumas passagens
literárias em que o professor e a prática de ensino desenvolvida por ele
devem ser avaliados e repensados para a adequação de suas finalidades.
O primeiro relato está na obra Memórias de um Sargento de
Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, em que merece destaque a
aparência física desagradável do professor, a desarrumação da sala de
aula, a pedagogia apoiada na violência exercida contra as crianças e a
repetição de conteúdos. Observe o destaque:
Era esse um homem todo em proporções infinitesimais, baixi-
nho, magrinho de carinha estreita e chupada, excessivamente
calvo; usava de óculos, tinha pretensões de latinista, e dava bo-
los nos discípulos por dá cá aquela palha. Por isso era um dos
mais acreditados na cidade. [...] Era um sábado: [...] chegaram os
dois exatamente na hora da tabuada cantada. Era uma espécie
de ladainha de números que se usava então nos colégios, canta-
da todos os sábados em uma espécie de cantochão monótono e
insuportável, mas de que os meninos gostavam muito.

As vozes dos meninos, juntas ao canto dos passarinhos, faziam


uma algazarra de doer os ouvidos; o mestre, acostumado àquilo,
escutava impassível, com uma enorme palmatória na mão, e o
menor erro que algum dos discípulos cometia não lhe escapava
no meio de todo aquele barulho; fazia parar o canto, chamava o
infeliz, emendava cantando o erro cometido, e cascava-lhe pelo
menos seis puxados bolos. Era regente da orquestra ensinando
a marcar o compasso (ALMEIDA, 1963, p. 55-56).

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Figura 1: Capa do livro Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel


Antônio de Almeida, Editora Ática, 1989.
Para Zilberman (2001), esta cena se repete em Walsh (1985, p.
135), capelão estrangeiro que escreveu Notícias do Brasil, acerca dos
anos 1828-1829. Ele lembra a visita feita a uma escola: “o professor
sentava-se numa escrivaninha mais elevada e dirigia a classe com um
apito”. E também em Memórias Póstumas de Brás Cubas, na imagem
do professor Lugdero Barata, em que o narrador, retomando a lem-
brança da escola, recorda, apenas, a palmatória: “Ó palmatória, terror
dos meus dias pueris, tu que foste o compelle intrare com que um velho
mestre, ossudo e calvo, me incutiu no cérebro o alfabeto, a prosódia, a
sintaxe, e o mais que ele sabia” (ASSIS, 1959, p. 60-61).

Figura 2: Capa do livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de


Assis, Editora Ática, 1981.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

Vários outros exemplos enriquecem a análise da autora e


perpassam o terror expresso em lembranças como as de Visconde de
Nogueira da Gama, que tem como referência do professor público João
Batista Soares de Meireles as “duas dúzias de palmatoadas por uma
simples silabada”, figurativizadas nas páginas de Minhas memórias
(GAMA, 1893, p. 118).
Por outro lado, no Modernismo, Cyro dos Anjos cria Abdias
que, segundo Zilberman (2001), constitui a melhor caracterização de
um professor ideal dentre os outros esboçados no magistério nacio-
nal daquela época. Mesmo estando voltado para o estudo da história
da literatura, Abdias era o melhor exemplo de leitor daquela época e
incluía em suas aulas, como quesito obrigatório, o estímulo à leitura,
em que foi bem sucedido.

Figura 3: Capa do livro Abdias, de Cyro dos Anjos, Editora Globo, 1979.
Dessa forma, é possível que o personagem de Ciro dos Anjos
tenha dado ensejo a uma mudança na forma como o professor era
caracterizado na/pela literatura, porque percebemos que, a partir do
esboço da prática de Abdias, as narrativas produzidas passaram a tra-
zer exemplos explícitos de professores com condutas “construtivas” e/
ou “destrutivas” no plano da educação brasileira.
Por essa razão, acreditamos que os exemplos de performances
desenvolvidas pelos profissionais do ensino da leitura e da literatura,
desenhados na/pela literatura, foram determinantes e apontaram para
a necessidade de se repensar a figura do professor e de suas práticas
de letramento, no que diz respeito ao ensino da leitura e da literatura.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

A literatura é o canal mais apropriado para o repensar de nos-


sas práticas, pois ela é a manifestação da expressão do homem em vias
de evolução sócio-histórico e cultural. A literatura avalia o comporta-
mento humano e determina o que deve permanecer em uso e o que deve
ser evitado como prática humana. Nessa perspectiva, iremos destacar
uma pequena luz que julgamos ser o início de uma prática de letramento
guiada por um modelo ideológico com registro na literatura brasileira.
Como já é do nosso conhecimento, o olhar do professor, no
tangente ao estímulo à leitura, deve estar voltado para o espaço que
antecede e precede à escola. A leitura é uma prática de uso social e
não apenas escolar. Abdias tinha este pensamento. Mesmo cumprindo
o conteúdo curricular de história da literatura, ele induzia os jovens
alunos à leitura das obras literárias, orientando-as para fora da escola,
para a vida daqueles jovens.
Da mesma forma, uma professora informal ganhou destaque
em Til, romance regionalista de José de Alencar, publicado em 1872.

Figura 4: Capa do livro Til, de José de Alencar, Editora Ática, 1980.


Como destaca Zilberman (2001, p. 127), Berta é a mocinha que
concentra “todas as virtudes a que uma senhorita devia aspirar, cons-
titui a única a conseguir alfabetizar o semirretardado Brás, graças à
paciência com que lida com o jovem”. Segue os enunciados destacados
pela autora:
Ao cabo de um mês, conhecia Brás todo o abecedário. Que
inauditos esforços de paciência, que sublimes intuições não fo-
ram necessárias para vencer esse impossível!

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

Só Berta o poderia conseguir. A fascinação que exercia sobre


o idiota era uma sorte de encanto e magia. Sua vontade mo-
via aquele corpo, como se fosse o espírito que o animava. Brás
sentia e pensava unicamente pela alma dela, que lhe transmi-
tia as impressões no olhar carinhoso, na voz suave, no sorriso
fagueiro. Dir-se-ia que se tinha operado a misteriosa transfu-
são d’alma do anjo na grosseira bestialidade do monstrengo
(ALENCAR, 1957, p. 135).
O modelo contrário a esse magistério da professora Berta, que
lecionava fora da escola, é o tratamento que Brás recebia na escola em
que estava devidamente matriculado. Observe:
Havia em Santa Bárbara uma aula pública de primeiras letras, a
qual ainda o vulgo pelo costume antigo tratava de escola régia.
Servia de mestre um latagão de verbo alto e punho rijo, que fora
outrora ferrador e a quem chamavam Domingão.
Fiel às tradições da antiga profissão, entendia ele lá de si para
si que um bom processo de ferrar bestas devia de ser por força
de um excelente método de ensinar a leitura e a tabuada: e fos-
sem tirá-lo dessa ideia! Assim encaixava o abecê na cachola do
menino com a mesma limpeza e prontidão com que metia um
cravo na ferradura. Era negócio de dois gritos, um safanão e
três marteladas.
Tal era o professor, a quem incumbia a tarefa de ensinar a ler
ao Brás. Depois dos três primeiros dias de indulgência, pôs o
ferrador em prática o seu método repentino, que desta vez, com
pasmo seu, falhou completamente.
Debalde o Domingão brandiu a pesada palmatória de guarantã,
e ferrou uma chuva de formidáveis carolos na cabeça do Brás;
não conseguiu dele em um mês que repetisse o nome das três
primeiras letras (ALENCAR, 1957, p. 129-130).
Foi preciso ir para fora da escola para que Brás encontrasse
a atenção devida e o carinho de quem pretende, realmente, melho-
rar alguém para a vida na sociedade. Uma perspectiva de ensino
humanizado.
Na escola, o exemplo de Brás vem para ampliar um quadro
bastante comum de exemplos de um letramento autoritário e autônomo.
Para Zilberman (2001, p. 128),

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A prática de Domingão não difere substancialmente da que uti-


lizam seus parceiros literários, presentes nas obras de Manuel
Antônio de Almeida, Machado de Assis e Viriato Correia ou que
Nogueira da Gama, Graça Aranha e Raul Pompéia não esque-
ceram. Pode-se cogitar que eles traduziam o comportamento da
categoria dos docentes na cidade e no campo, onde a situação
devia se agravar, a ponto de um ferrador converter-se em mestre
de meninos. Berta, informalmente, contradiz o modelo, mas é
fora da sala de aula que dá vazão à sua pedagogia, configurando
a informalidade do procedimento e sua idealização.
A figura de Berta inaugura um papel novo para a mulher na
literatura. A mulher será o modelo de profissional do ensino, por sua
sensibilidade e a dedicada atenção para o bem estar do seu aprendiz. A
mulher/professora é a mãe que alimenta o filho/aluno com o leite lite-
rário. Ela é também a vovó que faz o doce como ninguém faz! Assim
sendo, caberia à mamãe e à vovó ocuparem o posto de educadora? Uma
coisa é certa: ninguém, além delas, saberia fazer isso melhor e faria
com tal zelo. Seria de bom tamanho segui-las como exemplo.
Monteiro Lobato (1956, p. 199), em deixar posto na fala de
Pedrinho, um dos personagens dos Serões de Dona Benta, foi sensível
para constatar que: “Tudo quanto sei me foi ensinado por vovó, durante
as férias que passo aqui. Só vovó sabe ensinar. Não caceteia, não diz
coisas que não entendo”. E critica: “Apesar disso, tenho, cada ano, de
passar oito meses na escola. Aqui só passo quatro...”.

Figura 5: Capa do livro Serões de Dona Benta, de Monteiro Lobato,


Editora Brasiliense, 1951.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

Em seguida, Monteiro Lobato sugere a “abolição da escola”.


Talvez, por ter em mente as lembranças de sua infância que a litera-
tura manteve preservada. O autor propõe a aprendizagem num lugar
alternativo.
Em Monteiro Lobato, o processo de produção textual visava
uma proposta pedagógica diferente e moderna demais para àquela
época. Se moderna para uma época de outrora, ela hoje se faz adequada
para os propósitos de um letramento ideológico que visa um trabalho
de ensino literário mediado por práticas e processos em que a leitura e
a literatura se confundem com as ações sociais e culturais dos sujeitos,
em uma sociedade plural e, ao mesmo tempo, individuada.
Foi com este olhar para o além que Lobato (1921), em A menina
do narizinho arrebitado, esboçou a seguinte situação-modelo de letra-
mento ideológico: “a velha informa-se a respeito do tema, que depois
repassa às crianças; essas, por sua vez, recebem o conteúdo transmitido
pela voz da avó, mas interferem, opinam, retrucam e, quando a situação
se apresenta, propõem soluções alternativas”.

Figura 6: Capa do livro A menina do narizinho arrebitado,


de Monteiro Lobato, Editora Brasiliense, 1982.
Zilberman (2001, p. 134) acrescenta que as adaptações das
fábulas de La Fontaine são outros exemplos que merecem destaque em
Lobato. Há a apropriação do texto alheio, “mas não se submete a ele,
discutindo permanentemente a validade dos temas e da moralidade que
cada história expõe”.

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A autora observa que ao estimular o interesse dos ouvintes (um


auditório composto pela população moradora no Sítio), “Dona Benta
não contradiz o modelo sintetizado por Berta ou Abdias, cujo ponto de
partida depende da resposta favorável dos destinatários”. Entretanto,
ela vai adiante: inclui a ação deles interagindo com o grupo a partir das
atribuições manifestadas pela fala da avó. Eles não contestam a auto-
ridade que o conhecimento adquirido confere àquela senhora, pois há
uma simetria entre os saberes que cada um possui, em decorrência da
generosa transmissão verbal de um para com os outros.
Os ensinamentos de Dona Benta são mediados pela oralidade e,
dessa forma, se estabelecem. Esta mediação do oral tem como suporte
o livro impresso. Como assinala Zilberman (2001, p. 135), em Lobato,
“a escrita simula a fala, camuflando sua origem e escondendo-se sob
a máscara da audição”. Ela crê que esse é um truque bem-sucedido do
autor. “O texto, produto da escrita e matéria de leitura, faz de conta que
é dito, enquanto o leitor acredita estar ouvindo; da mesma maneira que
ele pensa estar no Sítio, quando, na verdade, encontra-se numa forma
de escola”.
Para a autora, foi graças ao êxito desse procedimento que
Lobato formulou seu ideal de professora, traduzido por Dona Benta,
“que leciona de modo democrático”, mesmo não podendo “revelar a
identidade de seu projeto educacional”:
Mestra de qualidade, ela é igualmente boa e contumaz leito-
ra, [...] permanentemente atualizada, fazendo os picapauzinhos
cúmplices de sua prática cultural. Para dar certo, contudo,
compete-lhe mascarar seus atributos: nada pode revelar a
verdadeira face, para não perder o encanto - nem o texto se
declarar leitura, nem o espaço se confessar sala de aula
(ZILBERMAN, 2001, p. 135).
Segundo Zilberman (2001), o professor só deve aceitar a ambi-
guidade dessa condição, bem como a escola, para justificar a eficiência
do método. Se não aceitam essa condição dúbia, eles não precisam se
disfarçar. A razão para o caráter dúbio, tanto da escola quanto da ativi-
dade do professor, é motivada pelo fato de que nem a instituição e nem
o seu principal emissário podem admitir, publicamente, sua finalidade.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

Conclui-se, assim, que os professores transitam numa corda bamba,


porque ao
[...] atuarem de modo conservador e conformista, apresentar-
-se-ão na situação de expediente para ajustar o indivíduo ao projeto
[...] da classe dominante [...]. Ao adotarem perfil revolucionário, criarão
embaraços para o sistema, atraindo a reação negativa dos responsáveis
pela ordem e pelo funcionamento da sociedade.
Provavelmente decorra desse aspecto a perene suspeita que
pesa sobre a cabeça dos professores, [...] uma categoria que se divide
entre muitos apelos. [...] uma classe que ainda desconhece seu destino,
porque não assimilou seu passado (ZILBERMAN, 2001, p. 135-136).
Por meio desses fatos, enfatizamos que os professores são víti-
mas desse processo educacional, mas também são responsáveis pela
reprodução desse sistema que é figurativizado nas páginas da literatura.
Uma afirmação que permite indagarmos acerca do papel que a leitura
literária está ocupando na vida social do homem depois da escola.

4. ORIENTAÇÕES PARA UM LETRAMENTO LITERÁRIO

Num artigo intitulado Reflexões a respeito de um manual,


Barthes (2004) nos faz pensar na forma como a literatura é represen-
tada na vida após a escola. “Será que a literatura pode ser para nós algo
que não uma lembrança de infância? Quero dizer: o que é que continua,
o que é que persiste, o que é que fala da literatura depois do colégio?”.
(BARTHES, 2004, p. 43)
Segundo o autor, sempre fomos ávidos a pensar na literatura
como história da literatura, uma história da literatura como objeto basi-
camente escolar, que precisamente só existe no ensino e para o ensino.
Mas “se essa literatura [...] é uma lembrança de infância [...] de que
componentes é feita essa lembrança”? (BARTHES, 2004, p. 44).
A primeira lembrança Barthes (2004) diz ser “feita [...] de
objetos que se repetem, que voltam o tempo todo, [...]: os autores, as
escolas, os movimentos, os gêneros e os séculos” (p. 44). Para o autor,
não é normal que um século seja tomado como indivíduo, que tenha
uma existência quase humana, “mas estamos precisamente, pelas

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

lembranças de infância, habituados a fazer dos séculos como que indi-


víduos” (p. 45).
Há quatro grandes séculos fortemente individuados na lite-
ratura escolar, na história literária: “o XVI é a vida transbordante, o
XVII é a unidade, o XVIII é o movimento e o XIX é a complexidade”
(BARTHES, 2004, p. 45). E na prática escolar, estes quatro indivíduos
do tempo sempre foram colocados aos alunos como imposição de uma
lembrança, a partir do procedimento da memorização. É por esta razão
que o autor fala numa espécie de gramática da literatura.
A segunda lembrança é feita de censuras. E o que são essas
censuras? Para Barthes (2004), existe uma outra história da nossa lite-
ratura a ser escrita, “uma contra-história, um avesso dessa história, que
seria precisamente a história dessas censuras (p. 46)”.
A primeira censura diz respeito às classes sociais, mais espe-
cificamente a uma economia tendenciosa e que visa priorizar uma
classe social em oposição à outra:
As classes sociais; a estrutura social que está sob essa literatu-
ra raramente se encontra nos manuais de história literária, [...]
mas unicamente de passagem e a título de oposições estéticas.
O que o manual opõe, basicamente, são atmosferas de classe,
não realidades: [...] o espírito aristocrático é contraposto ao
espírito burguês e popular. [...] Encontram-se ainda [...] frases
do seguinte tipo: ‘Plebeu, Diderot carece de tato e de delica-
deza; comete enganos de gosto que traduzem vulgaridade nos
próprios sentimentos...’. Logo, a classe existe, mas a título de
atmosfera estética ou ética; em nível de instrumentos do saber,
há, nesses manuais, ausência flagrante de uma economia e de
uma sociologia da nossa literatura (BARTHES, 2004, p 46).
A segunda censura é a da sexualidade, mas Barthes (2004)
não faz considerações acerca dela, presumindo que o seu amigo Michel
Foucault, sendo o especialista desta área, já tenha feito uma obra monu-
mental da história da sexualidade em quatro volumes (sendo o quarto
volume obra não publicada, por pedido do próprio autor que faleceu
antes de sua conclusão).
A terceira censura é a da falta de reflexões acerca da ideia
do que é a literatura. Não há discussões que nos façam pensar na
validade do conceito que os séculos passados foram pintando do que

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

seja a literatura. Presume-se, ainda hoje, que a literatura seja algo que
está além do real e, por isso, distante do homem. Por sua fascinação e
encanto, a literatura foi encarada como objeto fantasioso, próprio para
crianças, produto de artistas em prol do entretenimento, não cabendo
na vida pós-escolar do indivíduo adulto, conceito estéril de verdade
sociocultural e histórica. O mais agravante foi o fato de ter-se esquecido
que o homem de hoje carrega dentro de si a criança que foi no passado,
que como demonstrado anteriormente, tem presente em sua mente as
lembras de infância que o revigoram em práticas contemporâneas.
A quarta censura é a linguagem. Segundo Barthes (2004), a
linguagem é um objeto de censura muito mais importante do que todos
os outros. Ela é uma censura manifesta, “aquela que os manuais asses-
tam contra os estados de língua afastados da norma clássica” (p. 47).
Esse puritanismo da língua gerou o preciosismo do século XVII, “uma
espécie de inferno clássico”.
Barthes (2004, p. 48) explica que, com essa censura, “não per-
demos apenas meios de expressão, como se diz, mas também, certa-
mente, uma estrutura mental, pois a língua é uma estrutura mental,
[...] segundo Lacan”. Para o autor, deveríamos evidentemente “partir
de uma condenação daquilo que se deve chamar de clássico-centrismo
(posição ou tendência daqueles que se colocam politicamente ao cen-
tro), que [...] marca ainda hoje toda nossa literatura, particularmente no
que concerne à língua”.
É preciso abolir a ideia de uma forma única de linguagem, que,
sendo a padrão, é o modelo universal de língua. Não cabe mais pensar
a língua como algo uniforme, pois a língua se deixa representar no
homem, e este não é uniforme. Cada povo possui uma forma de lingua-
gem própria, não sendo nem a certa nem a errada, porque não é de bom
senso fazer oposições em linguagem, o que é escrito em uma língua é
válido para aquela língua e não serve de modelo para outra. A língua
traz como marca a cara do povo que a fala.
Segundo Barthes (2004):
Há, por trás da ideia clássica de língua, uma ideia política: o
ser da língua, quer dizer, a sua perfeição e até o seu nome, está
ligado a uma culminância do poder: o clássico latino é o poder
latino ou romano; o clássico francês é o poder monárquico.

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É por isso que é preciso dizer que, no nosso ensino, cultiva-se,


ou se promove, aquilo a que eu chamaria língua paterna, e não
a língua materna - visto que, diga-se de passagem, o [...] falado,
não se sabe o que é; sabe-se o que é o [...] escrito porque há
gramáticas normativas, mas o [...] falado, ninguém sabe o que é;
para ficar sabendo, seria preciso começar por escapar ao clássi-
co-centrismo (BARTHES, 2004, p. 48).
Para o autor, esse clássico-centrismo, mesmo parecendo ultra-
passado, ainda nos persegue, porque a literatura é a monarquia, “cons-
trói-se a imagem escolar da literatura em torno do nome de certos reis
[...] de modo que, no fundo, apresentam-nos uma espécie de imagem
lisa onde o rei e a literatura refletem-se um no outro” (BARTHES,
2004, p. 49). Assim, tendo a história da literatura um centro, “é evi-
dente que ela se constrói em relação a esse centro” (p. 49).
É por ser a personalidade traduzida num estilo, e esse estilo
sendo alimentado por julgamentos de um modelo de língua daqueles
que estão no centro do poder, que só é literatura o que provém desse
meio, e só é escritor quem se enquadra dentre os representantes deste
poder monárquico. Assim sendo, todas as análises feitas são mediadas
por estes postulados, porque a língua tem sangue azul, e a literatura não
é diferente, é clássica ou vulgar. Essas oposições sempre separaram os
povos, os “nobres” dos “vulgares”, mas o que é ser nobre? Qual a ação
que caracteriza a nobreza? Nobre é aquele que entende a literatura vul-
gar como a forma de se fazer história, a verdadeira história do homem.
Daquele que, estando nas profundezas, traça um caminho em busca
da aceitação de sua identidade. Nobre, também, é aquele que, cons-
ciente do papel que essa literatura desenvolve como relato da existência
do homem em sociedade, faz dela um material de análise e reflete de
forma a reconstruir esta história, tanto na escola quanto fora dela.
Tendo em mente esse direcionamento do estudo da literatura
na escola para a formação de um indivíduo consciente do seu papel
social, Barthes (2004, p. 50-51) constata que há uma contradição pro-
funda entre a literatura como prática e a literatura como ensino. Para
ele, esta contradição esbarra na transmissão do saber literário que ainda
se prende às amarras de uma crítica literária voltada para um valor
estético e clássico. Para isso, é preciso que as estruturas da alienação
do saber sejam desvendadas. “Então é isso que é preciso trabalhar, e

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

que terá depois repercussões na literatura e no que se possa fazer dela


em termos de ensino, supondo-se que a literatura possa subsistir um
ensino, que ela seja compatível com o ensino” (p. 50).
Diante deste postulado, Barthes (2004) elabora três pontos
imediatos de acerto para a prática docente do professor responsável
pelo desenvolvimento de um letramento escolar literário:
O primeiro seria inverter o clássico-centrismo e fazer história
da literatura de frente para trás: em vez de tomar a literatura
de um ponto de vista pseudogenético, seria necessário fazer de
nós mesmos o centro dessa história e remontar [...] e organizar
essa história a partir dessa ruptura, assim, a literatura passada
seria falada a partir de uma linguagem atual, [...] a partir da
língua atual: já não se veriam infelizes estudantes obrigados
a trabalhar em primeiro lugar o século XVI, cuja língua mal
entendem, a pretexto de que ele vem antes do século XVII, [...]
sem qualquer relação com a situação atual deles.
O segundo princípio: substituir pelo texto o autor, a escola, o
movimento. O texto, nos colégios, é tratado como objeto de ex-
plicação, mas a própria explicação de texto é sempre ligada a
uma história da literatura; seria preciso tratar o texto não como
um objeto sagrado (objeto de filologia), mas essencialmente
como um espaço de linguagem, como a passagem de uma espé-
cie de infinidade de digressões possível, e então fazer irradiar;
a partir de certo número de textos, certo número de códigos de
saber que neles estão investidos.
Enfim, o terceiro princípio: a toda vez e a todo instante desen-
volver a leitura polissêmica do texto, reconhecer enfim os di-
reitos da polissemia, edificar na prática uma espécie de crítica
polissêmica, abrir o texto ao simbolismo (BARTHES, 2004, p.
50-51).

5. ÚLTIMAS PALAVRAS

É muito cômodo ensinar, mesmo por imposição, num modelo


autônomo de letramento, sendo muletas para o sustento da deficiência
educacional de um país cuja única preocupação é com a alfabetização
de crianças, jovens e adultos, o que não garante o desenvolvimento de

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

um senso crítico apurado, aquele que é alcançado mediante um pro-


cesso de letramento ideológico, caro aos dominantes governamentais.
O desenvolvimento desse pensamento crítico, promovido pelo letra-
mento ideológico, faria do povo brasileiro sujeitos conscientes de seus
direitos – saúde, moradia, educação, lazer... –, além de reconhecedores
de suas obrigações – alistamento militar, voto, pagamento de impos-
tos... –.
Pensamos que o ensino da leitura e da literatura, pautado por
um modelo de letramento ideológico, possa possibilitar a reconstrução
da identidade do povo brasileiro, em que o professor e o seu aluno estão
inseridos. É chegada a hora de deixarmos descansar aquela literatura
que sempre foi o modelo ideal de escrita e darmos voz, neste instante,
às literaturas do povo, que não são encomendadas para privilegiar
nenhuma classe, mas que é o resultado de um processo de existência,
de edificação do homem, fortemente, socializado.
Para tanto, torna-se urgente que o professor repense o papel
que a literatura ocupa na sociedade, modelando suas práticas, para que
a escola passe a figurar como uma possibilidade de aprimoramento do
indivíduo menino de hoje para o adulto que irá compor a sociedade
leitora do amanhã. É preciso ter em mente que a literatura não é apenas
um objeto estético, mas é tábua de registro/representação de nossas
práticas, inclusive a do profissional do ensino que atua na prática da
leitura e da literatura, sendo figurativizado, como este estudo destacou,
em ações que ora comprometem ora valorizam a postura do professor
diante do sujeito aluno.
Vê-se, então, a leitura e a literatura como possibilidades de
se equilibrar o impasse promovido por uma realidade assentada no
descaso e no completo abandono de políticas públicas comprometidas
com a educação nacional. Acreditamos numa ação docente sustentada
por práticas e processos de letramento, em que a leitura literária se faz
presente em suas múltiplas formas, sendo esta uma chave que permite
abrir as portas para uma nova realidade nacional. Tal condição permite-
-nos enxergar novas fronteiras e nos anima para o desenvolvimento de
nossas práticas docentes.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

REFERÊNCIAS

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Zahar, 1998.
_________________. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar , 2001.
_________________.  Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Zahar , 2007.
BARTHES, Roland. O rumor da língua. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2004.
_______________. O prazer do texto. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.
_______________. Aula. 13ª ed. São Paulo: Cultrix, 2007.
KLEIMAN, Ângela B. (Org.). Os significados do letramento: uma nova pers-
pectiva sobre a prática social da escrita. São Paulo: Mercado de Letras, 2001.
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LOBATO, José B. Monteiro. A menina do narizinho arrebitado. São Paulo:
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______________________. Serões de Dona Benta. 6. ed. São Paulo:
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ZILBERMAN, Regina. “Leituras sobre o professor: o que diz a literatura bra-
sileira”. In: MARINHO, Marildes. (Org.) Ler e navegar. São Paulo: Mercado
de Letras, 2001.
WASH, Robert. Notícias do Brasil. São Paulo: Edusp, 1985.

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O ATO DE LER: POSSIBILIDADES E PERSPECTIVAS PARA
ENSINO DE LITERATURAS NO ENSINO MÉDIO
Lucrécio Araújo de Sá Júnior
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

Neste trabalho, pretendo discutir o uso da literatura na sala


de aula, numa perspectiva transdisciplinar. Isso porque no Brasil, os
resultados obtidos pelos alunos nas diferentes avaliações do percurso
escolar (SAEB, SARESP, Prova Brasil, ENEM, PISA) não são satisfa-
tórios. Os textos literários podem funcionar como desencadeadores
do processo de letramentos multi-semióticos, letramentos múltiplos.
Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino
Médio (PCNEM), o ensino deve buscar desenvolver no aluno seu
potencial crítico, sua capacidade como leitor proficiente dos diversos
textos que circulam na sua cultura, através da competência de produzir
e avaliar seus próprios juízos (cf. PEREIRA & NEVES, 2012). Os prin-
cípios metodológicos que orientam as avaliações oficiais, a exemplo do
ENEM, priorizam a formação de competências e habilidades neces-
sárias à prática de leitura e escrita, valorizam a pesquisa e apontam
para um ensino interdisciplinar que busque promover o diálogo entre
as diferentes disciplinas para o desenvolvimento compreensivo integral
do aluno, uma vez que o conhecimento é profundamente inter-relacio-
nado. Considerando tais orientações, neste trabalho almejo ressaltar
que o objetivo pedagógico da Literatura como disciplina do Currículo
Escolar no Ensino Médio deve estar centrado no aperfeiçoamento inte-
lectual do aluno, sobretudo, nos usos atuais que o aluno poderá fazer
das obras literárias. Ou seja, como pensamento e linguagem mediado-
res da interação social, de interpretação do mundo e de compartilha-
mento de conceitos, informações e críticas, e não na exposição de tais
obras literárias ou saberes produzidos.
Sem perder de vista que muito empenho vem sendo demons-
trado no sentido de deixar a escola em condições de mais qualidade e
maiores êxitos, me parece útil começar por referir algumas constata-
ções menos positivas, acerca de como acontece a atividade pedagógica
no ensino de Filosofia nas Escolas (Cf. ANTUNES, 2009): i) há, atual-
mente, uma equivocada visão assumidamente privilegiada pela leitura

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

dos PCN1 e DCN2, visão essa fragmentada em questões ideologica-


mente defendidas pela sociedade do Mercado; ii) ministram-se as aulas
com o inevitável condicionamento da literatura pautado em um ensino
de história, com primazia em questões sem importância para o desen-
volvimento da atitude crítica, coisas com as quais muito tempo de aula
ainda é desperdiçado, uma vez que se apresentam as obras literárias
de forma descontextualizada e amorfa; iii) propõe-se uma atividade
incapaz de suscitar nos alunos a compreensão das múltiplas perspec-
tivas de apreender, pois, muitas vezes, o professor apresenta apenas a
corrente literária de sua preferência, sem problematizar o próprio cons-
truir, desconstruir, reconstruir o conhecimento; iv) concentram-se as
atividades em torno das opiniões e percepções informais, não concei-
tuais e espontâneas. Nesse contexto, predomina o saber coloquial, res-
tringindo o ensino a uma mera conversa informal; v) adotam-se textos
que não priorizam o universo lexical dos alunos: textos rígidos que não
proporcionam a leitura por possuir uma linguagem incompreensível;
vi) realiza-se uma leitura puramente escolar, sem gosto, sem prazer,
convertida em momento de treino, de avaliação ou em oportunidade
para futuras “cobranças”.
De acordo com Antunes (2009), na prática de ensino impro-
visada, sem planejamento e sem revisão dos conteúdos, na qual o que
conta é, prioritariamente, a tarefa de realizá-la, não importa “o que
se diga” e “como se faz” (pois essa prática já faz parte da escola). A
reorientação do quadro apresentado requer, antes de tudo, para conso-
lidar o currículo do ensino médio: determinação, vontade, empenho de
querer mudar. Isso supõe uma ação ampla, fundamentada, planejada,
sistemática e participada dos profissionais da educação, dos professo-
res e das políticas públicas (federal, estadual e municipal). A com-
plexidade desse processo impõe, na verdade, o cuidado em se prever
e se avaliar, reiteradamente, concepções, objetivos, procedimentos e
resultados, de forma que todas as ações se orientem para um ponto
comum e relevante: conseguir ampliar as competências crítica, comu-
nicativa e interacional dos alunos. O fato de assumir a discussão de
como aproximar o estudo de literatura desse ideal emancipador, que
1
Parâmetros Curriculares Nacionais
2
Diretrizes Curriculares Nacionais

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

vai além do conceito de cidadania, já apresenta um passo imensamente


significativo.
Para ministrar aulas no Ensino Médio, todo professor deve ter
conhecimento sobre história, a fim de contextualizar as obras, os temas
e favorecer a compreensão dos alunos. Obtendo o conhecimento his-
tórico, possivelmente os atuais professores compreenderão melhor o
presente, a fim de definir metas para o futuro.
A necessidade da inserção no currículo escolar de disciplinas
que tenham por objeto e objetivo o “fazer pensar”, bem como de um pro-
fissional formado especificamente para encarregar-se do ensino dessa
tarefa, parece, aos olhos de hoje, óbvia e indiscutível. Uma perspectiva
histórica mostra que não é assim: as diversas disciplinas presentes no
currículo escolar ainda mantêm um ranço hermético e conteudista.
Ao longo da história, a função do ensino de Literatura tem
sido, fundamentalmente, levar o conhecimento de alguns nomes de
escritores, principalmente romancistas, e de algumas correntes literá-
rias, talvez mesmo o reconhecimento do que foi produzido em cada
período da história. Dessa maneira, o ensino ocorre em alguns contex-
tos escolares através da leitura e interpretação daquilo que narram os
textos. Pensando o ensino de literatura e observando que a escola pode
ser um espaço para produção de conhecimento hoje, que outra coisa se
pode fazer?
Cabe ao professor do ensino médio estimular o desenvolvi-
mento de um pensamento conceitual e crítico, para que o aluno se sinta
integrado em um mundo que exige participação efetiva e consciente,
diante dos inúmeros desafios e acontecimentos que fazem parte do seu
cotidiano.
Para Pereira & Neves (2012), estimular, no Ensino médio, o
desenvolvimento de habilidades de observar, pensar e criar conceitos
pode ser a base consistente para a aquisição dos conhecimentos indis-
pensáveis ao pleno exercício da cidadania. O aluno deve, assim, ser
orientado a entender que não poderá se distanciar das atividades que o
levem a exercitar o pensamento crítico.
Isso lhe oferecerá as condições necessárias à aquisição de co-
nhecimentos no mundo contemporâneo, considerando que
pensar, por exemplo, a capacidade de organizar informações

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

adquiridas na leitura e na observação do mundo, a fim de tirar


conclusões para situações que demandem um pensamento cria-
tivo (PEREIRA & NEVES, 2012, p. 13).
Seguindo tais orientações, podemos pensar numa mediação
junto aos jovens das escolas da educação básica, através de atividades
que propiciem oportunidades de observar, pensar, refletir e criar con-
ceitos sobre o seu dia a dia, levantando problemas filosóficos vivencia-
dos em suas experiências. Isso poderá conduzir os alunos a assumirem
uma postura de amadurecimento intelectual, de autonomia, a fim de
que possam compreender o mundo e posicionarem-se diante dele de
modo emancipatório e transformá-lo.
A literatura pode contribuir para o letramento crítico. O tra-
balho do professor deve ser realizado na sala de aula, oportunizando
o acesso a obras literárias e possibilitando que se façam leituras críti-
cas. De acordo com Rojo (2009), as práticas sociais de letramento, que
exercemos em diferentes contextos de nossas vidas, vão constituindo
nossos níveis de alfabetismo ou desenvolvimento de leitura e escrita.
O termo letramento busca redescobrir os usos e práticas sociais
de linguagem que envolvem a escrita de uma ou de outra manei-
ra, sejam eles valorizados ou não valorizados, locais ou globais,
recobrindo contextos sociais diversos (família, igreja, trabalho,
mídias, escola, etc.), numa perspectiva sociológica, antropoló-
gica e sociocultural (ROJO, 2009, p.11).
Nesse sentido, podemos entender que a leitura de textos lite-
rários na sala de aula poderá permitir a multiplicidade de práticas
(letramentos múltiplos). Seguindo Rojo (2009), defendo que um dos
objetivos principais da escola é possibilitar que os alunos participem
das várias práticas sociais que se utilizam da leitura e da escrita na vida
em sociedade, de maneira ética, crítica e responsável. Para fazê-lo, é
preciso que a educação escolar permita realização dos letramentos crí-
ticos e protagonistas.
Com o auxílio da literatura, a escola poderá potencializar o
conhecimento multicultural dos alunos, permitindo a compreensão dos
papéis sociais por eles exercidos a nível local, regional e global.
Caberá à escola potencializar o diálogo multicultural, trazendo
para dentro de seus muros não somente a cultura valorizada,

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

dominante, canônica, mas também as culturas locais e popu-


lares e a cultura de massa, para torná-las vozes de um diálogo,
objetos de estudo e crítica (ROJO, 2009, p. 12).
Para Antunes (2009), a leitura de textos literários possibilita
o contato com a arte da palavra, com o prazer estético, com a criação
artística, com a beleza gratuita da ficção...
Leitura que deve acontecer simplesmente pelo prazer de fazê-lo.
Pelo prazer da apreciação, e mais nada. Para entrar no mistério, na
transcendência, em mundos de ficção, em cenários de outras ima-
gens, criadas pela polivalência de sentido das palavras (ANTUNES,
2009, p. 200).
Mas será que é isso que acontece nas Escolas? As práticas
escolares atuais fomentam a leitura de textos literários pelo prazer?
Essa pergunta faz com que pensemos em outra indagação: “a leitura é
vista pelos alunos da escola com fascínio, com sedução?”.
Nós vivemos num universo escolar fragmentado, em que o
saber é dado através de uma separação das disciplinas. Não existe diá-
logo entre os conhecimentos das diversas disciplinas. Assim parece
que a história não se relaciona com a geografia nem com a Biologia. A
matemática não se relaciona com a física nem com a química. E, assim,
também ocorre com as aulas de língua portuguesa, quando há a divisão
entre redação, literatura e português. Como observa Oliveira (2010), a
divisão é tão aguda que há escolas em que cada uma dessas disciplinas
fica a cargo de um professor específico.
O problema maior dessa divisão, segundo Oliveira (2010), é
que as aulas de português acabam sendo vistas como o lugar mera-
mente reservado para o ensino de gramática, no qual o ensino de lei-
tura, ou melhor, o ensino de compreensão de textos se torna superficial,
uma ocorrência meramente incidental. Nesse sentido, Antunes (2009)
observa que o cuidado por desenvolver uma competência na leitura de
gêneros textuais que mais cotidianamente circulam na sociedade (como
cartas, avisos, anúncios etc.) não deve enfraquecer o empenho em pro-
mover o convívio com diferentes gêneros literários e com as obras de
que os textos fazem parte: “a história de nossa travessia, ao longo dos
séculos, está refletida também no grande intertexto que constitui nosso
acervo literário” (ANTUNES, 2009, p. 200).

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

Para Umberto Eco (2003), a literatura é algo que serve tanto à


saúde do corpo quanto à educação intelectual. É inegável que os textos
literários são muito importantes para a construção dos conhecimentos
de mundo dos estudantes. Assim, a leitura de textos literários serve
para estimular os alunos a desenvolverem o hábito de realizar leituras
críticas.
A literatura é fundamental para fazer com que os alunos
cresçam intelectualmente. Os romances, por exemplo, são textos
que podem permitir um aprimoramento do conhecimento de mundo:
conhecimento que decorre da familiaridade com os esquemas de orga-
nização das experiências, a partir dos quais se pode preconizar uma
coexistência social.
Rojo (2009), em sua obra “Letramentos múltiplos: escola e
inclusão social”, cita um exemplo interessante: o dia da Profa. D. Naná.
Ele se inicia para ela, como dona de casa, na esfera doméstica
ou cotidiana, deixando bilhete para sua diarista e telefonando à
oficina autorizada; neste meio tempo, ela liga a TV e toma con-
tato com a esfera jornalística, como consumidora de notícias,
e com a publicitária, como consumidora de produtos; em se-
guida, como consumidora, se desloca para a esfera burocrática
do comércio, fazendo um depósito bancário pelo computador
e deslocando-se por meio de transporte público, para adentrar,
em seguida, como professora, a esfera escolar. Retornando a
sua casa, em seguida, como professora, ainda tem energia para
assumir o papel de espectadora de produtos da esfera de entre-
tenimento (midiático), vendo a novela televisiva, para depois,
como namorada, dialogar com seu companheiro pelo MSN na
esfera íntima e, finalmente, voltar à esfera escolar, dessa vez
como aluna, para fazer atividades on-line de seu curso semipre-
sencial (ROJO, 2009, p. 110).
Como podemos observar, as esferas de circulação de discursos
não são estanques e separadas, mas, o contrário, interpenetram-se o
tempo todo em nossa vida cotidiana, organizando-a e organizando nos-
sas papéis sociais. Segundo Bakhtin (1992), cada uma dessas esferas de
atividade humana é também uma esfera de enunciados relativamente
estáveis, sendo isso que denominamos gêneros de discurso. Ou seja,
nas nossas práticas cotidianas, fazemos usos de gêneros variados admi-
tidos, cada um, na sua esfera de pertencimento.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

Na sala de aula é importante ler textos que reflitam histórias de


vida, para que os estudantes se instaurem como percebendo o seu pro-
jeto existencial. Isso é o que nos dita toda a obra de Kafka, de Fiódor
Dostoiévski, de João Cabral de Melo Neto, além das obras de Raquel
de Queiroz, Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Graciliano Ramos,
Mário Quintana, entre outros.
A literatura tem um aspecto interessante: se faz como represen-
tação universal do que é humano. Os textos literários refletem as con-
dições específicas e as finalidades de cada uma das esferas sociais de
vida humana, não só pelos conteúdos temáticos que os constituem, mas
pelos diversos recursos operados, sendo estes recursos lexicais, fraseo-
lógicos, gramaticais, e, sobretudo, por sua construção composicional.
Nesse sentido, faz-se necessário criar inteligibilidade recí-
proca entre as disciplinas escolares, a fim de que se possa aprofundar
o que a literatura tem em comum com as demais disciplinas, ou o que
as demais disciplinas têm em comum com a literatura, de modo a se
promover alianças transdisciplinares e criar a capacidade de se fazer
prosperar nos alunos o aprimoramento intelectual.
O papel da escola na contemporaneidade seria, então, o de
colocar em diálogo transdisciplinar – não isento de conflitos, mas poli-
fônico em termos bakhitinianos – os saberes disciplinares. Assim, a
escola poderia formar um cidadão flexível, democrático e protagonista,
com uma visão de mundo multicultural.
Cabe, também, à escola potencializar o diálogo multicultural,
trazendo para dentro de seus muros não somente a literatura valorizada,
dominante, canônica, mas, sobretudo, as literaturas locais e populares,
para torná-las vozes de um diálogo, objeto de estudo e crítica. “Para tal,
é preciso que a escola se interesse por e admita as culturas locais dos
alunos e professores” (ROJO, 2009, p. 115).
O professor tem uma grande responsabilidade no desenvolvi-
mento da capacidade leitora do aluno. A leitura de textos literários pode
ser considerada no contexto escolar como uma das principais provas de
enriquecimento intelectual dos alunos. A literatura como ferramenta
para a educação deve colaborar para a ampliação dos ‘recursos intelec-
tuais’ de cada aluno, para que ele – que é o protagonista real – confi-
gure uma personalidade inteligente.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Irandé. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo:
Parábola Editorial, 2009.
MOITA-LOPES, L. P. & ROJO, R. H. R. Linguagens, códigos e suas tecnolo-
gias. In: BRASIL, Ministério da Educação. Orientações Curriculares para o
Ensino Médio. Brasília, DF: MEC/SEB/DPEM, 2004.
OLIVEIRA, Luciano Amaral. Coisas que todo professor de português pre-
cisa saber: a teoria na prática. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
PEREIRA, Cilene da Cunha & NEVES, Janete dos Santos Bessa. Ler/Falar/
Escrever: práticas discursivas no ensino médio – uma proposta teórico-meto-
dológica. Rio de Janeiro: Lexikon, 2012.
ROJO, Roxane. Letramentos Múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo:
Parábola Editorial, 2009.

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A ABORDAGEM DO POEMA NO
ENSINO MÉDIO: ALGUMAS ALTERNATIVAS
José Helder Pinheiro Alves
Universidade Federal Campina Grande

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

[...] a leitura de poemas desestabiliza a leitura espontânea, fere


a ordem lógico-referencial de nossos hábitos de compreensão e
representação do mundo e torna visível o processo de constru-
ção de sentido. A elipse, a concentração, o potencial alusivo e
a semantização de todos os níveis do texto próprios da poesia
requerem um esforço interpretativo maior do que o habitual em
outras leituras. Aprender a ler um poema é aprender a construir
sua coerência, apoiando-se sucessivamente nas “zonas legíveis”
para o leitor que busca o sentido através de entradas sucessivas
(COLOMER, 2007, p. 177).

INTRODUÇÃO
A reflexão sobre questões metodológicas relativas ao ensino de
literatura, no meio acadêmico de Letras, tende, ainda, a ser considerada
coisa menor, assunto para pedagogo. A concepção que perdura é a de
que o professor de literatura ou o crítico literário não deve se preo-
cupar com este tipo de questão, uma vez que está investido por uma
função mais sublime: vivenciar a grande literatura e comunicar a seus
alunos as suas descobertas, as suas reflexões e pesquisas. Chega-se,
inclusive, a denominar de pedagorreia qualquer tentativa de refletir
sobre questões relativas à formação do leitor literário. Esta visão pre-
conceituosa vem lentamente mudando. Certamente, ela está ligada à
tradição bacharelesca que esteve na origem de nossos cursos de Letras,
entre outras razões.
Sabemos hoje – bem antes que Todorov nos trouxesse o seu
belíssimo A literatura em perigo – que o estudante de Letras precisa de
uma formação metodológica mínima que o habilite a realizar um traba-
lho sério de formação do leitor no ensino básico. Para tanto, não é sufi-
ciente o conhecimento de teorias literárias, de leituras críticas. Digo
não é suficiente – o que não quer dizer que estas leituras não sejam
necessárias1. Aliar um conhecimento metodológico a um conhecimento
1
Discuto uma possibilidade de articulação entre teoria literária, crítica literária e ensino
em Pinheiro (2006). Trata-se de uma perspectiva que parte do texto para chegar a uma

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

crítico das obras é o melhor caminho para formação dos jovens profes-
sores de literatura. Trata-se de uma discussão em andamento, mas já
com uma tradição.
Neste artigo, discutiremos mais especificamente uma possi-
bilidade de trabalho com o poema no nível médio. Trata-se de uma
escolha nascida de uma constatação, como se verá mais abaixo. Nossa
abordagem terá três momentos: primeiro discutimos rapidamente
algumas pesquisas e reflexões sobre o ensino da literatura a partir da
década de 80 do século passado; a seguir elencaremos alguns proble-
mas – bem antigos – relativos ao ensino desta disciplina e, por último,
trazemos uma sugestão de abordagem em sala de aula de poemas de
duas poetisas contemporâneas.
O viés escolhido para a abordagem dos poemas é o que tenta
aliar conhecimento crítico dos textos a procedimentos metodológicos
que privilegiam o diálogo do leitor com o texto e não a mera reprodu-
ção e imposição, por parte do professor, de sua leitura. Essa perspectiva
foge, portanto, da tradicional aula expositiva e investe no estímulo à
fala do aluno, e, consequentemente, à exposição de suas percepções.
Trata-se de um trabalho mais difícil, que exige, inicialmente, paciência
por parte do professor. No entanto, os resultados, quase sempre, são
mais expressivos do que se imagina ou espera. Dando suporte a este
procedimento está a ideia de uma pedagogia da pergunta, formulada
por Paulo Freire há algum tempo.

1. ENSINO DA LITERATURA: ALGUMAS REFLEXÕES

O ensino da literatura no nível médio, no Brasil, vem sendo


objeto de pesquisa há bem pouco tempo. O primeiro estudo mais abran-
gente sobre esta questão, de Maria Thereza Fraga Rocco, foi publicado
em 1981. Trata-se de uma dissertação de mestrado defendida em 1975,
na Universidade de São Paulo, intitulada Literatura/ensino: uma pro-
blemática. O trabalho de Rocco investiga professores e alunos de esco-
las públicas e particulares de São Paulo. Algumas questões observadas
ainda têm bastante atualidade, como a então dependência do professor
formulação teórica mínima; jamais iniciar, nesta fase do ensino, diretamente com a teo-
ria para aplicá-la.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

com relação ao livro didático. Outro aspecto é a atenção dada à fala do


aluno – através das entrevistas –, o que revela suas concepções, seus
interesses, aspectos sempre esquecidos quando se pensa a abordagem
do texto literário na escola. O livro traz também longas entrevistas com
importantes professores, poetas e críticos literários como Alfredo Bosi,
Décio Pignatari, Haroldo de Campos, Nelly Novaes Coelho, dentre
outros. Importa salientar que a pesquisa aborda a literatura no primeiro
e no segundo graus (terminologias da época, que correspondem, atual-
mente, aos ensinos fundamental – últimas séries – e médio). Não há, na
pesquisa, uma referência mais específica ao ensino da poesia. Fala-se
de Literatura de modo geral e percebe-se que muitos entrevistados res-
pondem referindo-se especificamente à leitura de obras de ficção.
Trabalho da maior importância, publicado em 1983, é o de
Lígia Chiappini M. Leite, intitulado A invasão da catedral: literatura
e ensino em debate. A pesquisadora toma como corpus de sua pes-
quisa o ensino da literatura no Brasil e na França e justifica seu intento:
“Impunha a comparação, para saber se os problemas que enfrentáva-
mos na docência e na pesquisa deste ramo das chamadas Humanidades
era coisa de país subdesenvolvido sob ditadura ou era fenômeno mais
geral da escola capitalista” (LEITE, 1983, p. 17). O livro traz, também,
ensaios ainda de grande atualidade, como uma reflexão dura sobre a
dependência do manual (“Do manual; pelo manual; contra o manual”) e
a abertura para se pensar uma “Pedagogia da Ad-miração”. Parte deste
livro é retomada e ampliada numa publicação denominada Reinvenção
da catedral: Língua, Literatura, comunicação, novas tecnologias, polí-
ticas de ensino. O pensamento de Língua Chiappini articula de modo
denso as questões de ensino às de política de educação vigentes no país.
Por outro lado, não há propriamente uma metodologia voltada para o
trabalho com a poesia.
Mais recentemente, José Luis Jobim (2009) publicou um ensaio
sobre A literatura no ensino médio: um modo de ver e usar. Para o autor,
a introdução do texto literário em classe deve sempre ter em
conta o universo dos seus receptores, estabelecendo, se for o
caso, uma “gradação textual” para trazer ao público estudantil

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

primeiramente o que for mais fácil para ele, para depois, paula-
tinamente, chegar ao mais difícil (JOBIM, 2009, p. 116)2.
A seguir, Jobim discute a relatividade entre fácil e difícil, a
partir da comparação entre dificuldades de recepção de O cortiço, de
Aluísio Azevedo, e Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade. A
discussão proposta pelo pesquisador, por outro lado, volta-se para a
narrativa, deixando de lado a poesia.
Voltadas especificamente para o trabalho com o poema no
ensino médio, temos a tese de doutorado de Diva Sueli Silva Tavares,
defendida na UFRN em 1977. Centrada num experimento realizado
com alunos do ensino médio de uma escola pública, a pesquisa mostra
que, quando se investe numa metodologia que privilegie a aproxima-
ção do texto com a realidade do leitor e se efetiva uma postura mais
dialógica – quer com os textos, quer com os leitores –, é possível esti-
mular o jovem para uma experiência de leitura significativa. Os tex-
tos escolhidos, por outro lado, não se prendem ao cânone que perdura
nos livros didáticos, abrindo espaço para outras experiências de lei-
tura – como defendem as OCEM3-2006. Está claro para a pesquisadora
que o problema do ensino da literatura não está ligado apenas à sele-
ção de conteúdos. Para ela o professor deve desempenhar “o papel de

Esta perspectiva comparece em outros pesquisadores. Alfredo Bosi em entrevista a


2

Rocco (1981), indagado sobre as escolhas das obras para a escola básica, faz pondera-
ções importantes e bastante atuais. Primeiro sugere “Começar por textos de linguagem
acessível que é afinal o que se tem feito.” A seguir, afirma: “Quanto ao tipo de aborda-
gem crítica a ser seguido, temos que separar bem o ensino da literatura no secundário
e o ensino da literatura na Universidade. Acho que a abordagem no secundário deverá
ser, segundo minha experiência, muito mais flexível e aberta. É preciso verificar se o
texto motiva, de alguma forma, os adolescentes. Ao passo que na Universidade, a gente
pode submeter os alunos a textos para os quais não estão motivados diretamente.” (p.
102/103) Bem antes, numa introdução da famosa Antologia Nacional, de Carlos Laert
e Fausto Barreto, organizada no final do século XIX, o critério de iniciar o ensino de
literatura com obras contemporâneas já aparece. Neste sentido, na parte de poesia, os
autores iniciam com “Poetas – fase contemporânea”, composta basicamente pelo que
denominamos hoje de “românticos e parnasianos”; a seguir vai para os portugueses da
mesma época e depois para “Fase acadêmica” (século XVIII e parte do XIX), “Fase
seiscentista” (século XVII) e “Fase medieval”. O critério dos organizadores é explici-
tado no prefácio da primeira edição: “Acertado julgamos principiar pela fase contem-
porânea e desta remontar às nascentes da língua, pois que tal é o caminho natural do
estudioso, que primeiro sabe como fala, para depois aprender como se falava.” (LAERT
& BARRETO, 1960, p. 7)
Orientações Curriculares para o Ensino Médio
3

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

mediador entre o aluno e o conhecimento, e não de mero transmissor de


conhecimentos; aprendizagem não é um ato solitário, mas de interação
com o outro; [...] o diálogo deve ser permanente, permeando o trabalho
escolar” (TAVARES, 2007, p. 186) Diferentemente dos trabalhos ante-
riores, a pesquisa de Diva Tavares vai a campo realizar experimentos
para, a partir deles, propor alternativas. Esta perspectiva vem sendo
realizada por pesquisadores em diferentes pontos do país, afinal, não é
mais possível ficar apenas apontando os problemas sem buscar alterna-
tivas e, muito menos, esperar uma solução da cabeça de um iluminado4.
Se, por um lado, o trabalho com o poema no nível médio ainda
está a reclamar pesquisas mais experimentais, que revelem as virtua-
lidades do trabalho com este gênero, por outro, a literatura infantil foi
o setor da literatura que mais recebeu atenção dos pesquisadores que
vêm pensando a problemática do ensino. Consequentemente, temos um
número significativo de livros, de ensaios sobre o trabalho com a nar-
rativa infantil e um pouco menos com a poesia na sala de aula5.
A questão do ensino da poesia começa a ficar mais esquecida
quando se chega à segunda e terceira fases do ensino fundamental.
Basicamente, o guia dos professores nesta etapa do ensino é o livro
didático que, praticamente, não tem avançado numa proposta que, no
mínimo, incorpore algumas contribuições trazidas pelos documen-
tos parametrizadores – Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN),
Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM) e documentos
estaduais. Este veículo vem sofrendo várias críticas sobre o modo como
trabalha o poema, mas pouquíssimas mudanças são observadas quando
se trata da abordagem do gênero lírico.

4
Dentre as pesquisas mais recentes a que tivemos acesso, voltadas para o trabalho com a
poesia ou/e sua interseção com outros gêneros, apontamos: Farias (2010), Martins (2010)
e Silva (2009).
5
No âmbito da literatura infantil, os livros de Resende (1993), Aguiar (2001), Paiva et al
(2004), Souza (2004) etc. são alguns dos livros que apontam para um trabalho significa-
tivo com os diferentes gêneros da literatura infantil em sala de aula. Numa perspectiva
mais geral, que tanto pode ser útil para o ensino médio quanto para o fundamental,
destacamos a contribuição de Aguiar & Bordini (1988), com destaque para o método
recepcional. Dantas (1982) escreveu uma didática da literatura que, em linhas gerais,
não vai muito além do que está posto nos livros didáticos, com a exceção de que traz a
possibilidade de se trabalhar a literatura de cordel.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

Os livros didáticos (LDs) do ensino médio continuam a


ignorar orientações importantes para o trabalho com a literatura, como
as que aparecem nas OCEM, desde 2006. Embora praticamente todos
eles citem o documento no Manual do Professor, de fato os conteúdos e
as metodologias permanecem os mesmos. Inclusive os mesmos textos.
Dentre os livros didáticos mais vendidos, alguns já estão no mercado
há mais de 20 anos e praticamente não há, por exemplo, acréscimo
significativo de textos literários, embora muitos já tragam indicações
de livros, de filmes, de sites, etc. Eles limitam-se a abordar o poema de
uma perspectiva meramente histórica, lançando mão de fragmentos de
que ilustram de modo mais claro as características dos estilos de época.
Para complicar a situação, a proposta do ENEM, no que se refere à
abordagem da poesia, pouco favorece como incentivo à leitura – quer
de livros de poetas em sua totalidade, quer de antologias.6

2. IDENTIFICANDO NOVOS PROBLEMAS

Mas as questões não são apenas estas a apontar. Inúmeras


outras nem sequer são percebidas pelos professores e pelos pesquisa-
dores em geral. Destacaremos três questões que nos parecem bastante
problemáticas com relação ao trabalho com o poema.
Analisando um corpus de cinco livros didáticos – três volumes
do terceiro ano do Ensino Médio, série em que se estuda nossa litera-
tura a partir do Modernismo, e dois volumes únicos, que contemplam
toda a literatura brasileira –, observei que há uma lacuna significativa
com relação à produção de poesia escrita por mulheres. Lembremos
que se trata de um lastro que recobre nada menos do que oitenta anos
– da década de 20 do século passado à primeira década do século XXI.
Observemos alguns dados relativos à presença da lírica produzida por
mulheres:
1. Cecília Meireles: comparece em todos os livros observados,
sempre com um poema;
2. Adélia Prado: comparece em 4 livros, mas em três deles é ape-
nas citada;
6
Sobre os limites da abordagem dos textos literários nos livros didáticos, discutimos
algumas questões em Pinheiro (2006).

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

3. Ana Cristina César: comparece em quatro livros, em três tam-


bém é apenas citada;
4. Hilda Hilst: está presente apenas em um livro;
5. Henriqueta Lisboa e Gilka Machado não comparecem em
nenhum deles.
Paralelamente a essa quase ausência da voz lírica feminina,
constatamos a presença de cerca de vinte poetas (homens), alguns
com um enfoque que pode ser considerado razoável. A disparidade,
portanto, é gritante e permanece não só nos livros didáticos; ela está
presente, também, em dezenas de antologias da poesia moderna e
contemporânea.
Esta ausência, ao que nos parece, deixa cada vez mais frágil
a formação de nossos estudantes, no sentido de que o acesso a uma
experiência humana peculiar, que é a da mulher, sobre a qual os alunos
poderiam discutir, se projetar ou mesmo rejeitar, fica fora de nosso já
frágil ensino de literatura. Este sequestro da voz lírica feminina pode,
sub-repticiamente, significar que as musas da lírica estariam mais pro-
pensas ao homem...
Outra questão – que não será possível enfrentar agora, mas
que é importante apontar – é a ausência da literatura popular nos livros
didáticos – ou o uso um tanto equivocado da literatura de cordel. Os
problemas aqui são os mais diversos: primeiro, relativo à origem do
nome cordel, uma vez que todos afirmam que a denominação é advinda
do fato de os vendedores colocarem os folhetos pendurados em bastan-
tes/cordéis. Ora, vários pesquisadores já mostraram que, pelo menos no
Brasil, o que predominou durante mais de cinquenta anos foi o vende-
dor ambulante e não o ponto fixo de venda. Mas o mais grave é o des-
conhecimento mesmo desta literatura. Os autores de LDs parecem não
ter leitura dos folhetos, não conhecer suas especificidades, a riqueza de
temas e questões abordados nestas obras ao longo do século XX.
A última questão, e talvez a mais complexa, diz respeito à meto-
dologia de ensino de literatura. Pouquíssimas obras didáticas ostentam
uma abordagem que parta inicialmente da leitura dos poemas para,
depois, chegar a questões mais amplas de estilo de época, de traços de
autores e de temáticas predominantes, de aspectos históricos e ideoló-
gicos presente nos textos. Junte-se a isto a tradição, ainda implacável,

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

da aula expositiva, que ceifa do aluno/ouvinte a possibilidade de ler e


debater, de partilhar com os demais leitores seus pontos de vistas, suas
descobertas e, também, de ver questionadas inferências que possam
fugir do texto lido. Um aspecto fundamental no trabalho com o poema,
que é a realização oral, também fica fora da abordagem da maioria dos
livros didáticos7. A leitura oral, repetidas vezes, pode se constituir num
importante instrumento de aproximação do jovem leitor da poesia.
Outras questões poderiam ainda ser apontadas, como o pro-
blema das bibliotecas públicas no país, sobretudo nos municípios
menores, e a ausência da biblioteca escolar ou das salas de leitura.
Embora tenhamos contado nos últimos anos com programas que levam
livros às escolas, como a coleção Literatura em minha casa e, mais
recentemente, as constantes aquisições do PNBE (Plano Nacional de
Biblioteca Escolar), não há nas escolas públicas brasileiras do ensino
básico, bibliotecários, formação adequada do professor, egresso do
curso de Letras, para fomentar o trabalho com a leitura. Ou seja, não
temos, de fato, mediadores de leitura em nossa tradição escolar, e essa
lacuna pode ter sérias consequências no, sempre falado, baixo nível de
leitura dos brasileiros8.
Toda essa problemática, ao invés de nos desanimar, nos esti-
mula a pesquisar alternativas, a realizar experimentos que possam ser-
vir de base para políticas de leitura na e para a escola, e, dessa forma,
contribuir com professores interessados em mudar sua prática e for-
mar adequadamente os estudantes de Letras que irão atuar no ensino
básico. É nesse sentido que estamos tentando formular/propor alternati-
vas para o ensino da literatura e, mais especificamente, para o trabalho
com o poema.

3. FORMULANDO UMA PROPOSTA

7
Discutimos um pouco esta questão no artigo denominado “Caminhos da abordagem do
poema em sala de aula, In; Graphos: Revista de Pós-Graduação em Letras – UFPB. Vol
10, nº 1, 2008.
Para quem possa ter dúvida sobre a importância do mediador ou do professor-mediador,
8

veja-se a importante pesquisa de Michèle Petit (2008). Destaco, sobretudo, o quarto


capítulo – “O papel do mediador” – como importante contribuição para se pensar ou
reprensar a metodologia de ensino de literatuara.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

Diante desta problemática, que propostas poderemos fazer?


Que alternativas para um trabalho com a poesia podemos apresentar,
tendo em vista a formação de leitores? Primeiramente, é preciso deixar
claro que o caminho que o livro didático vem percorrendo há mais
de cinquenta anos não tem contribuído, como se esperava, para a for-
mação de leitores de poesia. Possivelmente, um dos problemas são os
poemas oferecidos no primeiro ano do ensino médio. Certamente, se
selecionarmos alguns sonetos de Camões, teremos grande chance de
despertar no leitor o interesse pela poesia. Mas nem só de Camões vive
nossa poesia. A poesia medieval, a poesia Barroca – exceto uma certa
vertente satírica de Gregório de Matos Guerra – não tem conseguido
chamar a atenção de parte significativa dos jovens. E nem estamos,
ainda, discutindo o método como esses textos são abordados.
Um caminho que comparece nos Referenciais Curriculares
para o Ensino Médio do estado da Paraíba sugere que no primeiro e no
segundo ano deveria ser realizado, a partir do estudo dos gêneros lite-
rários, não das teorias dos gêneros – de uma conceituação estanque –,
mais leituras de obras. Nesse sentido, pode-se trabalhar, por exemplo,
um bimestre inteiro com a poesia. E é aí o documento traz várias pro-
postas, tais como: i) organização de antologias temáticas – envolvendo
poemas de diferentes épocas; ii) antologias organizadas por autores/as
– Drummond, Vinícius, Adélia Prado, Alice Ruiz, etc; iii) antologias
por gênero – poetas, poetisas; iv) antologias de cordel; v) antologias
com canções, etc. Também pode-se trabalhar com antologias por for-
mas da lírica: sonetos, odes, hai kai, epigramas, etc. Tais sugestões,
contudo, esbarram na metodologia: “como trabalhar?”; “Que aborda-
gens realizar?”.
O trabalho com antologias tem inúmeras vantagens sobre o
LD. A primeira diz respeito ao número de poemas que pode ser bem
maior. Os livros didáticos avaliados pelo MEC como bons trazem,
no máximo, três ou quatro poemas por autor, digo, dos considerados
grandes poetas. Outra peculiaridade da antologia: pode-se trabalhar
com poemas menos frequentes nos LDs que apresentem outras faces
do autor. E, por último, pode-se selecionar os poemas atendendo ao
horizonte de expectativas dos alunos, visando não só atendê-lo, como
ampliá-lo.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

Embora pouco privilegiadas na atualidade, as antologias têm


uma história e uma contribuição importante para o trabalho com a lite-
ratura. No âmbito específico da poesia brasileira, temos várias anto-
logias de grande mérito. Destaque para as organizadas por Manuel
Bandeira, sobre a poesia romântica e parnasiana; por Sérgio Buarque
de Holanda, sobre a poesia colonial; por Andrade Muricy, sobre a poe-
sia simbolista; além das de Péricles da Silva Ramos, sobre a poesia
Moderna. Anterior a todas estas, não podemos esquecer a importân-
cia que teve a Antologia nacional, organizada por Carlos de Laet e
Fausto Barreto, cuja primeira edição é de 1895 e que continuou sendo
publicada até a década de 60 do século XX. Embora não fosse uma
antologia apenas de poemas, a parte que contemplava a poesia pode ser
considerada bastante consistente dentro dos critérios da época em que
foi concebida. As antologias favorecem uma abordagem mais vertical
de um autor ou de um tema e pode estimular o jovem leitor a buscar as
obras dos poetas e poetisas estudados. É mais provável que a partir de
uma boa antologia o leitor saia em busca de obras pontuais de determi-
nados poetas. E é isto o que se e espera.
Pesquisas realizadas em várias universidades brasileiras têm
mostrado que a abordagem colaborativa parece ser a mais adequada,
quando se pensa em formação de leitores. Nesse sentido, as reflexões
de Teresa Colomer (2007) são de grande importância.
Para a pesquisadora espanhola, a leitura compartilhada traz
vantagens das mais diversas, como:
Compartilhar as obras com outras pessoas é importante por-
que torna possível beneficiar-se da competência dos outros para
construir o sentido e obter o prazer de entender mais e melhor
os livros. Também porque permite experimentar a literatura em
sua dimensão socializadora, fazendo com que a pessoa se sinta
parte de uma comunidade de leitores com referências e cumpli-
cidades mútuas (COLOMER, 2007, p. 143).
Esta perspectiva, por outro lado, foge da aula expositiva, da
leitura do professor e do livro didático como verdades acabadas a que o
aluno-leitor tem que se submeter. Referindo-se à questão da interpreta-
ção de uma autoridade, Jobim (2009) afirma que

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

[...] a tentativa de apenas “reproduzir” o que o outro estabelece,


além de equivocada em termos teóricos, não desenvolve o sen-
so crítico de ninguém, e prejudica também a formação de um
discurso próprio do aluno, que entendemos dever ser formado a
partir do confronto com, da avaliação de, da analogia com, da
crítica de outros discursos (JOBIM, 2009 p. 121).
Pode-se, também, sugerir uma espécie de literatura compa-
rada, visando estimular o jovem leitor a discutir sobre o modo como
determinado tema é abordado por um poeta, por uma poetisa ou por
poetas de diferentes momentos históricos. Ou seja, pode-se lançar mão
de uma antologia composta tanto de poemas que tratam do mesmo
tema – em épocas diferentes ou de uma mesma época – quanto do tra-
balho comparativo entre a poesia e outras artes. A título de exemplo, o
diálogo da poesia com a dança, com as artes plásticas e, especialmente,
com a MPB poderá ser de grande valia9.
Tendo em vista a quase ausência da voz lírica feminina em
livros didáticos e antologias poéticas que circulam no mercado edito-
rial, faremos uma proposta de trabalho com a poesia no ensino médio
a partir da obra de duas poetisas contemporâneas. A abordagem, como
se verá, não se fecha na obra das autoras; antes, busca diálogos com a
tradição lírica brasileira. Trata-se de um caminho possível, que visa,
minimamente, suprir uma ausência grave. Espera-se que essa sugestão,
mais do que modelo, sirva de estímulo ao professor para realizar expe-
riências diferenciadas, a partir de sua vivência com a poesia.

4. TRABALHANDO COM A LÍRICA FEMININA

A proposta que apresentaremos agora tem três objetivos: 1)


oferecer um conjunto de poemas de autoria feminina, tendo em vista
a quase ausência da poesia de mulheres nos LDs; 2) sugerir possibili-
dades de abordagem, tendo em vista sempre a leitura compartilhada

9
Sobre as possibilidades de trabalho entre poesia e canção, há várias pesquisas. Destaco
a tese de Verônica de Fátima Gomes de Moura (2009) que estuda as possibilidades de
abordagem das letras de canção, no ensino médio, de uma perspectiva que aproxima
esta modalidade artística da poesia. Veja-se também o trabalho de Juliana Amaral Pinto
(2000), que traz sugestões de abordagem da canção na sala de aula a partir de seus ele-
mentos poéticos.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

(COLOMER, 2007); 3) mostrar que é possível lançar mão de elementos


teóricos num trabalho que visa a aproximação do leitor com o textos
e não a simples assimilação de conceitos e procedimentos analíticos.
A primeira observação a ser feita é que o professor não ini-
cie apresentando a autora escolhida para ser estudada – como suas
características, obras, traços de seu estilo, curiosidades da vida, etc
–, tendência ainda muito forte, velha herança da crítica biográfica e,
ao mesmo tempo, talvez, uma forma de o professor mostrar que sabe,
que conhece. Portanto, que comece lendo e discutindo os poemas. Se o
jovem leitor/a se sentir estimulado, a busca pelas informações sobre os
autores será realizada com a maior naturalidade.
Imaginemos que fôssemos levar para sala de aula poemas da
poetisa paraibana, radicada em Recife, Lenilde Freitas10. Começaríamos
com os poemas que seguem:

CONFIDÊNCIAS
Hoje o dia nasceu pobre
e continua sem nada.
A fartura é lembrança vaga
que mais e mais se evapora
e o resto da noite encobre.
Já retornaram aos seus reinos
as estrelas perfumadas
- hóspede de poucas horas –
Padece o mundo em seu leito
Não é fácil rir agora
(Poema de Desvios)

AS PALAVRAS
10
A poetisa Lenilde Freiras nasceu em Campina Grande, mas vive em Recife há muitos
anos. É mestre em Teoria da Literatura pela UFPE, poeta e tradutora. Publicou Desvios
e Esboço de Eva (1987), Cercanias (1989), Espaço neutro (1991), Grãos na eira (2001),
A casa encantada (2009). Em 2010 publicou A corça no campo, antologia com poe-
mas de toda sua obra. Lenilde já ganhou alguns prêmios o Nestlê de Poesia e Prêmio
Pasárgada, ambos em São Paulo. Os poemas de Lenilde citados neste artigo são do livro
Grãos na eira (2001), mas também podem ser encontrados em A corsa no campo.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

A palavra
essa rédia
me governa.
A palavra
essa lâmina
me reparte.
Ai de mim
que sou tantas
e tão sem arte
é a que em chão de silabas
se prosterna.
Ai de mim
que sou tantas
a procurar-te
palavra
que não és
e és eterna
(p. 9)

MOMENTO
A poesia se aproxima
marca sua presença

ou esteve sempre aqui


como sinal de nascença?
(p. 9)
Como se observa, os poemas são curtos, o que facilita uma
primeira leitura mais rápida. Mas é sempre aconselhável ler mais de
uma vez, diria mesmo, ler pelo menos umas três vezes e, se possível,
em voz alta. Esta repetição vai aproximando o leitor da poesia e favo-
recendo a percepção de certos aspectos que passam desapercebidos à
primeira leitura. É importante conscientizar os jovens leitores de que
a leitura de poesia requer um tempo diferenciado, como todo trabalho
reflexivo. Um ir e vir constante ou um desconfiar de si quando o texto
pareceu muito simples é também uma atitude a ser cultivada. A poesia
nem sempre se entrega à primeira vista, sobretudo se o leitor não tem

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

uma experiência acumulada de leitura. Claro, não iniciar falando da


função poética ou, simplesmente, mostrando a diferença entre a lingua-
gem poética e a jornalística, por exemplo. Essa atitude tem como base a
predominância do conceito e não a vivência com o texto.
Poderíamos começar, portanto, pela leitura e discussão de
“Confidências”. O título já anuncia a temática: revelação de algo pes-
soal, particular. No caso, um estado de espírito, poderíamos dizer, um
tanto para baixo. Um procedimento adequado é partir de algumas pala-
vras: sugerir que observem, por exemplo, a palavra que dá título ao
poema, além de outras, como “pobre”, “sem nada”, “lembrança vaga”,
“evapora”, “encobre”, tudo na primeira estrofe. São palavras e expres-
sões que apontam para um campo semântico de desencanto. A segunda
estrofe denuncia a passagem do tempo, que nem por isso trouxe novo
ânimo ao eu lírico: “as estrelas já partiram, e o mundo padece ‘em seu
leito’”. Alguns aspectos da linguagem devem ser destacados: o eu lírico
denomina o “dia” como pobre, deslocando sua sensação, seu estado de
espírito para o dia, e a noite vai encobrir este dia que já parece conta-
minado pelo sombrio. Na segunda estrofe, a denominação se volta para
o mundo – que “padece em seu leito”. Confirma-se no verso final o
estado do eu lírico – “Não é fácil rir agora”. Mas não basta apenas dizer
o que estamos apontando. Antes, fazer perguntas que levem a estas
descobertas e, sobretudo, a outras que certamente serão feitas. Aqui a
atitude madura do professor consistiria em não ter a sua leitura como
acabada e mais correta. De fato, ouvir o outro, interrogá-lo, contribuir
para que organize seu pensamento, fazê-lo sempre retornar ao texto
contribui para que se torne mais preciso.
Como fazer para que os leitores conversem/reflitam sobre
poema, articulem-no com sua vida, suas experiências? Certamente,
após várias leituras, começa a despontar um processo de interação. É
importante fazer com que confrontem pontos de vista, retornem sem-
pre ao texto, reflitam sobre o objeto estético.
Os dois poemas seguintes trazem uma reflexão sobre as pala-
vras e a própria poesia. Mas esta informação não precisa ser dada. Ela
deve ser inferida ao longo da leitura. Logo, também aqui não é aconse-
lhável iniciar definindo metalinguagem. O leitor poderá chegar ao con-
ceito a partir de sua própria reflexão. Estimular uma reflexão sobre as

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

diferentes denominações dirigidas às palavras “rédia” e “lâmina” – que


sentido as palavras podem ter para nós? Quando uma palavra é rédia?
Quando é lâmina? A partir da reflexão sobre o sentido das palavras
na vida dos leitores, é possível aproximá-los de modo mais significa-
tivo do poema. Outro aspecto relevante é instigar os alunos a desta-
carem expressões do poema que fogem do modo comum de se falar.
Por exemplo, ao lermos “Ai de mim/ que sou tantas”, que identidade
é esta? Por que o eu lírico se diz tantas? Esta experiência é particular
dela? Ou também nós poderemos ser tantos/as? Em que circunstâncias?
Novamente, chamar a atenção para o fato de que a vivência posta no
poema, de algum modo, é – ou poderá também ser – nossa. O que pro-
cura esse eu lírico? Que significado tem “procurar palavras”? Por que
as palavras são e não são eternas? Que sentido pode-se atribuir a esta
antítese? Questionar os alunos para saber se conhecem outros poemas
que falam das palavras. Seria interessante aqui indicar o importante
poema de Carlos Drummond de Andrade, “O lutador”, e numa aula
posterior, discuti-lo e compará-lo como o de Lenilde Freitas. Também
valeria à pena citar o poema de Cecília Meireles, do Romanceiro da
Inconfidência, o “Romance LIII ou do Carreiro”, que inicia assim:

Ai, palavras,ai, palavras, 


que estranha potência a vossa!
Ai, palavras, ai, palavras,
sois do vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma
Sois do vento, ides no vento,
e quedais, com sorte nova!
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência a vossa!
Todo o sentido da vida
principia à vossa porta;
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa;
sois o sonho, sois a audácia,

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

calúnia, fúria, derrota....


[...]
(MEIRELES, 1994, 575/576)
A possibilidade da leitura comparativa é sempre estimulante.
Nesse sentido, várias perguntas poderiam ser feitas: “os poemas apre-
sentam alguma aproximação? Qual? Que imagens atestam sua afir-
mativa? Em que se diferenciam?”. Aqui, seria importante o professor
situar o poema de Cecília no contexto do livro de Cecília Meireles: o
Romanceiro da Inconfidência, que problematiza poeticamente a situa-
ção de nossos inconfidentes. No contexto de delação, as palavras são
algo potentes, capazes de matar, de definir o destino de alguém. No
entanto, mesmo o leitor não sabendo deste contexto, o poema aceita
uma projeção de caráter mais pessoal, uma vez que, para todos nós, as
palavras trazem essa “potência” capaz de nos impulsionar, nos parali-
sar, nos indignar. A leitura comparativa entre o poema de Lenilde e
de Cecília Meireles favorecerá uma consciência, por parte do aluno,
sobre o valor e o sentido das palavras – não só na poesia, mas também
na vida em geral.
Com relação ao terceiro poema, uma entrada seria discutir
sobre a presença da poesia na vida. Que experiências podem ser consi-
deradas poéticas? Temos consciência de que a poesia pode sempre estar
por perto, mesmo que não notemos, não tomemos consciência? Para
cada leitor, qual o sinal de nascença da poesia? E para o próprio profes-
sor? Pode se fechar este módulo apreciativo sobre a poesia de Lenilde
Freiras reforçando a ideia de que a poesia não é algo inacessível, fora
de nosso alcance. Ao contrário, é algo que está próximo e pode, com
muito proveito para nós, leitores, estar sempre próxima, como que for-
talecendo e cultivando nossa sensibilidade, nossa percepção das coisas.
Todas as questões suscitadas poderiam tornar-se um questio-
nário para ser respondido individual e mecanicamente. No entanto, não
nos parecer ser este o melhor caminho. Incentivar a leitura partilhada,
o enfrentamento com o texto, a descoberta de suas potencialidades
semânticas, mesmo que muitos não se envolvam, parece-nos o percurso
metodológico mais adequado, quando se acredita e se está comprome-
tido com a formação de leitores.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

Passemos agora a alguns poemas de outra poetisa, esta bem


mais conhecida, sobretudo, porque enveredou também pelo viés da
canção. Observemos estes poemas da poetisa paranaense Alice Ruiz11:
tem os que passam
e tudo se passa
com passos já passados 
tem os que partem
da pedra ao vidro
deixam tudo partido 
e tem, ainda bem,
os que deixam
a vaga impressão
de ter ficado
(p. 24)
a luz
no sorriso
dos teus olhos
alto risco 
encaro 
tudo que quero
não é mais preciso
(p. 55)
e agora Maria?
o amor acabou
a filha casou
o filho mudou
teu homem foi pra vida
que tudo cria
a fantasia

11
Alice Ruiz S é poetisa, letrista, tradutora e professora de hai kai, forma lírica que cultiva
com grande habilidade. Publicou Navalhanaliga(1980), Paixão, xama, paixãoi(1983),
Hai Tropikai(com Paulo Leminski -1985). Ganhou o Prêmio Jabuti com o livro Vice
Versos (1988). Publicou ainda Desorientais (1996) e Jardim de Haijin( 2010), ambos de
hai kais. Os poemas citados neste artigo são do livro Dois em um (2008)

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

que você sonhou


apagou
à luz do dia 
e agora Maria?
vai com as outras
vai viver
com a hipocondria
(p. 163)
Os três poemas tematizam situações humanamente peculiares,
numa linguagem musical, em que estão presentes repetições, rimas,
versos curtos. Ao mesmo tempo, expõem a compreensão da diversi-
dade de experiências, dos desejos, e do curioso diálogo com Drummond
a partir de uma perspectiva bem pessoal da experiência feminina.
Iniciar o diálogo a partir de um dado da linguagem, com alunos
do nível médio, pode ser bastante proveitoso. Por exemplo, no primeiro
poema, chamar a atenção – às vezes, nem precisamos fazê-lo – para a
sonoridade e a possível aproximação entre som e sentido. Isto parece
ficar mais patente na segunda estrofe. Pedir que leiam várias vezes e
em voz alta, para perceberem que a aliteração do /p/ pode sugerir a
ideia de quebra, de algo que se esfacelou. Se nenhum aluno levantar
esta hipótese, levantá-la e colocá-la em discussão. Comparar a sonori-
dade das duas estrofes, observando que o mesmo /p/ assume um caráter
diferente. Observar também o tempo verbal nas estrofes - o que poderá
ajudar a compreender as diferenças. A terceira estrofe revela um cará-
ter mais suave – algo não se partiu tão fortemente, e mesmo tendo ido,
deixou um pouco de si. O que estas três estrofes dizem dos nossos
relacionamentos afetivos? Mais uma vez, a ponte com a vida se faz
necessária neste trabalho de formação de leitores. Saber que a poesia
fala da vida nossa de cada dia pode ser uma porta para irmos formando
leitores mais atentos.
Chegamos ao terceiro poema. Novamente indagar se o poema
lembra outro poema. Se não, conversar inicialmente sobre o texto de
Alice. O que ele aponta relativo à condição feminina? Que aspectos da
experiência da mulher podem ser discutidas a partir do conhecimento
dos próprios alunos? Chamar a atenção, se não observaram, para o tom
trágico de que se revestem os quatro versos finais da primeira estrofe.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

Que condições sociais são estas que interferem no destino desta Maria?
Também atentar para o modo como a poetisa utiliza a expressão popu-
lar “Maria vai com as outras”, para conferir-lhe um sentido mais grave.
Trazer o poema de Drummond e estimular a análise comparativa é,
mais uma vez, um procedimento que pode render uma significativa
vivência com os dois poemas. Apontar as peculiaridades da vivência
feminina postas no poema de Alice Ruiz e, retomar, se já tiver discu-
tido, o conceito de intertextualidade. Por certo, se o aluno não conhece
o poema de Drummond, compreenderá que os sentidos dos textos se
constroem a partir das mais complexas relações.
Quantas aulas levaríamos para trabalharmos estes poemas?
Para responder a esta pergunta, é preciso atentar para uma questão
metodológica central: cada turma tem seu ritmo, sua experiência espe-
cífica de leitura. Se se tratar de uma turma que tenha uma experiência
de partilhamento de leitura, talvez possamos fazer em pouco tempo:
duas aulas, por exemplo. Por outro lado, se se está iniciando a vivência
com o poema, talvez seja necessário um tanto de paciência, uma vez
que os alunos tendem a ficar calados, a não arriscar seus palpites ou,
melhor dizendo, a expor suas hipóteses de leitura. Quando se pensa
em formar leitores, a preocupação não deve ser apenas quantitativa –
dar a conhecer o maior número de autores, cumprir um planejamento,
um cronograma, como se faz constantemente. Se lermos os poemas de
forma mais detida – qualquer que seja o poeta ou poetisa –, teremos
mais chances de fixar imagens, de guardar na memória alguns versos,
de estabelecer pontes com nossas vivências e, até, de estabelecermos
comparações entre autores. Portanto, parece-nos que quando o objetivo
de nosso trabalho é a formação de leitores, demorar-se um pouco mais
sobre os poemas poderá ter um resultado mais significativo.

5. REFLEXÕES FINAIS

Trazer a voz feminina configurada na poesia, além de sanar


– ou, no mínimo, corrigir – uma deficiência de nossos livros didáticos
e antologias, antigas e contemporâneas, também favorece aos jovens
o acesso a vivências que dificilmente a voz masculina saberia figurar
– embora haja algumas exceções. O apagamento da lírica feminina do

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

livro didático pode ser driblado pelo profissional comprometido com a


formação de leitores que conhecem tanto a expressão masculina quanto
feminina de nossa rica tradição lírica. Tudo isso alicerçado numa meto-
dologia que privilegia o diálogo texto x leitor e texto x leitor x professor.
As duas poetisas trouxemos aqui, para exemplificar essa pro-
posta de trabalho, podem ser melhor apresentadas se trouxermos outros
poemas para apreciação. Quisemos mostrar que, mesmo com três poe-
mas, é possível estabelecer um diálogo significativo com a poesia. É
evidente, contudo, que este número deveria ser acrescido. E o professor
ou professora que acompanhou esta leitura até aqui, espero que se sinta
estimulado a conhecer estas e outras grandes poetisas de nossa língua.
E para finalizar, mais uma vez a voz das poetisas, agora para o leitor,
na sua solidão, degustar a poesia:
pensar letras
sentir palavras
a alma cheia de dedos
(Alice Ruiz)
VOO
Coruja construo meu palco
na duração de um espanto.
Calco meu voo no não canto
sem camuflados gemidos.
E na escuridão aguardo:
sou toda ouvidos.
(Lenilde Freiras)

REFERÊNCIAS
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POÉTICAS DA ORALIDADE E ENSINO

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“MOVÊNCIA” DE PARADIGMAS NO CORDEL:
DO CANTO AO CIBERESPAÇO
Beliza Áurea de Arruda Mello
Universidade Federal da Paraíba

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

“Ter uma identidade fixa é hoje, nesse mundo fluido, uma


decisão suicida” (Zigmunt Bauman. Tempos líquidos).
Quem pensa que folhetos de papel
E impressão com rasteira qualidade
É a forma, com exclusividade,
De se ver publicado o cordel
Não percebe que o grande carrossel
Deste mundo não para de girar.
O cordel, para se modernizar,
A mudança do mundo ele reflete,
Foi assim que o cordel na internet
Começou, de repente, a se espalhar
(Marcos Mairton – Fortaleza /CE)

Words move, music moves


Only in time; but that which is only living
Can only die.  Words, after speech, reach
Into the silence … Words, strain,
Crack, and sometimes break, under the burden,
Under the tension, slip, slide, perish,
Decay with imprecision, will not stay in place,
Will not stay still.
T. S. Eliot, from “Burnt Norton,” section V, lines 137-153, in
Four Quartets (Harvest/HBJ, 1943, 1971).
Percebe-se um interesse crescente, em diversos segmentos cul-
turais, pelos estudos das manifestações das culturas populares. E esse
aumento não é por acaso, considerando-se que o homem contemporâ-
neo procura, incessantemente, experimentar as possibilidades infinitas
do seu contexto.
Cada vez mais, a existência, que é chamada de real, adquire
atributos e características similares à realidade virtual. Assim, mesmo
com um mundo globalizado, é constante o surgimento da busca pelas
múltiplas identidades culturais, marcando um contraste entre as
diferenças de heterogeneidade e de homogeneização. Dessa percepção,

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

emerge a dialética de um mundo da tradição, bem como a de um mundo


fragmentado, marcado pela escatologia do futuro, em contraste com
aquele marcado pelo passado que busca se redefinir.
O corpo discente e docente do curso de Letras, embora tenha
demonstrado curiosidade nessa área, mostra-se resistente a desenvolver
pesquisas nesse campo. Talvez pelo exercício das práxis pedagógicas
obsoletas. Insiste-se, na maioria das vezes, em dissociar as práticas
educativas tanto do contexto histórico-cultural do ensino quanto da
não apropriada contextualização das literaturas populares, quase sem-
pre delimitadas a preconceitos linguísticos e culturais – nos quais os
saberes tradicionais são analisados como fatores específicos –, sem
compreender as fronteiras dinâmicas da elaboração cultural. Essas
reflexões dos docentes e discentes estão difundidas nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN) do ensino fundamental e nas críticas
consensuais que evidenciam a carência de materiais didáticos e de cur-
rículos que deem às narrativas orais, tradicionais e às escrituras sur-
gidas na internet (os hipertextos) um tratamento didático-pedagógico
à altura do papel que essas narrativas desempenham numa cultura de
fronteiras entre a tradição e a modernidade.
Alguns preconceitos são constatados no aprendizado da
escola. Entretanto, um dos mais graves problemas é a dificuldade de se
desenvolver dimensões metodológicas que considerem a inter-relação
das culturas tradicionais, como os folhetos de cordel, com a cultura
digital. Argumenta-se que a inserção das narrativas orais como orien-
tação metodológica nos programas de ensino reforçaria fatores “negati-
vos e prejudiciais” à formação da criança, adolescente e adulto, porque
a oralidade aproxima-se da informalidade e se “distancia” do padrão
culto da língua, quase sempre, subordinado à cultura letrada da classe
dominante. Simultaneamente, apresentam conceitos e adjetivos pejo-
rativos ao mundo do ciberespaço.
São apontados como fatores negativos à literatura de cordel
os aspectos filológicos, gramaticais e ortográficos, diferenciados da
norma ‘culta’, assim como na lógica tradicional não se justifica a inser-
ção do aluno no ciberespaço, por propiciar, segundo estes arautos do
pessimismo, “fragmentação” nas leituras, fuga do livro, entre tantas
outras impropriedades.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

Para os “desconfiados” do uso da literatura de cordel em sala


de aula, vale lembrar o que diz o teórico Paul Zumthor (1997):
É inútil julgar a oralidade de modo negativo, realçando-
lhe os traços que contrastam com a escritura. [...] toda oralidade
nos aparece mais ou menos como sobrevivência, reemergência
de um antes, de um início, de uma origem (ZUMTHOR, 1997
p. 26).
Assim como para os desconfiados do uso do ciberespaço pelos
jovens, responsabilizando-o ao “desastre escolar” e de leituras, vale
lembrar o teórico da modernidade, Zigmunt Bauman (2001, p. 37): “ter
uma identidade fixa é hoje, nesse mundo fluido, uma decisão suicida”.
A escola não pode ignorar esse aspecto do real. A cultura oral,
seja da tradição ou não, é, indubitavelmente, determinada pelo plano
físico, psíquico e sócio cultural. Sabe-se que um dos grandes elementos
perturbadores à fruição do texto decorre de conceitos estéticos tradi-
cionais, que separam as narrativas de folhetos de cordel do conceito
de “literário” e do “não literário”, classificados sob olhares etnocên-
tricos e culturalmente preconceituosos, que relegam a literatura não-
canônica ao acantonamento do desprezo ou às” tristes” comemorações
de semana do folclore. É impossível não pensar que as narrativas de
folhetos de cordel tornam-se reveladoras do inconsciente coletivo e de
identidades nacionais, principalmente as nordestinas.
É importante compreender e buscar estratégias para anular
o fosso entre as relações do folheto de cordel e as novas práticas
tecnológicas, considerando-se que a adoção das narrativas de cordel na
escola tradicional cria uma ideia do novo na educação, possibilitando
um ato insurgente da tradição cultural, porque requer uma análise da
realidade brasileira, especificamente a nordestina, e a ruptura com a
estagnação proposta por uma cultura única. São as vozes que carre-
gam a “arqui-escritura” (DERRIDA, 1967, p. 110) que se inscreve na
linguagem, transita na mobilidade espacial e temporal da mensagem e
fundamenta a escritura do cordel.
Se a produção da escrita ocupa tradicionalmente um impor-
tante espaço na escola, como fonte dos estudos históricos e depósitos
da memória, ela não se sobrepõe à dinâmica da voz, que redefine os
eixos da comunicação social, o jogo de abordar e provocar o Outro. À

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

inclusão didático-pedagógica das atividades da produção dos folhetos


de cordel, em conjunção com a produção transdisciplinar, é fundamen-
tal acrescentar, sem preconceitos, as produções orais da tradição, as
vozes contemporâneas, as vozes mediatizadas e as vozes que usam o
suporte do ciberespaço. É preciso levar à escola as práticas discursivas
digitais como um elemento aglutinador, considerando que a literatura
pode se enriquecer pela conversação virtual.
Sabe-se que a internet, as revistas eletrônicas, o facebook, os
fóruns e os blogs trazem de volta o gosto pela coletânea, pelo alma-
naque, pela pesquisa da tradição oral, por novas formas de escrituras,
criando interações de escrita, leitura e voz. Tais atividades podem ser
aproveitadas pela escola se pontuando essa escritura ressignificada,
pois os usuários, ao utilizarem sinais e diacríticos para escreverem nos
famosos scraps, retomam a relação entre o gesto e os outros elementos
orais subtraídos na escritura. Assim, a hipermídia (vídeos, ciberes-
paço, telefones digitais) pode ser usada como estratégia pedagógica
para desenvolver o potencial do encontro das narrativas tradicionais
com a tecnologia informacional, conectadas a contextos que se mul-
tiplicam e contrapondo-se ao desencanto da busca da leitura, recor-
rente na “pós-modernidade líquida”, lembrando, como destaca Bauman
(2007), que
O colapso do pensamento, do planejamento e da ação a lon-
go prazo, [...] leva a um desmembramento da história política
e das vidas individuais numa série de projetos e episódios de
curto prazo que são, em princípio, infinitos e não combinam
com os tipos de sequências aos quais conceitos como “desen-
volvimento”, “maturação”, “carreira” ou “progresso” (todos
sugerindo uma ordem de sucessão pré-ordenada) poderiam
ser significativamente aplicados. Uma vida assim fragmentada
estimula orientações “laterais”, mais do que “verticais”. Cada
passo seguinte deve ser uma resposta a um diferente conjunto
de oportunidades e a uma diferente distribuição de vantagens,
exigindo assim um conjunto diferente de habilidades e um ar-
ranjo diferente de ativos (BAUMAN, 2007, p. 09).
Urge trazer para os alunos da graduação do curso de Letras
e para os do ensino fundamental e médio a densidade da literatura de
cordel, enfatizando como ela pode estar inserida na dinâmica cultural

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

contemporânea, que não se solidifica em estruturas hierárquicas e


estáveis, mas, pelo contrário, flui e se desloca ao longo de territórios
impossíveis de se prever, assim como acontece, em menor escala, com
os folhetos de cordel.
Embora essas formações culturais tenham surgido cronologi-
camente em épocas diferentes, a emergência de uma nova prática não
leva ao desaparecimento da anterior, pois, na cultura, há sempre um
processo crescente de complexidade dialógica, de modo que uma nova
formação cultural vai se integrando nas anteriores, provocando nelas
reajustamentos e refuncionalizações, como descreve o poeta de cordel,
José Pacheco, no folheto A Festa dos Cachorros:
Meus leitores, essa história
Que vosso poeta fez
O meu bisavô contava
Meu avô disse uma vez
O meu pai contou a mim
E eu hoje conto a vocês.
A circularidade do texto transforma e motiva o signo, a dupli-
cidade das trocas simbólicas e a constante valorização da voz como
portadora de linguagens diversas. Nessa perspectiva, é urgente des-
tacar nos estudos de cordel as mudanças de paradigmas, cujos pres-
supostos permitirão questionar – de uma maneira diferente e, quem
sabe, melhor, nesse campo ainda em plena transição da oralidade para a
escrita – a relação tão conflituosa entre a verdade da escrita e a verdade
da oralidade, além de como os suportes reorganizam a vocalidade.
Tradicionalmente, os estudos de cordel baseavam-se numa
perspectiva da scriptocêntrica: o seu objeto de estudos é o folheto, o
livrinho impresso, considerado como forma de literatura escrita, des-
considerando a sua produção, a sua forma de transmissão e a recepção,
baseadas na leitura rítmica em voz alta, no canto ou declamação. Esses
estudos fundamentam-se na convicção de que é possível e legítimo
estudar o tipo de expressão artística que é a do folheto, com os critérios,
os termos e os métodos utilizados para a literatura do cânone, e como
se o folheto de cordel se tratasse de um texto escrito (composto escre-
vendo) e impresso no sentido da palavra na modernidade. Coloca-se
uma separação radical entre as duas expressões poéticas do mundo do

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

Nordeste: o da cantoria e o do folheto. O mesmo pressuposto “justi-


fica” o nome que os eruditos deram ao que os poetas chamam folheto,
a saber: literatura de cordel, e fornece as bases para o juízo de valor
transversal e preconceituoso para o cordel: uma literatura das “bordas”
- aquela que não faz parte da grande literatura do cânone; por isso, ela é
pré-, pseudo-, para- ou infra-literatura, ou literatura popular.
A mudança de paradigma permite reavaliar a produção dos
folhetos, “última instância da oralidade”, e o substrato das vozes
“encantadas” sob letras impressas. Assim, essa mudança paradigmá-
tica é um traço definidor para os estudos de cordel na sala de aula, tanto
com o alunado dos cursos de Letras, quanto com os alunos do ensino
fundamental da rede Municipal, não subordinando essas poéticas às
definições ultrapassadas. É preciso repensar com os alunos o cordel
como um gênero textual dialógico, no sentido bakhtiniano; como um
grande encontro de vozes; como um esforço dos interlocutores em
colocar a linguagem frente a um e a Outro. A partir das vocalida-
des tradicionais, rever as oralidades presentes na TV, no cinema e no
ciberespaço, para acelerar o novo mecanismo da recepção da leitura;
para repensar, consequentemente, o caldeirão de identidades, estilos,
gêneros textuais, técnicas e novas práticas de metodologia pedagógica.
Com a implantação do programa Cordel na Escola, da
Secretaria de Educação da Prefeitura de João Pessoa, propõem-se ace-
lerar o apoio às escolas – através de um pesquisador nosso –, utili-
zando as artes da hipermídia como recurso para arquivar e apresentar
os folhetos de cordel em forma digital, explorando o potencial inerente
a meios como internet e jogos de vídeo clip, a fim de se provocar a
pluralidade de leitores entre o alunado que usará esse projeto, não ape-
nas em aulas de conteúdo programático, mas, também, nos espaços de
horas vagas gerados pela ausência dos professores.
Tal experiência tem sido posta em prática, mediada por este
projeto, com retornos significativos no Ensino Fundamental e no curso
de Letras, reforçando a implantação da disciplina Literatura Popular na
grade curricular da graduação de Letras.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

1. FUNDAMENTO TEÓRICO-METODOLÓGICO

É com frequência que o docente observa a angústia do discente


de Letras em encontrar adequação e estímulo para os estudos de litera-
tura desenvolvidos na universidade. A adaptação no cotidiano da sala
de aula como professores sinaliza que não há uma motivação maior
do alunado, o que leva a resultados não alentadores para o desenvol-
vimento ou a aproximação eficaz da criança e do adolescente com o
prazer e discussões sobre textos escritos e orais. Tudo isso pode se
converter numa acomodação do professor em continuar repetindo uma
prática obsoleta, em vez de proporcionar às crianças e aos jovens a
possibilidade de uma aprendizagem com procedimentos apropriados
da oralidade e da escritura.
É urgente uma revisão no tratamento didático, que precisa ser
heterogêneo. A diversidade deve contemplar, além de textos do cânone,
a diversidade das várias culturas, dos vários gêneros textuais da orali-
dade e da escritura.
As orientações apresentadas nos PCN (1998) para as práti-
cas do texto literário oral ou escrito e o exercício do reconhecimento
de singularidades e propriedades não estão sendo praticadas pelos
professores formados pelo curso de Letras.
Propõem-se um reconhecimento dos vários textos literários,
inclusive os oriundos da cultura da tradição, na perspectiva da valori-
zação e identidade com as várias culturas populares, através de ativi-
dades que instiguem o raciocínio e o senso crítico dos alunos, para que
possam ver a força criativa da imaginação e a intenção estética de uma
forma lúdica.
Assim sendo, mais que discutir com o professor sobre as
mudanças na concepção do leitor/receptor do texto e mostrar como na
internet se dá a produção do hipertexto produzido coletivamente num
contexto ciberespacial, é preciso motivar o novo leitor a participar da
escritura e da leitura desse hipertexto, afinal dizem os poetas:
O cordel na internet
É uma necessidade
Pela dificuldade
De expor nosso trabalho

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

Uma vaca sem chocalho


Ninguém sabe onde está
Precisamos propagar
Costumes e tradição
Deixe o corisco e o trovão
Explodir no meio do mar.
(Ivamberto Albuquerque – Alagoa-Grande/PB)
*
Está na universidade
Aqui e em outras nações,
Falando das tradições
Pra gente de toda idade;
Invadiu sertão, cidade
Cresceu e virou manchete
Qualquer assunto reflete
De forma mais verdadeira
Ultrapassou a fronteira
E brilha na internet!
(Bastinha Job – Santo Amaro Assaré/CE)
*
Quem pensa que folhetos de papel
E impressão com rasteira qualidade
É a forma, com exclusividade,
De se ver publicado o cordel
Não percebe que o grande carrossel
Deste mundo não para de girar.
O cordel, para se modernizar,
A mudança do mundo ele reflete,
Foi assim que o cordel na internet
Começou, de repente, a se espalhar.
(Marcos Mairton – Fortaleza /CE)
*
Para mim que sou do tempo antigo
INTERNET parece coisa estranha,
Porém, sei com ela o cordel ganha

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

Asas pra voar e, sem perigo,


Se nas feiras ontem tinha abrigo
Hoje tem por cliente o mundo inteiro,
Professor, estudante, oficineiro
Podem ler o cordel a qualquer hora
Por isso o cordel se faz agora
Acessível a todo brasileiro.
(Manoel Monteiro da Silva – Bezerros/PE)
*
Os versos de artistas tão tradicionais
Aderaldo, Patativa e também Azulão
Botado em livreto, pendurado em cordão
Prática que fez dos cordéis os jornais
Mais lidos nas feiras e também nos quintais
Hoje, esse costume ficou rarefeito
E apesar do verso se manter perfeito
É mais lido na tela de um computador
Na tal da internet veio com clamor
Adeus ao papel! Danou-se! Tá feito
(Ricardo Aragão – Ipu/CE)
*
Com o cordel na internet
Vislumbro a oportunidade
De quem faz e não promete
Viver na modernidade
E com personalidade
Mostrar a nova feição
Sem fugir à tradição
Dessa fonte cultural
Com a forma original
Para a sua criação
(Zé Walter [José Walter Pires] – Brumado/BA)
*
Publicar virtualmente
Um cordel, hoje é possível

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

A tecnologia é incrível
E está dando patente
A quem antes era ausente
Da cintilância da fama,
A internet é a cama
Pra o poeta deleitar
Conhecer e publicar
Essa arte que o Brasil ama.
(Raul Poeta – Juazeiro do Norte/CE)
*
Com a chegada da Internet
O cordel ganhou mais vida.
Agora não tem saída
Nós vamos pintar o sete
Na TV, rádio, manchete
No teatro, no cinema…
Em qualquer lugar fecundo
Nosso versejar profundo
Estará mais que presente
Alegrando a toda gente
No Brasil e além mundo.
(Antonio Barreto – BA)
*
Gostaria de opinar sobre o tema
A respeito do cordel na Internet
Acho que a cada cordelista compete
Divulgar beira-mar, mourão poema
Afinal, dos versos, todo o sistema
Entendo que o cordel é soberano
Mostremos para o mundo novo plano
Se se afastar muito do passado
Lembremos cada vate renomado
Nos dez pés do martelo alagoano.
(Zé Walter [José Walter Pires] – Campina Grande/PB)
*

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

O livreto pendurado
Em cordão numa barraca
Já é visão meio fraca
Que faz lembrar o passado.
Hoje muito divulgado
Em diferentes canais,
Nos saraus, em recitais
Recebe aplausos, confete
O cordel na internet
Cresce cada dia mais.
(Creusa Meira – BA)
*
A inclusão do ciberespaço no espaço escolar substitui um
ambiente passivo e possibilita ao aluno perceber as mudanças na con-
cepção de leitor, que passa a ser um coautor do texto. A leitura, por sua
vez, passa, simultaneamente, a escritura. O leitor, escolhendo o cami-
nho da leitura e o conteúdo a ser lido, transforma-se numa espécie do
editor do hipertexto em construção, enquanto o texto passa a ser móvel,
um caleidoscópio que apresenta diversas faces, desterritorializado, sem
fronteiras próprias, porque “a partir do hipertexto, toda leitura é uma
escritura em potencial” (LÉVY, 2000, p. 02).
A Internet oferece novas dinâmicas, um retorno dialético à
oralidade, possibilitando um (re) encontro entre as sociedades orais e a
sociedade eletrônica digital ciberespacial, prática esta já utilizada por
vários poetas de cordel que veem o ciberespaço como o reencontro da
comunicação viva, interativa, direta e contextualizada, em que tudo
e todos podem se interagir mutuamente: com pessoas, textos, sites,
home-pages, mídia, etc, em qualquer parte do mundo, criando um novo
texto, “um estilo on line” em que as discussões podem se aprofundar,
conforme se pode conferir nos poemas que se seguem:
Antes do computador
Tínhamos fragilidades,
Hoje nas comunidades
O cordel tem mais valor.
Cordelista ou cantador

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

Quando um cordel escrevia,


Era só ele quem lia,
O caderno amofumbava.
Uma parte o mofo dava,
A outra, a traça comia.
(Eduardo Viana)
*
Quando vi em plena feira
um cabra se esgoelando
bonitos versos cantando
fiquei ali de bobeira.
Ele desceu da cadeira
e ficou a me olhar
parecendo advinhar:
“Menino, você promete,
o Cordel na internet
sua vida vai mudar”.
(José Alberto Costa – Maceió/AL)
*
Com a inclusão digital,
Um novo leque se abriu
E dentro dele surgiu
O poeta virtual.
Acessando esse portal,
O poeta usa um teclado.
Que corrige o verso errado,
Lapida, cola e copia.
Salve a tecnologia
E o Cordel modernizado!
(Damião Metamorfose- Ciranda Cordel na internet cordelpa-
raiba.blogspot.com.br/2011)
Assim, o alunado, ao se utilizar do ciberespaço como recurso ao
texto, participa de um mundo interativo, dinâmico, sem fronteiras, ágil,
colorido, movimentado. Por isso, a escola, os professores devem estar
atentos para a importância desse espaço como recurso educacional, em

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

que as concepções tradicionais que polarizam literatura popular versus


literatura erudita atingem novas fronteiras, construindo novos tipos de
interação linguística, social e cultural.
Algumas indicações de estudos sobre cordel (Fonseca dos
Santos, 2007, Pires Ferreira, 1999), sobre oralidade (Zumthor, 1993),
na área de cibercultura (Levy, 1993, 1998, 1999,2000), e (Santaella,
2007, 2007b), particularmente, sobre as novas concepções de texto e
escola, sobre o processo de retextualização e as novas formas da cons-
trução da escritura. Esta referência bibliográfica, com apoio à metodo-
logia, mostra informações a serem discutidas com os professores sobre
a importância da internet nas práticas de leitura e estudos dos folhetos
de cordel.

REFERÊNCIAS

BAUMAN. Zygmunt. Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007


FONSECA DOS SANTOS, Idelette Muzart. Em demanda da poética popular.
Campinas: Unicamp, 2007.
MARCHUSCI, Luis Antonio. Hipertexto e gêneros digitais. São Paulo:
Cortez, 2010.
MORIN, Edgar. Religando Fronteiras. Lisboa: UPF, 2004.
PIRES FERREIRA, Jerusa. Cultura das Bordas. São Paulo: Atelier Editorail,
2010.
SANTAELLA, Lúcia. Culturas e artes do pós-humano. São Paulo: Paulus,
2003.
ZUMTHOR. Paul. A letra e a voz. São Paulo: Companhia das Letras, 1993
______________. Introdução à poesia oral. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997

FOLHETOS DE CORDEL
ALBUQUERQUE, Ivambeiro. Cordel e internet.
BASTINHA, JOB. Cordel de Hoje
PACHECO, José. A Festa dos Cachorros. [s.ed]. [s.d]

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

SILVA, Manuel Monteiro. Cordel de hoje


WALTER, Zé Pires, José Walter. Re flexões [s.ed].[s.d]
Antônio de Araújo Campinense
Creusa Meira
Damião Metamorfose
Eduardo Viana
José Alberto Costa
Raul Poeta

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LÍNGUA SOLTA/ TRAVA-LÍNGUA -
CULTURA POPULAR EM ATIVIDADES DE LEITURA
Maria Claurênia Abreu de Andrade Silveira
Universidade Federal da Paraíba

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

INTRODUÇÃO

Neste artigo, discute-se, dentre a multiplicidade de textos


orais, condições de manutenção do gênero textual denominado par-
lenda, tanto na sua condição de jogo de palavras, como na sua caracte-
rística de texto oral por excelência. Observa-se que a parlenda, no seu
uso mais corrente e em muitas situações de atualização, é veiculada em
situação de ‘performance’, que, segundo Paul Zumthor (1997, 1998),
define-se como interação de quem vocaliza e quem recebe o texto, o
que inclui a ação corporal/emocional de dizer.
Uma forma bastante conhecida e festejada do gênero ‘par-
lenda’ aqui apontado, o denominado trava-língua, por seu caráter emi-
nentemente oral, é muito afeito às práticas do dizer através da voz, em
performances que o integram a outros textos orais e o faz presente na
memória dos grupos que dele fazem uso. No caso dos trava-línguas,
se acirra a ‘dificuldade’ de dizer o texto, ampliando o efeito da brinca-
deira com a palavra, no sentido de mostrar competência na capacidade
de articular as palavras que compõem o texto; de imprimir o ritmo
determinado pelo grupo participante, além de exigir boa audição para
a compreensão adequada do que está sendo vocalizado.
Nas parlendas, estão registradas múltiplas formas de reuti-
lização dos sons, originalmente para apoiarem brincadeiras com as
palavras. Têm sido também divulgadas, através de suportes textu-
ais escritos, como forma de registro e manutenção, considerando que
as comunidades que delas fazem uso não são afeitas às condições de
memorização dos textos, como eram os grupos que se apropriavam
desses textos, unicamente, através do dizer e na prática da brincadeira
a que o texto se adequava. As parlendas apresentam grande diversi-
dade de textos, que é ampliada através da criatividade dos usuários,
na intenção de favorecer a brincadeira com as palavras, considerando-
-se que, na maioria das vezes, entre as crianças, dizer parlenda é sinô-
nimo de brincar com os sons da língua, não só brincando de dizer, mas,

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

sobretudo, brincando. Trata-se, por isso, de um gênero que favorece o


letramento.
Tem-se observado, no contexto escolar, possibilidades de uti-
lização desse gênero textual em propostas pedagógicas de letramento,
objetivando o incentivo à aquisição da leitura e da escrita (LIMA,
2008). O fato de a parlenda – mesmo algumas delas –, muitas vezes,
aparentar ser um texto desprovido de sentido, a sua adequação ao sen-
tido interno que a brincadeira expressa, incluindo ritmo e forma de
fazer, lhe empresta inteligibilidade suficiente para constituir-se como
texto adequado ao contexto em que são veiculados.

1. TEXTOS ORAIS POR ESCRITO

Muito se tem discutido sobre as condições do texto oral em


situação de pesquisa. Como objeto de estudo, as formas de registro dos
textos gravados como voz, e transcritos e registrados por escrito, ainda
são motivo de discussões. O fato de ter que escrever o texto ouvido,
para que venha a ser estudado ou reproduzido oralmente em momento
posterior, é uma das questões levantadas como forma de descaracteri-
zar a oralidade do texto. Textos orais como adivinhas, contos popula-
res, provérbios, parlendas, entre outros, por sua natureza oral, criados e
recriados através da voz, mostram-se como textos que são passíveis de
receber ‘colaboração’ na sua forma de dizer e de manter-se na memória
das pessoas. “Quem conta um conto, aumenta um ponto” já se cunhou
como provérbio que relata essa possibilidade de cada um que diz o texto
ter a possibilidade de adequá-lo à sua forma de manter a sua coerência.
O termo ‘Literatura Oral’ ainda é utilizado por aqueles que
estão fora da discussão sobre a sua adequação ao universo de textos
ao qual se destina, mas que se aproximam desses acervos de textos
orais e procuram divulgá-los. Esse termo foi utilizado, no Brasil, prin-
cipalmente, por Câmara Cascudo (1984), designando o conjunto de
textos orais formado por contos, lendas, provérbios, adivinhas, par-
lendas, entre outros, oriundos do saber popular. Tem sido rechaçado,
por estudiosos dos processos de utilização da voz, do texto oriundo da
oralidade e dos processos de recriação realizados pela escrita, como
Zumthor (1997) e Ong (1998), por não se mostrar adequado à sua

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

natureza própria do uso da voz e sua relação com a escrita. O termo


‘Literatura’ seria adequado ao conjunto de textos artísticos produzidos
e divulgados através da escrita. Já o termo ‘oral’ se adequaria à voz,
estando fora desse universo do registro escrito.
A transcrição dos textos concebidos e veiculados oralmente
constituiria o que se chamou de Literatura Oral. Folcloristas, pesqui-
sadores, estudiosos dessa produção buscaram um termo para definir
esses acervos, que se mostraram ricos de expressão e diversidade. Por
outro lado, a junção dos termos ‘oral’ e ‘popular’ tem sido mediada
pelo sentido de que, sendo oriundo do povo, estaria também ligado a
analfabetismo. Segundo Zumthor (1998),
toda oralidade nos aparece mais ou menos como sobrevivência,
reemergência de um antes, de um início, de uma origem. Daí ser
frequente, nos autores que estudam as formas orais da poesia, a
ideia subjacente – mas gratuita – de que elas veiculam estereó-
tipos “primitivos” (ZUMTHOR, 1998, p. 27).
O que conduz ao fato de que esses textos orais, entre eles as
parlendas, são herdeiros desse fazer livre e descompromissado que a
academia tenta engessar, registrar por escrito e, por vezes, ‘melhorar’.
Pelo fato de as parlendas estarem ligadas à brincadeira, hoje conside-
rada ‘coisa de criança’, muitos dos textos desse gênero parecem não ter
nexo, considerando que a sua significação, quase sempre, apoia-se mais
na performance que no texto em si, isolado e desconectado da forma
como aparece na maioria das publicações disponíveis no mercado edi-
torial. Observe-se a parlenda:
- Coqueiro cai!/ - Não cai!/ - E se cair?/
- Tem dinheiro pra pagar e cachorro pra latir.
Pinicainha, pinicainha, da barra de vinte e cinco/
Mingorra, mingorra, tira essa mão que está forra./
(cantando) Tempo de areia/ fazia poeira /
Põe essa mão na minha orelha./
Gata pintada/ Quem foi que te pintou?
Foi a velha cachimbeira que por aqui passou.
Tempo de areia/ fazia poeira/
Tira essa mão da minha orelha.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

A brincadeira que utiliza essa parlenda empresta significado


ao texto que parece não ter sentido. Pesquisando sobre a presença
desse gênero textual na infância de alunas de Pedagogia, na disciplina
“Literatura Infantil”, foi possível observar que essa parlenda e a brin-
cadeira a que ela está ligada estão bem vivas na memória de algumas
alunas, tendo sido registradas versões desse texto e das variações das
formas de brincar. Os gestos e os efeitos registrados nos grupos parti-
cipantes da brincadeira são bem aparentados. O contexto que se cria –
através da performance de que o texto faz parte –empresta significado
ao conjunto. O texto isolado tem um significado especial para quem
conhece a brincadeira e para quem o aprendeu no grupo, participando
da brincadeira. A performance de que participaram é relembrada,
reconsiderando que nela estão envolvidos, em um só acontecimento,
no mesmo momento, artístico, quem realiza e quem recebe a ação do
texto. Performance subentende participação, convivência, através da
vocalização do texto, incluindo principalmente som, além de gestos,
movimentos imanentes ao texto.
Os versos que compõem o texto, ao serem mencionados, reves-
tem-se de significados que remontam à performance. O texto adquire
sentido, mesmo aparentemente não o tendo. Tem um significado
interno que está voltado para o dado cultural, para o que essa voca-
lização representa como um conjunto de saberes que o texto evoca.
O ritmo, o gesto, alguma menção à cantiga que compõe o conjunto
do texto recuperam a memória do texto aprendido, que nem sempre é
o mesmo que está sendo utilizado na evocação. Os textos orais, pelo
uso, pelas adaptações realizadas por quem dele se apropria, mantêm a
‘matriz’ que o identifica e aceita variadas formas de dizê-lo.
Retomando a parlenda transcrita, enquanto acontece o diá-
logo: “- Coqueiro cai! - Não cai.”, os participantes constroem – apoiado
em uma superfície (no chão ou em uma mesa), com os punhos fecha-
dos, um em cima do outro, elevando-se e, ao mesmo tempo, tentando
manter o equilíbrio da construção – o que representaria o caule de um
coqueiro. Quando se questiona: “– e se cair?”, todos os punhos se sepa-
ram, desfazendo a composição do coqueiro, espalmando e colocando
as palmas de todas as mãos na superfície onde, antes, estava ‘plantado’
o coqueiro.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

O verso: “– Tem dinheiro pra pagar e cachorro pra latir” cria


o efeito de rima, de gracejo pelo ‘non sense’. Um entre os participan-
tes, enquanto pinça (pinica) os dorsos das mãos espalmadas de cada
um dos participantes, diz, de modo ritmado, os versos: “Pinicainha,
pinicainha, da barra de vinte cinco/ mingorra, mingorra,/ tira essa mão
que está forra.” A mão que é pinçada durante o último verso, é devi-
damente ‘alforriada’. Cada mão colocada precisa receber a ordem para
ser libertada. Observe-se que o sentido da palavra utilizada na parlenda
mantém-se, mesmo tendo caído em desuso. A palavra ‘forra’ parece
ser herança da escravidão no nordeste brasileiro, aqui recuperando a
situação do escravo liberto, em uma sintonia com a mão que fica livre
para sair de onde está e continuar a brincadeira, indo segurar a orelha
do companheiro do lado.
A cantiga que dá andamento à performance, também aponta
para vivências de um Brasil rural, para costumes e personagens que
fazem parte da história cultural nordestina. Observe-se que também
faz parte da performance o desentendimento, a briga entre os parti-
cipantes da brincadeira, quando os participantes puxam com força
as orelhas uns dos outros. Enquanto cantam a cantiga, faz parte da
brincadeira segurar a orelha de cada companheiro que está do lado na
roda que se forma. Além disso, a cantiga empresta o ritmo do balanço
do corpo para um lado e para o outro. A parlenda em si, como texto
escrito, pode aparentar desconexão, mas a rima, o ritmo, a brincadeira,
a interação, a manutenção de um sentido cultural que fortalece o grupo
faz com que a parlenda, pelo menos em parte, se mantenha e registre
versões como a seguinte:
- Pinta lainha/ quem foi que te pintou?
- Foi a velha cachimbeira que de um lado deu a dor
Tempo de índio fazia poeira
Puxa lagarta da tua orelha
(Ana Néri – Catolé do Rocha/PB)
As parlendas, motivo deste artigo, fazem parte desse acervo
de textos que, integrados no discurso oral, são veiculados através da
voz, mas têm sido, cada vez mais, registradas por escrito. Um gênero
da oralidade, cujo formato e orientação de uso apontam para uma rea-
lização vocal, mesmo não reunindo mais condições de ser oralizado e

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

guardado na memória sem a mediação do registro por escrito. Assim,


hoje se convive com uma herança da oralidade com uma permanência
através do registro escrito.
Dentre as parlendas bastante divulgadas e conhecidas no
Brasil, e que apresentam muitas versões do mesmo texto, está a que
começa assim: “Hoje é domingo,/ pede cachimbo...”. Observe-se que
esse uso do verbo ‘pedir’ não é mais tão utilizado na linguagem do
cotidiano com esse sentido: ‘ser adequado a’. A frase que introduz a
parlenda intenta afirmar que, por ser domingo, cai bem pitar um bom
cachimbo, ação que constituía um prazer para as horas de descanso de
muitas pessoas por esse país afora. Observe-se o registro dessa mesma
parlenda da seguinte forma: ‘Hoje é domingo,/ pé de cachimbo”. Por
estar publicada em um livro ‘para crianças’, a ilustração apoia o texto,
apresentando uma árvore ‘carregada’ de cachimbos. Talvez na intenção
de brincar de imaginar, bem próprio da infância. Nas pesquisas que
essa pesquisadora tem realizado nas salas de aula das licenciaturas,
bem pequeno é o número das pessoas que não se deixam levar por
essa capacidade de imaginar um pé de cachimbo e, por sua vez, não
reconhecem na parlenda recitada a expressão utilizando o verbo pedir.
Observa-se, cada vez mais, o registro de parlendas em publi-
cações, em gravações de áudio e em vídeo para crianças. Esse registro,
diferente do que acontece nas condições da oralidade, tem a capacidade
de fixar um texto, emprestar-lhe um formato determinado, isolado, que
não corresponde às suas condições de realização oral. Segundo Ong
(1998, p.81), “a palavra oral, (...) nunca existe num contexto puramente
verbal, como ocorre com a palavra escrita. As palavras proferidas são
sempre modificações de uma circunstância total, existencial, que sem-
pre envolve o corpo.” Assim, a parlenda, como outros textos orais,
quando grafados, registram uma única atualização, que tende a ser con-
siderada como a única, correta, que deve ser mantida.
A escola, de um modo geral, obedecendo à tendência a aceitar
a dicotomia de escolher entre o que é certo ou errado, elege formas
de dizer determinados textos, e só aqueles, limitando a presença dos
textos orais nas salas de aula; talvez com medo das suas possibilidades
de expressão ou com preguiça de reconhecer a sua diversidade. Essa
‘necessidade’ de escolher o texto ‘correto’ faz com que, frequentemente,

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

a versão conhecida por um aluno seja relegada em favor da apresentada


por outro colega ou pela professora. O fato de ter aprendido determi-
nada parlenda em um grupo de pessoas, ou em uma região, cidade,
bairro, faz com que o mesmo texto apresente características diferentes.
As formas do dizer pertencem a cada grupo que mantém aquele texto
declamado, com aquelas palavras e expressões que passam a ser vei-
culadas daquela forma específica. Aquela é a forma ‘correta’ daquele
texto para aquele grupo ou região.
Tome-se como exemplo um questionamento pertinente a ser
feito a professores e alunos de licenciatura, quando estão em pauta os
textos orais a serem vivenciados na escola: “há uma forma correta para
este texto/cantiga que media uma brincadeira?” O texto ‘Escravos de
Jó’: “Escravos de Jó/ jogavam caxangá (bis)...”. O grupo de professo-
res/ alunos deve continuar a cantar. Geralmente, há um desacordo nas
formas de dizer o texto. Esse desacordo define-se mais claramente nos
versos:
“Tira, põe (bota)/ deixa ficar”
(deixa o Zabelê ficar)
(deixa o Zambelê ficar)
(deixa o Zé Pereira ficar)
(deixa o bambolê ficar)
A variedade de possibilidades apresenta-se. Essa diversidade
caracteriza o texto oral e lhe oferece possibilidades de manutenção na
memória dos grupos que o utilizam. Assim, cada versão é fruto de uma
forma de uso do mesmo texto, o que lhe dá legitimidade, que lhe con-
fere o status de ‘correto’. Raras são as pessoas abordadas na pesquisa
que, perguntadas sobre o que devem fazer, quando, na sala de aula,
cantarem a cantiga e aparecerem versões no grupo de participantes,
reconhecem como necessário escolher, de forma democrática, a versão
que será cantada primeiro e buscar cantar todas aquelas que surgirem
no grupo de crianças, incluindo a versão apresentada pela professora. É
fato que cada versão surgida nesse grupo, por vezes heterogêneo, que
se forma na sala de aula, deve ser valorizada, reconhecendo a diversi-
dade de performances em oportunidades de brincadeira em que o texto
foi gerado e teve permanência.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

Um texto criado com uma função oral, especificamente para


ser dito, exige esse dizer. A voz o complementa e lhe empresta vida. As
parlendas constituem-se como dizeres, formas orais de texto que visam
a uma comunicação, nem que seja somente no que se refere ao ato de
articular sons vocais em ritmo determinado. Através da voz, do corpo
e dos gestos, quase sempre em situação de performance, a parlenda é
vocalizada1. Essa oralização constrói uma interação entre os partici-
pantes da vocalização das parlendas, que, em sua maioria, instruem
brincadeiras.
Quando as crianças, em fila, acompanham e ampliam a ação de
marchar com a vocalização da parlenda: “um, dois, feijão com arroz...”,
unem ação corporal, atitude gestual à verbalização textual, dando
ensejo à performance que tem espaço na brincadeira. Para Ong (1998,
p.42), a cultura oral investe-se da noção de que “a linguagem é um
modo de ação e não simplesmente uma confirmação do pensamento”.
Nessa linha, insere-se as concepções de performance, que inclui texto
oral, corpo, voz. A ação do texto revela-se na performance.
Uma parlenda investe-se dessa concepção do oral que envolve
aquele que declama o texto à ação, ao gesto que faz parte do conjunto
brincar/dizer. No que se refere à memorização do texto, o gesto é uma
face do texto. Desde a infância, as parlendas povoam as brincadei-
ras numa cultura oral que se tem transformado, mas não extinguido.
Quando se toma a mão da criança e, para cada dedo, a partir do mínimo,
se tem uma expressão da parlenda: “dedo mindinho, seu vizinho, maior
de todos...”, tem-se aí um gesto do brincar, mediado por uma parlenda
a ser ouvida/dita e memorizada. Uma vez dita e repetida a parlenda, no
cotidiano, no ritmo cadenciado adequado, utilizando a palavra atrelada
ao gesto, esse texto passa a fazer parte do acervo da criança. Mesmo
sendo tão pequena que ainda não verbalize o texto, passa a interagir
quando iniciada a brincadeira, participando da performance.

1
O termo ‘performance’ aqui é utilizado segundo os pressupostos teóricos de Paul
Zumthor (1997), que considera o dizer integrado ao escutar. A afirmativa do autor:
“Performance implica competência”, bem se aplica ao uso da parlenda, uma vez que
a multiplicidade de textos desse gênero aponta para a necessidade de memorizá-las e
conhecer as formas de uso e interação utilizando-as.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

2. GÊNEROS ORAIS NA CULTURA POPULAR – A PARLENDA

A cultura popular dispõe de gêneros os mais variados, que


são reconhecidos nas suas especificidades, disponíveis para diferen-
tes situações, adequados a todos os gostos, textos longos ou curtos,
disponíveis em múltiplas situações sociais. Contos, causos, em prosa e
verso, provérbios, adivinhações, entre tantos outros que aqui não seria
possível dar conta. Todos esses gêneros se expressam plenamente atra-
vés da oralidade. São herdeiros das formas de dizer dos contadores
de histórias, dos grupos reunidos em torno de uma voz que trazia um
conhecimento através da palavra. A manutenção desses textos, para
que permanecessem no grupo, exige a repetição, o compartilhamento
no grupo, o diálogo sobre o texto, as formas de retê-los na memória,
não só do contador, mas também do grupo onde ele estaria inserido.
Textos como as parlendas fazem parte dessas formas de dizer
que não eram registradas por escrito, e que a repetição, contextualizada
como brincadeira, garantiu a sua manutenção na memória dos seus
usuários. Quando se diz a parlenda, o texto dito atrela-se a uma forma
de agir no grupo, o que constitui a brincadeira. Muitas vezes cantada,
outras recitada no ritmo adequado, adequando-se a gestos e formas
de mover o corpo, por vezes utilizando brinquedos (bola) ou objetos
(corda) que neles se transformam, a parlenda orienta a brincadeira que
exige dos participantes a formação dessa memória textual. Dizer a par-
lenda enquanto se envolve na gestualidade da ação do brincar são faces
de uma mesma forma de guardar o texto na memória.
As parlendas constituem-se como um gênero textual utilizado
na ‘brincadeira de dizer’. A brincadeira com a parlenda, em si, já é con-
cebida como “brincar de dizer”. Tome-se como exemplo o texto já bem
conhecido: “Hoje é domingo/pede cachimbo/ O cachimbo é de ouro/
bate no touro...”.
Brincar com trava-línguas configura-se como brincar de dizer.
Pressupõe articular bem as palavras que as compõem, enfatizar o ritmo
que lhe é inerente. A parlenda utiliza-se de rimas e de uma métrica
para manter um ritmo marcado quando é pronunciada. Iniciada com a
frase: “Um, dois, feijão com arroz. Três, quatro, feijão no prato...”, essa
parlenda recupera a contagem de um a dez, sendo bem conhecida no

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

Nordeste do Brasil. As crianças recitam o texto, enquanto marcham no


ritmo sincopado. Outra parlenda – “O doce perguntou pro doce/ qual
é o doce mais doce?/ E o doce respondeu pro doce/ que o doce mais
doce/ é o doce de batata doce” – explora a repetição do mesmo som/ da
mesma palavra, como tantas outras desse acervo numeroso, que só tem
crescido e se multiplicado em formas de brincar de dizer.
O texto que compõe uma parlenda não se obriga a traduzir um
conceito ou a trazer uma mensagem, mas, principalmente, enseja uma
brincadeira com o ritmo, a rima, ao som da voz que articula as palavras
na intenção de falar e de ser ouvido.
As parlendas estão entre essa variedade de textos criados para
cumprir uma função primordial de integrar jogos de palavras que se
constituem como brincadeira. As parlendas constituem-se como textos
curtos, tendo já sido consideradas como ‘formas simples’ (JOLLES,
1976). Os trava-línguas estão entre os textos que compõem o gênero
‘parlenda’. Sua característica principal reside na aproximação exces-
siva dos mesmos sons nas palavras e frases que os compõem, não lhe
sendo, no entanto, exigido coerência. Constitui-se como um texto com
o qual se brinca de dizer.
No trava-línguas, a parlenda se mostra em um formato mais
específico, sendo exigido ao falante uma destreza na capacidade de
articular os fonemas das palavras que compõem o texto a ser dito. Na
multiplicidade de textos, convivem os menos e os mais difíceis de ser
verbalizados. Para intensificar essa brincadeira, há a possibilidade de
repetir o texto várias vezes, rapidamente, sem intervalo entre as enun-
ciações. A parlenda:
Quero que você me diga/ sete vezes, encarrilhado/
sem errar, sem tomar fôlego/ vaca preta, boi pintado/
vaca preta, boi pintado... (sete vezes)
mostra a convivência, em um mesmo texto, de ritmos diver-
sos, quando da sua verbalização. Níveis de dificuldade são postos em
pauta, quando se incentiva a repetição do verso ‘vaca preta, boi pin-
tado’, que tende a ser dito mais rapidamente que os versos que o antece-
dem. Constitui uma regra da brincadeira o dizer rápido, sem atropelos,
mantendo a frequência do ritmo do verso e a dicção clara e exata das
palavras a serem pronunciadas.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

O fato de agrupar fonemas com características sonoras apro-


ximadas agrega dificuldades de articulação desses blocos de palavras
que, ditas em um ritmo mais rápido, repetidas ao sabor da brinca-
deira, expõem formas de dizer o texto, aparentemente, inalcançáveis.
O grande trunfo dos trava-línguas, no que se refere à articulação das
palavras e sons da língua, é a exigência na superação de dificuldades
na pronúncia rápida e clara; na dicção perfeita do texto que se constitui
de uma palavra longa ou de grupos de palavras que se dispõem de uma
forma a confundir quem os pronuncia. Tal exercício de fala virá cola-
borar não somente com a ação de brincar com esse gênero textual, mas,
também, – e, principalmente, – com o aparelhamento da capacidade
de expressão das formas do dizer, com o exercício de articular bem os
sons da língua ao falar.
Contadores de histórias tradicionais, nas suas performances,
deixam que textos mais curtos – entre adivinhas, provérbios e outros
mais, assim como os contos mais longos – façam parte do seu discurso
que envolve o contar. Na cultura popular, os textos não aparecem iso-
lados. Fazem parte de um acervo de gêneros que podem ir-se incluindo
na performance, ao sabor da conversa, por fazerem parte de um con-
texto social em que os participantes conhecem tanto os gêneros orais
quanto seus detentores, contadores de histórias, reconhecidos na sua
capacidade de utilizar a língua com mais agilidade. Utilizar trava-lín-
guas no discurso tende a encantar os outros componentes em um grupo
que conversa, devido à característica principal desse gênero, marcado,
igualmente, pela brincadeira e pela dificuldade na pronúncia das frases
que encadeiam fonemas e palavras de sons aproximados e criam difi-
culdades nas formas de dizê-los.
Situações de embate com os trava-línguas são, ainda hoje, uti-
lizados na composição dos “repentes” nas cantorias de violas, como no
antológico folheto de autoria de Firmino Teixeira do Amaral, a famosa
Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho, em que o cego vence o
embate da cantoria utilizando-se do trava-línguas, variando a posi-
ção das palavras na frase, sem perder o sentido do conjunto: “quem a
paca cara compra, a paca cara pagará”. O cego lança o trava-língua no
desafio e o Zé Pretinho não consegue devolvê-lo com desenvoltura e

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enreda-se nos sons, atropelando o tom do versejar, perdendo o desafio,


nos versos:
- Amigo José Pretinho
eu não sei o que será
de você no fim da luta
porque vencido já está
quem a paca cara compra
paca cara pagará.

- Cego, estou apertado


que só um pinto no ovo
estás cantando aprumado
e satisfazendo o povo
este teu tema de paca
por favor, diga de novo.

- Disse uma, digo dez


no cantar não tenho pompa
presentemente não acho
quem o meu mapa rompa
paca cara pagará
quem a paca cara compra.

- Cego, teu peito é de aço


foi bom ferreiro que fez
pensei que o cego não tinha
no verso tal rapidez
cego, se não for massada
repita a paca outra vez.

- Arre com tanta pergunta


deste preto capivara!
Não há quem cuspa pra cima
que não lhe caia na cara
quem a paca cara compra
pagará a paca cara.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

- Agora, cego, me ouça


cantarei a paca já
tema assim é um borrego
no bico dum carcará
quem a cara cara compra
caca caca cacará.
Por tratar-se de uma disputa através de palavras – um embate
retórico, cujo vencedor é aquele que melhor se utiliza da linguagem,
demonstra mais conhecimento e melhor expõe suas ideias –, as pelejas
das cantorias de viola, levadas a termo pelos poetas populares e pelos
escritores de folhetos de cordel, se compõem utilizando trava-língua,
e muitos dos trava-línguas compostos hoje têm a sua origem nesses
textos populares. As formas utilizadas para enfrentar o adversário são
construídas através da criação dos obstáculos criados tanto na demons-
tração de conhecimento do assunto a ser tratado, quanto nas formas de
dizer o que pretende. Assim, a dificuldade de expressar o pensamento
é complementada pela dificuldade de dizer o que pensa. A repetição
exaustiva do mesmo som vocálico ou consonantal amplia a exigência
de uma boa dicção.
Outro tipo de jogo de sons, letras e palavras que, igualmente,
funciona como trava-língua está registrado no folheto de Manoel
Camilo dos Santos, intitulado A grande peleja de Ivanildo Vila Nova
com Manoel Camilo dos Santos. A repetição exaustiva de palavras ini-
ciadas com o mesmo som
I – Tal qual um dedocaêdro
Camilo estás na altura
de cantar em toda escala
vamos à literatura
cantando um abcdário
todo em nomenclatura

C – Cantar em literatura
colega eu mesmo me ufano
e pode seguir na frente
tenho fé no soberano
que aonde você for
eu irei no mesmo plano.

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I – Amaro, Augusto, Adriano


Ambrósio, Alonso, Agripino
Anastácio, Ageu, Alípio
Abel, Aleixo, Avelino
Antero, Alfeu, Ananias
Abílio, Antônio, Adelino.

(...)

C – Ubaldo, Ulisses, Urbano


Urias, Úrsulo, Ursulino
Ubirajara, Uriel,
Urubatan, Umbelino.
Por não ter mais rima em U
Venha com V eu combino.

I – V vai virar velocino


vamos versar variado
vantajoso, você vai
vou vos fazer avisado
vamos voltar versejando
vinte versos agalopado.
O ritmo do verso, na cantoria que o folheto sugere, obriga o
leitor a emprestar a cadência necessária à leitura, o que confere ao texto
a suposta dificuldade do trava-língua. As dificuldades de articulação
das assonâncias e aliterações produzidas em conjunto emprestam ao
texto um caráter lúdico.
No chamado Coco de Embolada, a destreza na articulação das
palavras num ritmo acelerado, sem se deixar atropelar por elas, é o
primeiro objetivo. Essa capacidade de bem articular os sons durante
a apresentação do versejar, fazendo-se compreender, apesar do ritmo
acelerado exigido no cantar específico, é marca de qualidade do bom
embolador. Compor o verso no improviso ou cantá-lo de memória são
dificuldades que um poeta cantador deve fazer parecer inexistentes.
Assim, em situação de dificuldade, não há outro caminho, a não ser a
saída honrosa do domínio do verso, atestado pelo cantador com quem o
outro verseja em dupla e pelos ouvintes, apreciadores e consagradores

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

dos poetas que merecem ser assim denominados pelo domínio do verso
e do seu cantar.
Quando eu entro num sufoco
canto o coco pra sair
e você que canta coco
faz favor de me ouvir
Observem-se as estrofes de um ‘coco de embolada’, divulgados
por Caju e Castanha – “emboladores de coco” pernambucanos, já con-
sagrados pela mídia, tendo a dupla se desfeito pela morte de um deles
– que divulgavam um repertório bem variado de textos populares no
ritmo da batida do ganzá, alguns deles inspirados nas dificuldades de
articulação das palavras propostas pelos trava-línguas.
Gulugulu gulugulá gulugulê
gulugulê gulugula gulugulê
gulugulu gulugulê gulugulá
tome cuidado que é pra língua não travar.
É produto produtivo produção
prazeroso produtor produzido proponéia
praticamente preparado pra prever
precavido precaver propina prosopopéia.
É picada picardia, é picadeiro
papagaio presepeiro promessa prometedor
prometeu pro povo preferência
prometido previdência pereceu papai votou.
Com uma proposta de crítica social, as palavras se misturam
com aquelas que mascaram essa intenção, multiplicando as formas de
brincar, camuflando a intenção de denunciar a corrupção que reina no
campo político conhecido pelo embolador.
Os textos populares não são estanques. Estabelecem-se entre
eles canais de interação que lhes garantem permanência e amplas pos-
sibilidades de transformação. Nas brincadeiras com a palavra, entre
crianças e mesmo adultos, têm espaço os trava-línguas, que por exi-
gir uma agilidade na fala, na articulação dos sons integrados das pala-
vras que compõem o texto, têm ‘feito a festa’ na busca crescente de

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variedades de textos para encantar as crianças; na tentativa de conquis-


tá-las para atividades de recriação oral e escrita. Dos mais simples aos
mais arrojados, os trava-línguas são reelaborados à exaustão, uma vez
que a linguagem oral oferece material rico quanto às possibilidades de
utilização de palavras e sons.
Observe-se o trava-línguas: “O caju do Juca e a jaca do Cajá,
o Jacá da Juju e o caju do Cacá”. Utilizando os fonemas /j/ e /k/, pas-
seando pelos sons vocálicos /a/, /u/, /i/, realiza-se um jogo de mobilidade
da boca e da voz que, aparentemente, não oferece dificuldade maior
que inviabilize o jogo, levando-se em consideração que o interesse
pela brincadeira esvai-se quando a criança sente-se incompetente para
jogá-lo.
Há, ainda, trava-língua como este: “Um prato de trigo para três
tigres tristes”, que pelo nível de dificuldade de articulação, tem inte-
ressado mais aos jovens e adultos. A variedade de textos provindos da
tradição oral e de reescrituras desses textos oferece material mais que
suficiente para adequar-se ao gosto e às possibilidades de articulação,
desde os primeiros anos da infância.
Apresentando talvez menor nível de dificuldade de articula-
ção, por pequena variação de sons nas palavras que o compõem, está o
trava-línguas: “Lanço o laço no salão/ o lenço lanço, a lança não”. Os
sons sibilantes e outros nasalizados se misturam no ritmo sincopado do
verso que se presta bem para um trabalho com ritmo do verso, da fala,
introduzindo inclusive noções musicais aos alunos. Outro texto bem
conhecido e divulgado – “Se o papa papasse papa/, se o papa papasse
pão,/ o papa papava tudo./ Seria um papa papão” – compõe-se em sim-
ples compreensão, mas pela profusão de fonemas aproximados, dão a
impressão de dificuldade. Também neste trava-línguas dá-se o mesmo:
“Quando digo digo, digo digo, não digo Diogo./Quando digo Diogo,
digo Diogo, não digo digo”. Ainda reforçando o acervo de trava-línguas
já ‘consagrados’ que são formulados como texto está o seguinte: “O
tempo perguntou pro vento/ tempo que tempo tens?/ e o tempo respon-
deu pro vento/ que o tempo tem tanto tempo/ que o tempo nem tempo
tem”.
Contamos, hoje, com múltiplas versões de um mesmo trava
-línguas, por exemplo: “O pinto pia, a pia pinga/ Enquanto o pinto pia,

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

a pia pinga”, e sua variação: “Atrás da pia tem um prato./ Um pinto


e um gato./ Pinga a pia, apara o prato./ Pia o pinto e mia o gato.” Há
registro, ainda, da variação: “Embaixo da pia tem um pinto que pia./
Quanto mais a pia pinga, mais o pinto pia.” além dessas, se pode regis-
trar, ainda, esta variante: “A pia pega e pinga. O pinto pega e pia./
Quanto mais o pinto pia, mais e mais a pia pinga”.
As variantes dos gêneros textuais orais em circulação estão
longe de denunciar o erro na emissão e demonstram a sua permanên-
cia viva e ativa. Essa capacidade de se multiplicar em variantes mos-
tra a possibilidade de manter-se em uso pelos falantes da língua em
circulação.
Observando o aspecto de que alguns trava-línguas criam ima-
gens simples, pode-se ilustrar com o seguinte texto: ”Olha o sapo den-
tro do saco/ o saco com o sapo dentro/ o sapo batendo papo/ e o saco
soltando vento”, o que possibilita não só a expressão através das pala-
vras, mas, igualmente, através do desenho, das ilustrações. A sensibi-
lidade para identificar trava-línguas no arsenal de palavras da língua
portuguesa aponta para ações de fala como a conjugação de alguns
verbos como o Tagarelar, em: “Tagarelarei, tagarelarás, tagarelará,
tagarelaremos, tagarelareis, tagarelarão”.
Os trava-línguas têm sido utilizados e se mostrado adequa-
dos, especificamente no processo de familiarização com a linguagem
falada e escrita. Por sua vocação lúdica, esses textos também podem
ser referendados principalmente por professores da educação infantil e
dos primeiros anos do ensino fundamental, em um trabalho agradável
de linguagem, em práticas que incluem articulação de sons, audição e
memorização. Não se pode afirmar, no entanto, que os trava-línguas são
adequados, unicamente, a performances com crianças. Experiências
com jovens e adultos também podem se mostrar satisfatórias, devido à
versatilidade desses textos.
A sua apresentação em aparente ‘nonsense’ funciona como
uma brincadeira com a voz, buscando agilidade na pronúncia das pala-
vras. Utilizando-se de sons aproximados em palavras agrupadas, o
trava-língua dá a impressão de dificuldade de compreensão e de arti-
culação dos fonemas da língua, o que exige cuidado e atenção – e até
algum esforço – para a realização de variadas nuances de sons e ritmos

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da fala a que esses textos obrigam. O resultado, indiscutivelmente é,


entre as crianças principalmente, a brincadeira que leva ao treino de
uma eficiente capacidade de pronúncia das palavras.
Há também que lembrar que as parlendas, mais especificamente
no seu formato de trava-línguas, contam no seu acervo com aqueles
textos que sugerem o duplo sentido que, por vezes, são conhecidos das
crianças e por elas são lembrados, quando se propõe em sala de aula
a utilização dos trava-línguas. A inserção, pelos alunos, de texto do
tipo: “Toco cru pegando fogo”, que, como todo trava-língua, deve ser
repetido várias vezes, o mais rápido possível, por vezes inibe a disposi-
ção de professores em trabalhar com esse acervo popular, pelo ‘perigo’
do surgimento, na brincadeira de textos de baixo calão. No entanto, o
professor munido de um bom acervo de trava-línguas, resultado tam-
bém de pesquisa realizada pelos alunos, por exemplo, pode garantir
o equilíbrio das participações, sobrepujando o número de textos tidos
como ‘censurados’ para a escola e/ou para as crianças. A diversidade
de textos considerados viáveis a serem utilizados na sala de aula é, com
certeza, mais representativa do que os passíveis de serem censurados,
que podem ser parte de uma outra abordagem, em outra ocasião.
Os gêneros aqui apresentados, participantes em acervos de
textos orais, mesmo registrados/publicados por escrito, mantêm o seu
caráter oral, podendo favorecer um trabalho de incentivo à escuta dos
textos, ao sabor dos sons da língua. O mediador de leitura, por vezes
um professor em sala de aula, pode, com esses gêneros orais, aproxi-
mar o ouvinte dos textos a serem lidos. A sua performance ao dizer
parlendas / trava-línguas funciona, muitas vezes, como motivação para
buscar a leitura (e escrita) em sala de aula e, para além dela, torna-se o
grande objetivo de ensinar a ler e escrever.

3. PARLENDAS NO CONTEXTO ESCOLAR

Na educação infantil e nos primeiros anos do Ensino


Fundamental, o jogo com as parlendas pode mostrar-se como forma de
motivar a aproximação com as formas de dizer, para apoiar o processo
de alfabetização/ letramento. As brincadeiras que podem ser realiza-
das com as parlendas desenvolvem nas crianças aprendizagens que vão

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

além da linguagem oral e escrita. Outras linguagens são exercitadas na


brincadeira com as parlendas: o gesto, a memorização do texto a ser
dito, as coreografias que são desenvolvidas ao sabor da brincadeira com
esses textos, por vezes, aparentemente desconexos, como o seguinte: “o
pinto pia, a pia pinga. Quanto mais o pinto pia, mais a pia pinga”.
A presença desses textos na escola deve-se, também, ao fato
de o seu formato de texto curto e com uma ‘vocação’ para a ludicidade,
de antemão, garantir o interesse de maior parte das crianças, cada vez
que eles são propostos para compor a atividade na sala de aula. Essa
característica de texto para brincar lhe garante espaço nas atividades
de escuta da criança, considerando a necessidade explícita de planeja-
mento da ação, para que a brincadeira não sufoque as possibilidades do
brincar orientado. O número excessivo de crianças que povoam tantas
salas de aula pode ter se constituído em um fator de transformação/
ajuste da brincadeira com parlendas (e outros textos orais), que deixa-
ram de ser ‘brincadas’ unicamente na forma oral e passaram a se apoiar
no registro escrito. A apresentação do texto na sua forma oral deu lugar
à leitura do texto.
A parlenda, como o seu nome já indica, é um texto para ser
falado. Nessa tradição oral, era – e ainda tem sido – veiculado oral-
mente, aprendido pelo canal boca/ouvido. No envolvimento de aprender,
gravar o texto na memória para poder brincar com ele, a brincadeira faz
o percurso da repetição, favorecendo aos participantes que não sabem
ainda o encadeamento do texto, aprenderem com aqueles que o detêm.
Saber o texto enquadra-se com saber executar o seu gestual. Entre as
crianças, realiza-se o que Paul Zumthor (1993, p. 222) concebe como
performance. Para o autor, “a obra performatizada é diálogo, mesmo
se, no mais das vezes, um único participante tem a palavra: diálogo sem
dominante nem dominado, livre troca”.
Um aspecto determinante na performance é o fato de que
aquele que ouve, participa, ser considerado, de algum modo, autor da
obra. Na troca das parlendas, na brincadeira com esses textos orais, o
fazer de um integra-se na ação espelhada de todos os participantes do
evento: a brincadeira. Para brincar com parlendas, faz-se necessário

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

que o texto, muitas vezes, venha acompanhado do gesto correspon-


dente, da marcação do ritmo predeterminado, na ação conjunta dos
participantes.
A parlenda, texto oral que se revela significativamente pelo
ritmo marcado, realiza-se, através da voz, do gesto específico, do
corpo, realizando o que Zumthor (1997, p. 174) refere: “A impressão
rítmica bem complexa que a performance cria provém do encontro de
duas séries de fatores: corporais, ou seja, visuais e táteis; e vocais, por-
tanto auditivos.” A concepção de análise que foi proposta para as ações
registradas entre as crianças, também pode referendar a performance
de adultos, que, nessa brincadeira, recuperam gestos e textos e os inte-
gram em uma ação onde convivem variadas linguagens. A ação da
parlenda sugere o ritmo para o gesto e o movimento do corpo que inte-
gra o grupo em torno dos mesmos dizeres. Tome-se, como exemplo, a
parlenda que se diz enquanto se pula corda. Para entrar na brincadeira,
pulando, enquanto duas pessoas fazem a corda girar, cada uma segu-
rando uma das pontas:
Um homem bateu à minha porta/ e eu abri
Senhoras e senhores pulem num pé só
Senhoras e senhores, ponham a mão no chão
Senhoras e senhores, deem uma rodadinha
E vá pro olho da rua!
A vocalização da parlenda se dá no ritmo sincopado, de acordo
com o ritmo do balanço que está sendo dado na corda, que é o mesmo
da ação de pular. Integram-se voz, gesto, ritmo, ação do brincar. Cada
ação ditada na parlenda é realizada por quem está pulando a corda.
Todos os participantes da brincadeira recitam o texto, mantendo o
ritmo e incentivando quem pula a obedecer ao que está sendo ditado.
Agilidade e coordenação motora, ritmo e memória do texto coordena-
dos fazem a brincadeira que compõem a performance.
A brincadeira ocupa o centro das atenções da criança. Hoje,
se acredita que o brincar integra o universo infantil como ação neces-
sária; que, brincando, a criança tem condições de aprender mais e
melhor, e que a brincadeira bem orientada pedagogicamente mostra-
se como caminho eficiente para o ensino e a aprendizagem infantil.
Considerando a criança em estágio inicial de leitura, a decodificação

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

das palavras, a conquista da compreensão do que está escrito e deve


ser lido deve fazer sentido para ela. Segundo Isabel Solé (1998, p. 57),
no exercício da leitura, a criança compreende que o escrito transmite
uma mensagem. Para adquirir a capacidade de ler, não só codificar,
mas também compreender o que está lendo, a criança faz uso de outros
conhecimentos, além da relação letra/fonema. A capacidade de ler
passa pela consciência de que ler não é somente dizer as letras, os sons
ou as palavras. Brincar com as palavras, nessa fase inicial, apresenta-se
como atividade importante de familiarização com os sons da língua,
seu ritmo, as formas de organização dos fonemas na composição das
palavras, das frases, dos textos. Essa brincadeira com as palavras que
as parlendas motivam, muitas vezes está atrelada a uma performance
que, na sua especificidade, inclui corpo e voz. A parlenda é recitada
dentro de um conjunto de gestos e ritmos.
Quando do exercício escrito do texto, em fase de alfabetiza-
ção, faz-se necessário, segundo Solé (1998, p. 63), explorar os conheci-
mentos dos alunos sobre o texto escrito, sem esquecer que eles trazem
experiências com a oralidade, que devem ser amplamente exploradas.
A contextualização dos textos a serem lidos confere sentido à leitura.
Apoiando-se nessa concepção, pode-se propor o uso do texto oral, espe-
cificamente das parlendas, dentro das brincadeiras que tais textos suge-
rem. Brincar com a parlenda da forma como se brinca nos grupos que
dela se apropriaram amplia os sentidos do texto que, quando visto por
escrito, já se apresenta como conhecido para as crianças, como texto a
ser lido e conectado a um sentido que o caracteriza como gênero.
Uma estratégia a ser considerada nessa fase de alfabetização
pode ser a proposta de sequência didática que leva a brincar com a
parlenda: escrevê-la no quadro, enquanto se repete o dizer, lendo o
texto que suscitou a brincadeira. A leitura do texto, a elucidação das
palavras (com alfabeto móvel e, uma vez decodificadas e compreendi-
das no contexto, reescrever as frases que compõem o texto em outros
suportes), buscando recuperar o sentido do texto, através da própria
leitura, complementa a sequência e dá às crianças a ciência do que está
lendo, no seu exercício de decodificação/compreensão do texto falado
e depois recomposto através da leitura.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As parlendas constituem-se em textos performáticos por exce-


lência. A sua natureza oral, ampliada pela sua vocação para a ludicidade,
especificamente, para a brincadeira, lhe confere um caráter lúdico que
favorece a sua inscrição como gênero que interessa às mais diversas
faixas etárias. O fato de ensejar uma brincadeira em que o participante
se envolve e da qual participa lhe confere a condição de gênero que, no
seu aparente despropósito, investe-se de um sentido para aquele que
pretende fazer uso dele, fator necessário para o reconhecimento de que
– o que na sua natureza de gênero específico para brincar, na maioria
das vezes confunde – é passível de ser compreendido.
Dizer e brincar com a parlenda; ver o texto sendo escrito e já
registrado; lê-lo e registrá-lo, novamente, por escrito, perfaz um circuito
complexo de oportunidades de desenvolver as aptidões necessárias ao
desenvolvimento da linguagem, onde estão contemplados o falar, o
escutar (ouvir e compreender), o ler e o escrever. Leitores iniciantes
encontram nas parlendas um material envolvente para favorecer o exer-
cício da leitura, atrelado à vivência da performance que a parlenda,
especificamente o trava-línguas, pode proporcionar. Dizer a parlenda,
realizar a brincadeira inerente a ela é parte que aproxima o participante
dessa vivência cultural, enquanto realiza a dicção.
A parlenda, texto oral por excelência, tem sido, cada vez mais,
apresentada por escrito, revelando o registro impresso desse gênero cuja
realização se completa na sua vocalização. Pesquisadores e folcloristas
apresentam os acervos coletados e a serem estudados e esses conjun-
tos de textos, muitas vezes, são lidos independentemente das situações
de performance que situa cada um no universo da brincadeira. Esse
desligamento tem colaborado com a dissolução da brincadeira que
contextualiza tal parlenda. O texto isolado dessa performance, que lhe
dá vida e motivação, descaracteriza a brincadeira e faz com que o texto
pareça sem nexo. Pode-se afirmar que o fato de muitas parlendas dei-
xarem de ser ditas e de ser brincadas deve-se a essa separação texto/
performance. A brincadeira com esses textos orais inclui tanto o dizer
quanto o corpo, o gesto, a voz, o ritmo, a interação das pessoas que
integram os grupos.

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Em projetos de leitura, na educação infantil e nas séries ini-
ciais, as parlendas, especialmente os trava-línguas, oferecem condições
de apoiar projetos de leitura. Considerem-se as parlendas no seu con-
texto de realização, incluindo a performance que esses textos sugerem
e integram. Dizer o texto enquanto brinca; lê-lo e registrar o texto e
a brincadeira que o referencia; pesquisar sobre formas de realização
da brincadeira com pessoas que dela participam ou participaram em
tempos atuais ou anteriores constituem atividades ampliadas e integra-
das de leitura e escrita, que favorecem, principalmente, o processo de
letramento cultural.

REFERÊNCIAS

AMARAL, Firmino Teixeira do. Peleja de Zé Pretinho com o cego Aderaldo.


s/l: s/d.
CASCUDO, Luis da Câmara. Literatura oral no Brasil. 3ed. Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo Editora da USP, 1984.
JOLLES, André. Formas simples – legenda, saga, mito adivinha, ditado, caso,
memorável, conto, chiste. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix,
1976.
LIMA, Maria Sonaly M. Lima. Parlendas: a tradição oral no processo de aqui-
sição da linguagem. João Pessoa: UFPB/ Proling. Dissertação de Mestrado,
2008.
ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita – a tecnologização da palavra.
Tradução de Enid Abreu Dobranszky. Campinas (SP): Papirus, 1998.
SANTOS, Manoel Camilo dos. A grande peleja de Ivanildo Vila Nova com
Manoel Camilo dos Santos. s/l: s/d.
SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6. ed. Tradução de Cláudia Schilling.
Porto Alegre: Artmed, 1998.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Tradução de Jerusa Pires Ferreira
Maria Lúcia D. Pochat e Maria Inês de Almeida. São Paulo: Hucitec, 1997.
______________. A letra e a voz – a “literatura” medieval. Tradução
de Amálio Pinheiro (Parte II) e Jerusa Pires Ferreira (ParteII). São Paulo:
Companhia das Letras, 1993.

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“É HIP HOP NA MINHA EMBOLADA”:
INSCRITURAS NORDESTINAS DO CORPO E DA VOZ
Amarino Oliveira de Queiroz
Universidade Federal do RIo Grande do Norte

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

INTRODUÇÃO

Em “Performance, Recepção, Leitura”, Paul Zumthor (2000,


p. 35) dá prosseguimento ao processo investigativo iniciado no livro
Introdução à Poesia Oral (1980), onde já se debruçava sobre o fenô-
meno da voz humana. Apoiando-se em disciplinas como a Etnologia,
a Acústica, a Psicanálise e a Linguística, dentre outras, as quais
também tiveram por objeto a palavra oral, o trabalho de Zumthor
trata de inventariar, num primeiro momento, os problemas da voz e
da palavra, levantando algumas considerações que estão preocupadas
com a definição das pesquisas em relação aos estudos literários, no que
propôs a eliminação do preconceito que demarca a noção histórica de
“literatura”, distinguindo-a da ideia de poesia:
A noção de literatura é historicamente demarcada, de pertinên-
cia limitada no espaço e no tempo: ela se refere à civilização
europeia, entre os séculos XVII ou XVIII e hoje. Eu a distingo
claramente da ideia de poesia, que é para mim a de uma arte
da linguagem humana, independente de seus modos de con-
cretização e fundamentada nas estruturas antropológicas mais
profundas. Foi dessa perspectiva que me coloquei o problema
da poesia vocal (insisto no adjetivo) e afastei os pressupostos
ligados à expressão, infelizmente frequente, “literatura oral”
(ZUMTHOR, 2000, p. 15).
Como avaliação dos impactos dos meios auditivos e audiovisu-
ais sobre a vocalidade, Zumthor (2000) sinaliza com o que vai chamar
de “retorno da voz”. O advento do computador que “fala”, na condição
de substituto eletrônico da escritura também promoveria, ainda que de
forma artificial e fabricada, uma ressurgência das energias vocais da
humanidade. Segundo o autor, a voz viva parece ter uma necessidade
vital de revanche, de “tomar a palavra”, uma vez que esses mesmos
diferem da escrita por um traço capital: o que eles transmitem
é percebido pelo ouvido, e eventualmente pela vista, mas não
pode ser lido propriamente, isto é, decifrado visualmente como

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

um conjunto de signos codificados da linguagem. É então pos-


sível, (e essa opinião é a mais comum) ver nos meios auditivos
uma espécie de revanche, de retorno forçado da voz, e ainda
mais do que a voz, porque com filme ou tevê vê-se uma imagem
fotográfica e, talvez, ainda em breve, tenha-se a percepção do
volume (ZUMTHOR, 2000, pp. 17-18).
A operação das bases sonoras manipuladas pelos disc-jóqueis,
simultânea à intervenção poética ao vivo dos poetas do rap, situação
característica de um evento Hip Hop, colaboram com uma ilustração
do argumento acima. As pick ups e os misturadores de som dos DJs
reproduzem uma colagem de efeitos que podem ser repetidos incessan-
temente, mesclando vozes pré-gravadas, fragmentos musicais e efei-
tos sonoros como marcação e suporte para a recitação cadenciada dos
rappers. O uso deliberado desses recursos compõe um novo mosaico
sonoro, em que o mix de vozes “fabricadas” eletronicamente pontua
e redimensiona, por sua vez, a performance discursiva desses poetas,
aproximando-a, assim, do pensamento de Zumthor.
No ambiente da cantoria nordestina, o recurso da mixagem
sonora pelo computador tornou-se possível em experiências como a
do encontro virtual da dupla de emboladores Caju e Castanha com os
cantadores franceses do grupo The Fabulous Trobadors. Os embo-
ladores pernambucanos, que também utilizam o rap e outras lingua-
gens como referência poética, iniciam, nessa gravação, um diálogo
com os poetas franceses, esses, também, realizadores do cruzamento
entre a tradição dos trovadores occitanos e a eletrônica, fundindo lín-
guas e culturas de diversas partes do mundo em suas apresentações e
registros fonográficos. Na performance poético-musical em questão,
a mescla de gravações efetuadas em tempos bastante diferentes entre
si viabilizou um cruzamento poético inusitado no universo da can-
toria. Vozes originalmente gravadas num passado distante, como as
de Caju e Castanha ainda meninos, na década de 70, se interpõem às
vozes francesas dos The Fabulous Trobadors, captadas em Toulouse,
no princípio dos anos 90, e remixadas em A Ponte, de Lula Queiroga
e Lenine, no ano de 1996. Os dois primeiros momentos fonográficos
foram tratados, respectivamente, como “coco de cá” e “coco de lá”, pelo

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

escritor paraibano Braulio Tavares 1, que completa: “quando a Europa


ia para os The Fabulous Trobadors, o Nordeste já vinha do Caju e da
Castanha”, porque “a corrente elétrica da cultura é sempre em mão-
dupla: tudo que vai, vem; tudo que toca, é tocado também”. Na referida
gravação, o mix das intervenções poéticas de Caju e Castanha e The
Fabulous Trobadors, realizados em sessões diferentes, é reunido numa
nova embolada que se entrecruza com o texto poético vocalizado:
A Ponte
A ponte não é de concreto,
Não é de ferro,
Não é de cimento.
A ponte é até onde vai
O meu pensamento.
A ponte não é para ir
Nem pra voltar.
A ponte é somente atravessar,
Caminhar sobre as águas
Desse momento 2.
O texto em questão, a começar pelo próprio título, além de
referenciar como suporte sígnico um elemento frequentemente asso-
ciado à paisagem recifense, reitera, ao interagir com os outros dois tex-
tos que se entrecruzam, a sugestão de trânsito que se processa num
território de “ilhas” culturais, supostamente incomunicáveis entre si,
relacionando a tradição nordestina do coco de embolada a dos trovado-
res occitanos. A mixagem sonora, por sua vez, estabelece um diálogo
entre as duplas e entre estas e o texto da canção. Promove-se, então,
pela mistura dos versos dos cantadores que se interpõem, compondo
uma espécie de discurso de fundo, uma ressurgência vocal apoiada e
desenvolvida a partir de novos suportes tecnológicos. O argumento
defendido por Zumthor ao longo do seu estudo serve como fundamento
inicial para balizar o que aqui se passa a discutir. Para o pesquisador
1
TAVARES, Braulio. Texto para o encarte do CD O Dia Em Que Faremos Contato, BMG
Ariola, 1996.
2
QUEIROGA, Lula e LENINE. A Ponte. O dia em que faremos contato. Rio de Janeiro,
BMG Ariola, 1996, digital, stereo, CD.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

suíço, a palavra performance não é inocente e há anos se arrasta no uso


comum:

Embora historicamente de formação francesa, ela nos vem do


inglês e, nos anos 30 e 40, emprestada ao vocabulário da drama-
turgia, se espalhou nos Estados Unidos, na expressão de pesqui-
sadores como Abrams, Bem Amos, Dundee, Lomax, e outros.
Está fortemente marcada por sua prática. Para eles, cujo objeto
de estudo é uma manifestação cultural lúdica não importa de
que ordem (conto, canto, canção, rito, dança), a performance é
sempre constitutiva da forma. Se um fato observado em perfor-
mance é, por motivos práticos, transmitido, como objeto cientí-
fico, por impressão ou conferência, então, de maneira indireta
e segunda, a forma se quebra. Neste sentido, a performance
é para esses etnólogos uma noção central no estudo da comu-
nicação oral. Isto explica, afinal, que desde o início dos anos
50 a palavra fosse empregada pela Linguística, especialmente
nos Estados Unidos (...). As regras da performance, com efeito,
regendo simultaneamente o tempo, o lugar, a finalidade da
transmissão, a ação do locutor e em ampla medida a resposta
do público, importam para a comunicação tanto ou ainda mais
do que as regras textuais postas na obra na sequência das
frases: destas, elas engendram o contexto real e determinam
finalmente o alcance: habituados como somos, nos estudos
literários, a só tratar do escrito, somos levados a retirar, da
forma global da obra performatizada, o texto e nos concentrar
sobre ele (ZUMTHOR, 2000, p. 35).
Zumthor assinala, ainda, que muitas culturas através do
mundo codificaram os aspectos não verbais da performance e a pro-
moveram abertamente como fonte de eficácia textual, sugerindo que
a noção de performance implica competência, traduzida, mais do que
em savoir-faire, em saber-ser, o que, por sua vez, implica uma presença
e uma conduta. Somente a partir de sua experiência sobre o funciona-
mento da voz poética com praticantes da voz, os griots do Burkina-
Faso, os rakugoka do Japão ou os repentistas do Nordeste brasileiro,
entre outros, é que Paul Zumthor apresenta, de forma que se pretende
mais conclusiva, uma ideia particular de performance, antes tratada
empiricamente como o único modo vivo de comunicação poética: a

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

performance compreenderia, então, um fenômeno heterogêneo, do qual


se torna possível dar uma definição geral simplificada.
Tomando-se o exemplo dos griots africanos mencionados nos
estudos de Paul Zumthor, pode-se tentar interpretar mais livremente os
significados que o conceito de voz assume nessa discussão, envolvendo
um caráter de som, grito, cantor e palavra, classificados por Amadou
Hampaté Bâ (1987, p. 202) como uma espécie de trovadores ou menes-
tréis: “a música, a poesia lírica e os contos que animam as recreações
populares, e normalmente também a história [...]” são privilégios desses
verdadeiros animadores públicos, classificados em três categorias: os
griots músicos, “que tocam qualquer instrumento, monocórdio, gui-
tarra, cora, tantã etc” e que “normalmente são cantores maravilhosos,
transmissores, preservadores da música antiga e, além disso, composi-
tores”; os griots “embaixadores” e cortesãos, “que estão sempre ligados
a uma família nobre ou real, às vezes uma única pessoa”, e os griots
genealogistas, historiadores ou poetas, ou os três ao mesmo tempo. O
uso performático da voz estaria, portanto, na matriz de uma série de
outras manifestações culturais africanas ou afro-descendentes que se
apoiaram em outros elementos, da dança à música, e que se espalharam
pelo mundo inteiro. Desde os ditos, provérbios, lendas até os contos e
outras narrativas orais; dos cantos de trabalho ao jazz, ao blues ou à
salsa; dos improvisos poéticos, registrados na embolada e no rap, à per-
cussão de boca conhecida, dentro da cultura Hip Hop, como beatbox.
A civilização tecnológica ou pós-industrial, na promoção de
uma cultura que se pretende “globalizada”, vem ditando regras pró-
prias a partir dos interesses particulares dos países concentradores de
riqueza, em detrimento dos países economicamente subdesenvolvidos.
Esta ação se interpõe frontalmente à subsistência das culturas “perifé-
ricas”, ocasionando uma padronização do gosto e a imposição do que
Zumthor vai identificar como modelo brutal de sociedade de consumo,
conforme assinala a historiadora afro-estadunidense Tricia Rose:
a vida às margens da América urbana e pós-industrial está re-
gistrada no estilo, som, música e temática hip hop. Emergente
da interseção entre a perda e o desejo da cidade pós-industrial,
o hip hop lida com as dolorosas contradições da alienação so-
cial e da imaginação profética. Expressão cultural da diáspora
africana, o hip hop tem se esforçado para negociar a experiência

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

da marginalização, da oportunidade brutalmente perdida e da


opressão nos imperativos culturais da história, da identidade
e das comunidades afro-americanas e caribenhas. É da tensão
entre as fraturas culturais, produzidas pela opressão da era pós-
-industrial, e os compromissos com a expressividade da cultura
negra que o hip hop foi levado a uma discussão crítica.
Arquitetado no coração da decadência urbana como um espaço
de diversão, o hip hop transformou os produtos tecnológicos, que se
acumularam como lixo na cultura e na indústria, como fontes de prazer
e de poder (ROSE, 1997, p. 192).
Na perspectiva de registrar algumas dessas formas de expres-
são cultural dinamizadas pela voz, “no seio de uma cultura na qual a
voz, em sua qualidade de emanação do corpo, é um motor essencial da
energia coletiva”, para dizê-lo com palavras de Paul Zumthor (2000),
é possível afirmar que o rap – enquanto modalidade oral de poesia
urbana, emergida a partir de uma atitude das margens, apoiada por
uma moldura eletrônica – e o beatbox – curiosa técnica vocal percus-
siva desenvolvida pelo uso do aparelho fonador e da voz, como subs-
titutos da instrumentação musical na ausência de instrumentos reais,
ambos elementos constitutivos da cultura Hip Hop – podem revelar:
por um lado, uma resposta consciente no sentido tanto da re-inserção
social e artística quanto de uma dignificação do sujeito enquanto voz
ativa que se pretende ouvida a partir das camadas marginalizadas da
população; por outro, uma resposta plasticamente funcional, que deno-
taria uma reação criativa às precárias condições de desenvolvimento
das potencialidades artísticas pelo cidadão comum.

1. O HIP HOP

A entrada do hip hop no Brasil se daria no início da década de


80, sobretudo a partir do movimento break, em São Paulo, herdeiro dos
bailes black da década anterior. Contemporâneos dessa fase inicial, o
b.boy e MC Thaíde, o DJ Hum, o dançarino e MC Nelson Triunfo, com
seu grupo Funk & Cia, bem como o seu conterrâneo nordestino, o DJ
e também b.boy Nino Brown, entre outros, costumavam apresentar-se
em espaços públicos da capital paulista, incorporando e desenvolvendo

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

a novidade em suas apresentações de rua, o que acabou por ampliar-


-lhe o caráter performativo. Paralelamente à movimentação dos b.boys,
marcada por um acompanhamento de palmas e por uma percussão de
latas e de boca, seguiam-se, agora, as primeiras manifestações poético-
-musicais do Hip Hop brasileiro em língua portuguesa. Esse experi-
mento passou a ser identificado como “tagarela”, devido à velocidade
com que a recitação era conduzida. A vocalização, anteriormente usada
para promover efeitos percussivos de marcação rítmica, assumiria,
então, um novo papel: o de criação poética. Paralelamente à movimen-
tação desses dançarinos, músicos e poetas, iam surgindo os primeiros
raps e as primeiras experiências de grafitagem entre os “manos” da
nascente cultura Hip Hop brasileira.
Em matéria jornalística assinada pelo jornalista e escritor Xico
Sá sobre o poeta, teatrólogo, cineasta, pintor e militante do movimento
3

negro Francisco Solano Trindade, cuja trajetória literária desenvolvida


entre os anos 40 e 60 do século passado teve por base a cidade de São
Paulo, encontramos um dado significativo. Por haver reunido, ao longo
de sua obra, “militância, lirismo e uma oratória que mais parecia um
assobio”, além de ter cravado em sua poesia a expressão “mano”, “pre-
fixo obrigatório de hoje entre os rappers e jovens da periferia, na poesia
negra brasileira pré-Racionais MCs” (SÁ, 2001), o poeta pernambu-
cano é lembrado como uma espécie de “avô dos rappers”, para quem
poesia e militância política eram componentes indissociáveis. O apego
ao panfleto, segundo Xico Sá, o que o aproximaria mais intimamente
ao discurso dos próprios Racionais MCs, não impediria que a poesia de
Solano fosse admirada por outros criadores e intelectuais brasileiros,
como Otto Maria Carpeaux, Roger Bastide, Sérgio Milliet ou Carlos
Drummond de Andrade. Citando o escritor Darcy Ribeiro, que tratou
da militância do poeta em seu livro “Aos Trancos e Barrancos – Como
o Brasil Deu no que Deu”, de 1985, Xico Sá recorda ainda que Solano
Trindade foi também um dos mais importantes nomes do século pas-
sado, no processo de recuperação da autoestima dos negros no Brasil,
estando aí “a semelhança do poeta com a legião de ‘manos’ do rap, que
segue a mesma pegada”.

3
SÁ, Xico. Recife prepara coletânea de poemas de Solano Trindade. Folha de São Paulo on
line, 17 set. 2001. Disponível em: www.folha.com.br/ilustrada. Acesso em: 05/out/2001.

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A cidade de São Paulo, importante cenário da diversidade cul-


tural brasileira e destino, quase que obrigatório, de migrantes de várias
procedências, como os nordestinos Nelson Triunfo e Nino Brown, viria
a tornar-se, gradativamente, da mesma forma que acontecera para com
a literatura de Cordel, a cantoria ou a obra performativa de Solano
Trindade, um ambiente propício ao desenvolvimento do break, do rap
e do grafite, verificado através de múltiplas trocas culturais. Nesse sen-
tido, Maria Ignez Novaes Ayala lembra que
os nordestinos tiveram o seu “porto” de chegada no velho bair-
ro do Brás, caracterizado já no fim do século XIX por rece-
ber, ainda que temporariamente, os que vinham de fora” [...].
O espaço simbólico nordestino, no Brás, criou-se a partir da
manutenção de hábitos culturais. Ali encontram um comércio
de gêneros alimentícios regionais, práticas artísticas e recreati-
vas. Configura-se como um ponto de encontro privilegiado dos
conterrâneos, que aí se reúnem não somente para trocar infor-
mações sobre parentes e amigos, como também para se auxi-
liarem mutuamente [...]. A solidariedade entre os conterrâneos,
quase tão forte quanto à implicada em relações de parentesco,
evidencia-se até na linguagem: a expressão “irmãos do Norte”
é extremamente carregada de significação; são todos “irmãos
do Norte, cooperando uns com os outros nas misérias e alegrias
cotidianas” (AYALA, 1988, p.38).
Por outro lado, também entre os “manos” do Hip Hop, na con-
dição de poetas à margem como os cantadores nordestinos, a experiên-
cia da migração do interior do Nordeste para os grandes centros ditaria
um comportamento assemelhado, tanto do ponto de vista de uma resis-
tência cultural, quanto no que concerne às condições da própria sobre-
vivência e inserção social. Um significativo contingente desses rappers
está constituído, quando não de nordestinos de nascimento como os
pernambucanos Nino Brown e Nelson Triunfo, de descendentes destes:
são os “paraíbas” do Rio de Janeiro, os “candangos” de Brasília ou os
“baianos” de São Paulo. A mãe de Mano Brown, mestre de cerimônia
do grupo Racionais MCs, migrou da região de Feira de Santana, na
Bahia, mesmo estado onde nasceu o avô do rapper paulistano Xis. O
poeta Gog, um dos mais expressivos nomes do rap em Brasília, é filho
de piauiense, e seu parceiro, Japão, é de Pernambuco, lugar de origem
da mãe de Max B.O., membro do grupo de rap Academia Brasileira

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

de Rimas. Essa massa migrante de “irmãos do Norte” e de seus des-


cendentes, ao tempo em que desenvolvia práticas tradicionais, como a
cantoria e o Cordel, foi assimilando informações novas, como o Hip
Hop e estabelecendo com elas algumas trocas.
Assim, além do exemplo de São Paulo, Belo Horizonte ou
Brasília, com seu entorno de cidades satélites lotadas de migrantes,
outras referências se fazem destacar em todo o Brasil. A aproxima-
ção do rap com a tradição dos trovadores gaúchos em Porto Alegre
– passando pelo flerte do break com a capoeira e o tambor de crioula
maranhense; do grafite com a xilogravura do Cordel no Recife, até a
assimilação dos improvisos poéticos do partido alto no Rio de Janeiro
– são exemplos de experiências que reforçam esse caráter de fusão
intercultural por que vem passando o Hip Hop praticado no Brasil. Tal
como o rap, desde suas primeiras manifestações, a poesia nordestina
de Cordel assumiu, entre outras funções, o caráter de crônica versifi-
cada do cotidiano. Realizando uma movimentação constante entre o
poético e o factual, não chega a causar estranhamento que essa litera-
tura também assimilasse o rap e, por conseguinte, a própria cultura Hip
Hop como representação. A reportagem social em versos, tradicional-
mente produzida através do Cordel, e, agora, tendo o rap como mote,
seria, ainda, reiterada pela xilogravura e, igualmente, incorporada
pela cantoria. Estava estabelecida, portanto, a possibilidade de mais
uma mão-dupla entre universos culturais aparentemente antagônicos.
Ainda, segundo Maria Ignez Ayala (1988), a poesia popular nordestina
de expressão oral ou escrita caracteriza-se por ser narrativa:
A poesia escrita, (folhetos, poemas para declamar ou cantar e
canções) e a poesia oral improvisada (emboladas e repentes) se
fazem de poemas narrativos. Se a poesia popular escrita, para
ser lida, declamada ou cantada, versa histórias, a poesia popular
oral, na forma específica do repente, se constrói a partir de ges-
tos e situações ocasionais, além de desenvolver temas diversos,
como acontecimentos históricos, políticos, sociais, religiosos,
aspectos da natureza, entre outros. Tudo é motivo para o repen-
te (AYALA, 1988, p. 19).
A partir dessa observação, e sem perder de vista os pressupos-
tos teóricos de Paul Zumthor, serão caracterizadas algumas formas da
poesia de improviso desenvolvida no Nordeste, recortadas da tradição

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até a contemporaneidade, na tentativa de identificar, também através


do repente, o seu caráter performativo.

2. CANTORIA

Da mesma forma que ocorre com a literatura de Cordel, diver-


sas são as tentativas de catalogação realizadas por estudiosos da can-
toria nordestina, sobretudo da cantoria de viola. Através delas, todos
se mostram empenhados na descrição do maior número possível de
gêneros, incluindo aí os extintos e os que estão ainda no nascedouro.
Uma classificação completa e minuciosa, porém, até por causa do cará-
ter dinâmico da produção poética, está por realizar-se. Em pesquisa
sobre o assunto, o escritor Braulio Tavares (1979, p. 2-3) optou por enu-
merar e descrever, sem registrar de forma mais detalhada as variantes
de cada um, aqueles estilos que considerou mais em voga: a sextilha, a
gemedeira, o mourão de sete linhas, a décima, o quadrão da beira-mar,
o oitavão-rebatido, o mourão você-cai, o martelo agalopado, o dez de
queixo caído e os oito pés a quadrão. Além deles, o quadrão mineiro, os
dez pés a quadrão, o mourão voltado, o Brasil caboclo, o martelo alago-
ano, o martelo miudinho, o galope beira-mar, o gabinete, o quadrão de
meia-quadra e a toada alagoana. Cada um desses estilos apresenta um
determinado número de versos e de sílabas, bem como um esquema de
rimas que obedece a regras particulares.
No universo da cantoria nordestina, repentista seria, então, o
poeta que improvisa versos com ou sem suporte musical. Na primeira
situação, aparecem: o poeta cantador, ou repentista violeiro, que tem
como suporte musical a viola, instrumento de origem árabe introduzido
na Península Ibérica e herança da colonização portuguesa; o embolador
de coco, fazendo uso do pandeiro, instrumento cuja origem, também,
remonta à cultura dos povos árabes, através do antigo adufe; o tira-
dor de coco-de-roda, de praia, de umbigada, samba de coco, mazurca
etc., modalidades que incluem a dança e outros instrumentos, como o
ganzá indígena, para marcar os versos improvisados, além da percus-
são de bombos e pandeiro. O mestre de cavalo-marinho, espetáculo
que ocorre, principalmente, na Zona da Mata de Pernambuco e Paraíba
e que reúne, à maneira de um auto, curiosa performance carregada de

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

poesia, dança, música e encenação teatral, é também um poeta que faz


uso da rabeca, a rabeb dos árabes, para pontuar seus versos improvi-
sados durante as evoluções do folguedo. Existem, ainda, cantadores
que, em apresentações solo, recorrem a vigorosos acordes de rabeca
para preencher os intervalos de suas recitações poéticas, muitas delas
tiradas de improviso.
Na segunda situação, a dos poetas improvisadores que não uti-
lizam nenhum instrumento além da própria voz, destaca-se o poeta do
grito: o aboiador. Classificado inicialmente como um canto de trabalho
do vaqueiro, o aboio de gado, não versejado, caracteriza-se por um canto
de vogais que obedece a uma divisão assimétrica, cheia de microtons,
diferenciando-se da forma conhecida na escala musical do Ocidente.
No Brasil, ocorre, principalmente, na região compreendida entre o
norte de Minas e o sertão nordestino, com variações conhecidas pelos
nomes de aboio mineiro, aboio catingueiro etc. A perfomance vocal do
aboiador, para retomar a ideia de Paul Zumthor, acaba sendo pontu-
ada pelo ruído metálico produzido pelos chocalhos do gado em movi-
mento, se está em atividade de pastoreio. Nos últimos anos, contudo,
vem crescendo bastante a modalidade versejada do aboio, presente nos
campeonatos de vaquejada e outros eventos festivos. Esses aboios de
improviso apresentam uma variedade temática bastante significativa.
Estruturados em décimas, os temas podem ser desenvolvidos a partir
de um mote, geralmente tratando da lida com o gado, das relações entre
o patrão e o vaqueiro ou até em louvor à bravura no trabalho duro e as
paixões do poeta cantador. Antes, durante o intervalo e após os versos
improvisados que cria, o aboiador emite sons melodiosos e melancóli-
cos, caracterizados pelo prolongamento das últimas sílabas ou vogais.
Esta prática vocal, na modalidade não versejada, funciona como uma
espécie de chamamento para as reses que, estando dispersas pelo mato,
tornam a reunir-se atraídas pela voz do vaqueiro. Assim como o cante
a palo seco, gênero de poesia oral realizado sem qualquer acompanha-
mento pelos cantaores flamencos da Espanha, numa combinação de
performance vocal e recitação poética que, aliás, recebeu uma homena-
gem em versos escritos pelo poeta pernambucano João Cabral de Melo
Neto, o aboio praticado no Nordeste brasileiro também vai encontrar
suas origens na tradição oral dos povos árabes.

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3. EMBOLADA, RITMO E POESIA

O coco de embolada, ou simplesmente embolada, é um gênero


de poesia improvisada que se caracteriza por melodia declamatória em
valores rápidos, e intervalos curtos, apresentando textos descritivos,
satíricos, cômicos ou críticos, numa performance carregada de figuras
de som, como aliterações, assonâncias e onomatopeias, mais trocadi-
lhos, trava-línguas e outras armadilhas sonoras. A estrofe, em geral,
é desenvolvida em sextilhas, após um estribilho que compreende dois
versos, cada um de doze sílabas métricas com a sucessão de sílabas
agudas e breves, de duas em duas, num ritmo convidativo para dançar:
Eu vou criticar batendo no meu pandeiro
sobre esse Brasil fuleiro que não tem mais onde dar
E eu, Caju, vou te dizer que o Brasil tá acabado
com tanto ladrão safado chegando de lá pra cá [...]
E o Brasil vai se acabar, meu colega de ação
tem ladrão de colarinho, tem ladrão engravatado
e tem tanto cabra safado que já tá bom de se lascar! 4
Pode-se, ainda, entender a embolada como a modalidade poé-
tica característica de um conjunto mais amplo de manifestações artís-
ticas nordestinas, denominado coco, que inclui, além da poesia oral
desenvolvida em formas fixas ou improvisada, o canto, a música, a
dança, a palavra impressa, através do coco-de-cordel e a ilustração
gráfica, como a xilogravura. A arte de improvisar, geralmente desen-
volvida em duplas e na forma de desafio rimado, é provavelmente a
sua característica principal, embora muitos desses poetas façam uso
de refrões tradicionalmente arquivados pela memória coletiva, entre-
meando-os ao repente. Como é sabido, o processo poético-musical da
embolada se dá através de uma dicção complicada, na qual, a depen-
der da velocidade com que o suporte rítmico é acionado – no caso o
pandeiro, manipulado pelo próprio cantador – os versos podem lite-
ralmente embolar o coco. Dessa forma, ainda que comprometendo a

4
CAJU e CASTANHA. Fragmento de Pra criticar. Faces do Subúrbio. Recife:
Independente, 1997, digital, stereo, CD.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

assimilação integral do texto, acabam por divertir a assistência pelo


aspecto lúdico do resultado obtido no intento:
E você pode acreditar
que depois que eu me abusar
eu relo o rapo, eu rampo o relo
rampo o relo, rampo o ralo
remendo, tampo e destapo
e a gota já quer me dar!
Olhe, o que eu tenho pra lhe avisar:
eu viro o dedo, viro a unha
viro a unha, viro o dedo
eu viro a carta e o segredo
viro o réu e a testemunha
viro a enxada e a cunha
viro a maré e viro o mar 5
O jogo acelerado de palavras proferidas em meio aos ver-
sos, na forma de trava-línguas e trocadilhos pontuados por emissão de
vogais, interjeições e onomatopeias é, nesse caso, intencional e produz
um efeito que encontraria certo paralelo na “percussão de boca”, carac-
terística do Hip Hop, ou seja, no beatbox:
Barababá, berebebé, biribibi
Botei aqui, tirei daí
Tirei dali, joguei pra lá6
Para significativa parcela de poetas rappers, a arte de imitar
instrumentos musicais e outros sons com a boca consiste numa ocu-
pação de destaque, deixando de figurar apenas como uma virtude do
mestre de cerimônias, para reivindicar o status de um elemento a mais
dentro de toda a cultura Hip Hop. Ao longo de seu processo evolutivo,
a técnica do beatbox vem sendo aperfeiçoada de tal maneira que pode
chegar a estabelecer um dueto, ou até mesmo um duelo, com o som
produzido pelas pick-ups manipuladas pelo DJ. Recursos como este, a

5
CAJU e CASTANHA e MELO, Albiratan. Embolando na embolada. Vindo lá da
lagoa. São Paulo: Trama, T500/153-2, 2000, digital, stereo, CD.
6 Idem.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

que Paul Zumthor chamaria de uso performático da voz, são cultiva-


dos no rap com sofisticação, mas, também, se fazem presentes, à sua
maneira, no coco de embolada, colocando em evidência a possibilidade
de interpretação da voz humana enquanto instrumento de expressão e
comunicação através da poesia vocal.
O embolador seria, portanto, um poeta-cantador que desenvol-
veu a habilidade de fazer versos rimados e metrificados, com muita
rapidez, diferindo dos outros cantadores no ritmo, na construção dos
versos, no uso do suporte instrumental e, até mesmo, na performance
vocal. No fragmento do Coco do C – desafio registrado pela dupla de
emboladores pernambucanos Pinto e Rouxinol e que será apresentado a
seguir – pode-se atestar perfeitamente essa distinção. O uso de palavras
iniciadas com a letra c, muitas delas topônimos, transita propositada-
mente pelo território do nonsense e revela um tipo de competição em
que se destaca a habilidade do cantador em versejar com palavras asse-
melhadas, criando versos ricos em aliterações e assonâncias:
Eu quero ver cantador pra cantar isso
Pra cantar isso eu quero ver cantor cantar
Cantador diga caçote com cururu
camará, Caramuru e Caramuru, camará
Caligrafia, cativeiro e camurim
cavalo comer capim é custoso, custo e custar
Camaleão e Cortês e Caruaru
camará, Caramuru e Caramuru, camará 7
A partir de uma espécie de mote comum a ambos os conten-
dores, essa habilidade é testada através da subsequente enumeração de
palavras iniciadas pela letra “c” e de um abuso de trocadilhos, trava-
-línguas e outras armadilhas sonoras que desafiarão a memória do par-
ceiro, fazendo com que ele prossiga improvisando dentro do tema sem
sair do ritmo acelerado da embolada:
Camaragibe, carreira, cama e Caim
Curimatá-mirim, cangalha com caçuá
Caça e coringa, Camutanga, Cucaú

7
PINTO e ROUXINOL. Coco do C. Recife: gravação independente, 1996. (Fita-cassete).

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

Camará, Caramuru e Caramuru, camará


Casteliano, crivado, corte e careca
camisa, calção, cueca, Curitiba e Cuiabá
Canavial, caçoada e cururu
camará, Caramuru e Caramuru, camará8
A recorrência das duas últimas linhas de versos que consti-
tuem o mote, repetido insistentemente pelos dois emboladores a cada
duas estrofes, reforça, num exercício aliterativo, a graça e a musicali-
dade do embate:
Curimatá, cacimba, cobra, cassaco
capote, cana e casaco, carretel e caruá
Comercial e Cabedelo e Cabaçu
camará, Caramuru e Caramuru, camará
Camisaria, costela, corte e cabelo
Capricórnio, cotovelo, cabrita, canga e cará
Camaradeiro, Curupira e curupu
camará, Caramuru e Caramuru, camará9
As aliterações, assonâncias e outras figuras de harmonia
representam, por sua vez, um recurso formal frequentemente utilizado,
também, na estruturação poética do Hip Hop, como no fragmento de
Brasil com P, composto pelo rapper brasiliense Gog:
Pesquisa publicada prova:
preferencialmente preto,
Pobre e prostituta
para a polícia prender.
Pare e pense: por que? [...]
Primeira página, preço pago:
pescoço, peitos, pulmões perfurados,
parece pouco, Pedro Paulo
Profissão: pedreiro,
passatempo predileto: pandeiro

Idem.
8

Idem.
9

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

Preso portando pó
passou pelos piores pesadelos [...]
Político privilegiado preso, parecia piada
Pagou propina pro plantão policial
Passou pela porta principal.10
O estudo das confluências entre o Hip Hop e a cantoria nor-
destina no ambiente urbano exige um inventário de suas trajetórias
individuais rumo às fusões interculturais que resultaram, por exem-
plo, no rap-embolada. No caso da cantoria de pandeiro, já na segunda
década do século XX, os emboladores haviam chegado ao rádio com o
cantador pernambucano Minona Carneiro e seu grupo Voz do Sertão.
Em seguida, a partir dos anos 30, ganharia seus primeiros registros
fonográficos em vinil e uma consequente divulgação nacional com o
conterrâneo Manezinho Araújo, discípulo de Minona. Com isto, não
tardaria a aparecer no cinema e, mais tarde, já em meados da década de
50, chegar à televisão.
Fui convidado
Pra uma festa de rigor
Onde gente de valor
Ia toda encasacada
A minha sogra
Pra bancar a saliente
Levou roupa só na frente
Mas atrás não tinha nada11
Performer ao vivo, no rádio e no cinema, Manezinho Araújo
exerceria uma grande influência sobre muitos cantadores de pandeiro,
como Castanha, destacando-se não apenas na arte de embolar, mas
também em outras atividades exercidas paralelamente: ator, jornalista,
compositor, garoto-propaganda e pintor. Divulgado nacionalmente por
nomes como Jararaca, Ratinho, Jacinto Silva e Almira Castilho, entre
tantos outros, o coco em geral encontraria na figura de Jackson do

10
GOG. História do rap nacional. São Paulo: RB-1051, s.d., digital, stereo, CD.
11
ARAÚJO, Manezinho. Fragmento de Cuma é o nome dele? O Rei da Embolada.
Curitiba: Revivendo, RVCD-109, s.d., digital, stereo, CD.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

Pandeiro, outro performer, cantor, compositor, exímio ritmista e um


dos mais importantes re-criadores do estilo. Jackson foi o responsável
por registros como esse Coco Social, de Rosil Cavalcanti, que realiza
um comentário irônico sobre a assimilação da dança do coco de roda
no Rio de Janeiro, recebida como uma exótica manifestação de migran-
tes do Norte, e que tomava de assalto os salões de baile da então Capital
Federal:
Ele é pernambucano do canavial
Veio pro salão, é social
Madame na boate fica solfejando
Ao som da champanhota diz: o coco é bom
O musicista toca sem sair do tom
Toda gente bem fica admirando
Diz o criminalista: esse coco mata
É superbizantino, diz o general
Jacinto de Thormes na venda não dorme
E diz: o coco é bom, é sim, senhor12
Os versos tratam de mencionar literalmente algumas perso-
nalidades da política, das finanças e da alta sociedade carioca da era
getulista, registrando uma suposta aprovação ao novo modismo:
O diplomata canta baixo, na surdina
O financista gosta e faz anotação
Banqueiro financia, pois vale um milhão
Diz a dama de preto: é dança grã-fina
Jurista de renome aconselha o coco
O almirante diz: ele é nacional
Ibrahim Sued esforço não mede
E diz: o coco é bom, é sim, senhor13
Essa presença ampliada do coco, enquanto dança e manifes-
tação poético-musical, partindo do litoral e do interior nordestinos

12
CAVALCANTI, Rosil. Fragmento do Coco Social. Sua Majestade, o rei do ritmo. Rio de
Janeiro: Copacabana, 99.300, s.d., digital, stereo, CD.
Idem.
13

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

em direção ao ambiente das grandes cidades, tanto através da mídia


como nas apresentações ao vivo, acabaria por despertar a atenção da
Academia e transformar-se em objeto de investigação científica e pro-
dução literária, de forma assemelhada à experiência desenvolvida por
Federico García Lorca, que se debruçou sobre a poesia flamenca e a
tradição dos ciganos da Andaluzia, incorporando-as à produção cul-
tural das Vanguardias espanholas da Geração de 1927. O imaginário
cigano e a arte performática flamenca, que desenvolve uma relação
interativa entre poesia vocal, canto, música e dança numa só função,
perpassariam, com enorme força, pela obra poética e pela produção
musical e teatral de Lorca, ele próprio, ator, guitarrista, dramaturgo e
desenhista. Federico García Lorca escreveria estudos e inúmeros poe-
mas baseados no universo flamenco, reproduzindo, inclusive, no texto
escrito, elementos associados à oralidade cigana e ao cante jondo dos
cantaores e cantaoras, como os gritos, as interjeições, as gírias e as
expressões idiomáticas do dialeto caló.
Ainda que numa proporção extremamente tímida, se compa-
rada à interferência do cancioneiro flamenco sobre a obra de García
Lorca, poetas do Modernismo brasileiro – entre os quais situaríamos,
principalmente, Manuel Bandeira e Ascenço Ferreira, este profunda-
mente impregnado da vocalidade da poesia nordestina –, referencia-
riam textualmente em seus livros a cantoria de viola e de pandeiro
e outros estilos da chamada poesia popular.
Como Lorca, que frequentou muitas apresentações de cante
jondo flamenco, Bandeira chegou a ser juiz numa função de poetas vio-
leiros. A experiência lhe renderia, pelo menos, o poema “Cantadores do
Nordeste”, publicado originalmente em “Louvações” e reproduzido em
“Estrela da vida inteira”, no qual faz menção direta aos poetas da viola,
enaltecendo as qualidades de quem “inventa em boa improvisação, /
Como faz Dimas Batista/ E Otacílio, seu irmão” (1974, pp. 263-264).
Em “Mafuá de Malungo”, e, posteriormente, na supracitada reunião de
poemas, publicaria uma “Embolada do Brigadeiro”, na qual reproduz
alguns procedimentos característicos do estilo. O texto é aberto por um
diálogo inicial, comumente utilizado pelos poetas do pandeiro em situ-
ação de desafio, e faz alusão ao termo corrido, que serve para designar

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

um tipo de romance cantado, de tradição ibérica, difundido em algu-


mas regiões da América Hispânica:
- Não voto no militar; voto no homem escandaloso
- Ué, compadre, quem é o homem escandaloso?
- O Brigadeiro.
- Escandaloso?
- Escandaloso.
- Escandaloso por quê?
- Ora, ouça lá o meu corrido:
Homem mesmo escandaloso,
Pois não mata,
Pois não furta,
Pois não mente,
Não engana nem intriga.
Tem preceito, tem ensino:
Foi assim desde tenente,
Foi assim desde menino!
(BANDEIRA, 1974, p. 329-30)
O mesmo Manuel Bandeira, em prefácio a uma reunião pós-
tuma de Catimbó, Cana Caiana e Xenhenhém, de Ascenço Ferreira,
relançados nos formatos livro e CD em 1995, ressaltaria esse caráter de
virtualidade verbal e movimento lírico impresso pelo conterrâneo em
seu processo de criação:
Quem não ouviu Ascenço dizer, cantar, declamar, rezar, cus-
pir, dançar, arrotar os seus poemas, não pode fazer ideia das
virtualidades verbais nele contidas, do movimento lírico que
lhes imprime o autor [...].
Versos de dez, nove e oito sílabas, funcionando dentro do
mesmo ritmo, bem marcado e batido. Esta passagem, sem pre-
paração, do verso-livre para os versos metrificados e rimados,
de cadência acentuadíssima, no extremo limite em que o verso
já é quase música, constitui a virtude mais característica da
forma tão pessoal de Ascenço Ferreira [...].

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

Nos seus poemas, ele mistura os versos do ritmo mais marte-


lado, os que por isso mesmo os cantadores nordestinos cha-
mam de “martelo”, com os versos-livres mais ondulosos e
soltos, com frases de conversa e música pelo meio. É o que
precisamente acontece nesse admirável “Sertão”, admirável do
princípio ao fim, e onde, depois das notas pastoris, irrompe a
toada guerreira do cangaço:
É lamp... é lamp... é lamp....
É Virgulino Lampião... (p. 7-8)
E continua:
A seguir, reverte o poeta ao verso-livre, sem metro e sem rima,
num poderoso efeito de reboo:
E o urro do boi, no alto da serra,
Para os horizontes cada vez mais limpos
Tem qualquer coisa de sinistro como as vozes
Dos profetas anunciadores das desgraças... (BANDEIRA,
1995, p. 8)
O modernista Mário de Andrade, ele próprio pesquisador do
assunto através de viagens realizadas pelo interior nordestino, escreve-
ria sobre Ascenço:
Ascenço Ferreira, em Catimbó, eleva ao máximo possível a
tendência rapsódica da poesia brasileira. O “Maracatu” chega
a ser inteiramente cantado.
Digo “máximo possível” porque depois do compromisso entre
fala e música que ele inventou (poemas “Catimbó”, “Sertão”,
“O Samba”, “A Cavalhada”, “Reisado”, “Bumba meu boi”, etc),
em que um dilúvio de vezes atinge notações de um whispe-
ring baryton, depois dos ritmos coreográficos de cocos, mara-
catus, sambas de matutos que transpôs admiravelmente para
a poesia, maior sistematização sonora é diretamente música
(ANDRADE, 1995, p. 19).
Em Ascenço Ferreira se afirmaria, ainda, através da leitura
de seus poemas registrada em disco, o caráter de uma poesia vocal,

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

“no extremo limite em que o verso é quase música” de que nos falou
Bandeira. Uma literatura da voz que também é quase dança, quase tea-
tro, e cuja forma se assemelha àquela praticada pela “imaginação audi-
tiva” da poesia verbal de Joaquim Cardozo em seus autos14, bem como
às características já descritas na poesia dos rappers da contemporanei-
dade. Neste sentido, também a produção de Ascenço remete-nos, uma
vez mais, à ideia zumthoriana de performance, descrita pela professora
paraibana Idelette Muzart (1995, p. 33) como “um ato concreto total de
participação que permite à voz existir e dizer, bem como às relações
entre voz e escritura, recusando qualquer exclusão recíproca”, argu-
mento que, além de não mais permitir a confusão entre oralidade e tra-
dição, também viabiliza “a inclusão, no campo da oralidade, de práticas
modernas e não tradicionais”.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os primeiros anos da década dos 60 seriam marcados, na


cidade do Recife, pelo Movimento de Cultura Popular (MCP), inicia-
tiva do governo municipal de Miguel Arraes que buscava retomar e
incentivar a produção dos criadores classificados como artistas e poe-
tas populares, bem como desenvolver um programa de alfabetização de
crianças e adultos, conduzidos pelo educador Paulo Freire.
Contando com a adesão de outros intelectuais da cidade, como
os artistas plásticos Abelardo da Hora e Francisco Brennand, e os escri-
tores Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna, o MCP recebeu, ainda,
o apoio de setores organizados da esquerda, ganhando dimensão nacio-
nal e servindo de inspiração para experiências semelhantes em outros
estados. Durante o período em que durou, até o golpe militar de 1964, o
movimento realizou espetáculos performáticos em praça pública, orga-
nizou oficinas e cursos de artes, edições de livros, cartilhas e exposi-
ções, despertando, inclusive, uma maior atenção do público para com as
manifestações vocais da poesia nordestina, dentre elas a embolada. Em
paralelo ao método Paulo Freire, a relação entre a cantoria nordestina
e a educação, em particular, a cantoria de viola encontrou expressão
14
O poeta e engenheiro pernambucano Joaquim Cardozo produziu cerca de seis peças tea-
trais em versos, baseadas em autos nordestinos, como o do pastoril e o do bumba meu boi.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

significativa através do estilo conhecido como Galope Soletrado ou,


simplesmente, Soletrado. Comparando-o ao galope à beira-mar, outro
estilo da cantoria de viola, Maria Ignês Novaes Ayala (1988) explica
que
O galope soletrado traz as mesmas características de métrica
e rima, mas tem uma peculiaridade, que representa sérios obs-
táculos à transcrição: a escrita convencional não permite o
entendimento do ritmo dos versos, já que este se fundamenta,
como o próprio nome indica, no modo como as palavras são
soletradas... (AYALA, 1988, p. 142).
E acrescenta:
O galope soletrado parece ter tido uma função didática, em
algum momento, servindo talvez como auxiliar da alfabeti-
zação, tal qual a literatura de folhetos [...]. Muitos cantadores
afirmaram que em escolas primárias do interior, até há pouco
tempo, aprendia-se a soletrar, cantando. O exercício escolar foi
adaptado à cantoria sob nova forma, enquadrando-se em um
gênero poético e recebendo uma toada diferente da que era
utilizada nas aulas de alfabetização.
Esta hipótese parece plausível, posto que o poeta popular é
reconhecido como uma pessoa que veicula conhecimento.
Segundo Sebastião Marinho, os cantadores antigos mereciam
grande respeito de seu público, sendo chamados de “mestres”,
como os professores. Os ouvintes prestavam atenção ao que
cantavam e aprendiam noções de História, Geografia etc, atra-
vés dos versos dos poetas. O soletrado, como gênero de canto-
ria, evidenciava que o cantador dominava muito bem a técnica
de soletrar, a ponto de encaixá-la na poesia. O público, por sua
vez, exercitava a técnica ao decodificar a mensagem poética
(AYALA, 1988, p. 144-145).
Experiências de letramento semelhantes vêm sendo desenvol-
vidas na contemporaneidade, a partir da cultura Hip Hop, tendo o rap
como elemento de referência para a prática pedagógica. Professores de
diversas áreas do conhecimento vêm dinamizando suas atividades em

228

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

sala de aula e conquistando excelentes resultados, sobretudo com crian-


ças e adolescentes de escolas públicas de periferias, através de uma
ação conjunta que envolve os corpos docente e discente dessas institui-
ções. O trabalho desenvolvido por esses professores e alunos consiste,
inicialmente, na reestruturação da forma através da qual os diferentes
conteúdos programáticos são ministrados. Assim, a aula expositiva tra-
dicional experimenta momentos em que esses conteúdos são rimados
e metrificados a partir do estilo rap, o que proporciona uma interação
maior do grupo com os temas. Isso tem demonstrado resultados bas-
tante satisfatórios, não somente porque esses jovens são estimulados a
trabalhar com referências culturais e códigos de linguagem que lhes
são particularmente familiares, mas também pelo fato de os alunos aca-
barem envolvidos na tarefa de construção e reflexão sobre os textos
poéticos, bem como na sua apresentação performatizada.
Citando os pesquisadores portugueses António Concorda
Contador e Emanuel Lemos Ferreira (1997, p. 15-16), a pedagoga
Cláudia Ribeiro Belocchio15 ressalta que, tomando por base a oralidade
como uma das principais características do rap, a oportunidade de uti-
lizá-lo “na sua componente vocal ou expressiva, a palavra, a voz, a poe-
sia de rua”, potencializou vários aprendizados. Outra pedagoga, Elaine
Nunes de Andrade, responsável pela organização do livro Rap e educa-
ção, rap é educação, coletânea de relatos sobre experiências similares
realizadas na cidade de São Paulo, a partir de uma clientela de maioria
negra e ascendência nordestina, reforça esse argumento afirmando que
O rap, independentemente do seu ritmo acelerado, ensurde-
cedor e rebelde, representa um instrumento político de uma
juventude excluída. Independentemente do seu conteúdo [...],
muitas vezes indica uma ação pedagógica de jovens em pro-
cesso de escolarização ou mesmo evadidos da escola. Quem
observa o seu conteúdo [...], vai encontrar uma leitura da vida
social, do “fazer” da sociedade, comparada a muitos cientistas
sociais que apenas superam esses jovens na linguagem culta
e específica do universo científico (ANDRADE, 1999, p. 86).

15
BELOCCHIO, Claúdia Ribeiro. A educação musical no ensino fundamental. Refletindo
e discutindo práticas nas séries iniciais do ensino fundamental: olhando e construindo
junto às práticas cotidianas dos professores. Porto Alegre: UFRGS/FACED, 2000.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

E sinaliza para alguns resultados obtidos a partir dessas inter-


venções, argumentando que
na ação pedagógica, o grupo fortalece sua identidade étnica e
geracional como condição única para a superação do mundo
da exclusão, do mundo da violência simbólica. Reafirmam,
como jovens, sua capacidade de apresentar idéias, comparti-
lhar opiniões e sugerir mudanças sociais. Promovem, como
negros, o cultivo à autoestima e à luta pelo direito à cidadania
(ANDRADE, 1999, p. 91).
Por todo o país, e também no Nordeste, várias outras ações
nesse sentido vêm sendo processadas, envolvendo o rap, o break e
o grafite, além de uma série de outras práticas culturais, a partir da
interferência de diversas organizações como as associações de mora-
dores, os sindicatos de categoria, as posses do hip hop e as organiza-
ções não governamentais. Com Chico Science e Nação Zumbi, ícones
da cena Mangue Beat, ocorrida no Recife, em meados dos anos 90, as
confluências entre a embolada e o rap encontrariam fértil território,
dando continuidade ao processo de releituras urbanas por que pas-
sou o coco de embolada ao longo do século XX, e viabilizando uma
aproximação mais definida desse estilo com o rap. Em meio a esses
experimentos, Science sinalizaria textualmente para uma aproxima-
ção com o discurso dos rappers, tanto do ponto de vista estrutural
quanto da questão temática, sugerindo a fusão do Hip Hop com a
cantoria de pandeiro:
É hip hop na minha embolada!
É o povo na arte
É a arte no povo
Não é o povo na arte
De quem faz arte com o povo16
A partir da música, essa atitude “envenenada” do Mangue Beat
logo repercutiria nas artes plásticas, na dança, na moda, no teatro, no
cinema e na literatura produzida na região. Enquanto conjunto perfor-
mático que envolve música, dança, poesia improvisada ou cantada em
16
SCIENCE, Chico. Fragmento de Etnia. Afrociberdelia. São Paulo: Sony, 1996, digital,
stereo, CD.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

versos já assimilados pela memória coletiva – sejam eles assinados,


anônimos ou re-trabalhados a partir de alguns refrões tradicionais,
sejam difundidos em suportes audiovisuais ou ainda através de textos
impressos e ilustrados –, o universo do coco de embolada remete-nos
ao conjunto performático que caracteriza a cultura Hip Hop. Os cruza-
mentos culturais abordados neste nosso recorte trazem à tona questões
que tomaram lugar a partir do diálogo estabelecido entre a contempora-
neidade e as tradições culturais no espaço urbano, conforme argumenta
Néstor García Canclini:
todas as artes se desenvolveram em relação com outras artes:
o artesanato migra do campo para as cidades; os filmes, os
vídeos e canções que narram acontecimentos de um povo são
intercambiados. Assim as culturas perdem a relação exclusiva
com seu território, mas ganham em comunicação e conheci-
mento (CANCLINI, 1998, p. 348).
A rede de interseções e confluências que caracterizam as trans-
formações processadas no encontro desses dois universos performáti-
cos remete-nos à ideia de desterritorialização, na qual, ainda segundo
Canclini (1998, p. 349), a perda de uma relação exclusiva com seu ter-
ritório é compensada por um ganho em comunicação e conhecimento,
visto que “a luta entre classes ou entre etnias é, na maior parte dos dias,
uma luta metafórica” e que, “às vezes, a partir das metáforas, irrompem
lenta ou inesperadamente práticas transformadoras inéditas”, como as
que reinscrevem a voz e o corpo, indissociavelmente, no conjunto das
criações artísticas e literárias do Nordeste brasileiro, arregimentando
-as, ainda, não somente como importante matéria para as estratégias
de letramento, mas também oportunizando o incremento do ensino de
literatura e poesia oral.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Elaine Nunes de (Org). Rap e educação, rap é educação. São


Paulo: Summus/Selo Negro, 1999.

231

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Refletindo e discutindo práticas nas séries iniciais do ensino fundamental:
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Alegre: UFRGS/FACED, 2000. Tese de Doutorado.
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Dissertação de mestrado...

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

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ZUMTHOR, Paul. Introduction à la poésie orale. Paris: Seuil, 1983.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires
Ferreira. São Paulo: Educ, 2000.

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LITERATURA AFRO-BRASILEIRAS

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LITERATURAS AFRICANAS E AFRO-BRASILEIRAS
NO CONTEXTO ESCOLAR SOB A LEI 10.639/03
Rosilda Alves Bezerra
Universidade Estadual da Paraíba

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

INTRODUÇÃO

O presente trabalho expõe um conteúdo oriundo de um estudo


de campo que analisa o resultado da concretização da ação de polí-
tica afirmativa, no que diz respeito à aplicabilidade dos conteúdos de
literaturas e culturas afro-brasileira e africana nos currículos escolares
da educação básica, sancionada pela Lei nº 10.639/03. A proposta traz
um recorte dos conteúdos de literatura africana de língua portuguesa
apresentados em sala de aula, além de promover conhecimentos sobre a
literatura africana e valores culturais capazes de educar cidadãos cons-
cientes de seu pertencimento étnico-racial.
O ambiente escolar é um espaço de discussão e pluralizador
de ideais em criticidade nos arranjos discursivos. Nele, apresentamos o
resultado do estudo analítico-social a partir das teorias educacionais e
da aplicação modificante da subjetividade através do currículo. Nessa
perspectiva, avaliamos de que forma o conteúdo programático foi gra-
dativamente aplicado e utilizado em sala de aula, uma vez que foram
incluídos aspectos das culturas afro-brasileira e africana, como forma-
doras da população brasileira.
Por meio do diálogo metodológico voltado para o estudo biblio-
gráfico de teóricos dos estudos culturais e literaturas africanas, foi pos-
sível estabelecer a relação entre o conhecimento teórico e a aplicação
no campo prático, em maior relação com a realidade sócio-histórica das
turmas observadas, bem como o apoio com a coleta de dados a partir
das aulas e interferência no campo prático das atividades docentes em
análise. No primeiro momento da pesquisa, se priorizou a observação
das aulas ministradas, e, no segundo momento, a interferência através
de reuniões, propostas de construções de planos de aula e planos de
unidade, envolvendo os conteúdos da Lei 10.639/03 e a aplicabilidade
em sala de aulas sob a orientação docente.
A Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008, sancionada pelo,
então, Presidente Luís Inácio Lula da Silva, alterou a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional e incluiu no currículo oficial da rede

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

de ensino a temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”,


como obrigatoriedade do ensino de Cultura Afro-Brasileira em todos
os currículos escolares. Este advento criou a relevante necessidade de
produção de material didático específico, adaptado aos vários graus e
às diversas faixas etárias da população escolar brasileira. Diante disso,
a institucionalização dessa Lei, à medida que concretizou a reivindi-
cação dos grupos do movimento negro, impôs um desafio aos profes-
sores, principalmente aos de história, literatura e artes, visto que estas
áreas do conhecimento são as diretamente contempladas com o con-
teúdo da lei.
O cumprimento dessa obrigatoriedade legal pelos sistemas de
ensino e, consequentemente, pelos educadores não é tarefa trivial, pois
se trata de uma proposição que exige a reflexão e a sua aplicação na
educação básica. Nesse sentido, a proposta da pesquisa é avaliar de
que forma o conteúdo programático está sendo aplicado e utilizado
em sala de aula, uma vez que inclui aspectos da história e da cultura,
como formadores da população brasileira, a partir desse grupo étnico.
Os conteúdos explorados nesta Lei 10.639/03 abrangem os estudos da
história da África e dos africanos e a organização e luta dos negros no
Brasil. Entretanto, a nossa proposta é investigar esses aspectos e esta-
belecer intervenções no que diz respeito a aplicabilidade dos conteúdos
de literaturas afro-brasileira e africana de língua portuguesa (SOUZA;
LIMA, 2006). Por esse motivo, não iremos explorar a Lei 11.645/08,
que inclui os estudos relacionados à cultura indígena.
Outro aspecto relevante é discutir o papel da universidade na
formação dos professores, uma vez que os conteúdos referentes à cul-
tura afro-brasileira serão ministrados, no âmbito do currículo escolar,
pelos profissionais das áreas de educação artística, literatura e história.
Dessa forma, cabe aos professores discutirem o processo histórico que
levou à configuração sociocultural em que se insere a cultura afro-bra-
sileira. A escola é, por excelência, esse espaço que forma cidadãos;
logo, tem o dever de possibilitar os elementos indispensáveis à forma-
ção de uma cidadania, na qual o caráter étnico racial não seja relegado
à segunda instância, como fora anteriormente.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

1. A LEI 10.639/03 E O ENSINO DE LITERATURAS


AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA NAS ESCOLAS

O escritor e crítico Manuel Ferreira (1989) elenca as literaturas


africanas em quatro relevantes momentos: no primeiro, o autor destaca
o total processo de alienação. Para o crítico literário, isso significa que
os textos poderiam ter sido escritos em qualquer outra parte do mundo,
não necessariamente na África, pois o locus não determina a produção.
Assim, esse momento pode ser visto como um espaço total de uma
cultura alienada, completamente afastada das questões identitárias
africanas.
O segundo momento da formação da literatura africana rela-
ciona-se com a manifestação da realidade. Ou seja, o que ele escreve
destaca a influência do meio em que vive, além de evidenciar as carac-
terísticas de um nacionalismo, ufanismo exacerbado, principalmente na
afirmação de identidade e sua relação com o indigenismo e o negrismo.
Nesse contexto, é somente no terceiro momento que o autor
africano percebe-se colonizado. O traço literário desse escritor denota
o seu meio sociocultural e geográfico. Assim, ele busca uma forma
de sair da alienação e, nesse processo, surge o discurso da revolta e da
angústia.
A quarta fase está relacionada à história e a independência
nacional. Por isso (ou por causa disso), ocorre uma espécie de recons-
trução da identidade do escritor africano. Com esse novo despertar,
o escritor mostra-se liberto das alienações e produz textos criativos,
originais, além de explorar outros temas, antes negados, como o da
identidade com a África, do mestiço e, principalmente, o retorno ao
orgulho esquecido e, agora, ressignificado.
Patrick Chabal (1994), crítico moçambicano, também desta-
cou, sob o ponto de vista historicista, quatro fases do escritor africano
e sua relação com o processo de oralidade. Na primeira, o autor frisa o
fato de muitos escritores africanos serem assimiladores, isto é, repro-
duzirem os modelos de escrita de escritores europeus. Assim, a admi-
ração e os feitos europeus são contemplados na maioria dos escritos.
Na segunda fase ocorre uma transformação, pois os autores
buscam assumir a posição de defensores da cultura africana. Acontece

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

uma espécie de libertação em relação ao modelo europeu, destacando


aspectos positivos de sua própria cultura. Segundo Chabal (1989), tal
fenômeno ocorre, principalmente, por causa da influência de nomes
representativos da causa negra, como Aimé Césaire, Léon Damas e
Léopold Senghor.
A terceira fase é o momento da independência, e é conhecida
como a de afirmação, na qual o autor busca posicionar-se na sociedade
pós-colonial, compreendendo o contexto em que está inserido política
e socialmente.
Na quarta fase há um processo de consolidação literária. Os
autores traçam rumos para as literaturas de cada país de língua portu-
guesa, considerando as suas peculiaridades, singularidades, mas, prin-
cipalmente, respeitando o seu valor no universo literário.
Historicamente, o sistema de ensino do Brasil pregou uma edu-
cação formal que, em diversos momentos, não reconhece o valor do
negro e do índio na formação cultural da sociedade brasileira, visto
que o racismo e a ideologia do branqueamento ainda fazem parte desse
contexto escolar (CHIAVENATO, 1980). No geral, o negro contribui
com a vida econômica do Brasil, haja vista o fato de ter sido direta-
mente inserido no mundo do trabalho escravo, em substituição a mão-
de-obra indígena. Ou seja, são dois grupos marginalizados, que foram
responsáveis pela construção da riqueza do país, e os historiadores eco-
nômicos nunca negaram isso. No entanto, a história ensinada no ensino
fundamental e médio pouco – ou nada – nos disse sobre o negro e sua
cultura, tampouco atentou para as questões de valorização dos meca-
nismos de resistência e formulação de ideias (BEZERRA; CHAGAS,
2007).
Com os valores de ostentação aos Estados Unidos, por exem-
plo, na prática do ensino sempre houve uma tendência a desqualificar o
continente africano, além de inferiorizar racial e socialmente os negros
(NASCIMENTO, 1978; MUNANGA, 2004, 1996; SILVA, 1996, 1988).
Assim, os movimentos sociais negros, principalmente, passaram a rei-
vindicar, junto ao Estado brasileiro, no que tange à educação o estudo
da história do continente africano e dos africanos; a luta dos negros no
Brasil; a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade
nacional brasileira.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

A partir dessa discussão, a proposta de nossa pesquisa se


baseia em compreender de que forma ocorre o processo de constru-
ção de identidade do povo negro na formação da sociedade nacional,
reconhecendo as suas ações nas áreas social, econômica e política, per-
tinentes à história do Brasil, assim como ocorre essa representação na
literatura e afrodescendência (DUARTE, 2006; FONSECA, 2000), e
quais informações são refletidas e aplicadas em sala de aula.
A diferença cultural é a principal característica da formação
social do Brasil, uma vez que os brasileiros são resultados da relação de
negros, brancos e índios. No entanto, a cultura cristã ocidental e branca
manteve-se como determinante e passou a definir os referenciais a
serem perseguidos como indispensáveis à construção da identidade
brasileira. Dessa forma, essa formação é historicamente concebida
como ponto de chegada, ou seja, como uma recorrência às origens
do povo brasileiro, uma origem que sempre negou os referenciais de
negros (BEZERRA; CHAGAS, 2007).
A partir desses pressupostos, torna-se necessária uma pos-
tura crítica frente às relações raciais no Brasil, como mostram várias
pesquisas e análises sobre a influência de um racismo que acredita na
inferioridade de africanos e afrodescendentes e dos preconceitos dele
oriundos. O desafio que a Lei 10.639/03 impõe aos educadores e edu-
candos do ensino brasileiro é a possibilidade de romper com a tradição,
ou seja, a manutenção de um ideário de história e cultura afro-brasileira
em que os negros são coadjuvantes ou representam peças entrelaçadas
ao processo, travestido de escravo.
A Lei é imprescindível, porque assume uma postura de reco-
nhecimento e de valorização da diversidade étnica a partir desses
aspectos, na qual será possível analisar as discussões acerca das ques-
tões colocadas pelas lutas históricas dos negros e indígenas, percebendo
como ocorre este “desafio da diversidade” (GOMES, 2006).
A inclusão do debate sobre etnia nas escolas perpassa pela dis-
cussão dos direitos humanos dos negros e está relacionada a um tipo
de reparação histórica, além de referir-se a um projeto nacional que
reconheça “as diferentes culturas constitutivas da nação brasileira, as
relações que mantém entre si grupos étnico/raciais e integrantes seus,
assim com outras relações sociais” (SILVA, 2004, p. 388).

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

Na condição de segundo país com maior população negra, o


Brasil pouca atenção dedicou aos negros(as), no que se refere à manu-
tenção de políticas públicas, o que resultou no processo de exclusão.
Como afirma Telles (2003, p. 306), “com o resultado da escravidão
ou de grandes desigualdades de classe, além de uma contínua prática
social preconceituosa, de cunho racial”, esse processo não se limitou
aos espaços físicos da sociedade, mas se estendeu à memória nacio-
nal, uma vez que negros(as) foram excluídos do currículo escolar
(SANTOS, 1990).
A permanência dessa realidade atravessou décadas sendo
questionada por entidades do movimento negro, sobretudo os grupos
de intelectuais, e tomou impulso na década de 1960, quando entidades
negras passaram a denunciar, com mais efetividade, o racismo, reivin-
dicando direitos sociais para a população negra e a revisão da história
do Brasil, de modo a que a história do negro e seus valores culturais
passassem a fazer parte dos livros didáticos e do currículo escolar
(SILVA, 2002).
A perspectiva era possibilitar aos professores outros conteú-
dos, e, desta feita, garantir às crianças negras referências culturais rele-
vantes a elevação da estima e construção da identidade étnica a partir
da escola, compreendida como espaço de afirmação, e não de nega-
ção. Na década de 1980, as iniciativas ganharam visibilidade quando
a revisão da historiografia sobre a escravidão assumiu espaço entre os
pesquisadores das Ciências Humanas; deixou-se de lado a perspectiva
de estudo do negro como escravo enquanto peça inserida na economia
brasileira e passou-se a estudá-lo como sujeito histórico que resistiu à
escravização. Dessa discussão, surgiu o estudo Literatura negra brasi-
leira, que analisa a participação do negro personagem, autor e leitor na
literatura brasileira (CUTI, 2010).
Intelectuais de diversas áreas das Ciências Humanas, ligados
ou não ao movimento negro, passaram a desvendar a vida de negros(as)
para além do processo econômico brasileiro, o que se confundia com
as ações dos grupos do movimento negro que, desde outrora, afirma-
vam negros(as) como sujeitos históricos. Apesar dessa perspectiva,
negros(as) continuaram ausentes dos livros didáticos, ou presentes ape-
nas em condições de inferioridade (CANDAU, 2003).

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

No entanto, a discussão evolui e, no final dos anos de 1990,


resultou na inclusão das disciplinas História da África, no Curso
de graduação em História, e Literaturas de Língua Portuguesa, que
abrange as Literaturas Africanas, em algumas universidades, a exem-
plo da USP e UEPB. À primeira vista, a questão estaria resolvida no
ensino fundamental e médio, visto que os docentes formados a partir
de então teriam condições de incluir os conteúdos de história da África,
história do negro e cultura afro-brasileira no currículo escolar.
Um ponto relevante a se destacar é o fato de que, ao se caracte-
rizar não só por uma riqueza estilística, como também pelas possibili-
dades de debate sobre a nossa realidade social, política e econômica, o
texto literário tem sido apontado como instrumento importante a estar
presente, também, em salas de aula. O trabalho com a cultura, de uma
forma geral, e, mais especificamente, representada pela literatura, pos-
sibilita ao aluno um contato com um universo cultural bastante amplo.
Um aspecto importante é que esse contato, além de produzir um avanço
nas habilidades de leitura e de escrita, permite também uma identifica-
ção com a mensagem cultural, produtora de cidadania.
Através da leitura, se chega ao domínio da linguagem e, nessa
relação, não é mais possível desconhecer a relação linguagem e poder
(cf. BARTHES, 1996). Na concepção barthesiana, a linguagem pode
se inscrever como meio de dominaçãoou como instrumento de cons-
cientização e libertação. Nesse ponto, o discurso é colocado como um
desafio ao leitor. Barthes nos leva a refletir sobre as forças de liberdade
que existem na literatura. Sendo assim, o texto literário pode ser usado
como uma das formas de autoconhecimento, conhecimento do outro,
da realidade e do tempo em que vivemos, assim como do passado e da
nossa herança cultural.
Na relação posta entre literatura e sociedade não são pou-
cas as temáticas sociais que são tomadas como matéria literária. Um
exemplo a ser citado são as questões de natureza étnico-raciais, bem
como de construção da identidade racial. Segundo Fonseca (2000, p.
92), “o modo como a sociedade brasileira lidou com a questão escra-
vocrata, as imagens de negro e de negrura continuam a ser modela-
das por uma gama de preconceitos”. As formas artísticas, de uma
maneira ou de outra, acabam dialogando com os determinantes sociais,

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

confirmando-os ou negando-os, isso porque são representações discur-


sivas. Diante disso, torna-se relevante compreender que o texto literário
pode ser usado como um meio, um recurso a mais para a interlocução
do leitor com a sociedade; um instrumento capaz de envolver aspectos
de ordem estética e contextuais.
Nesse sentido, o ensino das literaturas afro-brasileira e afri-
cana de língua portuguesa representará uma ação fundamental para
um convívio social, caracterizado pelo mútuo respeito entre todos os
brasileiros, na medida em que todos aprenderão a valorizar a herança
cultural africana e o protagonismo histórico dos africanos e dos seus
descendentes no Brasil.
Com a Lei, os docentes, nas suas práticas cotidianas, se viram
com mais um desafio a resolver na sala de aula: como incluir a história
e a cultura do negro no currículo escolar? De que forma a escola, um
dos principais instrumentos usados durante a história para descaracte-
rizar e destruir as culturas negras e africanas, poderia vir a ser hoje um
instrumental decisivo na reconstrução e afirmação dessas identidades
sociopolítico-culturais? Qual é o papel dos novos agentes político-cul-
turais que surgem nessa nova situação educativa? Quais são os saberes
necessários a essa nova prática pedagógica?

2. O ESTUDO DE LITERATURAS AFRICANAS E SUA APLI-


CABILIDADE NAS ESCOLAS

Pires Laranjeira (1995) destaca o fato de que, para conhecer


aspectos essenciais das literaturas africanas, é importante atentar sobre
os principais acontecimentos literários ocorridos em cada um dos paí-
ses africanos de língua portuguesa: em Angola, o movimento “Vamos
descobrir Angola” (1948) e a publicação da revista “Mensagem” (1951-
1952), que corresponde, segundo o autor (1995, p. 71), “à concretiza-
ção das aspirações dos jovens angolanos de criar um clima propício, e
os meios concomitantes, à produção intelectual baseada no espírito de
angolonidade”; em Cabo Verde, o movimento da publicação da Revista
“Claridade” (1936-1960) e as atuações de Jorge Barbosa e Manuel
Lopes; em Moçambique, a publicação da revista “Msaho” (1952) e a
poesia de Noémia de Sousa, que compreende a fusão do Neo-Realismo

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

com a Negritude; em São Tomé e Príncipe, a publicação do livro de


poemas “Ilha de nome santo” (1942), de Francisco José Tenreiro, e a
participação poética de Marcelo da Veiga; em Guiné-Bissau, a publica-
ção da antologia “Mantenhas para quem luta!” (1977), pelo Conselho
Nacional de Cultura, a literatura colonial guineense e uma literatura
nacional.
Na literatura angolana contemporânea, os autores mais repre-
sentativos são: Luandino Vieira (1935), Pepetela (1941), José Eduardo
Agualusa (1960), Ondjaki (1977), João Melo (1955) e Ana Paula Tavares
(1952). Na literatura moçambicana: Mia Couto (1955), José Craveirinha
(1922-2003), Nelson Saúte (1967) e Paulina Chiziane (1955). Na de
São Tomé e Príncipe: Alda do Espírito Santo (1926-2010), Maria
Manuela Margarido (1925-2007) e Olinda Beja (1945). Na de Guiné-
Bissau: Domingas Samy, Abdulai Sila, Carlos Barros, Filinto Barros,
Odete Semedo e Filomena Embaló. Na literatura de Cabo Verde:
Luis Romano, Gabriel Mariano, Ovídio Martins, Aguinaldo Fonseca,
Terêncio Anahory, Yolanda Morazzo, Arménio Vieira, Germano de
Almeida e Corsino Fortes.
Uma problemática que perpassa os estudos de Cultura Afro-
Brasileira é o fato de as correntes teóricas adotadas por alguns pesqui-
sadores banalizarem os efeitos do racismo. Dessa forma, o que fazer
para valorizar a participação da cultura africana nos currículos escola-
res, se o pouco material didático não permite o acesso aos educadores e
alunos? Como tratar de assuntos delicados, quando não há uma prepa-
ração devida? Como os professores trabalharão com esses conteúdos,
quando muitos deles, ao longo de sua formação e trajetória profissional,
não tiveram acesso a eles?
Ao longo do exercício de professor de história, língua portu-
guesa e literatura, trabalhando ou não especificamente com a temática
do negro, quantos alunos já questionaram acerca da história e cultura
afro-brasileira? Muitas vezes a resposta desse docente foi o silêncio,
porque não estava apto a responder, uma vez que só havia aprendido
que da África vieram os escravos, que aqui foram inseridos nos enge-
nhos de açúcar, fazendas de café, minas de ouro, nas casas grandes e
senzalas (ROCHA; PANTOJA, 2005). A partir dessa lógica, aprende-
ram que os negros escravizados não pensavam, não produziam saber,

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

conhecimento, cultura, e se rebelaram contra a ordem instituída pelo


sistema escravagista. Ficou na memória e nos livros que os negros só
contribuíram com a formação cultural do Brasil, deixando algumas
manifestações, expressões que, posteriormente, classificam-na de fol-
clore (SILVA, 1996).
Com esses questionamentos, o problema passou a ser da
Universidade Estadual da Paraíba, sobretudo, porque ela é, também,
responsável pela formação continuada de professores(as), possibili-
tando-lhes espaços de discussão e apropriação de novos saberes. Frente
à demanda existente na região de Guarabira – onde a instituição man-
tém o Campus III e atende uma média de quarenta municípios –, a
UEPB, através do Centro de Humanidades, justifica a realização do
projeto de pesquisa de literatura afro-brasileira e africana de língua
portuguesa, o que se constituirá numa oportunidade singular para
investigar e analisar as práticas de os professores(as) de literaturas, com
atuação no ensino fundamental e médio, tornarem-se aptos a inserir a
inclusão dos conteúdos da cultura do negro na literatura afro-brasileira
e africana, no currículo das escolas onde atuam, conforme determina
a Lei 10.639/03.
Em função do exposto, é que se entende a importância de
uma pesquisa diretamente voltada para tais questões, no sentido de
mapear e compreender as reais condições nas quais se efetiva a prática
docente para a formação dos educandos, quanto aos conteúdos de lite-
ratura afro-brasileira (FLEURI, 2003) e africana de língua portuguesa
(MEDINA, 1987). A partir dessa problemática, investigamos de que
forma a demanda de professores de Língua Portuguesa e Literatura,
do Ensino fundamental e médio, passam por essa obrigatoriedade de
incluir, nessas disciplinas, os conteúdos das literaturas afro-brasileira e
africana, aplicando a Lei?
Na base da concepção das diretrizes curriculares está a escola,
que representa um espaço de socialização dos indivíduos e desempe-
nha papel fundamental no desenvolvimento de uma consciência crítica,
apreensão de valores éticos que regem a sociedade. É na escola que se
tenta aprender o respeito à diversidade, aqui caracterizada na história e
cultura afro-brasileira e indígena.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

Para efetivação do projeto, foi necessário compreender o que


ocorre na escola em que há presença de alunos negros e investigar de
que forma os conteúdos pertinentes à cultura afro-brasileira e afri-
cana se articulam no ambiente escolar. Dessa forma, trabalhamos com
o conceito de representação social, visto que toda realidade social é
construída, pensada, articulada (CHARTIER, 1990; MOSCOVICI,
2003). Fizemos o uso desse conceito porque compreendemos a sala de
aula como espaço de construção do saber; portanto, de representações.
Logo, há uma representação acerca da cultura afro-brasileira e afri-
cana, que perpassa pelo cotidiano de sala de aula, podendo ou não cola-
borar com a construção da identidade étnica do corpo discente.
A teoria da representação social tem sido objeto de fundamen-
tação para várias pesquisas em diversas áreas, dentre elas se destacam
as pesquisas no campo da educação. A referida teoria foi elaborada por
Serge Moscovici (2003), que fomentou o debate de que as representa-
ções descreveriam uma modalidade específica de conhecimento, ela-
borada na experiência da comunicação cotidiana entre os indivíduos.
Para este autor, é através do contato entre as pessoas, nas situações de
comunicação, que se desenvolve a representação social.
A pesquisa desenvolvida é qualitativa, na qual o sujeito é visto
como um mundo de significados possíveis de investigação, e a lingua-
gem de atores sociais e suas práticas, as matérias-primas dessa aborda-
gem. É o nível de significados, motivos, aspirações, atitudes, crenças e
valores que se expressa pela linguagem comum e na vida cotidiana, o
objeto da abordagem qualitativa.
Dito isso, a realização de pesquisa qualitativa e quantitativa,
tendo como enfoque a teoria das representações sociais, valoriza a lin-
guagem oral, sem descartar as demais modalidades linguísticas, prio-
rizando a entrevista (individual ou em grupo), questionários escritos
para a coleta de dados. A pesquisa foi desenvolvida em duas escolas
públicas da cidade de Guarabira: uma de ensino fundamental e outra
de ensino médio, na qual está localizada o Centro de Humanidades, da
Universidade Estadual da Paraíba.
Para a elaboração do referido projeto, alguns aspectos foram
norteadores: observação de campo (registro de atividades); entrevista
com o grupo pesquisado; aplicação de questionário, com questões

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

diretas e indiretas; análise e interpretação do material pesquisado, com


vistas a identificar a representação construída a respeito da cultura
afro-brasileira pelo grupo pesquisado; entrevistas com professores e
alunos, para saber sobre as discussões acerca do processo histórico que
levou à configuração sociocultural, em que estão representadas as cul-
turas afro-brasileira e indígena; exposição do resultado da pesquisa nas
escolas públicas do ensino fundamental e médio.
Ao entender que as representações construídas pelos sujeitos
são resultados de significados utilizados nas formas de compreender
o mundo e os objetos que dele fazem parte, e que a linguagem falada
caracteriza-se como uma interpretação viva e dinâmica da realidade,
à espécie de um simulacro, é que optamos por fazer uma análise das
representações sociais, a respeito da cultura do negro e do índio, pro-
duzidas pelos professores de Ensino Fundamental e Médio, com base
nas considerações teóricas de Moscovici (1978; 1961; 2003) e Chartier
(1990) e dos estudos sobre a teoria, a partir de Sá (1996; 1998) e Madeira
(2003), cujas
representações sociais permitem ao pesquisador aproximar-se
do objeto definido, no próprio dinamismo que o gera, articu-
lando dimensões e níveis que, tradicionalmente, vinham sen-
do tomadas como de forma isolada ou estática” (MADEIRA,
2003, p. 114).
Durante o semestre, os vários encontros ocorridos nas escolas
foram organizados, juntamente com os alunos bolsistas do Pibic/CNPq
da UEPB, em Guarabira, como uma espécie de roteiro a ser seguido.
No primeiro momento, a proposta era a de apresentar os países afri-
canos de Língua Portuguesa, suas culturas, geografia, história, o que
possibilitou um estudo interdisciplinar, comungando com outras dis-
ciplinas e professores a aplicabilidade do conteúdo africano. Alguns
slides sobre o país Moçambique foram expostos, com apresentação da
capital Maputo, e algumas características sobre o povo, a cultura em
determinadas regiões, além dos autores africanos mais representativos.
Escolhemos a escritora Paulina Chiziane para representar a literatura
de Moçambique.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

3. LITERATURA MOÇAMBICANA: A VOZ DO FEMININO


EM PAULINA CHIZIANE

Uma das aulas assinaladas para trabalhar as literaturas africa-


nas no Ensino Médio, por se caracterizarem enquanto conceitos que se
estruturam dentro de uma relação dialética, devido ao dinâmico pro-
cesso do mundo social, os conceitos em torno da literatura afro-brasi-
leira e africana de língua portuguesa devem ser encarados, enquanto
construções simbólicas de sujeitos que se fazem nas relações de alteri-
dade, num determinado tempo e espaço.
Dessa forma, introduzimos nossas leituras com as obras da
escritora moçambicana Paulina Chiziane, a primeira mulher nesse país
a escrever um romance, intitulado “Balada de amor ao vento” (1990).
Além desse romance inicial, no qual as personagens Sarnau e Mwando
vivem uma complicada história de amor, foram publicados, pela editora
“Caminho”, os romances: “Ventos do apocalipse” (1999), que assume o
sentimento de desespero e caótico da guerra civil e a tentativa de sobre-
vivência em meio ao caos e desespero; “O sétimo juramento” (2000)
e “Niketche, uma história de poligamia” (2004). Na orelha da edição
portuguesa deste último (CHIZIANE, 2004), transcreve-se a visão da
escritora sobre o seu processo criativo:
Dizem que sou romancista e que fui a primeira mulher mo-
çambicana a escrever um romance (“Balada de amor ao vento”,
1990), mas eu afirmo: sou contadora de estórias e não, roman-
cista. Escrevo livros com muitas estórias, estórias grandes e
pequenas. Inspiro-me nos contos à volta da fogueira, minha
primeira escola de arte.
Nasci em 1955 em Manjacaze. Frequentei estudos superiores
que não concluí. Atualmente, vivo e trabalho na Zambézia,
onde encontrei inspiração para escrever este livro.
A problemática de identidade da narradora Sarnau é o ápice
de “Balada de amor ao vento”, de Paulina Chiziane (2003), que situa a
narrativa numa sociedade moçambicana, em Gaza, mosaico de povos
e de cultura, multicultural com tensão de obstáculos à participação da
mulher. No romance destacamos os problemas vividos pela narradora,
que tenta sobreviver em uma Moçambique de várias etnias e culturas,

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sendo a maioria de origem bantu, em uma sociedade na qual se privile-


gia a mulher enquanto figura simbólica.
É nesse contexto que estão inseridas as identidades sociais,
que, segundo Heimer (2000),
são compreendidas como uma entre muitas manifestações
do ‘pensamento social’, ou seja, de modo como as pessoas se
pensam a si próprias, e a sociedade em que vivem, sendo nis-
to profundamente condicionadas pelo próprio contexto social
(HEIMER, 2000, p. 25).
Esse pensamento coaduna com a posição de Foucault em
relação ao sujeito, que, segundo Foucault, seria construído conforme
a sua história. Uma determinada identidade produzida por forças em
um determinado período histórico. O homem concebe essa identidade
como sendo sua (cf. FOUCAULT, 2007).
A mulher dessa sociedade moçambicana, que surge em
“Balada de amor ao vento”, é aquela que está em volta de um casamento
poligâmico, no qual apenas o marido tem direito a várias esposas. No
romance, Sarnau é a primeira esposa, considerada a mais importante.
No entanto, ela é o sujeito feminino atrelado à pátria como forma de
revitalização da tradição, mesmo quando essas mulheres estejam,
ainda, totalmente arraigadas à submissão das tradições impostas por
aquela cultura.
Sarnau é o exemplo típico da contradição, pois está, visivel-
mente, dividida entre a tradição e a modernidade. À medida que deseja
transformar-se, rumo a uma liberdade utópica, torna-se tão ambígua
e paradoxal quanto o lugar onde vive. O que ocorre com ela é o fator
predominante de uma sociedade patriarcal, qual seja: a luta por um
amor impossível por divergências culturais e exigências de costumes
de seu povo.
A mulher moçambicana surge na literatura de Chiziane apri-
sionada dentro de territórios demarcados, patriarcais e delimitados
pelo poder masculino. Nesse contexto, o que esperar de uma mulher
jovem como Sarnau, quando toma para si a palavra e transforma-se em
sujeito de seu próprio destino, numa época em que a mulher é retratada
de modo tão negativo e limitado? O leitor encontra problemas, senti-
mentos e intimidade feminina, sendo abordada desde a marginalização

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

às tentativas de rebeldia, em um mundo de carência. Essas experiências


surgem desde a solidão e o exílio, passando por mulheres que talvez já
não correspondam a seu papel na história, àquelas que se revoltam e
denunciam a sua opressão. Dessa forma, sendo os múltiplos valores e
as diferentes tradições a que são submetidas, muitas mulheres moçam-
bicanas, nesse caso, invertem a submissão ao sistema, mas não gera
consequências positivas à Sarnau.
O que ocorre na narrativa de “Balada de amor ao vento” é uma
espécie de duplicidade contrastante da personagem Sarnau, que apesar
de ter um marido polígamo, não se sente assim, mesmo que a exclusão
cultural de seu meio faça-a perceber que precisa compreender como
ocorrem as diferenças, uma vez que, também, está em jogo a sua pró-
pria identidade.
No caso específico de Sarnau, o seu processo de identidade
acontece como movimentos de continuidade e descontinuidade das
relações, que ela estabelece com outros sujeitos, com a comunidade
onde vive, e, até, com o modo de vida de submissão. Esses fatores
garantem sua autoconstrução e sua capacidade de lidar com as condi-
ções impostas dessas próprias relações. Nesse caso, podemos afirmar
que são conflitos vividos por uma mulher, da sua juventude à idade
madura, dividida entre o mundo moderno e o mundo tradicional; entre
os valores impostos pela sociedade machista e poligâmica e seus pró-
prios anseios e desejos, os quais sempre são subestimados.
Sarnau é a primeira esposa do rei de Mambone, um casamento
aceito pela família da noiva e recebido pela sogra com celebração. Após
o casamento tradicional e polígamo, todos da família retornam para sua
comunidade, e Sarnau fica com seu esposo, em uma tribo oriunda da
província de Gaza, inserida numa realidade de vida tradicional, na qual
a feitiçaria faz parte de seu cotidiano.
A cultura europeia surge na figura de Mwando, que tem o
desejo de tornar-se padre, desde o momento em que foi alfabetizado em
colégio de padres, ao contrário de Sarnau, que não possui escolaridade.
A partir desse contexto, há uma tensão entre tradição e modernidade,
principalmente quando Mwando decide ir embora, mesmo sabendo da
gravidez de Sarnau, para casar-se com outra mulher:

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– Vou casar-me brevemente com uma rapariga que os meus pais


escolheram para mim.
– Mas isso não é problema — disse entre lágrimas. [...]
– Sarnau, o teu desejo não pode ser realizado. Nunca serás a
minha mulher, nem segunda, nem terceira, nem centésima pri-
meira. Eu sou cristão e não aceito a poligamia (CHIZIANE,
2003, p. 29).
Mwando considera-se superior a Sarnau pela educação formal
e por sua “civilização”, o que fica evidente com a decisão de partir
para casar com outra mulher, que, igual a ele, é cristã, e não admite os
costumes de tribos ainda não “civilizadas”. Este casamento cristão com
a escolhida da família, Sumbi, já significa, em si, a própria rejeição da
cultura local, da tradição poligâmica, que, para Sarnau, parece não ser
problema, realidade que se apresenta como questão cultural moçambi-
cana, que conduz a vários conflitos com a comunidade local. Por isso,
Sarnau casa-se com outro homem, que diferente de Mwando, é rico e
polígamo.
Outro processo cultural que a comunidade não irá compreen-
der é o fato de Sumbi não cumprir com suas funções de esposa. Nesse
caso, a tradição será evocada de um modo particular, pois a mulher de
Mwando não desempenha o papel tradicional de esposa. Essa atitude
faz com que Mwando seja chamado a atenção pelos “guardiães da leis
da tribo das ilustres tradições, legadas pelos antepassados, moderado-
res da conduta da comunidade” (p. 63), que foram obrigados a intervir.
Os comentários sobre o comportamento de Sumbi são contundentes:
Mulher lobolada tem a obrigação de trabalhar para o marido
e os pais deste. Deve parir filhos, de preferência varões, para
engrandecer o nome da família. Se o rendimento não alcança o
desejável, nada há a fazer, senão devolver a mulher à sua origem
(CHIZIANE, 2003, p. 63).
O mal desempenho da esposa de Mwando tornou-se um
assunto público, como se esta tivesse cometido a pior das atrocidades, e
o casamento mal sucedido, na opinião da comunidade, transformou-se
em uma piada, quando descobriram que Mwando cozinhava e lavava
para Sumbi.

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Mesmo sendo agredido pelos conselheiros da aldeia, Mwando


não cede às tradições e decide confrontar os mais velhos, e com isso
traz à tona a discussão sobre a identidade, a alienação de uma parte
da sociedade moçambicana em relação aos costumes tradicionais no
período colonial, valorizando os valores do estrangeiro. Podemos
perceber esta questão quando o conselheiro da aldeia interpela o pai
de Mwando, pelo fato de este estar decepcionado com as atitudes do
filho: “– Acalma-te, homem – Acalma-te. Não te esqueça que a culpa
está também do teu lado. Fizeste má sementeira, deixando um filho teu
aprender coisas estranhas à nossa tradição” (CHIZIANE, 2003, p. 66).
Segundo Kabengele Munanga (2007), o casamento africano
não interessa somente aos futuros esposos. Ele é, antes de tudo, uma
aliança entre dois grupos de parentesco. A primazia da linhagem é cla-
ramente indicada durante todas as etapas do longo processo de casa-
mento. Uma das características desse casamento é o dote. Sempre vai
da família do futuro marido à família da mulher.
Mwando adota a cultura do estrangeiro, porque rompe com a
barreira, em relação ao homem, do preconceito de que não é de bom
tom ajudar a esposa em casa. Desse modo, as mudanças sociais que
os novos tempos trazem, um tempo pós-colonial, não admitem mais
a convivência arraigada às tradições e crendices, que, na opinião de
Mwando, somente contribuiu para o atraso de todos. Assim, Mwando
enfrenta essa tradição ao refletir sobre a intransigência dos mais velhos,
guardiães das antigas tradições:
[...] mas o que é que andam a fazer estes velhos desgraçados? O
que pensam que ainda fazem neste mundo? Os males da terra
são causados pelos velhos, guardiões das antigas tradições, que
só acarretam desgraças às novas gerações (CHIZIANE, 2003,
p. 68).
Mwando é a representação de, praticamente, um por cento
da população no período colonial, classe que influenciará o futuro
desenvolvimento do país posteriormente, pois a história registra que a
maioria da população passou por determinadas condições desumanas,
cabendo a uma pequena parte dessa mesma população desfrutar dos
benefícios da modernidade.

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A colonização portuguesa, de certo modo, desqualificava os


comportamentos africanos, valorizando apenas o que podia ser reco-
nhecido como europeu. Esta questão remete a dubiedade identitária, à
qual se reporta Stuart Hall (2003), cuja cultura múltipla deixa Mwando
em vantagem em relação aos outros de sua comunidade. Ou seja, o
negar-se a fazer parte da tradição tribal traz a impossibilidade de viver
em um local, do qual não aceita as regras e, portanto, está em desa-
cordo com o convívio nesse sistema:
O sistema, entretanto, não é global, se por isso se entende que
o processo é de caráter uniforme, afeta igualmente todos os
lugares, opera sem efeitos contraditórios ou produz resultados
iguais no mundo inteiro (HALL, 2003, p. 59).
Enquanto Mwando tenta se reerguer de sua decepção amo-
rosa, ao descobrir que “o ser humano tem várias mortes em vida, pos-
suindo também poderes de autorressurreição” (CHIZIANE, 2003, p.
70), Sarnau está mergulhada na nostalgia, solidão e tristeza de seu
matrimônio. Vinga nas filhas gêmeas a sua própria desgraça, dando-
-lhes violentos tabefes. Nas filhas, também está registrada rejeição
do esposo, que não mantém relações sexuais com ela desde que esta
estava com sete meses de gravidez das meninas. O esposo de Sarnau
está com sete mulheres, e, depois que chegou a quinta esposa, Phati,
o rei não tem mais cumprido com seus deveres para com as outras,
especialmente para com Sarnau. A única solução é Sarnau engravidar,
para que nasça um filho varão, tornando-se o herdeiro legítimo da pri-
meira esposa, e assim, poder governar aquele território. No entanto, o
rei sempre a rejeita:
Passam já dois anos que eu espero a minha vez e ele não vem. [...].
Quando argumento, vomita-me um discurso degradante que não
ouso repetir. Ah, maldita vida de poligamia, quem me dera ser
solteira ou voltar a ser criança (CHIZIANE, 2003, p. 78).
Observamos, pelo depoimento de Sarnau, que há nessa comu-
nidade duas vertentes: a primeira é direcionada mais a Mwando, que foi
educado em escolas jesuítas, é cristão, não aceita a poligamia e já tem
uma formação escolar com ensinamentos europeus, à qual Sarnau não
tem acesso. A segunda, por outro lado, é direcionada a Sarnau, que está
em uma comunidade poligâmica, na qual ter várias esposas e adorar

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vários deuses faz parte dessa cultura. Assim, apesar de essa sociedade
manter a sua identidade original, ela também mantém sujeitos que não
concordam com determinadas tradições, nascendo a partir daí o que
Hall (2003) caracteriza como “multiculturalismo”.
O autor refere-se às estratégias e políticas que são adotadas, a
fim de se governar ou administrar problemas relacionados à diversidade
e multiplicidade, resultantes de sociedades consideradas multiculturais
(HALL, 2003, p. 52). Tal sociedade é vista como mantenedora de um
multiculturalismo pluralista, considerada, assim, a partir das diferen-
ças percebidas, não entre um grupo e outro, mas dentro de um mesmo
grupo, concedendo direitos distintos a diferentes comunidades (HALL,
2003, p. 53). Esse paradoxo fica claro com o retorno de Mwando à tribo
de Mambone, após ter sido abandonado por Sumbi.
Ao retornar a sua tribo, ele cumprimenta Sarnau com deferên-
cia, tratando-a por “mãe”, pois agora ela é a sua rainha. Ao que lembra
Sarnau:
Examinei de alto a baixo o que traz a contradição do encontro,
pois antes ela havia sido desprezada por Mwando, e agora ele
foi abandonado. Mesmo com tudo isso, Mwando ainda desperta
desejo em Sarnau, que entrega-se a esse amor, mesmo preven-
do que a sua ação prenuncia uma tragédia. Ela renega tudo o
que representa seu casamento poligâmico, desde o marido que
a despreza, ‘as filhas gêmeas inocentes que me impedem o ca-
minho da felicidade. Não suporto mais estes braceletes de ouro
que me prendem indissoluvelmente a um homem que não diz
nada ao meu coração (CHIZIANE, 2003, p. 84).
Com a rejeição a tudo que representa sua família e com a
culpa por ter cometido adultério, Sarnau consegue pensar no passado,
e se interroga por que esse homem que diz amá-la agora, a abandonou
antes? Ela tem fortuna, mas não tem amor: “Amor e fortuna nunca se
casam. Emparelham-se apenas nos contos de fantasia” (CHIZIANE,
2003, p. 84).
Com os encontros constantes com Mwando, Sarnau engra-
vida, mas desconhece a forma de alguém acreditar que ela engravidou
do rei, uma vez que ele nunca mais a tocou. Por sorte, o rei a procura
em uma noite, e a partir desse encontro, e ela decide que esse filho é
do rei. Quer livrar-se da culpa, pois acredita na consciência quando

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imprime que não foi ela a criar o amor e a poligamia. A quinta esposa
do rei, Phati, quer vingança pelo fato de o rei estar apenas com Sarnau.
Inconformada, ordena ao feiticeiro da tribo que mate as seis esposas,
para que possa reinar absoluta. Ordem negada pelo feiticeiro.
O rei de Mambone faz uma espécie de escolhas por noite com
as mulheres, menos com Pathi, porque descobriu em sonho sobre o fei-
tiço que ela fizera para a sua primeira esposa morrer no parto. Apenas
esse sonho foi o responsável pelo espancamento da esposa, que tomou
veneno, mas causou uma reação contrária.
Nasce o filho de Sarnau, com a cor clara do verdadeiro pai. O
rei negro de Mambone e todos da tribo concordam que o menino nasceu
com essa cor porque Phati, que também é clara, passou muito tempo
desejando a morte de Sarnau. Esta incubou de tal forma a criança no
ventre que nasceu com a cor da mulher que a odiava.
Após o nascimento, tudo volta ao que era antes: o rei despreza
novamente todas as suas mulheres, inclusive Sarnau, e volta a ter rela-
ções matrimoniais apenas com a esposa branca, Phati.
Ao ser descoberta a traição de Sarnau, a partir de Phati, o
rei Mambone obriga as suas mulheres a beberem o sangue de wanga,
ocasião que se embriagam e dizem a verdade. Por isso, Sarnau resolve
ir embora, e abandona seus filhos. Foge com Mwando em busca desse
amor. Após a fuga, Mwando arrepende-se, pois ele foi o culpado de tan-
tas desgraças ocorridas com sua família, que foi expulsa de Mambone.
Todos acreditavam que Mwando era uma espécie de espião da tribo em
guerra com o povo Mambone. Mais uma vez, a covardia e a fraqueza de
Mwando são vistas por Sarnau, em momento de situação crítica:
Grande rainha que tu eras. Pobre de mim que me deixei apaixo-
nar pelos teus títulos de nobreza. Sarnau, és a mais miserável
das criaturas. Agora olho para ti com os olhos desanuviados.
Não encontro em ti beleza nem encantos. O que vi em ti?
(CHIZIANE, 2003, p. 113).
Para Sarnau, somente restou-lhe o vazio, a solidão. Fica em
Lourenço Marques, abandonada, pela segunda vez, por Mwando.
O período colonial é retomado nessa passagem, através
das consequências provocadas pelo colonialismo. A viagem dos
degredados no navio para Angola possui essa simbologia: expõe a

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crueldade sofrida pelos deportados e a tensão entre a cultura tradicio-


nal e a cultura moderna. Há um momento que imprime essa opres-
são aos negros, mesmo sendo outros negros na posição do poder. Esse
momento pode ser identificado em “Os pretos gritavam para outros
pretos como se pretos não fossem. O escravo liberto torna-se tirano”
(CHIZIANE, 2003, p. 118) no depoimento de um deportado: “Passava
na minha frente uma senhora branca. Eu parei para dar-lhe caminho. O
marido que vinha atrás esbofeteou-me [...]. Fui levado para a esquadra,
espancado e condenado à deportação”. (CHIZIANE, 2003, p.117). e na
leitura de Bhabha (2003),
“sua raça se torna o signo não erradicável da diferença negativa
nos discursos coloniais. Isto porque o estereótipo impede a cir-
culação e a articulação do significante de “raça” a não ser em
sua fixidez enquanto racismo” (BHABHA, 2003, p. 117).
Mwando, por sua vez, traído pela segunda vez por uma mulher
que já era casada, é condenado ao degredo em Angola. Ele sofreu a dis-
criminação de ser apenas um indígena com a documentação, mas sem
os carimbos necessários. O documento redigido em bom português
revelava uma ofensa aos brancos. Por causa disso, desse envolvimento
com mulher casada, o condenaram à deportação em Angola: “Fala bom
Português e não tem documento? [...] Amigo, sabe bem escrever, mas
agora vai ver, saber escrever sem documento não é nada” (CHIZIANE,
2003, p. 118).
Mwando também corresponde ao “Outro” por causa do con-
tato entre outras culturas, quando torna-se o padre “Moçambique”
no degredo em Angola. Nesta nova posição, Mwando não representa
o angolano nem assume a defesa dos colonos, mas as autoridades
percebem nesse padre “o pacificador das revoltas nas roças, com a
doutrina do sofrimento na terra e a recompensa no céu. Deram-lhe
um estatuto diferente e uma casa independente” (CHIZIANE, 2003,
p.127). Observamos o fato de a tradição e a modernidade trabalharem
em conjunto. Isso ocorre quando morre um homem na açucareira, que
é enterrado sob a benção de dois homens comuns: o padre Mwando,
representando a Europa através das religiões, e o curandeiro tradicional
de Angola.

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A interação das culturas africanas com a cultura ocidental


acontece simbolicamente com o reencontro entre Sarnau e Mwando,
dezesseis anos depois, uma metáfora para a realidade do casal, que é
a representação de um Moçambique unido pelos elementos dos diver-
sos mosaicos de cultura, mesmo com as diversidades ocasionadas pelo
colonialismo.
Nesse contexto, o escritor moçambicano Mia Couto (2005)
destaca qual a visão que os estrangeiros fazem do continente africano
ou de que forma pensam a África:
Os que pensam África oscilam entre visões puristas de retorno
às origens e propostas que pretendem romper com o peso do
passado. Os primeiros perdem-se na procura daquilo a que eles
chamam ‘autenticidade africana’. Para estes a visão do próprio
umbigo e a viagem para o passado irão resgatar esse tudo que
nos falta. Os problemas de África derivam de África ser ‘pouco’
africana. Os outros entretêm-se a colecionar análises e estatís-
ticas ‘provando’ que o nosso continente não possui capacidades
materiais nem humanas para se sustentar ou para sobreviver.
África tem problemas porque é “demasiado” africana (COUTO,
2005, p. 80).

4. 20 DE NOVEMBRO É O DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA:


A RESISTÊNCIA AFRO-BRASILEIRA NA POESIA DE LUIZ
GAMA E SOLANO TRINDADE

Dois poetas brasileiros – e um pouco desconhecidos do público


estudantil – foram destacados neste estudo, principalmente os que se
refere ao Dia Nacional da Consciência Negra: Oliveira Silveira, pesqui-
sador, poeta e historiador, foi um dos fundadores do Grupo Palmares.
Em 1971, declarou o dia 20 de novembro, dia da morte de Zumbi dos
Palmares, como uma data especial da comunidade negra brasileira.
Após muitas discussões e debates nas várias estâncias públicas e priva-
das do país, o Dia Nacional da Consciência Negra consagrou-se como
um dia especial para pensar essa nova identidade, que se alastrava
pelo país e que havia levado a comunidade negra a refletir muito mais

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sobre sua trajetória, ainda empolgada pelo esforço do gaúcho Oliveira


Silveira.
Com a escolha desta data específica de 20 de novembro para
reverenciar a luta dos negros contra o regime escravagista, que mas-
sacrou a população negra, em substituição ao 13 de maio, a data não
poderia ser melhor destacada. Primeiro, porque o 13 de maio representa
um engodo para a comunidade negra, uma vez que trata-se de uma lei
que visibilizava a liberdade de direito, mas não de fato. Se voltarmos
na História do Brasil, observaremos que os negros foram trazidos de
uma forma violenta e covarde, sem absolutamente nada. Tudo lhes foi
negado, principalmente a liberdade.
No Brasil imperial, os negros construíram um novo mundo.
Porém, com o advento da abolição escravocrata, estes mesmos cons-
trutores foram renegados à miséria e ao abandono. Ou seja, ao negro
impediu-se de ter os valores básicos de sobrevivência: trabalho remu-
nerado, educação, propriedade, etc. Fato oposto ocorreu com os imi-
grantes italianos, por exemplo, que receberam incentivos do governo
para virem ao Brasil: terras, educação, gados. Enfim, o 13 de maio não
representa a dignidade do povo negro; apenas a sensação de liberdade
vigiada e controlada pelo Estado.
O dia da consciência negra no Brasil, apesar de bastante cri-
ticado, representa uma conquista para o povo negro, porque ser negro
não significa apenas um tom de pele ou o fenotípico que traduz aquilo
que o outro está vendo no negro. Mas é além disso. É uma forma de
ser, entender, compreender e buscar ser sempre alguém que acredita
naquilo que é, sem estereótipos ou acusações. Ser negro é uma questão
política. Muitos ainda não se reconhecem negros, o que é lamentável,
mas compreensível, uma vez que ter consciência do que significa ser
negro no Brasil nem sempre é um ato fácil em uma sociedade que prega
a democracia racial, a miscigenação como um forte mascaramento de
sua etnia; enfim, uma sociedade que não assume seu racismo camu-
flado. Por isso, não é fácil ser negro no Brasil nem assumir a negritude,
pois, acima de tudo, é uma questão de autoestima. As piadas frequentes
ou até mesmo os trezentos anos de escravidão reforçados por vários
dirigentes e povos que acreditavam nessa desvalorização (SANTOS,
2002).

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Dessa forma, o Dia da Consciência Negra não representa


exatamente uma tomada de consciência de perda da identidade ou de
quem de fato nós somos ou representamos, mas trata-se de um fortale-
cimento de nossa própria identidade, da valorização de nossa cultura e
do entendimento que temos sobre nossa atuação no lugar onde vivemos
e agimos.
Apesar das conquistas no âmbito educacional, com as cotas
para negros na universidade, e a Lei Federal 11.645/08, que obriga a
inserção dos conteúdos de História e Cultura afro-brasileira, Africana
e Indígena na Educação Básica, temos muito a conquistar no campo
da igualdade de oportunidades, de comemorar não apenas a liberdade,
mas a tomada de consciência de nosso povo, e de seu valor e sua con-
tribuição no Brasil.
Outro aspecto importante a ser discutido nesse momento é a
tolerância religiosa. Somos um estado laico, ou seja, as várias religiões
que possuem o país, não dá o direito a nenhuma delas sentir-se superior
em relação as outras. Sabemos que as religiões de matrizes africanas
ainda sofrem com esse preconceito; do não conhecimento sobre estas
manifestações dos cultos africanos, que, de certa forma, são ostensivas
em todo o país.
Infelizmente, pela falta de respeito, a religião africana ou afro
-brasileira sempre é ameaçada pela intolerância de algumas igrejas,
principalmente, pelas neo-pentecostais. Apesar disso, a comunidade
negra religiosa resiste em várias partes do Brasil, principalmente por
suas lideranças de expressão respeitosa no cenário religioso nacional.
Nesse sentido, é indiscutível que os negros cultores dessas religiões
devem ser protegidos dessas ameaças, uma vez que a resistência ocorre
em vários terreiros, e essas pessoas mantêm a autenticidade em suas
atitudes e costumes.
A população negra no Brasil está com menos medo de decla-
rar-se, conforme pesquisa do IBGE, realizada em 2010. Naturalmente,
é mais fácil argumentar que na sua família tem pessoas de toda cor,
devido à descendência europeia, do que simplesmente aceitar o fato de
que na sua família sua descendência é mais africana. É evidente que
isso ocorre devido a uma postura preconceituosa e discriminatória. Por
esse fato, se torna imprescindível a valorização da educação na vida de

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

cada negro brasileiro, bem como a reivindicação nos livros didáticos


da real história do povo negro e de seus heróis. Os livros resumem tudo
à escravidão e a inferiorização do povo negro; omitem os heróis que
fizeram parte dessa construção de identidade. Por isso, não devemos
esquecer o fato de Zumbi ser lembrado como um ícone do herói negro
no Brasil.
A partir da presença de uma sociedade organizada, na atua-
ção eficaz do Movimento Negro, que vem crescendo em número e
ação, observamos que nas décadas de 60 e 70, o Movimento Negro era
apenas de denúncia e resistência, mas hoje este movimento também é
considerado propositivo. A questão positiva do Movimento é percebida
nos avanços significativos em diversas áreas, principalmente nas ações
afirmativas, que promovem a possibilidade de rever os danos causados
por tanto tempo de escravidão.
A consciência negra e a resistência estiveram sempre presentes
nas obras poéticas de autores da literatura negra brasileira, que por
muitos anos ficaram no ostracismo, esquecidos pelo mercado edito-
rial. Com as ações afirmativas, com a qual a Lei 11.645/08 se coaduna,
esses escritores ganharam uma visibilidade nos livros didáticos e nos
estudos acadêmicos, destacados por suas posturas e pelas ações que
combateram, em parte, os danos causados pela sociedade escravocrata.
O que veremos a partir de agora, será uma produção de autores negros,
que mostraram a sua força poética e, nos versos, o grito de liberdade; a
crítica à sociedade hipócrita e racista; e que não houve, por parte desses
autores, a postura submissa e subjugada, que muitos críticos literários
destacaram em seus estudos deterministas.
Uma das primeiras expressões da poesia negra brasileira foi
o poeta Luís Gonzaga Pinto da Gama, nascido no dia 21 de junho de
1830, em Salvador. Sua mãe, Luiza Mahin, ex-escrava, foi uma das
principais ativistas da Revolta dos Malês, e participou da Sabinada, em
1837, quando foi para o Rio de Janeiro, e por lá falecera. Seu pai, de
origem portuguesa, era viciado em jogos de azar. Reduzido à miséria
por causa das dívidas, vendeu o próprio filho, em 1840. Na época,
Luiz Gama contava dez anos de idade, e assim foi embarcado em um
navio com vários escravos contrabandeados para o Rio de Janeiro e
São Paulo.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

Luiz Gama foi comprado pelo alferes Antonio Pereira Cardoso,


proprietário de uma fazenda em Lorena, São Paulo. No ano de 1847, o
alferes recebeu a visita de Antonio Rodrigues do Prado Júnior, que
ensinou a Luís Gama a arte de ler e escrever. Um ano depois, Luís
Gama fugiu da fazenda, e já com dezoito anos serviu como soldado
durante seis anos. Em 1854, o futuro poeta deu baixa no exército, após
ser preso por causa de uma suposta insubordinação a um oficial. Neste
período, Luís Gama já mostrava a sua personalidade em não se subor-
dinar a ninguém, sempre com a firmeza e a resistência inerente a sua
individualidade. Em 1856, Luís Gama assume um cargo público na
Secretaria da Repartição, e anos depois surge o livro Primeiras trovas
burlescas do Getulino, em 1859, composto de poesias satíricas que ridi-
cularizavam a aristocracia e os homens públicos e de poder da época.
No fragmento a seguir de “Lá vai versos”, o poeta destaca as
“trapaças” das gentes do poder, com sarcasmos e ironias, não se impor-
tando em atingir a elite ignorante, esperta na arte de enganar, que man-
tinha o poder pelo dinheiro, mas eram “refinados agiotas”.
Com sabença profusa irei cantando
Altos feitos da gente luminosa.
Que a trapaça movendo portentosa
À mente assombra, e pasma a natureza!
Espertos eleitores de encomenda,
Deputados , Ministros, Senadores,
Galfarros Diplomatas, - chuchadores,
De quem reza a cartilha da esperteza.
Caducas tartarugas – desfrutáveis,
Velharrões tabaquentos – sem juízo,
Irrisórios fidalgos – de improviso
Finórios traficantes – patriotas;
Espertos maganões de mão ligeira,
Emproados juízes de trapaça,
E outros que de honrado têm fumaça,
Mas que são refinados agiotas.
A elite brasileira não é poupada, ou melhor, nenhum segmento
da sociedade, como os políticos – deputados, Ministros, Senadores –,
os homens mais velhos, que poderia servir de exemplo e dignidade,

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

mas que não passam de “Caducas tartarugas – desfrutáveis”, que impe-


dem o desenvolvimento social de um país que se formava. O poeta ridi-
culariza políticos e religiosos, zomba da empáfia dos fidalgos e maneja
um vocabulário acessível e popular.
No ano de 1864, Luiz Gama funda o “Jornal Diabo Coxo”,
sua participação ativa na inauguração da imprensa humorística de São
Paulo, e foi esse o principal veículo de sua luta contra o escravismo no
Brasil. Posteriormente, na condição de advogado, graças a sua eloqu-
ência e ao raciocínio arguto, o poeta libertou vários escravos, sendo
considerado o verdadeiro precursor abolicionista no Brasil, aquele que
condenava qualquer forma de opressão. Nesse sentido, o poema “Quem
sou eu” revela a capacidade arguta de Gama ao tratar com a elite pode-
rosa e de como consegue criticá-la mantendo-se irônico e sarcástico
perante aqueles que o criticam:
Eu bem sei que sou qual Grilo,
De maçante e mau estilo;
E que os homens poderosos
Desta arenga receiosos
Hão de chamar-me Tarelo,
No dia 24 de agosto de 1882, Luiz Gama faleceu, sem ver con-
cretizado seu sonho de abolição, que seria realizado seis anos depois,
com a assinatura da Lei Áurea. Com um sepultamento de honras, o
poeta das “trovas burlescas” nunca se deixou vencer pela opressão e
desprezo das classes dominantes. Com humor e objetividade, foi pre-
cursor do abolicionismo no país acreditava na força do povo, na dig-
nidade de quem desejava assumir a sua própria história, e que não se
permitiu abater, mesmo passado por várias provações que, apesar das
adversidades, procurava uma forma de fortalecimento.
No poema “Quem sou eu”, Luiz Gama não poupa críticas
aos homens que governam o país e, sempre com o sarcasmo que lhe é
peculiar, procura responder a todos que o denominam de “bode negro”,
em função de sua crítica mordaz aos valores da elite brasileira: que
“bodes” há no país de todo tipo, um modo de ironizar o fato de a elite
considerar-se de sangue nobre, e muitos deles serem mestiços, ou seja,
carregam em si o sangue negro, mesmo na tentativa de negá-lo:
[...]

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

Hão de chamar-me Tarelo,


Bode, negro, Mongibelo;
Porém eu que não me abalo,
Vou tangendo o meu badalo
Com repique impertinente,
Pondo a trote muita gente
Se negro sou, ou sou bode
Pouco importa. O que isto pode?
Bodes há de toda a casta,
Pois que a espécie é muito vasta.
Há cinzentos, há rajados,
Baios, pampas e malhados,
Bodes negros, bodes brancos,
E, sejamos todos francos,
Uns plebeus, e outros nobres,
Bodes ricos, bodes pobres,
Bodes sábios, importantes,
E também alguns tratantes...
Aqui, nesta boa terra
Marram todos, tudo berra;
Nobres Condes e Duquesas,
Ricas Damas e Marquesas,
Deputados, senadores,
Gentis-homens, vendedores;
Belas Damas emproadas,
De nobreza empantufadas;
Repimpados principotes,
Orgulhosos fidalgotes,
Frades, Bispos, Cardeais,
Fanfarrões imperiais,
Gentes pobres, nobres gentes
Em todos há meus parentes.
Entre a brava militança
Fulge e brilha alta bodança;
Luiz Gama assume a sua liderança na arte de satirizar a
elite brasileira. Para Roger Bastide, em A poesia Afro-Brasileira, as

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

condições possíveis ao início de uma poesia afro-brasileira deveriam


resultar da consciência da segregação, e ela deveria residir em alguém
que foi vendido pelo próprio pai como escravo; ou seja, na própria nar-
rativa de Luiz Gama. De acordo com o depoimento de Bastide, Luiz
Gama deveria ter expressado palavras de origem negra, isto é, “semi-
-africanas” ou “semi brasileiras”, porque fica evidente que em seu dis-
curso retratado no poema “Quem sou eu”, o traço repetitivo do homem
mestiço se exalta, e a poesia verdadeiramente afro-brasileira fica ape-
nas na promessa (BASTIDE, 1943).
Apesar da observação de Bastide, Luiz Gama buscou uma
conquista de reconhecimento no interior de uma configuração social
entretecida por uma rede de interdependências, conflitos e alian-
ças envolvendo escravos, libertos, poder público e classe senhorial
(AZEVEDO, 1999). Observamos nos versos de “Quem sou eu”:
Guardas, Cabos, Furriéis,
Brigadeiros, Coronéis,
Destemidos Marechais,
Rutilantes Generais,
Capitães de mar-e-guerra,
– Tudo marra, tudo berra –
Na suprema eternidade,
Onde habita a Divindade,
Bodes há santificados,
Que por nós são adorados.
Entre o coro dos Anjinhos
Também há muitos bodinhos. –
O amante de Syiringa
Tinha pêlo e má catinga;
O deus Mendes, pelas contas,
Na cabeça tinha pontas;
Jove quando foi menino,
Chupitou leite caprino;
E, segundo o antigo mito,
Também Fauno foi cabrito.
Nos domínios de Plutão,
Guarda um bode o Alcorão;

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

Nos lundus e nas modinhas


São cantadas as bodinhas:
Pois se todos têm rabicho,
Para que tanto capricho?
Haja paz, haja alegria,
Folgue e brinque a bodaria;
Cesse pois a matinada,
Porque tudo é bodarrada!
A poesia de Luiz Gama destacou uma visão de identidade, sem
pretender solucionar as variadas tensões que a população negra passava
no período pré-abolicionista. “Quem sou eu” é um poema plural, mul-
tifacetado, que não trata apenas da diversidade, mas da própria identi-
dade sem máscaras. A sua identidade poética firmou-se, também, pela
absorção do outro, e não apenas pela confirmação de si mesmo, e pos-
sibilitou diversas leituras plurais. O poeta permanece na dignidade do
ser, pois não percebemos em sua poética a ausência do deslocamento do
olhar dominante, mas uma visão imposta deslocada ao culturalmente
subjugado. Luiz Gama destacou em sua poesia a discriminação racial e
o como a escravidão criou ódio racial entre brancos e negros no Brasil,
mas sempre de um modo peculiar, com humor e sarcasmo.
A afirmação de uma identidade rebelde do negro, associada
com a valorização estética e cultural dos valores afro-brasileiros, é
característica própria do traço poético desses dois poetas negros: a
poética-estética de Solano Trindade (1908-1974) é recorrente na mesma
medida de inspiração que o precursor do abolicionismo e escritor Luiz
Gama (1830-1882). Esta consciência negro-rebelde que tem em Luiz
Gama, um poeta que não se subjugou ao homem da elite brasileira ou
a todos os segmentos sociais, que ele denominava “tartarugas desfru-
táveis”, é, por outro lado, a mesma que embalou os sonhos de transfor-
mação do poeta Solano Trindade. A preocupação dos dois era com o
povo, e de que forma esse povo iria ter a consciência de transformar a
sua própria realidade.
As manifestações poéticas marcam dois períodos distintos da
relação conflituosa de integração dos negros à sociedade Ocidental:
o primeiro, aqui representado por Luiz Gama, em que os negros se
“erguem da escravidão” (meados do século XIX, auge das lutas

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

abolicionistas, a 1888, com a abolição oficial); o segundo, no qual


se inscreve Solano Trindade, que se inicia na pós-Segunda Guerra
Mundial com o processo de descolonização do continente africano.

5. SOLANO TRINDADE: O POETA DA LIBERDADE

O ator, poeta e pintor Solano Trindade no período de 1934 par-


ticipa do 1º e 2º Congressos Afro-Brasileiros, em Recife e Salvador. Em
1936, funda a Frente Negra Pernambucana e o Centro de Cultura Afro-
Brasileiro. Em 1940 transfere-se para Belo Horizonte/MG, Pelotas/RS,
onde organiza um grupo de cultura popular. Em 1941, após breve pas-
sagem por Recife, dirige-se à capital federal: o Rio de Janeiro. No Rio
de Janeiro, o seu ponto de encontro com poetas, intelectuais, jornalistas
e artistas é o Café Vermelhinho. Em 1956, Solano Trindade encenou
a peça “Orfeu”, de Vinícius de Morais (que depois se transformou em
filme por intermédio de Marcel Cammus). Em 20 de fevereiro de 1974,
na cidade do Rio de Janeiro, falece Solano Trindade.
Solano Trindade deixou uma produção poética digna de poe-
tas de sua estirpe, nos quais a denúncia contra a miséria e a falta de
responsabilidade para com o povo negro são princípios de sua trajetó-
ria poética e política. Entre os principais livros publicados por Solano
Trindade, estão Poemas de uma vida simples (1944), Seis tempos de
poesia (1958) e Cantares do meu povo (1963). Neste último livro, o
poema “Sou negro” representa a consciência identitária e a valorização
da cultura negra:
SOU NEGRO
À Dione Silva
Sou negro
Meus avós foram queimados
Pelo sol da África
Minh’alma recebeu o batismo dos tambores
Atabaques, gonguês e agogôs
Contaram-me que meus avós
Vieram de Loanda
Como mercadoria de baixo preço

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

Plantaram cana pro senhor do engenho novo


E fundaram o primeiro Maracatu.
Depois meu avô brigou como um danado
Nas terras de Zumbi
Era valente como quê
Na capoeira ou na faca
Escreveu não leu
O pau comeu
Não foi um pai João
Humilde e manso
Mesmo vovó
Não foi de brincadeira
Na guerra dos Malês
Ela se destacou
Na minh’alma ficou
O samba
O batuque
O bamboleio
E o desejo de libertação...
Para Solano Trindade, a cultura negra traduz valores univer-
sais que, sem diluir-se no amálgama cultural brasileiro, refaz-se histori-
camente em forma de consciência crítica e transformadora da realidade
social. Em resumo: escutar o povo e traduzir a sua consciência em
forma de poesia. Neste poema, o poeta coloca-se como um homem
que sente orgulho de seus antepassados e identifica-se com eles no
presente, além de confirmar a sua identidade, principalmente, quando
relata a resistência negra no Quilombo dos Palmares: “Depois meu avô
brigou como um danado nas terras de Zumbi”.
O poeta destaca a Guerra dos Malês, na qual a avó atuou, indi-
cando ser também uma participação ativa da mulher na Guerra dos
negros na Bahia. O eu lírico encerra o poema com herança de quem
confirma a sua identidade negra, quando afirma que na sua alma ficou
o “samba, o batuque, o bamboleio e o desejo de libertação”, ou seja, a
luta continua, a resistência negra se faz presente, como um alento, na
tentativa de não desistir de seus sonhos, fazendo-se afirmar não como
um “negro” solitário, mas voltado para a união de todos os negros.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

Segundo Ferreira (2008),

“Canto dos Palmares” é o texto fundador da épica afro-


brasileira. O herói da ação épica é Zumbi, o Grande-Chefe,
líder guerreiro e mito da resistência quilombola, cuja fala é in-
termediada pela voz do poeta-narrador, que representa as vozes
da consciência crítica e os anseios da coletividade negra. Nessa
épica moderna de 195 versos, Palmares é erigida das cinzas da
história oficial, revista pelo griô da Diáspora negra, que narra
na primeira pessoa do singular. Na segunda estrofe do poema
citado como epígrafe deste capítulo, Solano faz alusão à mensa-
gem dos tambores que anunciam a chegada de novos fugitivos
negros ao território palmarino: “Há batidas fortes/de bombos e
atabaques/em pleno sol”. A epopéia dos quilombos estabelece
um discurso de fronteira a partir da evocação de Palmares, ele-
vando a voz do negro à superfície da escrita literária ao nivelar
o seu canto, a saga do seu povo à epopéia do colonizador, tor-
nando visível a história e a herança cultural africana dos negros
aquilombados (FERREIRA, 2008, p.04).
Com essa atuação, em “Canto dos Palmares”, Solano Trindade
canta aos Palmares, sem perder a memória do ódio ao opressor, cuja
concepção é precisa e consciente; não tolera as tiranias e busca por
justiça, sem nunca desistir. O poeta encerra seus versos com a certeza
de que a resistência negra continua. Os últimos versos confirmam que
o opressor nada mais pode fazer, porque o poeta atingiu o momento
ápice de libertação.
O opressor não pôde fechar minha boca,
nem maltratar meu corpo,
meu poema é cantado através dos séculos,
minha musa esclarece as consciências,
Zumbi foi redimido...
O poema de Solano Trindade representa um pouco do que
determina a lei 10.639/03 no contexto escolar. Tal lei objetiva realizar
uma reavaliação histórica relevante não somente para o povo negro,
sobretudo para a sociedade brasileira em geral. Apesar de algumas pes-
soas argumentarem que a lei está retificando a história, o que ela ofe-
rece é a oportunidade para que todos possam conhecer a real história do
Brasil, ou seja, conhecer melhor a sua própria história. Os sentimentos

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

do preconceito e da discriminação somente podem ser combatidos com


o conhecimento, e nesse sentido, ao adotar políticas afirmativas, o
Brasil introduz medidas de inclusão que promovem direitos de grupos
historicamente excluídos. Com essas medidas, será possível reduzir a
discriminação, principalmente no plano educacional, e assim poder
apresentar o educador como consciente de seu papel transformador,
auxiliando na defesa da legitimação da justiça social.

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LITERATURA INFANTO JUVENIL:1*
LEITORES, PERSONAGENS E ENTRELACES ETNICORRACIAIS
Maria Anória de Jesus Oliveira
Universidade Estadual da Bahia

*1 O presente texto apresenta uma pequena parte da tese de doutoramento, ainda inédita, com
alguns ajustes e alterações, cujo título é: Personagens negros na literatura infanto juvenil
brasileira e moçambicana (2000 – 2007): entrelaçadas vozes tecendo negritudes (defen-
dida em 2010), na qual fizemos a análise de dez narrativas infantojuvenis, sendo: quatro
brasileiras, uma traduzida/editada no Brasil (As tranças de Bintou), e cinco moçambica-
nas, através da concessão da bolsa sanduiche CAPES, que possibilitou a permanência em
Maputo por cinco meses, a fim de realizarmos o levantamento bibliográfico e as res-
pectivas análises. Tal tese se encontra disponível no seguinte site: http://bdtd.biblioteca.
ufpb.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=1609 (parte 1) e http://bdtd.biblioteca.ufpb.
br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=1610 (parte 2).

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

INTRODUÇÃO

Meu nome é Bintou e meu sonho é ter tranças. Meu cabelo é


curto e crespo. Meu cabelo é bobo e sem graça. Tudo que tenho
são quatro birotes na cabeça (DIOUF, 2004, p. 3).
A literatura infantojuvenil remonta à tradição oral, à sim-
ples narrativa, nas palavras de Betty Coelho (1990), através da qual o
adulto, normalmente idoso, narrava histórias para as crianças e jovens,
utilizando-se da entonação da voz, levando-os a vivenciar dilemas que
afligiam os seres ficcionais e as realizações, por fim. Há, a partir daí,
a tendência de o leitor se envolver e se identificar com o personagem
principal, o herói, na maioria das histórias tradicionais, associado às
forças do bem. Mas há, ainda, outro personagem que também pode
desempenhar o papel principal, cujas ações interferem na felicidade
ou infelicidade do herói. Referimo-nos àquele que, tradicionalmente,
exerce a função de vilão, de anti-herói, por representar a força oposi-
tora, conforme denominado por Vladimir Propp (1984).
Para Khéde (1990), os leitores tendem a se identificar com o
herói, com os seus conflitos, desejos e realizações, complementamos.
Os personagens, embora pouco abordados na Arte Poética de Aristóteles
(2006), não ficaram alheios aos estudos do filósofo, que se deteve mais
sobre a ação dos mesmos para envolver o expectador, no caso das tragé-
dias, na época, e, para nós, nos dias atuais, os leitores que, obviamente,
não são passivos diante da obra literária. Ressaltamos, contudo, que
personagens não são pessoas, mas, como reconhece Antonio Candido
(1992), enquanto criações humanas, ganham “vida” no imaginário do
leitor, possibilitando, com isso, a relação ficção e realidade.
Os personagens resultam do entrelace com os elementos cons-
titutivos da narrativa, a exemplo do tempo e do espaço, nos levando a
universos distantes, distintos e/ou conhecidos, no plano imaginário1.
Daí a percepção face aos mesmos, a partir do comportamento, da ação,
Como salientam Abramovich (1990) e Ribeiro (1999).
1

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

da faixa etária, de gênero e, inclusive, dos fenótipos, conforme descri-


tos na narrativa.
Na trajetória da produção literária infanto juvenil ocidental, a
exemplo dos contos de fadas, os traços característicos dos personagens
identificam-nos dentro dos padrões europeus, se levarmos em conta as
ilustrações e/ou a linguagem verbal ao se delinear a cor da tez branca,
os cabelos lisos, quando não loiros. A ascendência africana, com fenó-
tipos negros em tais seres ficcionais, inexiste praticamente, salvo raras
exceções2. Os encontramos, dentro da vasta produção dos famosos
irmãos, em dois contos apenas, associados às forças do mal, enquanto
anti-heróis3. São, portanto, vencidos e punidos com requinte de cruel-
dade, pelo protagonista.
Diante da tendência de se reforçar preconceitos raciais através
dos personagens, questionamos: 1) o que entendemos por tais seres na
área literária, levando em conta o nosso papel face à seleção e análise
das obras a serem destinadas às crianças e aos jovens?; 2) O que sabe-
mos, de fato, sobre as relações étnico-raciais na trajetória da literatura
infantojuvenil, e qual o nosso repertório de leitura nessa área, especi-
ficamente? Afinal, não basta delinear personagens negros em papéis
principais para efetivar a inovação; é necessário que tais seres tenham
uma dimensão existencial capaz de envolver o leitor em seus dilemas e
desejos, através da linguagem verbal e não verbal, no caso das ilustra-
ções. Por outro lado, vale salientar que a literatura infantojuvenil não
é alheia às vivencias humanas, aos fatores sociais e ideológicos dos
grupos hegemônicos, conforme reconhecido por estudiosas da área4.
É importante destacar, aqui, que a LDB 9.394/96 foi alterada
através da Lei 10.639/03, tornando-se obrigatório o ensino da histó-
ria e cultura africana e afro-brasileira em todas as áreas, na Educação
Básica. Em 2008 incluiu-se, também, a temática indígena no currí-
culo escolar. A despeito dessas conquistas históricas, boa parte dos
2
Conforme pode ser observado através de estudos na área, dos quais citamos Oliveira
(2003;2010) e Sousa (2005).
3
Referimo-nos aos contos intitulados: A noiva branca e a noiva preta, também, As três
princesas pretas (vol 2, s/d). Para maiores informações acerca de tais contos, consultar
a dissertação de mestrado de Oliveira (2003).
4
Das quais, destacamos: Nelly Novaes Coelho (1993), Ligia Cademartori (1986), Regina
Zilberman (1987), Marisa Lajolo (2004), entre outros (as) estudiosos (as)

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

profissionais da educação não tem formação para atuar com ambas as


temáticas no espaço escolar. E, em se tratando da produção infantojuve-
nil, são pouquíssimos os estudos por especialistas de Letras, ficando as
abordagens mais gerais, prescindindo a análise aprofundada dos seres
ficcionais e da sua composição textual. Urge, portanto, a necessidade
de mais estudos focados na tessitura textual, isto é, na sua composi-
ção, mas sem incorrermos nas perspectivas meramente estruturalistas
e estanques. Esse é um dos desafios para nós, educadores (as) e, muito
possivelmente, será esse um dos méritos do nosso percurso que, posto
que pretendemos deixar alguma contribuição aos profissionais que
atuam com o ensino da literatura.
No decorrer do caminhar faremos, a princípio, uma incursão
sobre o campo da produção literária infantojuvenil no presente texto.
Em um primeiro momento nos deteremos sobre seu conceito, com o
intuito de compreender seu importante papel para a formação dos leito-
res. A seguir, entrelaçaremos os fios teóricos acerca de alguns elemen-
tos constitutivos da narrativa para situar os seres ficcionais na tessitura
literária, de modo a percorrer, posteriormente, o papel desempenhado
pelos personagens negros, no Brasil, na era precursora, moderna e
contemporânea. A questão crucial das nossas reflexões é: diante da tra-
jetória de inferiorização dos mesmos, até onde poderíamos identificar
não só tal tendência, mas, sobretudo, a inovação no cenário literário?
Na atualidade, sabemos, há uma demanda maior a nos desafiar,
a saber: selecionar e indicar obras literárias infanto-juvenis que primem
pela valorização e ressignificação da história e cultura africana e afro-
-brasileira5, sem incorrer na veiculação do preconceito étnico-racial,

5
Consideramos importante conhecermos os seguintes documentos que legitimaram a
demanda atual na área das relações étnico-raciais. São eles: 1) a LDB 9.394/96 alte-
rada pela Lei Federal 10.639/03, as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino da
História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, disponível no site:
http://www.uel.br/projetos/leafro/pages/arquivos/DCN-s%20-%20Educacao%20
das%20Relacoes%20Etnico-Raciais.pdf;
2) o Plano Nacional para Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Africana
e Afro-Brasileira, site: http://www.seppir.gov.br/.arquivos/leiafrica.pdf;
3) o Estatuto da Igualdade Racial, acessível no seguinte site:
http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/4303/estatuto_igualdade_
racial.pdf?sequence=1

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

por meio do qual se reforçou, durante muito tempo, papéis de inferiori-


dade negra e superioridade branca.
O desafio que se impõe na atualidade, entre outros é: como
proceder a seleção e, por conseguinte, a análise de tais obras, de modo a
subsidiar os profissionais que atuam em sala de aula? Esse é o cerne de
nossa incursão. Primeiro, no campo da área literária, para ir aplainando
o caminhar, de modo a podermos, por fim, contribuir com a atuação
docente. Para tal trabalho, adotaremos, como referência, a obra literá-
ria “As tranças de Bintou”, narrativa de origem francesa, da autoria de
Diouf (2004), traduzida no Brasil, cujo enredo apresenta o universo
de uma criança envolta ao mundo adulto, levando-nos a acompanhar
seus dilemas e desejos. Contudo, antes de percorrê-lo, façamos algu-
mas elucidações cruciais sobre o vasto campo da literatura destinada
às crianças e aos jovens.

1. LITERATURA INFANTIL/JUVENIL E O LEITOR

No livro A literatura infantil, Nelly Novaes Coelho (1993, p.


24) a define como “[...] arte: fenômeno de criatividade que representa
o Mundo, o Homem, a Vida, através da palavra. Funde os sonhos e a
vida prática; o imaginário e o real; os ideais e seu possível/impossível
realização”. Essa definição ampla nos remete à literatura enquanto arte
da palavra e, por outro lado, à representação da “Vida” humana. Assim,
Coelho entrelaça o mundo “empírico”, real, e o “imaginário” (fictício).
Há aí uma interface textual (arte literária e vida humana)6.
A nossa preocupação em estabelecer um elo entre a produção
literária e contexto sociocultural segue a direção do pensamento tam-
bém de Colomer (2003), quando ela assevera que “nos livros infantis,
mais do que na maioria dos textos sociais, se reflete a maneira como
a sociedade deseja ser vista, e pode-se observar que modelos culturais
dirigem os adultos às novas gerações [...]”. Emerge, daí, a relação entre
a literatura e as intenções utilitárias, pedagógicas, levando-nos a perce-
ber que não há neutralidade em tais produções. É esse o ponto de vista,
também, de Cademartori (1986).

A esse respeito consultar Noa (2002.)


6

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

Turchi (2004, p. 41), tanto quanto as referidas estudiosas, evi-


dencia que a linguagem literária não prescinde dos fatores sociais,
podendo, além disso, influenciar a visão que os leitores têm do uni-
verso circundante. Daí a importância de nos atentarmos ao processo
de seleção das obras que lhes são destinadas. E, alerta: “quando uma
demanda de mercado toma conta do panorama editorial, é preciso uma
análise cuidadosa para distinguir a criação verdadeira do estereótipo”.
Em síntese: mais do que nunca, é tarefa da crítica da lite-
ratura infantil: a avaliação – analisar a literatura contemporânea, o
crítico tem responsabilidade com a arte de sua própria época; a seleção
– mostrar o que ler ou reler e de que modo; a formação – estabelecer
conexões, abrindo para estudos culturais amplos, envolvendo todo o
processo de leitura (TURCHI, 2004, p. 44).
Partindo dessa assertiva, gostaríamos de destacar que segui-
mos a direção da crítica literária, pois, ao abordar as respectivas pro-
duções, o faremos com fins avaliativos, sem prescindir a atribuição
de valor face às obras que privilegiamos em detrimento das demais,
quando da seleção. Estamos, portanto, no presente percurso, pensando
na formação dos leitores, a saber: as crianças e os jovens, principais
destinatários da literatura infantojuvenil e, além deles, os adultos, pelo
significativo papel de envolver os leitores.
Ao referir-se à convivência das crianças com a diversidade na
contemporaneidade, Turchi (2004, p. 40-41) chama a atenção para o
contato com “diferentes vozes narrativas que lhes falem mais de perto
dessa diversidade”. E, acrescenta “[...] a discussão do estético deve estar
ligada a uma ética do imaginário que contemple as diferentes vozes, a
variedade étnica e os múltiplos aspectos culturais em diálogo na obra,
especialmente num país como o Brasil”, cuja constituição sociocultural
é diversificada. Sendo assim, complementa,
A história da literatura infantil deve integrar texto e contexto
sócio-histórico, demonstrando de que modo, de um lado, a formação
cultural extra-literária molda o discurso literário e, de outro, como as
práticas literárias são ações que fazem coisas acontecer, moldando a
consciência psíquica e ética do jovem leitor [...] (TURCHI, 2004, p. 41).
Nessa linha de pensamento, salienta Lima (2000, p. 103), tal
produção tende a tornar-se “[...] um instrumento de dominação do real

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

através de códigos embutidos nos enredos racialistas” e, ainda, pontua


Evaristo (2007).
Colocada a questão das identidades no interior da linguagem,
isto é como ato de criação linguística, a literatura, como espaço privi-
legiado de produção e reprodução simbólica de sentidos, torna-se um
locus propício para a enunciação ou para apagamento das identidades
(EVARISTO, 2007, p. 7).
Partindo de tais assertivas, compreendemos que a literatura
recria, redimensiona e transcende a realidade circundante, por meio
dos seres ficcionais, dos demais elementos constitutivos da narrativa e/
ou do “eu” lírico. Sugere, com isso, possibilidades de o leitor viajar no
mundo da imaginação, percorrer o universo interior (RIBEIRO, 1999)
e vivenciar dilemas sociais, existenciais, sobretudo, através da caracte-
rização dos personagens e dos espaços sociais nos quais são situados.

2.SERES FICCIONAIS E OS ENTRELACES NARRATIVOS

Para Lins (1976, p. 77), o “estudo de determinada personagem


estará sempre incompleto, se também não for investigada a sua carac-
terização”, ou seja, “os meios, os processos, a técnica empregada pelo
ficcionista” para a sua organização verbal. Sendo estes configurados
como o “objeto em si”, a “caracterização” resulta da “execução” no
espaço narrado, dando a “noção de um determinado ambiente”.
A ideia de espaço tem uma conotação um tanto genérica,
requerendo a ambientação, ou seja, algo que contribui para singula-
rizar o espaço. Um meio de se fazer isso é através dos detalhes que
evidenciam as preferências das personagens, expressando percepções,
sensações, dilemas, desejos; enfim, um jeito de ser, estar e agir. Mas,
podemos falar do espaço psicológico, do espaço social, ambiental, etc,
demonstrando quão tênues são as linhas fronteiriças que os aproximam.
No que se refere à narrativa, Lins (1976) a entende como um
“objeto compacto e inextricável”, cujos “fios se enlaçam entre si e
cada um reflete inúmeros outros”. Então, pondera que embora possa-
mos “isolar artificialmente um dos seus aspectos e estudá-lo”, faz-se
necessário considerarmos o “espaço” e o “tempo”. O referido estudioso
estabelece a diferença entre esses elementos no romance (ficção) e no

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

mundo (realidade), salientando que, em se tratando da obra ficcional,


“vemo-nos ante um espaço ou um tempo inventados, ficcionais, refle-
xos criados do mundo e que não raro subvertem – ou enriquecem, ou
fazem explodir – nossa visão das coisas7”.
As asserções de Lins (1976) abrangem a relação entre os seres
ficcionais e os demais elementos da narrativa. Dentre esses destacamos
os espaços, singularizados por ambientes diversos, seja a residência, o
quarto, o trabalho, etc. Recriam-se, assim, o universo que nos cerca e,
mais, nos projetam a outros desconhecidos. Eis o poder de, através da
palavra verbal e não verbal, subverter, endossar, enfim, romper e/ou
ressignificar o status quo cristalizado no imaginário social. Partindo
desse prisma, consideramos de extrema relevância atentarmos à com-
posição da narrativa, sem perder de vista, também, os traços caracte-
rísticos dos personagens.
Tais traços no trançado8 literário podem sugerir (re)leituras do
presente, do passado, além de lançar projeções futuras. Nessa linha de
pensamento, entrevemos a ideia de representação já aludida por Coelho
(1993). Em um viés correlato, embora trazendo dados mais precisos
sobre as personagens, Khéde (1990, p. 6) argumenta que tais seres “[...]
como elementos ativos dentro da narrativa, representam valores através
dos quais a sociedade se constitui”. Em suma, moralismo, cristianismo,
didatismo, adultocentrismo, machismo, eurocentrismo e racismo, por
exemplo, são valores que marcaram a trajetória da produção literária
infantojuvenil. Detenhamo-nos, a partir de então, sobre esse último.

Lins (1976, p. 64) refere-se às obras cujo tempo não é cronológico.


7

“Trançar”, aqui, corresponde ao sentido de entrelaçar, conforme consta do livro de


8

Nilma Lino Gomes (2006), que se debruça sobre cabelos crespos no livro intitulado
Sem perder a raiz: corpo e cabelo, símbolos da identidade negra. A palavra “tran-
çar” também emerge das ideias desenvolvidas por Souza (2005, p. 196), no livro Afro-
descendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU. A pesquisadora analisa textos
dos Cadernos Negros e pontua que “O trançado dos cabelos será apresentado também
como ponto de partida para o traçado de um discurso de inserção do grupo na constru-
ção de uma identidade nacional heterogênea”. Quer dizer, há, aqui, um jogo de palavras
no uso do sentido trançar/traçar. Assim, o “trançado” dos cabelos tem uma conotação
poética e artesanal, o “ponto de partida para o traçado”, dando margem ao desenlace de
“traçar”, delinear e nos transportar aos fios ancestrais, cuja raiz africana é o elo a ser
vislumbrado, retomado, ressignificado na tessitura literária dos mentores da Literatura
Negra.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

3. PERSONAGENS NEGROS NA LITERATURA INFANTOJUVENIL


(ERA: PRECURSORA, MODERNA E O LIMIAR DA ERA
CONTEMPORÂNEA)

Em seu Dicionário Crítico da Literatura Infantil e Juvenil


(1990, p. 19), Nelly Novaes Coelho faz uma “Divisão histórico-lite-
rária”, partindo da premissa de que “[...] a literatura infantil brasi-
leira, com sua originalidade e peculiaridades nacionais específicas,
teve início com José Bento Monteiro Lobato”. Logo, tomando a obra
do escritor como “um marco divisor de épocas”, Coelho (1990, p. 19)
demarca três fases: 1) Precursora. Período pré-lobatiano (1808 – 1919);
2) Moderna. Período lobatiano (anos 20/70); 3) Pós-Moderna. Período
pós-lobatiano em diante.
Na fase Precursora prevalecem as “narrativas orais entre os
povos e cortes européias” (op.cit, p. 20-21). Tal período, Coelho intitula
de “Um século de fermentação pedagógica-literária”. Ou seja, desde
o “Brasil imperial, com D. Pedro II, às vésperas do Modernismo de
22”. Entre os “valores ideológicos” da literatura destinada às crian-
ças e jovens, são destacadas as seguintes tendências: a) Moralismo,
religiosidade e didatismo; b) Nacionalismo; c) Intelectualismo, d)
Tradicionalismo cultural; e) O trabalho como valor e desvalor; f)
Machismo; g) Adultocentrismo; h) O idealismo. Alguns desses valores
são retomados em outro livro de Coelho (1993, p. 17-24) e subdivididos
em dois grandes eixos temáticos: 1) O Tradicional e O Novo. Se no
Dicionário Crítico da Literatura Infantil e Juvenil (1990) Coelho não
faz alusão à questão étnico-racial, no livro publicado posteriormente,
Literatura Infantil: teoria, análise e didática (1993, p. 17), ela o faz.
No que tange ao período Tradicional, alguns valores abor-
dados antes pela estudiosa foram reformulados e ampliados. Aqui,
importa destacar apenas um dos Novos, não aludido no Dicionário,
que é o racismo. Este, segundo a pesquisadora, “marca a Sociedade
Tradicional”, devido à “escravização de uma raça pela outra, resul-
tante das conquistas, sangrentas ou não, de territórios ambicionados
por suas riquezas. E, como consequência: a escravização da força-tra-
balho dos vencidos”. A escravização, conforme Coelho (op. cit, p. 20),

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

constituiu-se como uma “força indispensável ao progresso de qualquer


grupo social”9, visto que se
[...] procurou denunciar essa aviltante injustiça contra as raças
consideradas ‘inferiores’ pela raça vencedora, mas se limitou
aos aspectos sentimentais e puramente humanos, deixando de
lado suas fundas raízes político-econômicas. Na Literatura in-
fantil, a separação entre ‘brancos’ e ‘negros’ é notória: reflete
uma situação social concreta (COELHO, 1993, p. 20).
A afirmação de Coelho merece algumas considerações, por
evidenciar a relação entre a literatura infantil e a realidade histórica,
a saber: a denúncia da escravidão, da exploração entre os homens e,
por conseguinte, a não isenção face às injunções do tempo. Pinheiro
(2003), se aproxima das ideias de Coelho ao asseverar que,
toda obra artística é a simbolização de uma experiência humana
e está ligada – queira ou não o autor – a um contexto histórico,
[pois] mantém relações – de consonância ou não – com a tradi-
ção, dentre outros traços (PINHEIRO, 2003, p. 24).
Na trajetória da literatura infantil brasileira, prevaleceu a “tra-
dição” de expressar um olhar preconceituoso e inferiorizado face ao
segmento negro, recortando-se e privilegiando a ideia de “vencidos”
pelo segmento branco, preterindo-se as resistências, as lutas e con-
quistas. Essa literatura, portanto, não só denunciou, mas, sobretudo,
demarcou e perpetuou funções e ações desempenhadas pelos segmen-
tos considerados “superiores”, de ascendência branca e os demais, vis-
tos como inferiores: negros e índios.
Se através da literatura infantil se denunciou a “aviltante injus-
tiça” social praticada com o segmento étnico-racial negro, também se

9
Apesar de Coelho (1993) se referir à escravização humana como “um processo de
Injustiça Humana e Social que até os nossos tempos não pode ser totalmente extirpada”,
antes, porém, sendo a “raça branca a vencedora”, ao que, diríamos, beneficiada social e
economicamente até a atualidade (MOORE, 2007), ela, por outro lado, a entende como a
“força indispensável ao progresso de qualquer grupo social”. Essa afirmação mereceria
maiores explanações ou, no mínimo, a problematização do sistema atroz que ceifou a
vida de um contingente incalculável de pessoas negras e ameríndias ao longo de quase
quatro séculos, desencadeando uma série de complexidades e desigualdades até os dias
de hoje. O racismo é um deles. Tanto é que no limiar do século XXI discutimos, ainda,
a urgência da reparação social para com os grupos sociais vilipendiados e usurpados de
suas terras: os descendentes de africanos e os ameríndios.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

reforçou a supremacia do segmento branco em suas histórias reconta-


das, recriadas10. São estas imagens que chegam às crianças negras e
brancas, massivamente. Salvo raras exceções, não se têm priorizado
as conquistas, memórias, resistências, enfim, o patrimônio cultural
amplo dos negros das Áfricas11 e diásporas. Isto é o que, talvez, Coelho
denomine de “raízes político-econômicas”.
Em outras palavras, diante de vastas representações, recria-
ções do contexto sociocultural, a “separação entre brancos e negros
é notória: reflete uma situação social concreta”, complementa Coelho
(1993, p. 20). Mas, complementamos, sob a ótica de um determinado
grupo, que poderíamos denominar de “brancocêntrico”; e isso deseja-
mos superar, incluindo os demais segmentos, sem a intenção de inver-
ter os “centros”, mas, sim, ampliá-lo, ao inserir as demais diferenças
(negros e índios, por exemplo).
É importante salientar a relevância de os personagens negros
aparecerem em diversificados papéis, protagonistas, sem serem redu-
zidos a antagonistas e/ou a papéis secundários. Desse modo, as crian-
ças e jovens, tanto negras quanto brancas, além dos demais segmentos
étnico-raciais, terão maiores possibilidades de se identificar e redi-
mensionar olhares sobre si e sobre o espaço social, através da leitura
literária.
Complementando os papéis atribuídos aos personagens negros,
conforme a demarcação temporal de Coelho (1990), na fase Precursora
da literatura infantojuvenil brasileira, mas no período de 1900 a 1920,
Gouvêa (2001, p. 3) constatou que “[...] o negro constitui personagem
quase ausente, ou referido ocasionalmente como parte da cena domés-
tica. É personagem mudo, desprovido de uma caracterização que vai
além da referência racial”. É, também, aquele que desempenha papéis
secundários.
Jovino (2006, p. 287) reitera a asserção de Gouvêa, ao cons-
tatar que “[...] os personagens negros só aparecem a partir do final da

10
O termo “negro” e “branco” refere-se às caracterizações dos seres ficcionais repre-
sentados a partir das ilustrações e/ou do texto verbal, tendo em vista a associação dos
mesmos aos respectivos segmentos étnico-raciais (considerando-se a cor da tez, cabelos,
enfim, os traços fenotípicos) delineados nas narrativas.
11
Áfricas, aqui, para expressar a diversidade do continente africano, prescindindo a redu-
cionista ideia de unidade para a sua amplitude.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

década de 20 e início da década de 30, no século XX”. E, pondera: “É


preciso lembrar que o contexto histórico em que as primeiras histórias
com personagens negros foram publicadas era de uma sociedade recém
saída de um longo período de escravidão”. Logo, conclui:
As histórias dessa época buscavam evidenciar a condição su-
balterna do negro. Não existiam histórias, nesse período, nas
quais os povos negros, seus conhecimentos, sua cultura, enfim,
sua história fosse retratada de modo positivo (JOVINO, 2006,
p. 187).
Então, se Coelho compreende que a literatura infantil refletiu
“uma situação social concreta”, a escravização, cabe não esquecer que
tal literatura priorizou o ponto de vista do grupo hegemônico. Desse
modo, cristalizou um olhar sobre os escravizados, sobretudo, como
seres passiveis à comiseração e passivos, sem reação contra o sistema
opressor. Logo, prevalece o viés da vitimização e passividade face aos
personagens negros, principalmente. Nesse aspecto, vale lembrar O
Negrinho do Pastoreio, que é surrado pelo senhor até a morte, com
requinte de crueldade, sendo colocado em um formigueiro nos últimos
suspiros.
O período que abrange a era Precursora, a Moderna e o limiar
da fase contemporânea, tomando como base a demarcação temporal
de Coelho (2003), não deixou de reforçar a inferiorização do segmento
negro e a valoração do branco na literatura infantojuvenil. Eis o que
observou Rosemberg e sua equipe (1985), ao se debruçarem sobre os
personagens negros em 168 narrativas publicadas entre 1955 e 1975.
Conforme salienta Jovino (2006, p. 187) que, na realidade se
pauta em Rosemberg (1985), Oliveira (2003) e Sousa (2005), só “[...] a
partir de 1975 é que vamos encontrar uma produção de literatura infan-
til mais comprometida com uma outra representação da vida social bra-
sileira”. No entanto,
Embora muitas obras desse período tenham uma preocupação
com a denúncia do preconceito e da discriminação racial, mui-
tas delas terminam por apresentar personagens negros de um
modo que repete algumas imagens e representações com as
quais pretendiam romper. Essas histórias terminavam por criar
uma hierarquia de exposição dos personagens e das culturas

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

negras, fixando-as em um lugar desprestigiado do ponto de vis-


ta racial e estético (JOVINO, 2006, p. 198).
Se se fixou um “lugar desprestigiado” para os personagens
negros no texto verbal, as ilustrações têm reforçado tal viés. Eis o que
constata Lima (2000, p. 101 a 115), ao traçar o perfil dos mesmos com
base nas narrativas publicadas em 1949, 1972, 1979 e 1991. A pesquisa-
dora chega à conclusão de que a “presença negra não é tão invisível” na
“produção brasileira”, embora apareça “numa gama muito restrita de
associações”, entre elas: “escravos”, empregadas domésticas, sofrendo
violência simbólica. Na condição de escravizados, constatatou-se as
seguintes associações: a) a naturalização do “sofrimento”, reforçando
“a associação com a dor”; b) “histórias tristes”, marcando “a condição
de inferiorizados pela qual a humanidade negra passou”; c) passivi-
dade. Contudo,
[...] cristalizar a imagem do estado de escravo torna-se uma das
formas mais eficazes de violência simbólica, [e] [...] reproduzi-
-la intensamente marca, numa única referência, toda a popu-
lação negra, naturalizando-se, assim, uma inferiorização [...]
(LIMA, 2000, p. 98).
Diante da asserção acima, reiteramos que prevaleceu a infe-
riorização do segmento negro na literatura infantil intitulada de
Tradicional, na fase Precursora e na era Moderna, a saber, dos anos 30
(século XX) até meados dos anos 70, aproximadamente. Dentro dessa
ótica, afirma Saraiva (2001, p. 76), “[...] a ilustração tem servido de
veículo para reforço de estereótipos e preconceitos”.
Mas há, também, pontos de vista diferenciados quanto à carac-
terização dos personagens negros, pois, se de um lado se conclui que
prevalece a depreciação nos textos destinados ao público infantil e
juvenil, do outro se propala a inovação. Para uns, a inovação consiste
na valorização do negro e, até, na ruptura com os estereótipos anterior-
mente atribuídos a eles, haja vista a associação com a feiura, a maldade,
a perversidade, a pobreza, a sujeira, a animalização, entre outras carac-
terísticas correlatas.
Outro estudo que aborda o enredo de obras literárias que tra-
zem em sua composição os personagens negros é de autoria de Inaldete
P. Andrade (2001). Esta pesquisadora constata não só a estereotipia nas

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

obras, como também inovações e, até mesmo, a literatura “antirracista”.


Com base na pesquisa de 82 livros, Andrade conclui o seguinte: 1)
1964 – 1977: “literatura tendenciosa, posições ambíguas, paternalistas
e racistas”; 2) “De 1978 em diante, pouco a pouco surge uma literatura
consistentemente anti-racista” (ANDRADE, 2001, p. 18).
Andrade (2001, p. 18) identifica “[...] atitudes e comporta-
mentos racistas transmitidos na literatura infantojuvenil brasileira”.
Também, autores “[...] que resgatam a história de resistência negra no
solo brasileiro”, dos quais se destaca Luiz Galdino e Nicoélis, dentre
outros. Em um estudo anterior, partimos de constatações correlatas a
esta e nos debruçamos sobre algumas obras consideradas inovadoras,
inclusive desses dois escritores, e concluímos que, apesar de se inovar
o cenário literário ao apresentar uma quantidade significativa de prota-
gonistas negros, por outro lado prevaleceu a inferiorização dos mesmos
se comparados aos brancos12. Isso na era contemporânea, equivalendo
ao final dos anos 70 em diante.
Embora Coelho (1990) reporte-se ao recorte temporal dos anos
70 à atualidade (limiar do século XXI) como a era pós-moderna, não
adotaremos tal termo, levando em conta as complexidades históricas e
filosóficas que o envolve. Assim sendo, consideramos o mesmo perí-
odo como a era contemporânea. Nosso intuito aqui, ressaltamos, é
mais didático, com vistas a ter uma referência temporal aproximada,
uma espécie de demarcação apenas relativa, para configurar a eclosão
da literatura infantojuvenil no Brasil.
O termo contemporâneo sugere a ideia de movimento e evi-
dencia maior flexibilidade na demarcação cronológica. Afinal, se os
anos anteriores foram corroborando para mudar o rumo das produções
destinadas às crianças e jovens, isso se amplia com o impacto do marco
Lobato, conforme reconhece Coelho (1990), a partir das aventuras
vivenciadas pelos personagens situados no Sitio do Pica Pau Amarelo.
Nesse espaço, que mistura realidade e fantasia, encontramos também
Tia Nastácia, Tio Barnabé, o Saci Pererê e Garnizé, em papéis secun-
dários, inferiorizados, simbolizando o folclore.

12
Referimo-nos aos doze livros publicados entre 1979 e 1989. A esse respeito, ver Oliveira
(2003).

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Com o transcorrer do tempo, os personagens negros desempe-


nham não só papeis secundários ou antagonistas, mas passam a coe-
xistir no mercado editorial textos eivados de preconceitos e outros que
visam à valorização, tentando romper com os estereótipos cristalizados
ao longo do tempo. Resta-nos identificar até onde inovam, de fato, o
cenário literário13.
A produção literária destinada às crianças, assim como as
demais artes, não ficou parada no tempo; sofreu influências históricas
e ideológicas, e os personagens até então enfocados evidenciam isso.
Portanto, apesar de identificar textos que sugerem a afirmação identitá-
ria negra, destacando os penteados afros, as religiosidades de matrizes
africanas, os espaços sociais africanos, as lideranças negras e as situ-
ações de discriminação racial, faz-se necessário efetivarmos a análise
dessas produções, sem perder de vista a necessidade de ampliar o leque
de produções que contribuam para ampliar nossa diversidade cultural,
ao delinear outros segmentos afro-brasileiros, não os restringindo aos
padrões, meramente, eurocêntricos. Eis o que sugere o livro literário
infantojuvenil intitulado As tranças de Bintou, conforme procuraremos
identificar, a partir de então.

4. AS TRANÇAS DE BINTOU: DESEJOS E DILEMAS

Em As tranças de Bintou o leitor percorre o imaginário da


“narradora-protagonista”, se entendida à luz de Chiappini e Leite (1991,
p. 43), por meio da qual não se tem “acesso ao estado mental das demais
personagens”, estando-se “limitado quase que exclusivamente às suas
percepções, pensamentos e sentimentos”.
Antes de percorrer os conflitos da protagonista, é importante
informar que em “As tranças de Bintou” a ação nasce de um desejo,
considerado, aqui, na acepção de Bourneuf e Oullet (1976, p. 215), não
um opositor, um antagonista que a persegue, mas, o objeto desejado.

Dentre os estudos acerca dos personagens negros na produção literária citamos, ainda:
13

Brookshaw (1983), Proença Filho (1997), França (1998), Piza (1998), Gomes (1998),
Brazilli (1999), Cuti (2002; 2009), Dalcastagnè (2004), Venâncio (2009) e Oliveira
(2010).

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

Bintou, a narradora-protagonista, é a principal desencadeadora


das ações na narrativa, sendo por meio dela que adentramos na histó-
ria e conhecemos um pouco do universo africano expresso, também,
através das ilustrações. É ela, Bintou, quem relata o rito de iniciação, o
batizado do irmão; é quem expressa as maneiras de ser e viver comuni-
tário, e as ilustrações complementam sua visão local. O ponto de vista
é o da criança não integrada ao mundo adulto, muito embora tenha o
carinho e afetividade no meio familiar.
Segundo Brait (1990, p. 52-53), o “ponto de vista” é um dos
recursos para se “caracterizar as personagens”, o que, por outro lado,
evidencia o importante papel do narrador; “esta instância narrativa que
vai conduzindo o leitor por um mundo que parece estar se criando à sua
frente”. É o que acontece em “As tranças de Bintou”, sendo o “seu foco
narrativo” que conduz o nosso olhar, através das suas ações, sensações
e frustrações pela carência do objeto de desejo.
O título da história tende a instigar o leitor ao anunciar a temá-
tica, que girará em torno de um traço característico da protagonista: as
tranças. Mas, ao observarmos a capa do livro e as demais páginas, nota-
remos que o que foi anunciado é, na realidade, o desejo da criança pro-
jetado no mundo dos sonhos. Surge, daí, a primeira instigação que nos
leva a percorrer o livro para localizar o que foi anunciado inicialmente.
Podemos compreender, reportando-nos a Brait (op. cit, p. 61),
que Bintou, por meio da linguagem verbal, “conduz os traços e os atri-
butos que a presentificam”, assim como as “demais personagens”. No
entanto, ela não descreve o universo interior dos demais seres com os
quais se relaciona; se refere a eles em uma “visão de fora” e, assim,
desvela a impressão dos mesmos, embora dizendo de si, dos anseios,
sonhos, indignações e percepções externas. Essa narradora-protago-
nista, logo de início, se apresenta e expressa o objeto desejado:
Meu nome é Bintou e meu sonho é ter tranças.
Meu cabelo é curto e crespo. Meu cabelo é bobo e sem graça.
Tudo que tenho são quatro birotes na cabeça (p. 3)
A tristeza de Bintou é refletida através do espelho, como é pos-
sível observar na ilustração (p. 3) a integração com a natureza, pois
ao seu lado aparece uma ave, com o bico imerso na água. A imagem
de Bintou remete de certa forma, ao “mito narcísico” e o inverte, pois

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o seu reflexo não é admirado, é rejeitado, e aparece um tanto desfi-


gurado, em meio à água, cujo semblante entristecido redimensiona e
intensifica o conflito interior da protagonista. As mãos sobre a cabeça
dão indício de que ela está tensa, diferentemente da ave verde que, ao
lado, procura alimento tranquilamente.
A ilustração da primeira página, através da qual tomamos
conhecimento do conflito de Bintou, é bastante simbólica. Por meio
dela se sugerem leituras diversas, inclusive complexas, hajam vista as
possíveis analogias da água como fonte de vitalidade e, também, asso-
ciada ao espelho, o qual reflete o seu universo interior. Tratando-se
da pequena narradora-protagonista, cujo reflexo aparece distorcido em
meio às ondulações do mar que flui, a tensão se intensifica nas circu-
laridades em cena.
A saída da protagonista para sanar a carência é a projeção no
mundo dos sonhos, os quais permeiam a narrativa, descritos em três
cenas: na primeira aparece a Bintou criança, com os “birotes”, inte-
grada à natureza; nas duas seguintes, ela é a adolescente, irradiada
pela luz do sol, associada à princesa com suas belas tranças. Em todas
as cenas aparecem pássaros, os quais sugerem liberdade, movimento,
colorido, semelhante às tranças que Bintou tanto deseja.
É, ainda, Bintou quem nos conta do acolhimento da irmã, da
admiração e afetividade entre ambas. E lá aparece a pequena protago-
nista às lágrimas, na ilustração, acalentada pela irmã Fatou:
Minha irmã, Fatou, usa tranças e é muito bonita. Quando ela
me abraça, as miçangas das tranças roçam nas minhas boche-
chas. Ela me pergunta: ‘Bintou, por que está chorando?’. Eu
digo: ‘Eu queria ser bonita como você’. ‘Meninas não usam
tranças. Amanhã eu faço novos birotes no seu cabelo’ (p. 7).
Por meio da percepção, a narradora-protagonista descreve e
destaca alguns traços da irmã que, diferente dela, “usa tranças”, tor-
nando-se “mais bonita”. Com isso, evidencia o desejo de ser igual à
irmã. Ser mais bela, então, está associada ao fato de se ter os cabelos
trançados. Em: “meninas não usam tranças” – explicação de Fatou,
que abraça e consola a irmãzinha –, esse ato afetivo amplia ainda mais
a carência, diante das “miçangas” que “roçam” sobre suas “bochechas”.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

O choro incontido exprime as diferenças hierárquicas, e a irmã,


sem querer, amplia ainda mais a tristeza da pequena. Então, apesar de
Bintou recorrer ao choro – um método utilizado pelas crianças para
sensibilizar os adultos e atingir seus fins –, a situação não se altera. Tal
qual um herói tradicional, face às forças opositoras, Bintou tem conhe-
cimento das limitações que impedem a realização dos seus sonhos. O
grande impasse é a faixa etária, pois a condição de criança só lhe per-
mite ter “novos birotes”, e não as desejadas tranças.
Diante da insistência da protagonista, percebemos que estas
estão associadas ao movimento, ao colorido, às “miçangas”, ao objeto
lúdico sob seu prisma. Este corresponde a uma espécie de metonímia
da vaidade feminina. Tranças com miçangas tecem cor, vida e movi-
mento, tal qual o universo infantil, contrastando com os “birotes”: fixa-
dos à cabeça, sem movimento; logo, sem vida. Bintou quer mudar a
estética, daí continuamente o mesmo lamento: “Eu sempre acabo em
Birotes” (p. 7).
Ao nos reportarmos à valoração atribuída aos cabelos crespos
e aos demais traços característicos do segmento étnico-racial negro,
conforme consta dos textos poéticos nos Cadernos Negros estudados
por Souza (2005), observamos que tais traços, salvo raras exceções, são
preteridos na literatura em geral ou tendem a ser associados à feiura,
à ridicularização, implicando em piadas preconceituosas, de cunho
racista.
Ao contrário de tais associações, em “As tranças de Bintou” se
expressa a valorização dos fenótipos negros, através da percepção da
protagonista. Diante dessa asserção, podemos estabelecer um elo com
outra constatação de Souza (op. cit, p. 197) que, ao analisar uma poesia
da escritora Celinha, nos Cadernos Negros, salienta que as tranças, por
ela poetizada e “cantadas em outros textos, sugerem aos poetas cami-
nhos de beleza, poesia e sedução”.
As tranças, objeto de desejo da protagonista não são desprovi-
das de beleza e, nesse aspecto, sugerem a inversão de sentidos ociden-
tais, ao simbolizarem uma das “marcas identitárias da raiz africana”14.
Partindo dessa premissa, Gomes (2006, p. 208) reconhece que o “uso
14
Raiz, aqui, tem o sentido de origem, conforme consta da pesquisa de Gomes (2006), em
relação à descendência fenotípica africana, a exemplo dos cabelos crespos e tez negra,
dentre outros traços diacríticos do segmento negro.

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das tranças é uma técnica corporal que acompanha a história do negro


desde a África”. E, salienta, embora os sentidos de “tal técnica” tenham
sido “alterados” ao longo do tempo, em algumas
[...] sociedades ocidentais contemporâneas, algumas famílias
negras, ao arrumar os cabelos das crianças, sobretudo das mu-
lheres, fazem-no na tentativa de romper com o estereótipo do
negro descabelado e sujo. Outras o fazem simplesmente como
uma prática cultural de cuidar do corpo (GOMES, 2006, p. 208).
Estabelecendo analogia entre essa asserção e “As tranças de
Bintou”, percebemos que, na narrativa, o impedimento é de ordem
cultural, por haver a distinção entre os penteados apropriados para as
crianças e outros, para os adultos. Bintou, ao que parece, tem conheci-
mento disso, pois não avança em suas empreitadas de realizar o objeto
de desejo. Limita-se, apenas, a observar e pouco se manifestar explici-
tamente em relação a ele. Tanto é que, no diálogo com a irmã, não ousa
ir adiante e, envergonhada, tapando o rosto com as mãos, apenas diz
desejar ser tão bonita quanto ela (p. 6). Diante do exposto, podemos
concluir que a força antagonista é, na realidade, a tradição cultural hie-
rárquica, o qual inviabiliza seus sonhos. Logo, na condição de criança,
limita-se a desabafar, sonhar, observar, desejar e só se realizar no plano
da imaginação.
Referindo-se ainda aos penteados, cuja origem remonta à
raiz africana, Gomes (2006, p. 208) complementa que “As meninas,
durante a infância, são submetidas a verdadeiros rituais de manipula-
ção do cabelo, realizados pela mãe, pela tia, pela irmã mais velha ou
pelo adulto mais próximo”. É o caso de Fatou, ao tentar confortar a
pequena irmã, prometendo fazer-lhe novos “birotes” no dia seguinte.
As “tranças”, como os “birotes”, são penteados que reme-
tem à ascendência africana, conforme os estudos antropológicos de
Gomes (2006, pp. 341-344), norteando-se nos estudos do “historiador
da arte Neyt”, que se deteve sobre “a cultura dos Iuba”, na República
Democrática do Congo”, e percebeu a grande sofisticação dos pentea-
dos, por serem esculturais. Daí compreender que não só estes, mas os
“outros povos africanos [...] reproduzem com maestria certos pentea-
dos”. E, assim, “atestam a importância simbólica deles”. Destacam-se

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

“em forma de cruz usados pelos Iuba”, por meio dos quais se “refletia
o status social de certas princesas15”.
Seguindo a linha de pensamento de Gomes, pontuamos que,
ainda na primeira página do livro, no momento que Bintou confidencia
o conflito existencial, seu cabelo aparece dividido em forma de cruz.
Mas a analogia, ali, não é dessa ordem, por não haver associação a
nenhuma princesa. Tal associação, no universo de Bintou, só tem tal
conotação no tocante às tranças.
Tranças simbolizam beleza e iluminação, sob o prisma de
Bintou. E na cena em que ela realiza o sonho, a vibração é descrita com
bastante colorido. A cor amarela é intensificada e abrange grande parte
da página, como uma extensão do reflexo do sol, que dá mais vida à
cena em foco. As tranças, então, sugerem movimento, luz, ação e sen-
sação de bem estar. Ao balançar “a cabeça”, o “sol” “segue” a jovem
Bintou que, assim, brilha “como uma rainha”. Ter tranças, para ela,
expressa a projeção máxima em termos do ideal de beleza.
Baseada ainda em Neyt, Gomes (2006, p. 346) aborda a diver-
sificação em termos estéticos e simbólicos dos penteados para alguns
povos africanos. Em meados do século XIX, por exemplo, no antigo
Zaire, atual República Democrática do Congo, apesar dos problemas
de ordem socioculturais locais, afligindo o poderio “dos uruá”, muitos
viajantes estrangeiros ficavam impressionados com os “exuberantes
penteados desses africanos e de suas princesas”. Ou seja, uma das nos-
sas raízes africanas recriadas na diáspora tem a ver com a estética dos
penteados, entre tantas outras recriações culturais. Gomes (op. cit., p.
348) salienta ainda que
Os diversos povos africanos reproduziam nos seus penteados
formas encontradas no seu meio natural. Além disso, usavam
elementos da natureza para compor os adornos dos penteados,
tais como búzios, plantas e sementes coloridas. Também nas
estampas das roupas eles reproduziam as cores presentes no seu
habitat (GOMES, 2006, p. 348).
“As tranças de Bintou”, através das ilustrações, delineia diver-
sos tipos de penteados, quando em um ato de iniciação, principalmente
(um batizado): “adornos”, turbantes, além de “estampas” diversificadas
15
Ver Gomes (2006, p. 343-344).

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nas vestes, na alimentação (p. 14-15). As ilustrações do livro são, por-


tanto, amplas em termos de criatividade e contribuem para realçar a
beleza dos personagens, delineados com detalhes nos seus traços cons-
titutivos (acessórios, roupas, cabelos etc).
Uma das influências africanas no livro – além dos trajes e das
indumentárias, dentre outros valores culturais – são os cabelos crespos,
destacados o tempo todo pela protagonista, mesmo que essa não seja
mais a realidade de alguns países do continente africano, em virtude da
influência dos produtos de alisamentos16. Nesse aspecto, “As tranças de
Bintou” destaca um padrão preterido no Brasil, daí a correlação entre
a obra e as colocações de Gomes (2006), no que se refere a tal aspecto
social, recriado no Brasil como uma das formas de afirmação identitá-
ria negra, a despeito das recorrentes desvalorizações. Observemos que,
na narrativa, trança é associada ao belo, à variedade, a uma herança
ancestral e demarca a hierarquia preestabelecida, diferenciando os
mais velhos dos mais novos.
Os mais velhos17, na obra, se aproximam da cosmovisão afri-
cana, conforme aludida por Siqueira (2006), já que a avó, nesse caso,
simboliza sabedoria e afetividade. É ela a matriarca, detentora de
conhecimento. É a quem Bintou recorre para o porquê de não poder
usar tranças.
E lá se vai a pequena narradora-protagonista em seus relatos,
buscar a avó, a pedido da mãe, para o batizado do irmão, que completa
“oito dias”. É ela, Bintou, quem nos diz:

16
Não estamos afirmando que o destaque aos cabelos trançados, crespos, com penteados
afros seja uma realidade dos países do continente africano. Não temos estudos sobre
isso, mas Munanga (1988) evidencia em seu livro a influência dos produtos de alisa-
mento em alguns países, implicando até na proibição de tais produtos pelos respectivos
governos. Em Maputo, por exemplo, salvo as exceções, notamos a grande influência
desses produtos além das perucas e fibras, utilizadas pelas mulheres. Por outro lado, as
cabeleiras das crianças chamaram nossa atenção pelos diversos modelos de penteados
afros; se associavam, nesse aspecto, à protagonista com suas miçangas, tranças finas,
coloridas.
17
O avô, a avó, enquanto os mais velhos são, ainda, na hierarquia familiar, os guardiães
de princípios fundadores de saberes, deveres e responsabilidades a serem cumpridas.
Um exemplo disso no Brasil pode ser visto através da simbologia das Yalorixás e/ou
Babalorixás, guardiãs de sagrados segredos. São, portanto, as lideranças reverenciadas
nas comunidades religiosas de matrizes africanas.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

“E aqui está ela, com seu lindo vestido azul”.


Vovó Soukeye sabe de tudo. É o que mamãe sempre diz. Ela me
explicou que os mais velhos sabem mais porque viveram mais,
e por isso aprenderam mais. E, já que a vovó sabe tudo, eu lhe
pergunto por que meninas não podem usar tranças (DIOUF,
2004, p. 11).
É importante destacar, na fala da narradora-protagonista, a
associação avó = sabedoria, pois é quem “sabe tudo”. A justificativa
para isso é dada pela mãe: “os mais velhos sabem mais porque viveram
mais, e por isso aprenderam mais”18. Apesar de descontente com os tais
“birotes”, Bintou não transgride as regras locais, não pediu à irmã, nem
à avó, para fazer-lhe tranças. Ela sabe que ainda não pode tê-las, mas
busca descobrir o porquê disso, o que lhe é respondido através de uma
história, entre os afagos da avó, intermediados por seus relatos:
“Há muito tempo, existiu uma menina chamada Coumba que
só pensava no quanto era bonita. Todos a invejavam, e ela foi se
tornando uma menina vaidosa e egoísta. Foi nessa época, e por
isso, que as mães decidiram que as crianças não usariam tran-
ças, só birotes, porque assim elas ficariam mais interessadas em
fazer amigos, brincar e aprender (DIOUF, 2004, p. 11).19
Vovó me acaricia e diz “Querida Bintou, quando for mais velha,
você terá bastante tempo para a vaidade e para mostrar a todos
a bela mulher que você será. Mas, agora, querida, você ainda é
apenas uma criança. Poderá usar tranças no momento adequa-
do” (DIOUF, 2004, p.11).
Apesar dos afagos e da lição de moral da matriarca, não pode-
mos deixar de registrar, na narrativa, que prevalece a voz do adulto em
detrimento da criança, que deve escutar, aceitar e acatar as determi-
nações dos mais velhos, os detentores da sabedoria. Mas, embora em
silêncio, reprimida em seus intentos, sem voz e sem vez, em meio ao
discurso “adultocêntrico”, Bintou projeta o desejo para o único plano
possível de realizá-lo, de novo: o mundo dos sonhos. E o leitor pode
ficar na expectativa, na torcida de que a protagonista o realize.
18
Observemos que a mãe de Bintou não toca a questão de gênero, à avó, especificamente,
mas, sim, aos “mais velhos”. Fica patente, então, a importência dos “mais velhos” na
narrativa.
19
As aspas constam do texto.

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A avó, no entanto, enquanto mais velha, corresponde ao prin-


cípio africano, pois é quem acalenta, acolhe; é quem tem o poder da
palavra, do conhecimento/saber; é quem simboliza afetividade, beleza.
Ela “veste um lindo vestido azul” (p. 8) e esclarece a dúvida de Bintou,
que precisa aprender a respeitar as etapas da vida. Há uma tradição que
deve ser preservada, e a matriarca tenta ajudar a neta a compreender
isso por meio da oralidade, utilizando uma parábola como metáfora
para a sua vida.
Mais uma vez, a realização de Bintou se dá no mundo dos
sonhos, projetando-se no mundo adulto. No entanto, persiste o lúdico
expresso nas cores primárias, nas “conchinhas e pedras coloridas”, no
movimento da cabeça, no brilho do sol a seguir seus passos e a fazer
brilhar nessa intrincada rede dinâmica de ações e sensações, expressas
através da linguagem verbal e não verbal.
A narradora-protagonista relata: “Nessa noite, sonho que sou
mais velha, que tenho dezesseis anos e uso tranças com conchinhas e
pedras coloridas, quando balanço a cabeça, o sol me segue, e eu bri-
lho como uma rainha”. Mas, desalentada, esclarece a protagonista:
“Quando acordo, me olho no espelho. Ainda sou a Bintou com quatro
birotes na cabeça” (p. 12).
Na cena dos sonhos há a lua, à esquerda, simbolizando a noite
adormecida e, abaixo, a meiga criança, também adormecida, imersa em
lençóis e travesseiros, expressando calma, com seus quatro “birotes” na
cabeça (pp. 12-13). Ao centro, o sol, irradiando luz. Seu reflexo ressalta
a cor das frutas que estão nas mãos da jovem Bintou (no plano dos
sonhos), dentro de um grande cesto azul. Esta outra Bintou tem, final-
mente, as tranças enfeitadas com miçangas amarelas, harmonizadas
com a tonalidade do sol e do espaço em que está situada. Ela e o sol se
olham, como se estivessem confabulando. Ele a acompanha, à distân-
cia, e os seus traços desenhados: nariz, lábios e olhos se assemelham
à negra tez da jovem Bintou, que “brilhava como uma Rainha” (p. 12).
É como se pingos de sol reluzissem sob os fios das tranças.
É a primeira vez nas ilustrações que se esboça um riso no rosto da
meiga pequena. As dimensões de tons correspondem à diagramação da
página e sugerem sutileza e harmonia ambiental. Há contrastes entre os
dois planos narrados: um é o vivido, que nos traz a Bintou de “birotes”,

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

e, no outro, no plano imaginário, há a Bintou de tranças. Há, nesse


sentido, a inversão no título da obra As tranças de Bintou. Logo, de um
lado, temos a tradição africana20, Bintou criança associada aos birotes;
de outro, possível só no mundo dos sonhos, mas dentro dos ditames
locais, temos Bintou adolescente, com tranças.
Os dois planos na narrativa são ilustrados com cores distintas.
Em um há a vibração; no outro, a opacidade. Ou seja, trata-se de espa-
ços opostos, contrários, expressos pela disposição das cores. O azul
da noite, as cores frias, indicando estaticidade e monotonia; afinal, o
estado de Bintou não pode ser alterado na cena do real representado.
No entanto, no sonho, tudo se altera. Então, o sol se insurge, irradia
luz e predomina no ambiente. Reflete-se nas miçangas das tranças, nas
frutas amarelas e maduras que estão nas mãos da jovem, análoga à sua
fase (adolescente). Prevalecem os contrastes: sol/lua, cores frias/cores
quentes, estaticidade/dinamicidade. Assim, o sonho de Bintou funde-
se e exprime um único meio de ela obter o objeto de desejo, que é
crescendo.
Tendemos, portanto, a torcer pela realização da protagonista,
já que nossa condição é de ouvintes e confidentes a acompanhar o seu
dilema existencial. Bintou, assim, vai narrando os sonhos e nos cati-
vando. A roupa de Bintou permanece a mesma em toda a história e se
constitui como índice de sua identidade, pois se trata de uma criança, e
apenas ela, menina, permanece.
Situada no mundo dos adultos, Bintou estará sempre sozinha,
alheia, em um canto da página, muito embora se perceba sua integra-
ção social, as acolhidas familiares. E em tudo o que vê, “viaja” nas
tranças e percebe a impossibilidade de tê-las. É ela, ainda, a única
criança no mundo dos adultos, excetuando-se o novo irmão, de apenas
oito dias, que será batizado dentro de um ritual de iniciação (p. 18-19).
Este ocorre em um ambiente “cheio de gente, todos trajados com suas
melhores roupas”, relata a protagonista, à esquerda da página.

20
Ressaltamos que não estamos homogeneizando as tradições africanas, como se todas
elas estivessem representadas na obra. Inclusive, salientamos, de início, que na narra-
tiva não há a identificação do espaço social narrado. Sabemos, por outro lado, que tais
tradições são diversas, mesmo em um país; um exemplo disso consiste na variedade
linguística, nas maneiras diferentes de celebrar o casamento, entre outros tantos modos
de ser e celebrar a vida em comunidade.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

Na cena do batizado, é “o mais velho”, do gênero masculino,


quem lidera o “ritual”, o Serigne Mansour; é ele quem “anuncia a
todos” o nome de origem muçulmana da criança: Abdou. Tratando-se
da avó de Bintou, será ela de crucial importância na resolução do con-
flito da neta. Semelhante ao avô, ela é fundamental à preservação da
tradição local. Fica patente, mais uma vez, a importância dos “mais
velhos”, na narrativa. Podemos entrever, com isso, a noção de africa-
nidade desenvolvida por Siqueira (2006), na cena do ato ritualístico,
no qual é possível notar a organização sequencial do ato ritualístico: o
local, a natureza, as roupas, o anúncio do nome, a maneira de levantar
o bebê, as hierarquias e a alimentação, por exemplo. Toda a riqueza de
detalhes é narrada pelo aguçado olhar de Bintou e complementado pela
ilustração, sem deixar de realçar a admiração aos penteados diferencia-
dos e a desejá-los.
Com um ar de tristeza, distante da celebração, Bintou fica atrás
de uma “mangueira”, observando as mulheres mais velhas, atenta às
suas tranças e penteados e, por meio de sua percepção:
Fatou passou óleo perfumado em seus cabelos que os faz bri-
lhar e que ajuda a trançá-los apertados. As amigas de mamãe
usam franjas trançadas, com moedas de ouro na ponta. Dizem
que isso é para mostrar a nós, crianças, que nossos tataravôs,
que nunca conhecemos, penteavam o cabelo. As tranças de tia
Aida levaram três dias para serem feitas. São tantas, que nem
Maty, minha irmã mais velha, conseguiu contá-las (DIOUF,
2004, p.18).
Até aqui identificamos a composição da família de Bintou. Ela
se refere no texto aos seguintes familiares: a avó, Soukeye, o pai, a mãe
(sem identificação), duas irmãs: Fatou, e a mais velha, Maty; e uma tia,
Aida.
As ilustrações e o texto verbal evidenciam se tratar de uma
cerimônia, cujo status econômico dos personagens não é baixo, até por-
que o ouro é usado na ponta da “franja” das amigas da mãe de Bintou.
A simbologia aqui não é o consumo, ou o simples adereço, mas um
meio de preservar tradição, mostrando às crianças como seus “tatara-
vós” “penteavam o cabelo”. Isso indica o respeito e valor dos princípios
tradicionais e prescinde da mera ideia de consumismo e vaidade. Ou
seja, o ritual requer beleza, fartura, alegria, música, vitalidade, muito

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

colorido, interação comunitária. Os calçados não são sapatos altos, mas


sandálias (p. 19). Há adereços enfeitados de búzios em um tornozelo;
nos brincos da mãe de Bintou, pulseiras cor de ouro, e o tom amarelo
sobressai nas estampas coloridas, entre verde, vermelho e branco.
Através do texto não verbal, se expressa a integração com a
natureza, já que a parte posterior ao batizado ocorre sob uma árvore
frondosa, ao pé de uma mangueira. Só há mulheres nesse momento
da celebração, bastante enfeitadas em posição de diálogo. Prevalecem
tonalidades amarelas, tons verdes, nas folhas da mangueira e no vestido
da tia Aida. Observemos que há personagens com sandálias, roupas de
tons fortes, cujas cores são primárias, o que redimensiona o pulsar da
nova vida, que é celebrada em comunidade.
A cena seguinte apresenta um diálogo com a amiga de
“Mariama [...] que estuda na cidade” (p. 20-21). Essa informação sugere
que Bintou não mora na cidade e, sim, em uma comunidade, na zona
rural ou vila, o que é antecipado através da ilustração, nas primeiras
páginas da narrativa. Da jovem interessa-lhe as tranças. Surge, assim,
a alusão ao Brasil e a admiração às brasileiras, pela estética do cabelo
em seu relato:
A amiga dela [Mariama] não é daqui, eu deduzo por seu sotaque.
Quando lhe ofereço papaia, ela diz: “Eu me chamo Teresa e sou
brasileira”. Eu lhe perguntei se as garotas brasileiras usavam
tranças. “Muitas usam, e põem prendedores coloridos em cada
uma” (DIOUF, 2004, p. 21).
Diante dessa informação, Bintou conclui que “As brasileiras
devem ser lindas...”; Ou seja, a associação à beleza, no Brasil, é ressig-
nificada, associada ao segmento negro, aos seus fenótipos, no caso, o
cabelo crespo e trançado.
Há, a seguir, um trecho cuja sonoridade é suave, metamorfo-
seando a chuva pela reiteração sonora, ao se dizer: “As miçangas soam
como a chuva”. No entanto, lamenta a protagonista: “E tudo o que tenho
são quatro “birotes” sobre minha cabeça. É triste” (p. 21).
Outro meio de consolo da protagonista é a procura pelo sos-
sego; logo, se afasta de todos, pelo costume de andar “pela praia”
quando quer “ficar só”. Nesse instante vê dois “garotos acenando e

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gritando, pois a canoa deles está afundando”. Imediatamente, Bintou


analisa a situação e toma uma decisão:
Eu tenho de encontrar os pescadores, rápido, muito rápido.
O caminho até a vila é largo e plano. Mas irei mais rápido se eu
pegar atalho através da mata. Ninguém usa esse atalho porque
as plantas são espinhosas e as pedras, pontiagudas. Eu corro e
pulo o mais ligeiro que posso (DIOUF, 2004, p. 22).
Depois dessa ação, Bintou consegue levar “os pescadores até a
praia” e, assim, realiza um ato heroico, ajudando a salvar os dois garo-
tos. Desde então, passa a ser aclamada na vila.
Na vila, todos me rodeiam: tia Alimatou, a mãe de Bouba e de
Yaya traz biscoitos para mim. Mamãe me diz: “Você é uma me-
nina corajosa. Se tivesse escolhido o caminho mais fácil, teria
chegado tarde. Você salvou esses meninos. Por isso, vamos lhe
dar um prêmio. Diga-nos o que você deseja” (DIOUF, 2004, p.
24).
Diante das ações, sensações e relatos de Bintou, percebemos
que ela cumpre o papel comum aos heróis, se levarmos em conta alguns
elementos da narrativa abordados por Bourneuf e Ouellet (1976, p. 214-
221). Afinal, é ela quem pratica as principais ações na narrativa, quem
nos fala dos demais e, por meio da sua percepção, complementada pela
ilustração, visualizamos as cenas descritas; é quem expressa a carên-
cia e o objeto de desejo: as tranças. Bintou expressa os dilemas e se vê
impossibilitada de atingir o objetivo em virtude das forças opositoras,
que são as tradições locais marcadas por hierarquias inquestionáveis.
O clímax da narrativa se dá após a heroína salvar os dois jovens
e ser aclamada, presenteada por todos, devido a seu ato de coragem e
astúcia. Logo, ganha a admiração, sai do anonimato, dos escanteios e
é ilustrada no centro da cena. Bintou, elevada a uma princesa, executa
a ação de salvaguardar a harmonia da comunidade, diante da ação que
praticara.
A ação de Bintou a aproxima da função heroica estudada por
Propp (1984, p. 81). Afinal, ela parte de uma carência (as tranças), exe-
cuta uma ação (salvar dois jovens), utilizando-se da astúcia, correndo
riscos, pois escolhe o “atalho” que ninguém usa, “porque as plantas são
espinhosas e as pedras, pontiagudas” (p. 22). Assim, por seus próprios

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

atos, torna-se digna de obter o objeto de desejo, pois sua agilidade, ao


correr e desafiar os perigos locais, a coloca à altura dos heróis. Podemos
entrever, também, um indício de possível mudança na trajetória da pro-
tagonista. E a irmã é quem intervém, ao comunicar aos presentes o que
ela, de fato, deseja:
Antes que eu possa falar, Fatou diz: “Ela sonha com tranças”.
Mamãe acaricia meu cabelo, do qual só restavam dois birotes. Os laços
que prendiam os outros dois se soltaram enquanto eu corria pela mata.
“Então você terá suas tranças”, garante a mãe (DIOUF, 2004,
p. 24).
Ao nos reportarmos ao estudo morfológico dos contos mara-
vilhosos realizado por Propp (1984), no que se refere não às ações
invariáveis, mas às variáveis, ou seja, os atributos das personagens,
podemos traçar o perfil de Bintou. Antes, porém, gostaríamos de salien-
tar que, para Propp (1984, p. 84), “o estudo dos atributos das persona-
gens” é “extraordinariamente importante” e corresponde ao “conjunto
de qualidades externas das personagens: idade, sexo, situação, aspecto
exterior com suas particularidades”. Embora fazendo tal ressalva, tais
atributos não foram o cerne da sua pesquisa, que privilegiou as esferas
de ações invariáveis nos referidos contos. Dentre estas destacou sete
funções. São elas: o antagonista, o doador, o auxiliar, a princesa, o
mandante, o herói e o falso herói.
Se algumas das esferas de ações denominadas por Propp
(1984) podem nos auxiliar no presente estudo, por outro lado não pode-
mos encerrá-lo nessa abordagem estruturalista, visto que As tranças de
Bintou não corresponde às narrativas do universo maravilhoso tal qual
nos contos estudados pelo morfologista russo. É uma obra que se situa
entre as narrativas realistas.
Enquanto heroína, Bintou, a narradora-protagonista, executa
uma ação que salvaguarda a paz social da comunidade em que se
encontra situada. Ela coloca-se em riscos, vence o desafio e é aclamada
pelos demais personagens, como vimos. Conquista, por suas ações, o
objeto de desejo. É, no entanto, uma heroína moderna, que não conta
com a intervenção de seres mágicos para lidar com a adversidade. Ágil
que é, Bintou corre, recorre aos mais velhos, pois eles têm os meios de
salvar os jovens. Mas é a sua agilidade que possibilita tal ato, aliada

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ao poder da palavra proferida (pede socorro), da observação e da sua


atuação em cena; assim, evita um acontecimento trágico na região.
Embora já tenhamos nos referido a alguns atributos de Bintou,
destacamos os seguintes: Bintou é negra, sonhadora, tem “cabelo curto
e crespo”, para ela, “bobo e sem graça”, pois tem que usar “quatro biro-
tes na cabeça”. É tímida, costuma ficar sozinha, é observadora, gentil
oferece “papaia” à brasileira, Tereza, negra com suas longas tranças.
Bintou é astuta, ágil e, como diz a mãe, é “muito corajosa” (p.
24). Chega a noite, a agora heroína, aclamada por todos, dorme e, em
sonho, alcança o objetivo: ter tranças. As ilustrações dessa cena deixam
entrever serenidade. A lua adormece, e é como se ambas estivessem em
um sono profundo.
Ela é a moça com tranças coloridas e amarelas. Do alto, em
outra dimensão, o sol nasce expressando o alvorecer. Interessante que
o sol sempre a segue, a acompanha, tornando-se uma companhia cons-
tante. Ele reluz, para de segui-la, mas dos seus raios resplandece um
brilho que se reflete “nas penas dos pássaros e no belo cabelo onde eles
se aninham” (p. 27). A cena que segue é muito importante, pois, nela,
se reitera a relação afetiva entre a avó e a neta (p.29).
De manhã, vovó Soukeye me chama em seu quarto. Ela me diz
para sentar no chão, entre suas pernas. Ela passa um óleo per-
fumado em meu cabelo. “Você é uma menina muito especial”,
sussurra. “Seu cabelo será tão especial quanto você.” Eu conto
a ela que tia Awa estava vindo para fazer tranças no meu cabelo.
Mas ela diz: “Quieta”. Sinto seus dedos rápidos e rasteiros, pa-
rece que ela está fazendo “birotes”. Quando termina, não tenho
coragem de olhar para o espelho que ela segura à minha frente.
Vovó pede: “Abra seus olhos, querida Bintou”. É quando vejo
pássaros amarelos e azuis em meu cabelo. Foi-se a menina sem graça
com quatro “birotes” na cabeça. No espelho, aparece uma garota com
um lindo cabelo olhando para mim (DIOUF, 2004, p. 29).
A relação entre o texto verbal e o não verbal evidencia o res-
peito de Bintou pela avó, pois a obedece, e diz que a “tia Awa” lhe fará
tranças. No entanto, a matriarca vai cativando a neta e esta, receosa
que lhe fizesse os “birotes”, por fim se surpreende. Ocorre, assim, a
resolução do conflito, quando a protagonista ganha coragem, olha-se

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

no espelho e gosta do próprio reflexo. Dá-se, desse modo, o processo


de autoaceitação, de autoidentificação e admiração.
Na última cena, Bintou e o sol que a acompanha se entreo-
lham, em uma mesma perspectiva, como se estivessem em diálogos
constantes, quando ela se sente feliz. É como se ambos se realizassem,
compactuando o momento de aceitação e luminosidade da narradora-
-protagonista. Aparecem pássaros voando e outros a seguindo. De seus
braços, a pulseirinha branca, de búzios, se destaca desde o início da
narrativa. Só que ela, agora, se afirma admirada:
Eu sou Bintou. Meu cabelo é negro e brilhante.
Meu cabelo é macio e bonito. Eu sou a menina dos pássaros no
cabelo.
O sol me segue e estou muito feliz (DIOUF, 2004, p. 30).
Eis a Bintou que aflora e brilha, tal qual o sol que a acom-
panha. Se preservaram as tradições locais, evidenciando a sua imuta-
bilidade, visto que a protagonista não as transgrediu, permanecendo
com os “birotes”, enfeitados, a destacar a beleza não só das tranças
afro como, também, do penteado por ela utilizado. Assim, a fase lúdica
infantil, constituída de colorido, miçangas e aves, expressão de liber-
dade e movimento, é associada ao belo das tranças de Bintou.

5. CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS

Em suma, a narrativa, cujo espaço social é africano, não em


um passado remoto, tampouco no período escravagista, mas, na con-
temporaneidade, pode ser visualizada em “As tranças de Bintou”,
de Diouf (2004), obra traduzida no Brasil. Nesta, não há alusão aos
grandes feitos de lideranças negras, nem à fundação de determinadas
civilizações africanas; também não é possível identificar em qual país
ocorre o fato narrado.
Se levarmos em conta um estudo realizado por Conceição
Evaristo acerca de obras literárias que inovam o cenário literário, não
se limitando ao eurocentrismo podemos asseverar que As tranças de
Bintou rasura o sistema literário, cujo padrão realçado foi, sobretudo,
branco (cor da tez, cabelos etc.). A narrativa, portanto, valoriza, atribui

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

sentidos positivos a algo negado em nossa sociedade brasileira, que são


os cabelos crespos, um dos grandes motivos de gozação e depreciação
de boa parte das crianças negras nas escolas. Na narrativa, por outro
lado, não há um padrão a ser seguido, mas, tão somente a sugestão de
uma beleza que faz a diferença sem ser associada à feiura e/ou infe-
riorização. Essa é, sem sombra de dúvida, uma contribuição singu-
lar da obra, além de toda a sua contextura artística, por meio da qual
se entrelaça a linguagem verbal e a não verbal, sendo que ambas se
complementam.
As tranças de Bintou é, sobretudo, um livro que desafia à
releitura, tendendo a despertar o interesse tanto das crianças negras
quanto brancas. A ampla simbologia e riqueza, impressas na linguagem
verbal e não verbal, são impossíveis de se apreender completamente.
Além do mais, a narrativa rompe com o padrão meramente eurocêntrico,
no que se refere à cor da tez e aos cabelos.
O que está em foco em As tranças de Bintou é a beleza negra,
normalmente preterida em boa parte da nossa literatura infantojuvenil.
Compreendemos, com isso, que a noção de belo na obra transcende
as fronteiras do continente africano e dialoga com outras crianças da
diáspora, com suas tranças, miçangas, dilemas sociais e existenciais.
Por ser a sala de aula o espaço das singularidades, e não da
igualdade, como se tende a acreditar, em prol dessa pretensa visão,
se costuma sufocar e homogeneizar as diferenças. Por isso é muito
importante priorizar obras literárias que abranjam as diversidades
étnico-raciais, culturais, sociais etc. Ao priorizá-las, é fundamental não
esquecermos que não são alheias às injunções do tempo. Portanto, os
seres ficcionais e/ou o eu poético remetem a determinados segmentos
(re)criados por meio da linguagem verbal e não verbal.
Para incluir os segmentos preteridos, faz-se necessário, a
prori, conhecer a trajetória histórica da literatura infantojuvenil bra-
sileira, observando as reiterações e mudanças no tocante aos papéis
atribuídos aos personagens negros ao longo do tempo, já que as inova-
ções não surgem do nada, menos ainda de uma hora para outra. Há todo
um processo que precisa ser reconhecido, de modo a identificarmos
se persiste a reprodução de estereótipos negativos, face aos segmentos

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

étnico-raciais, e/ou se há a ruptura e ressignificação. E isso implica


leitura, atualização constante na área21.
Um meio de acompanharmos as atualizações é a consulta aos
catálogos das editoras. Melhor ainda é acessar os sites específicos, as
divulgadores da área, as quais tendem a priorizar as obras menos sus-
ceptíveis ao racismo. Dentre os sites, destacamos o da Kitabu livraria,
da Mazza Edições, Editora Selo Negro e as divulgadoras. Para subsidiar
as informações pertinentes à área, contamos com dois livros recentes,
a título de sugestões22. São eles: Literatura afro-brasileira, organizado
por Florentina Souza e Maria Nazaré Lima (2006), no qual consta
um artigo voltado para a literatura infantojuvenil. Sugerimos, ainda,
o livro intitulado Literatura negra, de Conceição Evaristo (2006), no
qual a autora faz uma síntese da história dos personagens negros na
produção literária brasileira, desde o Barroco à contemporaneidade.
A partir daí podemos nos deter sobre as obras infanto-juvenis com um
senso crítico mais aguçado. Importante também é a relação de poesias
constante do livro.
Além dos livros aqui relacionados, contamos com outras pro-
duções que enfocam a produção africana. Dois deles são: o Ensaio
sobre a literatura infantil de Angola e Moçambique: entre fábulas e
alegorias, organizado por Carmem Lúcia Tindó Secco (2007). Outro
recente é Literaturas africanas e afro-brasileiras na prática pedagó-
gica, organizado por organizado por Iris Amâncio (2007) que, mesmo
não abordando as produções destinadas às crianças e aos jovens, pode
servir como referencia, um ponto de partida para nortear ativida-
des correlatas. No mais, precisamos garimpar, selecionar e divulgar,
aguçando nosso olhar face à atuação com a literatura infantojuvenil,
nesses entrelaces antigos com os personagens agora, mais associados
às relações etnicorraciais, após a obrigatoriedade de atuarmos com o
ensino da história e cultura afro-brasileira e africana na em todas as
áreas, principalmente em História, Literatura e Educação Artística (Lei
10.639/03).
Que a área de Letras, pouco afeita às temáticas em foco em sua
trajetória, ocupe esse papel fundamental de aprofundar mais estudos
21
A esse respeito consultar os estudos de Souza (2005), Oliveira (2003, 2010),
22
Entre outros que constam dos anexos.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

através das respectivas instituições de Ensino Superior, deixando


legados profícuos aos profissionais que se encontram, grosso modo,
despreparados para abordar as literaturas africanas; afro-brasileiras e/
ou negro-brasileiras23 e indígenas. As veredas prosseguem, portanto,
entreabertas.

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23
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Cuti (2010).

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tojuvenil brasileira e moçambicana (2000 – 2007): entrelaçadas vozes tecendo
negritudes. Tese (Doutoramento em Letras). Departamento em Letras, UFPB,
João Pessoa, 2010.
PINHEIRO, Hélder (Org). Pesquisa em Literatura. Campina Grande:
Bagagem, 2003.
PINHEIRO, Hélder. “Teoria da literatura, crítica literária e ensino”. In.
PINHEIRO, Hélder e NÓBREGA, Marta (Org.). Teoria literatura: da crítica à
sala de aula. Campina Grande: Bagagem, 2006. (p-111-126).
PIZA, Edith. O caminho das águas: estereótipos de personagens negras por
escritoras brancas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Com-
arte, 1998.
PROENÇA FILHO, Domício. A trajetória do negro na Literatura Brasileira.
São Paulo: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1997,
p.159-177.
PROPP, Vladimir. Morfologia do conto maravilhoso. Tradução Jasna P.
Sarhan. Rio de Janeiro: Florence Universitária, 1984.
RIBEIRO, Jonas. Ouvidos dourados: a arte de ouvir histórias (... para depois
contá-las...). São Paulo: Ave Maria,1999.

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

ROSEMBERG, Fúlvia. Literatura Infantil e ideologia. São Paulo: Global,


1985.
SARAIVA, Juracy Assmann. “Critérios para a análise e seleção de textos de
literatura infantil”. In: SARAIVA, Juracy Assmann. Literatura e alfabetiza-
ção: do plano do choro ao plano da ação. Porto Alegre: Artmed, 2001.
SIQUEIRA, Maria de Lourdes. Siyavuna: uma visão africana do mundo.
Salvador: Autora, 2006.
SOUSA, Andréia L. de. “Personagens negros na literatura infantojuvenil:
rompendo estereótipos”. In. CAVALEIRO, Eliane (Org.) Racismo e anti-
-racismo na educação: repensando nossa escola. São Paulo: Summus, 2001.
___________________. “A representação da personagem feminina negra
na literatura infantojuvenil brasileira”. In. Educação antirracista: cami-
nhos abertos pela Lei Federal no. 10.639/03. Brasília, MEC/SECAD, 2005,
pp.105-120.
SOUZA, Florentina da S. Afro-descendência em Cadernos Negros e Jornal
do MNU. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
SOUZA, Florentina da Silva; LIMA, Maria Nazaré (Org.). Literatura afro
-brasileira. CEAFRO/Fundação Cultural Palmares: Salvador, 2006.
TURCHI, Maria Zaira. “O estético e o lúdico na literatura infantil”. In:
CECANTINI, João Luís C. T (Org.). Leitura e Literatura Infantojuvenil:
memória de Gramado. São Paulo: Cultura Acadêmica, Assis, ANEP: 2004.
VENANCIO, Ana C. Lopes. Literatura infantojuvenil e diversidade. 2009
(Mestrado em Educação). Departamento de Educação, UFPR, Curitiba.
ZILBERMAN, R. e Magalhães, Ligia Cademartori. Literatura infantil: auto-
ritarismo e emancipação. São Paulo: Ática, 1982.
ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 1987.

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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino

ANEXO

(sugestão de obras literárias para a área das relações étnico-raciais)24


ALMEIDA, Gercilga de. Bruna e a Galinha d’Angola. Rio de Janeiro: Palias, 2000.
ANDRADE, Inaldete Pinheiro de. Cinco cantigas para você contar. Produção
Alternativa, 1989.
ANDRADE, Inaldete Pinheiro de. Pai Adão, era nagô. Produção
Alternativa: Rio de Janeiro, 1989.
BRAZ, J. E. Pretinha, eu? São Paulo: Scipione, 1998.
CARUSO, C. Kamazú, o curandeiro. São Paulo: Ave Maria, 2001.
CHAIB, Lidia e RODRIGUES, Elizabeth. Ogum, o rei de muitas faces e
outras histórias de Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
COOKE, Trish. Tanto, tanto!. São Paulo: Ática, 1994.
DIOUF, S. A. As tranças de Bintou. São Paulo: Cosac & Naif, 2004.
GODOY, C. Ana e Ana. São Paulo: DCL, 2003.
GOMES, Nilma Lino. Betina. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2009.
GUIMARÃES, Geny. A cor da ternura. São Paulo: FTD, 1998.
LESTER, Julius. Que mundo maravilhoso. São Paulo: Brinque-Book, 2000.
LIMA, Heloisa P. A semente que veio da África. São Paulo: Salamandra, 2005.
LIMA, Heloísa P. Histórias da preta. São Paulo: Companhia das Letrinhas,
1998.
LIMA, Heloisa P. O espelho dourado. São Paulo: Peirópolis, 2003.
LIMA, Heloisa Pires. Lendas da África Moderna. São Paulo: Elementar, 2010.
MACEDO, Aroldo. Luana, a menina que viu o Brasil neném. São Paulo: FTD.
MACHADO, Vanda & PETROVICH, Carlos. Ilê Ifé, o sonho do Iaô Afonjá.
Salvador: EDUFBA, 2002.

24
Essa relação encontra-se ampliada e se encontra acessível no seguinte site:
ht t p:// bdtd.biblioteca.uf pb.br/tde_busca /arquivo.php?cod A rquivo=1610.
Sugerimos, ainda, os seguintes sites:
1) www.quilombhoje.com.br ;
2) http://www.letras.ufmg.br/literafro/;
3) http://kitabulivraria.wordpress.com/

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Literatura e ensino: reflexões e propostas

MANJATE, Rogério. O coelho que fugiu da história. São Paulo: Ática, 2009.
MARQUES, Francisco. Ilê Aiê: um diário imaginário. Belo Horizonte: MG,
Formato, 1994.
MARTINS, Georgina. Fica comigo. São Paulo: DCL, 2001.
OLIVEIRA, Kiusam de. Omo-Oba: Histórias de princesas. Belo Horizonte:
Mazza , 2009.
PESSOA, R. Contos Afro-Brasileiros. Recife: Prefeitura Municipal/Secretaria
de Educação: 2006.
PESTANA, Maurício. Lendas de orixás para crianças. Ministério da Cultura,
Fundação Cultural Palmares, 1996.
RIBEIRO, Jonas. 7 aventureiros e a guerra de travesseiros. São Paulo:
Salesiana, 2005.
SANTANA, Patrícia. Entremeio sem babado. Belo Horizonte: Mazza, 2007.

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