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A ética do cachorro
Reportagem Quando eles se comportam mal ou acidentalmente machucam um companheiro de brincadeiras, logo procuram se
desculpar, exatamente como faria um ser humano bem-educado
maio de 2010
Todos que convivem com cães sabem: eles aprendem as regras da casa que os acolhe e © SHARON MONTROSE/THE IMAGE BANK/GETTY IMAGES
quando quebram alguma norma expressam fisicamente o arrependimento alguns se
escondem e cobrem os olhos, outros se abaixam ou arrastam-se pelo chão, num gesto
geralmente gracioso o bastante para garantir o rápido perdão dos donos. Porém, poucas
pessoas param para se perguntar por que esses animais têm um senso tão aguçado de
certo e errado. Estudos recentes mostram que canídeos (animais da família dos cachorros,
como raposas e lobos) seguem um código estrito de conduta ao brincar, ensinando aos
filhotes as regras de engajamento social que permitem a manutenção de sociedades bem-
sucedidas.
Os chimpanzés e os outros primatas que não o ser humano são notícia nos jornais quando
os pesquisadores, usando a lógica, procuram nesses parentes mais próximos do homem
traços semelhantes aos nossos – e descobrem evidências de seu senso de justiça. Nosso
trabalho, entretanto, sugere que as sociedades canídeas selvagens podem ser as
melhores análogas aos grupos de hominídeos primitivos: ao estudarmos cachorros, lobos
e coiotes descobrimos comportamentos que nos remetem às raízes dos valores éticos
humanos.
Podemos definir a moralidade como um conjunto de comportamentos inter-relacionados
em deferência aos outros, que tem por finalidade desenvolver e regular as interações
entre os indivíduos. Atitudes como altruísmo, tolerância, disponibilidade para o perdão e a
empatia, bem como a noção de justiça, ficam evidenciadas rapidamente na forma
igualitária com que os animais da família dos cachorros brincam entre si. Nessas situações,
os lobos e os coiotes adultos, por exemplo, seguem um código estrito de conduta.
Quando os canídeos e os
outros animais se divertem
juntos adotam
comportamentos como
morder com força, montar
em cima do outro, chocar os
corpos – ações que podem
ser facilmente interpretadas
de forma equivocada pelos
participantes. Porém, anos
de análises feitas por um de
nós (Bekoff) mostraram que
esses indivíduos negociam
cuidadosamente a
brincadeira, seguindo quatro
regras gerais para impedir que a atividade lúdica se transforme em briga.
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15/07/13 A ética do cachorro | Mente e Cérebro | Duetto Editorial
quero brincar” fique bem claro). Mesmo quando um animal sinaliza a predisposição para
brincar com uma inclinação da cabeça e prossegue com ações aparentemente agressivas,
como mostrar os dentes, rosnar ou morder, seus companheiros demonstram submissão ou
fuga apenas em 15% dos casos, sugerindo que eles confiam no recado de
que qualquer coisa que se siga não será arriscada. A confiança na comunicação
honesta do outro é essencial para o bom funcionamento do grupo.
As crianças também se comportam dessa forma ao brincar, por exemplo, intercalando os Comunicação direta e sem subterfúgios: princípio central da sociedade
canídea
papéis de vencedores numa simulação de luta. Ao manterem as coisas justas dessa forma,
todos os membros do grupo se aproximam uns dos outros, participam de atividades
descontraídas e, ao mesmo tempo, constroem laços – o que faz com que o grupo permaneça coeso e forte.
4. Seja honesto.
Tanto um pedido de desculpa como um convite para brincar devem ser sinceros; os
indivíduos que continuam a brincar de forma desleal ou a enviar sinais desonestos
rapidamente serão excluídos pelo grupo. E isso traz consequências bem mais graves que a
simples redução do tempo de diversão. A extensa pesquisa de campo de um dos autores
(Bekoff) mostra, por exemplo, que os coiotes jovens que não brincam de forma adequada
com frequência acabam deixando sua matilha e têm probabilidade quatro vezes maior de
morrer que os indivíduos que permanecem com os outros.
Ao longo dos séculos, os animais sempre estiveram próximos do homem participando de atividades de caça, tração, locomoção, pastoreio, guarda e
companhia. Esses vínculos com bichos de estimação transformaram tanto o estilo de vida das pessoas quanto os hábitos dos bichos (embora na maior
parte das vezes eles sejam vítimas do ser humano). Nas últimas décadas, porém, surgiu um dado novo: o crescente interesse científico pelo estudo do
potencial terapêutico dessa interação. Várias possibilidades de intervenção com a participação de animais têm aberto perspectivas de uso de recursos
terapêuticos auxiliares para os profissionais da saúde e da educação. Atualmente, muitos reconhecem que em geral os cães reúnem características que
facilitam a aproximação com pacientes, como disponibilidade para oferecer carinho, o que desperta o afeto nos seres humanos e instiga o desejo de
cuidar do outro – ainda que esse outro seja um cão.
O primeiro relato da participação de animais em tratamento de saúde na sociedade ocidental contemporânea é do final do século XVIII , na Inglaterra.
O Retiro de York, instituição psiquiátrica que empregava métodos terapêuticos considerados mais humanos para a época, mantinha coelhos, gaivotas,
falcões e aves domésticas nos pátios e jardins frequentados pelos pacientes. Essas criaturas eram, geralmente, muito familiares, e acredita-se que,
muito mais que um prazer inocente, despertavam sentimentos de sociabilidade e benevolência nos internos.
No século XIX houve um grande crescimento da participação de animais nas instituições mentais de vários países. Mais tarde, quando os primeiros
textos científicos começaram a ser publicados, tal prática já não era tão rara. Em 1944, James Bossard escreveu um artigo sobre o papel dos animais
domésticos na família, em especial para crianças pequenas. Mas foi na década de 60 que o psicólogo americano Boris M. Levinson iniciou uma série de
estudos de situações clínicas nas quais a presença do animal era fundamental no processo terapêutico. Um cachorro, por exemplo, poderia satisfazer a
necessidade humana de lealdade, confiança e obediência. A relação da criança com o animal permite nuances num nível intermediário, que diferem das
interações estabelecidas com pessoas e objetos inanimados.
Afinal, ainda nos primeiros anos é possível perceber que brinquedos não podem dividir sentimentos, pois não são vivos, não crescem nem respondem.
Segundo Levinson, “diferentemente da relação que estabelece com a boneca, a criança pode conceber o animal como parte de si mesma, de sua
família, capaz de passar pelas mesmas experiências que vive”. Esse relacionamento oferece aos pequenos a possibilidade de se expressar com mais
liberdade.
Posteriormente aos estudos de Levinson, merecem destaque as pesquisas dos psiquiatras Samuel e Elizabeth Corson. Na década de 80, eles usaram
cães na psicoterapia em instituições psiquiátricas. A experiência foi realizada com 50 pacientes com alto grau de introversão que não respondiam ao
tratamento convencional e relutavam em estabelecer contatos. Apenas três deles não apresentaram melhoras em seu estado clínico. Os demais
desenvolveram, gradualmente, desejo de independência, sentimentos de autoestima e senso de responsabilidade. (Por Sabine Althussen, mestre em
psicologia clínica pela USP)
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