Há dezesseis anos, em 79, o diretor de cinema e teatro (e meu amigo) Ruy
Guerra estava hospedado na minha casa e a minha mulher com uma dor de cabeça que Doríl nenhum fazia sumir. Ruy é de Moçambique, na África. Receitou o "remédio" usado pelos negros contra essas dores. Cheirar barbante queimado. Eu explico. Pega-se um barbante - desses normais - coloca-se fogo na ponta. Pega fogo, é claro, pois é de algodão. Aí você dá uma assopradinha de leve e fica apenas aquela pontinha vermelha fumegante. Você aproxima a fumacinha numa narina - tapando a outra - e aspira três vezes. Depois faz o mesmo na outra. Não sei se dilata o que estava comprimido dentro da cabeça ou se comprime o que estava dilatado. O que sei é que o resultado é instantâneo. Se, na primeira cafungada não der certo, repete-se a dose. O que eu posso garantir, por várias experiências próprias e de amigos, é que a dor some mesmo. Se, depois de alguns segundos, voltar, aplica-se o mesmo método. É infalível. Quem já cheirou sabe disso. Só que para os iniciantes no tratamento dá um, digamos, baratinho. Você fica um pouco tonto com a experiência. Mas logo passa, assim como a dor. Não sei o que os médicos, ao lerem aqui esse milenar tratamento africano, vão pensar de mim. Principalmente esse negócio de dar um baratinho. Você sabe que tudo que dá barato no Brasil é logo proibido. Nada é barato neste país, impunemente. Mas, se a moda pega, você vai poder chegar num bar, pedir uma cervejinha e um barbante. E ficar ali, cheirando. E o garçom vai perguntar: - Barbante para todo mundo? - Como é a dose? Temos de 5, 10 e 15 centímetros. - Tá bem servido. Dá um de 10 que a gente cheira em quatro. Claro que vão surgir barbantes "fracos", falsificados no Paraguai. Os americanos vão logo fazer maços com barbantes, como fazem com os cigarros. Vão começar a colocar sabor de menta, filtro branco, long size, etc. E o Ministério da Saúde vai colocar um aviso: O Ministério da Saúde adverte: Cheirar barbante é prejudicial à saúde. Ou: Não cheire barbante na frente das crianças. Grávidas não devem cheirar. Vão logo proibir a venda de barbante para menores de idade, que são os que mais têm dor de cabeça na hora de decidir uma profissão. Ao viajar, o marido, vendo a mulher fazer a mala, vai logo perguntar: - Colocou cueca? Meia? Camiseta? Pijama? E barbante, tá levando quanto? - Um rolo... - Do fino ou do grosso? - Do grosso, é claro. Isso é que é esposa, o resto faz tricô, que dá outro tipo de barato. Será que passa na alfândega de Miami? E, com todo mundo cheirando barbante e sem dor de cabeça, o governo vai começar a se preocupar. Como pode um povo, que vive nas condições que vivemos, viver sem dor de cabeça? Vão proibir o barbante, é claro. A venda será controlada. Tarja preta, apenas com receitas de psiquiatras, com carimbo e firma reconhecida. Vendedores de armarinhos serão subornados, evidentemente. Mas, é claro, vão surgir logo os traficantes de barbante. As apreensões. As autoridades vão cismar com o barbantinho do chaveiro, ali disfarçado. Detido polonês em Viracopos com 2 metros e meio de barbantes. Levava para a Dinamarca. Vai haver queimada de barbantes. A população vai ficar por perto vendo e tentando pegar uma fumacinha no ar. Presentes serão embrulhados com barbantes de plástico, até que os meninos descubram, na rua, que o plástico dá mais barato que o esmalte. Suprimam-se então os barbantes. E as cordas. Nada de cordas. Sim, porque os grandes viciados já estarão cheirando cordas de duas polegadas de largura. O enforcado poderá pedir, como último desejo, uma cheiradinha, ali mesmo, na forca. O Natal em família, com tantos presentes, será uma orgia. Velhinhas tontinhas, netinhos rolando pelo chão. Amigos secretos distribuirão barbantes secretíssimos. Andar com barbante na bolsa será crime inafiançável. Fernando Cardoso dirá que já cheirou, mas não bateu. Clinton pedirá barbantes ao Brasil. Alíquotas de 32 por cento. Menem brigará com o Brasil porque não estamos mais importando barbante argentino. O cartel de Cali produzirá barbantes. As favelas do Rio terão a guerra do barbante. O Exército irá intervir. Muita gente morrerá. Mas sempre haverá um jeito de arrumar barbante: - É do bom, veio de Moçambique. E é claro que, um dia, um navio vai jogar no mar latas e mais latas enroladas com barbante. Vão bater nas praias brasileiras. E quem achar vai se orgulhar: - Esse é da lata! Dá só uma fumegada que bate. Seria tão bom que a gente não tivesse mais dor de cabeça. Um dia, ainda chegaremos lá. Mesmo que o governo advirta que não ter dor de cabeça é prejudicial à saúde