Você está na página 1de 18

[

Marco; Bogno é Doutor em linguo Portugueso pela Universidade de MARCOS BAGNO


Sào Poulo, poeta, tradutor e cantisto premiada. Tem diversos livras dedicodos
ao publico infantil e juvenil, alguns dos quais considerados "Altomente
Recomendéveis" pela Fundaçào Nacionol da livra lnfontil e Juvenil.

Obras do Autor:
A invençào dos haras {con/os}, Ed. Scipione, 1988
(IV Prêmio Bienal Nesllé de Literatura Brasileira)
DramitiEa Ela
Ifntua pertuguesa
0 pape/ roxo do maçô (inlantil), Ed. l.ê, 1989
(Prêmio "Jaào de Barro" de literatura lnfontil)
Um céu azul para Clementina (infantill, Ed. Lê, lct91

Frevo, amor & graviola (juvenil), Ed. Atual, 1991

Amor, amora (juvenil), Ed. Bagaço, 1992


Tradiçao Gramatical, Mzdia & Exclusao Social
Os nomes do amor (juvenil) (co-autaria corn Stela Maris Rezende),
Ediloro Maderna, 1993
A vingariça da cobra (juvenil), Ed. Âlica, 1995

/17 �Aft
Dio de branco ljuvenil), Ed. Lê, 1995

Miguel, o cravo & a rosa (infontil), Ed. Lê, 1995


Rua da Soledade (contas), Ed. Lê, 1995 (Prêinio Estado do Parané 1989)

A barca de Zoé (infantil), Ed. Formata, 1995

t i/4 t�.
f. V
Mirabilia (contas), Editora Didética Pauliste, 1996

Uma v,ï6ria diferente (juvenil), Ed. Lê, 1997

Unhas de ferro (juvenil), Ed. Lê, 1997


,LÊ CÔP!Ai
N" CÔPIA�:...f
1.e, /< r-"' �-
A Ungua de Eulalia (novela sociolingüislica), Ed. Contexto, 1997

�· PASTA. · ')._
r

f1
! Pesquisa na escola - o que é, coma se faz, Ed. Loyola, 1998

_ � J/0-µ
Machado de Assis para principianles, Ed. Atico, 1998
J�
.,,- {
Preconceilo lingüfstico - o que é, coma se foz, Ed. Loyola, 1999

Minimirim e a plane/a que encolheu (infantil), Ed. Îcone, 2000


vts� lRt'//t1--
0 Processo de lndependência do Brasil, Ed. Âlica, 2000 Edlf6es Loyola
Dram6fica da lingue porluguesa

A Sociolingüfstica me foi apresentada, corn amor quase apost6lico,


por STELLA MARIS BoRTONI•RICARDO, quando, iniciando meus estudos
universitarios, ela fez eu descobrir que ja existia uma ciência dedicada ao
estudo das relaçôes entre ifngua e sociedade e que eu, felizmente, nao pre­
cisava inventar. Mais recentemente, a retomada do intercâmbio de idéias,
em que tive muito mais a receber do que a dar, me revelou uma cientista
sempre inquieta, em constante progresso intelectual e, sobretudo, disposta
a partilhar dadivosamente suas descobertas. Gram6tica Tradicional
A MANOEL LUIZ GONÇALVES CORRÊA agradeço sugestôes de leitura,
observaçôes te6ricas, crfticas hem fundadas, advertências indispensaveis e e senso comum
tudo quanfo mais se abriga sob o teto generoso da amizade.
Quero deixar registrada minha profunda gratidâo a JosÉ Lmz FIORIN,
MARILZA DE ÜLIVEIRA, MILTON DO NASCIMENTO e a ÂNGELA CECÏLIA DE
SouzA RODRIGUES pelas instigantes observaçôes que me levaram a recon­
siderar muito do que havia escrito nas versôes preliminares deste trabalho.
Agradeço a DINO PRETI, do Projeto NuRc de Sâo Paulo, e a MARIA DA
PIEDADE MoREIRA DE SA (outro amor definitivo), do Projeto NuRc do
Recife, o acesso ao material que entrou na formaçao do corpus analisado
neste trabalho.
Foi fondamental a ajuda oferecida por IRANDÉ ANTUNES, ÉsIO MAcEDO 1.1 GRAMÂTICA TRADICIONAL, GRAMÂTICA NORMATIVA
RIBEIRO, L OURENÇO CHACON e MARCOS MARCIONILO na obtençao de arti­ E PRECONCEITO LINGÜiSTICO
gos, teses e livros importantes para o empreendimento da pesquisa.
0 preconceito lingüfstico, acredito, manifesta (em suas diversas formas,
nas distintas faces que assume) a ideologia cristalizada ha séculos na Grama­
Marcos Bagno tica Tradicional (GT) e materializada, por assim dizer, no gênero literario
www.marcosbagno.com.br
conhecido como gramatica normativa (GN). Fa a distinçao entre Gramatica
7:radicional e gr11mfiti@nQ1EU1tj�Q.QQ.lJ!n!!..IJl�t�{oJ,â silllpJes_�ll� �.i.�i­
nal:_i]. GT é a "ahni' de l\m "coœo" chamado_gra�tic_anonng�.t��:,,.AQT é
9.."esp_f_r,�i9��d!)]:!�ptalidade", a "doutrina" (a i<Jeologig)__gg� da ale�.91,.;'.��.?r
e ex-sistentia ao "ser", ao "objeto", à "coisa rnaterial''...9.ue _p2den1o�uiri_r,
manusear e submeter aos nossos sentidos, charnada gramatica nonnativa. A
hist6ria da filosofia nos da uma série de termos para marca; �ssa diferença.
l� A GT, por exemplo, estaria no mundo numênico, no "piano das idéias" de
+
Platao, mundus intelligibilis, metaffsico, enquanto as GN estariam no mundo
l-.jj fenomênico, mundus sensibilis, ffsico. Corn Descartes falarfamos de "espfrito"
(GT) e "matéria" (GN). Por isso as grarnaticas norm�!;:as podem_diferir,. e.
diferem, umas das outras, apresentando mudanças ao longo do tempo, quan-
dq_ ��_!!_Parada�-�:�!��=dc:l__�ên_�� Jiteraif9-1.Ù.�I!!Pé.IA.Y.�!!qÇÔeS.id��m-

14 15
f-
- �,\
Dram61ica da lingue porluguesa Gromàlica Tradicionol e senso comum

craticas, quando comparadas entre si como obras individuais. No entanto, De fato, também na percepçao de Lyons (1968: 18), existe uma con-'
·o-"ëspfrit�;;·q�� as move, a Gi, é o mesmo. A GT, por consubstanciar uma tinuidade na historia da reflexâo sobre a linguagem no Ocidente, que co­
idealogia1 , nao tem autor, ao contrario das gramaticas narmativas, às quais meça corn os gregos antigos, passa pelos escolasticos medievais e prossegue
podemos nos referir como "a gramatica de Celso Cunha", "a gramatica de hoje corn os lingüistas e filosofos da linguagem:
Rocha Lima", "a grarnatica de Cegalla" etc.
Q,; verdadeiros continuadores dos gr_amaticos ..classicos e escolasticos nao s1io
0 carater ideologico da GT se revela na ana.lise que dela fazern autores
aquel�;g_ue-b����� Î;��;�rvar.i�ta�to todo o arcaboug-i da graJilati�;·cl�ssk;; ·'
nao ;ecessariarnente preocupâèlos corn essa identificaçao:
�i,:;q��;9ii.�i!;PÙ�-!}�.;;;·;i);�-stig;!çao li�;i_;�r!�i-��sgbr!!.RRiP,el
[...] nao podemes esquecer que "ancilla Theologiae", como a designa Isidoro de e a natureza da lingua_gem dentro do contexto do atual pensamento cientffico,
Sevilha, a gramatica (latina) estivera, na Idade Média, associada a intençôes e .C<?.1!1. o conhecimento mais
. . - extenso sobre as ifnguas. e as_ culturas
= de qt1�-f� ···�· -- . . . . .
• •' c.•-,,-0 <,•"Tf")
· - .....-.-.--•-••-••·-- -•- -,. ·,· •..•,,_. , .... ....- .... _. , · -·« •••"•" -··----,--..._..--__. ........-,-. .

..
e praticas teol6gicas e canônico-liturgicas e fora utilizada cemo instrumenta dispêi�_agor:;i.:
cientrfico e suporte do discurso pol(rico e administrati110 [Buescu, 1998: 17] (grifo
meu). Corn efeito, a Gramaüca Tradicional at� hqj� é o ponto de partida e
Minha ana.lise visa demonstrar que essa instrurnentalizaçao da GT como ta.��é;:��r,ano de fü��ô:d� _atiyj_d_a.4�: �ie��ffic� e e;;ZµTà.iivâsliUng{{(�- ,,;,-.\
suporte do "discurso polftico e administrativo" nao se interrompeu corn o t!5;a e da Fq��fü�:i!..l-Jflgl,l)!ge,rn, Nao é contra isso que nos devemos bateéJ3
(irn da ldade Média, pe1:r11-anecendo viva e fo_rJej1té. os.. dias---de ------·.
hoje�·-ao Nos devemos bater é contra os usas e os abu�<Ê perpetradrn( por aqûèles
ipen?ù:�9-que_�îir�§peito à.;Ôçi�d�d.;,-�;-��iÏe_i_ra. que, arrancando a Gramatica Tradicional do lugar que legitimamente é o
Antes de prosseguir, quero insistir na distinçao entre �--·- o que é a�.......,._
GT e seu - o da reflexao fi!osofica, o de ferramenta de investigaçao dos processos
f \· 0 que sao os_µsas que se faz dela, para que rninha argumentaçao nao côrra cognitivos que permitem ao ser humano fazer uso da linguagern -, impu­
\:"',
o·riscô d� parecer uma tentativa de dernoliçao radical da GT. A Gramatica seram-lhe o papel de doutrina canônica, de conjunto de dogmas irrefutaveis,
L_
Tradicional, nao cabem duvidas, é urn patrimônio cultural do Ocidente, de verdades etemas. É_çk§.s�_t)\!J;>_�l. que estar�i.falando ao..empregar QJ�..!:i.no
um monumento inestimavel de saberes acumulados ao longo de mais de GramaticaJradicipnal e ao tentauîsfi��Ï�como_umaid½ologia. Afin�l,
dois milênios, um repositorio das reflexoes, investigaçêies e especulaçêies assim como as fo�rnulaçêies éticas e teol6gicas atribufdas ao Jesus dos relato�
filosoficas acerca da linguagem feitas por alguns dos mais brilhantes pen­ evangélicos nao podem ser culpadas dos crimes praticados pela lgreja auto­
sadores da historia da humanidade. Corno bem enfatiza Mattos e Silva denominada "crista" - que, apropriando-se autoritariamente do nome de
(1994: 14), Cristo, oprimiu, perseguiu, torturou e assassinou seres humanos -; assim
independente da origem elitista dessa tradiçao de pensamento sobre a linguagem como nao se pode atribuir a Marx todas as atrocidades cometidas ao longo
humana que veio a favorecer corn este instrumente, entre outres, um segmenta do século XX pelos regimcs totalitarios auto-rotulados de "marxistas", tam­
social em detrimento da maioria, o processo cumulativo que se desenvolveu
pouco pode a Gramatica Tradicional, pela que realmente é, ser responsabili-
durante vinte e três séculos e que se perpetua até nossos dias é do maior interesse
para a historia cultural do homem e para a percepçao de como se foi construindo zada pelas distorçêies ideologicas a que tem sido submetida ao longo da His-
um campo do saber, o da reflexao sobre a linguagem humana, o da Lingüfstica, toria por aqueles que se dizem seus "defensorcs", embora nao sejam, de di-
portanto. 0 embate polftice-ideol6gico que se inicia na Grécia classica abriu, reito nem de fato, seus legftimos herdeiros2 •
sem duvida, um espaça para o infcio da criaçao de um discurso cientffico nao s6
sobre a linguagem, mas também sobre o homem e o mundo.
2. Cf. llari, 1985: 14: "Ha_ ta!ll��!Il quem aponte casos de uso irrespqnsjyd da_l,i9g�is_,Jt:a,
por �xernplo sua reduçao a um jarg_âo, de que �e lanyi miio pa_rn jugificar qualquer afi�ma�o
1. Emprego aqui o termo ideologia corn o sentido de visào de mundo ou conjunto de idéias CStapefU!9.!ll_�opre fatos· cfa ffng�a,_E.sll!S _sr_fri.c�i�aR(l�tarn para lJ.11! proJlk!J.la Jeal, COIU__que 0
dominantes numa sociedade, imposto pelas classes sociais que detêm o poder pol(tico e econô· lingüista se irrita·maisFo:iju�.n(ng\!_�-�-�.!!��.!...��2!19!!.:ld!;!D.Qtand9_qt1�_!?:e.nhu�
mico. Nao deixo de reconhecer, porém, a existência de outros conjuntos de idéias, de outras ciência (alias, nenhuma lei, nenhum c_qgig_9._c\dth;__a) !'!.Sra a salvo de aplicaçôes abt1_�ivas; �-o
ideologias, associadas às outras classes sociais. s��!l.��c:orpo Cfe do��n_a pelos abusas que se pra ����ntra ele ou em no_me dele".
2

16 17
Drom6tico do linguo portugueso Grom6tico Trodicionol e senso comum

1.2 GRAMÂTICA TRADICIONAL: DOUTRINA, NÂO CIÊNCIA "norma culta"4 - para verificar que a afirmaçao de Rocha Lima nao se
Estudando a historia da filosofia, das ciências e das demais formas de baseia na realidade empiricamente observavel. Ê diffcil acreditar que algum
saber, topa-se corn um fato hist6rico surpreendente: a Gramatica Tradicio­ falante de variedade cuita se preocupe, hoje em dia, em fazer a distinçao
nal - que ainda é, de longe, a maxima fonte de inspiraçao doutrinaria entre as palavras por ele citadas. A pronuncia do Lem final de sflaba como
para o ensino da lfngua portuguesa3 no Brasil e para as atividades econô­ /1/ e nao como /w/ s6 se verifica na fala de pessoas de uma faixa etaria hem
micas a ele associadas (industria editorial, mfdia e multimfdia) - repousa definida e/ou de falantes de variedades especfficas de português do Brasil,
até hoje em bases epistemol6gicas que remontam a uma fase da historia do como a gaucha (e, mesmo assim, nao de modo geral).
conhecimento humano anterior ao que se convencionou chamar de "inf­ A tradiçao gramatiq1J.iiin.da se apqia �m dqis pJ!we�que foramreduzi­
cios da ciência moderna". Acreditar na GT como explicaçao valida da dos a p6 peÎ� èïê�ci� moder:n:ci1 sena9_�m.rodps o� ca.mpos da·;t�idad�-hu­
lfngua é acreditar no sistema ptolomaico como descriçao acurada da Terra rna�;-,peï� -��-�;:i;· ��.
r��;�i��p�eit�hei�cilllemo da.� QQi- :·Y�iJii.g��·,:®ii
e d o espaça extraterrestre. f\ GT pass()� inc;§lyl!!�. pJ!la revolu.çâo promo­ poem o conhed!Ilento CÎf!!,ti,&.Q;_.Q.QQder �..a,@itO�,Nesse processo de
vicla, porÇopémico, Galileu, Kepler, Newton e outras cientistas que,.entre derrubacla encontramos a fi.gura emblematica de Galileu que, arriscando a
OS_§.éculos XVIe XVll, fizeramrnir concepçoes·cfohomem,d�.!latureza e pr6pria vida, defendeu a nova astronomia, cujas descobertas podiam ser
dec9smo que haviam dominado O mundo ocidental durante quase_dois vistas pelo telesc6pio, contra a autoridade da lgreja e da ciêricia tradicional,
que se baseavam em Arist6tel�s. Segundo Magee (1999: 67),
-�·---- Corno explica Bryan Magee (1999: 63):
milênios.
A principal novidade da ciência moderna foi sua insistência em testar as teorias as conseqüências de seu trabalho [de Galileu] para o entendimento humano do
pelo confronta di!:�t. g c;_qm .a.g.;1H\lg_c!e,.serificando-as pela observaçao e pela mundo, e portanto para os processos do pensamento humano, ultrapassam todo
mediça� dos dad�s que se esperava que elas explicassem. Antes disso, as teorias calculo. Apesar da precariedade de sua situaçao, ele ousou proclamar o princfpio
tinham sido testadas sobretudo pela discussao e pelo debate. de que o poder e a autoridade, incluindo as autoridades da religiao crista, nao
deviam ter o direito de interferir nas atividades da ciência na busca da verdade:
0 •:confronta direto corn a realidade" é tudo o que as gramaticas norma­ "Por que", dizia ele, "haveria de ser que um déspota absoluto, nao sendo nem
tivas, in�-iradasna GT, nao fazem. Ern Rocha Lima (1989: 15), por exem- médico nem arquiteto, mas sabendo-se livre para mandar, se pusesse a administrar
plo, lê-se: remédias e a erguer ediftcios segundo seu capricho, para grave risco de vida de
Em extensas faixas do Brasil, e especialmente no Rio de Janeiro, a consoante /1/, seus pobres pacientes e rapido desmoronamento de seus edifîcios?" Fora! - era
œi seu recado às autoridades. E a difusao !enta mas definitiva dessa postura provocaria
quando em final de silaba, apresenta uma pronuncia "relaxada", que a aproxima da
semivogal iw/. Este fato faz que desapareçam oposiçôes como as de male mau, alto e mudanças radicais na vida intelectual e social da Europa.
·1 auto, servi/ e_ serviu -oposiçôes que a norma cuita procura cuidadosamente observar.
Mas essas mudanças rndicais nao atingiram a Gramatica Tradicional. ·
Antes de mais nada, chama a atençao a tentativa de animizar a "nor- ADf'Îli�.acle-ri�·à-�e��,��-�rtsç��î6gi�;-��-���- �odem�:-"nào s�bsd�-
I'!'.
1 ma culta", de personificar um conceito abstrato, quando o que existe con­ tuiu seus m�todos de arg�!E-entfi�O baseadQ§.Jl�.ê.fir.m-l!gL<19�-�.ll--�!�!9.��?
cretamente sao os falantes cuitas de uma lfngua. Ora, basta ouvir os locuto­ a_mi_ g_ës_p�IQ§ rp.�_tQ.9..9�-�JltfficQ§....4,a_ ()bsery_aç1!9 _de è9��!_èyerjftca_çâ,�-�­
res de radio,� apresentado�es d�'r�i�;;;;J �-;s professores universitarios t�stag�m de hip6teses, de. dedtJçfo de.-regras. a partir��- q9se.!:y�59�s..9a
- três profissoes que exigem educaçao superior e, portanto, domfnio da realidade sensfvel, de �rftic�das m�todq_l9.,&[as 1 da c,o_m:1�roy�2.ou.refu��5*().
Cfe hip6tês�e.S_!)ela experi!:;�nta�o.etsCom5? 19da id�9logl,� (}T f um�
. . A expressao "ensino de lfngua portuguesa" equivale, para mim, a ensino da norma-pa­
3 ''?.\s<:�rs. g 9_l,l.l!Pr�s�t,Ip 6� -� gr.�t:i��..��r��1.�-�J'!,Î_()!f���<:-�:-�.�§s�.Çipo_ _,q�����:,so
:lj drao, ta! como a defino no Capftulo 3. Corno a norma-padrào nào é lfngua, mas s6 um ideal "é sempre justificativq,__.n.unca investigativo" (Pignatari, 1998: 99).
\;-/ abstrato de lingua, oponho-me ao uso de expressêies coma "ensino de�erna"., U.i)a vez ._,_,.-c..w��-·�-·...---�-, -�- ·- -- • ...... -,. , c.-_ · · --....:�.,·•

que me filio à linha ce6rica para a qµal l(ngua maienuîîulose_e)aj!!{l,_mas se adquire.nuambiente


faml}.i�r;_ �os_grupos sociais
·· · ·· que
· ·a _criança freqüenta
-·- -···antes
· de Î!)g!essar (se jamais ingressar) na 4. Coloco "norma cuita" entre aspas por ser uma expressao sujeita a muita ambigüidade e
escola formai. confusào conceitual. 0 Capftulo 3 sera dedicado à analise dessa terminologia.

18 19
Dromôlico do lingue porlugueso Grom61ico Trodicionol e senso comum

Por tudo isso, a GT - ao contrario das demais disciplinas ensinadas na nâo passfveis de verificaçao empfrica ou inspiradas por concepçôes da natu­
escola- cyao pg9�rec�_ �er o.r9n1lQ.d�çifoçia: "Afinal, as ciências e a pr6pria reza e do homem que distorcem a realidade ao interpreta-la de modo arbi­
filosofia admitem a crftica e a refutaçao explicita do que precedeu ou de fases trario e incoerente. As_doutrinas da Astrologia tradicional, por exemplo,
de atividade intelectual" (Gnerre, 1985: 20), mas a Gramatica Tradicional fazem sentido apenas se acreditarmos que a Terra esta im6vel no centro do
nao. Ou ainda, nas palavras de Karl Popper (apud Magee, 1999: 222): "A universo, pois elas s6 levam em conta o movimento do Sol pelas conste­
ciência é talvez a unica atividade humana em que os erros sao sistematica­
laçôes do Zodfaco, desprezando totalmente o trânsito da pr6pria Terra em
mente criticados e, corn o tempo, corrigidos". Os erros contidos na doutrina
torno do Sol. �ica 6byi9 qu� a.t�oria plane!_�rJa st1bjac�n.t�. à �ttrn.lo.g\;i..�
gramatical tradicional, ja tantas vezes apontados pela Lingüfstica, ainda sao
a Q!_Qlomaica. Corn a revoluçao copemicana do século XVI, a Astrologia,
estampados, sem alteraçao, nas gramaticas normativas e preconizados como
q�e sobrevivera durante milênios a fia, recebeu seu golpe fatal. Até hoje,
"formas certas" pelo ensino e demais mecanismos perpetuadores da GT.
porém, ela subsiste na forma de passatempo popular ou de superstiçao e,
· ) A.Q�T ergue-se como um contrarieso à ciêncja1 um obstaculo ao � nessa qualidade, tem espaço garantido nos meios de comunicaçao e na
do saber. Num; exp�i�� clidâÙ�;-do-que ��n;tit�i-� s�b��-aè�Ùfi�;� Magee
(1999: 223) explica: efervescência pseudomfstièa que parece caracterizar .e�.t�.final de milênio.
Se compararmos o estudo do céu a uma moeda, �.f\.strolo� doutrina
Embora nenhuma teoria geral possa ser provada, ela pode ser refutada, isto é, pode
ser testada. Corno vimos, por maior que seja o mimero de observaçoes de cisnes ocultista, forma supe!s.ti.r:i�.�� de��ylQha�o-'.<' é u��-d;·;uas faces, en­
brancos, ele jamais provara a verdade da afirmaçao "Todos os cisnes sao brancos", quanto a outra é a �noml'ii;)== ciência que investiga, mede, analisa e
pois uma unica observaçao de um cisne preto é suficiente para refuta,la. Assim, interpreta corn rigor metodol6gico e critérios consistentes os dadas obtidos
podemos testar afirmaçoes gerais buscando exemplos contra.rios. Sendo assim, a na observaçao dos fenômenos c6smicos5 •
crftica se toma o principal meio pelo quai de fato progredimos. Uma afirmaçao que A �i ambém é uma doutr!na esotérica, .talveu mai5'herméti­
nao seria invalidada por nenhuma observaçao nao pode ser testada, e portanto nao
c.a de todas �alias,. oi nda4ue.sl,lrgiu a.noçao de -"hermeüsmo"), moddo
. - . - '·-
pode ser chamada de cientffica, porque se tudo o que poderia acontecer é compatf­
P�!.fütrn..dt.�:cif.rn;ia.'QfYlti!.'',, Seus objetivos podem se resumir na palavra
'\

vel corn sua verdade, entao nada pode ser visto como prova para ela. Um bom exem­
plo seria a afirmaçao "Deus existe": ela tem significado, e pode ser verdadeira, mas t:7:ansmutaçao, entendida em todos os seus sentidos: nas mudanças qufmicas
. ·-- . .,,. , .. ·-· - .

em que certos elementos·se transformam em outros, nas mudanças fisiol6-


\
nenhuma pessoa intelectualmente séria a consideraria uma afirmaçao cientffica..
gicas como a passagem da dpença à saude, na ansiada mutaçao da velhice
É sabido que a ideologia se caracteriza por ser um discurso preso ao
em juventude, e até na pas;àgem de um estado terreno a uma existência
passado e, portanto, nada disposta a "progredir" por meio da crftica.
sobrenatural. Em milênios de �Jtperimentos secretos, porém, os alquimistas
nunca conseguiram realizar seu�\ intentos de transformar os "quatro ele­
l.2.1 Gram6tica Tra�icional, A!9uimia_ e Astrol�gi(): três doutrinas esotéricas
. _ mentos" em ouro nem de encont�ar a matéria-prima pura e perfeita de que
se compô� tudo o que existe na n�tt.Jreza. A��lquimia é a face "oculta" da·
rt 0 que as três disciplinas alinhadas neste subtftulo podem ter em comum,
a ponto de me permitir reuni-las e equipara-las? Para começar, sao muito Il1Q�è-c.waJ�c.ü�ro.�-t�. � iQ�imt�"'.t�mQ'iAiti9Q.9�!�
da Astrologia (par
h�r�2IÎ
antigas -:-- a Astrologia tem, no mfnimo, cinco mil anos. Além disso, ocupa­ diversoillrmos
,,.....-- e co�i,,t.Q�.· •'S'•-�-=- . , .,., ......... .-....exemplo,
,..... ••. o l!Q.ffi.� clas,coQs-
7

_ !,1.i�ic:� �ma grD:11_9�


,H.-••• . - . .

ram, durante longos séculos, a curiosidade e o empenho de alguns dos espf­ t�l�çge�..!J:agJ_çi9..nais) ,. ,!�1IJ.J��m.a.f\fquirnia_Jc_g911 }Q
ritos mais brilhantes da hist6ria da humanidade. Cada uma delas, fascinante quantidade de termos (e]ixir,_alc_ool,_matéria-prima), ir1<:h1sive o pr6p�io nome
par si mesma, deu origem a uma verdadeira ciência que, livrando-se do carater d� ci{nci_a:. .� @EJgiifmip_: Além disso, �·Âlquimi;-f;i responsive}'pelà�ifrâ=
de "seita secreta" de sua matriz, ampliou os conhecimentos do homem sobre

·•t.·!j' si mesmo e sobre a natureza que o circunda e da qual faz parte. 5. Evidentemente, refiro-me aqui à Astrologia reduzida a técnicas de mera adivinhaçao ou
Astrologia e Alquimia sao, de alguns séculos para ca, universalmente
; 1
de pseudoterapia psicol6gica. Tal como reconheço a importância cultural da Gramatica Tradicio­
nal, também sei que existe uma tradiçao astrol6gica que, combinada corn o estudo dos sfmbolos
classificadas como pseudociências, isto é, como doutrinas baseadas em dados
;1
e dos mitos, constitui um interessante reposit6rio de. imuiçôes sobre a alma .humana.


20 21
i�
"1-'- �� i
Dramética da lingua portuguesa Gramética Tradicional e senso comum

çao de metais e elementos minerais como o f6sforo, o bismuto, o antimônio, Exclui-se a Lingüfstica porque suscita a todo momento o contraste entre culturas
o zinco ou o amonfaco. Afinal, quinze séculos de experimentos praticos em dominantes e culturas relegadas ( como no caso das lfnguas indfgenas ou das areas
de bilingüismo resultantes de imigraçao), entre formas de expressao socialmente
laborat6rios secretos nâo podiam deixar de levar a algumas descobertas, prestigiosas e formas de expressao desprestigiadas ( como no contraste entre a li­
ainda que por acaso. teratura oficial e a literatura popular); entre a soluçao de gabinete e as soluçôes
Também a GT, como enfatizei mais acima, deu enorme contribuiçâo à de quem vive os fatos; entre a industria de livros didaticos das grandes tiragens
investigaçâo dos fe""ïiômenos lingüfsticos, sobretudo erµ suas estreitas ligaçôes e os materiai� cujo parâmetro sao pessoas reais.
corn a Filosofia. Basta lembrar que, apesar de todas as propostas termino-
o pano da
A crftica da GT, portanto, deve ser feita contra . -- -.de-.fundo
-� � ,--..
16gicas nascidas durante este século e das revisôes conceituais a que foi
t r ia a;;_·-aêncii-�-d��. idé ias ·;� geraL ·- ........., ·- . -- .. .
submetida, a nomenclatura gramatical classica ainda da provas de grande · his d
__,____,______
...,,........... =---·-.,�---�'"""'--'�"'
• ...·- ·,-·,1

vigor e utilidade.
Me parece muito instrutivo comparar a Gramatica Tradicional à Alqui-·
1.2.2 Uma doutrina medieval
mia e à Astrologia. Cada uma d·essas três pseudociências, como foi dito,
esta na o�ui_Q_e uma ciência �o sen!ic!.�.!E-2,2,�mo ���set���: respectiva­ Reiterando a importância das descobertas cientfficas para o surgimento
,
-��� fi Un_güf� �a e a:'Agmnoinia(QE�E.1-�tica Tradicional,
1 da Era Moderna, Magee escreve (1999: 69):
<�lquirriiafJ\strologià bas�iam-se em: v!�ë?�s cfo.mi,md..9..,_ _è �a_t_urez�-� _ �Q ho­ As conseqüências de tudo iss9 para as estruturas de pensamento e as autorida­
!!!_ern. incompatfveis corn tud�<:iqueat�almente se sab�ci i:espeito_do mundo, des tradicionais foram cataclismicas. Começou-se a acreditar cada vez mais
- . . ----
da;;tureia :� ·do homem. .. . . que, em matéria de busca da verdade, a tradiçao era um estorvo e a autoridade
Se nao é ���-�iê�cia, o que é a Gramatica Tradicional? É uma doutri­ nao tinha lugar. Qualquer afirmaçiio do tipo "x é verdade" ja nao topava corn
a pergunta: "Que autoridade disse isso?", mas corn a pergunta: "Que provas
ht' na, composte! de dogrrws a serem ace/tOSCQffiO verck!dgs Îf!COn_test<l�-;is e nao ge·· você tem disso?" - e as autoridades acabaram por ser vistas como tao sujeitas
lèis g_rripiricarnente test.aveis, sujei� � ç__9_rrikfg4dClÇ@..91!,Q...I.<;ft1-.fgç/io.'. S..eu.c:orpo ao questionamento crftico, como tendo de responder por seus atos, quanto as
de definJQ)_e�,_pi:ec�i�Ps.e_p_r�s_criçôes_a,p�.n,as__gp_arente..rneme_s_erve tm.@_um demais pessoas.
estudo da lfngua._ A fonç;ïo deÏ;�Çde fato, substc.1nciaJm.en_te, ideol6gicd: a
ôTI um i�;tru�ento, u�d��-�;Ît-;;�J�_i�g!Ù��
. . - ça..o. da� ;1�;��s
. ëlômlnan- Esses grandes movimentos intelectuais demoraram a se produzir, é claro,
mas desempenharam um pape! central ao provocar o fim do que chamamos
t�s �() poder.
· Nao sera por outro motivo que muitos gramaticos tradicionalistas s_e Idade Média. A lgreja cat6lica perdeu seu controle sobre a vida intelectual
recusam a aceitar as propostas de abordagem do fenômeno da linguagem e cultural da Europa - por completo nos pafses que se tomaram protestan­
feitas pela Lingüfstica: sâo propostas que lançam duvidas sobre a validade tes, mas em certa medida at_é mesmo nos que permanecerc1m cat6licos,
do discurso gramatical tradicional, que deixam à mostra as inconsistências onde, a longo prazo, ela também o perderia quase_completamente. No nfvel
desse discurso. dentffico, à visa() cie J?llD.40.SJll�}:�.rava s�ndo derrubad.a era essencialmeµte
0 exemplo talvez mais extremista desse reacionarismo anticientffico, o aristotelisff\O, ·
no Brasil, se encontra em Napoleâo Mendes de Almeida que afirma (1994: Se esses grandes movimentos provocaram o fim da Idade Média, e
316) que o estudo da Lingü fstica serve "para fixar inuteis, pretensiosas e se a Gramatica Tradicional, como acredito, permaneceu infensa a eles,
1 ridfculas bizantinices" e que esta ciência é "um dos estorvos do aprendizado nao hesito em dizer que.JLQI - que inspira a pratica pedag6gica da
da lfngua portuguesa em escolas brasileiras". É a defesa intransigente e lfngua portuguesa até hoje, no limiar do século XXI - é umajoutrina
(ff
TI

obscurantista da GT e de seu discurso contra qualquer tentativa de renova­ »!_edieval, com�!�d.9 o q�_e.sse,.a.dletiv9c::ost.4ll_l_�Jmp119!.r g� pejoratiYO, e
çâo d a mundividência que ela comporta. Segundo Hari (1985: 15), reaçôes depreci;Hjvo.
desse tipo contra a inclusao da Lingü fstica nos cursos de Letras têm motivas A alusâo ao aristotelismo vem mesmo a calhar. Na peça Vida de Gaüleu,
bem definidos: de Bertolt Brecht (encenada pela primeira vez em 1943), os sabios convo-

22 23
}: �i
Dramâlica da lingue portuguesa G,amélico Tradicional e senso comum

cados pelo grâo-duque de Florença para examinar as novas descobertas O MATEMATICO


astronômicas de Galileu ( um fil6sofo, um matematico e um te6logo) recu­ Meu carc Galileu, por mais antiquado que pam;-a ao senhor, eu ainda tenho o
habito de Ier Arist6teles, e lhe garanto que acrediro nos meus olhos quando leio.
sam-se terminantemente a olhar pela luneta, como lhes sugere Galileu,
para comprovar, corn esse gesto simples, as afirmaçôes feitas por ele. Em
[...)
vez disso, propê\em resolver a questâo por meio da discussâo, do debate, da 0 FILÔSOFO
dialética. A todo momento, Galileu lhes pede que olhem pelo telesc6pio, Se a intençâo aqui é su jar Arist6teles, uma autoridade aceita nâo s6 pela totalidade
mas eles preferem continuar presos à tradiçao e à especulaçao: da ciência antiga, como também pelas grandes Padres da lgreja, quer me parecer
supérfluo prosseguir nesta discussâo. Eu recuso discussôes que nâo tenham objeti­
OFJLÔSOFO
vo concreto. Para mim, chega.
[...] 0 universo do divino.Arist6teles, corn as suas esferas misticamente musicais
(Brecht, 1977: 80-85)
e as suas ab6badas de cristal e os movimentos circulares de seus corpos e o ângulo
obHquo do trajeto solar e os mistérios da tabela dos satélites e a riqueza estelar do
catalogo da calota austral e a arquitetura iluminada do globo celeste, forma uma �mo.dt;.fll� _s,e__\lf.irn.io_t1 rompe_IlqC> c9.m �.!!.�cli_ç�q_aristotélica.
construçâo de tal ordem e beleza, que deverfamos hesitar muito antes de pertur­ Até mesm...9.,,.0,.teatro modeg�Q sctpq_de se estabde_�er quand� re��;o�-�s
bar esta harmonia. P'iëëcit.�; q� _129ética de .Arist6tel�s. A Gramtitica· Tradid�n�Î, p��é�,- .
corri� hem sabemos, é roda ela fundamentalmente aristotélica - seus
[...]
0 MATEMATICO defensores a.té hoje recusan{ olhar pela luneta para ver a realidade d�;-
Enfim, que adianta dançar sobre ovos? Mais cedo ou mais tarde, o Senhor Gali­ f;t;;;�â;;ceit�m O conyit�l;�r; "���eclit;r ��l--S��s;lho·;;;�·;-;�ais· aëfmr
leu se habituara aos fatos. A esfera de cristal seria furada pelos planetas de Jupi­ d;i;�que "é Qreciso escrever �a�u;i� n;vos", rn-��p;;pô�-Ô�a�·rg-;�ëï�
ter. É simplfssimo.
q�}Q��i -�eA�·r;��i!�cÎ�e o�;;�·-�:fi��:r�i; îu-��ra /�i�.tÏ�� •é{.ir��i}�ri_�s:
FEDERZONJ
ra.yaÇHtO,
0 senhor nâo vai acreditar, mas nao existem as esferas de cristal. Aristotélica, sim, e apesar disso conseguiu sobreviver ao cataclismo,
coma diz Magee, provocado pela derrubada do aristotelismo promovida
0 FILÔSOFO por Copérnico, Galileu, Newton, e tantos outras. E sobreviveu também a
Existem, qualquer manual ensina isto, meu rapaz. outros terremotos epistemol6gicos, coma o deflagrado por Einstein e sua
FEDERZONJ teoria da relatividade, que alterou profundamente as concepçôes tradicio­
Nesse caso, é preciso escrever manuais novas. nais de universo, tempo, espaço, energia e matéria. Corno escreve Gnerre
(1985: 19-20):
0 FILÔSOFO
Alteza, o meu ilustre colega e eu nos apoiamos em nada menas que na autoridade 0 corpus de conhecimento constitufdo pela tradiçâo classica, nâo utilitârio em
do divino Arist6teles, nele mesmo. sentido trivial, esta associado com a virtude, corn a sabedoria, corn a respeitabi­
lidade, caracterfsticas estas que constituem um amparo de legitimaçâo para exercer
GALILEU o poder das decisëies de alcance publico. [...] 9 fato é que na cadeiaî d�,l(èg_iI_i.r.n,açao
Meus senhores, a fé na autoridade de Arist6telcs é uma coisa, e os fatos, que sâo do saber nâo aconteceu nenhuma revoluçao-:nennümii"iûüélanç d� poder �b/o­
tangfveis, sao outra. Os senhores dizem que segundo Arist6teles ha esferas de l�Î:�· par;:Q_constlrucio��\ nenhu�a lllllél�r1ça ��ï��!larq�Ja _pàra:à,i�p;iï;fisâ,
cristal la no alto; que, portanto, ha movimentos que nâo sâo possfveis, porque as k' etc. A cadeia de legitimaçôesdo saber velll em linhfl clireta de descendêncja. A
estrelas seriam obrigadas a quebrar as esferas. Mas e se os senhores puderem consta­ \sy ){tam�tJ.ça normatiYa é -� elemento p_ti_Y.,[lt!gl_<1QQ._n,e�ç�ll�I}h�.4��età'_J�-PJ?d.�i�b�hi;'"
tar esses movimentos? lsto nâo indicaria aos senhores que essas esferas de cristal to. AfinalJ as_d�ncias ey._pr6{:riaJH9s9fia admitem a crftic;i_e,a !,efu�açâ,;?,_�pl!­
nao existem? Meus senhores, eu lhes peço corn toda a humildade que acreditem cita do que pre_cede_u ou de.fases.da.atividade int.elecJual. Nao.é o mesmo· para ' · a
nos seus olhos. lfngu;pad;âo.
..-.,,.-.-7• .--

24 25
Dram6fica da lingue parfuguesa Gram6tica .Tradicianal e sensa camum

'
1.3 IDEOLOGIA GRAMATICAL para "que os membros da sociedade nâo se percebam divididos em classes"
Corno sustentam Marx e Engels (1991 (1846]: 72), o domfnio de uma e, conseqüentemente, divididos em universos lingüfsticos diferentes.
classe social sobre as demais nâo ocorre apenas no piano material pela Coerente corn essa ideologia, e corn o discurso que a ela corresponde
detençao dos meios econômicos de produçâo, do poder po[ftico, das fontes assim-a-dëfendé CegaUa_ 11'1. �li� îyq�(!ijirni_ira?n4tiëa)aJ(n�]iË!i��i�
de matéria-prima, dos bens fundiarios etc. É preciso que esse domfnio tam­ (1990: xvii):
bém se dê no p[ano espiritual, das idéias. Desse modo, A Gramatica, segundo a conceituamos, nao é nem deve ser um fim, senao u m
meio posta a nosso alcance para disciplinar a linguagem e atingir a �eal
1) embora a sociedade esteja dividida em classes e cada quai devesse ter suas pro­ da expressao oral e escrita. Maldizer da Gramatica seria tao desarrazoado quant�
prias idéias, a dominaçao de uma classe sobre as outras faz corn que s6 sejam malsinar os compêndios de boas maneiras s6 porque preceituam as normas de
consideradas validas, verdadeiras e racionais as idéias da classe dominante; polidez que todo civilizado deve acatar.
2) para que isto ocorra, é preciso que os membros da sociedade nao se percebam
coma estando divididos em classes, mas se vejam coma tendo certas caracte­ Conceituar a "Gramatica" como um meio para "disciplinar a linguagem
risticas humanas comuns a todos e que tornam as diferenças sociais algo deri­ e atingir a forma idéal da expressâo oral e escrita" é uma declaraçâo de prin­
vado ou de menor importância. dpios ideol6gicos e at1ticientfficos tâo bem enunciada que dispensa comen­
tario. A comparaçâo corn os compêndios de boas maneiras deixa ainda mais
��Ç_baui (1 998; 9.4)...cl��ifiçi!..l!ÇÎ!llq,Çk''i.qéj;i/'pudermo� inc:luir a nu o reducionismo ideol6giuo do autor. Para ele os pre(con)ceitos da gra­
"variedades _ lingüfsticas" sera fa.cil entender O carater.jdeolôg(êo da di-àma­ matica normativa sâo validos para todo e qualquer falante de português, em
ti�:ÎT;;c1T;;ro�[dZque;tâ; imburdas a�aticas normativ�1;;� a
qualquer lugar, em quaiquer época, por serem equivalentes às "normas de
Lingüfstica, e mais precisamente a Sociolingüfstica, ha m�rotenha postu­
policiez" dos manuais de boas maneiras. Corno se as "norrnas de policiez" de
lado a existência, no universo particular de toda e cada lfngua viva, de mul­ uma determinada classe social, de u�.4�.mmma.dp_iii�;_;;IT:l� cl�i_ër�in�da
tiplas variedades lingüfsticas associadas a diferenciaçoes regionais, étnicas,
�oca tivessem aceit� _,.___ - ô'ùruver sal -em
.. ----- ...... .,. .... , ...em
--.--·· as.......cu!turàs
.........todas · ..-.. as suas·
....... todas
etarias, de classe social etc., as gramaticas normativas brasileiras permanecem
fa�� hist6ricas.
apegadas ao mito da "lfngua unica" e se apresentam como "descriçâo" de
A Gramatica da Ungua portuguesa, de Pasquale Cipro Neto e Ulisses
uma variedade lingüfstica supostamente empregada pelas "pessoas cuitas" do
Infante (1997: 16), segue a mesma trilha:
.r. pafs, isto é, pelas classes dominantes, apresentando-a sempre como o "padrâo"
.;\o'
\·1:
a ser imitado. D.aJ,p.asce o preconceito de que toda e qua[quer varieg<!de As lfnguas que têm forma escrita, coma é o casa do português, necessitam da Gra­
matica nonnativa para quf_§.�_gqrQ_nta_g_��@_cfa de um padrao lingüfsti<:<! !l.nifQTl:!lÇ
,.-r..\r
dlferente dessa é "feii, "est_ropÎad��-'-'.corromRJcl_a"·e �-� é'râro escÜta� gue
nQ_cru.ëL�.r..e_g!§_n.e_a_.11r��LÇgnhi�-à�ëült.aé.·p�r�a,:1,1to,_t1ma
"���r�g_�1�i'.: Çria-se assim uma entidade ;bstrat���h;��d� "Lf�gua meus].
fo�a dt:�E...8,,f�W g_e,§§.U�!!?.2-.Sl!!t.ui:at:e à-linguage�_o.ficiaIJg�i(os
(\
'�,-j
Portuguesa", cuja definiçào e descriçào - ta[ como dadas nas GN - nâo
encontram comprovaçâo empfrica na rea!idade hist6rico-social. A inversâo da realidade e da historia (uma caracterfstica das ideo!o-
> ��

Os tftu!os mesmos desses compêndios deixam clara essa opçâo ideol6- gias) esta claramente expressa aqui: nâo é o gramatico normativista que
gica. Se eliminarmos um ou outro adjetivo ("novfssima", "contemporânea", precisa de uma lfngua ou de uma variedade de lfngua como corpus para sua
"moderna") - em gera[ imposto pelas editoras para distinguir seus "produ­ descriçâo e ana.lise, mas as lfnguas é que "necessitam da Gramatica norrp..?:
.
�Jya'' para. "garnn.tii:". a.'�exi§tência� .. d�um padrau.lingüis.tiç_o "uniforme
�------- .,..,.,_�* ·--.,_.,.,..-. -- . - •.--,. _._.,•.-,.,,...·==··'-····��-·----�...,.

tos" -, praticamente todos os compêndios se chamam Gramatica da Ungua


;,

Nao.f.pQ r
portuguesa ou Gramatica do português, como se "[fngua portuguesa" e "portu­ �-&1:_é!!!l�tica normativa,JJ.OrtalllQ,_ _l}�e> _e�iste lf:lg_l!.a cultb
guês" fossem conceitos unfvocos, inequfvocos e compactos, r6tulos de uso a��_gu�.IE�tos -��9sos .dQ..fe.o.ômenoclas_icteoJogias falam da ilusiio
exclusivo para a supost.a variedade lingüfstica das classes dominantes - _çriaaa por elas. Neste caso, a ilusao de que é possfvel existir um padrao lin-
tal como o.s vinhos das grandes regiôes produtoras européias trazem o selo güfstico uniforme, quando se sabe que toda lfngua é essencia[mente hetero-
,_.,....,._.,---.....,...,.,.___.

"
"denominaçào de origem controlada". Toda diferenciaçâo social é apagada gênea e multiforme. Vê-se também que, para os autores, "produçào cultural

a: 26 27
Dramélica da lingue porluguesa Grarnélica Trodicional e senso comum

é apenas aquela oriunda dos meios "cultos", das classes sociais de prestfgio, além de produzir suas pr6prias idéias, também possa distribu(-las, o que é
feito, por exemplo, através da educaçao, da religiao, dos costumes, dos meios
que têm acesso à linguagem oficial (na verdade, elas nào "têm acesso" e,
de comunicaçao disponfveis.
sim, criam, definem, detenninam e impôem a linguagem oficial). A literatura
de cordel, o cancioneiro popular, as parlendas e rimas tradicionais, as fabulas, A Gramatica Tradicional cumpre perfeitamente o papel de distribuiçao
lendas e mitos, as adivinhas e simpatias, as cantigas de roda, os remédios das cr�nças déimTnani:és aë que fala ChaùC Quando se analisa o qt{e chamo
caseiros, as receitas tradicionais, as brincadeiras infantis, as danças tfpicas, d�-mfrologiiiâol>ffëonêëito-Unià<stiCO(cC p;6�irr{o·c�p1t�Ï�),-.encQnt���se·
os ritmos musicais, os metros da poesia oral, as festas e folguedos, os autos alguns -chavôes concementes à lfngua portugue$a_que_ refletem precisam�!).te
populares, o artesanato ... enfim, todo o saber, todo o folclore, toda a cultura o sucesso. da ideoiogia <:lginin�nte em transformar em opi�iê\es -correntes,
do povo, em suas diversas manifestaçôes e expressôes, nao pode merecer o - de
em·I�g��es-co���,.a-s�a prôpri� concepçfü) distorçiJi lf�g�;; "B;a�il�-i�o
r6tulo de "produçao cultural" por nào estar "registrada" em "norma culta". nao sabe,português", "português é muit()_ diffcil", "as_pessog,i sem ins!_ruçao
Produçao cultural é, aqui também, uma "denominaçao de origem controlada". falam tudo-errado" etc. A difusao dessas e de outras "ilusôes", feita Î;-�1;
0 uso do adjetivq_Efi�ial no trecho acima citado de Cipro & Infante escola e pelos meibs de cômunicaçao, cristaliza-se no @e chamo de drculo
remete à teoria da "economiâ-aas tracas lingüfsticas", proposta por Bourdieu vicioso do preconceito lingü(stico (Bagno, 1999: 73) que tem seu poni:o__de
(1996: 32): pardda'ë dëchega.g;'�� G�;�1atka Tradicional. < - ..
A lfngua oficial esta enredada corn o Estado, tanto em sua gênese como em seus 0 papel dos meios de comunicaçao nesse processo evidencia-se, nos
usos sociais. É no processo de constituiçao do Estado que se criam as condiçôes dias que correm, pela força crescente de um movimento que denomino
de constituiçâo de um mercado lingüfstico unificado e dominado pela lfngua �ogyam.atiquice, levado adiante por comandos paragramaticais: programas
oficial: obrigat6ria em ocasiôes e espaças oficiais (escolas, entidades publicas, de radio e de televisao, colunas de jornais e de revistas, manuais de redaçao
instituiçôes polfticas, etc.), esta lfngua de Estado toma-se a norma te6rica pela de empresas jornalfsticas, "consultôrios gramaticais" por telefone, paginas
quai todas as praticas lingüfsticas sao objetivamente medidas. Ninguém pode
na Internet, co-R0Ms etc. Em todas essas manifestaçôes da neogramatiquice,
ignorar a lei lingüfstica que dispôe de seu corpo de juristas (os gramaticos) e de
seus agentes de imposiçâo e de controle (os professores), investidos do poder de encontramos expressos os chavôes a que me referi:
submeter universalmente ao exame e à sançâo jurfdica do tftulo escolar o desem­ • "Fala-se mal o português. Ou melhor, fala-se errado" (Sérgio Limoli, IswÉ,
penho lingüfstico dos sujeitos falantes. 20/8/1997).
• "S6 fndio fala pra mim fazer". (Eduardo Martins, IswÉ, 20/8/1997).
Para que um modo de expressào entre outros (uma lfngua, no caso do
• "Professor de português - um idioma que de tao maltratado no dia-a-dia dos
bilingüismo, uma utilizaçao da lfngua, no caso de uma sociedade dividida brasileiros, precisa ser divulgado e explicado para os milhôes que o têm como
em classes) se imponha como unico legftimo, é preciso que o mercado lingua materna" (Mario Sabino, Veja, 10/9/1997).
lingüfstico seja unificado e que os diferentes dialetos (de classe, regionais • "A lfngua é dificil" (Marilene Felinto, Folha de S. Paulo, 28/10/1997).
ou étnicos) estejam na pratica referidos à lfngua ou ao uso legftimo. En­ • "Atentados contra a lingua portuguesa" (Daniel Castro, Folha de S. Paulo,
quanto produto da dominaçâ.o polftica incessantemente reproduzida por 26/10/1997).
instituiçôes capazes de impor o reconhecimento universal da lfngua domi­ • "Nunca se escreveu e falou tao mal o idioma de Ruy Barbosa" (Arnaldo Niskier,
nante, a integraçâ.o numa mesma "comunidade lingüfstica" constitui a Folha de S. Paulo, 15/1/1998).
condiçao da instauraçao de relaçôes de dominaçao lingüfstica. • "A lingua portuguesa propriamente dita é bastante dificil" (Arnaldo Niskier,
Prosseguindo sua ana.lise do processo de constituiçâ.o das ideologias, 0 Dia, 28/02/1999).
Chaui explica: • "Basta pensar que a lfngua brasileira é outra. Uma pequena mostra de erros de
3) para que todos os membros da sociedade se identifiquem corn essas caracte­ redaçao coletados na imprensa revela que o português aqui transformou-se
rfsticas supostamente comuns a todos, é preciso que elas sejam convertidas num vernaculo scm l6gica nem regras" (Marilene Felinto, Folha de S. Paulo,
_e_111 idéia_:_�muns_a todos. Para que isto ocorr� é p���iso cjüêâé:lâsseëfomirÎarité, 04/01/2000).

28 29
Dram6fica da lingue porfuguesa Graméfica Tradicional e senso comum

Esses sao alguns dos inumeros exemplos de como a mfdia (e agui apenas M�_ p:i.r�ce que. a. GT.reali.za plenamen�e,��,LQP�.rn.çao Jntelectual, e
a mfdia impressa) participa ativamente do processo de consolidaçao pode�o-�,consta,taJ seu sw:e�s.o pr�cjsal_!lente 11{) arraigado preconceito lin�
da ideologia da Gramatica Tradicional e, por meio dela, do preconceito güfsÎ:ko q_ue ��a_ç��r,!zL�_.cµlt1JrnJm3§ik1ra. Novamente, se onde Ch;ui
lingüfstico. A esses comandos paragramaticais, em suas formas classicas e escreveu 1'idéias" for possfvel Ier "variedade lingüfstica", ficara facil enten­
contemporâneas, sera dedicado um lugar de destaque neste livro (Capftu­ der por que classifico a GT de ideologia. Afinal, a variedade lingüfstica das
los 3 e 4). classes dominantes (se é que existe, se é que nao passa, ela também, de um
0 quarto e ultimo aspecto da dominaçào ideol6gica, segundo Chaui, · "universal abstrato"; ver Capftulo 3) é que se transforma nesse universal
é o seguinte: abstrato chamado "Lfngua Portuguesa". S6 ela vale para todos os membros
4) como tais idéias [as da classe dominante] nao exprimem a rcalidade real, mas da sociedade brasileira como lfngua legftima e <ligna de respeito. Tudo o
representam a aparência social, as imagens das coisas e dos homens, é possfvel que escapa do domfnio lingüfstico delimitado pelas gramaticas normativas
passar a considera-las como independentes da realidade e, mais do que isso, é "corruptela", é "feio", é "errado". Nao é "lfngua de gente" ou, quando
inverter a relaçao fazenda corn que a realidade concreta seja tida como a muito, é lfngua de §eres h1,1manos degradados, os parias da sociedade. Par
realizaçao dessas idéias. isso Napoleao Mendes de Almeida fala c\e "lfngµa_d� co1inh�ir�s" ou de
Ja se viu de que modo a ideologia é usada para se contrapor à ciência, "infelizes caipiras", Luiz Antonio Sacconi condena a "lfngua de jacu" ou
isto é, à investigaçao empfrica da "realidade real". Vimos também, na cita­ dë"lrâsnôs";�êriq'uanto Eduard<? Martins a atribui a "fndios":
çào de Cipro & Infante, de que modo a Gramatica Tradicional empreende A atitude hip6crita do poder'quando se abriga par trâs da "vontade de todos",
vontade que ele suscita, planeja e interpreta, é um dado permanente da polftica.
' a inversao da relaçao idéias-realidade: a existência de um padrao uniforme é A mesma atitude se observa entre os puristas, quando pretendem encamar a
ï/S garantida pela gramatica normativa. Essa inversao é notavel quando se trata
v. vontade de uma instância social {como a "indole da lfngua") na quai se encontra
gY {
' \; 'l da relaçao entre éscriw �falâ:"'O certo é falar assim porque se escreve assim"; o "bom uso", e se saudam coma os bons falantes [Rey, 1972: 8].
:. ;):__;-,.� â forma graficà-dàspalàvras é que nos deve guiar no momento de pronuncia­
Somente a ilusao de que a Gramatica Tradicional, cristalizada nas grama­
las; a lfngua oral é que deve "respeitar" a ortografia, enquadrar-se em seus
ticas normativas, é modelo infalfvel, perfeito, universal para todas as lfnguas
mol des, caber na roupagem grafica, e nao o contrario...
do mundo é que permite a Almeida (1994: 591) redigir disparates coma este:
A distância entre a ideologia da GT e a realidade social é bem demons-
trada por Britto e D'Angelis (1998: 2): A gramâtica, no que diz respeito à funçao da palavra, é internacional. ,Qg1.,1� f
�gjç.ito_em.português.é sujeito_emch.i_n�§i .o que _é objeto direto em nosso idioma
A insistência no ensino da gramatica canônica articula-se COfll--três..DQÇQ� que . � gbje�o. �i�et_CJ ,e'!l qt1�lquer ou�ro, e O 1_1,les_�o se diga de tod�s a; f�;;ç5�; si�ta­
(
nao se confinnam na analise das praticas sociais: a.d_e.que .i.a.çà,9..!}Qrmativa tem -�':flS � de todas as classes de palav,ras.
·, por finalidade evitar a corrupçao e a degradaçao da Ungua nacional; ade ·que a
chàmadà nurma cuita é pr6pria de relaçôes formais, de �odo que·s��-nao d�mf­ Essa gramatica "intemacional" (uro universal abstrato) é pura ficçào do
pi_o Ïmpfb n� exclusà� d� sujeito de;sas si_tuag"i��; C. a de _qÙe_§!!IJ ç9�mento autor, decorrente de sua recusa a "olhar pelo telesc6pio" e de seu apego à
garan:t:e à acesso à dêtermin�d�s��pr�ssoes superiores de cultÙra e inform;çiio'. tradiçao nao-cientffica6• Para comprovar isso, e usando o exemplo que ele
Concluindo sua analise dos quatro procedimentos elencados par ela, mesmo sugeriu - o chinês -, basta um breve exame da literatura cientf­
Chaui (p. 95) diz que eles constituem fica especializada:
a operaçao intelectual por excelência da ideologia: a criaçao de universais abstra­
tos, isto é, a transformaçào das idéias particulares da classe dominante em idéias 6. Evidentemente, essa "gramatica internacional", a que se refere Almeida, nâo é da mesma
universais de todos e para todos os membros da sociedade. Essa universalidade natureza do projeta filos6fico-cientffico contido na busca da chamada gramatica uni11ersal,
empreendirnento investigativo de que se ocuparam, por exemplo, os racionalistas de Port-Roy al
das idéias é abstrata porque nao corresponde a nada real e concreto, visto que no no século XVII-XVIII e o gerativismo de Chomsky, no século XX. Ê, antes, uma noçâo distorcida,
real existem concretamente classes particulares e nao a universalidade humana. tentativa de aplicaçâo a taclas as lfnguas do mundo das categorias formais aplicaveis ao portu;
fi,s idéias da ideologia sao, pois, uniyersais_ abstratos. guês literario classico.

l" 30 31

li
Dromético da lingvo portugucsa Grumético Tradicionol e senso comum

[em chinês) nao existe nenhuma morfologia de casas que assinale diferenças entre mistificada, necessidades e desejos genufnos" (p. 25). �J:CJ§t�l,l _ f!\�J6gica, por
relaçôes gramaticais coma sujeito, objeto direto ou objeto indireto, nem existe mais distorcida que seja, por tr�s dos preconceitos; existe, incfo�tve, 3:lgµ,m
qualquer "concordância" ou flexao verbal para indicar o que é sujeito e o que é
objeto. No chinês, de fato, ha poucas razôes gramaticais para se postular relaçôes
��fil?-.��yerd�de.-n�le_s. ç;mo_diz Eagleton: "É falso aêiediç�� gü� � Sol�- 1
a
move ao redor da Terra, mas nâo é absurdo", e por isso uma recente sonda; -,)\.,h
gramaticais, embora haja, é claro, meios de distinguir quem fez o quê a quem, ta!
coma existem em todas as lfnguas [Li & T hompson, 1987: 824-825). [��.!!ios�tr��Sl!� Ulll: i:e�ço doib�itâniws acreditam qt1e O Sol gir,a efll to�o
. da Te.!1:�·-€:t_:lg�?--':1-�ll�.,!i�fil!lo _deles crêem que o sistema solar é maior que
Nesse casa, o apego de Almeida à tradiçâo leva ele a ultrapassar os o universo... Também pode nâo ser absurdo acreditar que existe uma ûnicà
limites de sua pr6pria sociedade: as regras da unica gramatica que de conhece Üngua "b;�;;I ;,b�nit�'je ll��'r'ret;,; � que; pür extensi�, as pessoàs que a falâïn
- a gramatica normativa da lîngua portuguesa escrita, formai, litera.ria, também lev�rr!__l:1_!11� Y-�ç1:a .'.'.I2�c1'\."_6o. nit�" e "correta" -� embora,�e.Ja falso.
classica - lhe parecem, naturalmente, validas para taclas as lfnguas da huma­ Para ser eficiente, a ideologia precisa ter um enraizamento mfnirno na
nidade. No mundo irreal desse gramatico, "todos os cisnes sâo brancos", a experiência das pessoas: "Uma ideologia sempre possui uma base real, s6 que
despeito de evidências em contrario. essa base esta de ponta-cabeça, é a aparência social" (Chaui, 1998: 108). É o
Os quatro procedimentos listados par Chaui sâo ampliados para seis mesmo que ja diziam Marx e Engels em A ideologia alema, ao comparar a
em Eagleton (1997: 19): ideologia a uma "câmara escura" em que os homens e suas relaçoes aparecem
Um poder dominante pode legitimar-se promovendo crenças e valores compatfveis inverti dos.
corn eles; naturalizando e universalizando tais crenças de modo a toma-las 6bvias e No caso da Gramatica Tradicional, é fa.cil comprovar que sua doutrina
aparentemente inevitaveis; denegrindo idéias que possam desafia-lo; excluindo for­ corresponde, na superffcie dos fatos, ao que realmente acontece na lfngua
mas rivais de pensamento, mediante talvez alguma l6gica nao declarada mas siste­ falada pelas pessoas. Quando quero dizer que estou residindo na capital da
matica; e obscurecendo a realidade social de modo a favorecê-lo. Tal "mistificaçao", Bahia desde 1980 e digo: Moro em Salvador hâ vinte anas, vejo que as grama­
9- como é comumente conhecida, corn freqüência assume a forma de camuflagem ou
ticas nomiativas têm razâo ao ensinar que mor(Lé um verbon9_pr9ente,...P� is
repressao dos conflitos sociais, da quai se origina o conceito de ideologia coma uma ,
resoluçao imagina.ria de contradiçôes reais. Em qualquer formaçao ideol6gica ge­ eu o usei precisamente para relatar algo que esta acontecendo comigo neste
nufna, todas as seis estratégias podem estabelecer entre si interaçôes complexas. m�nto_ presente, . f,_s_ gr_cllll.aticas rl(2rm13.tivas tc1mbéll1_ estâc:>__c:er!._as,.aCJ 4!�;_r
q1:e na oraçâo Pedro abriu a porta o sujeito é Pedro, ja gue elas definem $Uj�fço
Me parece que esse processo de "mistifiçaçâo" é patente, na sociedade c�ino-''êïsèrquëiirat:ica·â açid': Assim, como explica Zizek (1999: 13),
brasileira, na mitologia do preconceito lingüfstico que detalharei no pr6ximo uma ideologia nao é necessariamente "falsa": quanto a seu conteudo positiva, ela
capftulo. Como veremos também, na parte a eles consagrada, os comandos pode ser "verdadeira", muito precisa, pois o que realmente imp,orta nao é o con­
'(
paragramaticais cumprem primordialmente a missâo de denegrir as manifesta­ teudo afirmado como tal, mas o modo coma esse conteudo se relaciona com a postura
çôes lingüfsticas que nâo se enquadrem no modela canônico e de exclu(-las subjetiva envolvida em seu pr6prio processo de enunciaçâo. Estamos dentro do espa­
de qualquer esforço par democratizar o ambiente lingüfstico brasileiro. ça ideol6gico propriamente dito no momento em que esse conteudo - "verda­
deiro" ou "falso" (se verdadeiro, tanto melhor para o efeito ideol6gico) - é
funcional corn respeito a alguma relaçao de dominaçao social ("poder", "explo­
1.3.1 A realidade às avessas raçao") de maneira intrinsecamente nao transparente: para ser eficaz, a l6gica de
Corno adverte Fiorin (1998: 30): "A ideologia é constitufda pela reali­ legitimaçâo da relaçâo de dominaçâo tem que permanecer oculta.
dade e constituinte da realidade. Nâo é um conjunto de idéias que surge do Afinal, como prossegue o mesmo autor (p. 16),
nada ou da mente privilegiada de alguns pensadores". Nâo cabe acreditar,
A ideologia é uma comunicaçao sistematicamente distorcida: um texto em que,
portanto, que as ideologias existem simplesmente porque os "seres humanos sob a influência de interesses sociais inconfessos (de dominaçao etc.), uma lacu­
[estâo] atolados em preconceito irracional, incapazes de raciocinar de modo na separa seu sentido publico "oficial" e sua verdadeira intençao - ou seja, em
coerente" (Eagleton, 1997: 24). A força e o vigor perene das ideologias con­ que lidamos corn uma t-ensao nao refletida entre o conteudo enunciado explici­
servadoras têm sua raziio de ser no fato de codificarem "ainda que de maneira

L
tamente no texto e seus pressupostos pragmaticos.

32 33
Dromético do linguo portuguesa Gramética Trodicional e senso comum

É o que se verifica, por exemplo, corn os comandos paragramaticais que, Novamente, as definic,,'êies de Eagleton concordam corn as de Chaui
em seu alegado prop6sito de "democratizar o acesso à norma cuita", visam, (1998: 113):
de fato, a preservar (e, se possfvel, alargar) a distância que separa os que ja A ideologia é um conjunto l6gico, sistematico e coerente de representaçôes (idéias
"sabem" essa "norma cuita" dos que a ignoram. e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros
Recorrendo, novamente, a Chaui (1998: 114-115), encontramos uma da sociedade o que devem pensar e coma devem pensar, o que devem valorizar e
coma devem valorizar, o que devem sentir e coma devem sentir, o que devem fazer
ck§giçâo de ideologia que parece corresponder precisamente às crfticas
e como devem fazer.�1aé+PQrt:m.t9,1ffl).COrpo explicativo (representaçües) e p*i;:o
que, �ng�-do�éc�lo XX, a Lingüfstica vem fazendo da inconsistência (����cr.�grns,. preccitos)_��.ç;.a,sgr�u"?r§§Sû�ivu, normativo, .r�fa9Qr.
da Gramatica Tradicional:
Q!:le outra coisa é a Gramatica Tradicional, .c:Qrp()rific:ad? 11as gramaticas
Na qualidade de corpo te6rico e de conjunto de regras praticas, a ideologia possui
uma coerência racional pela quai precisa pagar um preço. Esse preço é a exis­ normatf;� e nos comarufos PEZamrmwtif�4;·�nao e?'aqmente u� ��pt�
tência de "brancos", de "lacunas" ou de "silêncios" que nunca poderâo ser preenchi­ logico, sistemaÎ:ico_e co�re.nçe de representaçoës)J bemcomo de ''normas ��
dos sob pena de destruir a coerência ideol6gica. 0 discurso ideol6gico é coerente (egra�.de7ol,)d�t.:D Nao êpor acaso qlie um classico paragramà.tical in{ do
e racional porque entre suas "partes" ou entre suas "frases" ha "brancos" ou "vazios", cio do século se chamava O que se nao deve dizer (Figueiredo, 1,903) e outro
responsaveis pela coerência. Assim, ela é coerente nâo apesar das lacunas, mas
par causa ou graças às lacunas. Ela é coerente coma ciência, coma moral, como
classico do final do sêculo se chama Na.a erre mais! (Sacéoni, 1998). Sao
· tecnologia, como filosofia, coma religiâo, coma pedagogia, coma explicaçâo e continuadores fiéis da velha t,radiçâo gramatical que ja na época do latim
como açâo apenas porque nifo diz tudo e niio pode dizer tudo. Se dissesse tudo, se vulgar publicava suas listas d� "barbarismos" e "metaplasmos" como a de
quebraria por dentro. Consêncio (século V) e o famosfssimo Appendix Probi (século III). Sao, por­
tanto, mais de mil e quinhentos anos de policiamento gramatiqueiro. 0 que
Daf a recusa perempt6ria dos gramaticos tradicionalistas de admitir
9- Chaui diz da ideologia - "Ela é um corpo explicativo e pratico de carater
que muitos de seus postulados sao inconsistentes, que ha contradiçoes inter­
prescritivo, normativo, regulador" - pode ser aplicado ipsis litteris à Grama­
nas em suas doutrinas, que muitas de suas regras sao antes exceçoes do que
tica Tradicional tal como corporificada nas gramaticas normativas.
regras, que suas definiçoes de conceitos esbarram o tempo todo corn obsta­
culos que eles se negam a ver. Admitir isso tudo equivaleria a preencher os
"vazios", as "lacunas" da GT, enchendo-as corn cargas explosivas que a fa­ 1.3.2 Visào de mundo vitoriosa
riam implodir.
0 sucesso de uma ideologia é pleno quando, como ja vimos, as crenças
A dose de realidade cohtida no discurso ideol6gico esta sempre subor­
dinada à mundividência que o conforma. Nao interessa se um mesmo autor que ela veicula se tornam communis opinio, "visao de mundo" compartilha­
classico usou onde voue aonde vou indiferentemente em sua obra. As abona­ da por todos
. " .. ' . -·os membros da sociedade.. E amelnorïnâneira de verificar
. ., ... -. . ···-· . . .- -�-· . . -· ·- _.. ,. . ' - .. -·--- ". ·-·

esse sucesso é aferindo a interiorizaçâo <;los preconceitos disseminados por


ç5es oferecidas pelo gramatico normativo serao exclusivamente aquelas que
essa ideologia. Quando ouvimos tao freqüentemente declaraçoes do tipo
corroborem as suas prescriçoes, as que o ajudem na imposiçâo e conserva­
çâo da norma, no sentido mais jurfdico e moralista do termo, a despeito de "brasileiro nao sabe português" ou, pior, "eu nao sei português", estamos
provas em contrario: <liante da absorçâo total da ideologia por parte de seus "suditos", como diz
Eagleton. O��!:l!im�P.,t.Qc!.e. inferioridade.e., pior, suiutçeitaçiip como al_go
[...] o discurso ideol6gico exibe, de modo tfpico, uma certa proporçâo entre pro­
posiçôes empfricas e aquilo que poderfamos grosseiramente denominar "visâo de
"rwt11r,�l'' �â.Q .provgs .rabais c!o.. fxitn_d<.1 jg_�9l_Qg(�_g.9minan,te:
mundo", na quai a ültima leva uma ligeira vantagem sobre as primeiras. [...] É Uma prova de que ninguém é, ideologicamente falando, um tolo completo, é o
possfvel, portanto, pensar no discurso ideol6gico coma uma complexa rede de fato de que as pessoas ditas inferiores devem realmente aprender a sê-lo. Nâo é
elementos empfricos e normativos, dentro da quai a natureza e organizaçâo dos suficiente para uma mulher ou um colono serem definidos como uma forma de
primeiros é, em ultima ana.lise, determinada pelas requisitos dos ultimos (Eagleton, vida inferior: é preciso ensinar-lhes ati11amente essa definiçâo, e alguns deles reve­
1997: 33 ). lam-se brilhantes bacharéis nesse processo. É surpreendente quâo habeis, enge-

';, 34 35
1
Drom6tica da lingua portuguesa Gram6tica Tradicianol e senso comum

nhosos e perspicazes podem ser os homens e as mulheres em provar para si mesmos a auto-rejeiçao lingüfstica, a autodepreciaçao por parte do falante da lfngua/
que sâo incivilizados e burros [Eagleton, 1997: 14]. variedade que é a sua. Ele rejeita e deprecia, no mesmo movimento, tudo
0 velho sentimento conformista expresso no comentario "é porque aquilo que constitui a sua ù1.."Tltidade mesma de indivfduo.
Deus quer assim" ou "foi por vontade de Deus", que encontramos na fala
de brasileiros desfavorecidos <liante de alguma calamidade perfeitamente 1.3.3 Um discurso preso ao passado
evitavel (seca no Nordeste, enchente na periferia de Sao Paulo, desaba­ Uma ultima tarefa importante na identificaçao da Gramatica Tradicio­
mento de barracos em favelas do Rio de Janeiro) é a sfntese perfeita desse nal como uma ideologia, parece-me, é mostrar de que.mo.�o as ideologias
processo. Mas nâo devemos crer, ingenuamente, que s6 os nossos pobres se conservadoras :-- entre as qu;i.isjnduo a GT -- privilegiam um discurso
submetem a ele. Desërevendo uma sociedade totalmente diversa da brasilei­ t�tJmeni� v�l!isf�Ï,_f!f.8 o_passado,.nw:n processo d_e:�s-histori�izqçfüJ desse
ra, a britânica, Eagleton (199?: 49) deixa claro que "a sociedade capitalista discurso, que passf!_g$1:,.ëssim,.l!l11!1, "grande verdade" atemporal, estatica,
avançada ainda requer sujeitos autodisciplinados, cumpridores de seus de­ a�·tônom;;·ëriiii'�.�jmµxavel em reÎaçao .à situaçao hist6rico-social que a
veres e inteligentemente conformistas". prodüzîu�·independ�nte das lutas sociais que o conformaram. Explicando o
��!:!f§l�o da,jn!(:'.ÜQr,iia�9 q9_prJ�C?.J:1c::�:lto lingüfstico te�n9s os_rgsul­ cônêêit:o de "amnési�.da g�nese'.' proposto por Boui-dku, escreve Gnene
_ta,dos da pesquisa. etnpree11dida por Coelho (12_9�) s_(}�re a�itudes lingüfsti­ (1985: 2ff;°-' ,., . . .
cas no sertâo pernambucano-baiano, que--revelam - · a····que
·· grau pocle chegar Q A curta mem6ria social e histôrica permite um tipo de legitimaçâo que nâo seria
pr�cC>ncë itôcontra sr m e smo:· ··-- -- · -- passive! se a origem das instituiçoes sociais e o scu significado e funçâo fossem
Partimos da hip6tese de que o nordestino do Submédio Sâo Francisco que foi para perfeitamente explicitas para todos. f: amnésia da gênese, pelo contrario, pernü­
Sâo Paulo, por ocasiâo do enchimento do Lago de ltaparica, e manteve contato J�__q_u(ê_��-�!en�.\l..a_gram�tic:i-norrnativa fora <las_condiçoes politicas de sua ins­
g, corn falantes paulistas, ao regressar à sua terra manifesta atitudes negativas em t�<?J:J.��iq�i. a,, _g��ql}�igHid_[!�.<:.!sl�.11�f_essidade_é, llffi tW,ÇÇ> fund_a111ental
·.
relaçâo ao seu pr6prio falar (culturalmente estigmatizado) e positivas em relaçâo do processo ...--de _legiç_imaçâo.
----·--,,.- ··--
ao falar paulista (culturalmente prestigiado). [...] Os resultados indicaram tendên­
cia acentuada dos informantes do Grupo B (corn ".iagem a Sâo Paulo) a rejeitarem Nessa tarefa recorrerei ao fil6sofo italiano Ferruccio Rossi-Landi e a
o falar nordestino e a prestigiarem o falar paulista. Os nordestinos do Grupo A sua obra A linguagem coma trabalho e coma mercado (1985; 1 • ediçao italiana:
(sem viagem a Sâo Paulo) manifestaram também, embora de forma menas acen­ 1968), em cuja pagina 151 podemos 1er:
tuada, rejeiçâo pelo pr6prio falar e admiraçâo pelo falar paulista [Resumo). Sustentar que num objeto. exi�re. algo de_ e,m:a-hist6rico significa oper.ar .IJ!l;l
. -�· _·11 lJma grave conseqüência dessa situaçao estaem seu vfnculo profun.do
privileg!�lll!n�o.Ï?tÏseâdiû:iop_qss(ldo. Este é O primeiro po�t� essen�i;Ïp�ra a in:
et.:'·, .,, ... corn a problematica da identidade. A funçao mais elementar da linguagem é te'rpretaçâo de qualquer ideologia conservadora ou reacionaria, independente­
(
,._, mente das modalidades de comportamento segundo as quais ela pode manifestar­
p��iti� ;·com�rÏicaçâo êfo'indivfduo consigo mesmo: é corn a lfngua que
\_
� -.,..;
-�"\_Y· se contingentemente. Corn efeito os objetos que sâo ditos hoje extra-hist6ricos,
y pensamos, é nela que sonhamos. Por isso Jacques Lacan pôde afirmar: "O
inconsciente· se estrutura como uma linguagem". A lfngua esta, portanto,
nada mais podem ser senâo objetos construidos pela humanidade em alguma fase
precedente de seu desenvolvimento social. Sao esses os objetos que se quer de­
profundamente entranhada na constituiçao ontol6gica, poder(amos dizer, do fender e conservar - e tanto melhor se o processo hist6rico do momento tiver
institufdo uma maquina social capaz de conserva-los automaticamente .
indivfduo. Menosprezar, rebaixar, ridicularizar a lfngua ou variedade de lfn­
gua empregada por um ser humano equivale a menospreza-lo, rebaixa-lo, 0 apego da GT ao passado é freqüent!:!rneme o ::1ly9 prefrddo_ q�-�-".!-�s
'.
! \,, · -
\ ridiculariza-lo enquanto ser humano. Co!Ilo diz Mey (in Signorini, 1998: 81):
"Nâo ha.Jfnguas em.si, sgm�n.t��--;É:,Jas lfn�f!_s", palavras que encontram
. crfticos. _A P!§Pçta qua}ifiç,aÇ?_�_,c!� tr�ic/onp(�Y.i�-�.11_ci�..�s.���P.��- A
defesa intransigente das opçôes sintaticas dos grandes escritores classicos
eco nesta afirmaçao de Auroux (1998: 19): "AJ!ngua_erf!sJ.ri.âo ex_is!.e· Nâo (isto é, do passado), o ataque constante à lfngua "deturpada" e "corrompi­
elfJfü!ID, Çrn certas porçxies de espaçx:i�t_empo, se_fl�O. sµjeitÇ>S, dotados de .Ç.ê:_tas da" dos <lias de hoje, a perseguiçao aos estrangeirismos, a recusa em aceitar
capacidades
-·- - lingüfsticas". Fica fa.cil avaliar,,.,portanto, a gravidade
·.· ... .. ... ..
..- ,
que assume
,. .
a mudança-variaçao da lfngua sâo caracterfsticas dos defensores da GT.

36 37
Dromético do Hngua portuguesa Gram6tica Tradicional e senso comum

Por isso nâ.o vamos estranhar que o mesmo tom empregado por Cândido A noçao de que a doutrina gramatical veiculada hoje pelas gramaticas
de Figueiredo no final do século XIX para lamentar a "degradaçao" da normativas é um dos "objetos construîdos pela humanidade em alguma
lîngua portuguesa esteja presente, por exemplo, num artigo de Arnaldo fase precedente de seu desenvolvimento social", como diz Rossi-Landi,
Niskier publicado no final do século XX. Ero Figueiredo (1929: 13) lemos: escapa totalmente aos defensores da GT. Comp J;L�rgumentei em trabalho
Quanta mais progressiva é a civilizaçao de um povo, mais sujeita é a sua lfngua anterior (Bagno 1999: 63), o que aconieff.YfQi µrnai;;;;:;W>�d�"r�;fü�e
a deturpaçôes e vicias, sob a variada influência das relaçôes intemacionais, dos .hist6rica, que é, como vimos, �ma_ëarac�erîstiç:.a.:_c,Ia_s idÇ,ol9gis1s,l\�grama-
novas inventas, das travancas da ignorância, e até dos caprichos da moda. [...] ti�àtfôrârrï"ésêritas "i:,rf�t�ifil�Bt�:,PJ!f.i:dé;�'r�ver. e fi�ar CÇ)ffiO "regn1i: e
Sabios e romancistas, poetas e prosadores, e nomeadamente a imprensa peri6dica, "RJld!°§d' �§a?jf�s�as:§e,s)ing(iîstip�.s lls.adas e�pontaneamente_Relps es­
parece haverem conspirado para dar curso às mais extraordinarias invençoes e critores consider;i_qo.s,)1J,1ma deteJr.µjn,;:içla época, dig11qs de admiraçao, mo­
enxertos de linguagem.
deiô;tâs�� i�it�do;. Ou seja, a gramatica normativa é decorrê�cia tfu usa da­
Os termos invençoes e enxertos - que se referem a inovaçoes, mudanças, l(�gua, é s�b��dl;ada a ele, dependente dele. Corno a GN, porém, passou a
transformaçoes na lîngua - dao bem a prova do apego do autor a uma nor­ ser um mecanismo ideol6gico·de poder e de controle de uma classe social domi­
ma lingüfstica ideal enraizada no passado. Quase cem anos depois, é a vez nante sobre as demais, su,rgiu essa "falsa consciência!I, esse "senso comum 0,
do entâ.o presidente da Academia Brasileira de Letras lamentar: essa "base real de poni:à��abeça" dè-qüe Ôs falâni:ës'e e���it6res da lf;;gua é
A classe dita cuita mostra-se displicente em relaçao à lîngua nacional, e a indigên­ -predsam cl�.
·qu'é' ià:�rii�tlc.tii�imâJiY�t �omo. s�·:eli fo§;e. �u�;���pé�ie· -de,
cia vocabular tomou conta da juventude e dos nao tao jovens assim, quase coma tont:è7îffsti�::Ïjµ�isJ,v,eLdaq�aliro.auitaJfngu,�_'.'hgµit�", '' correta0 e "pur�; .
se aqueles se orgulhassem de sua pr6pria ignorância e estes quisessem voltar atras Â'îî�'gu;·pa��ou a ser subordinada e dependent� da gramatica-��;�ati;;,
no tempo (Arnaldo Niskier, Folha de S. Paulo, 15/1/1998). 0 que nao esta na GN "nâ.o é português".
I}-
0 mesmo ataque feito por Figueiredo à imprensa peri6dica é retomado Quanto a uma "maquina social" capaz de defender e conservar automa­
obsessivamente por Sacconi (1998) em diversos trechos de seu livro: ticamente, como diz Rossi-Landi, a ideologia dominante, a "supergramatica"
imperante, sabemos muito bem que ela existe no Brasil. A persistência de
• Os brasileiros, por exemplo, vivem male parcamente num pais onde os jornalis­
tas escrevem muito male parcamente ... (p. 77). um preconceito lingüfstico tâ.o poderoso em nossa cultura demonstra isso
• Essa gente [os jornalistas] ainda vai um dia inventar uma nova lfngua, inteli­
claramente. Nossa "maquina social", que se caracteriza por ser simplesmente
gfvel s6 para si mesmos (p. 82). a sociedade cqgi.i,pJ;r �jii:x(bµjçâ� �i.'xindadt: tocl� 0 pJa�et;7, serve per­
• A qualidade de nossos jamais piora (É preciso acrescentar ainda mais?) (p. 94). fêit�m�nte a9§ p�qpqsttos <:le defesa e co�s�r;açâ.o da -icle·;1�già'(è'.dô-poder)
.das da;;�s d�minant;s·.A �i�içi�-'{i994J êrèe!ftfç§o ( i998) à Presidênéia·
0 temor de que surja uma "nova !fngua" é revelador da ilusâ.o conser­ da Republica de um obediente cumpridor das imposiçôes da comunidade \,.
vadora que guia o autor, incapaz de olhar pelo telesc6pio � ver que a lfngua financeira intemacional, aliado às forças polfticas mais retr6gradas e a bordo
portuguesa do Brasil esta mudando porque isso faz parte da natureza de de um projeto econômico que visa declaradamente aprofundar o abismo
)
qualquer lfngua viva. Mas o verdadeiro temor embutido nessa ideologia é entre as classes sociais do paîs, comprova isso cabalmente. ---
outro: o temor da transformaçao social. É como analisa Rey (1972: 22):
Uma das constantes do purismo é a recusa da mudança hist6rica. [...] A recusa se
7. Dadas de um relat6rio do Unicef publicados pela revista Veja (22/12/1999, pp. 36-37)
dirige aos imprevis(veis da hist6ria, e a recusa do tempo hist6rico recobre de fato revelam que ha 21 -milhêies de crianças e adolescentes no Brasil vivendo abaixo do nfvel da
a recusa do tempo social, da evoluçao social. A indignaçao <liante de uma onda pobreza; numa lista de 191 pafses, o Brasil ocupa o 108° [ugar em mortalidade infanril; na
de empréstimos, abertamente justificada pela temor de uma desestruturaçao da distribuiçîio de renda, s6 perde para Serra Leoa, considerado o pafs mais pobre do mundo, em
lfngua (assimilada ao léxico) corresponde sobretudo, parece, a uma reaçâo <lian­ guerra civil ha dez anos. No Brasil, os 40% mais pobres ganham o equivalente a 8% da renda
te de uma mudança social [...]. Por vezes, a rejeiçao de determinado eleme!_lto de nacional, enquanto os 20% mais ricos ganham 64%. 0 ensino médio brasileiro s6 atende 50%
uso é conscientemente motivado pela recusa de aceitar na norma ideal o_c_ompor­ da populaçiio entre 15 e 18 anos, deixando o pais em 94° lugar numa lista de 165 pafses. Tudo
tamento de uma classe de falantes. isso num pafs que tem a décima maior economia do planeta.

1 38 39
Dramética da lingue porluguesa Gramolico Trodicional e 5enso cornum

0 que Rossi-Landi (1985: 152) diz acerca do "planejamento social" ou França8 • Na Espanha, a Real Academia, fundada pelo rei Filipe V em 1714,
do "projeta" que toda ideologia comporta é um retrato fiel do pensamento à imitaçao da francesa, tem coma objetivos "la propiedad, elegancia y pureza
gramatical conservador: de las voces del idioma castellano", objetivos resumidos em seu lema:
"Limpia, fija y da esplendor". Seu dicionario e sua gramatica têm força de lei
0 planejamento social às vezes declarado e às vezes ocultado pelo discurso pri­
vilegiado extra-historicamente consiste, entao, em se contrapor ao presente o
nâ.o s6 na Espanha, mas em todos os pafses de lfngua espanhola. Em Portu­
passado como mais forte e, sobretudo, em fazer corn que o futuro se pareça corn gal, sob os auspfcios de D. Maria 1, foi fundada em 1783 a Academia de
ele. 0 que se quer impedir é que do presente surja um futuro radicalmente dife­ Ciências de Lisboa, interessada nao apenas nas questoes lingüfsticas e litera­
rente. 0 pedaço de passado a ser conservado é entao imobilizado,· estaticizado, rias como também em ciências naturais, ciências exatas e belas-artes. Ao
des-dialetizado, justamente porque se quer subtraf-lo à mudança. contrario de suas congêneres francesa e espanhola, a academia portuguesa
nao levou a cabo a tarefa de publicar seu dicionario oficial, cujo unico
A ânsia desenfreada de "preservar" a lfngua em sua "pureza" faz parte, volume, publicado em 1793, d�teve-se no verbete azurrar, o que deu margem
indubitavelmente, desse "planejamento social". Nesse planejamento de­ a mais de uma pilhéria. No Brasil, a Acade�ia Brasileira de Letras, outro
sempenharam (e desempenham) papel importante as academias de lfngua, êmulo da francesa, fundada em 1896, tem por fim alegado "a cultura da
institufdas como autoridade unica, absoluta e infalfvel na definiçao do voca­ lfngua e da literatura ·nacional". É responsavel pela publicaçao e revisao
bulârio oficial das lfnguas e nos usas leg{timos dos seus mecanismos fono­ peri6dica do Vocabulario Ortografico da Ungua Portuguesa.
morfossintâticos e de sua semântica. Seu mais importante modela foi, sem Os gramaticos tradicionalihas parecem querer nos convencer de que
duvida, a Academia Francesa. Analisando-a à luz da preservaçao do ideal s6 eles po'dem impedir a mudança da lfngua, salva-la da "decadência léxica
clâssico de "pureza" da lfngua, escreve Lyons (1995: 17-18): e sintatica dos nossos dias" (Almeida, 1994: 525). A insistência na descriçao
9- de uma realidade lingüfstica ultrapassada, tida como a ideal, é que leva eles,
Nao se poderia encontrar prova mais admiravel da resistência da tradiçao clas­ por exemplo, a reproduzir, inalterados, os quadros dos "pronomes pessoais
sica no estudo da linguagem do que as definiçoes encontradas nas mais recentes
do caso reto" que ainda incluem t�_ey_6s e deixam de fora você que é, real­
ediçôes do dicionario e da gramatica da Academia Francesa que, desde sua fun­
daçao por Richelieu (em 16:37), tem sido encarregada da tarefa de estabelecer mente, o pronome-sujeito de segunda pessoa mais amplamente Ùsado no
autoritariamente o vocabulario e a gramatica do francês. A gramatica é definida Brasil. Ou em continuar presqevendo uma preposiçao a para reger verbos
como "a arte de falar e escrever corretamente"; seu objetivo é descobrir as rela­ de movimento como ir. e çhegar, -�mbora-a ime;sa maioria:dos hrâ�il�hoiîde
çôes existentes entre os elementos da lfngua, sejam essas relaçôes "naturais" ou
"convencionais"; a tarefa do gramatico é descrever o "bom uso", isto é, a lfngua çôës"éomo em e para (v�i: Çapfü116.. 1t . _,_. ___ . . .•
tod�s as cjgsses SOCÜlÎ�! inclusiv_e_�s_ cJ:iaf!_lf:l.das "cultas",us�!11 <?ll_tras prepo;i,

das pessoas educadas e dos escritores que escrevem francês "puro", e defender ---A repetiçao ad nauseam dos bordôes que denunciam c deploram a "de­
esse "bom uso" dè "todas as causas de corrupçao, tais como a invasao do vocabu­ cadência" da lfngua é que gera, nutre e sustenta o preconceito lingüfstico.
lario por palavras estrangeiras, termos técnicos, gfria e pelas express6es barba- A força desse preconceito é que assegura aos ide6logos da GT sua sobrevi­
ras que estao sendo constantemente criadas para satisfazer as necessidades duvi­ vência, em todos os sentidos, inclusive o econômico.
dosas do comércio, da industria, do esporte, da publicidade, etc."; quanto às re­
Em sua anilise do processo de planejamento social constitufdo pela
gras da gramatica, elas nao sao arbitra.rias, -mas "derivam das tendências naturais
da mente humana".
ideologia conservadora, Rossi-Landi (1985: 153) se pergunta o que acon­
tece corn O objeto "apenas-natural" ou "supra-natural", desdialetizado, des­
Segundo Lyons, embora nao exista um 6rgao oficial que tenha autori­ historicizado, oferecido pela ideologia:
dade legislativa sobre o uso do inglês, os preconceitos litera.rios e fllos6ficos
embutidos nas definiçô�s de gramatica da Academia Francesa (cuja origem 8. Cf. Haugen (1972: 106): "Quando escritores ingleses do século XVIII debateram se se
deveria estabelecer uma academia inglcsa para regular a Hngua, a idéia desse tipo de instituiçao
podemos remontar à Accademia della Crusca, de Florença, fundada em veio da França. A proposta foi amplamente rejeitada porque os ingleses nâo desejavam repro­
1583) nao deixam de predominar nos pafses angl6fonos, tanto quanta na duzir o que consideravam ser a 'tirania' francesa".

40 41
Dram6tica da Irngua portugueso ·Grom6tico Tradicionol e senso comum

di­
Sera possfvel, ap6s tê-lo indicado, continuar falando dele? A resposta comumen­ Uma série de pequenas mudanças caracterizam as gramaticas normativas de
tc é sim, corn certeza. Alias, faz parte de quase todos os projetas conservadores épocas: é assim que uma gramatic a de hoje estabelec e uma norma que
ferentes
ou
que se fale dele o mais possfvel. E justamente por se falar dele, isto é, por se estar certamente é diferente da que encontramos numa gramatica do século XVIII
desenvolvendo uma operaçao hist6rico-social por excelência, é que se precisa de Oliveira . Porém, tal como na religiâo, nos valores
na gramatica de Fernao
a de fases
atribuir a seu isolamento de todo o resta, isolamento esse no quai se deseja manter marais e éticos, na norma lingüfstica nâo aparece uma crftica explicit
transmit ida é uma de continu idade.
o objeto, um carater extra-hist6rico; e quanta mais se fala nisso, tanto mais se anteriores. Pelo contrario, a impressao que é
confirma sua fixidez e se evita falar do resta. Constituem-se, assim, os objetos das e a formaliz açao de crenças e valores é util: podemo s
0 paralelo corn a religiâo
ciências naturais ou naturalizantes, que sao todas ciências particulares, isto é,. na distânci a, em termos de dogmas, praticas e crenças, entre o catolicismo
pensar
caracterfstica
bem separadas uma da outra. Elas sâo solicitadas a estudar o mais detalhadamen­ do século XVe o atual. Ainda assim a idéia que é transmitida como
idade e estabilid ade. As metafora s fortemente
te possfvel aquilo que "esta parada": nâo necessariamente no sentido d� ser im6- central da igreja é a de continu
vel, pois pode também tratar-se de movimentos abstratamente peri6dicos; mas cas nas quais a figura social do professo r, peça-ch ave do processo buro­
ideol6gi
, é apresent ada como
no sentido de nao estar sujeito ao devir. Essas ciências farâo uso entao de técnicas cratico-seletivo da escola do estado "democratico' moderno
altamente
l6gico-quantitativas, mecanicistas, mensurativas, enfim, de técnicas da espacia­ a de cumpridor de uma "missao" (quase que sagrada) do ensino, sao
lidade enquanto isolada da temporalidade. significativas parà pensar 'este paralelo lfngua-r eligiao.

A Grama tica Tradicional, como t êm reve kdo todas as crfticas feitas a De faro, ainda é comum encontrar a designaçao da profissao docente
ela ao longo do século XX, é eminente mente uma "ciência" do que "esta como um "sacerd6cio", para nao falar do surrado clichê da professora como
ulo
parado". A lfngua que ela esmiuça, mensura e prescreve é um obj eto atem­ "segunda mae", desqualificada �em sua identidade profissiona l pelo r6t
poral, um "monumento" (termo de predileçao dos gramaticos tradicionalis ­ hipocritàmente afetivo de " t ia". Ma.e s , t ias e sace rdote s fazem tudo por
suas
tas), defini t ivamente na.o "sujeit o ao devir". E as palavras de Rossi-Landi, "amor" à "missao", e nao haveria motivos, portanto, para aprimorar
publicadas em 1968, descrevem muito bem a situaçao da GT na cult ura bra­ condiçêies de trabalho e seus sala.rio s .
g sileira contemporânea: nunca se falou tanto de "lfngua portuguesa" nos meios Perini (1997: 48) assim descreve a sit uaçao do ensino de lfngua no
de comunicaçïo como se faz neste momento. Para o ja citado Arnaldo Niskier, Brasil:
t ra ta-se de uma "saudavel epidemia". 0 jomalista Sérgio Limolli {IstoÉ, 20/ 0 aluno de terceiro ano prima.rio jâ esta estudando as classes de palavras
ea
estudan­
8/1997) fala de "part ir para um contra-ataque" contra as "agressêies ao idioma" ana.lise sintatica - e nao sabe. Ao chegar ao terceiro colegial, continua
sabendo. Um
e usa termos como "uma dessas ofensivas", "saiu em defesa do idioma", "a do a analise sintatica e as classes de palavras - e continua nao
professor de portuguê s, mesmo que de colegial, nâo pode entrar na sala esperan­
radio ... investe no pr�grama". Para Rossi-Landi, sintatica , ou que possam distingu ir uma
do que os alunos dominem a ana.lise
De um ponto de vista dialético, trata-se de um contfnuo dar voltas em torno da decepço es. E eles estudam esse
preposiçao de um advérbio, sob pena de graves
tese, sem superar seus limites. Cada tese, historicamente, era uma sfntese. Uma assunto ha oito anos, às vezes mais!
vez, porém, que ela foi assumida em sua nova imediatez, ela foi subtrafda ao
movimento e passou-se a ocupar-se apenas corn ela, fragmentando-a intemamente Corno diz_esse au_tor, _gr.;i..ro.�tlça,é.'..'.a..matér@qµe nfrwu§m ap1en�".
e complicando-a desmedidamente. A mesma operaçao é realizada sobre outras Sem cumprir seu obj etivo dedarado, "ensinar a lfr:iglla", pedagogia gra- i
o
matiq�eira SO obtém SUCeSS(). ern -���-�bj�ti��-;Zu!t�do:. ref()f.ÇlJ a �on�i�çâ
novas teses. Desse modo, nunca se chega à antftese; sem se falar de novas sfnteses,
completamente obliteradas.
dôjij;iiêi-î�fr 4�i����'P9!.!YJiY�.Ù e u n
m4it9_1Jf��ii'' _ _��_g_ �...'.'. µ aq
s li
e �ei
ca
portug��
r a, i­

ra c aut ? !1g !� i c!_'? �
���IT.<!!:EillPJi_l}}.p.� p_� _ j���- 9:,,a..Y.�-� _�
sile
A GT, como t oda ideologia, "relu ta em acreditar que um dia nasceu, ü t

pois isso seria o mesmo que reconhecer que pode marrer" (Eagleton, 1997: ro, fazer ele acredita,Ln�ini.t;olo_gi;t.sls.>J�r�.�-<?_I)S�.i�'!_E���jsticg �- transfqr,n:ia­
c.t;i_ t_c:>:
lo nu.T..P�rp-�m?.dçu.repmd1Jtor.4o.sfr.�.u!'2}.'!<::[Q�Q,.Q�.�- � pr_eç_on
s
61). A denuncia const ante, por parte de t antos ling ü istas e pedagogos, do
carater repetitivo e, ao fim e ao cabo, inutil do ensino gramatical é o de snu­
damento desse "contfnuo dar voltas em tomo da tese". Como analisa Gnerre
(1985: 20):

42 43
Do mite ao preconceito:
os comandos paragramaticais
lJ,

---------�--��-----==_ttai--=-:-::==-'< ™ ..JJI;.

,Science must begin with myths, and with the criticism


of myths.• ·
Karl Popper

«ln an age when discrimination in terms of race, colour,


religion or gender is not publicly acceptable, the las!
bastion of overt social discrimination will continue ta
be a person's use of language.•"
James Milroy

2.0 INTRODUÇÂO
Em traball10J1.nts:r.i.Qt{B,agno, 1999) fiz uma analise do preconceitQ lin­
güfstico impera�te na socied�dë-b " ràslleirâ
- · · :. ,,__
- iiôr meio dos mitas corn-
' -•·:. •..,.•,,.�<>-•. -. - ·· . -·- ·---�····--· -.:· ····- , - ., - ·
q��--�
· · -,···-."-·.-:,, .... ,.-· ·- �--,·. ·. · · · .• . ,. ,... . ..

* "A ciência deve começar corn os mitos, e corn a crftica dos mitos".
** "Numa é poca em que a discriminaçao em termos de raça, cor, religiâo ou sexo nao é publi­

camente aceitavel, o ultimo bastiao da disc riminaçao social explicita continuara a ser o uso da
lrngua por alguém".

45

Você também pode gostar