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21o festival do filme

documentário e etnográfico
fórum de antropologia e cinema
Este festival é dedicado a Andrea Tonacci
Prelúdio Prelude
Filmar esse deserto
Raymonde Carasco  9

Sessão de Abertura Opening Session  15


Os fins neste mundo: imagens do Antropoceno Showcase The ends in this world: images of the Anthropocene  19

Os fins neste mundo: imagens do Antropoceno


Frederico Sabino, Carla Italiano e Júnia Torres  21

Mostra Contemporânea Brasileira Brazilian Contemporary Showcase  45


Meu corpo é e será político até o fim
Glaura Cardoso Vale, Leonardo Amaral e Renata Otto  47

Mostra Contemporânea Internacional International Contemporary Showcase  63


Algumas mutações do documentário
Anna Flávia Dias Salles, Daniel Ribeiro Duarte e Ewerton Belico  65

Sessões Especiais / Mostra de fotografias / Curso Special screenings / Photography exhibit / Workshop  77
Seminário Seminars  88
Ensaios Essays  93

Piripkura: borboletas, ou vaga-lumes, que insistem em aparecer e desaparecer


Ruben Caixeta de Queiroz  95

Desta terra, para esta terra


Isael e Sueli Maxakali  102

"Se não tiver mais reza o mundo vai acabar"


Estela Vera  105

Para que a América viva, a Europa deve morrer


Discurso do ator e ativista Oglala Lakota Russell Means  108

Gaia
Isabelle Stengers  120

καταστροφή: o fim e o começo


Déborah Danowski  127

Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes


Donna Haraway  132

A esperança é a última que mata


Roberto Romero  141
O azul do céu – novembro-dezembro 2001
Raymonde Carasco  151

Conversa sobre filmes e paisagens


Frederico Sabino  161

Era uma vez Brasília: conversa com Adirley Queirós


Cláudia Mesquita  167

Pode o cinema abrir uma passagem?


sobre Quilombo Rio dos Macacos, de Josias Pires
Fabio Rodrigues Filho e Amaranta Cesar  175

A dor, esse eterno riso de melancolia


sobre Festejo muito pessoal, de Carlos Adriano
Roberto Cotta  179

Conselheiro Crispiniano: descortinando os espaços


sobre filme de Yudji Oliveira
Leonardo Amaral  182

Em busca da palavra plural


sobre Abissal, de Arthur Leite, e Luiza, de Caio Baú
Glaura Cardoso Vale  185

Entre rostos, entre imagens


sobre O Cavalleiro, Elyseu, de Iulik Lomba de Farias
Pedro Veras  189

Lírios não nascem da lei


sobre filme de Fabiana Leite
Carla Maia  193

Transa do cinema, transe do mundo


sobre Baronesa, de Juliana Antunes
Victor Guimarães   197

A tão sonhada liberdade


sobre Corpo Delito, de Pedro Rocha
André Novais Oliveira  100

As miragens de Modo de produção


sobre filme de Dea Ferraz
Mariana Souto  203

"Eis que busco Lélia e meus processos semelhantes aos seus"


sobre Em busca de Lélia, de Beatriz Vieirah
Amália Coelho e Paula Kimo  206

Em nome da América
sobre filme de Fernando Weller
Julia Fagioli  209

A política de um corpo invisível


sobre A Gis, de Thiago Carvalhaes
Tatiana Carvalho Costa  213
Corpos Políticos
sobre filme de Alice Riff
Vinícius Abdala  216

Nei
sobre Pobre Preto Puto, de Diego Tafarel
Rafael Barros  218

Um Tríptico Guarani: exemplos de um cinema indígena


sobre Naquele tempo todos eram gente, Piragui – a dona dos peixes e Tekohá – o som da terra
Renata Otto  220

Yuxian e Txirin
sobre Yuxiã, de Nawa Siã e Siã Inubake, e Txirin, o batismo Gavião, de Isaka Mateus Huni Kuĩ
Els Lagrou  228

Vingança e exterioridade em A terceira Margem, de Fabian Remy


em memória de Kromare Metukitire Kayapó
Paulo Maia  232

Lúcida opacidade dos sonhos


Wai’á Rini, de Divino Tserewahú
André Brasil  239

Desolação capitalista e resistência subjetiva em Arábia,


de Affonso Uchoa e João Dumans
César Guimarães  243

Caçada
Isaac Esau Carrillo Can  250

Paris é uma festa – Um filme em 18 ondas: Entrevista com Sylvain George


Joffrey Speno  254

Corredor de Nacala – comboio, carvão e gente no norte de Moçambique


(Estação Forumdoc.BH - Palácio das Artes)
Muitxs Outrxs  262

Índices Index  272


Créditos Credits  274
por Raymonde Carasco

A paisagem poderia ser de areia


esse deserto aqui é de pedra
rochedos dólmen-menir-esculturas de gigantes
drapeados de grutas abismadas
barrocas
poeiras pretas,
a floresta milhares de hectares a oeste queimada,
poeiras cinzas
a água escorreu muito
ravinou.
Dobra sobre dobra as montanhas
desvelam a catástrofe.

“Algo semelhante a um ruído de carvão consumido e que se incha ao se desagregar.


Como se cem mil florestas carbonizadas entregassem suas almas, vos acusando.”
(Antonin Artaud, E é no México... Os Tarahumaras, L’Arbalète, 1955, p. 129)

Aqui no entanto
as árvores cantam
e falam
pra você
somente você.
Você reconhecerá sua árvore

*Texto escrito em abril 2004 e dedicado a Nicole Brenez. Foi generosamente cedido por Régis
Hébraud. O original em francês encontra-se no website oficial de Raymonde Carasco <http://
raymonde.carasco.free.fr/Deserts.pdf>. A tradução para o português, especialmente para
este catálogo, é de Frederico Sabino. 9
esse murmúrio
do vento e da árvore.
A neve no desmaiar das planícies
irradia sua luz rosa
matéria mesmo, cristalina, fractal dos rochedos.

Você nunca havia visto isso


essa visão
ordinária
basta neve e sol
diria o xamã.

Aqui
o rastro dos homens
desde tempos antigos
fez o mesmo traçado na planície
caminhos costumeiros
pistas de extraterrestres
deuses mensageiros.
Você reconhecerá essa paisagem
ela se tornou seu lugar
somente nele você pode caminhar
sem fim
sem outro fim que não seja essa música
música-silêncio.

Você caminhará com o Xamã


rumo à Dança do peiote
o rito do Ciguri
Jikuli
Hikuli
conforme a fala,
sem escrita,
dos Tarahumaras.
Somente há signos
do vento
do sol
das grutas
e no momento certo
10
a Atmosfera
essa soma satisfatória de azulados
Sainte Victoire de Cézanne
onde as montanhas
dobra sobre dobra
pli selon pli1
escorrem suas linhas fluidas
oceânicas.
Você encontrará Artaud
inelutavelmente
ele veio aqui:

“... descargas atmosféricas da luz em camadas nas perspectivas jamais arre-


matadas das alturas, uma acima da outra, sempre mais longe, numa queda
inimaginável...” (Carta a Jean Paulhan, 4 de fevereiro 1937, Os Tarahumaras,
Gallimard, Folio-Essais, 1971, p. 130)

Você está aqui


você se torna nômade
Índio, Índia
você se entrega ao fascínio do deserto
suas altas planícies
dispostas no horizonte
conforme o contorno da atmosfera
mais longe sempre mais longe
sem fim
ondas infinitamente
sem outra matéria intersticial
que essa subida
uma soma satisfatória de azulados.

Você se torna Índio, Índia


caminhando
unicamente caminhando

1. [N.T.] No começo do texto, Carasco usa a expressão pli sur pli para se referir às dobras das
montanhas. Aqui, porém, quando repete essa mesma expressão, escreve pli selon pli. Régis
Hébraud me confirma que se trata de uma referência à obra do compositor e regente francês
Pierre Boulez composta em homenagem a Mallarmé e cujo título é Pli selon pli. Incapaz de
traduzir esse jogo de palavras, mantive o sentido referente à expressão pli sur pli, ou seja,
“dobra sobre dobra”. 11
falando
dialogando
com esse outro
até roçar esse limite
sem fronteira
onde logo quase se apaga
e oscila
essa frágil separação
Eu é um outro.

“Jamais um Europeu aceitaria pensar que aquilo que sentiu e percebeu no seu
corpo, que a emoção que o balançou, que a ideia estranha que acabou de ter
e que o entusiasmou pela beleza, não são coisas suas, que um outro sentiu e
viveu tudo isso no seu próprio corpo; caso contrário, se acreditaria louco e dele
nos sentiríamos tentados a dizer que se tornou alienado. – O Tarahumara ao
contrário distingue, sistematicamente, entre o que é dele e o que é do Outro
em tudo que ele pensa, sente e produz.” (Antonin Artaud, O rito do peiote nos
Tarahumaras, ibid., p. 22)

Você se torna nômade


mais vermelho que branco.
Você encontrou seu povo
seu lugar
ao qual você pertence
o Sueño
esse outro que te assemelha.
Música-silêncio.

Você retorna à cidade, às megalópoles


México, Tóquio, Paris, Buenos Aires, Toulouse
e você fica acuada
falsos ruídos, falsos movimentos.

Você retorna a Sierra


o deserto se alarga.
Sierra e cidades brancas
México, Tóquio, Buenos Aires, Toulouse, Göteborg
Fissura do tempo.

12
Os Tarahumaras somem.
Deles mesmos.
Tudo sumirá
os Tarahumaras o sabem
desde sempre
pilares do mundo
sustentam o céu
o círculo plano da terra
eixos do Sueño.
Os deuses o disseram
antes do começo e do fim dos mundos.
Tudo desaparecerá, tudo renascerá
diferente.
Nesse limite acaba
el poder del sueño
Asi es. ¿No?
No hay otro caminho.
É isso, não é?
Não há outro caminho.

tradução: Frederico Sabino

13
foto: Edgar Corrêa Kanaykõ
Brasil, Xakriabá, 2017, cor, 6'
direção director Edgar Corrêa kanaykõ
fotografia cinematography Edgar Corrêa kanaykõ
contato contact edgarkanaykon_banaykan@yahoo.com.br

Em abril de 2017, em Brasília, povos de todos as regiões do país e das mais diversas etnias reuniram
milhares de lideranças, jovens, mulheres indígenas fazendo o maior Acampamento Terra Livre da
história, para exigir seus direitos que vêm sendo vilipendiados sistematicamente. Filmado de dentro
por Edgar kanaykõ.
In April 2017, Brasilia, peoples from every region of the country and from the most diverse ethnicity
gathered thousands of leaders, young, indigenous people making the biggest Free Land Camping in his-
tory, to fight for their rights that have been systematically vilified. Shot from inside by Edgar Kanaykõa.

Brasil, 2017, cor, 82'


direção director Mariana Oliva, Renata Terra, Bruno Jorge produção production Mariana Oliva/Zeza Filmes
fotografia cinematography Bruno Jorge, Dado Carlin, contato contact marianabmo@gmail.com
montagem editing Renata Terra, Leopoldo Nakata

Dois índios nômades do povo Piripkura so­brevivem cerca­­dos por fazendas e madeirei­ros numa área
ainda protegida da Floresta Amazônica. Jair Candor, servidor da FUNAI, acompanha os dois desde
1989. Ele realiza expedições periódicas, monitorando vestígios que comprovem a presença deles, a
fim de impedir a invasão da área. O filme aborda consequências de uma tragédia e revela resiliência
e autonomia.
Two nomadic Indians of the Piripkura people survive surrounded by farms and loggers in a protected area
in the Amazon Forest. Jair Candor, a National Indian Foundation (FUNAI) public servant, has been follow-
ing the two since 1989. He conducts periodic expeditions, monitoring traces that prove their presence
in the forest in order to prevent that area from being invaded. The film examines the consequences of a
tragedy and reveals resilience and autonomy.

17
por Frederico Sabino, Carla Italiano e Júnia Torres

Por toda parte, ruídos de aviões, carros, rádios, televisores e máquinas infernais
nos impedem de sonhar com os silêncios das florestas. Por isso, as pessoas da
cidade, diz Davi Kopenawa, dormem sem sonhos “como machados largados
no chão de uma casa”. Da mesma maneira, pelo ar nos chega o mal cheiro dos
gases tóxicos, pesticidas de toda espécie, partículas cancerígenas, radioativos
diversos, fuligens, poeiras. O sol está mais quente e a chuva mais ácida. A água
do rio também deixou de ser doce. Continuarão a chamá-lo Watu? Mas se causa
tanta tristeza evocar o nome dos mortos!
“Nada [está] na escala certa”, diria Bruno Latour a respeito desse sentimento
de “desconexão” que atemoriza nossa época. As geleiras dos árticos derretem
com uma velocidade inesperada. Suspeita-se que a construção de uma usina
hidrelétrica na China tenha alterado o eixo do globo terrestre. Um estudo recente
calcula que a mudança nos ciclos de carbono levará à sexta extinção em massa
do Planeta Terra por volta do ano 2100. Outros inúmeros estudos científicos
antecipam esse fim para as próximas décadas. O mesmo poderia ser provocado
por causas diversas conforme o chamado “efeito borboleta”.
Da mesma maneira, povos da Terra, tais como indígenas, quilombolas e
sertanejos, também chamados de Terranos (Terriens), essa “minoria sociopolítica”
que, não podendo ser responsabilizada pela atual era das catástrofes, detém
o conhecimento ancestral relativo aos humores da Terra, eles também não se
cansam de alertar o quão rapidamente marchamos rumo à extinção da nossa
própria espécie. A geração humana "moderna" se tornou capaz de desestabilizar
as condições ambientais que possibilitaram o surgimento da vida no planeta
há milhares de anos. Desse impacto, emergiu uma nova era geológica deno-
minada Antropoceno. Como assinalam Déborah Danowski e Eduardo Viveiros
de Castro em Há mundo por vir? Ensaios sobre os medos e os fins (2015): essa 21
nova era “designa um novo ‘tempo’, ou antes, um novo tempo do tempo – um
novo conceito e uma nova experiência da historicidade - no qual a diferença
de magnitude entre a escala da história humana e as escalas cronológicas da
biologia e da geofísica diminuiu dramaticamente, senão mesmo tendeu a se
inverter: o ambiente muda mais depressa que a sociedade, e o futuro próximo
se torna, com isso, não só cada vez mais imprevisível, como talvez, cada vez
mais impossível" (p. 107).
Um número cada vez mais expressivo de cientistas demonstram sinais
dessa mudança na geofísica planetária provocada pelas atividades humanas. A
nova periodização reconhece o impacto de certas práticas e processos, da parte
de certos humanos, em alguns lugares e épocas. Que o marco da transição do
Holoceno para o Antropoceno seja a Revolução Industrial no século XVIII, ou
o pós-guerra, nos anos 1950, a partir de evidências da passagem do impacto
humano do nível local para o global, o que se quer apontar são as consequências
ambientais em grande escala de um modo histórico de existência humana e
não inerente à espécie de forma universal (embora os efeitos atinjam a todos).
Não raro, tais cientistas levantam suspeitas sobre se já não teríamos ultrapas-
sado os limites que nos separam de um ponto sem volta. O próprio estilo de
vida moderno é um prenúncio do caos que se avizinha, caso tenhamos de fato
ultrapassado esse ponto de inflexão.
Mediante tantos alertas, a percepção dos fins neste e deste mundo faz-se
mais que urgente. Em sua vigésima primeira edição, o forumdoc.bh reúne um
total de trinta e seis curtas, médias e longas metragens em torno a esse tema
ou a tal "estado de coisas". Em nossa seleção, optamos por não projetar apenas
filmes ambientalistas e distópicos, mas também realizações mais focadas nos
silêncios e texturas de paisagens que nos fazem sonhar com mundos lentos,
quase estáticos, mundos dos minerais, dos vegetais, dos animais e, dos Terranos
que vivem num ritmo inteiramente indiferente à aceleração do mundo moderno.
Lancemos então um olhar para esses outros mundos e suas paisagens que, na
maior parte do tempo, se apresentam dilapidadas pelas atividades exploratórias
da nossa espécie.
As paisagens também têm muito a dizer sobre nós. Ailton Krenak sempre
lhes dá ouvido: “A montanha fala comigo, porque eu me reconheço nesse lugar”.
Com essa frase lapidar, ele nos fornece a pista de como nos descobrimos gente
na relação com a paisagem, ao mesmo tempo em que essa paisagem na relação
com a gente se revela um ser falante, nem humano, nem não-humano, mas
mais que gente.
A mostra "Os fins neste mundo: imagens do Antropoceno" constitui uma
22 tentativa de abordar essa nova era pela perspectiva do cinema. O aparato
cinematográfico é fruto direto desse tempo de mudanças vertiginosas ocasio-
nadas pela pós-revolução industrial, sendo seu ponto de vista hegemônico
inerentemente antropocêntrico. O desafio inicial que se coloca, então, é como
abordar imageticamente o Antropoceno utilizando as ferramentas por ele próprio
criadas. O primeiro passo foi elencar um recorte para a seleção dos filmes. A
proposta se assemelha a um quebra-cabeça de base temática/conceitual, em que
cada peça sugere caminhos para reflexão a partir das relações que estabelece
com o tema geral, aproximando contextos, tempos, espaços. Propomos, assim,
agrupamentos de filmes acerca de eixos temáticos, procedimentos formais e
estratégias de abordagem.
O primeiro grupo reúne filmes “lírico-apocalípticos” nos quais a paisagem é
alçada à protagonista. É o que pretende Artificial Atmospheres a filmar a penumbra
atmosférica, Behemoth e Erosões, nas montanhas arrasadas da Mongólia e de
Minas Gerais, ou Metamorphosen, com os rios e lagos mais radioativos do mundo.
Dois filmes se destacam por levarem a cabo o descentramento do humano
na concepção da imagem: Three studies in geography (Neil Henderson) e Time
and Tide (Peter Hutton), criando um díptico que investe no potencial da expe-
riência cinematográfica enquanto imersão na visualidade de espaços naturais.
Outro agrupamento, talvez o primeiro a vir à mente, apresenta fabulações nada
otimistas acerca de nosso destino enquanto espécie, com obras que apostam
em recursos notadamente ficcionais para imaginar a iminência do fim: e se a
vida como a conhecemos deixasse de existir? Homo sapiens concebe um mundo
pós-humano em que nossas construções de ferro, concreto e aço (hospitais,
shoppings), foram dominadas por plantas e outros animais. Em Cavalo de Turim
acompanhamos a chegada gradual da morte para um velho homem do campo,
uma filha e um cavalo, sinalizando a inevitabilidade de uma desaparição coletiva.
Era uma vez Brasília, novo longa de Adirley Queirós, é o único a efetivamente
projetar um "futuro", ao mesmo tempo intergalático e de um ponto de vista
periférico, não muito diferente da exploração social que conhecemos hoje,
no presente.
O terceiro agrupamento se caracteriza por ensaios que apostam em camadas
de significação a partir de motes temáticos, formulando perguntas (mais do que
afirmações) a respeito de nosso mundo hoje. Os motes variam: a relação entre
cinema e Antropoceno para A Film, reclaimed, dirigido por Ana Vaz; a monocul-
tura da soja no Brasil em Aprender a viver com o inimigo; o aterrorizante sistema
de produção de alimentos em escala industrial desvelado por Our daily bread.
O mote pode ser infinitesimal como uma partícula de poeira, como no longa
Staub, de Bitomsky – seja a poeira proveniente do deserto, do cosmos ou de um
míssil estadunidense, acompanhar sua manifestação evidencia o nível de toxidez 23
que habita o cotidiano e ultrapassa nosso campo de visão. Ou o modo com que
lidamos com seres não-humanos ao transformá-los em peça mortas de museu,
na proposição formalista de James Benning em Natural History.
Chegamos, enfim, aos filmes realizados com, e por, terranos, que desen-
volvem há gerações formas de relação com os mundos e os seres a sua volta
contrárias à lógica exploratória de recursos naturais. Uma dessas frentes se
debruça sobre embates entre modos de existência opostos no que concerne
os desastres ambientais em curso. When two worlds collide é exemplar dessa
oposição: acompanha o conflito entre as máquinas consumidoras de fóssil – multi-
nacionais apadrinhadas pelo estado na exploração de petróleo – e comunidades
da Amazônia peruana. A mineração ameaça a floresta de Jaidukamá, enquanto
o desmatamento em Be'jam Be torna acuados os índios Penan, que enfrentam
com zarabatanas a chegada das retroescavadeiras. Já a nefasta intervenção
humana no curso dos rios fica evidente em Narmada, no registro da construção
de um complexo de barragens no quinto maior rio da Índia e a mobilização de
seus habitantes. Processo semelhante ocorre no curta senegalês La Breche, ou
no rompimento da barragem da Samarco/Vale em Bento. O contraponto a esta
lógica desenvolvimentista está em comunidades para as quais mitologias e
tradições concernentes à água são cruciais: Les eaux nos apresenta a divindade
Mami Wata, enquanto Águas sagradas e Felicidade ressaltam as histórias de
nascentes urbanas na Bacia do Ribeirão Onça.
Lidar com o Antropoceno significa abordar o aquecimento global, indício
inconteste (ou assim gostaríamos) da degradação vertiginosa das condições de
vida no planeta. Inuit knowledge and Climate change debate a questão não por
meio de estatísticas científicas, mas do testemunho das pessoas mais aptas a
reconhecer estes sinais: anciões Inuit do Ártico. Reconhecer que a pele das focas
está ficando fina, que os ursos polares começam a incomodar os homens em
suas habitações, que o gelo agora derrete facilmente, e que a leitura dos ventos
empreendida por gerações se tornou impossível dada a imprevisibilidade das
mudanças climáticas, são apenas alguns desses presságios. O filme, co-dirigido
por Zacharias Kunuk, é complementado pelo curta The hunters, que mostra
uma expedição de caça em 1977 captada pelo primeiro cineasta de origem
Inuit, Mosha Michael.
Enquanto isso, no território brasileiro, a construção de usinas hidrelétricas
segue sua trilha de devastação, como sinaliza A última volta do Xingu sobre o
impacto da usina de Belo Monte por meio da câmera atuante do cineasta indígena
Kamikia Ksedjê. E o curta Yaõkwa, Patrimônio Ameaçado acerca dos Enawênê
Nawê, que agora recebem peixes criados em cativeiro para continuar realizando
24 seu grande ritual anual em decorrência do represamento do rio. Assim como
o retrato sensível de dois isolados em Piripkura (filme de abertura do festival),
sobreviventes de um genocídio executado por mineradores e madeireiros, últimos
a permanecer em seu território (ainda) protegido. A simbologia da tocha que
carregam, e cujo fogo só se apagou após mais de quinze anos, é revelatória da
resistência que, para eles, trata-se apenas de existir. O filme nos mostra como
as terras-florestas só existirão enquanto os povos indígenas e os seres que os
acompanham existirem e as habitarem.
Uma imersão no imaginário e cosmologia dos povos ameríndios revela-se
como contraponto fundamental à humanidade enquanto força catastrófica
associada ao Antropoceno. O plantio, roça e uma outra relação com a comida
são o foco de quatro curtas: Wapu - O Açaí Dos Wayana, Roça Da Sogra, e Wehsé
Darasé – Trabalho Da Roça, resultantes de oficinas na Terra Indígena Rio Paru
d’Este e em comunidades do Rio Negro, além de Hexagramme 27, dedicado à
produção de alimentos pelas mãos de mulheres. A necessidade de fazer rever-
berar a memória dos antigos está presente no belo título de Vamos perseverar
no que temos antes que nos esqueçamos, assim como em La fissure du temps, que
evoca os rituais e costumes dos Tarahumaras no México. O filme (um recorte
de três partes de um material mais extenso) marca a conclusão de uma série
iniciada por Raymonde Carasco ainda na década de 1970. Por fim, Guardiões da
memória, de Alberto Alvares, contribui com um aprofundamento na cosmologia
Guarani, os habitantes das últimas áreas da floresta mais devastada de nosso
país, a Mata Atlântica, belamente registrada pelas câmeras Guarani, em um
exercício de escuta dos mais velhos e de sensível reconhecimento da sabedoria
que acompanha seus cantos e rezas. Talvez o que os filmes acima nos sugerem
é a necessidade, como aponta Donna Haraway, de constituirmos "parentes", e
assim "cultivar, uns com os outros, em todos os sentidos imagináveis, épocas
por vir que possam reconstituir os refúgios".
Contra a proposição de nos pensarmos como unidade, Danowski e Viveiros
de Castro argumentam que o Antropoceno não promove, mas justamente
desafia a noção de um sujeito universal, pois o que existe é “uma diversidade
de alinhamentos políticos dos diversos povos ou ‘culturas’ mundiais com muitos
outros actantes e povos não-humanos (...) contra os autointitulados porta-vozes
do Universal”. Ao provocar deslocamentos importantes na auto-percepção dos
modernos, a noção de Antropoceno deve agenciar uma abertura para as reali-
dades não modernas, para percepção de outros modos de existência.
Na composição deste conjunto de filmes postos aqui em relação, há cinemas
realizados em perspectivas que se enraízam em modos de existir, por si só,
contra-colonizadores, para usar um termo caro à Antônio Bispo dos Santos:
os filmes indígenas, que conhecemos mais de perto; dos tradicionais povos 25
Inuit, das terras (cada vez menos) geladas autrais; ou ancorados em relatos e
narrativas de populações de algumas partes do continente africano, tais como
os de uma cineasta martinicana-congolesa. São deslocamentos e um gesto de
composição de mundos que a mostra promove.
Ao contrário do antropocentrismo que marca a produção ocidental, outra
experiência de autoria está em curso, autoria que se entrega a agenciamentos
múltiplos. Tudo o que com o humano dialoga, ou o constitui potencialmente -
animais, florestas, rios, os xapiri, os yãmîy, as roças, as manivas – pode tomar o
plano, se expõe longamente na cena, em uma reviravolta estética e epistemo-
lógica potente. Elementos perspectivistas ou animistas integrados às narrativas.
Cinema-metamorfose, pensamento selvagem. Tais cinemas são constituídos a
partir do corpo e da experiência e apontam para a convicção de que o pensa-
mento é tanto melhor quando tem em vista, além das funções e dos conceitos,
os perceptos e os afectos, como escreveram uma vez Deleuze e Guattari.
Esses filmes, está claro, não podem ser escritos previamente, tributários
que são do acontecimento, do instante, do lugar. Eles se inventam no curso do
seu desenrolar, no contexto de um roteiro dado não externamente, mas no
interior de uma sociocosmologia, de um modo de organizar o cosmos do qual
o cineasta partilha. Improvisação, câmera na mão, acontecimentos filmados de
seu interior, som direto e na língua nativa. Em geral longos planos sequência, e
também câmeras subjetivas como via de acesso a uma "realidade de segundo
nível" que atinge o mundo não apenas no plano dos objetos manipuláveis, mas
que alcançam sua forma de pensar e sua ontologia.
Cinema enraizado nas relações cosmopolíticas em jogo, sendo os próprios
filmes ativadores de tais relações, agenciando e criando co-presenças, o mundo
não-indígena sendo um deles (apenas). Cinema que, por existir em tal potência,
responde à ação etnocidária do Ocidente, não como sujeição das populações
não modernas a um desenvolvimentismo hoje derrotado em suas consequências
– como testemunham vários filmes aqui apresentados –, mas como perpetuação
de alteridades, de ontologias, que impõem descentramento e desestabilização
do humano (mas também, podemos dizer, ampliação) que, esperamos, possa
se espalhar.
A mostra é acompanhada de um seminário (programação na página 86) e
de um conjunto de textos publicado na seção ensaios deste catálogo.

26
França, 2015, cor, 19'
direção director Ana Vaz, Tristan Bera
montagem editing Ana Vaz, Tristan Bera
contato contact anagabriellavaz@gmail.com

A crise ecológica é uma crise política, econômica e social. Também é cinematográfica, pois o cinema
coincide, historicamente e de maneira crítica e descritiva, com o desenvolvimento do Antropoceno. A
Film, Reclaimed foi realizado para a abertura de uma pré-simulação do evento COP21 em Paris. Trata-
se de uma conversa, um ensaio que aborda a crise terrestre sob o perspectiva dos belos e terríveis
filmes que a têm acompanhado.
The ecologic crisis is a political, economic and social crisis. It is also cinematographic, as cinema coincides
historically and in a critical and descriptive way with the development of the Anthropocene. A Film,
Reclaimed was made specifically for the opening of a simulation of COP21 event in Paris. It is a conversa-
tion, an essay that reads the terrestrial crisis under the influence and with the help of the beautiful and
terrible films which have accompanied it.

Brasil/Juruna e Arara, 2015, cor, 35'


direção director Kamikia Kisedjê, Wallace Nogueira som sound Wallace Nogueira
fotografia cinematography Kamikia Kisedjê, montagem editing Wallace Nogueira
Wallace Nogueira contato contact kptkisedje@gmail.com

Os indígenas Juruna e Arara expõem os arrasadores impactos socioambientais da construção da Usina


Hidrelétrica de Belo Monte sobre os povos da Volta Grande do rio Xingu.
The Juruna and Arara indigenous people expose the devastating social and economical impacts of the
construction of the Belo Monte Dam over the people of Volta Grande in the Xingu River.

27
Brasil/Belo Horizonte, 2017, cor, 10'
direção director Amanda Russi coordenação de oficinas workshop coordinator
fotografia cinematography Pedro Dutra Gustavo Jardim
montagem editing Lina Maria contato contact rochajardim@gmail.com

Águas Sagradas traz histórias, cantos, cultura e tradições do Quilombo Mangueiras, região norte de BH.
As águas do córrego que margeia o Quilombo, além de presentes na vida cotidiana dos moradores,
são usadas para preparar a festa das Yabás para as Orixás femininas. Oficina do projeto Valorização
de Nascentes Urbanas da Bacia do Ribeirão Onça, Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas e
Subcomitê da Bacia do Ribeirão Onça. Parceria: MUTUM / FAE / UFMG.
Sacred Waters shows stories, songs, cultures and traditions of Quilombo Mangueiras, located in the north
region of Belo Horizonte city. Besides their presence in the daily life of local residents, waters from the
spring and the stream that borders the Quilombo are used to prepare the Yabás feast, a celebration
dedicated to female Orixás. The film was made during a workshop on the project of valorization of
Ribeirão das Onças Basin urban springs.

Brasil/Belo Horizonte, 2017, cor, 10'


direção director Isabela Izidoro Pollyana Oliveira
fotografia cinematography Felipe Carnevalli coordenação de oficinas workshop coordinator
som sound André Di Franco Gustavo Jardim
montagem editing Péricles Brandão contato contact rochajardim@gmail.com
produção production Ana Lúcia Azevedo,

Um retrato cotidiano do Bairro Jardim Felicidade, na região norte de Belo Horizonte, a partir das
relações de seus habitantes - humanos e não humanos - com o córrego Tamboril, muito presente e
importante na paisagem e na vida local. Oficina do projeto Valorização de Nascentes Urbanas da Bacia
do Ribeirão Onça, Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas. Parceria: MUTUM / FAE / UFMG.
A portrait of the daily life in Jardim Felicidade neighborhood, in the northern region of Belo Horizonte,
based on the relations of its inhabitants – both human and non-human – with Tamboril stream and two of
its springs, which are very important for the local landscape and collective life. The film was made during
a workshop on the project of valorization of Ribeirão das Onças Basin urban springs.

28
Brasil/Portugal/Espanha, 2017, cor, 10'
direção director Pedro Neves Marques produção production Pedro Neves Marques, Renato
fotografia cinematography Carolina Marsiaj Costa Rondon, Capivara Filmes (Brasil)
montagem editing Pedro Neves Marques contato contact pedronevesmarques@gmail.com
som sound Nuno da Luz

Na paisagem transformada pela agricultura monocultural do Rio Grande do Sul, uma fábrica de
processamento de soja transgênica recebe caminhões de sementes, transforma a soja em biodiesel
e envia os produtos por comboio até a costa brasileira. Em um diário escrito pelo realizador, lêem-se
perguntas sobre as imagens: que tipo de vida reside em sementes transgênicas? E o que significa
aprender a viver com o inimigo?
Shot in inner Rio Grande do Sul, Brazil, in a landscape transformed by the monoculture agriculture of
transgenic soy, maize and sugarcane, the film follows the transformation of soy crops into biodiesel, from the
harvest to the workflow of one of the main biodiesel processing factories in the region. In a diary written by
the director, one reads: what kind of life lies in transgenic seeds? and what does it mean to live with the enemy?

EUA, 2016, cor, 20'


direção director Robert Todd, Deb Todd Wheeler montagem editing Robert Todd, Deb Todd Wheeler
fotografia cinematography Robert Todd, produção production Robert Todd, Deb Todd Wheeler
Deb Todd Wheeler contato contact robert_todd@emerson.edu

Resultado de uma pareceria entre o realizador e sua irmã Deb Todd Wheeler, este vídeo registra a
penumbra atmosférica através de mediações que variam de sacolas plásticas a usinas de energia. Tais
imagens revelam diferentes composições de atmosfera resultantes do mundo que continuamos a criar.
Formulated in collaboration with artist and sibling Deb Todd Wheeler, this video displays a variety of layers
of atmospheric penumbra, with sources ranging from plastic bags to power plants. These displays make
reference to what makes up the “atmosphere” that defines the world we continue to create.

29
França/Suíça, 2017, cor, 87'
direção director Cyprien Ponson, Caroline Parietti som sound Caroline Parietti, Cyprien Ponson,
fotografia cinematography Caroline Parietti, Paul Maillardet
Cyprien Ponson produção production Association Les Obliques
montagem editing Alix Lumbreras contato contact contact@lesobliques.me

Uma visão do povo Penan do Sarawak, na ilha de Bornéu (território da Malásia), e das mudanças
provocadas pela crescente ameaça de deflorestação e alteração da paisagem habitada por eles.
A glimpse at the Penan people of Sarawak, on the island of Borneo (Malaysian territory), and the chal-
lenges faced with the increased threat of deforestation and the changing landscape of their habitat.

China, 2016, cor, 95’


direção director Zhao Liang som sound Mengchu Hu, Guocheng Li, Chen Yao
fotografia cinematography Liang Zhao produção production Sylvie Blum/Zhao Liang Studio
montagem editing Fabrice Rouaud contato contact zhaoliangstudio@gmail.com

Situado na área de Wuhai no interior da Mongólia, Behemoth retrata a devastação das pastagens
do local por empresas de mineração, revelando os alto custos humanos e ambientais do consumo
de carvão na China - o maior emissor de gases de efeito estufa provenientes de carvão no mundo.
Set in the Wuhai area of Inner Mongolia, Behemoth depicts the ravaging of the region’s grasslands by
mining companies, revealing the human and environmental costs of coal consumption in China - the
world’s leading emitter of greenhouse gases from coal.

30
Brasil, 2016, cor, 8’
direção director Gabriela Albuquerque, Luisa Lanna montagem editing Gabriela Albuquerque, Luisa Lanna
fotografia cinematography Luisa Lanna, contato contact luisabahury@gmail.com
Douglas Resende

Documentário que rememora o município de Bento Rodrigues (MG) narrado por Seu Filomeno e
Elias. O silêncio que irrompe as imagens do mapa da cidade, antes do rompimento da barragem da
Samarco, traduzem o indizível da catástrofe ambiental.
A documentary film in which the history of Bento Rodriguez is presented as Filomeno and Elias remember.
The silence that comes over the images of the map before the destruction of the town caused by the
disruption of the Samarco’s tailing dam puts us closer to the catastrophe.

Brasil, 2017, cor, 100’


direção director Adirley Queirós produção production 5 da Norte, co-produção Sancho
fotografia cinematography Joana Pimenta & Punta e Terratreme Filmes (Portugal),
montagem editing Adirley Queirós, Fred Benevides, produção executiva Simone Queirós
Guile Martins contato contact ceiperiferia@gmail.com
som sound Francisco Craesmeyer

Em 1959, o agente intergaláctico WA4 é preso por fazer um loteamento ilegal e é lançado no espaço.
Recebe uma missão: vir para a Terra e matar o presidente da República, Juscelino Kubitschek, no dia
da inauguração de Brasília. Sua nave perde-se no tempo e aterrissa em 2016 em Ceilândia. Essa é a
versão contada por Marquim do Tropa, ator e abduzido.
In 1959, the intergalactic agent WA4 is arrested for making an illegal allotment and is thrown into space.
He receives a mission: to come to Earth and kill the President of the Republic, Juscelino Kubitschek, in
the inauguration day of Brasilia. His spaceship gets lost in time and lands in 2016, in Ceilândia. This is the
version told by Marquim do Tropa, an abducted actor.

31
Brasil, 2011, cor, 35'
direção director Umbando som sound Bruno Vasconcelos
fotografia cinematography Maurício Rezende produção production Rafael Barros, Flávia Camisasca
montagem editing Oswaldo Teixeira contato contact filmes@filmesdequintal.org.br

Quadrilátero ferrífero, região metropolitana de BH. É nesse território no meio de uma comunidade
em desaparecimento que se trava uma batalha entre a máquina cinematográfica e as máquinas de
exploração mineradoras.
The Iron Quadrangle, BH metropolitan area. It is in this territory, in the middle of a vanishing community,
that a battle between the cinema machine and the mining exploration is fought.

Brasil/Guarani Ñandeva, 2017, cor, 52'


direção director Alberto Alvares som sound Ethel Oliveira, Ricardo Mendonça,
fotografia cinematography Alberto Alvares, Clarissa Yara Kunha Karai
Nanchery / Cristiano Kuaray, Júlia Jaxuka, Geovane produção production Clarissa Nachery
Tateando, Roberto Karai, Francisco Tupi, Flávia Para'i contato contact albertotuparay@yahoo.com.br
montagem editing Alberto Alvares

Guardiões da Memória foi realizado em cinco aldeias Guarani no Estado Rio de Janeiro. O filme mostra
como os mais velhos e lideranças fazem circular o conhecimento e a memória nos Tekoa, através de
suas rezas, narrativa e belas palavras na casa de reza.
Guardiões da Memória (Memory Keepers) was made in five Guarani villages in Rio de Janeiro State. The film
shows how the leaders and older people put memory and knowledge to circulate in the Tekoa, making
use of their prayers, narratives and beautiful words inside the praying house.

32
República do Congo, 2009, cor, 16’
direção director Sylvie Bayonne som sound Sylvie Bayonne, Antoine Odier
fotografia cinematography Sylvie Bayonne, produção production Matombi Productions
Cécile Verstraeten contato contact bayonnette@yahoo.fr
montagem editing Floriane Allier

Hexagrama 27 é um documentário de criação, um delírio culinário, uma homenagem para as mulheres


provedoras de alimento. Inspirado no hexagrama 27 do livro chinês Yi Ching, trata-se de um poema,
um esboço do Yi-la “Alimento” da alma, do corpo e do espírito.
Hexagramme 27 is a documentary film of creation, a culinary delirium, a gesture to the women who nur-
tured the filmmaker. Inspired by the Chinese’s Yi Ching hexagramme 27, it’s a poem, a sketch in the Yi-la
“Nourishment”, of the soul, of the body and of the spirit.

Áustria, 2017, cor, 94'


direção director Nikolaus Geyrhalter produção production Nikolaus Geyrhalter
fotografia cinematography Nikolaus Geyrhalter Filmproduktion GmbH
montagem editing Michael Palm contato contact burner@geyrhalterfilm.com

Homo Sapiens é um filme sobre a finitude, a fragilidade da existência humana e o fim da era industrial,
mas também sobre o que significa ser humano. O que permanecerá após nossa partida? Espaços
vazios, ruínas, cidades tomadas por vegetação, asfalto rachado: são as áreas que atualmente habita-
mos, embora toda a humanidade tenha desaparecido. Agora abandonada e decaída, gradualmente
retomada pela natureza.
Homo Sapiens is a film about the finiteness and fragility of human existence and the end of the industrial
age, and what it means to be a human being. What will remain of our lives after we’re gone? Empty spac-
es, ruins, cities overgrown with vegetation, crumbling asphalt: the areas we currently inhabit, though
humanity has disappeared. Now abandoned and decaying, gradually reclaimed by nature.

33
Canadá, 1977, cor, 13’
direção director Mosha Michael produção production Peter Raymond / National Film Board
fotografia cinematography Mosha Michael contato contact festivals@nfb.ca

O filme mostra uma expedição de caça composta por membros do Centro Correcional da Baía de
Frobisher no Canadá, condenados por crimes de sentenças curtas em qualquer parte do Ártico. Este
filme foi feito por um dos membros em uma viagem de caça usando uma câmera Super 8. As conversas,
a matança e o depelamento de focas e caribus são expostos de forma proeminente, com explicações
sobre a importância desses animais para o modo de vida Inuit.
The film depicts a hunting party made up of “members” of the Frobisher Bay Correctional Centre in the
Northwest Territories, meaning people convicted of crimes with short sentences anywhere in the Arctic.
This film was made by one of the members on a hunting trip using a Super 8 camera. The stalking, killing
and skinning of seal and caribou are featured prominently, with explanations as to the importance of
these animals to the Inuit way of life.

Canadá, 2010, cor, 55'


direção director Zacharias Kunuk, Ian Mauro produção production Igloolok Isuma Productions,
fotografia cinematography David Poisey Kunuk Cohn Productions
montagem editing Zacharias Kunuk contato contact wandav@vtape.org
som sound Richard Lavoie

As regiões geladas do Ártico estão ameaçadas de extinção. Anciões de comunidades Inuit transmitem
sua sabedoria em conversas íntimas e reveladoras sobre o aumento das temperaturas e seu impacto
na vida cotidiana.
The freezing regions of the Artic are threatened of extinction. The elders of the Inuit communities pass
their knowledge in intimate and revealing conversations about the rise of temperatures and the impact
of it in everyday life.

34
Colômbia, 2017, cor, 24'
direção director Maria Milena Zuluaga Valencia som sound Majo Musicna
fotografia cinematography Juan Diego Sanchez Arcila/ produção production Corporación Manigua Tantan
Piedemonte Films contato contact corporacionmaniguatantan@gmail.com
montagem editing Maria Milena Zuluaga Valencia

Indígenas Emberas Eyábidas das altas montanhas de Ituango, na Colômbia, solicitam que governo
nacional interrompa a disseminação de minas que há décadas altera o bem-estar, os campos, e a
cosmogonia no território dos seres vermelhos.
Emberas Eyábidos native people of the high mountains of Ituango, Colombia, request that the national
government stop the dissemination of mines that for decades change the well-being, the fields, and the
cosmogony in the territory of the red beings.

Senegal/Bélgica, 2007, cor, 40’


direção director Abdoul Aziz Cissé som sound Philippe de Pierpont
fotografia cinematography Ousseynou Ndiaye produção production GSARA / Diwan TM /
(Ouzin Ndiaye) Media Centre Dakar
montagem editing Philippe Boucq contato contact fr-fr.facebook.com/abdoulaziz.cisse

Em Saint Louis, cidade construída no meio do Rio Delta do Senegal, é comum fazer uma oferenda
para as divindades da água quando nasce uma criança. Mas, desde 1980, infraestruturas construídas
para controlar o volume do delta ameaçam seu ecossistema, enquanto moradores do local se tornam
desesperados diante da total indiferença.
In Saint-Louis, a city built in the center of the Senegal River’s delta, it is common to make an offering
to the water genies when a child is born. But, since the 1980s, the infrastructures built to control the
delta's volume endanger its ecosystem, while the villages grow more and more desperate in the face of
total indifference.

35
França/Benim, 2008, cor, 16’
direção director Kapwani Kiwanga montagem editing Benoît Delbove
fotografia cinematography Paul Djibila, Kapwani produção production Le Fresnoy - Studio national des
Kiwanga, Séraphin Zounyekpe arts contemporains
som sound Elpidio Hounnou, Blanche Sanou contato contact kkiwanga@gmail.com

Refletindo sobre a sociedade e sua imaginação, As águas, da cineasta canadense Kapwani Kiwanga,
navega pelo universo do sonho sagrado do Vodu e pelas histórias orais do sul de Benim concernentes
ao mar.
Developing a reflection on society and its imagination; Les Eaux, by canadian filmmaker Kapwani Kiwanga,
navigates the sacred dream realm of Vodoun and oral histories from southern Benin concerning the sea.

Papua-Nova Guiné/EUA, 2013, cor, 20’


direção director Ben Russell som sound Ben Russell
fotografia cinematography Ben Russell contato contact br@dimeshow.com
montagem editing Ben Russell

John Frum profetizou um cataclisma no qual a ilha de Tanna, no Pacífico sul, se tornará plana, as mon-
tanhas vulcânicas cairão e preencherão os leitos dos rios para formar planícies férteis. Tanna, então,
seria anexada às ilhas vizinhas de Eromange e Aneityum para formar uma nova ilha. John Frum, em
seguida, introduziria um reino de felicidade, onde os habitantes do país seriam novamente jovens e
isentos de qualquer doença.
John Frum prophesied the occurrence of a cataclysm in which Tanna would become flat, the volcanic
mountains would fall and fill the river-beds to form fertile plains, and Tanna would be joined to the
neighbouring islands of Eromanga and Aneityum to form a new island. Then John Frum would reveal
himself, bringing in a reign of bliss, the natives would get back their youth and there would be no sickness

36
Rússia/Alemanha, 2013, p&b, 84’
direção director Sebastian Mez produção production Filmakademien
fotografia cinematography Sebastian Mez Baden-Württemberg
montagem editing Katharina Fiedler contato contact mail@sebastianmez.com
som sound Levitate

O filme retrata um dos locais mais contaminados por radioatividade na terra. A região foi irradiada por
diferentes acidentes na instalação russa de Mayak, a primeira usina para produção de bombas nucleares
da União Soviética e que continua em operação. Metamorfose busca uma tradução cinematográfica
para um perigo que não é visível, revelando a força dos seres forçados a lidar com esse desastre.
The film tells the story of one of the most radioactive contaminated spots on earth. This region was irradiated
by different accidents of the russian nuclear facility of Mayak, the first plant for the production of material
for nuclear weapons in the Soviet Union and still in operation. The film seeks a cinematic translation for
a danger that is not visual, and to capture the strength of the beings who have to cope with this disaster.

Índia/França, 2012, cor, 45’


direção director Manon Ott, Grégory Cohen produção production Céline Loiseau, TS PRODUCTIONS
fotografia cinematography Manon Ott, Grégory Cohen contato contact manon@lesyeuxdanslemonde.org,
som sound Jocelyn Robert greg@lesyeuxdanslemonde.org
montagem editing Mathias Bouffier

"As barragens serão os templos da Índia moderna”, disse Nehru quando o país proclamou sua indepen-
dência. Em breve será concluída a construção de um enorme complexo de barragens no rio Narmada,
na Índia. Grupos de protesto se mobilizam. Na travessia do vale do Narmada, nos deparamos com
seus habitantes, com as crenças e as convicções que entram em conflito à medida que o rio sofre essa
imensa transformação. Entre mitos do Progresso e os mitos do Narmada.
"Dams will be the temples of modern India”, declared Nehru as the country proclaimed its independence.
Construction on a vast complex of dams is soon to be completed on the Narmada river in India. A social
struggle is organized. As we cross the Narmada River valley, we encounter the inhabitants, beliefs and
convictions brought into conflict as this river undergoes great transformation.

37
Áustria, 2015, cor, 67’
direção director James Benning produção production James Benning
fotografia cinematography James Benning contato contact jbenning@calarts.edu
montagem editing James Benning

Um tipo diferente de excursão ao Museu de História Natural de Viena, que não nos incita a ver suas
peças com um sentido do maravilhoso. Em quarenta e cinco planos estáticos, História Natural, do
renomado cineasta James Benning, nos encoraja a rever nossa percepção da imagem cinematográfica
e o modo de lidarmos com a história.
A somewhat different kind of excursion to Vienna’s Museum of Natural History that doesn’t urge us to view
the exhibits with a sense of wonder. Forty-five engaging but essentially common static shots encourage
us instead to revise our perception of the film image and the way we look at history.

Alemanha/Hungria/Suíça/França, 2011, cor, 146'


diretor director BélaTarr, Ágnes Hranitzky Gábor ifj. Erdélyi, István Pergel
fotografia cinematography Fred Kelemen produção production T. T. Filmműhely
montagem editing Ágnes Hranitzky contato contact bretz@bretzfilmes.com.br
som sound Nick Biscardi, János Csáki, Csaba Erös,

A chegada de uma tempestade monumental e a recusa de um cavalo a trabalhar ou comer sinalizam


o começo do fim para um velho fazendeiro e sua filha.
A monumental windstorm and a horse's refusal to work or eat signals the beginning of the end for an
old farmer and his daughter.

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Áustria, 2005, cor, 92'
direção director Nikolaus Geyrhalter produção production Nikolaus Geyrhaulter, Markus
fotografia cinematography Nikolaus Geyrhalter Glaser Michael Kitzberger, Wolfgang Widerhofer
som sound Nikolaus Geyrhalter contato contact burner@geyrhalterfilm.com
montagem editing Wolfgang Widerhofer

Bem-vindo ao mundo da comida industrial e do agronegócio. O filme foca o ritmo de esteiras transpor-
tadoras e máquinas imensas nos lugares em que se produz comida na Europa: espaços monumentais,
paisagens surreais e sons bizarros – um ambiente industrial impressionante que deixa pouco espaço
para individualismos.
Welcome to the world of industrial food production and high-tech farming. To the rhythm of conveyor
belts and immense machines, the film looks without commenting into the places where food is produced
in Europe: monumental spaces, surreal landscapes and bizarre sounds - a cool, industrial environment
which leaves little space for individualism.

Brasil, 2017, cor, 82'


direção director Mariana Oliva, Renata Terra, Bruno Jorge produção production Mariana Oliva/Zeza Filmes
fotografia cinematography Bruno Jorge, Dado Carlin contato contact marianabmo@gmail.com
montagem editing Renata Terra, Leopoldo Nakata

Dois índios nômades do povo Piripkura so­brevivem cerca­­dos por fazendas e madeirei­ros numa área ainda
protegida no meio da Floresta Amazônica. Jair Candor, servidor da FUNAI, acompanha os dois índios
desde 1989. Ele realiza expedições periódicas, monitorando vestígios que comprovem a presença deles
na floresta, a fim de impedir a invasão da área. Packyî e Tamandua vivem com um facão, um machado
cego e uma tocha. O filme aborda consequências de uma tragédia e revela resiliência e autonomia.
Two nomadic Indians of the Piripkura people survive surrounded by farms and loggers in a protected area
in the middle of the Amazon Forest. Jair Candor (FUNAI) public servant, has been following the two since
1989. He conducts periodic expeditions, monitoring traces that prove their presence in the forest in order
to prevent that area from being invaded. Packyî and Tamandua live with a machete, a dull axe and a torch.
The film examines the consequences of a tragedy and reveals resilience and autonomy.

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Brasil/Baniwa, 2016, cor, 21’
direção director Adilson Baniwa, Adenilson Mineirinho Mineirinho, Ely Sarmento, Julia Bernstein, Pedro Portella
fotografia cinematography Adilson Baniwa, realização IPHAN – Superintendência Amazonas/
Adenilson Mineirinho formação: Filmes de Quintal
montagem editing Adilson Baniwa, Adenilson contato contact iphan-am@iphan.gov.br

Derrubada em sistema de mutirão, com o machado, é tarefa masculina e os conhecimentos sobre a


roça, o plantio e a colheita são repassados para as mulheres. A sogra é a dona da roça e diz que não
se devem deixar as mandioquinhas pequenas na roça, se não elas choram.
To put to the ground through a task force, with axes, is a task for the men and the knowledge about
farming, the sewing and cropping, is passed to the women. The mother in law is the owner of the farm
and says that you shouldn’t leave the tiny maniocs in the farm, otherwise they will cry.

Brasil/Tukano, 2016, cor, 23’


direção director Larissa Ye’padiho Duarte Tukano Larissa Ye’padiho Duarte
montagem editing Larissa Ye’padiho Duarte Tukano realização: IPHAN – Superintendência Amazonas/
fotografia cinematography João Arimar Noronha Lana, formação: Filmes de Quintal
Alberto Jeremias Gonçalves Lana, Edvann Gregório contato contact iphan-am@iphan.gov.br
Maquirino, Adailton Videira Melgueiro,

O filme mostra o universo do sistema agrícola tradicional no Rio Negro sob os olhos de uma jovem
Tukano, Larissa, que se constrói a partir de suas reflexões sobre a relação com os antepassados,
como a tia-avó. Aborda, ainda, a importância dos saberes da roça e leva o espectador a refletir sobre
a relação entre gerações.
The film shows the universe of the traditional agricultural system in Negro River under the sight of a
young Tukano, Larissa, which is built from her reflections about the relation with the ancestors, such as
her great-aunt. It also approaches the importance of the knowledge of farming and takes the viewer to
think about the relation between generations.

40
Alemanha, 2007, cor, 90’
direção director Hartmut Bitomsky montagem editing Hartmut Bitomsky
fotografia cinematography Kolja Raschke produção production Heino Deckert
som sound Gerhard Metz contato contact info@deckert-distribution.com

Poeira. Está em toda parte e sempre presente. Um conglomerado de minúsculas partículas que
começa a se movimentar assim que as coisas se assentam. Quando confrontada e removida, a poeira
retorna mesmo após ter sido retirada. Ela se acumula em carpetes e sótãos. A poeira causa doenças,
faz parte do cosmos. É o menor tema discernível para se fazer um filme.
Dust. It is everywhere and ever present. A conglomeration of the finest particles set in motion as soon
as things are starting to settle. It is fought and cleared away and yet returns again even as it is being
removed. Dust nestles in carpets and in attics. Dust causes illness, dust makes up the cosmos. It is the
smallest, discernable subject about which to make a film.

México/França, 2003, cor, 151'


direção director Raymonde Carasco som sound Régis Hébraud
fotografia cinematography Régis Hébraud produção production Raymonde Carasco
montagem editing Régis Hébraud contato contact rcarasco@sfr.fr

Uma saga em cinco episódios, dos quais selecionamos três (Initiation - Gloria, Raspador - El sueño,
e La Despedida) em torno das palavras do último xamã Tarahumara, que nos anos 2000 concordou
falar com a cineasta nos lugares escolhidos por ele: ruínas de sua casa da infância, círculos das últimas
cerimônias Ciguri, cavernas onde seu avô e sua instrutora Glória moravam. As imagens capturam as
danças, os ritos, e os elementos da paisagem dos Tarahumara: água, fogo, terra e céus.
A five episode saga, from which we chose three (Initiation - Gloria, Raspador - El sueño, La Despedida)
linked to the words of the last Tarahumara shaman, who in 2000 agreed to talk to the filmmaker in places
chosen by him: ruins of his childhood home, circles of the last ceremonies of Ciguri, the caves where his
grandfather and his instructor Glória lived. The images show dances, rites, as well as elements of the
Tarahumara landscape: water, fire, earth and skies.

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Reino Unido, 2011, p&b, 23’
direção director Neil Henderson montagem editing Neil Henderson
fotografia cinematography Neil Henderson contato contact neil.henderson@anglia.ac.uk

Três locais distintos são retratados em Three Studies in Geography, que abrange registros prévios
filmados ao longo de dez anos. Cada local apresenta um equilíbrio particular entre terra, céu e água.
Three distinct locations are brought together in this film, which encompasses three previously separate
films made over ten years. Each location presents a particular balance of land, sky and water.

EUA, 2000, p&b e cor, 16mm, 40’


direção director Peter Hutton produção production Peter Hutton
fotografia cinematography Peter Hutton contato contact info@canyoncinema.com
montagem editing Peter Hutton

Por mais de quatro décadas, Peter Hutton trabalhou com o suporte 16mm para criar retratos meticu-
losos, íntimos e exuberantes de lugares e paisagens. Time and Tide começa com uma reimpressão de
"Down the Hudson", bobina (reel) captada por Billy Bitzer em 1903 que registra em time lapse uma
seção do rio Hudson. Já a segunda parte do filme, captada por Hutton, revela fragmentos de suas
navegações entre Bayonne, Nova Jersey e Albany, em Nova York.
For over four decades Peter Hutton used 16mm film to meticulously craft intimate and lush portraits of
landscapes. The first section of the film is a reprint of a reel shot by Billy Bitzer in 1903 titled "Down the
Hudson". It chronicles in single frame time lapse a section of this river. The second part of the film was
shot by Hutton and records fragments of several trips up and down the Hudson River between Bayonne,
New Jersey and Albany, New York.

42
Brasil/Wayana, 2017, cor, 30'
direção director André Lopes, Tyna Apalai Wayana Wayana, Waxini Apalai Wayana
fotografia cinematography Apalaire Apalai Wayana, montagem editing André Lopes, Kulanaikë Wayana,
Eturamo Wajãpi, Jeremias Apalai, Kaiwale W. Wayana, Ricardo Dionísio, Silenu Wayana, Tyna Wayana
Kareano Apalai, Kulanaikë Wayana, Maroxa Apalai, Torito produção production Paula Morgado
Apalai, Tyna Apalai, Ulumakana Apalai, Wasini Apalai contato contact paulamdl@gmail.com
som sound Kulanaikë Wayana, Urumakana Apalai

Wapu, açaí na língua wayana, é um fruto nativo da Amazônia. O filme tem como personagem principal
este fruto e mostra como cotidiano, ritual e música estão interligados no passado e no presente.
Imagens e sons captados por jovens wayana em 2015 na aldeia Suwi-suwi mïn, TI Rio Paru d'Este (Pará).
Realização: LISA-USP, SESC/SP.
Wapu, açaí in Wayanan language, is a native fruit of Amazonia. The film has as its main character this fruit
and shows how the everyday life, ritual and music are interconnected in the past and in present time. The
images and sounds were recorded by young wayana in 2015, in the village Suwi-suwi mïn, Rio Paru d'Este (Pará).

Peru/EUA/Reino Unido, 2016, cor, 103'


direção director Heidi Brandenburg Sierralta, som sound Taira Akbar, Heidi Brandenburg Sierralta,
Mathew Orzel Mathew Orzel, Jack Weisman
fotografia cinematography Heidi Brandenburg produção production Taira Akbar
Sierralta, Mathew Orzel contato contact lucas.verga@filmsalescorp.com
montagem editing Carla Guitierrez

Forçado ao exílio e condenado a 20 anos na prisão, o líder indígena Alberto Pizango enfrenta grandes
empresas que estão arruinando a Amazônia. Recusando-se a se render, ele continua sua luta, lançando
luz sobre as conflitantes visões que moldam o destino da Amazônia e o futuro do clima do mundo.
Indigenous leader Alberto Pizango, forced into exile and facing 20 years in prison, resists the environ-
mental ruin of Amazonian lands by major companies. Refusing to surrender he continues his quest,
shedding light on conflicting visions shaping the fate of the Amazon and the climate future of our world.

43
Brasil, 2009, cor, 10’
direção director Fausto Campoli, Vincent Carelli Vincent Carelli
fotografia cinematography Altair Paixão, produção production Vídeo nas Aldeias
Tiago Campos Torres, Vincent Carelli contato contact olinda@videonasaldeias.org.br
montagem editing Fausto Campoli, Leonardo Sette,

Um dos mais importantes rituais indígenas da atualidade, o Yaõkwa dos índios Enawênê Nawê no rio
Juruena no norte de Mato Grosso, reconhecido como patrimônio imaterial pelo IPHAN, está amea-
çado pela construção de um complexo de hidrelétricas. Esse vídeo é um resumo do documentário
longa com mesmo título.
One of the most important indigenous rituals in present time, the Yaõkwa of the Enawênê Nawê, in
Juruena river, north of Mato Grosso, acknowledged as an intangible heritage by IPHAN is threatened by
the construction of a dam complex.

Brasil/Maxakali, 2016, cor, 13’


direção director Isael Maxakali, Charles Bicalho som sound Charles Bicalho, Marcos Henrique Coelho
fotografia cinematography Jackson Abacatu produção production Charles Bicalho | Pajé Filmes
montagem editing Charles Bicalho, Isael Maxakali, contato contact charlesbicalho@gmail.com
Jackson Abacatu, Marcos Henrique Coelho

Konãgxeka na língua indígena maxakali quer dizer “água grande”. Trata-se da versão maxakali da
história do dilúvio. Como um castigo, por causa do egoísmo e da ganância dos homens, os espíritos
yãmîy enviam a “grande água”. As ilustrações para o filme foram feitas por indígenas Maxakali durante
oficina realizada na Aldeia Verde Maxakali, no município de Ladainha, Minas Gerais.
Konãgxeka means “big water” in Maxakali indigenous language. This is the Maxakalí version for the story
of the flood. As a punishment for men’s selfishness and greed, the yãmîy spirits send the “big water”.
The illustrations were made by Maxakali people during a workshop held at Aldeia Verde village, in the
municipality of Ladainha, Minas Gerais State.

44
por Glaura Cardoso Vale, Leonardo Amaral e Renata Otto

Os filmes nos chegaram e com eles foi possível construir um debate fecundo
sobre questões que perpassam toda a complexidade de um país marcado por
lutas históricas e por um cotidiano que se revela para a câmera como possibi-
lidade – de restabelecer laços afetivos que parecem apagados por índices tão
elevados de perdas de vidas e de territórios. É possível com os filmes encarar
as urgências, os conflitos, as derrotas, a persistência e os amores. Para compor
a Mostra Contemporânea Brasileira de 2017, a comissão de seleção e curadoria
se orientou por esse entendimento, de que era preciso colocar os filmes em
diálogo, friccionar as formas de ver e de sentir, para perceber como tais filmes
nos convocam para o debate ao dar a ver regimes de opressão, as formas de
resistência e a ternura. Isso é importante porque diante de um volume grande
de produções era preciso recortar e tentar, com apenas uma parte do que nos
chegou, fomentar uma discussão que se estende nos ensaios deste catálogo.
Por esse motivo também seremos breves nesta apresentação. Nosso objetivo,
desde que o festival abandonou o caráter competitivo das mostras brasileira e
internacional, é para/com os filmes prolongar o pensamento que muitas vezes
se perde ou se restringe à efemeridade da sala escura. Em nosso caso, essa
relação com os filmes vai historicamente além desse espaço de partilha – o
cinema como experiência coletiva, todos juntos, ao mesmo tempo, diante das
imagens e sons em movimento. Desde 2015, esse espaço de reflexão convoca
autoras e autores a comentar – na forma de um pequeno ensaio – essas imagens
que nos atravessam.
Das imagens de urgência ao sistema prisional, pensar como se dá o apaga-
mento da diferença em formas opressivas onde tudo é comando, terror, ressen-
timento, violência. Do sistema prisional às resistências, quando parece haver
um desejo de ressignificar essas formas de opressão, enfrentar olho no olho 47
ou expor modos de vida que compreendem que no mundo coabitam humanos
e não humanos. Das formas de resistência ao amor, quando a palavra encontra
pluralidade e encantamento, seja a partir do rememorar, seja através de uma
vida dedicada ao cinema, às artes e à cultura popular. Compreender com os
filmes nossas impotências, mas também nossa fortaleza e o desejo de continuar.
É para/com o cinema que estamos aqui, resistindo, embora alguns queiram o
contrário – censura, apagamento. Corpos em luta ou abandonados à própria
sorte que o cinema resgata para que possamos nomeá-los, sem nos esquecer
da violência a que foram submetidos, para que não nos esqueçamos daquelas
que já não podem mais falar (A Gis, de Thiago Carvalhaes), mas com as quais
podemos e devemos lembrar da militância do feminismo negro (Em Busca de
Lélia, de Beatriz Vieirah), bem como compreender, com os corpos em pleno
ativismo (Pobre, Preto, Puto, de Diego Tafarel; Meu Corpo é Político, de Alice Riff),
os desafios do acordar e se levantar a cada manhã para mais um dia em que o
gesto político se faz e se perfaz no cotidiano. No regime do trabalho e/ou na
resistência pela terra, encontramos a lida diária e contínua das lutas históricas
e os contextos de urgência (Modo de Produção, de Dea Ferraz; Quilombo Rio dos
Macacos, de Josias Pires; Tekoha – Som da Terra, de Rodrigo Arajeju e Valdelice
Veron – Xamiri Nhupoty). Pensar a relação que pode se dar entre os filmes
de temática semelhante, para compreender as diferenças de abordagem, os
contrastes, as fragilidades, as forças e as relações afetivas impressas na imagem,
entre quem filma e as pessoas filmadas em situações de constrangimento,
ao adentrar universos distintos daqueles que realizadoras(es) e equipe estão
acostumados a adentrar (Baronesa, de Juliana Antunes; Lírios não nascem da
lei, de Fabiana Leite; e Corpo Delito, de Pedro Rocha); filmar o cárcere, filmar
a espera, filmar o dentro e o fora do sistema prisional, o dentro e o fora da
imagem, filmar o amor. Por falar em amor, filmar a palavra e provocar com a
imagem um retrato, seja este com entes da própria família (Abissal, de Arthur
Leite; Luíza, de Caio Baú), seja ele com um artista plástico e documentarista
que se dedicou à cultura popular e deixou um acervo de imagens importante,
além das últimas conversas gravadas para a câmera, antes de embarcar no seu
voo definitivo (O Cavalleiro, Elyseu, de Iulik Lomba de Farias). Falar em acervo,
em imagens que sobrevivem apesar da fragmentação e dos segundos ou dos
poucos fotogramas que restaram da nossa memória, é um gesto de render
homenagem ao cinema ao mesmo tempo dizer que a duração é uma questão
de montagem (Festejo Muito Pessoal, de Carlos Adriano) ou de trazer e dar a
ver imagens de arquivo para repensar o passado e suas teorias conspiratórias
– ou não – no presente (Em Nome da América, de Fernando Weller). Dos vários
48 mundos (antes e depois deste fim do mundo) que coexistem – o das mulheres e
homens, crianças, animais e os espíritos da floresta –, com seus rituais e curas e,
ainda, o reencontro com os parentes ou com um mito fundador (Naquele tempo
todos eram gente, de Aline Baiana; Piragui – A dona dos peixes, de Luiza Calagian;
Txirin, o batismo do gavião, de Isaka Mateus Huni Kuĩ; Yuxiã, de Nawa Siã e Siã
Inubake; A Terceira Margem, de Fabian Remy), o cinema nos permite uma segunda
chance para repensar o espaço de concreto e de concretudes que avança para
fazer desaparecer a si mesmo, sem recuo ou desconfiança de que se caminha
para o apagamento completo das espécies e do simbólico. Por fim, ao propor
pensar, na precariedade da nossa compreensão, um sistema educacional que
dê conta da força da juventude – e da forma como esta é capaz de reconfigurar
um espaço que fora planejado com uma arquitetura disciplinar, como a maioria
das escolas são construídas e concebidas –, o cinema vem nos mostrar como
é estar sobre as rodas de um skate (Conselheiro Crispiniano, de Yudji Oliveira).

49
São Paulo/Brasil, 2016, cor, 20’
direção director Thiago Carvalhaes som sound Botond Csizmadia
fotografia cinematography Thiago Carvalhaes produção production Betina de Tella
montagem editing Beatriz Pomar contato contact carvalhaes@gmail.com

Gisberta Salce era uma mulher transexual brasileira que vivia como imigrante em Portugal. Ela foi
brutalmente assassinada há 10 anos e desde então se tornou símbolo da luta pelos direitos transexuais.
Este documentário constrói um retrato delicado, peça por peça, de uma mulher despedaçada por
um mundo indiferente.
Gisberta Salce was a Brazilian transsexual woman who lived as an immigrant in Portugal. She was bru-
tally murdered 10 ago and since then became a symbol of the struggle of the transsexual rights. This
documentary film makes a delicate picture, piece by piece, of a woman shattered by an indifferent world.

Minas Gerais/Brasil, 2016, cor, 56’


direção director Fabian Remy som sound Osvaldo Ferreira
fotografia cinema​tography Lucas Barbi produção production André Hallak/Trem Chic Cinevideolab
montagem editing Fabian Remy, Bruno Carboni contato contact andre@tremchic.com

Thini_á deixou sua tribo Fulni_ô com quinze anos de idade. Há trinta anos, vive nas metrópoles do
Brasil. Eu o convido a me acompanhar pelo Brasil Central, em busca do passado de João Kramura,
filho de sertanejos roubado e criado pela tribo Kayapó, durante a Marcha para o Oeste de Vargas.
Durante a viagem, inspirado pela saga de João, Thini_á compartilha conosco dúvidas e reflexões a
respeito de uma decisão que pode mudar sua vida.
Thini_á left his Fulni-ô tribe when he was fifteen years old. For thirty years he’s been living in metropolis
in Brazil. I invite him to accompany me through Central Brazil, searching for João Kramura’s past, a son
of sertanejos who was kidnapped and brought up by Kayapó tribe, during Varga’s March to the West.
During the trip and inspired by João’s saga Thini_á shares with us his doubts and thoughts over a decision
which might change his life.

51
Ceará/Brasil, 2016, cor, 17’
direção director Arthur Leite som sound Yures Viana
fotografia cinematography Daniel Pustowka produção production Bárbara Cariry/Sereia Filmes
montagem editing Arthur Leite, Magno Guimarães contato contact arthurleite13@gmail.com

Partindo do projeto de pesquisar a vida de um avô que nunca conheceu, o cineasta cearense Arthur
Leite começa a investigar a história da própria família. Quanto mais mergulha nela, mais se afasta
da ideia original, percebendo que a personagem, na verdade, é sua avó, Rosa – que, diante de uma
câmera, dispõe-se a fazer revelações inesperadas sobre esse passado desconhecido.
Having a project to research about a grandfather that he never met, the filmmaker from Ceará Arthur
Leite starts to investigate the history of his own family. The more he dives in it, the more he gets away
from the original idea; he realizes that the real character is actually his grandmother, Rosa – who, in front

Minas Gerais/Brasil, 2017, cor, 73’


direção director Juliana Antunes produção production Juliana Antunes, Giselle Ferreira,
fotografia cinematography Fernanda de Sena Marcella Jacques, Laura Godoy
montagem editing Affonso Uchoa, Rita M. Pestana contato contact venturacine@gmail.com,
som sound Marcela Santos contato@filmesdeplastico.com.br

Andreia quer se mudar. Leid espera pelo marido preso. Vizinhas em um bairro na periferia de Belo
Horizonte, elas tentam se desviar dos perigos de uma guerra do tráfico e evitar as tragédias trazidas
junto com a chuva.
Andreia wants to move out. Leid is waiting for her husband, who is in prison. They are neighbors in a poor
suburban slum of Belo Horizonte, trying to escape the daily dangers of a drug traffic war happening on
the outside and avoid the tragedy that comes with the rain.

52
São Paulo/Brasil, 2016, p&b, 19’
direção director Yudji Oliveira Noite produções audiovisuais
montagem editing Yudji Oliveira contato contact carlosyudji@gmail.com
produção production Kyka Gasparian,

Um documentário sobre uma escola ocupada no centro de Guarulhos, Brasil. Os jovens tomam o
poder do colégio e descobrem que não se aprende somente numa sala de aula. Juntos desfrutam
de uma escola livre.
A documentary film about an occupied school in downtown Guarulhos, Brazil. The youngsters take the
power of their school and discover that one can learn not only in a classroom. Together they enjoy a
school of freedom.

Ceará/Brasil, 2017, cor, 73’


direção director Pedro Rocha produção production Pedro Rocha,
fotografia cinematography Juliane Peixoto Diego Hoefel/Corpo Aberto
montagem editing Frederico Benevides contato contact pedro@corpoaberto.com
som sound Paulo Ribeiro

Ivan saiu da cadeia, mas continua preso a uma tornozeleira eletrônica.


Ivan got out of jail but is still attached to an ankle monitor.

53
Bahia/Brasil, 2017, cor, 15’
direção director Beatriz Vieirah de Oliveira, Ary Rosa Duarte
fotografia cinematography Heloisa França produção production Mateus Sousa e Silva/Rosza
montagem editing Poliana Costa Filmes Produções, produtora parceira
som sound Gabriela Palha, Tomaz Griva Viterbo contato contact b.vieirah1@gmail.com

Lélia Gonzalez. Seguindo os passos desse nome, começo a busca pela minha ancestralidade e por
retratá-la. Professora e antropóloga, mulher à frente do seu tempo, protagonista na militância junto
ao Movimento Negro, sempre afirmando sua identidade e denunciando o mito da democracia racial.
Um símbolo de resistência e da luta pelos direitos de indígenas, negros e mulheres. Os afetos de Lélia
me guiam por toda caminhada.
Following the steps of that name Lélia Gonzalez, I start the search for my ancestry and to picture it.
Professor and Anthropologist, a woman ahead of her time, a protagonist in the militancy in the Black
Movement, always asserting her identity and denouncing the myth of the racial democracy. She is a symbol
of resistance. Lélia’s affections guide me throughout my journey.

Pernambuco/Brasil, 2017, cor e p&b, 96’


direção director Fernando Weller produção production Carol Ferreira, Mannu Costa/
fotografia cinematography Nicolas Hallet Jaraguá Produções e Plano 9 Produções
montagem editing Caioz, João Maria contato contact carolferreira@jaraguaproducoes.com.br
som sound Danilo Carvalho

A controversa presença de milhares de norte-americanos no Nordeste brasileiro na década 1960,


participantes do programa de voluntariado Peace Corps (Corpos da Paz), é o tema central do docu-
mentário. Através de testemunhos, materiais de arquivo e documentação histórica, o filme traz à
tona contradições entre a política exterior norte-americana inaugurada e motivações dos voluntários,
atônitos diante das mazelas de uma região marcada pela fome e violência.
The central theme of the documentary film is the controversial presence of thousands of North-Americans
in Brazilian northeast in the 1960’s. They participated as volunteers in program Peace Corps. Through
testimonials, archive data and historical documentation the film sheds light at the contradictions between
the inaugurated North-American external politics and the volunteer’s motivations.

54
São Paulo/Brasil, 2016, p&b, 8’
direção director Carlos Adriano produção production Carlos Adriano/Babushka, Carlos
fotografia cinematography Carlos Adriano Augusto Calil/Cinemateca Brasileira
montagem editing Carlos Adriano contato contact b.vieirah1@gmail.com
som sound Carlos Adriano

Ensaio poético inspirado no artigo Festejo muito pessoal de Paulo Emílio Salles Gomes. Em seu último
texto (1977), póstumo, o autor faz um balanço crítico de suas relações com o cinema brasileiro e da
urgência da preservação de filmes, diante das inúmeras perdas ao longo do tempo e à margem da
história. Este filme apropria-se de fragmentos de filmes brasileiros e de trechos de filmes de Jean
Vigo, cineasta revelado para a história pelo crítico paulista.
A poetical essay inspired by the article Festejo muito especial by Paulo Emíllio Salles Gomes. In his last text
(1977), posthumous, the author makes a critic balance of his relation with Brazilian cinema and the urgency
of its preservation, facing countless losses through time and aside from history.

Minas Gerais/Brasil, 2017, cor, 65’


direção director Fabiana Leite produção production Daniela Pimentel/
fotografia cinematography Cardes Amâncio Sertania Produções
montagem editing Daniel Carneiro, Fabiana Leite contato contact fabianalleite@gmail.com
som sound Letícia Souza

Ana Carolina, Liliane, Dayane, Marcela e suas histórias de vida que se cruzam nos corredores do cárcere
entre dramas, sonhos, expectativas e transformações vividas antes e depois de terem seus filhos na
prisão. Após os primeiros meses do nascimento, o filho aprisionado deve ser entregue a família ou
encaminhado a adoção, aos olhos da lei, enquanto a mãe, separada do recém-nascido, mantém-se presa.
The story of Ana Carolina, Liliane, Dayane, Marcela lives intersects in the alleys of a prison. Tragedies,
dreams, expectations and transformations are experienced before and after having given birth in jail.
After the first months of being born, the imprisoned child must be given to a member of the family or
put up to adoption, under the sight of the law, while the mother, separated from the newly-born is kept
under the prison sentence.

55
Paraná/Brasil, 2017, cor, 15’
direção director Caio Baú produção production Caio Baú, Amanda Soprani/
fotografia cinematography Murilo Lazarin Gesto de Cinema
montagem editing Fábio Allon contato contact caio@gestodecinema.com
som sound Lucas Kosinski

Luiza trata da delicada relação entre uma jovem deficiente e o universo que a cerca, tendo a sexu-
alidade como fio condutor para abordar questões como preconceito, relações entre pais e filhos,
super-proteção da família, autonomia, diferenças e amor.
Luíza approaches the delicate relation between a young handicap girl and the universe that surrounds
her, having sexuality as a thread to deal with issues such as prejudice, parent relationship, overprotective
family, autonomy, differences and love.

São Paulo/Brasil, 2017, cor, 72’


direção director Alice Riff produção production Heverton Lima/Studio Riff,
fotografia cinematography Vinicius Berger Paideia Filmes
montagem editing Yuri Amaral contato contact aliceriff@gmail.com
som sound Tales Manfrinato

Meu corpo é político aborda o cotidiano de quatro militantes LGBT que vivem em periferias de São
Paulo. A partir da intimidade e do contexto social dos personagens, o documentário levanta questões
contemporâneas sobre a população trans e suas disputas políticas
Meu body is political approaches the routine of four LGBT militants that live in the outskirts of São Paulo.
The documentary film raises contemporary questions about the trans population and their political
dispute from the characters intimacy and social context.

56
Pernambuco/Brasil, 2017, cor, 75’
direção director Dea Ferraz produção production Carol Vergolino, Cezar Maia,
fotografia cinematography Pedro Sotero Daiane Dultra, Dea Ferraz, Marcelo Barreto, Neusa
montagem editing Ernesto de Carvalho Rodrigues/Alumia Produções e Conteúdo
som sound Rafa Travassos contato contact distribution@inquietacine.com.br

Modo de Produção faz do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Ipojuca seu personagem central. Um
lugar por onde passa, diariamente, uma massa de trabalhadores rurais, com suas vidas talhadas pela
cana. Aposentadorias, demissões, relações de trabalho e um suposto desenvolvimento econômico-
social que se avizinha como uma miragem distante ou, quem sabe, fantasma: o Porto de Suape.
Mode of Production makes the Sindicato de Trabalhadores Rurais de Ipojuca (Ipojuca’s Rural Workers
Syndicate) its main character. It is a place where a mass of workers pass every day, with their lives marked
by sugar cane. Retirements, layoffs, work relations and a supposedly social and economic development
that might come as a mirage or, who knows, a ghost: the Suape’s Port.

Rio de Janeiro/Brasil, 2016, cor, 26’


direção director Aline Baiana Tauana Carlier
fotografia cinematography Aline Baiana, Oliver Juric, som sound Ale Borges
Guilherme Fernández produção production Aline Baiana
montagem editing Aline Baiana, Clara Medeiros, contato contact baiana.line@gmail.com

Sandra Benites, Guarani-Ñandeva, narra a criação de Urutau. Pássaro que durante o dia permanece
imóvel sobre um galho e ao entardecer faz ecoar um canto melancólico como um lamento humano.
Como quem cumpria o destino manifesto em seu nome, José Urutau Guajajara permaneceu 26 ho-
ras no alto de uma árvore, privado de alimento e água pelas forças do Estado, resistindo à terceira
desocupação da Aldeia Maracanã.
Sandra Benites, Guarani-Ñandeva, narrates the creation of Urutau. A bird that during the day remains
still on a branch and at dawn echoes a melancholic song like a human crying. As if fulfilling the destiny
manifest in his name, José Urutau Guajajara remained 26 hours at the top a tree, deprived from food and
water by the State forces, resisting to Aldeia Maracanã third eviction.

57
Rio de Janeiro/Brasil, 2016, cor e p&b, 64’
direção director Iulik Lomba de Farias som sound Pedro Felix
fotografia cinematography Raquel Canário produção production Jorge Freund
montagem editing Adriano Rayol contato contact iulikfarias@yahoo.com.br

O Cavalleiro, Elyseu, documentário etnobiográfico sobre Elyseu Visconti Cavalleiro, um dos expoentes
do Cinema Marginal Brasileiro. A equipe imergiu em seu universo criativo, acompanhando o artista
nos seus últimos anos de vida. As imagens reunidas durante o longo processo de filmagem, foram
interseccionadas a materiais de arquivo da família Visconti e a trechos de filmes do próprio Elyseu.
O Cavalleiro, Elyseu is an ethno-biographic documentary film about Elyseu Visconti Cavalleiro, one of the
exponents of Cinema Marginal Brasileiro (Marginal Brazilian Cinema). The crew immersed in his creative
universe, following the artist in his last days. The images gathered in the filming process were intersected
with archive material from Visconti’s family and with parts of Elyseu’s films.

São Paulo/Brasil, 2016, cor, 21’


direção director Luiza Calagian produção production Luiza Calagian, LISA-USP/CNPQ
montagem editing Luiza Calagian contato contact lumandetta@gmail.com

O filme, realizado em parceria com um grupo de jovens mulheres da aldeia Tenonde Porã, em São
Paulo, mistura ficção e documentário numa narrativa em torno da figura da Piragui, dona dos peixes
na tradição Guarani Mbya.
The film is made in a partnership with a group of young women from the Tenote Porã village, in São Paulo,
blends fiction and documentary in a narrative around Piragui, the owner of the fishes in the Guarani
Mbya tradition.

58
Rio Grande do Sul/Brasil, 2016, cor, 15’
direção director Diego Tafarel produção production Alessandro Montelli,
fotografia cinematography Lucas Ferreira Pé de Coelho Filmes
montagem editing Diego Tafarel, Zé Correa contato contact maiara@pedecoelhofilmes.com
som sound Gui Carpes

Nei D'Ogum é batuque, é sexo e é negritude. É amor e contradição. Um guerreiro das causas negras,
gays e transexuais. Ele é a própria causa. Autodefine-se: "pobre, preto, puto".
Nei D'Ogum is batuque, is sex and is blackness. Love and contradiction. He is a warrior of the black, gay
and transsexual causes. He is the cause itself. He defines himself as “poor, nigger, faggot”.

Bahia/Brasil, 2017, cor, 120’


direção director Josias Pires Marcello Benedictis, Napoleão Cunha, Tatu
fotografia cinematography Gabriel Teixeira produção production Marcela da Costa/Épuras
montagem editing Cristina Amaral, Igor Caiê do Amaral Laboratório Audiovisual
som sound Glauco Neves, Gutemberg Peixinho, contato contact costamarcela@hotmail.com

Documentário sobre comunidade quilombola localizada entre Salvador e Simões Filho (BA), foca o
conflito pela propriedade de terra de uso tradicional, reivindicada pela Marinha do Brasil. O filme
denuncia graves violações de direitos humanos e documenta aspectos culturais, simbólicos e carac-
terísticas do território, conflitos gravados no calor da hora pelos próprios quilombolas.
This is a documentary film about the quilombola community located between Salvador and Simões Filho
(Bahia, Brazil) which focuses on the conflict over the land’s ownership, vindicated by its dwellers and the
Brazilian Navy. It denounces serious violations of the human rights and documents symbolic, cultural aspects
and features of the territory, conflicts recorded in the heat of the moment by the quilombola themselves.

59
Brasília/Brasil, 2017, p&b, 20’
direção director Rodrigo Arajeju, Valdelice Veron som sound Camila Machado
(Xamiri Nhupoty) produção production Isadora Stepanski, Rodrigo
fotografia cinematography Alan Schvarsberg Arajeju, 7G Documenta - Coprodução COMOVA
montagem editing Sergio Azevedo contato contact rodrigo@7gdocumenta.com.br

Nossas mães lideram a retomada do Tekoha Takuara pelo nosso modo de ser e viver – nhande reko. O
agronegócio avança sobre corpos-terras indígenas no Mato Grosso do Sul. A luta para recuperar as terras
sagradas, a essência da vida na nossa cosmovisão. O luto pelo genocídio Kaiowa e Guarani no Brasil.
Our mothers lead the resumption of the Tekoha Takuara for our way of living - nhande reko. The agri-
business moving forward over the indigenous bodies and land in Mato Grosso do Sul. It’s the struggle to
recover sacred lands, the essence of life in this cosmovision. It’s the mourning of the genocide of Kaiwa
and Guarani in Brazil.

Acre/Brasil, 2017, cor, 29’


direção director Isaka Mateus Huni Kuĩ som sound Vivilino Busẽ
fotografia cinematography Josias Maná, Gustavo produção production Carolina Canguçu
Shane, Ayani Mateus contato contact carolinacangucu@gmail.com
montagem editing Carolina Canguçu

O batismo do Txirin foi realizado na aldeia São Joaquim Centro de Memória, do povo Huni Kuĩ, no
Acre, 5 anos após o falecimento do pajé e patriarca da comunidade, Agostinho Muru. Jovens iniciam
o aprendizado desse antigo costume utilizado para superar a dor da perda e trazer ânimo e prospe-
ridade para os vivos.
The Txirim baptism was held in the indigenous Huni Kuĩ village São Joaquim Centro de Memória (São
Joaquim Memory Center), in Acre, five years after the death of the witchdoctor and patriarch of the
community, Agostinho Muru. Youngsters start to learn this ancient practice made to overcome the pain
from the loss and to bring up the mood and prosperity to the living.

60
São Paulo/Brasil, 2017, cor, 25’
direção director Nawa Siã, Siã Inubake Mani Dani, Amē, Busē
fotografia cinematography Nawa Siã, Siã Inubake, produção production Mari Corrêa, Nilson Tuwe/
Kana Ibã, Kana Bane, Mani Dani, Amē, Busē Instituto Catitu, Associação do Povo Indígena do Rio
montagem editing Nawa Siã, Mari Corrêa, Nilson Tuwe Humaitá e Soluções Criativas
som sound Nawa Siã, Siã Inubake, Kana Ibã, Kana Bane, contato contact maricorrea@institutocatitu.org.br

Txana Mashã está aprendendo a usar o poder da medicina da floresta e do nixi pae para se tornar
um yuxiã, o pajé-espírito mediador entre os humanos e os seres encantados. Com seu yuxinbiti
(câmera) Nawa Siã e Siã Inubake acompanham Txana Mashã na sua prática de dawaya (conhecedor
de medicina) e agente de saúde. O nixi pae (ayahuasca) é que dá o poder de curar as pessoas. Ele é
medicina e o verdadeiro pajé.
Txana Mashã is learning to use the power of the medicine of the forest and of the nixi pae to become a
yuxiã, the witchdoctor-spirit who is the mediator between the humans and the enchanted beings. With
their yuxinbiti (camera) Nawa Siã and Siã Inubake follow Txana Mashã in the practices of dawaya (expertise
in medicine) and health agency. The nixi pae (ayahuasca) gives the power to cure people. It is medicine
and the real witchdoctor.

61
por Anna Flávia Dias Salles, Daniel Ribeiro Duarte e Ewerton Belico

Gostaria de fazer um filme com você. Não um filme sobre você,


nem um documentário ou uma reportagem, mas nós dois fazermos
um filme juntos durante um período de tempo: fragmentos disto e
daquilo, cenas que você imagina e eu imagino, tentar juntar algo
tão rico e variado, tão claro e vago como a própria viagem. Um filme
que funcione como um sonho ou uma visão, grande o suficiente para
colocar tudo o que queremos dentro dele, outro tipo de rio.
Robert Kramer

A morte ronda a mostra internacional do forumdoc.bh.2017. Vemos desde


quanta morte há nas vidas dos pacientes encarcerados em um hospital psiquiá-
trico chinês até a mistura entre autobiografia e réquiem que atravessa dois dos
últimos trabalhos de Boris Lehman. Atravessa o fim da jornada de um exilado
que volta como corpo transladado ao país de origem e se sucede por gerações
em quase um século de violência política na Argentina. Morre até mesmo nosso
olhar como perspectiva privilegiada em relação ao mundo, no momento em que
espaços, máquinas e insetos oferecem uma experiência divergente. Há algo
mais, todavia, que se avizinha desses filmes: uma simultânea adesão e rejeição
ao ensaísmo cinematográfico. Pois se neles a articulação é quase sempre mais
argumentativa do que narrativa, se as tradições de representação são postas
continuamente em questão, renuncia-se e reelabora-se continuamente alguns
dos mais caros dispositivos do filme-ensaio – tal como o uso do off, até o ponto
em que a música de improviso se transforma em único comentário possível,
teorético e sonoro. São filmes, afinal, incomodados com nosso tempo e, mais que
isso, desconfiados dos modos de manifestação desse incômodo. Opõem-se ao
65
registro pautado pela urgência com a multiplicação de mediações e a dilatação
do tempo-pensamento, do tempo-espaço no qual o mundo pode se revitalizar.
Um instigante exemplo dessa tentativa de reelaborar ensaísticamente a
relação do documentário com a urgência é El mar, la mar. Em um dos lugares
mais conflituosos da atualidade, o deserto de Sonora, fronteira entre México e
Estados Unidos, Sniadecki e Bonetta iniciaram as filmagens, que se estenderam
por três anos, antes da declaração criminosa e indigesta do atual presidente
norte-americano de que pretende construir ali um “great, great wall” a ser pago,
afirma, pelos mexicanos. O deserto se apresenta como “barreira natural” contra
imigrantes pobres, cercada e vigiada em grandes extensões, ambiente em que
se digladiam promessa e infortúnio, presa e caçador, e no qual os cineastas
fizeram sua poética do vestígio. O filme articula traços da disputa política ali
encenada – tecnologias de comunicação, helicópteros, cercas de arame farpado
versus oráculos, roupas, sandálias e outras pistas da travessia humana – a incur-
sões memorialísticas de personagens e sobreviventes, os quais apenas ouvimos
em voz over: imigrantes sem documento, moradores dos arredores, policiais,
caçadores de pessoas. Mas o deserto tem seu outro lugar de fala. Alastra-se,
silencioso e milenar, de ponta a ponta no espaço fílmico cuspindo seus incên-
dios e tempestades. Parece mesmo indiferente às narrativas dramáticas que se
desenrolam em suas vastidões em que respiram e se banham mulher, formiga,
veado, cacto, homem, morcego, cão.
Los (De) Pendientes abre uma sessão dupla de filmes argentinos que tema-
tizam a ditadura no país. O curta de Sebastian Wiede é todo composto com found
footage e constrói, com a força das imagens, uma reflexão poética e histórica.
Ao se centrar em um trabalho ensaístico de reunir e colidir imagens clássicas do
cinema político argentino, o filme aposta no poder destas imagens de conduzir
as tensões políticas que as geraram, prescindindo do uso da palavra, apenas
sutilmente utilizada no filme.
Já Cuatreros, de Albertina Carri, faz-se entre um gesto político e um trabalho
de memória pessoal. A realizadora é filha de Roberto Carri, ensaísta, sociólogo
e desaparecido político do regime militar argentino, que entre outras obras
escreveu a história de Isidro Velásquez, o último gaúcho rebelde e violento da
Argentina. Cuatreros investiga esta chave histórica que liga o pai, intelectual
revolucionário com o rebelde popular detentor das “formas pré-revolucionárias
da violência”. Utiliza desde reminiscências familiares em primeira pessoa até
material de arquivo do filme de Pablo Szir baseado no livro de Carri. O filme
tem o calor da revolução, que o anima a percorrer com uma forma labiríntica
por entre os períodos e materiais históricos, além de fazer poéticas digressões

66
sobre a relação entre a nova geração de vivos – o filho – e os pais mortos
da realizadora.
O Auge do Humano se organiza dialeticamente entre a dispersão e a concen-
tração: experiências e trajetórias espalham-se por países, continentes, em um
fluxo que parece arrastar esses jovens em meio ao expatriamento, a dispersão
linguística e o abandono dos espaços citadinos. Mas há também fios tênues a
amarrar essas vidas, em uma espécie de cultura jovem e periférica mundiali-
zada, nos quais se inventam as imagens possíveis de um mundo para além da
opressão da esfera do trabalho: tanto buscar sexo na internet quanto contemplar
formigas na mata, estão aquém e além de uma espécie de modernidade que
somente reserva desesperança a esses jovens. Um filme bifronte, entre o pixe-
lado da imagens digitais e a textura granulada do 16mm, no qual cada universo
subjetivo que se abre como que engendra uma nova forma de representação
imagética. Como um hoax ou um fake, O Auge do Humano é uma armadilha,
desde seu título – vemos no filme a matéria talvez mais comezinha de nossa
experiência – que esfrega em nossos olhos uma pluralidade tão exuberante de
mediações até quase nos convencer de sua inexistência, em um suposto pacto
com o amadorismo que mimetizaria a proliferação de imagens em nosso tempo.
Qiu (Inmates) resulta de uma filmagem imersiva feita pela cineasta chinesa
Ma Li na ala de uma instituição psiquiátrica do norte da China em que são confi-
nados os pacientes cujos casos são considerados mais sérios. Ma Li conviveu com
essas pessoas durante 1 ano e meio, gravando somente depois do terceiro mês.
“Não desejava começar com uma filmagem predatória”, ela disse em entrevista
concedida ao Goethe-Institut alemão1. Qiu é um filme de observação disposto
a se deter, a certa distância, nas razões e relações das pessoas ali internadas,
tanto entre si quanto com os familiares que as visitam. Essa “certa distância”
não é sinal de alguma pretensa cientificidade do registro. Ao contrário, revela
um interesse meditado que supera a questão razão-loucura e nos convoca a
pensar sobre resistir ou se apaziguar ante a imposição não apenas de um apri-
sionamento, mas de um adestramento físico e mental. Há uma tensão dilatada
nas quase 5 horas de filme, polarizada entre as singularidades instigantes dos
personagens e o disciplinamento simpático da instituição, traduzido em trata-
mento amigável por parte de enfermeiros. Essa instituição, aparentemente
contemporizadora e quase invisível, destila-se no filme também por meio de uma
luz sem saturações, quase em tons de cinza, ambiente monocromático no qual
irrompem insubordinações: usar uma peça de roupa própria sobre o uniforme,

1. Copyright: Goethe-Institut China, Yun-hua Chen. This text is licensed under a Creative Com-
mons Attribution – Share Alike 3.0 Germany license. February 2017. Disponível em <https://
www.goethe.de/ins/cn/en/kul/sup/b17/20929482.html>, visitado em 17/10/2017. 67
recusar-se a aceitar os taxativos diagnósticos, falar aos borbotões, ou ainda, se
calar aos borbotões, sobre as razões, as desrazões, o diferenciador mínimo que
os tornam distintos dos que levam a vida extramuros.
Due, de Riccardo Giacconi, é um curta ensaístico crítico que combina material
de vídeo e slides de Milano 2, um projeto urbanístico berlusconista dos anos 70
para a elite italiana. O filme trabalha com as imagens promocionais do projeto,
evidenciando aquilo que no bairro o torna um objetivo de consumo para a elite da
época, o lugar de cultivo de uma forma de vida. A montagem crítica, entretanto,
ao articular imagens das plantas baixas do bairro em construção e o material de
divulgação do plano imobiliário, desarma os clichês publicitários e desnaturaliza
o glamour do lugar. Uma entrevista com o arquiteto responsável, por telefone,
ajuda a mapear as origens ideológicas do projeto. Há ainda slides mais atuais
– mostrados em uma segunda parte do filme – que trazem um mecanismo foto-
gráfico de oscilação entre dois frames, fazendo a documentação do cotidiano do
bairro passar por um efeito estroboscópico que também age contra o clichê e,
ao invés de mostrar o luxo do lugar, nos remete à monstruosidade do projeto.
Due compõe uma sessão com 2 + 2 = 22 [The Alphabet], de Heinz Emhigolz.
Também voltando-se para um pensamento ensaístico sobre a arquitetura, este
filme trabalha com imagens da cidade, mas de uma maneira bem particular que
o título indica com a operação matemática provocativa. Emhigolz utiliza o seu
dispositivo de filmagem da arquitetura para refletir, no centro de Tbilisi (Geórgia)
a criação que a malha urbana vai tecendo, em que ruas se encontram como
pontas soltas ao acaso: canteiros, varandas e fiações elétricas se emaranham
numa materialidade criativa e arbitrária. As letras do alfabeto estruturam o filme
e são por si só um pensamento sobre a impessoalidade e arbitrariedade quase
sígnica que o filme procura captar. A impessoalidade do alfabeto ainda estrutura
uma reflexão literária que abriga a perspectiva cinematográfica e arquitetônica
do realizador, seus cadernos de recortes e a música da banda alemã Kreidler,
cujas composições trabalham de forma experimental os atributos cacofônicos
que o filme encontra no tecido urbano.
Ainda enquanto formulação acerca dos espaços e seu sentido, Calabria
toma o caminho percorrido – da Suíça ao sul da Itália – como imagem do tempo:
o espaço se cumpre como destinação e trajetória, seja de uma vida no exílio que
finda em um reencontro com as origens que somente é possível no post-mortem
– o cadáver do expatriado do sul da Itália que retorna finalmente à Calábria –
ou na identificação recíproca dos dois agentes funerários que transportam o
cadáver, ambos também expatriados, um dos quais, sérvio de origem romani,
no limiar possível da convivialidade entronizada pela União Europeia. Há uma
espécie de imbricamento entre a experiência subjetiva e a tragédia coletiva, o
68
deslocamento do trio de personagens espelha a perda de raízes que a tempes-
tade do capitalismo engendra, impossibilitando toda agência coletiva.
No início de Oublies, Regrets et Repentirs, Boris Lehman avisa ao espectador:
este não é um bônus, um post-scriptum, um adendo, anexo ou apostila. Este
filme é a recuperação de uma bobina – a 6b – de outro filme, My seven places
(2014). “É um filme salvo do afogamento, como Moisés”, completa Lehman. Esta
bobina quase esquecida registra a primeira filmagem feita pelo realizador depois
de quase 11 meses sem filmar, em 2010 (um raro intervalo se pensarmos no
ritmo de trabalho febril de um diretor cuja filmografia inclui mais de cinquenta
filmes). A montagem de Lehman aplica-se sobre estas imagens e o espectador
é conduzido pelo cotidiano do realizador. Nada de extraordinário acontece,
mas tudo, desde passear pelas ruas, tomar um café ou visitar uma livraria, é
reinício do mundo através do olhar fabulatório de Lehman. O filme torna-se um
manifesto por um cinema menor: cotidiano, artesanal e poético.
A sessão continua com Funerailles: de l’art de mourir, filme de Lehman em
que ele busca figurar variações sobre a experiência da própria morte. Arruma
sua casa, roupas e pertences; conversa com amigos sobre o efêmero da vida e o
invisível dos fantasmas; escolhe caixões em uma funerária, tendo sido filmado e
trancado dentro de um deles. Estes rituais funerários atingem o corpo do reali-
zador, e também a sua obra, promessa de continuidade depois da vida, sofre
uma morte simbólica: latas de filmes abertas ao vento são incineradas em uma
praia ao som de uma elegia. Crematório, cortejo fúnebre, testamento: tudo é
motivo para o cineasta experimentar sobre a possibilidade do próprio desa-
parecimento. Esta auto-ficção de enfrentamento da morte é um gesto radical
– cinema e subjetividade são pensados nos limites do corpo e da linguagem e
não lhe falta humor, o que torna o filme uma perturbadora comédia fúnebre.

69
Alemanha, 2013-2017, cor, 88’
direção director Heinz Emigholz trilha sonora music KREIDLER Thomas Klein,
fotografia cinematography Heinz Emigholz, Till Beckmann Alexander Paulick, Andreas Reihse, Detlef Weinrich
montagem editing Heinz Emigholz, Till Beckmann produção production Heinz Emigholz Filmproduktion
som sound Till Beckmann Jochen Jezussek contato contact kino@filmgalerie451.de

Heinz Emigholz lança um novo capítulo de seu projeto “Fotografia e além”, com uma ambiciosa série
de quatro filmes intitulada “Paisagem das ruas”. A primeira parte documenta a banda alemã de pós-
-rock Kreider trabalhando no seu terceiro álbum ABC, em um salão de madeira na cidade de Tbilisi,
Geórgia. Ao longo do filme, Emigholz corta para tomadas das ruas da cidade e para breves folheadas
de páginas de seus cadernos densamente ilustrados.
Heinz Emigholz launches a new chapter of his “Photography and Beyond” project with an ambitious four-
film cycle titled “Streetscapes”. The first installment documents the German post-rock band Kreidler at
work on their album ABC in a wood-paneled hall in Tbilisi, Georgia. Throughout Emigholz cuts to shots of
the city streets outside and to the briskly leafed pages of his densely illustrated notebooks.

Suíça, 2016, cor, 117’


direção director Pierre-François Sauter som sound Patrick Becker, Masaki Hatsui
fotografia cinematography Joakim Chardonnens, produção production Le Laboratoire Central
Pierre-François Sauter contato contact pierrefrancois@lelaboratoirecentral.com
montagem editing Anja Bombelli

Após a morte de um emigrante da Calábria, dois agentes funerários, Jovan e José, também emi-
grantes, viajam do norte ao sul da Itália para repatriar o defunto até seu povoado natal. Jovan, um
cigano que era cantor em Belgrado, acredita na vida após a morte, enquanto José, um português
apaixonado por cultura, acredita somente no que ele vê. Juntos, eles todos enfrentam as surpresas
e contingências da viagem.
After the death of a Calabrian emigrant, two undertakers, Jovan and José, emigrants themselves, travel
from the north to the south of Italy to repatriate the deceased to his home village. Jovan, a gypsy who was
singer in Belgrade, believes in life after death, while José, a Portuguese man with a passion for culture,
believes only what he sees. Together, all of them face the trip's surprises and contingencies.

71
Argentina, 2017, cor e p&b, 85’
direção director Albertina Carri montagem editing Lautaro Colace
fotografia cinematography Alejo Maglio, Federico som sound Martín Grignaschi
Bracken, Bruno Constancio, Tamara Ajzensztat, produção production Diego Schipani, Albertina Carri
Rosario Castelli contato contact diegoschipani@hotmail.com

Sigo os passos de Isidro Velázquez, o último insurgente “gauchillo” da Argentina. Mas, como a busca
pelo tempo perdido é sempre errática, estou realmente indo atrás desse fugitivo da justiça burguesa?
Ou sigo meus próprios passos, minha própria herança?
I am tracing the steps of Isidro Velázquez, Argentina's last insurgent “gauchillo”. But, as the search for
lost time is always erratic, am I really going after that fugitive of the bourgeois justice? Or am I going
after my own footsteps, after my own heritage?

França/Itália, 2017, cor, 16’


direção director Riccardo Giacconi produção production Le Fresnoy - Studio National
fotografia cinematography Leo Lefevre des Arts Contemporains
montagem editing Riccardo Giacconi contato contact riccardo.giacconi@gmail.com
som sound Pierre George

Concebido ao mesmo tempo enquanto um estudo de arquitetura e uma história de detetive, Due
foi filmado em Milano 2, uma área residencial localizada logo depois dos limites de Milão. Construída
como uma cidade utópica por Sílvio Berlusconi nos anos 70, Milano 2 foi seu primeiro projeto imo-
biliário ambicioso e tem funcionado como um laboratório de um estilo de vida que, nas décadas de
“Berlusconismo”, foi disseminada nacionalmente e virou a cultural italiana de ponta-cabeça.
Conceived at the same time as an architectural study and a detective story, Due was shot in Milano 2, a
residential area located just outside Milano. Built as a utopian city by Silvio Berlusconi in the seventies,
Milano 2 was his first ambitious real estate project and has functioned as a laboratory for a way-of-life
that, in the decades of the “Berlusconismo”, was spread nationally and turned Italian culture upside down.

72
Argentina/Brasil, 2016, cor e p&b, 99’
direção director Eduardo Williams Pedro Marinho, Joseph Dennis, Asunción Gagarin
fotografia cinematography Joaquin Neira, produção production Ruda Cine, Un Puma,
Julien Guillery, Eduardo Williams RT Features, Bando à Parte
montagem editing Alice Furtado, Eduardo Williams contato contact teddywill@gmail.com
som sound Milton Rodríguez, Roy Llanes Roncales,

Trabalhar e perder o emprego. Caminhar, chegar, cumprimentar. Conectar-se ou procurar por conexão.
Para alguns jovens de Buenos Aires, Maputo ou Bohol, algumas coisas parecem ser iguais, ou quase.
Em uma lenta perseguição, algo será revelado sobre esse mistério que une a todos, não somente
aos humanos.
Working and losing a job. To walk, arrive, greet. To get connection or to look for it. For some young people
in Buenos Aires, Maputo or Bohol some things seem to be the same, or almost. In a chase without hurry,
something about that mystery that unites us all, not only humans, will be unveiled.

EUA, 2017, cor e p&b, 95’


direção director Joshua Bonnetta, J.P. Sniadeck produção production Joshua Bonnetta, J.P. Sniadeck
fotografia cinematography Joshua Bonnetta, J.P. Sniadeck contato contact joshua.bonnetta@gmail.com,
montagem editing Joshua Bonnetta, J.P. Sniadeck jpsniadecki@gmail.com
som sound Joshua Bonnetta, J.P. Sniadeck

O sol bate impiedosamente em todos aqueles que atravessam o Deserto de Sonora, entre o México
e os Estados Unidos. Além das poucas pessoas que ali vivem, quem faz a travessia são os mais pobres
imigrantes ilegais, que não têm outra escolha senão tomar essa rota extremamente perigosa, perse-
guidos por guardas fronteiriços, tanto oficiais como auto-nomeados. O horizonte parece infinitamente
longe e perigos mortais espreitam em todos os lugares.
The sun beats down mercilessly on all those who cross the Sonoran Desert between Mexico and the United
States. Aside from the few people who live here, it’s the poorest of undocumented immigrants that make
the crossing, who have no choice but to take this extremely dangerous route, followed by border guards
both official and self-appointed. The horizon seems endlessly far away and deadly dangers lurk everywhere.

73
Bélgica, 2016, cor, 96’
direção director Boris Lehman som sound Jacques Dapoz, Luc Rémy
fotografiacinematographyAntoine-MarieMeert,CamilleButi produção production DOVFILM
montagem editing Ariane Mellet contato contact lehman.boris@gmail.com

Como você pode filmar sua própria morte? Como você poderia encená-la? À primeira vista, isso talvez
pareça cômico e, no entanto, é uma pergunta que diz respeito a todos, mesmo que você não seja
cineasta. Tendo atingido uma idade em que já se pensa em preparar as malas para o próximo mundo,
estou prestes a queimar a minha vida, a jogar fora tudo que colecionei e acumulei ao longo de mais
de meio século. Livros, roupas, filmes, tudo deve e irá desaparecer, em cinzas e fumaça.
How can you film your own death ? How can you stage it ? At first sight this might raise a smile, and yet
this question concerns everyone, even if you’re not a filmmaker. Having reached an age at which you think
about getting your bags ready for the next world, I’m about to burn my life, to throw away all I’ve collected and
accumulated for over half a century. Books, clothes, films, everything must, will disappear, in ashes and smoke.

Argentina/Colômbia, 2016, p&b, 24’


direção director Sebastian Wiedemann produção production Lucrecia Piattelli
fotografia cinematography Found Footage contato contact wiedemann.sebastian@gmail.com
montagem editing Sebastian Wiedemann

Construído a partir de excertos de filmes políticos argentinos realizados entre 1956 e 2006, o filme
supõe um passo importante na concepção da história do cinema. Considerando o passado, nos diz
que essas obras audiovisuais eram fiéis à realidade de seu tempo. Considerando o presente, mostra
o pobre estado no qual se encontram essas imagens de vida e de luta. Considerando o devir, indica o
que ainda está por ser feito para reconstruir uma história do cinema mais justa e verdadeira.
Sampling Argentinian critical films from 1956 to 2006, the film offers a great step in the conception
of film history. Considering the past, it tells what visual works were faithful to the real issues of their
times; considering the present, it shows in which poor condition are these crucial images of life and
struggle; considering the becoming, it indicates what remains to be done to reconstruct a fairest and
truest history of cinema.

74
Bélgica, 2016, cor, 42’
direção director Boris Lehman Eric Dumont, Juliette Achard
fotografia​​cinema​tography Antoine Meert produção production Boris Lehman
montagem editing Ariane Mellet contato contact lehman.boris@gmail.com
som sound Jacques Dapoz, Luc Remy,

Esta é uma bobina esquecida (a 6B) de MY SEVEN PLACES que conta um dia na vida de Boris Lehman
(como ele próprio diz, todos os dias são diferentes, mesmo quando parecem iguais). As cenas e en-
contros seguem-se uns aos outros, baseados no acaso e em caprichos.
A forgotten reel (the 6 B) from MY SEVEN PLACES that relates a day in the life of Boris Lehman (as he says
himself, every day is different, even when they look the same). The little scenes and encounters follow
one after the other, based on chance and whims.

China, 2017, cor, 286’


direção director Ma Li produção production Ma Li (Peking, People’s
fotografia​​cinema​tography Ma Li Republic of China)
montagem editing Ma Li contato contact marydocumentary@163.com
som sound Yang Haisong

A diretora Ma Li passou mais de um ano observando os pacientes de um asilo psiquiátrico no norte


da China. Muitos deles estão ali há anos, mas não há vestígios de sua estadia. Não há fotografias de-
corando as paredes, nem há nenhum objeto pessoal nos criados-mudos do dormitório. Os internos
usam os mesmos pijamas padronizados dia e noite.
Director Ma Li spent over a year observing the patients at a mental asylum in northern China. Many of them
have been here for years, yet there are no traces of their stay. No pictures adorn the walls, nor are there any
personal possessions on the dormitory night tables. The inmates wear the same patterned pyjamas day and night.

75
Brasil, 2017, cor, 96’
direção diretor Affonso Uchôa, João Dumans produção production Marcela Jacques, Laura Godoy
fotografia cinematography Leonardo Feliciano contato contact katasiafilmes@gmail.com,
montagem editing Luiz Pretti, Rodrigo Lima vastomundocontato@gmail.com
som sound Pedro Durães, Gustavo Fioravante

André é um jovem morador da Vila Operária, bairro vizinho a uma velha fábrica de alumínio, em Ouro
Preto, Minas Gerais. Um dia, ele encontra o caderno de um dos operários da fábrica.
Andre is a young boy that lives in an industrial neighborhood in Ouro Preto, Brazil, near an old aluminium
factory. One day he nds a notebook from one of the factory workers.

Brasil, 2017, cor, 70’


direção director Clarisse Alvarenga trilha sonora soundtrack Marco Scarassatti, Pedro Durães
fotografia cinematography Bruno Vasconcelos produção production Morgana Rissinger
montagem editing Paula Santos, Clarisse Alvarenga contato contact clarissealvarenga@gmail.com
som sound Pedro Aspahan

Juscelino é um homem ligado à terra. Vive e trabalha no campo, no Norte de Minas Gerais, no Brasil.
Prestes a completar 50 anos, ele nunca havia deixado seu território de origem. Eis que chega o
momento em que ele vai à Bahia, onde viveram seus antepassados. A partir de então, estabelece
contato com um outro mundo.
Juscelino is a man attached to the land. He lives and works in the fields, in the north of Minas Gerais, in
Brazil. He was about to be 50 years old and had never left his home town. Then the day comes and he goes
to Bahia, where his ancestors had lived. Since then he gets in touch with another world.

79
Brasil, 2017, cor, 76’
direção director Beth Formaggini som sound Toninho Muricy
fotografia cinematography Cleisson Vidal, Juarez Pavelak produção production Beth Formaggini/4Ventos
montagem editing Marcia Medeiros, Julia Bernstein contato contact 4ventos2007@gmail.com

Conversa entre o Bispo evangélico Claudio Guerra, ex-chefe da polícia civil que assassinou e incinerou
militantes que se opunham à ditadura, e Eduardo Passos, psicólogo militante dos direitos humanos.
The film is a conversation between the Protestant Bishop Claudio Guerra, former police chief who had
incinerated militants that opposed the dictatorship in Brazil, and Eduardo Passos, psychologist and
human rights militant.

Cine104 29 nov, 19h

Mato Grosso, Xavante/Brasil, 2015, cor, 114’


direção director Divino Tserewahu com Bernard Belisário
fotografia cinematography Divino Tserewahu contato contact tserewahu@yahoo.com.br
montagem editing Divino Tserewahu em colaboração

Wai'a Rini é o ritual em que os meninos a'uwẽ são iniciados no mundo das forças espirituais que auxi-
liam o homem na caça, na cura de doenças, nos sonhos e na geração de filhos e no qual os já iniciados
avançam na vida espiritual, aprofundando-se no conhecimento pelos quais estabelecem relações com
Danhimité e outros espíritos do cerrado. A raridade do ritual Xavante faz desse filme-ritual um ato
de resistência diante do contexto de destruição que os cerca.
Wai'a Rini is the ritual in which the a'uwẽ boys are initiated in the world of the spiritual forces that help
men in the hunting, in the cure of diseases, in the dreams and in the generation of children. And in which
the initiated go forward in spiritual life, going deeper in the knowledge through which they establish
relation with Danhimité and other spirits of Cerrado (Brazilian savanna). The rarity of the Xavante ritual
makes this film a resistance act against the destruction surrounding them.

80
Brasil, 2017, cor, 52'
direção director Claudiney Ferreira som sound Tomás Franco, Rosana Stefanoni
fotografia cinematography André Seiti, Richner Allan produção production Ana Paula Fiorotto
montagem editing Caetano Tola Biasi contato contact ana.fiorotto-pereira@itaucultural.org.br

Fazer desaparecer a língua de um povo é uma das estratégias de opressão mais eficazes quando o
objetivo é provocar o esquecimento. Assim foi com o povo Pataxó. A retomada da língua patxohã
é a personagem principal deste documentário gravado na Reserva da Jaqueira, no Sul da Bahia. A
narrativa de lembrar a reconstrução e recriação da língua é contada pelos que decidiram ter de volta
uma língua própria. Agora, cerca de vinte anos depois, o povo Pataxó pode contar esta história.
To make a language disappear is one of the most effective oppression strategies to make them forget.
This is what happened to the Pataxó people. The recovery of the Patxohã language is the main character
of this documentary shot in Jaqueira Reservation, southern Bahia. The narrative of remembering the
reconstruction and recreation of the language is told by the ones that decided to have back their own
language. Now, twenty years later, the Pataxó people can tell this story.

Brasil, 2017, cor, 74’


direção director Rogério Corrêa som sound Judaz Mallet
fotografia cinematography Lucas Barreto contato contact ana.fiorotto-pereira@itaucultural.org.br
montagem editing Pablo Ferreira

Aspectos da história do povo Krenak, hoje localizados em Resplendor (Minas Gerais), desde a decla-
ração da "guerra justa" pelo rei português D. João VI em 1808, até o desastre ambiental no Rio Doce
causado pela ruptura da barragem de minérios em Mariana em 2015.
Aspects of the history of the Krenak people, localized nowadays in Resplendor (Minas Gerais, Brazil),
since the declaration of the “ just war” by the Portuguese king D. João VI, in 1808, to the environmental
disaster of Doce river, caused by the disruption of the tailing dam in Mariana, in 2015.

81
França, 2017, cor e p&b, 95'
direção director Sylvain George som sound Sylvain George
fotografia cinematography Sylvain George produção production Joana Ribelle / Noir production
montagem editing Sylvain George contato contact noirproduction.distribution@gmail.com

Um filme-poema em 18 ondas, como tantas cenas para descrever Paris e suas paisagens urbanas
atravessadas por um “jovem menor estrangeiro isolado”, os atentados, as rosas brancas, o estado de
emergência, o azul-branco-vermelho, o Oceano Atlântico e suas travessias, os vulcões, o beat-box, a
revolta, a raiva, a violência estatal, uma canção revolucionária, Henri Michaux, o silêncio e a alegria...
nada além da alegria.
A film poem in 18 waves, like so many scenes to describe Paris and its urban landscapes crossed by a
"young foreign minor isolated", the attacks, the white roses, a state of emergency, blue-white-red, l The
Atlantic Ocean, its choruses and shipwrecks without spectators, volcanoes, beat-box, revolt, anger, state
violence, a revolutionary song, Henri Michaux, silence, and joy ... nothing but joy.

Alemanha, 2016, cor, 96’


direção director Philipp Hartmann som sound Philipp Hartmann
fotografia cinematography Philipp Hartmann produção production flumenfilm/ Philipp Hartmann
montagem editing Philipp Hartmann contato contact philipp@flumenfilm.de

Uma viagem por 66 cinemas na Alemanha.


A journey through 66 movie theaters in Germany.

82
Argentina, 1969, cor, 45’
direção director Jorge Prelorán produção production Jorge Prelorán
som sound Rodrigo Montero, Norberto Bernaola contato contact hprelora@ucla.edu

Documentário de Jorge Preloran sobre a cultura dos mapuche protagonizada pela comunidade de
Ruca Choroy (Neuquén) e narrada de forma dramática pelo cacique Damacio Caytrúz.
A documentary by Jorge Preloran about the mapuche culture which plays a leading role in the Ruca
Choroy community (Neuquén) and which is told dramatically by the indigenous leader Damacio Caytrúz.

Comentada por Dr. Héctor Blas Lahitte, chefe da Divisão de Etnografía e Professor de Teoria Antropológica da Faculdade
de Ciências Naturais e Museu da Universidade Nacional de La Plata, Argentina, e Prof. Juan José Cascardi, Encarregado da
Sección Antropología Visual da Divisião de Etnografia do Museo de La Plata e professor de Antropologia e Antropologia da
Imagem na Faculdade de Ciências Naturais e Museu da Universidade Nacional de La PLata, Argentina.

Brasil, 2017, cor, 86'


direção director Pedro Aspahan som sound Glaydson Mendes
fotografia cinematography Pedro Aspahan produção production Lúcia Campos, Patrícia Bizzoto,
assistência de câmera e still assistant camera and still Flávia Mafra
Bernard Machado contato contact contato@pandufilmes.com
montagem editing Pedro Aspahan

Documentário sobre o processo de criação da música na relação com o espaço. Cada território tor-
na-se um espaço de invenção musical a partir de encontros em residências artísticas e de processos
coletivos de composição e criação. O filme acompanha o trabalho de importantes músicos brasileiros
em diferentes cidades, tornando visível o incrível enigma da prática musical.
Documentary about the music creation process in relation to space. The film follows the work of im-
portant Brazilian musicians in artistic residences throughout different cities. Each territory becomes an
open space of musical invention, with collective processes of composition and creation, making visible
the interesting enigma of musical practice.

83
por Muitxs Outrxs*

Moçambique passa nesta última década por impressionantes mudanças. Ainda


que digam respeito a todo o país, a região Norte é onde elas ocorrem de maneira
mais impactante. Desde que nos anos 1990 o Estado moçambicano permitiu
a entrada de investimentos privados estrangeiros no país, grandes e médios
projetos de extração de recursos minerais envolvendo a exploração de gás de
petróleo, areias pesadas e pedras preciosas têm se estabelecido na região. Destes
projetos os mais significativos atualmente em curso envolvem a exploração
de carvão nas minas de Moatize, província de Tete. Para escoar as milhões de
toneladas de carvão que se está a extrair das minas, (re)construíram um caminho
de ferro, a linha do Norte que ligava, de modo intermitente, Nacala a Cuamba e
Lichinga, e que agora segue até Moatize. Este caminho de ferro é parte do projeto
de desenvolvimento conhecido como Corredor de Nacala. Pela região moram
alguns milhões de moçambicanos, a maioria população tradicional campesina
falante de Emakhuwa. Composta de fotos tiradas em diferentes momentos e por
diferentes pessoas nos últimos três anos, esta exposição propõe uma narrativa
crítica da implantação do Corredor de Nacala no norte de Moçambique. Ela é
parte de uma pesquisa em andamento no contexto do Programa Pro-Mobilidade
CAPES/AULP. Muitxs Outrxs* do Brasil, de Moçambique e de outros lugares
fizeram acontecer esta exposição. Por isso Muitxs Outrxs* a assinam.
84
Muitxs Outrxs* é um coletivo de pessoas e outros entes que torna esta exposição possível. Cada um de nós
que agenciamos para efetuá-la assinamos, em regime de autoria distribuída, Nome Próprio & Muitxs Outrxs*.
Os xis dobrados de Muitxs Outrxs* são para marcar os muitos gêneros, espécies e condições (i)materiais de
existência desta exposição e de tudo o mais; os Nomes Próprios respondem às obrigações de prestação de
contas e de registro no Lattes. Realização: Laboratório de Antropologia das Controvérsias Sociotécnicas
(LACS) – UFMG / Parceria: Universidade do Lurio (UniLurio), Moçambique / Pesquisa de Campo: Ana Esperança
Jafete Gule, Ana Luisa Jorge Martins, Daniel Alves de Jesus, Eduardo Viana Vargas, Helena Santos Assunção,
Patrick Arley de Rezende, Raul Lansky de Oliveira / Pesquisa de Laboratório: Ana Esperança Jafete Gule, Ana
Luisa Jorge Martins, Angelina Moura Parreiras e Silva, Cecília Reis Alves dos Santos, Daniel Alves de Jesus,
Eduardo Viana Vargas, Elisa Hipólito do Espírito Santo, Hannah Machado Cepik, Helena Santos Assunção, Iago
Vinicius Avelar Souza, Lucas Vinícios Emerick Rodrigues, Luciana Maciel Bizzotto, Maria Bonome Pederneiras
Barbosa, Patrick Arley de Rezende, Raul Lansky de Oliveira / Fotografias: Ana Esperança Jafete Gule, Eduardo
Viana Vargas, Helena Santos Assunção, Patrick Arley de Rezende, Raul Lansky de Oliveira / Curadoria: Eduardo
Viana Vargas / Projeto expositivo: Caio Brant Vargas e Eduardo Viana Vargas / Desenho esquemático do mapa:
Cecília Reis Alves dos Santos / Colaboração: Aunício da Silva, Aurélio Ginja, Domingos Jafete, Helder Xavier,
Julio Paulino, Justino Cardoso, Karenina Andrade, Letícia Cesarino, Miguel Arcanjo, Ruben Caixeta de Queiroz
/ Colaboração especial: Luis Jorge Manuel António Ferrão / Apoios: CAPES, CEA–UFMG, PPGAN–UFMG,
forumdoc.bh, Palácio das Artes.

85
Em que medida o cinema pode interrogar e retrabalhar as condições da vida
em comum?
Em seu comentário sobre o trabalho do filósofo Etienne Souriau, um filó-
sofo francês, David Lapoujade, coloca em questão o mundo em comum e sugere
que este não precede a experiência que se faz dele. A existência de um mundo
em comum pré-existente é um pressuposto, até então em vigor, a ser descons-
truído. A experiência está situada, ligada ao percurso de cada um, e impõe uma
perspectiva que faz mundo: "o mundo se torna interno às perspectivas e se
multiplica por essa mesma via. O que desaparece não é o mundo, mas a ideia
de um mundo em comum. A tese perspectivista diz não haver, a princípio, um
mundo em comum do qual todos se apropriam para fazer dele ‘seu’ mundo e,
sim, o contrário"1.
Trata-se, portanto, de perspectivas singulares que permitem a instauração de
um mundo. Assim, o mundo em comum não passa de coexistências em potencial
("existimos apenas para se fazer existir"). O que parece se depreender aqui não
é o que é mas as maneiras pelas quais aquilo que é pode vir a ser em sua relação
de existência com outros seres. Em outras palavras, a virtualidade da experiência
dos seres detém maior grau de realidade, pois, através dela, completam-se os
mundos que se está a fazer. Nunca experimentamos o que de fato somos, mas
somente aquilo no que estamos nos tornando, em algum lugar.
Em que medida o cinema pode implementar e assimilar esse vertiginoso
jogo de perspectivas, seu estabelecimento de relações dialógicas e de entendi-
mento com o "outro", que levam ao conhecimento tanto do outro quanto de “si
mesmo”, produzindo novas possibilidades de existência, de vidas em comum?
Quais seriam essas perspectivas visuais? Eis a pergunta que faremos e tentaremos
explorar durante futuros encontros.

86 1. David Lapoujade, Les existences moindres, Les Editions de Minuit, 2017, pp. 47-48.
Seus filmes se voltam ao registro da experiência dos marginalizados – dos
migrantes, em especial – e dos novos movimentos sociais. Em paralelo com
sua carreira cinematográfica, Sylvain George vem ministrando regularmente
ateliers, seminários e master classes em diversos países atinentes à elaboração
de seu trabalho. Publicou, pela NP Editions, La Vita Bruta – Une adresse à Pier
Paolo Pasolini, AD Nauseam, Poème Noir, Time Bomb - Programme sur le cinéma
qui vient.

No Border (Aspettavo Che Scendesse La Sera), super 8, p&b, 23 min. NOIR PRODUCTION, 2005-2008.
N'entre pas sans violence dans la nuit, vídeo, p&b, 20 min. NOIR PRODUCTION 2005-2008.
Europe année 06 (Fragments Ceuta) - Contre-feux n°3, mídias móveis, p&b, 12 min. NOIR PRODUCTION 2006.
Un homme idéal (Fragments K.) - Contre-feux n°4, mídias móveis, p&b/cor, 21 min. NOIR PRODUCTION
2006-2007.
Série des Contrefeux. 7 films ciné-tracts et fables didactiques, vídeo, mídias móveis, p&b/cor, 77
min, NOIR PRODUCTION 2006-2008.
Ils nous tueront tous, vídeo, p&b, 10 min, NOIR PRODUCTION 2009.
L'Impossible - Pages arrachées, Super 8, 16mm, vidéo. p&b/cor, 90 min, 2009.
Qu'ils reposent en révolte (Des figures de guerres I), vídeo, p&b, 153 min, 2010.
Les Éclats (Ma gueule, ma révolte, mon nom), vídeo, p&b/cor, 84 min, 2011.
Les nuées (My black mama's face), vídeo, p&b, 7 min, NOIR PRODUCTION 2012
Vers Madrid - The Burning Bright, vídeo, p&b/cor, 106 min, 2011-2014
Nocturne blanc-chasseur, vídeo, p&b, 23 min, NOIR PRODUCTION 2015.
Joli Mai, vídeo, p&b, 6 min, NOIR PRODUCTION 2016.
Youssef, la rage, le vent, avant l'existence, vídeo, p&b, 6 min, NOIR PRODUCTION 2017.
Paris est une fête - Un film en 18 vagues, vídeo, p&b/cor, 95 min, 2017.

Este curso é patrocinado pelo Ministério das Relações Exteriores.

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PIRIPKURA:
por Ruben Caixeta de Queiroz (UFMG)

O fogo apagou. É preciso buscá-lo junto aos brancos (civilizados), já que não
há mais outros índios por perto (a maioria já foi morta ou fugiu dali). Onde
encontrá-lo e recebê-lo na forma de uma tocha e não de um disparo de arma
letal, que custaria a vida de quem o procurasse?
Quem procura o fogo? Dois índios sobreviventes de um grupo chamado
Piripkura, na fronteira dos atuais estados de Rondônia e Mato-Grosso. A quem
procuram? Em quem encontrar amparo e proteção? Numa frente de proteção
da Funai (denominada Madeirinha-Juruena), onde se encontra um sertanista e
funcionário da Funai, Jair Candor. A última vez que estes dois índios perderam
o fogo foi em 1998, segundo o sertanista. Nesta ocasião, foram socorridos pela
Funai, e depois fugiram para o meio do mato, vivendo ali por quase 20 anos
apenas com a tocha de fogo, um facão e um machado. Agora, em 2016, quando
se passa a história presente do filme, os dois voltam à base da Funai para, mais
uma vez, recuperar o fogo e, mais uma vez, se embrenharem no meio da mata
que ainda "sobrevive".
A cada dois anos, o órgão indigenista tem que justificar a restrição de uso
da terra, para a proteção dos índios, e não deixar que os brancos a ocupem e
a destruam por meio do "fogo grande", da extração da madeira, da mineração,
da conversão da floresta em pasto de gado.
Essa é a história do filme, construído numa narrativa muito simples, mas
potente. São quatro personagens principais: os dois índios Pirikura (denominados
Pakyî e Tamanduá), uma índia Piripkura (Rita) e o já citado sertanista da Funai, Jair
Candor. A equipe de filmagem se desloca para a base da Funai e ali permanece,
conversando com Rita e Jair, ou se deslocando com Jair e sua equipe para a
coleta de vestígios (lugares de acampamento, de pesca e caça, trilhas e marcas
na selva) que demonstrem a existência dos índios. No meio destas expedições 95
ou das esperas na base da Funai, sem fazer diretamente entrevistas, os docu-
mentaristas travam uma conversa com Jair e ouvem dele uma pedagogia do
trabalho com os índios em "isolamento voluntário". Por meio deste percurso,
o filme apresenta e defende também a filosofia do órgão indigenista para a
proteção dos povos indígenas "isolados" e do meio ambiente no qual se inserem.
É preciso respeitar a recusa deles por viverem com a nossa sociedade ou até
mesmo com outros índios, proteger a floresta e os recursos necessários a sua
sobrevivência. Sem estes índios, muito provavelmente aquela região de floresta
já estaria toda destruída pela cobiça dos madeireiros, garimpeiros, criadores de
gado, o que, aliás, já aconteceu com todo o entorno da terra interditada. Sem a
Funai (e de seus servidores) talvez estes sobreviventes já não existissem mais.
Até onde vão conseguir resistir? Até onde a Funai vai existir e ter condições de
proteger a vida destes sobreviventes e da floresta? Esta é bem a pergunta do
Jair, a pergunta do filme.
Piripkura, o filme, não tem a pretensão de contar toda a história do contato
com esse grupo e não realiza qualquer performance para narrar o passado ou usa
de um extenso material de arquivo, ao contrário de outros filmes que tratam do
tema do genocídio e de massacre de povos indígenas, como é o caso de Serras
da Desordem de Andrea Tonacci e de Corumbiara de Vincent Carelli. Piripkura é
mais modesto, neste sentido, agarra no corpo e na voz dos seus personagens e
deixa que eles falem, se mostrem. Nem por isso deixa de dar o contexto do que é
narrado. Por meio de algumas inserções de cartela, o filme situa o espectador no
tempo histórico. Por exemplo, já de início, assim é escrito: "1989, uma expedição
liderada por Jair Candor descobriu numa pequena trilha na floresta, cercada pela
expansão das fazendas, Pakyî e Tamanduá, os dois últimos sobreviventes do povo
Piripkura. O sucesso dessa expedição foi principalmente devido à presença de
Rita, a terceira sobrevivente conhecida desse povo. Depois de perder a maioria
de sua família, Rita deixou a área e agora vive com Aripã Karipuna, com quem
se casou [e têm dois filhos] no fim dos anos de 1990."
Rita é uma figura de destaque no filme. Ela é irmã e tia de um dos dois
outros sobreviventes, dos quais já se apartou há muito tempo. Contudo, junto
com Jair, Rita faz expedições de reconhecimento na floresta acerca da sobre-
vivência de seus parentes. Mas o filme não conta [e nem poderia contar] toda
a história, talvez mais dramática do que possamos imaginar. Isso não é falado
no filme, Rita foi resgatada por volta de 1984 pelos servidores da Funai de uma
fazenda denominada Mudança, na qual fora mantida escrava e "prestava" serviço
sexuais aos seus peões. Tudo isso depois de quase ver o seu povo exterminado:
logo no começo da década de 1980, calculava-se cerca de 20 índios piripkura,
96 quando a aldeia de Rita foi atacada por pistoleiros durante a noite, seu pai foi
decapitado, bem como vários outros parentes adultos e crianças, suas casas
incendiadas. Rita conta essa história em português, numa grande dificuldade
para pronunciar corretamente as palavras, na tentativa de nos fazer compreender,
sejamos nós os indigenistas que ali trabalham e se deixam gravar para o filme
ou para os jornalistas e espectadores de sua história agora no filme Piripkura.
Isso não é tudo. Piripkura não conta toda a história. Nem sei bem se está
correta toda a história que aqui resgato a partir do filme e de algumas fontes de
internet. Parece-me que em 1997 (mas essa data não bate com aquela de 1989
que aparece na cartela de início do filme), a Funai teria encontrado dois índios
Piripkura (aparentemente os mesmos Pakyî e Tamanduá, que, ao longo do contato,
foram chamados de diferentes nomes: Tititi, Curumim, Joveia, Tapeia, Tikum,
Mande'i), que foram levados doentes para Ji-Paraná e, depois do tratamento,
deixados de volta na área de ocupação tradicional (entre os rios Madeirinha,
Branco e Roosevelt), quando desapareceram na mata.
Jair, é o que diz no filme, chegou para "pelejar" com os Piripkura em 1988,
foi embora em 1992, e só regressou em 2007, quando novamente teria levado
para tratamento em Ji-Paraná os dois sobreviventes: um deles (Pakyî) teria sido
levado para a Casa de Saúde do Índio de Ji-Paraná, com diagnóstico de cálculo
biliar. Depois de passar por uma cirurgia, Pakyî, na companhia de Tamanduá, foi
levado de volta para a região de sua habitação tradicional. Lá, com suas tochas
de fogo, facão e machado, novamente se embrenharam na mata. Foram reen-
contrados pela equipe de Jair em 2011, ali vivendo bem.
A presença deles na área é constantemente monitorada de longe pelos
sertanistas, pois precisam, como já dito, obter as "provas" de que permanecem
lá, a cada dois anos, para que a "restrição de uso" da terra que ocupam possa
renovar-se perante à Justiça. Em 2016, Jair, Rita, o marido dela, e outros funcio-
nários da Frente de Proteção Madeirinha-Juruena, Cleiton e Filipe, já os haviam
procurado em pelo menos duas longas expedições. Encontraram "vestígios" de
sua presença próxima, mas nada deles: eles "voam rapidinho", comenta Jair,
"esses caras são ninjas", desaparecem! Dizem que Piripkura significa Borboleta.
Mas, quando o fogo apaga, os dois Piripkura vão, eles mesmos, à base da Funai
para procurá-lo! Encontram Jair e os outros indigenistas, se apresentam!
Neste momento, no local, a equipe do documentário está instalada, acom-
panhando as expedições da equipe de Jair, e registra momentos (movimentos
e olhares), trocas de palavras e comidas e gestos desconcertantes dos índios
Piripkura com a equipe médica, de filmagem e da própria frente de proteção.
Já é quase final do filme, aos 47'50'', quando chegam essas imagens. Elas nos
causam grande impacto, pois, os cinegrafistas depois de acompanharem por
longo tempo a equipe de Jair no meio do mato na busca pelos vestígios dos 97
"isolados", sem sucesso, são surpreendidos com a visita deles, na base. O câmera
nem estava preparado para essa chegada, já que, podemos ver, ele sai em correria
para o encontro dos dois quando Jair já travava com eles um diálogo muito
amistoso. Em seguida, Jair tenta contatar uma equipe médica para chegar logo
na base e fazer um levantamento da saúde dos visitantes, que, sabe-se, ficarão
por ali por um tempo não muito longo. De forma surpreendente, permanecem
por um tempo suficiente para a chegada de uma enfermeira (que os analise e
constata que estão bem de saúde) e para que sejam filmados. Estas cenas, de
2016, são mescladas, na montagem, com aquelas de 2011 (nas quais os dois
índios são vistos no seu acampamento no interior da mata, e são filmados pela
equipe de Jair, única cena na qual o filme se vale do uso de material de arquivo).
Como já disse, no meio destas estadias e encontros, o filme toma seu
tempo para seguir e ouvir o pensamento de Seu Jair. Ele diz, para o filme, e se
emociona na maioria das vezes, por exemplo:

"Quando cheguei em Rondônia em 1966, tudo que a gente via falar de índio era
que eles eram bichos, índio era um animal e qualquer um podia pegar uma arma
e entrar no mato e, se você encontrasse um índio, você podia matar o índio, não
tinha problema nenhum, você estava matando um bicho, e não tinha cadeia, não
tinha nada. Então tinha mateiro especializado que entrava nas aldeias, durante à
noite, enquanto os índios dormiam, cortava a corda dos arcos, ou seja, desarmava
os índios praticamente, e depois tocava fogo na maloca e ficava na porta esperando
os índios saírem - e ali era 10, 15 ou 20 espingardas contra pessoas desarmadas, não
sobrava ninguém. Então, quando vim para cá, eu ouvi e vi pessoal montando essa
equipe para fazer esse tipo de ação. Então, eu praticamente cresci ouvindo isso...
Até eu não sei como eu consegui mudar o meu conceito e hoje estou do lado do
índio... Tudo que a gente ouvia falar era que o índio atrapalhava o desenvolvimento
do país e que a regra era eliminá-lo."

"Quando cheguei aqui em 2007 [depois de ter saído em 1992] vi tudo isso de estra-
da, caminhão correndo dia e noite, eu falei, eles não estão vivos, não... O que eles
passam aqui nestas estradas, tudo correndo, caminhão, picada para todo lado, cheio
de picada, cheio de peões nestas matas com foice e machado, espingarda, esse
caralho aí... porra! Esses caras [os dois índios Piripkura] são ninjas. Agora pergunto,
até quando. Eu não sei. São leis que mudam, mudam uma hora dessa, sei lá, tomara
que não, mas... a gente fica pensando todas essas possibilidades de uma hora dessas
a Funai perder o pouco poder que tem, cair na mão errada, e aí já era!"

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"Esses caras [os Piripkura] vivem sem precisar de nada, eles querem uma tocha de
fogo, um facão e um machado, eles não querem mais nada. Eles precisam disso e
da floresta em pé. É disso que eles precisam, de mais nada."

Falas tão potentes e premonitórias de Seu Jair! Ele soube compreender


bem o papel da Funai (e o perigo para os índios desta instituição deixar de ter
um poder, mínimo que seja), atacada de forma cotidiana e sorrateira pelos rura-
listas. Seu Jair, um velho sertanista, compreendeu, talvez mais do que ninguém
a nova política que a Funai passou a implementar a partir de 1987 para os índios
isolados. Nesta ocasião, a Funai fez um movimento crítico de seu passado e das
suas frentes de atração (a bem da verdade, muitas muito bem equipadas no
passado pelo próprio Estado para tirar os índios do meio do caminho da coloni-
zação) que promoveram contatos desastrosos (com epidemias, deslocamentos
forçados, rupturas radicais dos modos de vida) daquelas populações indígenas.
Então, visto isso, indigenistas da Funai naquele ano deliberaram que, no lugar
de promover contato, o órgão indigenista devia agir para garantir a proteção
territorial e ambiental daqueles povos, e assegurar o seu direito de permane-
cerem isolados voluntariamente.
No filme Piripkura, quando Pakyî e Tamanduá visitam a Funai na sua base
de proteção – que se mantem, aliás, numa estrutura muito simples, com poucos
servidores, se comparada às antigas frentes e expedições de contato da Funai –,
Jair fala com um agente do Estado por meio de radiofonia:

– [voz no rádio]: Tem alguém que fala a língua deles aí?


– Jair: Rapaz, por incrível que pareça, muito pouco.
– Fala para a galera [funcionários da Funai] ficar de olho neles aí para eles não fugirem.
Ok?
– Jair: Não, negativo. Essa não é nossa intenção. Também não podemos obrigar que
eles fiquem aqui. Eu acho que a partir do momento que eles quiserem sair, é um
direito deles, e a gente vai ter que respeitar isso, positivo?
– Ok!

Jair ainda sabia que a passagem dos Piripkura por ali tinha só uma razão,
buscar fogo, não estavam doentes, e, em breve iam retornar para o mato, pois
não tinham "um pingo de vontade de ficar ali" no meio dos brancos. É verdade
que aqueles dois homens sobreviventes não podiam mais viver na floresta no
meio de seus parentes, fazendo festa e cantando, mas falavam alto, carregavam
seus tições de fogo como se fossem filhos, e se contentavam muito com o
pouco de coisas que tinham. Não terão filhos, são dois homens. E seu povo
continuará a existir por meio de Rita, que já não vive mais com eles, que se 99
casou com um Karipuna e que tem dois filhos. Mas, enquanto existirem [já que
seu povo foi quase exterminado], é preciso garantir que existam do jeito que
desejam, garantir a floresta na qual eles vivem e, talvez, com isso, sejamos nós,
os brancos, que possamos viver um pouco mais, ou empurrar o fim do mundo
um pouco mais pra frente.
Me lembro de uma cena desse outro filme com um "isolado", Serras da
desordem, no qual um outro sertanista da Funai, Wellington Gomes, quando
numa caminhada entre os Awá-Guajá (um grupo Tupi, tal qual os Piripkura, só
que do Maranhão), para apressar o passo e chegar ao destino mais rápido, sugere
apagar o tição que aqueles índios sempre carregam consigo. Wellington explica
que, para manter acesso o fogo e garanti-lo nos acampamentos, os índios se
demoravam muito, paravam e, então, lhe ocorreu de pedir ao intérprete que
solicitasse a eles que apagassem o fogo, já que poderiam reacendê-lo quando
precisassem usando uma "arma" dos brancos: uma caixa mágica, o isqueiro! A
"ordem" de Wellington foi cumprida de imediato. Aquele gesto provocou no índio,
segundo Wellington, um senso de impotência de seu artefato (e da sua cultura)
frente à "superior" tecnologia dos brancos, um simples ato e artefato, que, uma
vez disparado, parecia aos olhos do sertanista desencadear profundas mudanças
nestas sociedades primitivas. Mas, eis o que nos demonstra ao contrário os dois
Piripkura sobreviventes, eles só querem o seu tição acesso e voltar a viverem
livres no meio da mata. Até quando?
O filme Piripkura tem um final feliz e livre (emocionante), quando seu Jair
é chamado pelos seus dois "camaradas" a lhes seguir e acompanhar na vida no
interior da mata. Seu Jair não vai, assim se despede e permanece ali vigilante
na sua proteção distanciada: "Vai com Deus... que Deus proteja vocês... seus
malandros. Esses caras são figuras. Tchau! Já vão discutindo o que vão fazer
por aí. Eles conversam o tempo inteiro alto. Foram! Mais uma missão encerrada!
Agora só esperar mais 20 anos para apagar o fogo e ver se eles voltam!"
Gostaria de terminar esse ensaio com a esperança desta pequena luz que
atravessa a porta da escuridão (na qual vivemos hoje), com as palavras do senhor
Jair. O forumdoc.bh.2017 queria trazê-lo a Belo Horizonte para comentar a sessão
de Piripkura! Vivendo na Amazônia, longe, sabíamos que sua vinda seria difícil,
mas, para surpresa nossa, resolveu aceitar o convite, para em seguida recusar,
pois teria sido convocado de última hora para mais uma expedição, desta feita
no Vale do Javari, na tentativa de desvendar mais uma notícia de massacre dos
índios isolados pela cobiça dos "civilizados". Sabemos que essa missão de lá, é
mais importante do que aquela que teria cá. Que essa sua luta e resistência, a
de Seu Jair, e de todos os povos indígenas, nos inspire para continuar sonhando
100 que um outro mundo é possível, pois, "se há um mundo por vir", ele passa
necessariamente pelos índios e pelas suas luzes que continuam a piscar e que
voltam a acender (como os tições dos Piripkura e dos Awá-Guajá). Como disse
Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski (2014, p. 157):

Assim, quando comunidades camponesas "em vias de modernização" decidem voltar


a ser indígenas, demonstrando em juízo sua continuidade histórica com povos nativos
oficialmente extintos, como tantas povoações rurais vêm fazendo no Brasil desde
a promulgação da Constituição de 1988 - a qual deu direitos coletivos de posse
da terra aos índios e descendentes de escravos implantados no campo -, a reação
escandalizada e furibunda das classes dominantes tem sido um espetáculo imper-
dível. Infelizmente, não dá para achar graça muito tempo de quem continua com
o chicote na mão; a fúria, somada à cobiça, dos que necessitam da inexistência da
alteridade, vem-se traduzindo em uma concertada ofensiva, por vias legais e ilegais,
legislativas como criminosas, dos grandes proprietários rurais - e de seus sócios, e
seus clientes, e seus patrões - contra os índios e demais povos tradicionais do país.

Ao ser afetado pelo tição (o fogo e a luz) dos Piripkura e de Seu Jair, penso
que é preciso resistir com as imagens e com Didi-Huberman (2014, p. 86; 154):
"A imagem se caracteriza por sua intermitência, sua fragilidade, seu intervalo de
aparições, de desaparecimentos, de reaparições e de redesaparecimentos". Por
meio do cinema, é preciso assumir"a liberdade do movimento, a retirada que
não seja fechamento sobre si". É preciso nos tornar vaga-lumes e, dessa forma,
"formar novamente uma comunidade de desejo, uma comunidade de lampejos
emitidos, de danças, apesar de tudo, de pensamentos [e imagens] a transmitir.
Dizer sim na noite atravessada de lampejos e não se contentar em descrever o
não da luz que nos ofusca".

Referências

DANOWSKI, Déborah e Eduardo Viveiros de Castro. 2014. Há um mundo por vir? Ensaio
sobre os medos e os fins. Florianópolis: Cultura e Barbárie/Instituto Socioambiental.

DEICKE, Nelson. Isolado Piripkura faz contato e é atendido em Ji-Paraná. Disponível em:
<https://pib.socioambiental.org/c/noticias?id=50243>. Acesso em: 30/10/2017.

DIDI-HUBERMAN, Georges. 2014. Sobrevivências dos vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora


da UFMG.

MILANEZ, Felipe. Genocídio na Selva. Disponível em: <https://www.vice.com/pt_br/article/


ezgdwa/genocidio-na-selva-v2n5> . Acesso em: 30/10/2017.
101
por Isael e Sueli Maxakali
tradução e edição: Roberto Romero

Os Tikmũ’ũn1 sempre andaram por aqui, nestas terras que vocês, brancos, chamam
hoje de Vale do Mucuri e que nós chamamos kõnãg mõg yok, “onde corta o rio”.
Éramos muitos antigamente e vivíamos acompanhando as águas. Fazíamos
uma aldeia, caçávamos, pescávamos e dançávamos com os yãmĩyxop (espí-
ritos) e depois de um tempo os mais velhos se reuniam e decidiam se mudar.
Antigamente não havia brancos aqui. Quando os primeiros brancos chegaram,
eram muito bravos. Mataram muitos Tikmũ’ũn e trouxeram doenças também. Os
“padres de roupa vermelha”2 (ãmãnex xax ãta) traziam panos para os Tikmũ’ũn,
que espalhavam sarampo e varíola. Quando um adoecia, todos se separavam,
com medo, e fugiam pro mato. Foi assim mesmo que aconteceu aqui perto, em
Itambacuri (MG). Os Tikmũ’ũn partiram, subiram até o Vale do Jequitinhonha,
onde hoje fica Araçuaí (MG). Outros vieram do sul da Bahia e fugiram pra Minas
Gerais, assim como fizeram os Yĩmkoxeka3 que foram subindo do Espírito Santo
até chegarem em Teófilo Otoni (MG). E quando se encontravam, os Tikmũ’ũn
e os Yĩmkoxeka brigavam.
Mas havia o espírito de uma criança, yãmiy nãg, que sempre nos avisava
quando alguma ameaça como os brancos ou os botocudo se aproximava. À noite,
ele vinha e batia nas madeiras da casa do seu pai tok tok tok tok e avisava: “Pai!
Pai! Vocês devem partir! Leve os Tikmũ’ũn pra longe daqui! Escondam-se! Os
brancos estão vindo te matar!”. E então os Tikmũ’ũn fugiam outra vez. Por fim,

1. Mais conhecidos como Maxakali, os Tikmũ’ũn são cerca de 2.000 pessoas vivendo em três
terras indígenas no Vale do Mucuri, nordeste de Minas Gerais.
2. Provável referência aos padres capuchinhos, responsáveis pela implantação das missões
em toda a região do Vale do Mucuri entre os séculos XIX e XX.
3. yĩmkoxeka ou “orelhas grandes” é como os Tikmũ’ũn se referem aos seus vizinhos tradicio-
102 nais, os povos borun, como os Krenak que vivem hoje nas margens do Rio Doce.
chegamos onde hoje ficam as aldeias de Água Boa (Santa Helena de Minas, MG)
e Pradinho (Bertópolis, MG) e nos escondemos debaixo de uma pedra bem alta,
que chamamos mikax kaka, “debaixo da pedra”. Mas os brancos então já estavam
por toda parte e nos perseguiam, querendo nos matar. Quando os brancos se
aproximavam ou os Tikmũ’ũn ouviam passar um avião, corriam para dentro de
uma gruta em Água Boa, onde viviam vários morcegos, e esperavam os brancos
passarem. Os brancos iam embora, pensando que tinham acabado com todos,
mas eles estavam lá, escondidos. Com o tempo, não teve mais jeito e eles
tiveram que se envolver com os brancos. Os brancos traziam cachaça, tecidos,
facas, foices e distribuíam entre eles. Naquele tempo, os Tikmũ’ũn não sabiam
das coisas. Os brancos traziam uma faca e eles trocavam por terra, traziam um
boi, e eles trocavam por terra, traziam cachaça, e eles trocavam... Os brancos
tiravam foto dos homens e das mulheres e mostravam pra eles dizendo: “Aqui
está a alma (koxuk) de vocês! Se vocês não forem embora daqui, vamos destruir
vocês todos!”. E os Tikmũ’ũn, com medo de perderem seus yãmĩyxop (espíritos),
fugiam. Assim os fazendeiros foram tomando as nossas terras e derrubando
toda a mata. Nós mesmos, quando crescemos em Água Boa, vimos com nossos
próprios olhos a mata grande. Mas com o tempo os fazendeiros derrubaram tudo
e a floresta virou capim. Nós, Tikmũ’ũn, tivemos que escolher: ou perdíamos a
terra ou perdíamos a língua. Preferimos perder a terra do que perder a língua.
Se tivéssemos escolhido perder a língua, já não existiríamos mais. Teríamos
todos desaparecido, como muitos outros povos que viviam aqui.
Hoje, a terra onde vivemos é pequenininha. Os brancos tomaram tudo. A
terra, as águas, o céu, o sol e o vento hoje estão doentes. Por quê estão doentes?
Porque a mata acabou, os rios secaram e as nossas águas adoeceram. O corpo
da terra está quente. Plantamos sementes e mudas, mas elas não crescem mais
como antes. A terra está quente por dentro e por isso as sementes se queimam
antes de brotar. Mesmo se molharmos, não crescem tão rápido como crescem
com a água da chuva. A mata hoje está fraca. Não há mais árvores altas e fortes
como as que viviam aqui antigamente. A chuva e os ventos estão com raiva e
não querem mais cair ou soprarem por aqui. Por isso a terra está tão quente.
Quando a água dos lagos evapora, se transforma em nuvens vermelhas, que
também estão doentes e esquentam a terra. Chove forte, mas a chuva que cai
hoje em dia adoece as nossas crianças. Antigamente, nossas crianças não adoe-
ciam como hoje, porque havia muita mata e muita sombra. Mas hoje, quando
chove ou venta, elas começam a tossir, a gripar e a queixar dor de garganta, dor
de cabeça... Antigamente, não tinham nada disso. Mas os brancos chegaram
e derrubaram toda a mata, poluíram os rios, construíram usinas hidrelétricas
e acabaram com os peixes. Nossos avós viviam até os cem anos. Mas nós não 103
chegaremos nesta idade, porque hoje temos doenças que não conhecíamos e
já não comemos mais como antigamente.
Ainda assim, os Tikmũ’ũn sabem curar esta terra. Nós podemos trazer de
volta a mata, as frutas e os bichos. Quando chegamos aqui, em Aldeia Verde
(Ladainha-MG), a mata era pequena. Os fazendeiros que viviam aqui tinham quei-
mado tudo para fazer carvão e por toda parte só víamos braquiária. Depois que
chegamos, a mata voltou a crescer, mas mesmo assim a terra é muito pequena.
Os brancos têm poucos filhos hoje em dia, mas nós não. Nós temos muitos
filhos e um dia a nossa terra não caberá mais tanta gente. Ou vamos todos
virar brancos e morar em casas compridas de cimento como nas cidades? Nós
morando em baixo, nossos filhos no andar de cima, nossos netos e os filhos dos
nossos netos em cima deles? E como os yãmĩyxop (espíritos) vão fazer para buscar
comida nestas casas? Vamos ter que descer de elevador para levar comida para
eles? Ou amarrar um cipó bem comprido para que eles subam, como macacos,
buscando comida? Não vai dar!
Por isso pedimos para o governo aumentar as nossas terras. Mas nós, os
Tikmũ’ũn, somos muito desprezados. Os governos não reconhecem que somos
indígenas vivendo em Minas Gerais e que temos ainda a nossa cultura viva. Todos
os presidentes que assumem não reconhecem a existência do nosso povo e
da nossa cultura forte, que aqui também nós temos as nossas madeiras vivas,
que são gente, e que precisamos criar os seus filhos para continuar existindo
os remédios da mata e a água que faz as nossas crianças crescerem fortes
como as árvores. Hoje os pajés tikmũ’ũn estão muito cansados e tristes. Por
quê vocês acham que eles estão se matando? Estão se matando para não terem
que continuar assistindo a tudo de ruim que acontece por aqui. Os yãmĩyxop já
não têm mais onde caçar, banhar ou o que comer. As matas e os rios acabaram.
Daí a preocupação que não sai da cabeça deles. Por isso, muitas vezes, os pajés
preferem se matar. Eles pensam assim: “Eu vou me matar! Eu vou viver com os
yãmĩyxop e de lá vou cuidar dos Tikmũ’ũn!”. E assim eles fazem. Morrem, mas
continuam aqui, entre nós, caminhando pela mata com os yãmĩyxop. Aqui, os
yãmĩyxop já não podem caminhar como faziam antigamente. Os cantos já não
surgem mais. Os fazendeiros nos cercaram. Por onde a gente anda, vemos cercas
e placas dizendo “proibido caçar”, “proibido pescar”, “proibido atravessar”. Os
fazendeiros são todos onças. Não podemos continuar vivendo assim!

104
por Estela Vera
tradução: Lauriene Seraguza e Jacy Caris Duarte Vera

Nota introdutória: Uma mulher contra o fim do mundo


Estela Vera tem cerca de 70 anos e é uma opuraheiva (rezadora/xamã) do povo Ava
Guarani. Ela vive no tekoha (território tradicional) Potrero Guasu, no município de
Paranhos, em Mato Grosso do Sul – uma área declarada como Terra Indígena desde o
ano 2000, mas ainda não demarcada pelos órgãos oficiais, apesar de historicamente
pertencer aos povos falantes de guarani. Com uma população atual de 200 pessoas,
o tekoha está na região de fronteira seca com o Paraguai.
À espera da demarcação e proibidos de usufruir plenamente de seu território,
os Ava Guarani em Potrero Guasu vivem obrigados a uma relação desigual com o
mundo não indígena e expostos a violências e pressões desmedidas de fazendeiros, de
igrejas e do Estado, em detrimento de suas práticas de conhecimento e do bem viver.
Segundo Estela, o fim do mundo já está acontecendo; seus indícios e consequ-
ências são a desvalorização das rezas/cantos, a diminuição dos rezadores, a aceleração
do tempo, as mudanças climáticas, em virtude da impossibilidade de circulação dos
conhecimentos xamânicos e da oguata porã, a mobilidade desejada no território.
Desafiando o que dizia Egon Schaden nos anos 1940 – sobre a cultura guarani
ser marcadamente masculina –, a voz de Estela vem se somar às de outras mulheres:
com sua reza/canto que “levanta” e com sua fala “afiada”, ela evidencia ser possui-
dora de uma ne’ẽ (palavra/alma) eminente – como também são percebidas as
mulheres Guarani e Kaiowa. Sua fala acentua a importância da ação política das
mulheres na produção da vida social e de mundos Guarani e Kaiowa nutridos pela

* Depoimento recolhido e transcrito por Lauriene Seraguza (Doutoranda em Antropologia So-


cial pela Universidade de São Paulo) e traduzido em conjunto com Jacy Caris Duarte Vera (Li-
cenciada em Ciências da Natureza, professora Ava Guarani), em fevereiro de 2016. Publicado
originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2011/2016, do Instituto Socioambiental (ISA). 105
complementariedade nas relações entre mulheres e homens. Sem mulher não há
tekoha. (por Lauriene Seraguza)
***

Se não tiver mais reza e rezador, o mundo vai acabar. Tudo vai acabar, os
sinais de que o mundo está acabando já estão aparecendo. Hoje temos menos
rezadores (opuraheiva), chuvas sem limite. Está tudo fora do tempo.
No mundo todo está acontecendo isso, não é só no Brasil. Aqui estamos um
pouco mais protegidos porque ainda temos opuraheiva. Tudo vai estar perdido.
Os cantos hoje estão muito mais curtos (mbyky) do que eram antes e os seres
humanos estão morrendo muito antes nos tempos de hoje. Pelo jeito vai continuar
assim, por causa do canto curto, que não é mais como o antigo (longo, puku).
Vivo com a minha reza ainda pela vida dos inocentes, pois ainda aparecem
crianças que esperam muitas coisas de mim. Por isso tenho forças para continuar
a minha vida como opuraheiva.
Se hoje o mundo ainda não acabou é pela vida destes inocentes, pois, do
mesmo jeito que o Kuarahy (Sol) ilumina a gente, ele pode sumir e acabar com
tudo. Isso vai acontecer quando acabarem os opuraheiva. Kuarahy pode fazer
uma troca e nos devolver o que fizemos contra terra, para então, renovar e
começar tudo de novo. […]
Nós, opuraheiva, somos diferentes dos crentes, dos evangélicos. Nós
pedimos pela vida de todas as pessoas, pedimos para melhorar cada vez mais
o nosso mundo. Os crentes pedem para Jesus vir logo, acabar com tudo e levá-
-los embora para junto dele.
Não é o mundo que precisa de solução, somos nós que estamos fazendo
tudo errado. Nós é que não obedecemos mais as inspirações que Kuarahy nos
deixou, não estamos sendo obedientes a ele e por isso, ele já se cansou de nós.
Temos que obedecer o hembijoykue, as inspirações que Kuarahy nos deixou.
Jasy e Kuarahy são como açúcar pra nós: Jasy é responsável pela gravidez das
mulheres; nos torna doces. Jasy é como açúcar e Kuarahy é como uma flor. O
batismo deles se chama: Kaaguy yvoty, Kuarahy e Kaaguy açuca´i, Jasy. Por isso
ainda hoje tem mulheres com filhos gêmeos: Jasy e Kuarahy são gêmeos e
deixaram para ser assim na terra.
Eu me sinto muitas vezes presa, pois não sei onde vou fazer a minha reza,
para quem vou contar os meus cantos, o meu conhecimento. Durante os meus
sonhos, sou cobrada para fazer a minha reza e os meus cantos. Sonho sempre
que tenho que rezar com dois meninos e duas meninas moça, durante quinze
dias, para continuar a saber o que vai acontecer no nosso mundo. Mas acordo
106
e penso: pra quem vou fazer meus cantos, minhas rezas? Para quem vou contar
minhas histórias. Quem será que está interessado?
No Paraná, um vento forte levou um pindó (coqueiro) e o deixou em cima
de um rio. Nós estamos assim, em cima de um rio, e a qualquer momento vamos
saber o que vai nos acontecer. Eu me comparo com este pindó: a qualquer
momento Ñandejara (“Nosso Deus”) pode vir e tirar minhas raízes, me levar
embora pra sempre, sem deixar semente nenhuma.
Esta é minha palavra.

107
discurso do ator e ativista Oglala Lakota Russell Means
tradução: Idjahure Kadiwel e Santiago Perlingeiro em julho 2015
publicado na Rádio Yandê em 9 de agosto de 2016

Em julho de 1980, Russell Means discursa diante de milhares de pessoas de todas


as partes do mundo reunidas no Black Hills International Survival Gathering, em
Black Hills, South Dakota, E.E.U.U.

A única declaração possível para abrir um depoimento como este é a de que eu


detesto escrever. O próprio processo resume o conceito europeu de pensamento
“legítimo”; o que está escrito tem uma importância que é negada à oralidade.
Minha cultura Lakota possui uma tradição oral; daí eu ordinariamente rejeitar a
escrita. Este é um dos meios de os homens brancos destruírem a cultura dos povos
não-europeus: impor uma abstração sobre as relações estabelecidas oralmente.
Por isso, o que você está lendo agora não foi escrito por mim. É algo que
eu disse a outra pessoa que o transcreveu. Vou permitir isso porque parece ser
o único jeito de me comunicar com o mundo do homem branco: através das
mortas, secas páginas de um livro. Não me importa muito se minhas palavras vão
atingir ou não os homens brancos. Eles já demonstraram, ao longo da história,
que não são capazes de ouvir nem ver; só sabem ler (há exceções, é claro, o
que só confirma a regra). Estou mais preocupado com as populações indígenas,
estudantes e outros, naqueles que começam a ser absorvidos pelo mundo dos
brancos através das universidades e de outras instituições. Ainda hoje esta é uma
preocupação marginal. É muito possível que um pele-vermelha passe a pensar
como um homem branco; e, sendo uma escolha pessoal, que seja, mas a mim
não interessa. Isto é parte do genocídio cultural levado a cabo pelos europeus
contra os índios americanos hoje. Minha preocupação está naqueles que esco-
lheram resistir ao genocídio, mas que podem estar confusos em como proceder.
(Repare que eu utilizo o termo índio americano (“American Indian”) ao invés
108 de povos americanos nativos (“Native American”), nativos indígenas (“Native
indigenous”) ou ameríndios, ao referir-me ao meu povo. Tem havido alguma
controvérsia a esse respeito e, francamente, este ponto me parece um absurdo.
Primariamente parece que índio americano tem sido rejeitado por sua origem
europeia – o que é verdadeiro. Mas todos os outros termos são de origem
europeia; o único jeito não-europeu de falar é referir-se aos Lakota – ou mais
precisamente, aos Oglala, aos Brule etc – e aos Dineh, aos Miccousukee e a todo
o resto das várias centenas de nomes tribais adequados.)
(Também existe uma confusão a respeito da palavra índio, uma crença
equivocada de que se referiria de algum modo ao país da Índia. Quando Colombo
desembarcou nas praias do Caribe, não estava procurando por um país chamado
Índia. Os europeus chamavam àquele país de Hindustão em 1492. Basta procurar
nos mapas antigos. Colombo chamou de “índios” aos povos tribais que encontrou,
em referência à expressão italiana “in Dio”, que significa “em Deus”.)
É necessário um esforço muito grande a um índio americano para não se
deixar ser europeizado. A grandeza desse esforço só pode se dar pelas vias da
tradição, dos valores tradicionais que detêm nossos anciãos. Precisa vir da roda,
dos quatro cantos, as relações: nunca de um livro, nem de mil deles. Nenhum
europeu poderá jamais ensinar a um Lakota como ser um Lakota, um Hopi a ser
um Hopi. Um grau de mestre em “estudos indígenas”, em “educação” ou algo do
gênero não pode fazer de uma pessoa um ser humano ou prover conhecimento
acerca dos meios tradicionais de um povo. Pode somente torná-lo um estranho
(“outsider”), de mentalidade europeia.
Preciso aqui ser claro sobre algo, porque parece haver alguma confusão
a respeito. Quando falo de europeus ou da mentalidade europeia, não estou
a corroborar com falsas distinções. Não estou dizendo que há, por um lado, os
produtos de alguns milhares de anos de um desenvolvimento intelectual geno-
cida, reacionário, europeu, que são o mau; em oposição a um novo pensamento
intelectual e revolucionário, que é bom. Estou me referindo aqui às chamadas
teorias marxistas, anarquistas e esquerdistas em geral. Não acredito que essas
teorias possam ser diferenciadas do restante da tradição intelectual europeia.
É tudo na verdade apenas a mesma velha canção.
Tal processo tem início muito antes. Newton, por exemplo, “revolucionou”
a física e as ciências naturais reduzindo o universo físico a uma equação mate-
mática linear. Descartes fez o mesmo com a cultura. John Locke o fez com a
política e Adam Smith com a economia. Cada um desses “pensadores” pegou
uma fatia da espiritualidade que envolve a existência humana e a converteu num
código, numa abstração. Partiram de onde o cristianismo parou: “secularizaram”
a religião cristã, como os acadêmicos apreciam dizer – e assim o fazendo, fizeram
da Europa mais capaz e pronta para agir enquanto uma cultura expansionista. 109
Cada um desses intelectuais revolucionários serviu para abstrair a mentalidade
europeia cada vez mais, removendo a maravilhosa complexidade e sacralidade
do universo e as substituindo por uma sequência lógica: um, dois, três. Resposta!
Isto é o que viria a se chamar “eficiência” no pensamento europeu. O que
quer que seja mecânico é perfeito; aquilo que parece funcionar no momento –
isto é, confirma o modelo mecânico como verdadeiro – é considerado correto,
mesmo quando claramente esta não é a verdade. Daí o porquê de a “verdade”
mudar tão facilmente no pensamento europeu; as respostas que resultam de
tal processo são tapa-buracos, apenas temporárias e precisam ser continua-
mente descartadas em favor de novos tapa-buracos, que auxiliam os modelos
mecânicos e os mantêm (os modelos) vivos.
Hegel e Marx são herdeiros do pensamento de Newton, Descartes, Locke
e Smith. Hegel finalizou o processo de secularização da teologia – e isto é posto
em seus próprios termos –, ele secularizou o pensamento religioso através do
qual a Europa compreendia o universo. Marx, então, coloca a filosofia de Hegel
em termos de “materialismo”, o que significa uma dessacralização completa de
todo o trabalho de Hegel. Novamente, isto nos termos do próprio Marx. E esta
visão é hoje considerada o futuro potencial revolucionário da Europa. Os euro-
peus podem até ver isso como revolucionário, mas os índios americanos veem
isso simplesmente como ainda mais do mesmo, aquele velho conflito europeu
entre ser e ter (“gaining”). As raízes intelectuais de uma nova forma marxista
do imperialismo europeu repousam em Marx – e seus seguidores – remetidos
à tradição de Newton, Hegel e de outros.
Ser é uma proposição sagrada. Ter é um ato material. Tradicionalmente, os
índios americanos procuraram sempre ser as melhores pessoas que pudessem
ser. Parte deste processo sagrado foi e é abrir mão de riquezas, inclusive descar-
tá-las. Ganhos materiais são considerados falsos índices de status entre os
povos tradicionais, enquanto são “a prova de que o sistema funciona” para os
europeus. Claramente, há uma oposição completa entre os pontos de vista em
questão aqui, e o marxismo está muito distante do outro lado onde se situa o
olhar do índio americano. Mas vejamos as implicações mais gerais disto; não é
um debate meramente intelectual.
A tradição materialista europeia de dessacralizar o universo é muito similar
ao processo mental que conduz à desumanização de outra pessoa. Quem são
os maiores especialistas em desumanizar outras pessoas? E por quê? Soldados
que muito viram em combate aprendem a fazer isso a outro inimigo antes
de irem ao combate. Assassinos o fazem antes de cometer um homicídio. Os
paramilitares nazistas da SS faziam-no aos presos nos campos de concentração.
110 Policiais fazem isso. Chefes de corporação fazem isso aos trabalhadores quando
os enviam para minas de urânio e usinas de aço. Políticos fazem isso a todos
à sua vista. E o que esse processo possui em comum em cada grupo sobre o
qual é operada essa desumanização é tornar aceitável matar e, assim, destruir
outros povos. Um dos mandamentos cristãos diz: “Não matarás”, pelo menos
não seres humanos, então a artimanha é converter mentalmente as vítimas em
não-humanos. Assim podem proclamar a violação de seu próprio mandamento
como uma virtude.
Nos termos de uma dessacralização do universo, esse processo mental
funciona de modo a tornar virtuoso destruir o planeta. Termos como progresso
e desenvolvimento são usados aqui como letreiros vazios, da mesma maneira
que vitória e liberdade são usadas para justificar morticínios no processo de
desumanização. Por exemplo, um especulador imobiliário pode referir-se a
“desenvolver” uma parcela de um terreno abrindo uma pedreira de cascalho;
desenvolvimento aqui significa total, permanente destruição, através da remoção
da própria terra. Mas a lógica europeia adquiriu algumas toneladas de cascalho
com as quais mais terra poderá ser “desenvolvida” através da construção de linhas
de estrada. No limite, o universo inteiro está aberto – nessa visão europeia – a
esse tipo de insanidade.
Talvez o mais importante aqui seja o fato de que os europeus não possuem
nenhum sentimento de perda em relação a tudo isso. Afinal de contas, seus
filósofos dessacralizaram a realidade, não havendo assim satisfação alguma
a ser adquirida (para eles) em observar a maravilha que é uma montanha, ou
um lago, ou um povo, ou uma pessoa, simplesmente sendo. Não, a satisfação
é medida em termos de aquisição material. E assim uma montanha vira uma
pedreira, o lago se torna o refrigerador de uma usina, as pessoas são formatadas
através de fábricas de doutrinação, processo que os europeus gostam de chamar
de escolas.
Mas cada novo passo desse “progresso” aumenta uma aposta acerca do
mundo real. Peguemos o combustível para as máquinas industriais como exemplo.
Há pouco mais de dois séculos, quase todos utilizavam a madeira – um item
reabastecível, natural – como combustível para as muito humanas necessi-
dades de cozinhar e de aquecer-se. Em seguida veio a Revolução Industrial e o
carvão tornou-se o combustível dominante, enquanto a produção se tornou um
imperativo social para a Europa. A poluição começou a se tornar um problema
nas cidades, a terra foi aberta e rasgada para prover carvão, apesar da madeira
sempre ter sido coletada facilmente, sem grande custo para o ambiente. Mais
tarde, o petróleo tornava-se o maior combustível, e a tecnologia de produção
foi aperfeiçoada através de uma série de “revoluções” científicas. A poluição
aumentou dramaticamente e, no entanto, ninguém sabe ainda, a longo prazo, 111
quais custos ambientais estão sendo realmente bombeados junto a todo petróleo
extraído do solo. Agora há uma “crise de energia”, e o urânio está se tornando
o combustível dominante.
De capitalistas pode-se esperar, ao menos, que desenvolvam o urânio
como o único combustível apenas até que demostre um bom lucro. É essa sua
ética, e talvez consigam comprar algum tempo. De marxistas, por outro lado,
pode-se esperar que irão desenvolver o combustível de urânio tão rápido quanto
possível simplesmente porque é o mais “eficiente” combustível disponível para
produção. É essa sua ética – e falho em enxergar o que é preferível. Como
disse, o marxismo é um acerto em cheio, bem no meio da tradição europeia. É
a mesma velha canção.
Daqui podemos notar uma regra geral. Não é possível julgar a natureza real
da doutrina revolucionária europeia com base nas mudanças que ela propõe
fazer dentro da estrutura de poder e sociedade europeias. Você só pode julgá-la
pelos efeitos que terá sobre os povos não-europeus. E assim é porque cada
revolução na história europeia não serviu senão para reforçar as tendências
e habilidades europeias para exportar destruição aos outros povos, outras
culturas e ao próprio ambiente. Desafio qualquer um a apontar um exemplo
onde isto não seja verdade.
Então agora nós, como povo Índio Americano, somos inqueridos a crer que
uma “nova” doutrina revolucionária europeia tal como o marxismo vai reverter
os efeitos negativos da história europeia sobre nós. Relações de poder euro-
peias estão novamente para serem ajustadas, e isso supostamente fará bem
para todos nós. Mas o que isso realmente quer dizer?
Agora mesmo, hoje, nós que vivemos na Reserva Pine Ridge estamos
vivendo no que a sociedade branca designou como uma “Área de Sacrifício
Nacional”. O que quer dizer é que temos muitos depósitos de urânio aqui, e a
cultura branca (e não nós) precisam desse urânio como energia de produção
material. O modo mais barato e eficiente para a indústria extrair e trabalhar
o processamento desse urânio é jogar todo lixo produzido aqui mesmo nos
sítios de escavação. Aqui mesmo onde moramos. Esse lixo é radioativo e fará
toda a região inabitável para sempre. Isto é considerado pela indústria, e pela
sociedade branca que criou essa indústria, como um preço “aceitável” para pagar
pelo desenvolvimento dos recursos energéticos. Além disso, é também parte
do plano drenar o lençol freático sob essa parte da Dakota do Sul como parte
do processo industrial, tornando a região duplamente inabitável. O mesmo
tipo de coisa está acontecendo nas terras dos Navajo e dos Hopi, no alto das
terras dos Cheyenne do Norte e dos Crow e em outros lugares. Foi descoberto
112 que trinta por cento do carvão do Ocidente e metade do depósito de urânio
nos Estados Unidos jazem debaixo de áreas de reserva, portanto de nenhuma
outra forma isso pode ser chamado de uma questão menor.
Estamos resistindo sermos tornados uma Área de Sacrifício Nacional.
Estamos resistindo sermos tornados um povo de sacrifício nacional. Os custos
desse processo industrial não são aceitáveis para nós. É genocídio cavar urânio
e drenar o lençol freático aqui – nem mais, nem menos.
Agora, suponhamos que em nossa resistência ao extermínio comecemos a
buscar aliados (temos e estamos). Agora, suponhamos ainda que tomássemos
o marxismo revolucionário ao pé da letra: que se pretende nada menos do
que a completa derrubada da ordem capitalista europeia que apresentou essa
ameaça à nossa própria existência. Esta pareceria uma aliança natural para
os povos indígenas americanos. Afinal, como dizem os marxistas, foram os
capitalistas que armaram sermos considerados um sacrifício nacional. Até aqui
tudo isso é verdade.
Mas, como tentei apontar, essa “verdade” é muito enganadora. O marxismo
revolucionário está comprometido em aprofundar o aperfeiçoamento e a perpe-
tuação do próprio processo industrial que está nos destruindo. Ele apenas oferece
“redistribuir” os resultados – o dinheiro, talvez – dessa industrialização para um
setor mais amplo da população. Ele oferta tomar a riqueza dos capitalistas e
passar adiante; mas, para que isto possa ser feito, o marxismo precisa manter
o sistema industrial. Mais uma vez as relações de poder dentro da sociedade
europeia precisarão ser alteradas, mas ainda de novo os efeitos sobre os povos
indígenas americanos aqui e não-europeus em outros lugares continuará o
mesmo. É a mesma coisa de quando o poder foi redistribuído da Igreja para a
iniciativa privada durante a assim denominada revolução burguesa. A sociedade
europeia se modificou um pouco, ao menos superficialmente, mas sua conduta
em relação aos não-europeus continuou a mesma de antes. Podemos ver o
que a Revolução Americana de 1776 fez pelos índios americanos. É a mesma
velha canção.
O marxismo revolucionário, como a sociedade industrial de outras formas,
busca “racionalizar” todo povo em relação à indústria – à maior indústria, à maior
produção. É uma doutrina que despreza a tradição sagrada indígena ameri-
cana, nossas culturas, nossos modos de vida. O próprio Marx nos chamou de
“pré-capitalistas” e “primitivos”. Pré-capitalistas significa simplesmente, em sua
visão, que nós eventualmente descobriremos o capitalismo e nos tornaremos
capitalistas; fomos sempre economicamente atrasados nos termos marxistas.
A única maneira em que os povos indígenas americanos poderiam participar em
uma revolução marxista seria nos juntar ao sistema industrial, nos tornarmos
trabalhadores fabris, ou “proletários”, como Marx os chamava. O homem tinha 113
muito claro o fato de que sua revolução poderia somente ocorrer através da
luta do proletariado, que a existência de um sistema industrial massivo é a
pré-condição para uma sociedade marxista bem-sucedida.
Creio que existe um problema com a linguagem aqui. Cristãos, capitalistas,
marxistas. Todos eles foram revolucionários em suas próprias mentes, mas
nenhum deles realmente significa revolução. O que significam é a continuação.
Fazem o que fazem de modo que a cultura europeia possa continuar a existir e
se desenvolver de acordo com suas necessidades.
Assim, para que possamos realmente nos unir e juntar forças com o
marxismo, nós índios americanos teríamos que aceitar o sacrifício nacional de
nossa terra natal; teríamos que cometer suicídio cultural e nos tornar industria-
lizados e europeizados.
Nesse ponto, devo parar e me perguntar se não estou sendo muito duro.
O marxismo tem algo como uma história. Essa história confirma minhas obser-
vações? Olho para o processo de industrialização da União Soviética desde 1920
e vejo que esses marxistas fizeram o que a Revolução Industrial inglesa tomou
300 anos para fazer; os marxistas fizeram-no em 60 anos. Vejo que o território
da URSS costumava conter certo número de povos tribais e que eles foram
esmagados para abrir caminho para as fábricas. Os sovietes referem-se a isso
como a “questão nacional”, a questão de se os povos tribais teriam o direito de
existir como povos; e decidiram que os povos tribais eram um sacrifício aceitável
para as necessidades industriais. Olho para a China e vejo o mesmo. Olho para o
Vietnã e vejo marxistas impondo uma ordem industrial e desenraizando o povo
indígena tribal das montanhas.
Ouvi o líder dos cientistas soviéticos dizer que quando o urânio for exaurido,
então outras alternativas serão encontradas. Vejo que os vietnamitas tomaram
uma usina nuclear abandonada pelas forças armadas americanas. Eles a desman-
telaram e a destruíram? Não, estão usando-a. Vejo a China explodir bombas
nucleares, desenvolver reatores de urânio, e estão preparando um programa
espacial para colonizar e explorar os planetas do mesmo modo que os europeus
colonizaram e exploraram este hemisfério. É a mesma velha canção, mas dessa
vez talvez com um tempo mais rápido.
A declaração do cientista soviético é muito interessante. Ele conhece que
recurso energético alternativo será esse? Não, ele simplesmente tem fé. A
ciência encontrará um caminho. Ouço os marxistas revolucionários dizerem
que a destruição do ambiente, a poluição, a radiação serão todas controladas.
E vejo agirem sustentados por suas palavras. Eles sabem como essas coisas
serão controladas? Não, eles simplesmente têm fé. A ciência encontrará um
114 caminho. A industrialização é boa e necessária. Como sabem disso? Fé. A ciência
encontrará um caminho. Fé desse tipo sempre foi conhecida na Europa como
religião. A ciência se tornou a nova religião europeia tanto para capitalistas
como para marxistas; são verdadeiramente inseparáveis, são parte e parcela da
mesma cultura. Então, tanto na teoria quanto na prática, o marxismo demanda
que os povos não-europeus abram mão de seus valores, de suas tradições, de
toda sua existência cultural. Seremos todos industrializados viciados em ciência
numa sociedade marxista.
Eu não acredito que o próprio capitalismo é realmente responsável pela
situação de os índios americanos terem sido declarados sacrifício nacional.
Não, é a tradição europeia; a cultura europeia é responsável. O marxismo é
apenas a última forma da continuidade dessa tradição, não uma solução para
ela. Aliarmo-nos ao marxismo é aliar-se às próprias forças que nos declararam
ser um custo aceitável.
Há outro caminho. Há o modo tradicional Lakota e os modos dos povos
indígenas americanos. É o caminho que sabe que os humanos não têm direito
de degradar a Mãe Terra, que sabe que há forças além do que qualquer mente
europeia já concebeu, de que os humanos precisam estar em harmonia com
todas as relações ou as relações eventualmente irão eliminar a desarmonia.
Uma ênfase assimétrica nos humanos pelos humanos – a arrogância europeia
de agir como se estivessem além da natureza de todas as coisas relacionadas –
pode resultar somente em uma total desarmonia e em um reajuste que corte
os humanos a seu tamanho, dê a eles um gosto da realidade que está além de
sua compreensão e alcance e restaure a harmonia. Não é necessária uma teoria
revolucionária para trazer luz a isto; está além do controle humano. Os povos
da natureza desse planeta sabem disso e, portanto, não teorizam sobre isso.
Teoria é uma abstração; nosso conhecimento é real.
Destilado a seus termos básicos, a fé europeia – incluindo a nova fé na
ciência – equivale à crença de que o homem é Deus. A Europa sempre buscou
um Messias, seja este o homem Jesus Cristo, ou o homem Karl Marx ou o homem
Albert Einstein. Os índios americanos sabem que isso é totalmente absurdo. Os
humanos são a mais fraca de todas as criaturas, tão fracos que outras criaturas
estão dispostas a dar sua carne para que possamos viver. Os humanos são
capazes de sobreviver somente através do exercício da racionalidade, já que
lhes faltam as habilidades de outras criaturas para obter comida através do uso
dos dentes e garras.
Mas a racionalidade é uma maldição, já que pode fazer com que os humanos
esqueçam a ordem natural das coisas, de forma que outras criaturas o fazem.
Um lobo nunca esquece seu lugar na ordem natural. Índios americanos podem
esquecer. Europeus quase sempre esquecem. Nós rezamos nossas gratidões 115
ao cervo, a nossas relações, por nos permitir comer sua carne; os europeus
simplesmente tomam a carne como garantida e consideram o cervo inferior.
Afinal, europeus consideram-se divinos com seu racionalismo e ciência. Deus é
o Ser Supremo; tudo o mais deve ser inferior.
Toda tradição europeia, inclusive o marxismo, conspirou para desafiar a
ordem natural de todas as coisas. A Mãe Terra foi abusada, os poderes foram
abusados e isso não pode continuar assim para sempre. Nenhuma teoria pode
alterar esse simples fato. A Mãe Terra irá retaliar, todo o ambiente irá retaliar
e os violadores serão eliminados. As coisas caminham em um círculo inteiro,
voltam para onde começaram. É isso a revolução. Esta é a profecia de meu povo,
do povo Hopi e de outros povos correlatos.
Os índios americanos têm tentado explicar isso aos europeus por séculos.
Mas, como disse antes, europeus provaram-se incapazes de escutar. A ordem
natural irá vencer, e os agressores morrerão do jeito que morrem os alces
quando ofendem a harmonia por haver superpovoado determinada região. É
apenas uma questão de tempo até que o que os europeus chamam de “uma
catástrofe maior de proporções globais” ocorra. É o papel dos povos índios
americanos, o papel de todos os seres da natureza, sobreviver. Uma parte de
nossa sobrevivência é resistir. Não resistimos para derrubar um governo ou tomar
o poder político, mas porque é natural resistir ao extermínio, sobreviver. Não
queremos poder sobre as instituições brancas; queremos que as instituições
brancas desapareçam. Essa é a revolução.
Os índios americanos ainda têm contato com essas realidades – as profe-
cias, as tradições de nossos ancestrais. Aprendemos dos anciãos, da natureza,
das forças. E quando a catástrofe acabar, nós povos índios americanos ainda
estaremos aqui para habitar o hemisfério. Não importa se serão somente um
punhado vivendo no alto dos Andes. Os povos índios americanos sobreviverão;
a harmonia será restabelecida. Essa é a revolução.
A essa altura, talvez devesse ser bem claro sobre outro assunto, que já devia
estar claro como resultado do que já disse. Mas a confusão se espalha facilmente
nesses dias, portanto irei martelar de novo esse ponto. Quando utilizo o termo
europeu, não me refiro à cor da pele ou a uma estrutura genética particular. Me
refiro a um modo de pensar, uma visão de mundo que é produto do desenvolvi-
mento da cultura europeia. As pessoas não são geneticamente codificadas para
possuir essa perspectiva; são aculturadas para que seja sustentada. O mesmo é
verdade para os índios americanos ou membros de quaisquer culturas.
É possível para um índio americano compartilhar valores europeus, uma
visão de mundo europeia. Temos um termo para essas pessoas; chamamo-
116 -las de “maçãs” – vermelhas por fora (genética) e brancas por dentro (seus
valores). Outros grupos têm termos similares: os negros têm seus “oreos”; os
hispânicos têm “côcos” e assim por adiante. Porém, como já disse, existem
exceções à norma branca: pessoas que são brancas por fora, mas não brancas
por dentro. Não estou certo de qual termo deveria ser aplicado a elas senão
“seres humanos”.
O que estou propondo aqui não é uma proposta racial, mas uma proposta
cultural. Aqueles que em última análise advogam e defendem as realidades da
cultura europeia e seu industrialismo são meus inimigos. Aqueles que resistem
a isso, que lutam contra isso, são meus aliados, os aliados dos povos índios
americanos. E não dou a mínima para que cor seja sua pele. Caucasiano é o
termo branco para a raça branca; europeia é a perspectiva à qual me oponho.
Os comunistas vietnamitas não são exatamente o que se pode considerar
caucasianos genéticos, mas agora eles estão funcionando a partir da mentalidade
europeia. O mesmo permanece verdade para os comunistas chineses, para os
capitalistas japoneses, para os católicos bantu, para Peter “MacDollar” na reserva
Navajo ou Dickle Wilson aqui em Pine Ridge. Não há racismo envolvido nisso,
apenas um reconhecimento da mente e do espírito que fazem uma cultura.
Em termos marxistas, suponho que eu seja um “nacionalista cultural’.
Trabalho primeiro para meu povo, o povo tradicional Lakota, porque mantemos
uma visão de mundo comum e compartilhamos uma luta imediata. Além disso,
trabalho com outros povos índios americanos tradicionais, de novo por causa
de certa comunidade de visão de mundo e de forma de luta. Mais além disso,
trabalho com qualquer um que tenha experimentado a opressão colonial euro-
peia e resiste à sua totalização cultural e industrial. Obviamente, isso inclui
caucasianos genéticos que lutam para resistir às normas dominantes da cultura
europeia. Os irlandeses e os bascos vêm imediatamente à minha mente, mas
há muitos outros casos.
Trabalho primeiramente com meu próprio povo, com minha própria comu-
nidade. Outros povos que possuem uma perspectiva não-europeia devem fazer
o mesmo. Acredito no lema: “Confie na visão de seu irmão”, e gostaria também
de adicionar as irmãs a essa confiança. Confio na visão baseada na comunidade
e na cultura de todas as raças que naturalmente resistem à industrialização e
à extinção humana. Claramente, indivíduos brancos podem compartilhar isso,
dado somente que eles tenham alcançado a consciência de que a continuidade
dos imperativos industriais da Europa não é uma visão, mas o suicídio da espécie.
Branco é uma das cores sagradas dos povos Lakota – vermelho, amarelo, branco
e preto. As quatro direções. As quatro estações. Os quatro períodos da idade
e da vida. As quatro raças da humanidade. Misture vermelho, amarelo, branco
e preto juntos e ocorre o marrom, a cor da quinta raça. Este é o ordenamento 117
natural das coisas. Parece-me natural, portanto, trabalhar com todas as raças,
cada qual com seu sentido, identidade e mensagens especiais.
Mas existe um comportamento peculiar dentre a maioria dos caucasianos.
Assim que me tornei crítico da Europa e de seus impactos sobre as outras culturas,
eles ficaram na defensiva. Começaram a defender a si mesmos. Mas não estou
atacando a eles pessoalmente; estou atacando a Europa. Personalizando minhas
observações sobre a Europa eles estão personalizando a cultura europeia, iden-
tificando-se eles mesmos com ela. Defendendo-se a si mesmos nesse contexto,
estão em última análise defendendo a cultura da morte. Esta é uma confusão
que precisa ser superada, e superada logo. Ninguém de nós tem energia para
ser desperdiçada em falsos conflitos como esse.
Os caucasianos têm uma visão mais positiva para ofertar à humanidade do
que a cultura europeia. Acredito nisso. Mas para obterem essa visão é preciso
que os caucasianos ponham os pés fora da cultura europeia – e junto a todo o
resto da humanidade – para ver a Europa como ela é e o que está a fazer.
Ater-se ao capitalismo, ao marxismo e todos os outros “ismos” é simples-
mente permanecer dentro da cultura europeia. Não há como evitar esse fato
básico. Como um fato, isto constitui uma escolha. Entenda que a escolha é
baseada na cultura, não na raça. Entenda que escolher a cultura europeia e o
industrialismo é escolher ser meu inimigo. E entenda que essa escolha é sua,
não minha.
Isto me traz de volta para dirigir-me àqueles índios americanos que estão
vagando pelas universidades, periferias da cidade e outras instituições europeias.
Se você está lá para resistir ao opressor de acordo com seus modos tradicio-
nais, que assim seja. Não sei como você administra a combinação dos dois, mas
talvez você tenha sucesso. Mas retenha seu senso de realidade. Cuidado em
vir a acreditar que o mundo branco agora oferece soluções aos problemas que
nos confrontam. Cuidado também em permitir que palavras de povos nativos
sejam retorcidas sem vantagens a nossos inimigos. A Europa inventou a prática
de distorcer as palavras contra elas mesmas. Você só precisa dar uma olhada
nos tratados entre os povos índios americanos e vários governos europeus para
saber que isso é verdade. Tire sua força de quem você é.
Uma cultura que regularmente confunde revolta com resistência nada
tem de útil para lhe ensinar e nada tem a lhe oferecer como modo de vida. Os
europeus perderam há muito todo tato com a realidade, se é que alguma vez
tiveram contato com quem vocês são como índios americanos.
Então, suponho que para concluir isto, devo afirmar claramente que conduzir
qualquer um ao marxismo é a última coisa em minha mente. O marxismo é
118 tão alienígena a minha cultura quanto o são o capitalismo e o cristianismo. De
fato, posso dizer que não estou tentando dirigir ninguém em direção a coisa
alguma. Em alguma extensão eu tentei ser um “líder”, no sentido que a mídia
branca aprecia usar o termo, quando o movimento indígena americano era uma
jovem organização. Esse foi o resultado de uma confusão que não tenho mais.
Você não pode ser tudo para todo mundo. Eu não proponho ser assim usado
pelos meus inimigos. Não sou um líder. Sou um patriota Oglala Lakota. Isto é
tudo que eu quero e preciso ser. E estou muito confortável com quem eu sou.

119
por Isabelle Stengers
tradução e adaptação: Déborah Danowski

No início do ano, bem no início do ano, essa chuva de passarinhos mortos que
caiu sobre uma pequena cidade americana, e, logo depois, sobre uma outra
cidade americana, e logo depois na Suécia, e logo depois na Itália... Não sei se
continuou depois, mas o impressionante foi o tom com que esse acontecimento
foi recebido – um tom bastante diferente do caso, por exemplo, de um rio no
qual todos os peixes morreram. Porque neste último caso, sabemos que eles
foram vítimas de uma poluição. Mas no caso dos passarinhos, foi como um sinal,
um signo – porque os pássaros são livres, normalmente podem escapar de uma
poluição, mas eis que se abatem mortos, em massa, como se mais nada estivesse
protegido da nossa natureza.
Eu fiquei impressionada com esse acontecimento, como todos os que
ouviram a notícia. Bem, eu ouvi os cientistas desse tipo de serviço dizerem que
tinha sido apenas uma coincidência: “Vamos circular, não há nada para ver aqui”.
E sem dúvida eles tinham razão. Mas o poder dos signos é justamente de nos
despertar para nossa sensibilidade. Os signos testam nossa sensibilidade. E o
que havia nessas reações, pelo menos tal como eu as senti em mim, não era só
um remorso, no sentido de pensar “O que fizemos desse mundo em que nós
vivemos?”. Era também, muito profundamente, uma inquietude, uma profunda
inquietude, como se alguma coisa estivesse em vias de acontecer, como se fosse
um signo antecipatório.
Então é sobre isso que eu queria refletir junto com vocês, sobre essa novi-
dade, da qual no fundo alguns cientistas e outros já estavam a par há várias
décadas, mas que para muitos de nós se impôs apenas neste 3º milênio, que

* Intervenção apresentada durante a jornada Art e Culture de la Terre, no Théâtre Dunois, em


120 Paris, em 15 de janeiro de 2011. Vídeo disponível em: https://vimeo.com/24011454.
já começou aceleradamente. Há muito tempo (isto é, há muitas décadas, não
quero dizer muitos séculos), nós sabemos – e os movimentos verdes, ecologistas,
de proteção da natureza etc. estão aí para manifestá-lo –, e há muito tempo
sentimos uma culpa ou um remorso em relação àquilo que ‘nossa civilização’
fez à Terra, ao tipo de devastação, de poluição que ela inflige à Terra. Nós
conhecemos a imagem, é uma imagem bastante clássica, que aliás tem duas
faces: nós estamos pisoteando nosso berço; a humanidade pisoteia seu berço
de nascença. E isso pode ser visto como uma agressão, e coexistir com uma
imagem de remorso. Também pode ser no sentido de dizer que o destino da
humanidade está nas estrelas; ela pisoteia seu berço porque deve deixar seu
berço – e aí temos quase uma imagem freudianoide de ruptura com a fusão, de
desligamento, de espírito de empreendedorismo etc. Todas essas eram imagens
que coexistiam, pode-se dizer, desde que apareceu uma certa sensibilidade para
o custo daquilo que chamamos progresso.
Mas hoje uma outra imagem, inteiramente distinta, se impõe: aquela que
eu associo, de minha parte, não ao nome Terra – "nós devastamos a Terra", no
sentido de que somos criaturas terrestres e devastamos o habitat, a existência
mesma de outras criaturas terrestres, portanto quando se trata do conjunto dos
habitantes atuais da Terra, eu falo em Terra –, mas a uma outra palavra. Eu emprego
aqui uma outra palavra porque é preciso dar um nome que crie um sentido de novi-
dade, um sentido da importância dos problemas. Para isso emprego a palavra Gaia.
Gaia. É assim que eu tento pensá-la. Digo "tento pensar", porque não é
fácil… Al Gore deu esse belo título a seu filme, Uma Verdade Inconveniente.
Uma verdade inconveniente é aquilo que eu chamo de "a intrusão de Gaia em
nossas histórias". Por que intrusão de Gaia? Gaia foi denominada assim pelo
cientista original e herético James Lovelock, que trouxe à cena a solidariedade,
a couplage entre enormes processos. Não se trata de uma floresta, um rio etc...,
mas de processos de viventes, e os viventes são, antes de mais nada, as bactérias,
os microorganismos, tudo o que nos escapa e que por vezes nos mata. É uma
multidão anônima de micro-organismos, mas também o clima, os oceanos, as
terras férteis, tudo de que nós dependemos mas que tratamos como se fosse
auto-evidente. E Lovelock mostrou sua interdependência; quer dizer, propôs fazer
dessas coisas “um vivente”. Mas eu prefiro dizer “um ser”. Um ser no sentido de
que não é apenas uma soma de processos gigantescos, mas também alguma
coisa que, diante de uma variação, ele (Gaia) reage por repercussão, quer dizer,
não como uma bela totalidade harmoniosa, mas com suas respostas próprias.
São respostas dele, que lhe pertencem, não são simplesmente relações de
causa e efeito.
121
E Gaia, que esteve mais ou menos estável desde que os humanos existem,
parece ter entrado num regime que vai na direção de uma profunda instabili-
dade. É o que se chama de ameaça climática, desordem climática. Eu me recuso
a dizer “a crise climática”, porque, quando dizemos “crise”, é como se depois
da crise houvesse o restabelecimento da tranquilidade: é uma boa crise, vai
passar. Não: aqui, se Gaia entrar em crise, não vai passar; quer dizer, se o ponto
de inflexão (tipping point) for atingido e ultrapassado, então o futuro é quase
inimaginável. Portanto, não é uma crise, embora o ponto seja um ponto crítico
(no sentido da termodinâmica). Mas esse ponto crítico não separa dois estados
estáveis, ele separa nossa situação de algo difícil de imaginar.
Então, dar o nome de Gaia, ao invés de Terra, é dizer que o que faz uma
intrusão em nossas histórias é um ser de uma potência tal que não podemos
domar, um ser que nos ultrapassa, que nós antes ignoramos porque sua estabili-
dade permitia considerar aquilo de que gozávamos como se estivesse garantido,
mas que agora nos mostra sua dimensão hiper-irritável – irritável no sentido
de que nós somos capazes, não de dominá-la, mas de “ofendê-la”, ou seja, de
provocá-la, fazer com que ela abandone esse regime de estabilidade. E Gaia,
enquanto ser que existe pelas repercussões de todos esses processos uns sobre
os outros, torna-se um sujeito.
A novidade em relação à Terra é que, quando falávamos da Terra ou da
natureza, nós é que éramos os sujeitos. Nós éramos os sujeitos, no sentido de
que éramos culpados, tínhamos deveres, era nossa história que era o problema
– pelo menos no imaginário do europeu do século XIX, e sobretudo do século XX.
A partir do momento em que Gaia se manifesta, a partir do momento em que
Gaia coloca um problema, a partir do momento em que Gaia faz uma intrusão,
não somos mais os únicos sujeitos da nossa história; devemos, de uma maneira
ou de outra, aprender a compor com esse ser temível; e, em relação a esse ser,
podemos sempre sonhar que a coisa vai se resolver, que é só uma crise, mas
na verdade nós sabemos que não é – e os cientistas que nos dizem isso foram
fortemente atacados por aqueles que não querem saber o que está se passando;
mas, se bancarmos os avestruzes, a coisa não vai se resolver com apenas algumas
modificações adaptativas.
Eu escolhi chamar esse ser de Gaia, não apenas porque era o nome dado
pelos cientistas que a fizeram reaparecer, que a fizeram aparecer entre nós, mas
também porque esse é o nome de uma divindade grega, mas uma divindade
antiga, uma divindade dos povos camponeses, de uma época anterior à dos
povos das cidades, que eventualmente aprenderam a ter medo da natureza –
porque, creio, é uma reação de habitantes das cidades, por exemplo, ter medo
122 dos insetos.
Pois bem, Gaia era então uma divindade que não era como Venus, Jupiter
(estou dando os nomes latinos), Juno etc.; não era uma divindade antropomórfica,
sedutora, vingativa, que exige que a reverenciemos, que exige reparação etc.
Não não: Gaia não é uma divindade psicológica. Gaia é uma potência impessoal,
parece, e temível, uma coisa em relação à qual é preciso saber compor, saber
não ofendê-la, saber manter uma relação da qual pudéssemos dizer que é uma
relação de paz com ela. É a ofensa, e não a vingança, que é temível.
E penso que Gaia nesse sentido é um nome bastante próximo de Terra, Mãe,
de Mãe-Terra, da qual começamos a ouvir falar, e que alguns povos continuam
a reverenciar, notadamente povos ameríndios. Porque esses povos ameríndios
mesmos nunca tiveram a ingenuidade de pensar que essa Mãe-Terra, que os
nutre, é boa como uma boa mãe ocidental, que vive para o seu filho. Não não.
Para eles, uma mãe pode ser ofendida, pode ser terrível. E portanto, a Mãe-Terra
tem uma dupla face, de nutriz e de temível – e isso é algo novo para nós, porque
para nós a mãe era para cuidar dos filhos; mas não é novo para eles, o fato de
que tenha várias faces. Mas, dado que aprendemos a pensar as mães como
gentis – exceto, evidentemente, Medéia – então é preciso dar esse nome para
nos lembrar que o remorso não basta, e que Gaia tampouco se vinga. Pois a
questão não é a culpa, porque os povos pobres e o conjunto de nossos congê-
neres que vivem na Terra vão pagar como nós – e portanto Gaia não se vinga
dos culpados. Não se trata de culpa, não se trata de remorso. Não são esses os
sentimentos pertinentes.
Então, o que é pertinente em relação a isso? Não estou dizendo pertinente
no sentido de que haveria uma garantia de que vamos sair dessa; há razão de
estar inquieto. Mas o que me interessa é o sentimento profundo – e nós já vimos,
ele está hoje um pouco em toda parte – um sentimento profundo de impotência,
de abatimento que nos toma frente a essa situação. Alguém disse, de maneira
muito inteligente, que é mais fácil pensar o desmoronamento da civilização,
pensar o fim do nosso mundo – há uma porção de ficções distópicas que nos
mostram um mundo tornado inteiramente bárbaro –, é mais fácil pensar isso
do que pensar como iremos mudar. Como iremos mudar, isso parece utópico.
Que vamos todos mergulhar na barbárie etc., isso é factível, é pensável – aliás,
já vemos os processos que nos levam a isso; eles são perceptíveis, sensíveis.
E eu queria dizer que esse sentimento de impotência, de certa forma, é
justificado, no sentido de que há uma impotência, que nunca estivemos – e é
isso que sempre me impressionou nessa ideia de Gaia – nunca estivemos mais
mal equipados para enfrentar essa Questão (com “Q” maiúsculo) de como
modificar a maneira mesma como fazemos a história. Estamos mal equipados,
no sentido de que, justamente, nas últimas décadas do século XX, mostrando 123
uma grande determinação, os governos que poderiam ter feito alguma coisa
remeteram esse poder pertinente à OMC (Organização Mundial do Comércio) –
quer dizer, puseram-no sob o signo da liberdade de circulação e de investimento.
Portanto, as localidades abdicaram de todo poder de fazer o que podem por
elas. As ciências perderam tudo que elas podiam ter ainda de autônomas etc.;
a isso se chama economia do conhecimento: o que faz as vezes de produção
científica hoje é a corrida pelo patenteamento, quer dizer, uma lógica de
tipo industrial.
Quanto ao capitalismo, que é agora aquilo que transcende nossa história,
aquilo com o que devemos nos haver, mesmo se há crise etc., nós nos damos
conta que a crise que estamos sofrendo há alguns anos não mudou nada nas
relações de força. Pois bem, esse capitalismo é literalmente incapaz, não equi-
pado para nos ensinar aquilo que devemos aprender para compor com Gaia.
Não é má-vontade, é simplesmente porque isso implica uma relação com o
tempo que não é a sua. O capitalismo está equipado para detectar, especular
e lucrar com todas as oportunidades. Para ele, as desordens que se anunciam
são fontes de oportunidade, mas não de pensar o que isso exige de nós para
fazermos algo diferente.
Portanto, não somos aparelhados para aprender a prestar atenção.
Lembrem-se que há apenas vinte anos, os que se inquietavam com os estragos
daquilo que se chamava desenvolvimento eram chamados de irracionais. E ainda
hoje, diante desse tímido "princípio de precaução" adotado pelos europeus,
os cientistas, notadamente os cientistas da academia de ciências de vocês1,
disseram: isso é timidez, medo, é preciso saber arriscar, o destino do homem
está nas estrelas etc.; é preciso saber arriscar. Mas disseram isso sem precisar
quem era colocado em risco pelas inovações técnico-científicas – certamente
não eram eles. Mas disseram: é preciso saber arriscar, isso é da humanidade
(porque o cientista desse tipo de escola tende frequentemente a identificar
sua posição com a posição da humanidade).
Portanto, se há algo de que creio estar certa é que, por enquanto, e se
confiarmos naquilo que se chama de capitalismo verde, não escaparemos da
barbárie, ou então de uma tirania, uma tirania dos especialistas que irão gerir
a penúria, no sentido de que para viver vai ser preciso merecer, no sentido de
“pior para os que ficaram para trás, pior para as bocas inúteis” — os especialistas
no poder. Eu vi do que era capaz essa expertise, ao ler algumas falas onde eles
diziam: é preciso começar suprimindo os cães e os gatos: são bocas inúteis.

124 1. Isabelle Stengers, que é belga, se refere aqui à Academia de Ciências Francesa.
Bem, depois começaremos a contar as outras bocas inúteis. Entendem o que
isso significa?
É por isso que me incomodo um pouco com os chamados teóricos do
decrescimento, por causa desse caráter abstrato do imperativo do decrescimento.
Por outro lado, evidentemente, o que me interessa é algo muito mais dinâmico,
são os objetores do crescimento – mesmo que tenham uma ligação com os
teóricos de decrescimento. Porque os objetores do crescimento, sob diferentes
formas – quer eles se chamem ou não com esse nome, objetores do crescimento
–, eles buscam fazer coincidir, e buscam nos mostrar que podemos fazer coincidir
maneiras de viver junto, de trabalhar junto, maneiras de viver no sentido concreto
do termo, de produzir também, e que exigem um pensamento, uma imaginação,
a criação de um entendimento com aquilo com o que nós vivemos e entre nós,
praticando no fundo o Reclaim. Esta é uma palavra que aprendi com os ativistas
americanos, e de que gosto muito, mas que não consigo traduzir bem, práticas
de reclaim. Reclaim é se reapropriar, é também curar, é também tornar-se nova-
mente capaz. Em francês isso dá réclamer2, mas vocês veem que é um pouco
distante. Não é somente réclamer, como se nos houvessem privado disso, é
dizer: sim, nós fomos separados de maneiras de viver nas quais nós sabíamos
compor, sabíamos prestar atenção. Fomos separados delas, e, para nos tornarmos
novamente capazes, nós devemos não apenas lutar contra aqueles que nos
separaram disso, e aqueles que nos dizem que a natureza é suja etc., aqueles
que fazem publicidade para dizer: “Os insetos são insuportáveis, e nós temos
o veneno para matá-los” – o medo é também inculcado.
Portanto, não se trata apenas de lutar contra aqueles que nos separaram
disso, trata-se também de nos curarmos dessa separação, quer dizer, de nos
tornarmos novamente capazes. E eles o fazem, na prática, nos dois planos. Em
alguns anos – foi lento, talvez lento demais –, mas eu fico muito impressionada
com a maneira como, em alguns anos, em toda parte, vemos aparecer hortas
coletivas, práticas de trocas e de reabilitação de sementes, de permacultura, e
tudo isso. Alguém pode dizer que tudo isso é pequeno demais em relação ao
pouco tempo que nos resta. Bem, eu diria, quem diz que é pouco demais e que
precisamos de outra coisa, na verdade está esperando os especialistas soberanos
que vão nos dizer: "o cachorro e o gato…", e depois "as bocas inúteis".
Portanto, para mim essas práticas são interessantes justamente porque
elas nos falam de uma relação às coisas, aos seres não-humanos, digamos à
natureza, mas elas nos falam também de uma relação entre nós mesmos. E as

2. Em português, reclamar. 125


duas coisas estão ligadas. Estão ligadas sob o modo de uma ecologia, de um
cuidado das relações, antes que de uma harmonia.
Ecologia no sentido justamente de que não se trata de uma harmonia a
reencontrar, trata-se de imaginação a recriar, que nos permita inventar, produzir,
criar novos tipos de relação uns com os outros e com aquilo de que nós vivemos
e aquilo com o que nós vivemos. Criação coletiva, que é também aprendizado
de indocilidade em relação àqueles que nos dizem: “Vocês são incapazes, vocês
são egoístas, vocês são impotentes.” Creio que todo grau de liberdade que é
reconquistado localmente é importante, mas importante também sobretudo
se pudermos narrar isso, quer dizer, se pudermos transformar aquilo que está
se passando em todos os cantos numa dinâmica de narrativa, de experiência,
em uma produção cultural que nos mostre – e creio que lugares como o teatro
são importantes para isso – dinâmicas que nos mostrem que nós somos capazes
de outra coisa, e que isso não é triste.
Portanto, eu tenho a impressão de que nós precisamos também de explo-
radores de novos possíveis, de exploradores daquilo que é exigido por uma
criação coletiva, precisamos também de artistas, de contadores, de mediadores
que permitam que essas experiências sejam difundidas, sejam experimentadas
em outros lugares, que se produza um novo tipo de ecologia cultural, que não
é simplesmente a cultura no sentido das belas artes, mas a cultura prática, a
cultura do fazer-com, fazer-com as coisas, e fazer uns com os outros.
E eu diria que isso não é neutro politicamente. Deleuze havia dito que a
esquerda, ao contrário da direita, precisa vitalmente que as pessoas pensem.
E pensar, no sentido de Deleuze, é esse pensamento coletivo, que podemos
chamar de cultura, se nos lembrarmos que cultura é a própria vida.
Obrigada.

126
por Déborah Danowski

A história humana já conheceu várias crises civilizacionais, mas nossa civilização


jamais enfrentou uma crise ambiental como esta que está em curso, e
provavelmente não sobreviverá a ela.
Não estamos falando apenas do aquecimento global. Em setembro de 2009,
a revista Nature Climate Change publicou um nº especial em que diversos cientistas
identificam nove processos biofísicos do sistema Terra e buscam estabelecer
limites precisos para esses processos, os quais, se ultrapassados, poderiam gerar
mudanças ambientais insuportáveis: mudança climática, acidificação dos oceanos,
depleção do ozônio estratosférico, uso de água doce, perda de biodiversidade,
interferência nos ciclos globais do nitrogênio e do fósforo, mudança no uso
do solo, poluição química, taxa de aerossóis atmosféricos. Segundo comentam
os autores: "não podemos nos dar ao luxo de concentrar nossos esforços em
nenhum desses parâmetros isoladamente. Se um limite for ultrapassado, outros
limites também correm sério risco."1
Acontece que podemos já ter saído da zona de segurança de três desses
processos – a taxa de perda da biodiversidade, a interferência humana no ciclo
de nitrogênio (a taxa com que N2 é removido da atmosfera e convertido em
nitrogênio reativo para uso humano) e as mudanças climáticas –, e estamos
perto do limite de outros – uso de água doce, mudança no uso da terra, e
acidificação dos oceanos.

* Texto originalmente apresentado no Colóquio TERRATERRA, durante a Cúpula dos Povos, no


Rio de Janeiro, em 15 de Agosto de 2012.
1.Trabalho coordenado por Johan Rockström, do Stockholm Resilience Centre, “A safe ope-
rating space for humanity": 474. (http://blogs.nature.com/climatefeedback/2009/09/plane-
tary _boundaries_1.html). 127
O que estamos presenciando, portanto, é a modificação radical das
condições ambientais que permitiram o florescimento e a manutenção não só
do nosso modo de vida atual (industrial, de produção e consumo globalizado),
mas, dependendo de como as coisas se desenrolem, da civilização humana
como um todo, em suas diversas manifestações (a cultura humana, ou a Cultura).
E entretanto, expressões como "catástrofe", "fim da civilização", ou mesmo
apenas "declínio" provocam fortes reações de aversão, exceto quando se referem
a catástrofes ancestrais, ao fim de outras civilizações ou ao declínio e extinção
de populações de espécies vivas não humanas. Nós não podemos estar em
declínio, e por isso a catástrofe não pode ser real.
Pior ainda: diante daqueles que levam a sério a gravidade da situação e
propõem, como caminho alternativo, alguma forma de positivação da noção de
declínio, repetem-se as reações indignadas, o que nos leva a uma constatação tão
ou mais importante quanto aquela. Assim como já tivemos horror ao vácuo, hoje
temos horror à limitação, ao decrescimento, à suficiência, à descida. Qualquer
coisa que lembre esse movimento descendente é quase imediatamente associado
à vontade de regresso, ao primitivismo, irracionalismo, niilismo, quando não ao
fascismo. Só uma direção é pensável, aceitável e desejável, a que leva do negativo
ao positivo: da posse de pouco à propriedade de muito, da baixa tecnologia à alta
tecnologia, do local ao global, do nômade paleolítico ao cidadão cosmopolita
moderno, do índio ao proletário civilizado.
Ao mesmo tempo, vimos assistindo nos últimos anos a uma curiosa
proliferação de livros, filmes, blogs, movimentos e até revistas acadêmicas
que parecem ir na contracorrente desse otimismo civilizatório. Do Institute for
Collapsonomics ao livro de Isabelle Stengers, No tempo das catástrofes: resistir
à barbárie que vem (2009), do livro Colapso: como as sociedades escolhem o
fracasso ou o sucesso, de Jared M. Diamond (2005), à revista de filosofia Collapse,
da magnífica ficção de Cormac McCarthy, The Road (A Estrada) ao filme trash
2012, são inúmeras as narrativas que tematizam justamente a catástrofe e o fim
do mundo. Essa movimentação não tem passado despercebida, é claro, mas é
frequentemente reduzida ao epíteto "catastrofismo". Raramente se pára para
pensar qual a razão da forte atração, neste momento preciso da história, pelo
tema do fim do mundo ou da civilização humana.
Na verdade, não se trata de um tema único, mas de um complexo de temas
estreitamente relacionados. Para ficarmos apenas com alguns exemplos da
literatura e do cinema, A Estrada narra o percurso de um pai e um filho numa
terra desolada após um desastre ambiental global de causas indeterminadas, um
mundo onde só restam alguns humanos, boa parte deles virados canibais; 2012
128 trata do colapso geológico do planeta, que só não leva ao fim instantâneo da
espécie humana e da maior parte das outras porque o filme é muito ruim; O Dia
depois de Amanhã encena um comportamento catastrófico do clima na Terra que
seria o inverso do atual: o resfriamento global; o Planeta dos Macacos: A origem
imagina uma série de experimentos científicos que acabarão por produzir um
pós-humano inesperado, levando ao declínio a civilização humana e sua submissão
à civilização dos macacos; o livro O Mundo sem Nós (The world without us, de Alan
Weisman) descreve o destino do mundo após o fim da espécie humana, e como
nossa marca sobre o planeta, que neste momento é tão grande que muitos
consideram que estamos numa nova era geológica, o Antropoceno, entretanto
levará um período de tempo proporcionalmente muito curto para desaparecer.
E finalmente Melancolia, filme de Lars von Trier que marca nosso encontro com
o fora absoluto, o choque da Terra com o planeta que inesperadamente cruza
sua rota.
O que esses filmes e livros têm em comum é que todos procuram imaginar
o que é ou será o mundo para além disso que nossa civilização hoje postula
como eterno e, mais ainda, como a única alternativa capaz de corresponder ao
que seria uma vida digna de humanos. Nenhuma das alternativas imaginadas
é muito agradável, e algumas são bem piores que outras. O Dia depois de
Amanhã imagina, como consequência de uma nova era do gelo, a inversão das
relações políticas globais, com os norte-americanos, por exemplo, terminando
como refugiados ambientais obrigados a pedir asilo ao governo do México.
Em O Planeta dos Macacos, o mundo não será assim tão diferente do atual: a
“natureza” será até mais próspera, e a Civilização na verdade continua, só que
não mais com nossa espécie no comando. Há uma troca de perspectivas, e nós,
humanos, passamos de predadores a presas. No livro (e filme) O Mundo sem
Nós, desaparece o Homo sapiens sapiens juntamente com todos os traços de sua
civilização, mas as outras espécies vivas estão mais felizes do que nunca. Em A
Estrada, o que resta do mundo é o cinza e as cinzas, algumas palavras humanas
que lutam para permanecer apesar do fim de seus objetos, e uns poucos homens
que carregam o fogo e continuam, não se sabe bem por que nem para onde.
Melancolia representa o colapso não só de nossa espécie e das outras, mas de
Gaia ela mesma, que sequer terá a chance de encontrar um novo ponto de
equilíbrio sem nós. É o fim absoluto.
Mas é entre as situações representadas em A Estrada e em Melancolia que
me parece de fato se passar o que está em jogo nisso que podemos chamar
de movimento global de “colapsonomia” (para tomarmos de vez emprestado
o termo do Institute for Collapsonomics).
A Estrada representa um processo acelerado e extremamente perigoso de
decaimento que não conseguimos frear, um pouco à maneira de Ubiq, de Philip 129
K. Dick, em que os objetos vão envelhecendo, apodrecendo, num ritmo cada
vez mais rápido e incontrolável, até finalmente percebermos que a morte não
é, como pensávamos, um inimigo externo contra o qual estamos lutando em
enorme desigualdade de condições, mas um inimigo interno: nós já estamos
mortos, e a vida é o que passou para o lado de fora. Troca de perspectivas, mais
uma vez: enquanto achávamos que éramos os campeões do mundo dos vivos,
há muito já havíamos sido capturados pelo ponto de vista dos cadáveres. É
bem parecida a situação de A Estrada, em que a morte o tempo todo ameaça
capturar os poucos vivos que restam: ou retirando-lhes os objetos, a memória
e a linguagem, ou transformando-os em comida de predadores canibais, ou
penetrando seus corpos pela doença e pela fome, ou ainda, forma talvez mais
perversa, roubando-lhes suas próprias almas. Em Melancolia, ao contrário, não
há decaimento, não há passagem. O choque com o Fora tem a brutalidade do
limite inegociável.
Isabelle Stengers de certa forma expressa essa ideia dizendo que o ponto
crítico (no sentido matemático) que ameaça desestabilizar o equilíbrio atual do
Sistema Terra, que James Lovelock batizou de Gaia, "separa nossa situação de
algo difícil de imaginar". Não se trata de uma crise que vai passar, e em relação
à qual pudéssemos dizer que um dia tudo voltará a ser o que era. E entretanto,
se estivéssemos aqui simplesmente para constatar que o mundo vai acabar, não
teríamos o que fazer senão talvez construir uma cabaninha como a que Justine
constrói para ela própria, sua irmã e seu sobrinho aguardarem a chegada de
Melancolia. Na verdade, aliás, não penso que a cabaninha mágica fosse uma
fuga, o abrigo desesperado na irracionalidade, ou a exacerbação da negação
(como sugeriu recentemente Bruno Latour no belo artigo “Waiting for Gaia”),
mas antes um instante, um último instante, de pensamento hiperconcentrado.
Pois é esse encontro com nosso Fora, com o Fora de nossa civilização atual
e do ambiente que a tornou possível e a sustentou durante milênios, que temos
por tarefa pensar. Não como um puro exercício intelectual, mas porque desse
pensamento (em sentido amplo), do pensamento de todos nós, talvez dependa
como vamos fazer essa passagem e que outro mundo é possível "do lado de lá".
É fundamental entender que não estamos diante de um problema apenas
simbólico, ou de representação. Esse fora não é um fora posto por nosso
pensamento, que em última análise significa o pensamento humano. Fim do
mundo ou catástrofe, para nós hoje, é o encontro real, material mesmo, com o fora
que se introduz em nossas vidas, e que não poderemos mais desconsiderar. É Gaia
quem fala agora, e é melhor que "prestemos atenção" a ela, como diz Stengers.
É nesse sentido que eu dizia no início que podemos falar em limites não
130 apenas para nos referirmos aos limites naturais e físicos de nosso modo de
civilização e do planeta, mas também no sentido de propor uma limitação, como
forma de pensar uma saída pela via do declínio, ou antes da suficiência intensiva,
como disse uma vez Eduardo Viveiros de Castro, em lugar da expansão e do
progresso. É que "prestar atenção" e "declinar" (como estou entendendo aqui
esta palavra) significa "descer" (no sentido antropofágico). E descer não significa
voltar para trás, voltar a ser o que éramos, mas produzir novas formas de vida;
significa entrar em outras formas de relação – com os outros homens, com a
tecnologia, com o saber, com o mundo não-humano e seus muitos pontos de
vista, enfim com a terra e sua diversidade constitutiva.
Descer é devir-outro, devir-menor, devir-índio. É também sair, com a
condição de entendermos que sair não é transcender. Só temos um mundo,
mas o mundo não se resume a nós humanos, e menos ainda a nós ocidentais
urbanos corporativos globais. Sair é aterrizar. ATERRAR.

131
por Donna Haraway**
tradução: Susana Dias, Mara Verônica e Ana Godoy

Não há dúvida de que os processos antrópicos tiveram efeitos planetários, em


inter/intra-ação com outros processos e espécies, desde que nos reconhecemos
como espécie (algumas dezenas de milhares de anos) e investimos em uma
agricultura em larga escala (alguns milhares de anos). Certamente que, desde
o início, as bactérias e seus parentes foram, e ainda são, os maiores de todos
os terraformadores (e reformadores) planetários, também em uma miríade de
tipos de inter/intra-ação (incluindo as pessoas e suas práticas, tecnológicas e
outras)1. A propagação de plantas por dispersão de sementes, milhões de anos
antes da agricultura humana, representou uma grande mudança no planeta, e
assim foram muitos outros eventos ecológicos de desenvolvimento histórico,
revolucionários e evolucionários.
As pessoas iniciaram essa discussão2 muito cedo e de forma dinâmica,
mesmo antes deles/nós sermos chamados de Homo sapiens. Mas penso que a
relevância de nomear de Antropoceno, Plantationoceno ou Capitaloceno tem a
ver com a escala, a relação taxa/velocidade, a sincronicidade e a complexidade.
A questão constante, quando se considera fenômenos sistêmicos, tem de ser:
quando as mudanças de grau tornam-se mudanças de espécie? E quais são os

* O artigo em inglês foi originalmente publicado na Environmental Humanities, Volume 6. Co-


pyright, 2015, Duke University Press e autorizado a ser traduzido para o português para a
Revista ClimaCom: Trad. Susana Dias, edição do ANO 03 - N.05 - "Vulnerabilidade". Disponível
em: <http://climacom.mudancasclimaticas. net.br/?p=5258>. Agradecemos a ClimaCom que
gentilmente nos cedeu esta tradução.
** Donna Haraway leciona História da Consciência na University of California, Santa Cruz, USA.
1.Intra-ação é um conceito de Karen Barad (2007). Continuo usando inter-ação a fim de perma-
necer legível para o público que ainda não compreende as mudanças radicais que a análise de
Barad exige, mas, também, provavelmente, faço isso em razão dos meus hábitos linguísticos
promíscuos.
2. [N.T.] Aqui a autora se refere ao debate em torno das designações Antropoceno, Capitalo-
132 ceno etc.
efeitos das pessoas (não o Humano) situadas bioculturalmente, biotecnologi-
camente, biopoliticamente e historicamente em relação a, e combinado com,
os efeitos de outros arranjos3 de espécies e outras forças bióticas/abióticas?
Nenhuma espécie, nem mesmo a nossa própria – essa espécie arrogante que
finge ser constituída de bons indivíduos nos chamados roteiros Ocidentais
modernos – age sozinha; arranjos de espécies orgânicas e de atores abióticos
fazem história, tanto evolucionária como de outros tipos também.
Mas há um ponto de inflexão das consequências que muda o nome do
“jogo” da vida na terra para todos e tudo? Trata-se de mais do que “mudanças
climáticas”; trata-se também da enorme carga de produtos químicos tóxicos,
de mineração, de esgotamento de lagos e rios, sob e acima do solo, de simpli-
ficação de ecossistemas, de grandes genocídios de pessoas e outros seres etc.,
em padrões sistemicamente ligados que podem gerar repetidos e devastadores
colapsos do sistema. A recursividade pode ser terrível.
Anna Tsing (2015), em um artigo recente chamado “Feral Biologies”, sugere
que o ponto de inflexão entre o Holoceno e o Antropoceno pode eliminar a maior
parte dos refúgios a partir dos quais diversos grupos de espécies (com ou sem
pessoas) podem ser reconstituídos após eventos extremos (como desertificação,
desmatamento…). Isso tem parentesco com o argumento da World-Ecology,
Research Network, coordenada por Jason Moore, de que a natureza barata
está no fim; o barateamento da natureza não pode continuar mais a sustentar
a extração e a produção no e do mundo contemporâneo, porque a maioria
das reservas da terra foram drenadas, queimadas, esgotadas, envenenadas,
exterminadas e, de várias outras formas, exauridas4. Vastos investimentos em
tecnologias extremamente criativas e destrutivas podem conter esse acerto
de contas, mas a natureza barata realmente acabou. Anna Tsing argumenta
que o Holoceno foi um longo período em que os refúgios, os locais de refúgio,
ainda existiam, e eram até mesmo abundantes, sustentando a reformulação
da rica diversidade cultural e biológica. Talvez a indignação merecedora de um
nome como Antropoceno seja a da destruição de espaços-tempos de refúgio
para as pessoas e outros seres. Eu, juntamente com outras pessoas, penso que
o Antropoceno é mais um evento-limite do que uma época, como a fronteira
K-Pg entre o Cretáceo e o Paleoceno5. O Antropoceno marca descontinuidades
graves; o que vem depois não será como o que veio antes. Penso que o nosso

3. [N.T.] Onde a autora usa “assemblage” traduzimos por “arranjos”.


4. Cf. Moore (2015). Muitos dos ensaios de Moore podem ser encontrados em: <https://ja-
sonwmoore.wordpress. com/>.
5. Devo a Scott Gilbert por ressaltar, durante o seminário Ethnos e outras interações, na Uni-
versidade de Aarhus, em outubro de 2014, que o Antropoceno (e o Plantationoceno) deve ser
considerado um evento-limite, como a fronteira K-Pg, e não uma época. Ver nota 6 abaixo. 133
trabalho é fazer com que o Antropoceno seja tão curto e tênue quanto possível,
e cultivar, uns com os outros, em todos os sentidos imagináveis, épocas por vir
que possam reconstituir os refúgios.
Neste momento, a terra está cheia de refugiados, humanos e não humanos,
e sem refúgios.
Então, penso que mais do que um grande nome, na verdade, é preciso
pensar num novo e potente nome. Assim, Antropoceno, Plantationoceno6 e
Capitaloceno (termo de Andreas Malm e Jason Moore antes de ser meu)7. E
também insisto em que precisamos de um nome para as dinâmicas de forças e
poderes sim8-chthonicas em curso, das quais as pessoas são uma parte, dentro
das quais esse processo está em jogo. Talvez, mas só talvez, e apenas com intenso
compromisso e trabalho colaborativo com outros terranos, será possível fazer
florescer arranjos multiespécies ricas, que incluam as pessoas. Estou chamando

6. Em uma conversa gravada para Ethnos, na Universidade de Aarhus, em outubro de 2014, os


participantes coletivamente geraram o nome Plantationocene para a transformação devasta-
dora oriunda de diversos tipos de fazendas com tendências humanas, pastos, e florestas em
plantações extrativas e fechadas, baseadas em trabalho escravo e outras formas de traba-
lho explorado, alienado, e, geralmente, deslocado espacialmente. A conversa transcrita será
publicada como “Anthropologists Are Talking About the Anthropocene”, em Ethnos [N.T. a
publicação aconteceu em 2016, ver Ethnos: Journal of Anthropology, v. 81, n. 3). Os estudiosos
já entendem faz tempo que o sistema de plantação baseado no trabalho escravo foi o mode-
lo e motor dos sistemas de produção à base de máquinas ávidas pelo consumo de carbono,
frequentemente citados como ponto de inflexão para o Antropoceno. Nutridas, mesmo nas
circunstâncias mais adversas, as hortas de escravos não só forneceram comida humana funda-
mental, mas também refúgios para uma biodiversidade de plantas, animais, fungos e tipos de
solos. As hortas de escravos são um mundo pouco explorado, especialmente em comparação
com jardins botânicos imperiais, em termos de dispersão e propagação de uma miríade de
seres. Mover essa geratividade semiótica material ao redor do mundo, para a acumulação
de capital e de lucros – o deslocamento rápido e a reformulação de germoplasma, genomas,
estacas, e todos os outros nomes e formas de pedaços de organismos e plantas, animais e
pessoas desenraizados –, é uma operação de definição do Plantationoceno, do Capitaloceno
e do Antropoceno tomados em conjunto. O Plantationoceno prossegue com crescente fero-
cidade na produção global de carne industrializada, no agronegócio da monocultura, e nas
imensas substituições de florestas multiespecíficas, que sustentam tanto os humanos quanto
os não humanos, por culturas que produzem, por exemplo, óleo de palma. Os participantes
do seminário Ethnos incluíram Noboru Ishikawa (Antropologia, Center for South East Asian
Studies, Kyoto University); Anna Tsing (Antropologia, University of California, Santa Cruz);
Donna Haraway (História da Consciência, University of California, Santa Cruz); Scott F. Gilbert
(Biologia, Swarthmore); Nils Bubandt (Departamento de Cultura e Sociedade, Aarhus Univer-
sity); e Kenneth Olwig (Arquitetura e Paisagismo, Swedish University of Agricultural Sciences).
Gilbert adotou o termo Plantationoceno para argumentos-chave na sua coda para a segunda
edição do livro amplamente utilizado (ver GILBERT; EPEL, 2015).
7. Em comunicação pessoal por e-mail, Jason Moore e Alf Hornborg, no final de 2014, disseram-me
que Malm propôs o termo Capitaloceno em um seminário em Lund, na Suécia, em 2009, quando
ele ainda era um estudante de pós-graduação. Usei pela primeira vez o termo de forma indepen-
dente em palestras públicas a partir de 2012. Moore está editando um livro intitulado Capitalocene
(Oakland CA: PM Press, no prelo), que terá ensaios de Moore, Malm, meu e de Elmar Altvater.
Nossas redes colaborativas aumentaram.
8. [N.T.] No original, a autora utiliza o prefix sym- (ou syn-). Etimologicamente, seu sentido é “ jun-
134 to, conjuntamente”, caso do prefixo sim- (ou sin-) em português.
tudo isso de Chthuluceno – passado, presente e o que está por vir9. Estes espa-
ços-tempos reais e possíveis não foram nomeados após o pesadelo-racista
e misógino do monstro Cthulhu (note diferença na ortografia), do escritor
de ficção científica H. P. Lovecraft, e sim após os diversos poderes e forças
tentaculares de toda a terra e das coisas recolhidas com nomes como Naga,
Gaia, Tangaroa (emerge da plenitude aquática de Papa), Terra, Haniyasu-hime,
Mulher-Aranha, Pachamama, Oya, Gorgo, Raven, A’akuluujjusi e muitas mais.
“Meu” Chthuluceno, mesmo sobrecarregado com seus problemáticos tentáculos
gregos, emaranha-se com uma miríade de temporalidades e espacialidades e
uma miríade de entidades em arranjos intra-ativos, incluindo mais-que-humanos,
outros-que-não-humanos, desumanos e humano-como-húmus (human-ashumus).
Mesmo num texto em inglês-americano como este, Naga, Gaia, Tangaroa, Medusa,
Mulher-Aranha, e todos os seus parentes, são alguns dos muitos mil nomes
próprios para uma linhagem de ficção científica que Lovecraft não poderia ter
imaginado ou abraçado – ou seja, teias de fabulação especulativa, feminismo
especulativo, ficção científica e fatos científicos10. O que importa é que narra-
tivas contam narrativas, e que conceitos pensam conceitos. Matematicamente,
visualmente e narrativamente, é importante pensar que figuras figuram figuras,
que sistemas sistematizam sistemas.
Todos os mil nomes propostos são grandes demais e pequenos demais;
todas as histórias são grandes demais e pequenas demais. Como Jim Clifford me
ensinou, nós precisamos de narrativas (e teorias) que sejam grandes o bastante
(e não mais que isso) para reunir as complexidades e manter as bordas abertas
e ávidas por novas e velhas conexões surpreendentes (CLIFFORD, 2013).
Uma maneira de viver e morrer bem, como seres mortais no Chthuluceno, é
unir forças para reconstituir refúgios, para tornar possível uma parcial e robusta
recuperação e recomposição biológica-cultural-política-tecnológica, que deve
incluir o luto por perdas irreversíveis. Thom van Dooren (2014) e Vinciane Despret
(2013) me ensinaram isso11. Há tantas perdas já, e haverá muitas mais. Esse

9. O sufixo “-ceno” prolifera! Arrisco esta superabundância porque estou no encalço dos signifi-
cados da raiz de “-cene/kainos”, a saber, a temporalidade do “agora” espesso, fibroso e irregular,
que é antiga, mas não é.
10. “Mil Nomes de Gaia/The Thousand Names Of Gaia” foi uma conferência internacional orga-
nizada por Eduardo Viveiros de Castro, Déborah Danowski e seus colaboradores, em setembro
de 2014, no Rio de Janeiro. Algumas em português e algumas em inglês, muitas das palestras da
conferência podem ser assistidas em: <https://www.youtube.com/c/osmilnomesdegaia/videos>.
Minha contribuição sobre o Antropoceno e o Chthuluceno foi feita por Skype, e está disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=1x0oxUHOlA8>.
11. Encontramos importantes ensaios de Vinciane Despret traduzidos para o inglês, ver Angelaki,
v. 20, n. 2, número especial Etologia II: Vinciane Despret, publicado em 2015 e editado por Brett Bu-
chanan, Jeffrey Bussolini e Matthew Chrulew, prefácio de Donna Haraway, intitulado “A Curious
Practice”. 135
renovado florescimento generativo não pode ser criado a partir de mitos de
imortalidade ou do fracasso de nos tornarmos parte dos mortos e extintos. Há
um monte de trabalho para o Orador dos Mortos de Orson Scott Card (1986)
e ainda mais para a reformulação de Ursula Le Guin em Always Coming Home.
Eu sou uma compostista, não uma pós-humanista: somos todos compostos,
adubo, não pós-humanos. O limite que é o Antropoceno/Capitaloceno significa
muitas coisas, incluindo o fato de que a imensa destruição irreversível está
realmente ocorrendo, não só para os 11 bilhões ou mais de pessoas que vão
estar na terra perto do final do século 21, mas também para uma miríade de
outros seres. (O número incompreensível, mas sóbrio, de cerca de 11 bilhões
somente será mantido se as taxas de natalidade de bebês humanos, em todo
o mundo atual, permanecerem baixas; se elas subirem novamente, todas as
apostas caem por terra). “À beira da extinção” não é apenas uma metáfora; e
“colapso de sistema” não é um filme de suspense. Pergunte a qualquer refugiado,
de qualquer espécie.
O Chthuluceno precisa de pelo menos um slogan (certamente, mais do
que um); continuam gritando “Ciborgues para Sobrevivência Terrestre”, “Corra
Rápido, Morda Forte” e “Cale-se e Treine”, eu proponho “Faça Parentes, Não
Bebês!”. Fazer parentes é, talvez, a parte mais difícil e mais urgente do problema.
As feministas do nosso tempo têm sido líderes em desvendar a suposta neces-
sidade natural dos laços entre sexo e gênero, raça e sexo, raça e nação, classe
e raça, gênero e morfologia, sexo e reprodução, e reprodução e composição de
pessoas (nossa dívida aqui especialmente para com os melanésios, em aliança
com Marilyn Strathern (1990) e seus parentes etnógrafos). Se for para existir
uma ecojustiça de multiespécies, que esta também possa abraçar a diversidade
das pessoas. É chegada a hora de as feministas exercerem liderança também na
imaginação, na teoria e na ação, para desfazer ambos os laços: de genealogia/
parentesco e parentes/espécies.
Bactérias e fungos são excelentes para nos dar metáforas, mas, metáforas
à parte (boa sorte com isso!), nós temos um trabalho de mamífero a fazer com
os nossos colaboradores e co-trabalhadores sim-poiéticos, bióticos e abióticos.
Precisamos fazer parentes sim-chthonicamente, sim-poieticamente. Quem e o
que quer que sejamos, precisamos fazer-com – tornar-com, compor-com – os
“terranos” (obrigado por esse termo, Bruno Latour-em-modo anglófono)12. Nós,
pessoas humanas em todos os lugares, devemos abordar as urgências sistêmicas
intensas; no entanto, até agora, como Kim Stanley Robinson (2012) colocou em
2312, estamos vivendo tempos de “Hesitação” (esta narrativa de ficção científica,

12. Ver Bruno Latour, “Facing Gaïa: Six Lecture son the Political Theology of Nature”, Gifford
136 Lectures, 18-28 de fevereiro de 2013.
que vai de 2005 a 2060, é demasiado otimista?), um “estado de agitação incerto”13.
Talvez “A Hesitação” seja um nome mais apropriado do que Antropoceno ou
Capitaloceno! “A Hesitação” será gravada nos estratos rochosos da terra; na
verdade, já está escrita nas camadas mineralizadas da terra. Os sim-ctônicos
não hesitam; eles compõem e se decompõem, práticas tão perigosas quanto
promissoras. O mínimo que se pode dizer é que a hegemonia humana não é
um caso sim-chthonico. Como definem os artistas ecossexuais Beth Stephens
e Annie Sprinkle, a compostagem é tão quente!
Meu propósito é fazer com que “parente” signifique algo diferente, mais
do que entidades ligadas por ancestralidade ou genealogia. O movimento suave
de desfamiliarização pode parecer, por um momento, um erro, mas depois (com
sorte) aparecerá sempre como correto. Fazer parentes é fazer pessoas, não
necessariamente como indivíduos ou como seres humanos. Na Universidade,
fui movida pelos trocadilhos de Shakespeare, kin e kind (parente e gentil em
português) – os mais gentis não eram necessariamente parentes de uma mesma
família; tornar-se parente e tornar-se gentil (como categoria, cuidado, parente
sem laços de nascimento, parentes paralelos, e vários outros ecos) expande
a imaginação e pode mudar a história. Marilyn Strathern me ensinou que os
“parentes”, em inglês britânico, eram originalmente “relações lógicas” e só se
tornaram “membros da família” no século 17. Este, definitivamente, está entre
os factoides que eu amo14. Saia do inglês e os selvagens se multiplicam. Penso
que a extensão e a recomposição da palavra “parente” são permitidas pelo
fato de que todos os terráqueos são parentes, no sentido mais profundo, e já
passaram da hora de começar a cuidar dos tipos-como-arranjos (não espécies
uma por vez). Parentesco é uma palavra que traz em si um arranjo. Todos os
seres compartilham de uma “carne” comum, paralelamente, semioticamente e
genealogicamente. Os antepassados mostram-se estranhos muito interessantes;
parentes são não familiares (fora do que pensávamos ser a família ou os genes),
estranhos, assombrosos, ativos15.
Demais para um pequeno slogan, eu sei! Ainda assim, tente. Nos próximos
dois séculos, ou mais, talvez os seres humanos deste planeta possam ser

13. Esta narrativa de ficção científica extraordinária ganhou o Prêmio Nebula de melhor romance.
14. Ver Strathern (2013). Fazer parentes é uma prática popular em alta, e os novos nomes
também estão proliferando. Veja Lizzie Skurnick, That Should Be a Word (NY: Workman Pu-
blishing, 2015) para “parentinovador” (kinnovator), uma pessoa que cria famílias de formas
não convencionais, à qual acrescento parentinovação (kinnovation). Skurnick também pro-
põe “clãnarquista” (clanarchist). Estas não são apenas palavras; são pistas e estímulos para
sismos na criação de parentes que não estão limitados aos dispositivos da família ocidental,
heteronormativos ou não. Penso que os bebês deveriam ser raros, cuidados, e preciosos; e os
parentes deveriam ser abundantes, inesperados, duradouros e preciosos.
15. “Gens” é outra palavra, de origem patriarcal, que as feministas estão usando. As origens e
os fins não determinam um ao outro. Parentes e gens fazem parte da mesma origem na história 137
novamente dois ou três bilhões, aproximadamente e, nesse tempo, fazer parte
de um bem-estar cada vez maior para os diversos seres humanos e outros seres,
agindo como meios e não apenas como fins. Então, faça parentes, não bebês!
O que importa é como parentes geram parentes16.

das línguas indo-europeias. Para esperançosos momentos comunistas de intra-ação, veja <http://
culanth.org/fieldsights/652-gens-afeminist-manifesto-for-the-study-of-capitalism>, por Laura
Bear, Karen Ho, Anna Tsing e Sylvia Yanagisako. A escrita é talvez demasiado sucinta (embora
esses resumos ajudem), e não há exemplos excitantes nesse Manifesto para atrair o leitor mal
acostumado; mas as referências dão muitos recursos para fazer tudo isso, a maioria etnografias
fruto de trabalhos de longo prazo, com íntimo envolvimento e profundamente teorizadas. Ver
especialmente Anna Tsing (2015). A precisão da abordagem metodológica na “Gens: a Feminist
Manifesto for the Study of Capitalism” está em sua abordagem voltada àqueles pretensos mar-
xistas ou outros teóricos que resistem ao feminismo, e que, portanto, não se envolvem com a
heterogeneidade dos mundos da vida real, mas ficam com categorias como Mercado, Economia,
Financeirização (ou, gostaria de acrescentar, Reprodução, Produção e População, em suma, cate-
gorias supostamente adequadas de economia política socialista liberal e não feminista padrão).
Go, Honolulu’s Revolution Books e todos os seus afins!
16. A minha experiência é que aqueles que me são caros, como “nosso povo”, na esquerda ou qual-
quer nome que ainda possamos usar sem apoplexia, escutam neoimperialismo, neoliberalismo,
misoginia e racismo (quem pode culpá-los?) na parte “não bebês” da frase “Faça parentes, não
bebês”. Nós imaginamos que a parte “Faça parentes” é mais fácil, ética e politicamente situada em
terreno mais firme. Não é verdade! “Faça parentes” e “não bebês” são ambas difíceis; ambas exi-
gem a nossa melhor criatividade emocional, intelectual, artística e política, tanto individual como
coletivamente, através das diferenças ideológicas e regionais, entre outras. Minha sensação é a
de que nosso povo pode ser parcialmente comparado com o negacionismo cristão das mudanças
climáticas: crenças e compromissos são profundos demais para permitir uma revisão do pensar
e do sentir. Ao revisitar o que foi tomado pela direita e pelos profissionais do desenvolvimento
como “explosão populacional”, nosso povo pode se sentir como quem vai para o lado obscuro.
Mas a negação não vai nos servir. Sei que “população” é uma categoria de Estado, o tipo de
“abstração” e de “discurso” que refaz a realidade para todos, mas não para o benefício de todos.
Eu também penso que evidências de muitos tipos, epistemológica e afetivamente comparáveis
às evidências variadas para as rápidas mudanças climáticas, mostram que 7 a 11 bilhões de seres
humanos fazem exigências que não podem ser suportadas sem imensos danos aos seres humanos
e não humanos em todo o mundo. Este não é um assunto simples e casual; a Ecojustiça não tem
uma abordagem de uma única variável possível para os repetidos extermínios, empobrecimentos
e extinções na Terra atualmente. Mas culpar o Capitalismo, o Imperialismo, o Neoliberalismo, a
Modernização, ou algum outro “não nós” pela destruição em curso, pavimentada pelo aumento
populacional, também não vai funcionar. Estas questões exigem um trabalho difícil e incessante;
mas também exigem alegria, disposição e capacidade de resposta para se envolver com os
outros inesperados. Todas as partes dessas questões são importantes demais para a Terra, para
deixarmos nas mãos da direita ou dos profissionais do desenvolvimento, ou de qualquer outra
pessoa do ramo de negócios, como de costume. Aqui é um parentesco-diferente-não-natal e
sem-categoria!
Temos de encontrar maneiras de celebrar as baixas taxas de natalidade e de tomar decisões
íntimas pessoais para criar vidas generosas e que floresçam (incluindo um parentesco inovador e
duradouro), sem fazer mais bebês – urgentemente e especialmente, mas não apenas em regiões,
nações, comunidades, famílias e classes sociais ricas, abastadas e exportadoras de miséria.
Precisamos encorajar a população e outras políticas que envolvem questões demográficas
assustadoras por meio da proliferação de parentes não natais –, incluindo a imigração não
racista, ambiental e políticas de apoio social aos recém-chegados e da mesma forma aos “nativos”
(educação, habitação, saúde, gênero e criatividade sexual, agricultura, pedagogias para nutrir os
seres não humanos, tecnologias e inovações sociais para manter as pessoas mais velhas saudáveis,
produtivas etc.).
O inalienável “direito” (que é uma palavra para uma matéria corporal tão consciente)
pessoal de nascimento ou não de um novo bebê não está em questão para mim; a coerção é
errada em todos os níveis imagináveis neste assunto, e tende a sair pela culatra, em qualquer
138 caso, mesmo que se possa engolir essa lei ou costume coercitivo (eu não posso). Por outro lado,
Referências

BARAD, K. Meeting the Universe Halfway. Durham, UC: Duke University Press, 2007.

CARD, O. S. Speaker for the Dead. New York: Tor Books, 1986.

CLIFFORD, J. Returns: Becoming Indigenous in the Twenty-first Century. Cambridge MA:


Harvard University Press, 2013.

DESPRET, V. Ceux qui insistent. In: DEBAISE, D et al. (dir.). Faire Art comme on fait societé:
les nouveaux commanditaires. Dijon: Le Presses du Réel, 2013.

GILBERT, S.F.; EPEL, D. Ecological Developmental Biology. 2nd ed. USA: Sinauer Associates,
2015.

HAKIM, D. Sex Education in Europe Turns to urging more births. The New York Times,
8/4/2015. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2015/04/09/business/international/
sex-education-in-europe-turns-to-urging-more-births.html>.

LATOUR, B. Facing Gaïa: Six lectures on the political theology of Nature. Gifford Lectures,
18-28 febr. 2013.

MOORE, J. Capitalism in the Web of Life. New York: Verso, 2015.

ROBINSON, K. S. 2312. London: Orbit, 2012.

e se os novos normais se tornassem uma expectativa cultural que cada nova criança pudesse ter
pelo menos três pais comprometidos na vida (que não são necessariamente os casais e que não
gerariam mais novos bebês depois disso, embora possam viver em casas de multicrianças, famílias
multigeracionais)? E se as práticas de adoção efetivas por e para os idosos se tornasse comum?
E se os países que estão preocupados com as baixas taxas de natalidade (Dinamarca, Alemanha,
Japão, Rússia, América branca, entre outros) reconhecessem que o medo dos imigrantes é um
grande problema e que os projetos e fantasias de pureza racial conduzem ao ressurgimento do
pró-natalismo? E se as pessoas, em todos os lugares, procurassem parentescos-inovadores não
natais com indivíduos e coletivos em mundos queer, descoloniais e indígenas, em vez de buscar
nos segmentos ricos e de extração de riqueza europeus, euro-americanos, chineses ou indianos?
É bom lembrar que as fantasias de pureza racial e a recusa em aceitar os imigrantes como
cidadãos plenos realmente conduzem a política agora no mundo “progressivo” e “desenvolvido”.
Ver Hakim (2015). Rusten Hogness escreveu em um post no Facebook em 9 de abril de 2015: “O
que está errado com a nossa imaginação e com a nossa capacidade de olharmos um para o outro
(tanto humanos quanto não humanos), se não podemos encontrar maneiras de abordar questões
levantadas pelos mudanças das distribuições de idade, sem fazer cada vez mais bebês humanos?
Precisamos encontrar maneiras de celebrar as pessoas jovens que decidem não ter filhos, não
adicionar o nacionalismo à já potente mistura de pressões pró-natalidade que existe sobre eles.”
O pró-natalismo, em seus disfarces poderosos, deveria estar em questão em quase toda parte.
Digo “quase” como uma ressalva sobre as consequências de um escândalo em curso com o
genocídio e o deslocamento de povos. O “quase” é também um estímulo para lembrar o uso abusivo
da esterilização na contemporaneidade, o uso de meios contraceptivos surpreendentemente
impróprios e danosos, a redução de mulheres e homens a meras cifras nas velhas e novas políticas
de controle populacional, e outras práticas misóginas, patriarcais e racistas transformadas em
negócio, como se faz em todo mundo. Ver, por exemplo, Wilson (2015).
Precisamos de um grande tempo em que nos apoiamos assumindo riscos uns dos outros, uns com
os outros, sobre todas estas questões. 139
SKURNICK, L. That should be a word. New York: Workman, 2015.

STRATHERN, M. The gender of the gift: problems with women and problems with society in
Melanesia. Oakland CA: University of California Press, 1990.

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hampshire.edu/bitstream/10009/940/1/popdev_differentakes_087.pdf>.

140
por Roberto Romero*

Conforme as evidências se acumulam de que o regime climático planetário expe-


rimenta alterações radicais e irreversíveis, o rótulo de “controvérsia” – até bem
pouco tempo inseparável das manchetes relativas ao aquecimento global – vai
perdendo espaço (e sentido) para as notícias diárias que confirmam sucessivos
recordes nas temperatura médias anuais. A rigor, cada mês tem registrado
temperaturas mais altas que o mesmo mês do ano anterior, e cada ano, médias
mais altas que todos seus antecessores. Para complicar, a velocidade com que
as temperaturas se elevam tem superado, em muito, a capacidade de qualquer
reação política efetiva articular-se até o presente momento. A principal meta
do celebrado “Acordo de Paris”, que estipula o aumento (note-se: o aumento!)
das temperaturas globais em 1,5ºC, já é vista com ceticismo por boa parte
dos cientistas.
Em março de 2015, a concentração de dióxido de carbono na atmosfera –
principal responsável pelo aquecimento do planeta – ultrapassou, igualmente,
o limite de 400 ppm considerado “aceitável” pelos climatologistas para a manu-
tenção do clima em condições minimamente parecidas com aquelas que a espécie
humana conviveu até os dias de hoje. Como consequência direta das emissões
de CO2, as geleiras derretem a passos rápidos e incontroláveis, elevando os
níveis dos oceanos cujas águas, não obstante, apresentam índices alarmantes de
acidificação e desoxigenação – duas graves ameaças à biodiversidade marinha.
A esta paisagem, vêm se somar fenômenos climáticos extremos e cada vez mais
comuns como longos períodos de chuva ou estiagem, nevascas, ciclones, ondas
de frio ou calor, inundações e incêndios florestais. Em várias partes do planeta,

*
Doutorando em Antropologia Social no Museu Nacional (UFRJ). 141
os efeitos de tais alterações já se fazem sentir: diversos territórios arriscam
submergir ou desertificar, populações inteiras se veem forçadas a migrar, a
segurança alimentar está gravemente comprometida e os prejuízos econômicos
são inestimáveis. O balanço, portanto, não poderia deixar de ser pessimista:
caminhamos para uma dramática e acelerada redução da biodiversidade no
planeta e para a vida em um mundo radicalmente diferente do que estivemos
habituados a habitar, além de progressivamente inabitável. Muitos concordam
que já estamos vivendo a Sexta Grande Extinção em massa da história terrestre.
Nada garante que a espécie humana sobreviverá a ela.
Se há, portanto, “controvérsia” quanto às mudanças climáticas, atualmente,
ela diz menos respeito à sua realidade ou origens do que às suas dimensões,
consequências, formas de combate ou mitigação. Discute-se muito mais “o quê”
e “como” fazer do que a necessidade ou não de fazê-lo. No entanto, ainda que a
“controvérsia” inicial pareça resolvida pelo atual consenso científico, nada indica
que as discussões que se desdobram daí sejam mais animadoras. Tudo parece se
passar, ao contrário, como naquela inquietante instalação do artista espanhol
Isaac Cordal, Waiting for climate change, na qual um círculo de homens brancos e
engravatados submerge enquanto eles aparentemente discutem as mudanças
climáticas e as possíveis ações para “mitigá-las”. Os debates, enfim, sobre a
existência ou não do problema podem ter perdido algo do seu fôlego (sempre
haverá um Donald Trump ou um Aldo Rebelo para nos provar o contrário), mas
nada nos permite assumir ou esperar que uma resposta coletiva à altura esteja,
nem por isso, se aproximando. Tudo indica, aliás, que a controvérsia alimentada
especialmente pelos assim chamados “negacionistas” – isto é, aqueles que
insistem ou até bem pouco tempo insistiam em negar as mudanças climáticas
e suas origens – tenha apenas mudado de lugar...
Neste novo cenário, a disputa ganha novos contornos, agentes e direções.
Frente à posição já um tanto insustentável da “negação” pura e simples, é
preciso percorrer terrenos que a demonstração científica consegue com muito
mais dificuldade penetrar. Pois não se trata tanto (pelo menos, não mais) de
descrever ou traçar conexões entre fenômenos, mas de questionar “propostas”
ou “saídas” geralmente apoiadas nas mais avançadas, das mais avançadas das
tecnologias. Assim, se com um pouco de tempo e trabalho um climatólogo
pode bem demonstrar as conexões entre, por exemplo, a queima de combus-
tíveis fósseis e o aumento das temperaturas globais, muito mais difícil é contra-
riar as promessas de uma saída tecno-científica anunciada aos quatro ventos
como o apanágio da “crise” instalada. Simplesmente porque não se trata aí
de convencer os leigos quanto à primazia da “Ciência” sobre a “Fé”, mas de
142
colocar em questão (o que é muito mais delicado) os fundamentos da própria
“Fé” na “Ciência”1.
É nesse ambiente, portanto, que se divisam pelo menos duas atitudes ou
alternativas radicalmente opostas em relação ao “que fazer” diante do Novo
Regime Climático. De um lado, ambientalistas alertam para a necessidade urgente
de se atacar as suas causas, isto é, reduzir drástica e imediatamente as emis-
sões de gases de efeito estufa, renovar a matriz energética mundial, recuperar
áreas degradadas, alterar o modelo socioeconômico vigente, etc. De outro, os
assim chamados “aceleracionistas”2 rejeitam severamente quaisquer medidas
que envolvam alterações radicais no modelo capitalista-industrial hegemô-
nico, projetando (sempre no futuro) soluções técnicas capazes de reverter a
barbárie anunciada.
Humanistas convictos e otimistas declarados, os aceleracionistas defendem
a superioridade técnica da espécie humana face ao que consideram como as
exterioridades negativas produzidas pelo avanço do capitalismo industrial – o
aquecimento global, por exemplo. Diferente dos negacionistas tradicionais,
seus expoentes não costumam questionar o consenso científico em torno
das mudanças climáticas ou da urgência em se endereçá-las. Entendem que
o planeta vive transformações drásticas em seu regime climático, com efeitos
desastrosos caso nenhuma atitude seja tomada. Compartilhando, contudo, o
mesmo diagnóstico, discordam dos ecologistas no que diz respeito, sobretudo,
ao prognóstico. Como sentenciaram dois expoentes da sua versão “ecomoder-
nista”, os americanos Michael Schellenberger e Ted Nordhaus: “nós estamos
convencidos que o moderno ambientalismo com suas concepções infundadas,
conceitos ultrapassados e estratégias exauridas precisa morrer para que algo
novo possa surgir.” (Schellenberger & Nordhaus, 2004, p. 06).
Para estes tecnófilos norte-americanos, o ambientalismo, em suas mais
variadas vertentes, não passa, hoje, de uma forma de obscurantismo, incapaz
de imaginar soluções que não passem por algum tipo de “retorno” a um passado
primitivista ou por palavras de ordem como “redução”, “limites”, “restrição”,
“prevenção” e “regulação”. Num texto programático intitulado The Death of

1. Utilizo “Fé” e “Ciência” com iniciais maiúsculas propositalmente e na esteira da diferencia-


ção proposta por autores como Isabelle Stengers (2015) e Bruno Latour (2013), que opõem as
práticas cientificas ou “a ciência em ação” a um certo discurso maior - a Ciência (com “C” maiús-
culo) – que insiste em associar estas práticas ao monopólio da razão e da verdade.
2. Estou ciente que reúno sob este rótulo vertentes que nem sempre se identificam totalmen-
te entre si ou mesmo como tal, preferindo autodenominações como “ecomodernistas”, “eco-
pragmáticos” ou “singularitanos”. O termo “aceleracionista”, entretanto, me parece propício a
unificá-los na medida em que todos compartilham um mesmo projeto de fundo: a aceleração
da modernidade como solução para a “crise ecológica” atual. Para uma apresentação detalha-
da destas diferentes correntes, ver Danowski e Viveiros de Castro, 2014, pp. 64-78. 143
Environmentalism: global warming politics in a post-environmentalist world (2004),
Schellenberger e Nordhaus criticam, por exemplo, a total incapacidade dos
ambientalistas em convencerem a opinião pública quanto à atual “crise” climá-
tica, além de atacarem neles uma determinada concepção do meio-ambiente
totalmente descolada de qualquer agência humana – donde o apelo por um
mundo pós-ambiental (post-environmental world).
Mais do que isso, acusam a esquerda ecologista de difundir um discurso
de medo e resignação, incapaz, por isso mesmo, de atingir os nobres corações
americanos, mais acostumados ao ritmo triunfante da conquista e da dominação
contra todas as adversidades. Os autores chegam a evocar o “Eu tenho um
sonho”, do célebre discurso de Martin Luther King, sugerindo que as versões
ambientalistas da atual crise climática estariam professando algo como um “Eu
tenho um pesadelo”, incapaz de inspirar “a esperança contra o medo, o amor
contra a injustiça e o poder contra a impotência” (2004, p. 31). Numa versão
expandida do panfleto, publicada sob o título Break Through: from the death of
environmentalism to the politics of possibility (2007), os autores opõem, enfim,
o que chamam de uma “política do limite”, propagada pelos ecologistas, a uma
“política das possibilidades”. Evocando as palavras de Alexis de Tocqueville, os
autores reafirmam que “nos Estados Unidos, não há limites para a inventivi-
dade dos homens em descobrir maneiras de expandir a riqueza e satisfazer as
necessidades do povo” (2007, p. 16). Desse modo, a verdadeira estratégia a
ser adotada, ensinam, é “adentrar os mundos criativos dos mitos e mesmo da
religião, não para melhor vender propostas técnicas e superficiais, mas antes
para descobrir quem somos nós e quem devemos ser.” (2004, p. 34).
Criatividade e proselitismo religioso (além de investimentos vultuosos) de
fato não faltam a Schellenberger e Nodhaus. Os dois são os fundadores do Break
Through Institute, um think tank americano sediado em Oakland, na Califórnia,
cuja missão anunciada no próprio site – ao lado das fotos sorridentes de uma
equipe predominantemente branca – é “ acelerar a transição para um futuro
onde todos os habitantes do mundo possam usufruir de uma vida segura, livre,
próspera, e plena num mundo ecologicamente vibrante”. Um futuro, em suma,
em que tudo será californiano, como ironizaram Deborah Danowski e Eduardo
Viveiros de Castro recentemente (2014, p. 66).
A sessão “acreditamos” do site do Instituto resume bem os fundamentos
teológicos da organização:

Acreditamos que a tecnologia e a modernização estão nos pilares do progresso


humano. Acreditamos que a prosperidade e um mundo ecologicamente vibrante
são não somente possíveis, como inseparáveis. Acreditamos que o mercado é uma
144
força potente de mudança, mas que investimentos governamentais de longo prazo
são necessários para acelerar o progresso tecnológico, o crescimento econômico e
a qualidade do meio-ambiente. (http://thebreakthrough.org/about)

No recente Manifesto Ecomodernista (2015), os autores retomam ainda


algumas destas crenças e acrescentam outras mais, pregando uma versão idílica
do Antropoceno. Críticos do “velho testamento” ambientalista – demasiado
calcado em ideias como “recursos limitados” ou, pior ainda, “desaceleração
econômica” – os autores enaltecem o papel da tecnologia na progressiva liber-
tação dos homens, reconstituindo uma história linear e ascendente marcada
por transições que vão dos caçadores-coletores (expressão que usam sempre
no passado e com indisfarçável desprezo) até o capitalismo neoliberal dos dias
de hoje. A conclusão a que chegam é que só o investimento maciço em tecno-
logia poderá garantir o grande salto – the breakthrough – rumo a um mundo
pós-capitalista e pós-material, onde a humanidade se verá enfim libertada de
quaisquer constrições materiais. No lugar, portanto, de um ambiente desco-
lado da agência humana, somos convidados a admitir a possibilidade inversa e
simétrica de uma humanidade descolada (decoupled) do ambiente ou, melhor
dizendo, de um ambiente totalmente conformável à insuperável e destemida
imaginação técnica humana.
Mas vejamos como estes ecomodernistas concebem, na prática, a solução
dos problemas que ocupam a ordem do dia. Como já ficou claro, em sua opinião,
“sem profundas mudanças tecnológicas não há nenhum caminho válido para
mitigação climática significativa.” (2015, p. 21). Mas, para compreender o que
os autores entendem por “profundas mudanças tecnológicas” é preciso antes
conhecer as promessas de um ambicioso campo de estudos: a geoengenharia.
Numa definição comum, trata-se de “intervenções deliberadas e em larga escala
nos sistemas naturais da Terra para reverter o aquecimento global”3. Suas
promessas concentram-se em duas frentes principais: a “geoengenharia solar”,
que estuda intervenções capazes de refratar os raios do sol que contribuem para
o superaquecimento do planeta e a “geoengenharia do carbono”, que almeja
diminuir a concentração do gás na atmosfera. As técnicas, em ambos os casos,
variam, podendo ser tão simples e óbvias quanto o reflorestamento ou um pouco
mais complexas como a captura de carbono através de máquinas superpotentes
capazes de “sequestrá-lo” no ar e retê-lo em algum lugar no subsolo ou ainda
a alteração da composição química da própria atmosfera com a introdução de
partículas capazes de eliminar o dióxido de carbono acumulado e bloquear os

3. Sobre a geoengenharia: http://www.geoengineering.ox.ac.uk/what-is-geoengineering/


what-is-geoengineering/ 145
raios solares indesejados. Quando os ecomodernistas evocam e louvam a tecno-
logia como passaporte para o futuro estão se referindo, portanto, a soluções
técnicas do porte destas últimas, combinadas, é claro, com a intensificação da
agricultura, da urbanização e do amplo recurso à energia nuclear e hidrelétrica.
Por atraentes que possam parecer – especialmente aos olhos dos nega-
cionistas do clima e de uma indústria que vislumbra aí toda uma nova “oportu-
nidade” – os resultados destas tecnologias são, no mínimo, incertos. Primeiro,
pelo motivo óbvio de que elas visam atingir as consequências e não as causas do
problema, concentrando em reduzir o aquecimento enquanto mantêm relati-
vamente intactas as emissões. Segundo, porque nada garante que as mutações
ecológicas obedeçam às equações simples através das quais suas soluções são
apresentadas. Ao contrário, a intensificação das pesquisas climáticas só têm
reforçado a complexidade dos “sistemas naturais” e a imprevisibilidade/irre-
versibilidade de suas transformações em cadeia. Por fim, a esperança de que
a velocidade dos avanços tecnológicos supere ou mesmo antecipe os efeitos
catastróficos das mudanças climáticas, além de ignorar a realidade das práticas
científicas – sua organização e temporalidade próprias – reafirma justamente
uma ideia que, só aparentemente, os ecomodernistas pareciam dispostos a
rejeitar: a existência de uma “natureza” intocada, inerte e exterior aos homens.
O que os ecomodernistas ignoram solenemente, com isso, é uma das principais
características daquilo o que Isabelle Stengers tem nomeado a “intrusão de Gaia”,
um evento marcado por um tipo de transcendência totalmente indiferente aos
nossos desígnios (ou ao ritmo das pesquisas em geoengenharia). Um ser, em
suma, “implacável”, “surdo às nossas justificativas” contra o qual não se pode
“lutar”, mas apenas “compor com”, “agenciar”, “negociar” (2015, p. 41)... Pois não
temos escolha.
Os argumentos, portanto, que não encaram essa “verdade inconveniente”
são tão frágeis quanto atraentes. Pode ser (e talvez seja mesmo mais provável)
que a “opinião pública” prefira as versões prometeicas ou épicas da história
difundidas por estes profetas californianos. Mas, neste ponto, convém botar
os pés ali mesmo, na Califórnia. É no mínimo notável (para não dizer irônico)
que nem toda a grandeza de espírito, a supremacia técnica ou o pragmatismo
ecomodernistas tenham produzido grandes efeitos no enfrentamento da longa
estiagem, das altas temperaturas ou dos incêndios históricos que vêm acome-
tendo o estado americano nos últimos anos. É verdade que eles talvez estejam
ocupados demais com “o futuro” da humanidade (e só dela) para se inquietarem
com esses probleminhas locais. Veremos (ou não) até quando.
Mas há mais entre ambientalistas e aceleracionistas do que apenas dife-
146 renças radicais quanto aos modos de se pensar e agir. Suas divergências apontam,
igualmente, para dois modos distintos de sentir estas questões. Os primeiros,
diante das evidentes dificuldades em ver a urgência dos seus alarmes mobilizar
a “opinião pública” e os governantes, ao passo em que todos os limites “aceitá-
veis” vão sendo pouco a pouco expandidos ou ultrapassados, se assumem ou
são vistos como “pessimistas”. Os últimos, convictos da supremacia humana (e
norte-americana) frente a todos os problemas e à despeito do que sugerem
as evidências, reivindicam para si o “otimismo”. Os primeiros têm medo. Os
segundos, esperança. Na situação em que nos encontramos e para a qual cami-
nhamos seria urgente indagar as profundas motivações históricas e filosóficas
que tornam imediatamente condenável qualquer convite ao pessimismo e ao
medo, em detrimento do otimismo e da esperança. Numa sensível cartografia
dos afetos que atravessam os debates em torno do Antropoceno, Déborah
Danowski definia a esperança como

(...) sentimento-símbolo da modernidade, expressão de uma visão linear e progres-


sista do tempo, segundo a qual deixamos definitivamente para trás um passado
pré-moderno e nos encaminhamos a um futuro melhor, mais racional, mais livre,
mais democrático; e que, frente às mudanças climáticas, costuma se traduzir na
crença de que, de alguma maneira, apesar de todas as incertezas que nos rondam
(...), conseguiremos manter em seu caminho a flecha do tempo; que, quem sabe,
não precisaremos abandonar nossas conquistas e aquilo que mais prezamos, não
voltaremos para trás. (https://www.youtube.com/watch?v=yENRG9MZJjc)

A esperança é, pois, o sentimento de quem imagina um futuro em grande


medida descolado do presente; um futuro em que sempre haverá a possibilidade
de redenção, seja pela chegada (ou retorno) do Messias, pela Revolução, ou pelo
avanço exponencial da Tecnologia. A esperança é o afeto da transcendência.
Ela permite dizer que “tudo é possível” mas sem qualquer exigência de que se
abram campos de possibilidades. A “política das possibilidades” ecomodernista
é, assim, deleuziana de fachada, porque não assume que o futuro não será, mas
já está sendo; que o futuro não é lá, mas é aqui... Por que, afinal, no horizonte
de possibilidades aceleracionista, o fim da espécie humana nunca é possível ou
pensável? Por que deveríamos, apesar de todos os sinais indicarem o contrário,
acreditar que o futuro será melhor (porque sim!)? Por que todo possível deve
ser necessariamente bom e belo? Vê-se, assim, que a esperança é um cheque
sem fundo, um contrato que se assina sem antes ter lido os seus termos e
condições, uma miragem...
Mas como, diante disso, positivar o medo e o pessimismo? Como aprender
a ter medo sem, nem por isso, recair numa forma generalizada de apatia e
niilismo? Neste ponto, precisamente, conviria nos voltarmos para o exemplo 147
ameríndio, por exemplo4. É conhecida a imagem antropólogica que com enorme
frequência atribui a estes povos (e tantos outros “supersticiosos”, “místicos” e
“mágicos” que habitam o planeta) uma espécie infantil de medo generalizado.
Os índios teriam medo de tudo: dos inimigos, dos feiticeiros, dos espíritos, dos
grandes predadores da floresta, dos brancos, dos mortos, da queda do céu... Um
olhar mais atento, entretanto, logo perceberá que é outro o “medo dos outros”
(Viveiros de Castro, 2011). Em primeiro lugar, porque estas formas do medo,
entre eles, pouco têm a ver com a correlativa necessidade de aniquilação daquilo
que se teme. Mas também porque estão intimamente apoiadas em concepções
inteiramente diversas das relações que constituem os seus mundos, geralmente
fundamentadas por aquele princípio vital traduzido por expressões como “tudo
tem alma”. O ponto, como diversas autoras e autores têm sublinhado, é que
lá, onde “tudo tem alma”, a caça é uma forma da guerra, a doença, uma forma
de agressão, a cozinha, uma espécie de canibalismo e o xamanismo, tradução.
Não há ação sem consequência, nem morte sem vingança. Habitar este mundo
exige, assim, uma atenção constante e um cuidado particular no trato com os
agentes e agências que o povoam. Viver, em suma, exige um verdadeiro esforço
diplomático, um engajamento constante em “cosmopolíticas”.
Nestes mundos, portanto, o “medo” e o “perigo” implicam antes um “cuidado”
generalizado – aquela espécie de “deferência para com o mundo” de que falava
Claude Lévi-Strauss (2006 [1968], p. 460). Como tem insistido Isabelle Stengers,
“(...) quando o assunto que está em jogo é o chamado ‘desenvolvimento’ ou
‘crescimento’, a determinação é, principalmente, não ter cuidado.” (2015, p.
56). Parece sempre mais fácil recuperar ou mitigar os danos do que reverter
ou controlar suas causas. Compreende-se, portanto, o espanto que o ativista
oglala lakota, Russell Means (1980), manifestava diante de uma atitude aparen-
temente tão banal quanto abater um cervo: “Nós oramos nossas gratidões ao
cervo, a nossas relações, por nos permitir sua carne ser comida; os europeus
simplesmente tomam a carne como garantida e consideram o cervo inferior.
Afinal, europeus consideram-se semelhantes a deuses em seu racionalismo e
ciência. Deus é o Ser Supremo; tudo o mais deve ser inferior.”
Tamanha inconsequência preocupa e ocupa diariamente estes povos, pois
eles sabem bem (e temem) as consequências da presença desastrada e desastrosa
dos brancos neste mundo. Os brancos somos, aliás, a imagem mesma da falta
de “etiqueta” para os índios: agressivos, arrogantes, estúpidos, sovinas, falas-
trões, somos “bichos surdos”, como dizia uma mulher kisêdjê numa vídeo-carta

4. Sobre a diferença entre o “modelo” e o “exemplo”, ver a recente conferência de Eduardo


148 Viveiros de Castro, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_PfE54pj1wU.
circulada durante a Rio+205. Ou ainda, como Rosângela de Tugny (2008) ouviu
certa vez de um índio maxakali: “os brancos são como onça: não conversam,
nem esperam, chegam logo atirando”. A diplomacia que os brancos recusam,
entretanto, acaba por exigir um esforço dobrado dos diplomatas indígenas, isto
é, seus xamãs, pajés ou rezadores. Como sempre chama atenção Davi Kopenawa,
é graças aos esforços diplomáticos conduzidos pelos xamãs indígenas que ainda
estamos aqui, sobre a mesma terra, pois, do contrário, o céu já teria desabado
nas nossas cabeças, como já aconteceu outras vezes e, claro, sempre pode
acontecer. Ou ainda, como adverte a opuraheiva (rezadora) guarani, Estela Vera
(2017): “Se não tiver mais reza e rezador, o mundo vai acabar. Tudo vai acabar, os
sinais de que o mundo está acabando já estão aparecendo. Hoje temos menos
rezadores (opuraheiva), chuvas sem limite. Está tudo fora do tempo.”
Kopenawa e Estela sabem bem que as suas palavras (e, através delas, as
dos xapiripë e nandejara) têm muito pouco ou nenhum efeito diante da impres-
sionante surdez e apatia dos brancos. Os brancos não têm medo. Pelo menos,
não das coisas que realmente importam. Por isso, justamente, também não
têm cuidado. Não surpreende, portanto, que o discurso aceleracionista ataque
com tanta frequência a suposta pusilanimidade dos ecologistas, exortando-nos
precisamente a não temer. Como afirmavam Schelleberger e Nodhaus ainda
naquele primeiro artigo: “aqueles dentre nós que prestam tanta atenção nos
ciclos da natureza sabem fazer melhor do que temer a morte (...). Nas palavras
do Tao Ti Ching, ‘se você não teme a morte não há nada que não possa alcançar”
(2004, p. 10). A teologia ecomodernista, de fato, não conhece limites. A isto
chamam “esperança”. Mas a esperança é a última que mata e quem hoje não
tem medo, se viver, terá: “Ao contrário de nós, os brancos não têm medo de
serem esmagados pela queda do céu. Mas um dia eles terão tanto quanto nós
temos!” (Albert e Kopenawa, 2015).

Referências

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Paulo: Companhia das Letras, 2015.

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os medos e os fins. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2014..

5. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FU2O9RNNTx8 149


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1980”. Em: http://radioyande.com/default.php?pagina=blog.php&site_id=975&pagina_
id=21862&tipo=post&post_id=615

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VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “O medo dos outros”. São Paulo, Revista de Antropologia,
vol 54, n. 2, 2011, pp. 885-917.

150
por Raymonde Carasco
tradução: Frederico Sabino

Partiram de manhã, avançando, enquanto os índios preparavam seus cavalos. Os


jumentos, durante a noite, haviam fugido. Permaneciam desaparecidos. Simão,
o filho do xamã-Raspador saiu à procura deles.
Acima do estreito vale del Arroyo a ladeira era abrupta. A floresta devastada
não oferecia nada além das suas pedras e a poeira fina das erosões: 8 anos de
seca seguidos por recentes chuvas de verão violentas e raras. Mas com muita
água! A floresta renascia, havia captado toda a água, ávida. Os raros madronios
renasciam em arbustos, seus frutos vermelhos em flores ornamentais, a cor
vermelha escura tão característica da árvore preciosa, sua madeira dura, sua casca
luzente se ramificavam, se multiplicavam, se espalhavam sob o sol, aguardando
chuvas favoráveis para lançar sofisticados troncos rumo ao céu.
No entanto, passada meia-hora de caminhada – a ladeira, arriscada subida –,
eles cuidavam de assinalar a indicada bifurcação da esquerda, la izquierda: à
direita, um caminho estreito semelhante conduzia ao outro lado da montanha
rumo à casa de Glória, o Mestre-xamã que iniciou o Raspador Ceverico. Fizeram,
havia dois anos, o percurso para as Cuevas de Glória, o local do Iniciador, guiados
pelo Raspador. Lá já havia um pequeno amontoado, piramidal, de pedras-signo:
bastava juntar uma pedra ao conjunto.
O restante, havia dito Ceverico, era pura faldita: ladeira pequena, flanco da
montanha. O mais difícil passou. Em seguida, começaria a reta simples da crista.
No entanto, a pura faldita, a ladeira suave a meio-caminho provava ser
de pura piedra, as pedras em lascas invadiam as trilhas apagadas pela seca, (el

* Texto extraído dos diários escritos por Raymonde Carasco ao longo das suas viagens para o
país dos Tarahumaras nas montanhas de Norogachic ao norte do México. Esses diários foram
reunidos por Régis Hébraud e publicados postumamente em Dans le bleu du ciel. Au pays des
Tarahumaras 1976-2001, Editions François Bourin 2014. O texto extraído segue da página 508 a 516. 151
agua) a água das tempestades, a passagem rara dos homens – dos animais, diz
em seguida Simão.
Foram reparadas pelos homens a cavalo um pouco antes da reta da crista,
onde não tinha mais como se perder. Ali existia, cortando o trajeto dos cavalos,
a chamada la route de Pahuichic, desde há muito inutilizada, resto de um tempo
em que a floresta foi explorada de modo ultrajante, destituída dos seus pinheiros,
enquanto que los encines, os carvalhos ainda tentavam resistir, verdes e brilhantes,
um pouco após as chuvas relativamente miraculosas do verão. A exploração
ultrajante datava de quarenta anos (os anos sessenta) e, desde então, nada
havia sido replantado.
Os dois homens a cavalo eram o próprio Raspador e seu irmão Felipe, seu
segundo, conforme os termos dele: aprendiz Raspador do seu primogênito, tendo
cumprido todos os ritos de iniciação, inclusive o último, a busca pelo peiote a
500km. De lá, através da passagem do Rio Concho e seus lugares enumerados
pelo canto da sua linhagem iniciática: Glória – Ceverico – Felipe amanhã, mas
somente no caso das pessoas solicitarem seus serviços como Raspador do Jíkuli.
Simão continuava em busca dos jumentos fugidos. Ele acharia outros caso
não encontrasse os que fugiram e chegaria a Cowerachi nos locais do rito do
peiote, onde a curación aconteceria durante a noite, por la tarde. Estava encar-
regado de levar o material cinema, pesado, além de trazer a carne e outras
oferendas do Jíkuli. Dois a três jumentos.
Seguindo os dois cavalos do velho homem e do seu irmão sempre sobre a
reta da crista o caminho se tornava fácil. O trote arrítmico, simples, dos cavalos
era curiosamente atenuado para a caminhada. Bastava adotar o ritmo fluído dos
animais afim de andar sem se cansar, a paisagem descortinada. Simplesmente
isso: não perder o trote ligeiro.
O desafio, bem sabíamos, seria a descida (e, inevitavelmente, a nova subida)
rumo a el Arroyo, o riacho do rochoso vale estreito que leva rumo à poça d’água,
paragem de homens e cavalos.
Ela se lembrava dessa paragem, há quase dez anos, com os dois cowboys
vaqueiros que vinham em sentido inverso, de Norogachic a Pahuichic e Nararachic.
Embaixo, a descida efetuada, o vale estava seco, sem uma gota d’água no
arroyo estalado. Ninguém havia trazido consigo uma única gota d’água. Ceverico
indicou o lugar do buraco com água. Ali beberam. Fizeram um pinole. Bastava,
à direita, disseram, pegar um fio d’água. A poça estava repleta de mosquitos.
O fio d’água inexistia. Ela refrescou os lábios, pousou a mão na água por um
tempo, sem beber uma única gota (ni una gotita). A nova subida foi terrível,
pernas quebradas, extenuante. Caminha-se mais de duas horas, transpirando
152 subidas em meio ao vento, sob o sol. A descida íngreme e arriscada rumo à
paragem tinha endurecido os músculos. Perde-se o ritmo dos animais, fazendo
confiança a Felipe, o ayudante de Ceverico, que os tinha encontrado a pé sobre
a reta da crista, a preocupação de lhes indicar mais ou menos o caminho. O
ayudante Felipe, já velho (mais de sessenta anos), dançarino, ágil, muito vivo,
sem nenhum peso (o segredo da caminhada dos Tarahumaras), caminhava recio
(muito rapidamente), corria no vento, pernas nuas sob sua tagora, incansável,
pequena silhueta magra, ser da Sierra mais que humana, seguindo suas próprias
velocidades, de longe em longe os esperava, fazia um sinal.
Sempre o sol e o vento.
As pedras.
Os caminhos que nenhum homem praticava mais.
Somente os loucos...
À maneira deles, eram desse tipo. E o ayudante talvez nunca tenha
pertencido à raça dos homens. Nem gentil nem malévolo na incrível energia
que colocava em cada um dos seus atos, animado pela força eficaz que o faz
entreter um fogo todas as noites durante ritos mortais, dançar, colocar em
cena sem descanso todas as fases do Jíkuli, desperto, único capaz de vigília
enquanto todos os outros, Ceverico e assistentes, pedido de curación incluso,
se abandonavam ao frio e ao sono. Uma energia diabólica, sobre-humana, que o
tornava indispensável.
Ela perdia terreno a cada vez, exausta pela falta d’água, sonhava com uma
gota, uma minúscula gota de água. Imaginava paisagens com água, fontes. O
mar? Não, não se pode beber a água do mar. Lembrava-se dos desertos, as aves
de rapina, os westerns.
Dois pequenos frascos de lágrimas artificiais achados nos seus bolsos,
minúsculos: a sensação da água, enfim, uma gota de água na boca lhe dá
força para continuar tal qual uma mamada humana, divina. Ela renasce.
Renasce-se.
Logo o vale se descortina, as casas penduradas na encosta. Uma árvore
verde clara, um chorão de folhagem singela, uma macieira. Restava uma maçã
na macieira. Não se podia pegar maçã, era o fim da colheita. Pedia-se água. As
casas estavam fechadas. Somente uma frágil choupana, ao longe. Era preciso
continuar. Sem perder tempo.
Não era Pahuichic, o vilarejo ficava mais longe, do outro lado da floresta.
Era preciso novamente subir rumo à floresta. Ela estava cada vez mais exausta.
Régis, à frente, captando os sinais mais e mais distanciados do ayudante.
A floresta se tornava bela.
Logo o ayudante parou com os sinais. Seguia ainda mais rápido atraído pelo
tezguino, a (dupla) necessidade de beber: água e álcool. 153
Quando as casas apareceram (uma casa com pessoas reunidas para uma
tezguinada), não se via mais o ayudante fazia um bom tempo. O caminho pelo
vale estava visível, reconhecia-se o caminho.
Havia pessoas, o vilarejo e sua igreja no aberto do vale: Pahuichic, enfim.
Nenhum homem a cavalo, nem tão pouco o ayudante. As pessoas da tezguinada
dão sinal de se aproximar, de os colocar entre os seus. O vilarejo está deserto.
Uma escola. Uma igreja. Largos espaços públicos. Uma série de pequenas habi-
tações individuais em torno da igreja conforme uma arquitetura que parece
antiga, um lugar jesuíta, talvez.
Uma pequena tienda, um homem amável. Agua corrente, uma torneira
d’água diante da vendinha.
Eles bebiam. Ela bebe, fresca, fria, própria, clara. A água. Agua. Nenhuma
vontade de comer. Somente água, somente água.
O homem sabe que há uma festa. Ceverico, o Raspador deve vir. Trata-se
de festa grande. Ele lhes dá o nome do lugar: o rancho se chama Cowerachi.
Não há como se enganar. Seguir o Río, o arroyo, a antiga rota de Pahuichic em
Norogachic: es puro camino.
Eles seguem o caminho indicado. Dois jovens índios, a cavalo. Eles parecem
admirados com a presença dos estrangeiros. Eles dizem ter vindo ao encontro
deles para indicar o caminho, no aguardo das suas perguntas. Eles se colocariam
ao lado sem dizer nada, caso os estrangeiros não lhes fizessem nenhuma pergunta
a respeito de caminhos, pessoas. Eles estão ali para isso, se colocariam ao lado
como se os estrangeiros fossem invisíveis. “Eles estão mais distantes”. Fazem
um gesto para trás. Permanecer longe no rumo do trajeto deles.
Um grupo de homens ainda mais distantes, em breve. Ceverico, Felipe
seu irmão, o ayudante, um velho homem e alguns outros, em círculo, bebendo
há algum tempo.
Eles ficam ali. Há algum tempo. Bebem e comem. Os copos de tezguino.
Homens trazem latões de liquido branco. Escuta-se, acolhe-se o Raspador e seus
homens ao abrigo do riacho. Ainda bebem, demoradamente. Oferece-se bebida
aos estrangeiros. Os homens continuam a beber. O velho homem Tarahumara,
anfitrião da Fiesta-curación (el Fiestero) está encarregado de acompanhar os estran-
geiros aos seus locais. Partem antes. Os outros permanecem esvaziando os latões.
O velho os guia em zigzag de uma margem à outra do Río. As falhas dos
rochedos são impressionantes à noite. Uma paisagem alucinante. O sol em breve
cai. Ainda não são nem 5 horas da tarde. O homem os guia continuamente, os
ultrapassa, com seu singular passo cambaleante, uma queda contida, rápida e
portanto precisa. Sobre a ponta dos dedos, sempre, inclinado para frente, pés
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nus sobre os huaraches, essas solas com tiras; não para nunca, segue seu rumo
– queda – dança: camino recio.
Andar – dançar – correr – cair – andar...
Continuam sozinhos percorrendo o caminho deles, seguindo o trajeto
em zigzag de uma margem à outra do Río, conforme os vaus de pedra. Logo
um lugar espaçoso, campos de milho secos, habitações no flanco do rochedo.
Pessoas. Jovens.
Gritos: “Cholo?” – “No es cholo! Es mujer!” – “Cholo!”
Um rapaz vem à frente, os conduz até a casa do homem velho, o homem
do passo cambaleante. As casas são belas, inseridas nos rochedos, suas escul-
turas. São em madeira, inscritas nas esculturas das pedras. O rapaz trabalha
a madeira como seu pai. Afilhado do músico Clemente de Norogachic: “Mi
padrinho!”. Eles apertam as mãos dos estrangeiros. Não são mais estrangeiros
devido à coincidência.
Um fogo se prepara no círculo, lá bem longe da casa no vale estonteante,
capins ruivos, noite por vir. Eles se lançam no círculo do Jíkuli.
Simão chegou à noite, por volta das 9 horas. Não achou os jumentos, foi
pedir emprestado em outro lugar.
“Tem muita gente”. Cerimoniosamente, de pé diante deles, Ceverico pede
aos estrangeiros para deixar o círculo, ir para perto de Simão, em torno de
outro fogo. Há bêbados em busca de presença humana, meio agressivos, meio
grudentos contra el cholo.
O ayudante cria uma mise en scène pedagógica espantosa. Mulheres convo-
cadas para ir fazer xixi após quatro voltas e quatro signos da cruz diante das
oferendas à esquerda; homens após três voltas e três signos da cruz à direita.
A clareza das diferentes fases, as pessoas concentradas, atentas, obedientes.
Como um reaprendizado, uma reatualização de certo rigor esquecido. Trata-se de
um rito admirável, conduzido conforme todas as regras, diante dos assistentes
petrificados por tanto rigor.
Simão se distancia do círculo-fogo dos bêbados, prepara uma cama de
forragem ao abrigo do vento, perto dos cavalos, dorme a noite toda. O círculo
dos bêbados, dos agressivos, das pessoas de afuera, tem seu papel no Fora.
Vem-se, durante os intervalos do ritual, oferecer bebida às pessoas desse círculo
de fora.
Os que servem tezguino cumprem suas funções, necessariamente, sem
distinção de sexo, idade, religião, álcool ou não. Consome-se o tezguino, diante
de Deus e dos homens: 700 litros, a cifra tendo sido fixada na véspera. Os
viciados em tezguino são acordados e bebem até perderem a sede, transbor-
darem, recusarem, para além do desejo deles, da possibilidade deles beberem. 155
O álcool contra o álcool. Acorda-se Simão aos sobressaltos, lhe oferecem a
beber, necessariamente.
Na aurora, a dança da raspa: a fila das mulheres à direita, a dos homens à
esquerda. O ayudante conduz a dança. Ela dança com eles.
A tomada do Jíkuli, os ritos de purificação, a limpia. As oferendas são
suntuosas – e pesadas. Partilhadas. Três jumentos não bastam. Apenas uma
coxa do touro ocupa um jumento. É preciso carregar o material cinema sobre
as costas.
Chegou o dia. Repartimos. O caminho será longo. A vinda pontuou etapas.
O retorno levará em conta o cansaço da noite anterior sem dormir. Partem
sozinhos, na frente.
O vento se levanta. E o frio. Um vento glacial sobre a crista. Um pouco de
chuva. O cansaço.
Então as pedras do caminho se põem a olhar. Em breve verdes, sulfurosas.
E essas pequenas pedras lisas, frágeis, quebradiças, de um amarelo-verde sulfu-
roso, uma cor jamais vista na vinda, após a ferida amarelo-laranja de um pinheiro
imenso, casca de muitos metros retirada para se obter algum sangramento de
resina. Arvore vista, de repente, na contramão do caminho.
Essas pequenas pedras lisas, inscritas de grafites pretos, tendo assimilado
as impressões dos capins, signos, pequenas máscaras com dois furos de sombra
a te olhar, cabeças da morte a te olhar também, todas as pedras registradas,
vistas, múltiplas, uma multiplicidade de pedras, todas diferentes, cada uma com
sua própria singularidade, a todas você vê, em sobrevoo, de passagem, cada
uma sendo registrada pela atenção do caminho.
Nunca antes vistas. Nunca antes vistas essas cores.
Um delírio, uma infinidade de pedras, sem fim. Um delírio-pedra.
Ela não bebeu tezguino, não bebeu peiote no ritual. Nenhuma sensação
de febre. E, no entanto, tudo isso ao mesmo tempo: um delírio, uma febre, a
alucinante visão do real.
Ela vai ao chão. O aparelho fotográfico que carrega dá um salto. As palmas
das mãos contiveram a queda. Ela não sentiu que caía.
O vento glacial atravessa as costas. O ayudante veio pedir dinheiro, seu
pagamento – Você me paga? Sempre muito rápido, ele chega empurrado pelo
vento, sua ganância. – Não tenho nenhum dinheiro aqui. Veja com Régis, mais
à frente. – Você está cansada? (Ele vê) – Sim, muito cansada.
Ele acertou com Régis. Restabelece seus modos habituais, ao menos no
discurso. Comerciante. Ávido (tequila?). De toda maneira, ele havia permanecido
sóbrio durante a noite e feito um bom trabalho. Ayudante de Ciguri, Jíkuli, o
156 antigo deus, benigno-maligno perante os homens.
Ele partiu, dinheiro no bolso, em meio ao vento. Não voltaremos a vê-lo mais.
Ela pensa que o homem, levado pelo vento de Jíkuli, o vento ruim que o
leva, el aire, não foi benigno. Se há feitiço, um feitiço ruim foi lançado. Se ele
está entre os que acreditam, deve-se à dupla natureza de Jíkuli, mais próximo
do hechicero que do Raspador. Indiferente às trocas do bem e do mal. Fascinado
pelo lado mal do poder e, no entanto, bem intencionado, tecnicamente, o lado
preciso do trabalho, que ele sabe fazer e faz. Dançarino, regente, pragmático,
prático, executor fiel, que sabe fazer tanto o bem quanto o mal, preferindo o
ato claro, a eficácia do olho gordo, do hechicero ao Homem de bem. O oposto
de Ceverico, seu amigo, seu rival, com quem forma uma dupla dinâmica insepa-
rável, inesquecível. Traidor, ao ponto de desejar amorosamente a morte do seu
amigo, matar seu rival. Algo de Iago, cujo problema é o poder (el poder de ver).

***

No entanto, ele partiu, dinheiro no bolso, batendo asas, mais rápido que
o vento. Jíkuli le llevó.
Não tenha medo.
Ele fez uma aliança com esse aspecto de Jíkuli.

***

Quando, ao retornar, ela fará o relato dessa história, ela estabelecerá


a hipótese de um feitiço ruim, desse feitiço lançado, e a olhadela rápida do
homem era aquela de um entendimento. Espécie de cumplicidade. Ele sabe.
Ele sabe que ela sabe.

***

Ela está fora de si.

***
É com essa sensação que ela segue seu caminho. Nesse saber que o vento
exacerba. O vento frio atravessando as costas, as primeiras gotas de chuva, a
necessidade de se apressar ao mesmo tempo em que a paisagem se torna
estranha, absolutamente nova, como vista pela primeira vez.
A ferida laranja do pinheiro imenso tão raro na floresta devastada. Ela o havia
visto essa manhã, era um dos signos do caminho. “Inútil”, diz Régis pela manhã,
quando ela lhe aponta esse sinal, o sinal da pedra no caminho logo atrás. Ela
observa essa anomalia, confidencia a Régis que se volta resoluto para a direita.
A cor inacreditável dos grandes rochedos azuis, musgos, verde-azul inscrito
na pedra. E todas essas pequenas pedras planas, lisas, quebradiças, em inscri-
ções incongruentes que é preciso olhar para não cair, cambalear, aplanar-se (o 157
que ela faz), levantar-se, continuar, continuar, enquanto a paisagem bulindo
pedras aparece desaparece, fluxo contínuo de pedras, paisagem indecisa sobre
as margens pois estendida pelas laterais, obsessão de um campo visual fixado
no solo. Não se pode parar. A chuva vai acabar, assim como o frio. Em breve a
descida, a chegada. E, mesmo se ela não reconhece nada, se as pedras planas
e lisas, verde-amarelas, os grandes rochedos azul verde são absolutamente
novos – o estranho estado de acuidade visual, que distingue cada uma das pedras,
vistas e esquecidas com a mesma intensidade, cada forma, cara irrupção, esse
trabalho extenuante da atenção que dispensa maiores questionamentos que
não seja a total lucidez desse estado de cansaço...
Ela cai nesse estado desconhecido, pela primeira vez experimentado. Todas
as forças estão concentradas, a lucidez, a agudeza da visão são extremas, estado
flutuante e crítico, estado outro.
Desce-se. Isso desce. Sempre essas pedras planas singulares, esses signos
que a olham. Quando ela vê muitas vezes cabeças da morta, ela pensa na magia, no
feitiço, e na impossibilidade de todas essas pedras terem uma figura. Ela não está
com febre. Como um delírio, uma febre, embriaguez. Ela não conhece os sintomas
da desidratação. Ela luta passo a passo, pedra a pedra contra o esgotamento.
Desce-se. Isso desce. É bom sinal. Es pura faldita. Régis, contente: “É o
signo da pedra desta manhã. Estamos a ½ hora. Isso desce. Chegaremos em
vinte minutos.” A pirâmide de pedras está ali, a bifurcação do caminho para
Glória à direita, o caminho correto para Tecochi à esquerda. Ela reúne forças.
No entanto, a descida é particularmente íngreme, arriscada. Muito mais que a
subida. E os vinte minutos anunciados não coincide com o reconhecimento do
caminho. Ao contrário. O espaço se dilata. A paisagem se abre: um vale amplo
de capins ruivos no cair do dia, um Río, rochedos-esculturas por vezes conhe-
cidos por vezes desconhecidos, um conjunto de signos e “irreconhecimentos”
(irreconnaissables). Reconhece-se os elementos da paisagem numa paisagem,
um conjunto inteiramente novo.
Nós nos perdemos. Apesar da bifurcação-signo. Não desembocamos no
vale áspero e estreito da casa de Ceverico. Régis: “Eu sei, é o vale atrás da casa,
do outro lado, antes de Ceverico, onde ficam os desenho dos Apaches”.
Estamos numa planície suntuosa, de amplos rochedos de arenito espantoso,
majestoso, grutas, tudo é rocha, matéria única, cinza e verde, enquanto o roxo
do vale à frente espalha o luxo da sua amplitude.
Olho para baixo. Vejo as grutas de Glória. Estamos acima das grutas de
Glória! Veja! É a gruta dos Apaches... Estamos diante dela. Lembra o vale após
a gruta dos Apaches, veja! Não, diz Régis.
158
À direita, uma gruta estranha, abrigada, sofisticada, a única habitada em
meio a essa área de rochedos desertos. Régis pergunta ao homem que a habita
aonde fica Tecochi? Arriba!, diz o homem, numa única palavra. Régis entende
mais longe, por ali, onde se vê uma embocadura sobre os rochedos à direita.
Pode ser que seja mais alto. Para o alto. No alto.
Nada de novo nessa paisagem desconhecida à direita. O mesmo ponto de
vista dessa planície de pura pedra, descendo abruptamente rumo ao vale amplo.
Nada que poderia lembrar, anunciar, o escarpado abrupto, escuro de Tecochi.
O vale que se apresenta é impressionante. E a escultura do rochedo que se
desenha adiante na calma e na transparência do ar é uma cabeça animalesca,
estranhamente reconhecível-irreconhecível. Todos os vales, de repente, se
tornam semelhantes. Vale da gruta dos Apaches? Saliência acima de Cecochi?
Não, não é essa.
Régis se desespera. Voltamos a subir, Arriba. A paisagem de pedras planas
imensas sempre muito belas. De repente, Régis grita: “As grutas de Glória!”.
Estamos acima das grutas de Glória, sem nenhuma dúvida, ali onde estávamos
há pouco logo após aquele grande círculo sobre a planície rochosa; de retorno
ao ponto de partida.
O signo da pirâmide de pedras havia se invertido: o que apontava para
o caminho da esquerda se referia ao outro caminho da direita. O caminho de
Glória, no outro falda da montanha. E a estranha paisagem da gruta dos Apaches
estava sob um ponto de vista nunca antes praticado nas planícies acima das
grutas de Glória.
O signo que deveria nos fazer achar o caminho fez com que nos perdês-
semos. Direita e esquerda invertidas! Nós chegamos pelo caminho da esquerda
na outra vertente.
Conhecemos o caminho que segue das grutas de Glória até a gruta dos
Apaches, a estranha confluência dos vales, o Arroyo das grutas de Glória se
lançando no Río d’Aguas Calientes, a interseção entre os caminhos seguidos
pelos caçadores de ouro e esse lugar magnífico dos Apaches dominando desde
o ninho de águia deles, a fortaleza deles, os dois trajetos possíveis.
Régis decide passar pelos Ríos e não mais subir Arriba para descer rumo a
Tecochi. Abdicando das falésias que sabemos perigosas, optamos pela via abaixo
que se estende ao longo dos Ríos conhecidos por nós. A luz diminui. O trajeto
é mais longo que na memória. Como sempre aqui é preciso passar em zigzag
de uma beira a outra; os rochedos, falésias a pique, grutas que interrompem
as margens. No cair da noite, as grutas abismadas, embocaduras de sombras,
elas também te olham.
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Aqui a estranha paisagem diante da qual gostaríamos de parar se enfileiram
num Sueño. A imprecisão das formas se evidencia com o cair da noite. Estamos
em lugares fantásticos, irreais, que te olham, te chamam, ao mesmo tempo
em que é preciso avançar, apressar-se, arrancar-se desse fascínio das imagens.
Pois as grutas, os lugares são imagens, tornam-se ilustrações de um conto,
de uma história, para as quais se olha petrificado.
A terra é uma estranha mistura de doçura (os capins ruivos, a poeira do
sedimento tão fino, o olhar do vazio das grutas, amplas, na beira da água) e de
terror (o lado altivo das grutas-fortalezas dos Apaches inquietante quando se
está lá embaixo. Olhares que te olham sem ser vistos). Demora passar o anfiteatro
da fachada das Grutas dos Apaches. É longo, muito longo. Sente-se, ainda hoje,
de tal forma expostos, desprovidos, a mercê dessas forças antigas, dos espíritos.

“Esses pássaros que saem ao cair da noite de grutas muito altas e que são signos de
assombração”, nos diria sem a menor sombra de dúvida Felipe, o irmão tão racional
de Ceverico, “no dia seguinte, o sangue escorre dos ouvidos, em três dias você está
morto. Não se pode fazer nada”.

O zigzag no cair da noite sobre o Río é mais difícil ainda. O Río é mais amplo
e profundo que o arroyo. Há buracos profundos de água perto dos rochedos. E os
vaus de pedras mais perigosos, a diferença entre pedras agudas e pedras planas
se apaga. No entanto, o sedimento e a areia claros tornam as margens visíveis.
O abrupto, repentino, da falésia. Não se pode mais passar.
De um lado, um vau de pedras conduzindo a um buraco com água. Do
outro, a falésia em pique sobre o buraco d’água escuro. O rochedo é úmido,
verde, deslizante. Alguns entalhes praticados pelos Tarahumaras.
Por duas vezes, ela tenta atravessar os vaus antes de contornar o obstáculo
do rochedo-buraco d’água. A passagem arriscada acima do buraco d’água sobre
o rochedo deslizante com entalhes pequenos para ela. Um verdadeiro declive.
Desespero de Régis, no outro lado.
Visão lúcida do perigo: medo do frio, apática. Ela não pode atravessar esse
rochedo sem romper o crânio na direção do buraco d’água.
A passagem, enfim, graças às lanternas.
Momento louco. Loucura fria. Apatia singular (loucura? Limite extremo).
Ela passa.
O retorno, enfim, ao longo do rio. Paz dos caminhos de sedimento, traçados
retos entre os campos de milho. Doçura da terra tão fina e branca.
A árvore sob a qual aguardamos os corredores fazem dois anos. Bom
presságio.
160
por Frederico Sabino*

para Júnia, Carla e Glaura

– Ainda interessado por filmes?


– Cada vez menos. Não mais como antes.
– Por que?
– Com o passar do tempo, percebe-se que a maior parte dos filmes se
interessa apenas por si mesmo. Não veem nada além da figura humana. Como
se o universo girasse em torno dos nossos dramas ou das nossas conquistas.
– Isso quer dizer que a humanidade não te comove mais?
– Isso quer dizer que questiono se, algum dia, fomos realmente humanos.
– Não entendi.
– Você nunca pensou que, ao invés de humano, pudesse vir a ser um deserto?
– Do que você está falando?
– Também não sei direito. Mas imagina uma floresta à noite. O silêncio que
faz. Ouve-se apenas o som dos grilos, mosquitos, sapos. Cada mínimo ruído da
mata logo lança o alerta sobre quem possa estar vindo. Tudo escuro, cheio de
vultos. Por vezes, passa um morcego mais escuro ainda. Impossível fazer fogo
apenas com pedras e gravetos úmidos. Tudo ao redor te olhando sem você
nunca enxergar quem te olha. Se me encontrasse em meio a um breu seme-
lhante, talvez em algum momento considerasse seriamente a possibilidade de
também ser somente mais outro vulto da noite escura.
– Você então reclama por um cinema de vultos?
– Apenas sugerindo ser talvez o risco do sonho mais desafiador que o risco
do real.
– Realmente, diria que você está sonhando. Mas nisso você tem razão: a
maioria esmagadora dos filmes enquadra a figura humana no centro do plano.

* Formado em Jornalismo e Letras, tem mestrado em grego antigo pela UFMG e pela Universi-
dade de Lausanne (Suíça). Integra a Associação Filmes de Quintal desde 2006. 161
Mesmo quando se filma animais e paisagens, quase nunca se assume o
tempo distendido – ou mesmo a falta de tempo – do mundo selvagem. Tão
logo se vê um dos seus singulares representantes corta-se o plano, muda-se
o campo de visão e imprime-se à imagem um ritmo acelerado que se adequa
melhor ao nosso próprio estilo de vida apressado.
– Sem falar nos locutores de vozes impostadas que insistem em traduzir
na linguagem humana mais pomposa aquilo que se pressente apenas com o
corpo: os silêncios do mundo selvagem.
– Mas você conhece algum filme que mostre o mundo mais que humano?
– Gosto bastante dos filmes do Peter Hutton, um realizador americano de
Detroit. Faleceu recentemente. Quando jovem, bancou a escola de arte traba-
lhando como marinheiro. Passava muitas horas vigiando o horizonte do navio.
Numa noite enquanto navegava pelo Oceano Índico rumo ao Golfo Pérsico, uma
tempestade se formou sem que ele a tenha previsto. Encontrava-se na proa do
navio. Eram mais ou menos três horas da manhã. Estava tudo escuro. Não se via
nenhuma estrela no céu encoberto por nuvens carregadas. De repente, sentiu
a mudança na temperatura. Começou a ficar muito frio e a noite escureceu
ainda mais. Parecia uma mistura de tintas. Foi quando descobriu diferentes
tonalidades do escuro sobre as quais nunca havia pensado. Logo em seguida,
veio a tempestade. O mar começou a se agitar. Nesse instante, gritaram dando
ordem pra se abrigar na cabine. Quando virou as costas, uma onda gigantesca
quase o lançou pra fora do navio. Depois continuou observando a tempestade da
cabine. Não demorou muito, parou de chover, o mar se acalmou, a temperatura
voltou a esquentar e a luz se tornou cada vez mais clara com os primeiros sinais
do amanhecer. Essa experiência o marcou profundamente. Seus anos de mari-
nheiro o fizeram assimilar um tempo mais lento que permitia olhar a paisagem
demoradamente. Anos depois, fotografou pra vários realizadores como Robert
Gardner, Ken Burns e Lizzie Borden. Mas as paisagens sempre foram sua grande
obsessão. De 1970 a 2013, realizou um total de dezoito estudos autorais de
paisagens silenciosas. Muitas vezes, o fez de alguma embarcação. Time and Tide,
por exemplo, é primoroso. Gravou no ano 2000. Tem pouco mais de meia-hora.
É seu segundo estudo do Rio Hudson, que realizou quatro anos após Study of a
River filmado no mesmo Hudson, às margens do qual também morava. Realizou
Time and Tide a bordo do rebocador Gotham, enquanto este subia e descia o
Rio Hudson rebocando o cargueiro Noel Cutier que, por sua vez, transportava
35 mil tonéis de gasolina. Como em todos os seus filmes, não se ouve nenhum
único ruído. Essa opção pelo silêncio e pelas imagens de paisagens vistas em
geral de um navio lhe rendeu a fama de fazer filmes bons pra dormir. Hutton
concordava. Não considerava seus filmes importantes pra história do cinema.
162
Dizia que lhes faltavam grandes conceitos. Seus espectadores eram basica-
mente apreciadores da natureza ou pessoas interessadas em fazer estudos
de momentos visuais paisagísticos. Você sabe, todas as pessoas têm alguma
habilidade pra discernir a realidade do mundo imediato sem a necessidade de
dissecá-la por meio de análises científicas, reportagens jornalísticas ou mesmo
representações artísticas. Pra perceber as coisas tais como elas se apresentam
aos nossos sentidos basta o próprio corpo e seus silêncios. O simples aspecto
de uma paisagem durante o lusco-fusco pode causar um efeito semelhante ao
de uma sinfonia ou até mesmo um efeito que nenhuma sinfonia é capaz de
reproduzir. Hutton descobria nessas paisagens uma força visual inteiramente
indiferente às pretensões do saber humano. Não seria excessivo dizer que
buscava nelas algo do maravilhoso que, durante o século XIX, seu compatriota
Thomas Cole também perseguiu em pinturas do Rio Hudson. Com a diferença,
porém, que em Hutton esse sentido do maravilhoso aparece de forma contida
e precisa, livre, portanto, de maiores excessos romanescos.
– Filmes bons pra dormir. Gostei! Eis uma modalidade de filmes realmente
original.
– Mas talvez um grande mal da nossa época seja justamente a dificuldade
em parar pra olhar o mundo ao redor com a calma de quem se põe a sonhar.
Nos primórdios do cinema, os irmãos Lumière ainda tinham essa calma quando
realizavam longos planos em filmes de 50 segundos. Hutton também adota o
mesmo procedimento em planos fixos que, não raro, se estendem por mais de
um minuto. Breves intervalos com momentos de escuridão marcam a separação
entre os planos. Na verdade, esses intervalos sugerem que não se trata mais de
planos e, sim, de minifilmes compostos por uma única imagem. De todo modo,
Hutton buscava com seus filmes proporcionar momentos mais serenos, recom-
pensados pela experiência da visão e pela descoberta do lugar onde vivemos.
Essa era sua maneira de combater a sociedade tecnológica e sua obsessão pelo
tempo acelerado.
– Antes você havia reclamado por um cinema de vultos, agora defende a
política do sono. Seu sonho nunca acaba.
– No entanto, não é sempre que esses filmes proporcionam momentos
reconfortantes. Focado em imagens paisagísticas que parecem olhar o sublime
mas de modo distanciado, Hutton nos embala com um ritmo que repercute o
balanço suave do navio. Nele ainda há movimento. Mesmos seus planos fixos
em forma de minifilmes estão sempre escoando rio abaixo ou rio acima. Mas em
longas-metragens como Natural History do também americano James Benning
ou Homo Sapiens do austríaco Nikolaus Geyrhalter a visão de paisagens estáticas
e silenciosas alcança seu paroxismo. Esses filmes apresentam um procedimento
163
muito mais seco, sem nenhuma concessão às paixões humanas. Lembra as teorias
assubjetivas ou mesmo anti-subjetivas de Quentin Meillassoux, assim como as
visões do mundo sem nós de Alan Weisman que, inclusive, inspirou a realização
de Homo Sapiens. De fato, o procedimento adotado tanto por Benning quanto
por Geyrhalter em seus respectivos filmes nos coloca diante de paisagens que
parecem pura materialidade esvaziada de qualquer sentido humano. Em Natural
History, Benning filma o Museu de História Natural de Viena com um total de 45
planos fixos silenciosos que podem durar muitos minutos. Focando unicamente
animais empalhados ou espaços vazios do museu, apresenta na verdade o fim
da história natural imposto pela nossa espécie. Do mesmo modo, em Homo
Sapiens, Geyrhalter filma construções e espaços humanos abandonados com
planos igualmente fixos e longos. A paisagem pós-apocalíptica faz pensar em
como a natureza retomará sua posse desses locais após o desaparecimento da
nossa espécie. Experimente dormir num desses filmes enquanto um macaco
empalhado te olha fixamente durante longuíssimos minutos ou enquanto observa
com a mesma extensão de tempo a sala vazia de um cinema abandonado que
espelha o único futuro possível pra todas as salas de cinema. Há o risco de quando
você acordar, se deparar com o mesmo macaco olhando pra você fixamente
ou a mesma sala de cinema abandonada, como se nunca mais fosse possível se
livrar dessas imagens.
– Você diria que esses filmes têm um mesmo estilo cinematográfico?
– Por certo, nenhum deles tem qualquer intenção nem de contar histórias,
nem de transmitir mensagens ou provocar maiores afetos. Ao invés de uma
representação, esses filmes apresentam imagens que podem ser percebidas
pelos sentidos sem a necessidade de nenhum conhecimento prévio. Neles não
há passagem de tempo, mas apenas durações de instantes que se alongam até
desaparecerem sem nunca retornar. No lugar de protestar contra os crimes
ambientais ou esclarecer quanto aos riscos das mudanças climáticas, desa-
fiam o antropocentrismo evacuando todo o sentido do filme pra tocar nosso
olhar somente com o sentido das coisas. Benning e Geyrhalter promovem essa
descentralização do olhar mostrando o mundo enquanto pura materialidade
indiferente às paixões humanas. São filmes interessantes na medida em que
nos fazem perceber a existência de um exterior. Contudo, sem nenhuma dúvida,
ainda prefiro o modo como Peter Hutton nos aproxima desse exterior emba-
lando-nos com o escoamento de paisagens-rio. De toda maneira, num artigo
intitulado The ecocinema experience, o crítico Scott Macdonald chamou esses
filmes de “ecocinema”. Seu artigo saiu numa coletânea de 2012 organizada por
Stephen Rust, Salma Monani e Sean Cubitt com o título Ecocinema Theory and
Practice. No escopo dessa modalidade cinematográfica, poderíamos ainda citar
164
produções de realizadores como Andrej Zvradič, Robert Tood, Ben Russel, Neil
Henderson, entre outros. Na verdade, devido à necessidade mais que urgente
de colocar o pé no freio das ambições humanas e olhar mais detidamente o que
nossa espécie tem feito com o mundo ao redor, tanto o ecocinema quanto o
chamado slow cinema se impõem como uma modalidade audiovisual capaz de
atuar politicamente por meio da estesia.
– Até agora quase não falei pra ouvir o que você tinha a dizer sobre esses
filmes dos quais, te confesso, nunca havia ouvido falar. Você sabe da minha
predileção por filmes indígenas e sabe também do meu engajamento na luta
pelo empoderamento das mulheres. Então, primeiramente, queria ressaltar
o fato de você ter mencionado apenas filmes realizados por homens brancos.
Em seguida, é preciso lembrar que, pra alguns povos indígenas, as paisagens
são espíritos ancestrais nem humanos nem não-humanos mas mais que gente.
Com efeito, existe um filme que reúne ao mesmo tempo tanto a força feminina
quanto a visão de mundo indígena. Chama-se La Fêlure du Temps, “A fissura do
tempo”. Foi realizado entre 2000 e 2004 por Raymonde Carasco com o xamã
tarahumara Ceverico. Trata-se do último filme da série Tarahumaras, que reúne
dezoito produções realizadas, desde 1976, por essa filósofa francesa – ela
lecionou estética cinematográfica na Universidade de Toulouse até falecer em
2009 – e seu marido Régis Hébraud entre os Tarahumaras do México. Em “A
fissura do tempo”, Carasco filma sua conversa com o xamã Ceverico em cinco
episódios durante os quais retraça as origens cosmológicas do povo tarahumara
até a desaparição da sua tradição, ocasionada pela perda dos saberes associados
aos rituais xamânicos. Ao longo de todo o filme, essa conversa ocorre em meio
às paisagens do território tarahumara nas montanhas de Norogachic. Enquanto
ouvimos o xamã Ceverico contar histórias desse território e dos espíritos que
habitam nele, a câmera mantém uma atenção constante em suas paisagens. As
mesmas se apresentam na forma de três espaços distintos: paisagem natural de
montanhas rochosas, grandes vales abertos, desertos; paisagem humana corres-
pondente aos espaços de cultura, agricultura, pedras talhadas; mas, também,
paisagem invisível correspondente às forças cósmicas que, numa dinâmica de
trabalho constante, agem diretamente sobre a paisagem natural e, indiretamente,
sobre a humanidade e suas construções. Cada uma dessas paisagens coloca
diferentes questões quanto ao modo de filmá-las. A paisagem natural surge aos
olhos de Carasco guiados pela voz do xamã Ceverico como vibrações, ainda que
ínfimas, inscritas na duração do plano sob a forma de superfícies escarpadas
seja pela luz, seja pela passagem de correntes d’água ou pelo sopro do vento;
por outro lado, a paisagem humana requer um enquadramento geométrico
capaz de filmar linhas paralelas grifadas sobre a terra arada ou no contorno dos
165
tijolos; a paisagem invisível, por sua vez, não tem uma existência material, sendo
privada de motivo e representação como no caso da luz crepuscular tanto do
amanhecer quanto do anoitecer. Essa luz insere as paisagens e seus habitantes
numa sequência cíclica da qual Carasco também tira a forma do filme. Certamente,
estou falando de uma maneira excessivamente esquemática, mas queria apenas
ressaltar que o procedimento de Raymonde Carasco e Régis Hébraud sugere
outras possibilidades de filmar paisagens que não seja reduzi-las a formas pictó-
ricas estáticas vistas enquanto unidades separadas umas das outras. Trata-se, ao
contrário, de filmar paisagens vivas, que não cessam de se transformar devido
à constante interação com outras forças cósmicas. Estas se fazem sentir por
meio do vento, das correntezas d’água, das variações de temperatura, das
tempestades ou da falta delas, das luzes e suas sombras. Ceverico as chama
de Jíkuli. Encontra-se por parte. Age sobre qualquer um. O trabalho consistiria
então em devolver a Jíkuli sua potência de vida numa operação de reparação,
de reassimilação misteriosa. Carasco realiza essa operação seja por meio da
velocidade cinética, seja por meio da intensidade da luz ou da reduplicação dos
reflexos, inversões (jarra de Tesgüino cheia num primeiro momento, jarra de
Tesgüino vazia no momento seguinte), contrastes de texturas eisensteinianos,
oposições de toda sorte, antigo e recente, dia e noite. De fato, acho bastante
válido que os filmes por você mencionados tenham descoberto os silêncios do
mundo selvagem, mas ainda faltaria a eles reconhecer essas paisagens invisíveis
das forças cósmicas. Pela sua descrição, não estou certo se o fazem de forma
consciente. Talvez apenas o Peter Hutton se aproxime um pouco desse outro
procedimento mais ligado à visão xamânica. De todo modo, se ainda quer saber,
não somos deserto tão somente porque o deserto é muito mais que nós. E, de
fato, nisso concordamos: o risco do sonho é mais desafiador que o risco do real.
A questão é saber se a realidade catastrófica na qual vivemos ainda nos permite
sonhar o sonho da sombra.

166
por Cláudia Mesquita*

Propus uma conversa com Adirley Queirós para tentar elaborar melhor o impacto
de Era uma vez Brasília. Muita coisa no filme era opaca, enigmática para mim.
De outras eu guardava um forte sentimento, que tinha dificuldade de transpor,
de significar. Comecei me apegando ao que reconhecia: às continuidades com
relação à filmografia anterior, especialmente Branco sai, preto fica. Em primeiro
lugar, à complexa imbricação entre tempos, traço central do trabalho de Adirley
até aqui. Novamente ele responde ao projeto futurista que norteou a construção
de Brasília com a criação de um presente distópico: o setor habitacional Sol
Nascente, expansão da Ceilândia, neste filme inteiramente noturno, oferece
locações para a "cidade do futuro" (e empresta, na dramaturgia, o nome ao
“planeta” de onde parte WA, viajante intergaláctico). De novo o presente é um
híbrido: entre um "passado que não passa" (na continuidade da relação trau-
matizante e violenta do Estado com os moradores das periferias, nas ruínas e
restos de projetos fracassados...) e um "futuro já presente" (na extrapolação
de características sinistras da atualidade, como a segregação, o confinamento
e o controle dos pobres).
Essa complexidade marca o filme todo. Cada cena modula uma espécie de
montagem temporal, no jogo entre cenários, figurinos, corpos, diálogos, objetos.
Os espaços internos são muito densos: a nave espacial de WA (Wellington
Abreu), o viajante que tem a missão de matar JK, mas se perde no tempo e
no espaço e cai na Ceilândia em 2016, é precária e insalubre como uma cela
de prisão brasileira (como defende Adirley nessa conversa). Se a temporali-
dade é complexa, a referência ao passado tornou-se menos precisa, menos

* Professora do curso de graduação e do programa de pós-graduação em Comunicação Social


da UFMG, onde integra o grupo de pesquisa Poéticas da Experiência. 167
“documentária”. Tive o sentimento de que a rememoração de opressões sofridas
pelos atores periféricos não está, de modo tão direto, no nascedouro da ficção,
como nos filmes anteriores. É como se a distopia estivesse de tal modo instalada
que não fosse mais possível remontar sua história, suas histórias. Já presente em
Branco sai, preto fica, ganha força a aposta na construção cênica, na performance
dos atores nos espaços, trabalhada em sua duração. Imobilidade, isolamento,
confinamento, perplexidade são sentimentos que assomam – em uma espécie
de “cifra” da condição precária e periférica, elaborada nas imagens, talvez de
modo mais alegórico. Resulta uma atmosfera soturna, paralisante, anoitecida,
nessa fábula que privilegia o ponto de vista de personagens radicalmente às
margens: Andreia, ex-presidiária; Marquim, cadeirante silencioso e enigmático;
WA, também presidiário, que invadiu terras e foi condenado em seu planeta.
Paradoxalmente, se a rememoração não é tão decisiva (na dramaturgia, na
criação dos personagens), a referência a processos políticos atuais é mobilizada
de modo direto e contundente: a montagem sobrepõe às imagens da ficção
registros sonoros de discursos e declarações de voto, referentes ao processo
do impeachment contra Dilma Roussef1. Ouvimos discursos de Dilma, de Temer,
de parte da bancada do Paraná na votação do impeachment na Câmara dos
Deputados. Se um filme como A cidade é uma só? produzia uma contra-memória
que confrontava o apagamento do violento processo de remoção dos pobres
do Plano Piloto em tempos passados, Era uma vez Brasília parece sondar um
recalcamento em ato: sobreposto às imagens sombrias do presente narrativo
(especulado em chave distópica), o discurso de posse de Temer, no final do filme,
é a mais acabada expressão da denegação e do mascaramento (coroando todas
as manipulações, distorções e a amnésia programada que cercaram o golpe de
Estado)2. Nomeado no refrão do rap de Marquim do Tropa, performado em cena,
o recalque assombra o presente. Como se não houvesse, para tantas violências,
um horizonte de elaboração e reparação. As agressões contra pobres, negros,
periféricos (agravadas por machismo e misoginia), a condição precária induzida e
reiterada pelos poderes, aparecem nas histórias de Andreia e Corina, presidiárias,
"perseguidas" pela justiça. Confrontado a esse universo de “sequelados”, como
diz Adirley, o discurso de posse de Temer, que fala em “ponte para o futuro”,
aparece em todo o seu cinismo, ou melhor, em toda a sua perversidade. Ele é

1. Há também um trecho do discurso de JK na cerimônia de inauguração de Brasília, em 1960.


2. "O momento é de esperança na retomada do Brasil. A incerteza chegou ao fim. É hora de
unir o país e colocar os interesses nacionais acima dos interesses de grupos. (...) Tudo trans-
correu dentro do mais absoluto respeito constitucional. Demos esse exemplo ao mundo. (...)
Não prevaleceram vontades individuais, mas a força das instituições, sob o olhar atento de
168 uma sociedade plural e de uma imprensa inteiramente livre".
montado sobre imagens da ponte metálica onde os protagonistas se encontram
“para fugir do radar”, passarela que conduz do nada a parte alguma.
A especulação distópica inclui outros mundos, outros “planetas”. Mas não
há alternativa alhures, não há "lugar nenhum" utópico: “Karpenthall é tipo isso
aqui”, diz WA num diálogo com Marquim, referindo-se às ruas da favela do Sol
Nascente, onde grande parte das externas do filme foi gravada. O nome de seu
“planeta”, aliás, diz WA, poderia ser traduzido por “Sol Nascente”. Sugestão que,
a um só tempo, desnaturaliza a realidade presente dessa expansão de Ceilândia,
e propõe um futuro avesso a toda idealização: “o entorno nos espera” (dizia o
letreiro final de A cidade é uma só?). Nesse sentido, é didática mas marcante a
figuração daqueles que vem e voltam no trem da Ceilândia: os trabalhadores
(ou seriam presidiários?) aparecem uniformizados, cabisbaixos, controlados,
sua força de trabalho totalmente manobrada, sua subjetividade e seus deslo-
camentos cerceados pelo Estado.
Nas franjas, vivem os protagonistas, sem trabalho certo, se escondendo
da polícia. São esses marginalizados e precarizados que irão no filme se insurgir
contra "os inimigos", esses que, nas palavras de Marquim, “falam dar-te-ei, mas
não dão nada pra gente”. Apesar de toda a perplexidade e do caráter teatral,
simbólico, não naturalista de seu plano de ação, são eles que vão oferecer no
filme alguma rebeldia, alguma resistência contra as “monstruosidades” do
presente político brasileiro. Mas, na Ceilândia distópica de Era uma vez Brasília,
nada se cumpre, nada se completa, como nos diz Adirley, na conversa da qual
editamos alguns trechos, abaixo.

Quando o processo do filme cruza com a história política recente? Porque imagino que
o projeto de Era uma vez Brasília e mesmo sua realização sejam anteriores, em parte,
à deflagração do processo do golpe contra Dilma.

É anterior sim. Começamos a filmar em 2015. A última gravação para o filme foi
feita em agosto de 2017. Foi um processo muito fragmentado. E muito influenciado
por essa atmosfera, pelo que eu sentia em relação ao golpe, como a gente reagiu,
como eu experimentei as manifestações. Eu tenho, sem exagero, mais de 150 horas
de gravação de manifestações. Desde o começo do MBL (Movimento Brasil Livre).
Então a opção de filme que a gente monta é totalmente influenciada pelo espírito
do golpe, pela queda da Dilma, pelas primeiras medidas do Temer...

Dá para notar que se trata, em parte, de um trabalho de montagem: associar a fic-


ção distópica à atualidade política brasileira, através da sobreposição dos áudios do
impeachment. Mas em cena isso também se dá: um cruzamento entre a encenação
169
ficcional e a documentação simultânea de manifestações (naquele plano longo com
Marquim, tendo ao fundo o Congresso Nacional). Vocês fizeram muitas mudanças na
concepção do filme, no roteiro (não sei se havia roteiro), para incorporar o processo
político em curso?

Roteiro não tinha, tinha um argumento. Na minha experiência, vejo o filme como
uma espécie de etnografia da ficção. A gente propunha a ficção, propunha aos per-
sonagens que entrassem no espaço da ficção – com roupas, ambientes, atmosfera,
uma sugestão de como cada um estava no mundo – e a partir daí a gente filmava
como etnografia: câmera parada, observando... O mote básico era assim: vocês estão
presos. Todos vocês estão presos e não conseguem sair da prisão. O que iriam propor
poderia ser, inclusive, memórias e alucinações presidiárias. Sempre o inimigo era o
Estado, o governo Temer, e tinha uma ideia de que a gente não podia sair, que as
cidades tinham virado cidades-prisões. Não tem roteiro e a gente grava no espírito
do momento. E com um sentimento de que a gente não consegue criar uma reação,
uma possibilidade de estar na rua que não seja a tradicional manifestação, ir pra
frente do Congresso... como propor alguma coisa à margem desse lugar? Como
pensar outro lugar para contar essa história?

Em que medida, neste filme, as histórias vividas pelos atores informam a criação dos
personagens? A história de Andreia Vieira, por exemplo, está na origem do projeto?

A Andreia entra depois. O início é muito louco... Tinha uma coisa de comédia, com
monstros, meio Spectreman, aquele seriado japonês. A gente começou filmando
com o Wellington naquela nave. Toda noite a gente ia pra lá. Três meses tentando
achar um lugar em que o corpo dele acreditasse naquela cena. Tinha a história de
um parente dele, que dizia que o avô veio para Brasília, caiu na construção e estava
enterrado debaixo do Congresso Nacional. E o Wellington criou a narrativa de que
vinha resgatar o corpo do pai para ser enterrado, esse era o motivo da viagem no
espaço. E todos os elementos que constroem aquilo se relacionam com o Sol Nascente,
que é a expansão da Ceilândia, com cerca de 100 mil moradores. É considerada a
maior favela da América Latina. E o personagem está envolvido com esse universo:
invadir terra, matar alguém para ganhar um lote do governo... A Andreia entra num
segundo momento. Ela é ex-namorada do Marquim, e ficava sempre no set com a
gente. De repente ela entra, e a gente parte da história dela. Ela mata um cara com
um taco de sinuca e vai presa. Andreia é ex-presidiária. Cheguei a criar um texto
para ela, de 6, 7 páginas. Nessa proposta de filme, a Andreia seria uma narradora
em off: “o Brasil vive o momento tal, existe uma catástrofe, a gente não consegue
reagir, toda proposta de reação cai na Lei Antiterrorismo” etc... Ela gravou esse
170 texto, mas na montagem eu tirei tudo.
A história do ator Marquim do Tropa não vem à frente, como em Branco sai, preto fica.
Quem é o personagem do Marquim?

O filme mudou muito no processo todo. Inicialmente o Marquim seria um cara que
foi abduzido, cuja memória foi sequestrada. Ele seria a memória da Ceilândia, teria
toda a memória do processo histórico, que poderia ser perigosa. Ele vaga procurando
pela memória. No processo todo ele consegue enxergar onde estão os monstros,
onde está a monstruosidade das coisas. Os monstros invadiram a Terra, o Congresso.
Ele tinha um texto enorme também. Fui tirando essas coisas.

Gostei muito do aproveitamento dos espaços da cidade (o metrô, a passarela metálica) na


criação da atmosfera. Mas os espaços criados, os interiores das naves, são especialmente
potentes. Ficamos confinados nesses espaços, de precariedade deliberada, elaborada. A
gente permanece com WA, experimenta o interior da nave na duração. Essa experiência
de aprisionamento parece cifrar, de algum modo, a própria condição periférica. A nave
é mais do que uma nave, ela tem a ver com a experiência social...

A gente pensava assim: a nave podia ser uma cela de prisão. Essa nave é um es-
paço em que se fica confinado 24 horas, muito agoniante. Nesse processo todo
eu conversei muito com ex-presidiários. Muitos moram na minha rua, caras mais
velhos, com 50, 55 anos, que hoje estão desempregados, muitos estão no crack. O
que fazem os caras que estão presos? Eles começam a viajar, a alucinar. Eles têm
sonhos recorrentes de voar, de correr... A gente pensava naquele espaço (da nave)
totalmente construído como se fosse uma cadeia. Tanto que o investimento de som
é baseado nisso: som de chaves, porta de cadeia, tem um cachorro intergaláctico, da
polícia, que vai invadir... São sons que a gente construiu para criar uma atmosfera de
tensão, de confinamento, fechado ao extremo. Importava a experiência, a sensação
ali dentro: sono, cansaço, tédio, raiva, angústia, o que fosse. Não como na narrativa
clássica, em que uma coisa conduz a outra, que conduz a outra, mas uma experi-
mentação com o personagem mesmo. Chegou um momento em que o Wellington
ficou ali 2, 3 horas, a câmera rodando, colada nele, tudo desligado, numa oficina
escura, ele nem via a Joana (Pimenta, fotógrafa), e a gente não conversava no set
mais. “Agora você se vira, tá preso, tenta se comunicar, tenta reagir no mundo, teu
mundo é essa cela”. Uma experiência profunda para nós. Porque quando você não
dá um roteiro para o cara, uma motivação da cena, ele tem que criar e reagir. Para
uma tentativa de maior diálogo com o espectador, a gente chegou a pensar, no
roteiro de som, em criar algo como "o Brasil acontecendo em 50 anos". Copa de 70
etc., ele ouvindo tudo pelo rádio. Mas acabamos tirando tudo isso. Pensamos que
seria mais interessante chegar ao esgotamento dessa narrativa (na nave). Não sei
se é alucinação minha, mas penso que se a gente recorresse a essa narrativa dos 171
50 anos, é como se fosse possível reagir ao momento que estamos vivendo hoje.
O filme queria pensar assim: se a gente perdeu, se fomos derrotados, é hora de
reconhecer que estamos numa imobilidade. A partir dessa imobilidade, para onde a
gente pode ir? Nossa preocupação era como a história avança sobre nós, e a gente
está cada vez mais confinado, cada vez mais preso, isolado. Os três meses filmando
na nave foi uma aposta nesse sentimento.Tem gente que gosta, mas muita gente
não... A sessão em Brasília foi muito difícil. Mas acho que as pessoas vêm com a
expectativa de "fora, Temer", sabe?

Nisso, apesar das diferenças entre eles, Era uma vez Brasília e o curta com os acam-
pados do MST (episódio de uma série para a TV pública, Fantasmas da casa própria)
se aproximam, a meu ver. São filmes "anti-catárticos", não tem resolução, nem clímax.
O filme com os acampados se detém muito mais sobre os deslocamentos difíceis, a
precariedade da vida, o ônibus que não vem, o ônibus que quebra, a volta para o acam-
pamento depois da derrota, do que sobre a manifestação propriamente dita, no dia da
votação do impeachment, em Brasília.

Eu fiquei muito tempo com eles (no Acampamento Dom Tomás Balduíno, em Goiás),
acabei trabalhando com um grupo, do Rafael Villas Bôas, da Universidade de Brasília,
que faz agitação e propaganda, agitprop, lá dentro. Eles são um grupo à margem,
digamos assim, do grupo forte do MST. Me interessava muito a força que aquelas
pessoas têm... de organização, mesmo na precariedade. E os rostos deles, daquela
turma mais velha, que está deslocada desses discursos todos. Esse filme com o MST
influenciou radicalmente a montagem do Era uma vez Brasília. Porque na rua tinha
muita gente, da UNE, do Levante Popular da Juventude... E o grupo do MST ficou
5 horas esperando o ônibus, mais 5 horas para chegar, cansados, sem comer nada,
quando eles chegam na manifestação, alguns deles diabéticos, com problemas de
locomoção, vinha o Levante atrás deles, gritando assim: "Quem não é tucano, quem
não é tucano, tira o pé do chão!" Para todo mundo pular. E os velhinhos não conse-
guiam pular. E o MST abriu para o Levante passar. Uma coisa absurda, né? A falta de
sensibilidade da nossa esquerda, foi constrangedor. Então o filme do MST me fez
pensar como é viver esse lugar de desencontro, mas ainda assim de possibilidade...

Você contou que Marquim seria a memória (sequestrada) de Ceilândia, coisa que não é
evidente no filme final. Mas tive um sentimento que tem a ver com essa “desmemória”:
a ficção parece, neste filme, mais "despregada" do passado documentário. Como se a
distopia estivesse tão instalada que já nem fosse possível remontar a história de como
chegamos até aqui. Talvez o investimento agora seja mais alegórico... Mas, certamente,
nas escolhas de encenação, o filme cifra a experiência (como você falou sobre a nave:
172 espécie de prisão do presente, das cidades, dos corpos periféricos...)
Acho que você tem razão. Na montagem, por exemplo, não aparecem esses elementos
de um passado mais explícito. Tem um pouco desse jogo na fala de Andreia... Mas
sim, acho que a gente quis deixar tudo mais vazio. Como se esse momento agora
partisse do zero. Como se as coisas fossem tão absurdas que estivéssemos numa noite
eterna. Não tem uma cena de dia. Muitos planos fechados. O filme despregado do
lugar mais documental da cidade. E muito mais performático também. Apostamos
muito nas internas, no enquadramento, nas luzes que estão montadas, na atmos-
fera, em como o tempo se prolonga nesses espaços confinados, e se isso pode nos
constranger também. Mas eu não tinha clareza de que o filme era tão incômodo...
Tem tanto subtexto que eu pensava que haveria uma compreensão. Mas é difícil as
pessoas se apegarem aos personagens. Eles nem completam as ações, vão e param,
vão e param... Um exército de sequelados, que é o exército da gente. Tinha também
a ideia de que as coisas aqui não se cumprem nunca, e o pensamento sobre o que
restaria filmar nesse momento: com essas pessoas, com a minha experiência de
filme, com o limite de orçamento que a gente tinha, o limite de equipe. É um filme
feito sempre com 3, 4 pessoas, como um documentário. O que poderíamos criar
de possibilidades de cinema a partir daí? Que esse limite nos motivasse na criação
do imaginário de um filme. Tinha uma certa arrogância, talvez, de apostar que se
poderia contar uma história sem tanta fala, sem tanta narrativa, apostando no
silêncio, na duração... Não um filme experimental, mas outra experiência de filme.

Acho que o que funciona melhor é justamente algumas performances nos espaços.
Como se essas cenas em si mesmas dessem conta de exprimir, de cifrar, a atmosfera do
momento... Ainda tenho dúvidas sobre a associação mais direta ao golpe, sobre o que
resulta dessa montagem. É paradoxal: por um lado é o seu filme menos "documentário",
menos enraizado, e que elabora a experiência periférica de uma forma mais alegórica,
apoiada na construção cênica; e, por outro, é o que lida de forma mais direta com a
atualidade, com o momento político em curso.

É engraçado ouvir isso, porque o que tivemos mais dúvida, sempre, foi com relação
aos áudios. Eu tenho uma cópia desse filme que não tem os áudios do golpe. Tinha
medo de parecer uma adesão dilmista. Sou contra Temer, mas pró-Dilma não... É
diferente. A tentativa era transformar Temer numa monstruosidade. De todo jeito,
foi um risco. Queria experimentar com o tempo dilatado. Um grupo de pessoas em
um espaço periférico num filme mais existencialista... acho que tem um clima exis-
tencialista, devagar. E uma tentativa sim de pensar no momento político brasileiro.
Qual é o lugar que a gente ocupa numa disputa dos espaços.

Você considera esse filme mais fiado em imagens prévias, mais debitário de referências,
do que os trabalhos anteriores? 173
O que eu queria era sobretudo pensar uma ambiguidade do tempo. Não tinha uma
imagem prévia de como isso ia acontecer, foi se construindo. Mas tinha na cabeça
muito mais imagens da literatura do que do cinema. Sobretudo As crônicas marcianas
(Ray Bradbury). Talvez tivesse um pouco de imagem de faroeste, a montagem do
bang-bang: um encarando o outro, o tempo que isso toma, o vento que sopra e
tal. A gente conversava muito, passava horas, e depois filmava, movido por aquela
atmosfera. E não tinha uma decupagem prévia, ia experimentando a câmera em
vários lugares. "Hoje tá ventando muito, vamos filmar desse lado". Então não havia
tantas referências imagéticas. Mas tinha a vontade de buscar essa atmosfera: de
uma imobilidade política. E de uma descrença em relação ao corpo político da es-
querda na rua. Que corpo é esse que está na rua? Que narrativa é essa que se cria? A
ação drástica, extrema, violenta, está muito mais no Facebook do que no real. Algo
só entre nós, nada saía daquela bolha. As imagens procuravam esse sentimento:
esse corpo que está na rua é um corpo anacrônico, que não produz consequência
nenhuma. Mas aquele outro corpo, do Marquim, da Andreia, também está perdido.
Ele representaria a possibilidade de um caminho de esquerda. Ao mesmo tempo são
pessoas que estão à margem, que não estão no centro das discussões, da rebelião
das ruas... a esquerda são outras pessoas. Esses personagens no filme estão num
estado tão estranho, é quase telepata. Aquela história: essa fala de cinema aprisiona
os personagens de periferia. Por mais que eles falem, estão falando como a classe
média. Como que a gente pode negar isso? Como deslocar suas falas? Porque tem
uma demanda da pauta política. Esse corpo da periferia já foi pautado, a interme-
diação nossa, enquanto cinema, enquanto literatura, cria essa pauta. A gente vira
explicador do processo. Eu tenho medo disso. Será que a gente pode radicalizar
mais? Que as falas tragam outros sentimentos? Talvez o não-dito, as conversas
atravessadas, tragam alguma coisa... Tudo isso a gente queria para o filme.

174
por Fabio Rodrigues Filho e Amaranta Cesar*

Nas cenas iniciais de Quilombo Rio dos Macacos somos convocados a um deslo-
camento: debaixo de forte chuva, saímos do centro da cidade de Salvador em
direção a sua periferia, onde se localiza a comunidade negra tradicional que
protagoniza uma longa disputa territorial com a Marinha do Brasil. Se o filme
inicia-se numa sequência de movimentos pelas avenidas da capital baiana rumo
ao Quilombo Rio dos Macacos, logo se impõe um obstáculo que impede a
chegada da equipe – e dos espectadores – à comunidade: uma barreira-sintoma
do conflito que excede a ação do filme. Trata-se de uma guarita da Marinha de
guerra do Brasil, que determina quem e o quê pode ou não adentrar no território
dividido entre a Vila Naval e a comunidade negra historicamente estabelecida
ali. Trata-se de um bloqueio que impede que os direitos mais básicos cheguem
até os moradores dessa comunidade, o quilombo vizinho dos prédios das forças
armadas brasileiras. E, sobretudo, trata-se de uma trincheira que criminaliza os
quilombolas e as suas formas de viver. Mas essa primeira obstrução é, finalmente,
vencida pelo filme, ao contrário do que acontece com as câmeras e repórteres
de televisão que ali também se aglutinam: a equipe cinematográfica adentra
as terras, atravessa o cerco, enquanto a, assim chamada, “grande imprensa”
permanece barrada do lado de fora. E é pelo gesto de montagem do filme,
que é aqui entendido como um gesto de passagem, de desobstrução, que um

* Fabio Rodrigues Filho é coordenador do projeto de pesquisa e extensão Cineclube Mário


Gusmão, graduando em Comunicação Social na UFRB, membro do grupo de estudo Cinema
e Filosofia e do projeto Cinema em Vizinhança (CachoeiraDoc 2017) e educador popular no
Quilombo Educacional Kabengele Munanga. Amaranta Cesar é professora e pesquisadora de
Cinema e Audiovisual da UFRB, doutora em Estudos Cinematográficos pela Universidade de
Paris 3 - Sorbonne Nouvelle, idealizou e é curadora do CachoeiraDoc - Festival de Documen-
tários de Cachoeira. 175
modo amplo e heterogêneo de aproximação opera-se: para compor a narrativa,
a montagem trabalha erguendo uma espécie de arquitetura da luta, reunindo
interesses, convocando aliados e apropriando-se, inclusive, das imagens da
imprensa censurada na torre de vigia.
Mais do que constituir uma memória da luta, capaz de lhe dar movimento,
sendo fonte de força para a sua continuidade, Quilombo Rio dos Macacos, de
Josias Pires, empenha-se com os próprios quilombolas na construção dessa
arquitetura da luta, fazendo da narrativa fílmica uma tessitura de alianças, elos
e relações para além dos limites territoriais. Este tecido, costurado a partir de
um jogo temporal que vai de 2011 a 2017, não só torna visível o conflito e a
vida daquelas pessoas, mas faz respirar o próprio movimento de resistência
dos quilombolas, rompendo as barreiras impostas àquela comunidade, que
não apenas materializam a privação do acesso aos direitos mais básicos, como
forjam um apagamento das histórias de vida ali fincadas: a cerca e os muros,
na tática da Marinha do Brasil, exibem-se e atuam como uma forma de isolar
para asfixiar. Portanto, todo o deslocamento do filme, tanto espacial quanto
temporal, pode ser traduzido como uma estratégia de contra-ataque, que consiste
fundamentalmente em desatar nós e criar laços.
É em dezembro de 2011 que surge a primeira fagulha do filme Quilombo
Rio dos Macacos. Espalhado em grande escala pela internet, o web-doc de dez
minutos de duração, também dirigido por Josias Pires, disparou a campanha
Somos Quilombo Rio dos Macacos. Em tom de urgência, fez-se ressoar, em um
primeiro momento e usando os meios mais ágeis de divulgação, as vozes sufo-
cadas que se articulavam naquela ocasião como um grito diante do insustentável.
Seis anos se passaram, e o filme, realizado nesse intervalo, retorna aos mesmo
espaços, às mesmas testemunhas, num gesto de obstinação que parece se
espelhar na tenacidade daquela gente em luta. Ao recompor os testemunhos,
sobrepondo discursos e corpos em diferentes tempos, o filme nos posiciona
diante não mais da ideia de resistência mas da sua materialidade, da sua encar-
nação: a luta aparece, em sua obstinada reiteração, como uma condição de vida.
Viver, ali, é ter de lutar pela vida. Ritmo da vida e ritmo da luta se confundem.
Para tecer seu jogo temporal e recriar um caminho (e um encaminha-
mento) para a luta, por vezes, o filme organiza-se a partir do tempo televisivo
ou torna-se, em um dado momento, clipe para a música de Emicida, ou ainda,
dilata-se para acompanhar as infindáveis audiências jurídicas ou a feitura de uma
colher de pau por Seu Zezinho e a fabricação artesanal do azeite de dendê por
Dona Biu, ambos moradores do Quilombo. Na metáfora do próprio Zezinho, o
conflito ali entre a Marinha de guerra e os Quilombolas, os donos aviltados de
176 sua própria terra, é uma panela de pressão e é a própria Marinha que põe lenha
na fogueira com suas armas de fogo. Não é isso que nos mostra o close na mão
de Rosemeire cheia de balas de fuzil?
Não poucas vezes a câmera do filme segue os moradores do Quilombo,
condução que não só nos localiza naquele lugar, mas revive e remonta o que
já não existe (casas demolidas, roças para plantio devastadas, fontes de água
que secaram), e, além disso, atua como modo de proteção contra as ameaças
sofridas pela comunidade. Se é com a câmera (seja a do filme ou a dos próprios
moradores) que se abrem os caminhos, isto se dá, em boa medida, em virtude do
entendimento de que filmar ou estar sendo filmado, ali, na espreita, desviando
das emboscadas, é uma maneira de seguir vivo e empenhar uma denuncia,
produzir uma prova, oferecer materialidade a uma disputa jurídica e ainda narrar
a relação de identidade com aquele território.
No limite entre a Vila Naval e o Quilombo, a casa de Seu Luís começa a ser
demolida por soldados. Cercado por armas empunhadas, obrigado a assistir a
destruição da própria casa, ele diz: “Toma o facão que eu vou filmar, pra ele não
me atirar e dizer que eu tô armado”. Luís enquadra sua casa sendo derrubada, no
fundo do plano, enquanto, no centro do quadro, um soldado aponta uma câmera
em sua direção, e, no primeiro plano, um outro soldado intimida-o com um fuzil.
Seu Luís, alvo de uma dupla mirada, segue na contra-imagem: “pode filmar bem,
eu tô na mira de vocês mesmo pra morrer a qualquer momento”. Nessa batalha
de lentes e fuzis, para o quilombola, o corte da imagem parece mais incisivo do
que o do facão. É com sua câmera precária que Seu Luís abre uma fenda para
que adentemos, como testemunhas, no conflito. E é nessa passagem, em que
a imagem quilombola, uma imagem de salvaguarda, é retomada pelo filme e
colocada em rede, tanto de visibilidade quanto de entrelaçamento, que o filme
reforça as potências de intervenção e de justiça que impregnam e mobilizam a
gênese mesmo do que nos é dado a ver.
Ritmados pelo silêncio, que parece dizer “deixa a imagem falar por si”,
vemos Rosemeire e Edinei tentarem entrar com seu carro nas suas terras, pelas
lentes da câmera de “segurança” da guarita da Marinha. Edinei e Rosemeire são
espancados, detidos e levados como animais pelos soldados. É pela montagem
que as falas dos dois recontando o ocorrido invadem as imagens da câmera
imóvel e muda, mas não imparcial. Se os agressores seguem impunes, como
nos informará o filme em seu final, acionar a imagem pela justiça é o gesto que
faz do quadro o campo de disputa. Em outra sequência, Rosemeire, já com sua
câmera em punho, sentada no banco de passageiro, filma, pelo para-brisa do carro
barrado na fronteira do quilombo, três soldados com fuzis a cercarem o veículo.
Ela alerta Edinei, seu companheiro, sentado ao seu lado no banco do motorista:
“pode deixar que tá gravando!”. Entre suspensões, impedimentos e muros, nos 177
constantes retrocessos e avanços da luta do Quilombo Rio dos Macacos, filmar
é enfrentamento e montar é organizar-se para impedir a degradação.
É preciso notar que se o filme, no seio do conflito, parece revestir-se de
força ativa para reverter danos e encaminhar conquistas é porque atua como
elemento articulador de alteridades, que podem ser convertidas em alianças.
É pela sua capacidade de atravessar as fronteiras do território, em sua defesa,
que uma imagem é produzida ou acolhida; ela precisa circular para trazer à luta
o outro – gesto de passagem que é na mesma forma gesto de conexão. Vencer
uma situação de enclave – e a separação entre nós e eles – parece ser a essência
da compreensão do filme como uma arma de enfrentamento e abertura de
vias frente à violência que se avizinha (da Vila Naval e das empresas privadas
do entorno).
Por isso, tomar parte, para o filme, diz respeito ao trabalho árduo de nos
fazer partícipes. Trabalhar para que sejamos, simbolicamente, Quilombo Rio
dos Macacos é a estratégia empenhada pelo longa de Josias Pires para que
não desviemos do conflito, para tecer uma rede que possa efetivamente ser
capaz de transformar.

178
por Roberto Cotta*

Gargalha, ri, num riso de tormenta, como um palhaço, que


desengonçado, nervoso, ri, num riso absurdo,
inflado de uma ironia e de uma dor violenta.
Cruz e Sousa, Acrobata da dor, 1893

Os instantes iniciais apresentam a celebração de um encontro, mas tão de


repente um corte impede que um pensamento se desenvolva. Então, surge uma
cartela com uma informação das mais familiares na história do cinema brasileiro:
“Infelizmente perdeu-se o negativo dêste filme”. Em seguida, o poeta Giuseppe
Ungaretti e o crítico e escritor Paulo Emílio Salles Gomes repetem o mesmo gesto,
com a mão que se articula em direção aos céus, tal qual um baile descompassado,
sinal prosaico de que o argumento precisa encontrar suas artimanhas para não
ser apagado. Justa homenagem ao trabalho hercúleo desenvolvido por Paulo
Emílio durante várias décadas, cujo intuito sempre foi fazer com que os filmes
permanecessem vivos, Festejo muito pessoal (2017) também é uma digna síntese
do cinema de Carlos Adriano, artista que tem sido capaz de esquadrinhar uma
obra inteira em torno das ruínas da memória.
Se A luz das palavras (1992) diz respeito à poesia que outrora trans-
bordava nos letreiros em néon espalhados pelos arranha-céus paulistanos,
Remanescências (1997) pode ser visto como uma fresta escondida entre cada

* Doutor em Artes pela UFMG, atualmente é professor da Escola Livre de Cinema, crítico pela
revista Rocinante e um dos coordenadores do cineclube Cine Sorpasso. Também realizou fil-
mes de curta-metragem, integrou as equipes de curadoria do Festival Internacional de Curtas
de Belo Horizonte (2014), do forumdoc.bh (2016) e foi um dos curadores da mostra de cinema
Escola: Cidade Aberta (2017), viabilizada pela Caixa Cultural de São Paulo. 179
um dos 11 fotogramas supostamente filmados por Cunha Salles, gênese de
toda uma condição imprecisa de reapropriação de imagens no Brasil. Se A voz
e o vazio: a vez de Vassourinha (1998) é sobre a relevância incontornável de um
músico que foi precocemente embora, tornando-se esquecido pela história que
ele próprio ajudou a forjar, Das ruínas a rexistência (2007) pode ser capturado
como uma ode à cinepoesia inacabada de Décio Pignatari, que desde sempre
pouco se ouviu falar. E se Santos Dumont: pré-cineasta? (2010) aproxima, sob a
mesma égide, o invento e a arte, a pulsão de ver e de voar, é na série Sem Título
(2014-2016) que vemos a necrologia do voo, a perda de alguém que perma-
nece eterno mesmo depois de sua partida. Já em Festejo muito pessoal temos
a tradução de tudo isso, ou seja, a evidenciação das lacunas existentes entre a
noção de esquecimento e a busca pela perpetuação de uma vaga lembrança.
Repetir para permanecer, permanecer repetindo. Na obra de Carlos Adriano,
é muito recorrente a reiteração de determinadas imagens, sons, gestos e ações,
procedimento que atravessa a montagem de seus filmes e norteia o potencial de
perenidade construído ao redor de suas abordagens. Para perpetuar/preservar,
é preciso que as formas possam ser reprisadas, reapropriadas, ressignificadas, a
ponto de fazerem parte do nosso imaginário como num looping característico
do cinema dos primórdios, ganhando novas perspectivas a cada vez que se
apresentam. A sobrevivência delas passa pelo crivo da circularidade, que cons-
trói associações à primeira vista tão impensáveis, como a dos enfant terribles
de Zero de conduta (Jean Vigo, 1933) tragando charutos num vagão de trem e o
curto plano de uma criança negra baforando um cigarro no começo de Tesouro
perdido (Humberto Mauro, 1927), antes de passá-lo às mãos de uma criança
branca (uma situação colonial?).
É através de ciclos que se constroem vivências tão tênues entre a dor e o
riso. Em Festejo muito pessoal, a imagem de um sorridente Giuseppe Ungaretti,
poeta ítalo-egípcio assolado por tantas tragédias pessoais (morte do filho, a
experiência de ter sido combatente na Primeira Guerra Mundial e de ter retornado
à Itália em meio à Segunda Guerra), é a porta de entrada para a revelação de
um universo tão vasto e belo de imagens de arquivo reapropriadas de diversos
filmes, a maioria deles realizados no Brasil dos anos 1920. É só através de um
milagre anárquico que essas películas precedentes à sincronização sonora podem
encontrar aquilo de mais sublime que o cinema sonoro jamais pôde repetir: a
obra de Jean Vigo. Aqui, a forma torna-se definitivamente a língua-mater do
cinema, e Vigo, finalmente, pode ser tão vizinho do cinema brasileiro quanto
Paulo Emílio um dia foi da obra do cineasta francês quando a descobriu e a
difundiu mundo afora.
180
Nas imagens feitas por David Neves em 1966, onde o encontro entre Paulo
Emílio e Ungaretti se evidencia, abre-se um mundo de possibilidades para que
o cinema e a poesia sobrevivam à voracidade dos lapsos contemporâneos de
esquecimento. Carlos Adriano escolhe cada imagem como se a duração dela
fosse a última fronteira entre o passado e o perpétuo. Ao atravessar essa fron-
teira, constrói-se uma nova forma de sincronismo com a adição de músicas
folclóricas trazidas pelas pesquisas do poeta Mário de Andrade no final dos
anos 1930. O folclore encontra o cinema mudo para musicar uma eternidade
sonhada, assim como é o disco de 78 rotações girado repetidamente pelo dedo
indicador de Le père Jules (Michel Simon) em O Atalante (Jean Vigo, 1934). E
nessa eternidade, o festejo que mostra o riso esconde para sempre a dor que
está entranhada na memória.

181
por Leonardo Amaral*

As jornadas de junho de 2013 fizeram reverberar movimentos diversos e uma


certa latência dos ânimos dos lados políticos que compõem uma esfera de debates
no Brasil. Encaminhamentos diferentes fizeram extravasar novas iniciativas que
outrora se mostravam silenciadas. A tentativa do governo de Geraldo Alckmin
de fechar várias escolas públicas estaduais em 2015 fez insurgir uma resposta
das mais fortes por parte de alunos e alunas secundaristas em São Paulo. A
cada dia, uma nova escola era ocupada pelos estudantes e a insurreição de uma
provocava o efeito imediato em outra. O governo paulista precisou retroceder e
as ocupações foram uma das vitórias mais democráticas em um cenário político
contemporâneo marcado por um golpe que usurpou a presidência da república.
Praticamente um ano depois da movimentação dos estudantes, vários foram
os documentários que surgiram a partir de imagens realizadas por cineastas
junto aos insurgentes ou com imagens de arquivo encontradas, em sua maioria,
na internet. A maioria dos filmes procura estabelecer uma espécie de panorama
e cotidiano dos movimentos de ocupação. Poucos são os que elegem perso-
nagens ou uma escola em questão para o desenvolvimento do filme. Alguns
conseguem lograr um êxito maior no estabelecimento de um visionamento do
que aconteceu naquele período efervescente. O mérito também está em dar voz
àqueles que antes se viam subjugados por um estado de coisas que sufocavam
qualquer tipo de reafirmação estudantil. Pode-se dizer, ainda, que as ocupações
secundaristas fizeram reativar um movimento estudantil brasileiro que desde a
ditadura parecia perder um pouco de sua força. Meninos e meninas aparecem

* Pesquisador, ensaísta, roteirista, diretor, montador e curador, tendo integrado as comissões


de seleção do FESTCURTASBH (2010-2013), forumdoc.bh (2015 e 2017), Semana dos Realizado-
res (2016) e feito a co-curadoria das mostras Tempos de Kuchar (2016) e Escola: cidade aberta
182 (2017). É mestre e doutorando em Comunicação Social pelo PPGCOM/UFMG.
nessas imagens liderando as discussões, enfrentando a polícia opressora e hora
alguma abaixando a cabeça para qualquer tipo de exigência que viesse de cima.
Os documentários, muitos exibidos em festivais ou colocados em plataformas
de exibição na internet, mostram a situação em seus pormenores. Mas poucos
deles têm a liberdade de forma e discursiva como Conselheiro Crispiniano (Yudji
Oliveira, 2016).
Em uma escola homônima ao filme localizada em Guarulhos e conside-
rada como um dos melhores educandários públicos do Estado de São Paulo,
estudantes se organizam contra a tentativa de fechamento da instituição e se
colocam a filmar situações inúmeras e diversas no espaço escolar. A escola deixa
de ser simplesmente o lugar do ensino tradicional para ganhar forma junto aos
estudantes. Há um frescor libertário que coabita o espaço e se transforma em
cena. Logo no início, alguns rapazes e moças jogam basquete na quadra da
escola e são acompanhadas por um plano-sequência que começa no portão da
escola e chega até o lugar onde o esporte é praticado. Na tela, as cartelas expli-
cativas se sobrepõem as imagens em uma espécie de cinema artesanal naquilo
que o termo tem de mais expressivo. Tudo ali é feito de dentro, com esmero e
respeito por aqueles que compõem o cenário de luta e libertação. Isso fica ainda
mais forte e evidente nas sequências em que uma câmera leve acompanha os
movimentos dos estudantes que andam de skate pelos corredores da escola. A
cena é desafiadora e potente, o espaço da escola é deflagrado e se transforma
em diversão e contestação. A partir dessas imagens, aqueles corredores nunca
mais serão os mesmos e os corpos que ali transitam também não. A câmera
que revela os espaços e apresenta seus personagens é conduzida por alguém
de dentro, descontruindo uma ideia única de detentor da imagem e mesmo
da montagem, tendo em vista que há um investimento explícito na duração
das voltas de skate e nos diálogos que se estabelecem ao longo da trajetória.
Eis que em um determinado instante, a câmera repousa em um tripé e se
coloca a escutar o que esses alunos e alunas têm a dizer. Conselheiro Crispiniano
é uma reconfiguração do espaço de sala de aula e da convivência. As carteiras e
mesas servem de bloqueio em relação ao mundo de fora que quer impor uma
situação a esses jovens. O real é penetrado pelas questões de ordem locais,
sejam nas discussões mais simplórias e banais como nas brincadeiras juvenis,
sejam nas reinvindicações e negociações realizadas por jovens que desejam um
outro modelo de escola e um outro modelo de sociedade. Uma sociedade mais
livre e mais aberta, como nos caminhos dos skates nos corredores. Uma escola
onde o aprendizado não seja apenas o dos livros, mas também na lida diária
com o outro, como pode ser visto nas conversas que se dão nas salas ocupadas
183
que se transformam em quartos ou na cantina que é lugar de alimentação, mas
especialmente de debate.
A cena final, na qual um aluno explana a respeito de possíveis sumiços de
objetos de alguns dos manifestantes que residem, naquele momento, na escola.
O seu discurso é de união, mas também de respeito àquele que convive e luta ao
lado. Ao mesmo tempo, alguns outros estudantes comem, contam anedotas ou
simplesmente fazem questão de não atentar ao que o colega fala. De um certo
modo, a cena aparece como uma imagem mais sincera e verdadeira do que se
passou naquela e em tantas outras escolas ocupadas durante aquele mês de
manifestação estudantil: ao invés de ensaiar um discurso político ou de tentar
abarcar diversas formas de pensamentos (mesmo que divergentes), esse filme
apresenta um real esburacado pelos corpos que lhe atravessam. Há aqueles
que desejam mudança, que lutam por um lugar de fala e uma possibilidade de
expressão e participação política que irá determinar os destinos de suas vidas,
assim como existem também outros que preferem estar ali seja pela diversão
de conviver juntos, de poder estar fora do alcance dos pais e dos professores,
sem uma grande preocupação com o que virá no amanhã. Ambas as atitudes se
configuram como gestos políticos bastante fortes e contundentes. Conselheiro
Crispiniano é o retrato inquieto de toda essa ação. O gesto mergulha por entre
as pilastras assentado e movente pelo skate que cruza a paisagem e impõe
um novo olhar para aquele lugar. Aqueles jovens nunca mais serão os mesmos,
assim como o país também não será.

184
por Glaura Cardoso Vale*

Falar, é sempre utilizar e aproveitar-se de uma duplicidade


essencial – é a ambiguidade, é a indecisão do Sim e
do Não – pretendendo reduzi-la pelas regras da lógica.
Mas falar segundo a necessidade de uma irredutível
pluralidade, como se cada palavra fosse a repercussão
indefinida dela mesma no seio de um espaço múltiplo, é
demasiadamente pesado para um só: o diálogo deve nos
ajudar a compartilhar esta dualidade; formamos uma
dupla para carregar a dupla palavra, menos pesada então
pelo fato de ser dividida e, sobretudo, tornada sucessiva
pela alternância que se desdobra o tempo.
Maurice Blanchot

Além de se aproximarem dos chamados filmes de família, Abissal (2016), de Arthur


Leite, e Luiza (2017), de Caio Baú, nos convidam a fabular com as personagens
Rosa e Luiza. Os diretores são, respectivamente, neto, em Abissal, e irmão, em
Luiza. Ambos permitem que a câmera adentre o interior da casa – da avó e dos
pais – para nos mostrar a multiplicidade de suas personagens, com encantamento
e leveza. Numa espécie de “construção em abismo”, o efeito consiste em apre-
sentar, a toda uma comunidade de espectadores, aquilo que se encontra oculto,
como peça que não se encaixa, mas que se abre como possibilidade para que a

* Pesquisadora e ensaísta. Integra a Associação Filmes de Quintal e colabora com o forumdoc.


bh desde 2003. Doutora em Letras pela UFMG, com residência pós-doutoral em Comunica-
ção Social pelo PPGCOM/UFMG, tem se dedicado a produção editorial e oficinas de cinema
e educação. 185
narrativa aconteça. Esse abismar-se perante as incompletudes e exigências do
mundo, como sugere o título de um dos filmes, ajuda-nos a pensar no método
que aposta na palavra, sem a conduzir a um desfecho conclusivo. Os filmes,
assim, são marcados pela pluralidade da palavra, dada na conversa entre os
diretores e suas personagens, das personagens com outras personagens. Não
partir de uma verdade acabada ou do apagamento das diferenças, mas partir
da dúvida, da própria diferença e da suspeita de que nada sabemos e nem tudo
se pode compreender. Tudo é e não é ao mesmo tempo, e, se o é, é na palavra
que se desdobra, palavra incessante, porém marcada pelo descentramento e
descontinuidade. Nesse sentido, os filmes se abrem para “os amores” e propõem
uma dobradura na/pela fala – com seus desvios, como acontece fortemente em
Luiza – ou no tempo – no caso de Abissal, que começa com a leitura de uma carta
escrita pelo diretor para um avô ausente, um mergulho no passado intransponível.
Luiza tem 24 anos e, nos termos clínicos, é pessoa com deficiência inte-
lectual. O filme tem como fio condutor uma questão posta desde o início:
o despertar de Luiza para o sexo e a preocupação dos pais com a iminência
desse acontecimento que envolve o namorado da personagem. É da ordem
do corpo, do desejo, da descoberta, mas também da invenção. Abissal não é
diferente em perseguir uma ideia para que o filme aconteça, embora o diretor
tenha descoberto na montagem, como nos revela em voice over, que começou
por ser uma busca pelo avô Durval – que ganhou o mundo e nada se sabe dele
há décadas – e, dessa busca, o filme passou a ser sobre/com a avó, Rosa, que
guarda em segredo essa história de amor e de traição. Abissal é quase um conto
rosiano de Tutaméia, pela síntese, por condensar camadas de tempos, o mistério
segredado das cartas e por conter a matriz de um romance: a história de amor
incompleta entre Rosa e Durval cuja profissão o permitia viajar todo o Brasil
e com isso estar em muitos lugares, vagar de hotel em hotel, de cidade em
cidade, manter relações afetivas e encontros fortuitos. Do avô ausente, restam
fotografias num álbum de família já despedaçado e documentos guardados pela
avó todos esses anos. Documentos e fotografias que estão ali para comprovar
que Rosa não está a mentir. Nos retratos, o amor impresso se mantém como
dúvida: onde ele se encontra? Estaria vivo? Diria Guimarães Rosa: “viver é um
rasgar-se e remendar-se”.
Em Luiza, a questão colocada é de outra ordem. Adentramos a casa de uma
família de classe média cujo “drama” se desfaz na fragmentação do diálogo,
marcado por pequenas interrupções nas distrações de Luiza – como na cena em
que a mãe conversa sobre sexo com ela, enquanto pinta as pontas do cabelo
de Luiza, e esta se distrai com o cão; ou no diálogo final com a avó, olhando-a
186 através do pequeno orifício do cereal matinal. Esse aspecto marca um tom de
leveza ao filme que parte da complexidade da temática e da relação familiar
exposta. A partir do primeiro plano, vemos Luiza manusear seu álbum de retratos,
do nascimento aos momentos festivos, reconhecendo-se na imagem. Há um
diálogo entre ela e o diretor/irmão, em dessincronia com a imagem, quando este
a pergunta: “como é que você se chama?”; “você sabe o seu nome completo?”;
“onde você mora?”; “e quantos anos você tem?”. São perguntas simples, mas que
a localizam – também para o espectador – naquela família, com aquele nome,
naquele endereço. Se por um lado, pode-se atribuir ao filme, ou ao desejo de
que haja filme, o fato de ela “não saber” sobre sexo ou sobre as consequências
de se relacionar sexualmente – a mãe demonstra preocupação caso ela engra-
vide –, Luiza propõe uma dobra, quando, por exemplo, diz ao telefone para o
“amoreco”: “eu tirei roupa, na filmagem, pus de volta a camiseta e tirei roupa”.
Na conversa parece haver um desentendimento, próprio da mensagem cifrada:
“ele não mandou beijo pra mim, Caio”; “ele não aceitou”. Não sabemos ao certo
o que o namorado não aceitou, mas a imagem que antecede esta conversa é de
Luiza arrumando a cama vestida com um top e, na sequência, ela mexe o cabelo,
já com a camiseta. Se por um lado, a tentativa de descrição para o namorado
é falhada, por outro, ao expor essa incompletude na linguagem, o diretor dá a
ver que ela sabe da presença da câmera. Já em outras passagens, a câmera é
colocada como observadora e as cenas transcorrem com a aparente tranquili-
dade dos dias comuns. É de Luiza a palavra que fricciona o código, palavra que
oscila frente a todo um vocabulário e sentimentos com os quais temos de lidar.
Luiza nos ensina o que toda poesia – que se quer eco – almeja: expandir-se e
retornar, capturada como som e ressignificada como imagem, infinitamente. Em
Abissal, a palavra também oscila, quando Rosa, depois de muito conversar sobre
o passado com Durval, resolve contar de vez essa história, revelar os detalhes.
Ela gagueja, gesticula, move a cabeça para o lado, checa o ouvinte, convoca o
antecampo. O filme exibe, assim, os diversos matizes desse jogo performativo
que coloca lado a lado quem filma e quem é filmado. Em Abissal, a câmera faz
romper o silêncio entre a avó e o neto sobre o passado.
Maurice Blanchot, em “A palavra plural”, expõe questões que interessam
para pensar os filmes dispostos neste breve comentário. Ao invés de tratar o
diálogo como uma forma admirável de se chegar a um entendimento, marcado
supostamente pela igualdade entre os falantes, Blanchot chamará atenção
justamente para a “diferença” que pode ser aniquilada por uma fala que se
sobreponha a outra: “no espaço inter-relacional o diálogo e a igualdade suposta
pelo diálogo tendem a aumentar a entropia, da mesma forma a comunicação
dialética, se ela exige dois pólos antagônicos, cheios de palavras contrárias e
provocando, por esta contrariedade, uma corrente comum, destina-se, também 187
ela, após belos clamores, a extinguir-se na identidade entrópica”1. Se outros
filmes irão denunciar regimes opressivos que reduzem a palavra a formas que
aniquilam a diferença, o que encontramos aqui são outras formas do viver – e
do falar – que podem ser experimentadas na sala escura, sendo a palavra, no
seu modo fragmentário, também interrupção e ruptura. Blanchot discorre
sobre a “exigência da escrita”, um meio de destinação da palavra plural, mas
arrisco mergulhar nessa tentativa de buscar a pluralidade da palavra na fala,
com Luiza e Rosa.

para tia Lolita

1. BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita 1 – A palavra Plural. Trad. Aurélio Guerra Neto. São
188 Paulo: Escuta, 2001. p. 141.
por Pedro Veras*

O que pode um rosto no cinema? E um corpo? Essas não são questões imediata-
mente legíveis em O CAVALLEIRO, Elyseu, mas que surgem à medida que entramos
em contato com a imagem do personagem-tema do filme e também com as
tantas imagens e sons que produziu e captou ao longo de sua vida. Trata-se de
Elyseu Visconti Cavalleiro1 (1939-2014), cineasta, artista plástico e gravurista
que deixou um rico legado para a iconografia brasileira, composto por obras
que vagueiam através de estéticas bastante distintas entre si. Possivelmente,
seu trabalho mais conhecido tenha sido o experimental Os monstros de Babaloo
(Elyseu Visconti Cavalleiro, 1970), censurado durante dez anos pela ditadura
militar, mas o grosso de sua obra cinematográfica foram os documentários
etnográficos que realizou entre as décadas de 1960 e 2000. Por meio da arti-
culação entre imagens de Cavalleiro já idoso — enquanto reflete sobre sua vida
e seus trabalhos, em entrevistas ocorridas entre 2010 e 2014 — com aquelas
criadas ou filmadas por ele, e ainda fotografias e filmes de arquivo pessoal,
O CAVALLEIRO, Elyseu constrói o retrato do artista.
Filme sobre autor, filme sobre obra. As primeiras imagens de O CAVALLEIRO,
Elyseu não são do artista, mas feitas por ele. A câmera passeia sobre alguns
desenhos, traços, cores espalhadas sobre o papel branco, que formam figuras
a princípio indiscerníveis. Pétalas? Borboletas? Plantas? Larvas? É então que
aos poucos notamos o surgimento de alguns rostos, incompletos e mesclados
às formas que remetem a um jardim psicodélico. Rostos de várias proporções,

* Pesquisador de cinema, ensaísta e tradutor, também atua como curador. Mestre em Comu-
nicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais, na linha Pragmáticas da Imagem.
1.Seu sobrenome em caixa alta, no título do filme, sugere uma singularização do artista, que
era homônimo do avô, Eliseu Visconti — pintor brasileiro, conhecido por sua fase impressio-
nista, que viveu entre 1866 e 1944. 189
tons, formas, encaixados em corpos humanos ou em animais antropomorfos.
A montagem nos leva de seus desenhos para uma vista panorâmica da mata
densa de Teresópolis, até que, pela janela, entramos na casa/ateliê/escritório
de Cavalleiro, para contemplarmos, bem de perto, o rosto do próprio artista.
Esse procedimento que alia “vida e obra” em uma única sequência de planos,
sugere uma conexão entre a aparição do artista e a aparição dos corpos em sua
obra, pintados ou filmados, criados ou registrados.
Passando do Elyseu-desenhista para o Elyseu-cineasta, entra em cena a
primeira imagem de arquivo de um de seus filmes etnográficos, Ticumbi (Elyseu
Visconti Cavalleiro, 1978), na qual vemos membros de um quilombo capixaba
em procissão sobre uma barca, tradição que faz parte da festa folclórica que
dá nome ao curta-metragem. As pessoas filmadas por Elyseu parecem voltar
do passado longínquo para encontrar o realizador, agora também tornado
imagem, no tempo do filme. Mas é quando surge a figura de um passante
anônimo — que carrega sobre a cabeça um amontoado de galhos secos — em
Feira de Campina Grande (Elyseu Visconti Cavalleiro, 1978), é que esse diálogo
entre imagens começa a se intensificar. Quem foi aquele homem que encarou
diretamente a câmera de Cavalleiro nos anos 1970? O que pode nos dizer a
aparição de seu rosto? Qual foi sua história de vida? Por que ele carregava os
galhos? Informações não reveladas no curta-metragem de Cavalleiro, onde a
narração onisciente descreve os dados objetivos a respeito da imensa feira na
cidade paraibana. Ainda assim, a imagem desse homem permanece, está eter-
nizada em nossa iconografia, podemos vê-la hoje e arriscarmos alguns palpites
sobre sua vida, inclusive de sua relação com a câmera no momento da filmagem.
Naquele dia, durante seu gesto cotidiano de trabalhar na feira, ele deparou
com o cinema. Esse contato da câmera com o povo é fundamental para a obra
do cineasta, agora retomada — ou remontada — pelo filme de Iulik Lomba
de Farias. Isso porque o próprio Cavalleiro revela que procurou “descobrir” o
popular, demonstrando um empenho em elaborar uma “imagem do povo brasi-
leiro”, missão espinhosa compartilhada com outras e outros cineastas de seu
tempo. Mas afinal, que povo era esse? Parece ser uma pergunta que o próprio
feirante faz àquele que capturou a sua imagem, que agora aparece também
impresso em uma tela. Imagens em diálogo. Isso graças a essa plasticidade
contida nas imagens — as posições dos rostos, os contornos dos corpos, os
gestos de cada pessoa — que as liberta de um atrelamento ao discurso que
poderia “domá-las”, orientá-las e, por fim, usá-las como meras ilustrações.
O CAVALLEIRO, Elyseu começa a se configurar como um filme que elabora
um encontro — possível confronto — entre autor e obra, que nos leva para
190 além de um convencional “filme-homenagem”.
Enquanto isso, de volta à casa de Teresópolis, a câmera na mão se contorce
para explorar o corpo e o rosto de Elyseu Visconti Cavalleiro. Em planos bem
fechados, caminhamos sobre a pele enrugada do realizador, que revela ter nascido
no Rio de Janeiro, porém ter se mudado logo para Teresópolis por motivos de
saúde. Ele relembra o estágio com o pintor Oswaldo Goeldi, viagens, a relação
com a umbanda e a influência do artista Heitor dos Prazeres. A espontanei-
dade das conversas, regadas a copos de cerveja, revela não apenas as ideias,
preferências estéticas e estórias do personagem, mas também o seu universo
particular de imagens. Recortes, fotografias, cartazes e desenhos emolduram o
corpo do artista na intimidade de sua casa. Enquanto ouvimos sua voz, o filme
de Farias retoma os arquivos e volta no tempo para perscrutar planos de Folia do
divino (Elyseu Visconti Cavalleiro, 1968), Caboclinhos de Tapirapé (Elyseu Visconti
Cavalleiro, 1978) e Maracatu - estrela da tarde (Elyseu Visconti Cavalleiro, 1978),
todos com o mesmo tom de “registro do folclore brasileiro”. Mas Cavalleiro
expressa a intenção de superar tal etiqueta, ir além dessa abordagem superfi-
cial: “O nitrato de prata capta a energia! Não é DVD não. É filme, negativo. O
negativo capta a energia. [Se] Uma câmera [fica] em cima de você durante uma
hora, meia hora, sua energia vai pro beleléu. (…) [É] Uma alquimia!”.
Fluxo que é novamente animado pela montagem de O CAVALLEIRO, Elyseu,
ao interpor as imagens de arquivo tão distantes temporalmente. Na camada
sonora, Cavalleiro narra suas experiências artísticas, “sentindo a energia” das
pessoas que filmou e fotografou, enquanto a imagem apresenta materialmente
esses rostos anônimos, dos quais ele fala. Esse diálogo — ou “fluxo energético” —,
iniciado pelo negativo no ato da filmagem e agora acessível pelo digital, é
renovado. É como se a postura frontal de um caboclo de lança do Maracatu em
Pernambuco, que encara a câmera, ou os sorrisos nos rostos de algumas crianças
que acompanham a festa do Boi Calemba no Rio Grande do Norte, irrompessem
nas imagens para reivindicar alguma singularidade. São rostos que parecem
exigir de nosso olhar algo que os torne únicos, em meio ao universo das imagens
estereotípicas que circulam no “mercado das aparências”. São imagens e sons
que apontam para uma possibilidade de resistência, de sobrevida, das culturas
folclóricas e dos modos de vida tradicionais.
Elyseu Visconti Cavalleiro — esse “vulcão de inquietações criativas, figura
firme & forte nas rodas às vezes esotéricas da experimentação cíclica”, como o
descreveu Jairo Ferreira (2016, p. 200) — faleceu em 2014, contudo é preciso
reconhecer que seus filmes continuam quentes. Todas essas possíveis histórias
impressas em cada pessoa por ele registrada, no conjunto de seus documentá-
rios, permitem a continuação do trânsito de energias e de significados. Rostos
e corpos, gestos e modos, transformados em imagens que se põem à espera 191
de novos encontros, para atestarem alguma forma de reconhecimento e de
resistência contra as forças que se empenham em apagá-los.

Referência

FERREIRA, Jairo. Cinema de invenção. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2016.

192
por Carla Maia*

... e prisões não surgem por acaso: são resultado de uma sociedade disciplinar
que faz da vigilância seu método de adestramento e docilização. Como lemos
em Vigiar e Punir, de Foucault, prisões instauram “um novo poder de julgar” que
reformula estruturalmente “o poder de punir.” Na passagem das punições físicas
(fogueira, guilhotina, enforcamento) para as penas judiciais, o objeto da punição
se altera em definitivo. Embora o corpo ainda seja afetado, afinal, é ele que
se aprisiona, que é sujeitado a regimes alimentares, privação sexual, expiação
física, é a “alma”, ou em outros termos, a subjetividade, a psique, a consciência
do sujeito que se torna o principal alvo das instituições carcerárias. “À expiação
que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente,
sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições”, escreve Foucault. Assim,
o objeto julgado também altera-se sensivelmente: julga-se não apenas o ato
infrator, mas todo o histórico do delinquente, “quais são as relações entre ele,
seu passado e seu crime, e o que esperar dele no futuro”.
Quando o documentário vai ao encontro de um “delinquente”, há sempre o
risco de se reproduzir, na forma do filme, o modo de funcionamento do cárcere,
por meio de procedimentos de identificação que operam justamente essa
ligação entre o sujeito, seu passado, seus erros e seu futuro. Como libertar o
sujeito filmado do perfil sociológico duro e inflexível, de modo a não fazer dele
apenas o triste retrato de sua própria pena e martírio? Como abrir espaço, na
duração mesma do filme, para algo que viria devolver ao sujeito suas vontades
e disposições, sua força de intelecto, seu próprio desejo?

* Ensaísta, curadora e pesquisadora de cinema. Doutora em Comunicação Social pela FAFI-


CH/UFMG, com período sanduíche na Tulane University, em New Orleans/EUA. Professora do
Instituto de Comunicação e Artes do Centro Universitário UNA. Integrante do coletivo Filmes
de Quintal. 193
O mérito de um filme como Lírios não nascem da lei (Fabiana Leite, 2017)
reside justamente no esforço em lidar com essas questões. Entre 2014 e 2016,
a equipe liderada por Fabiana irá acompanhar mulheres infratoras que, em
razão de sua gravidez, estão encarceradas em prisões especiais destinadas a
gestantes. Nesses centros de detenção, elas vão esperar, parir e nutrir seus filhos
até o momento da separação, quando os bebês são levados para os cuidados
de familiares ou centros de adoção. Na abordagem desse tema delicado, é a
relação da equipe com as mulheres filmadas que irá sustentar a mise-en-scène.
As personagens deixam-se seguir pelas celas e pelos corredores, parecem à
vontade, movimentam-se com naturalidade pelo espaço fílmico, contam suas
desventuras, seus medos e suas expectativas sem constrangimentos evidentes.
Isto não é pouco. Os mundos das mulheres atrás e à frente da câmera não
poderiam ser mais distintos, no entanto, há ponte possível e ela é construída
com bastante sensibilidade.
A câmera, desde o início, faz companhia. A sequência inicial já prenuncia a
maneira como a equipe busca estar próxima das personagens, discreta e cons-
tantemente. Vemos uma mulher com um bebê-conforto a tiracolo no trajeto
da rodoviária até a prisão. Ela é irmã de uma detenta, saberemos depois, e está
indo ao hospital buscar o sobrinho, filho de sua irmã nascido na prisão, para
cuidar dele enquanto a irmã cumpre a pena. Entramos na prisão, pois, como
quem faz uma visita, como quem, também, está ali para oferecer companhia.
Observamos a policial colocar lentamente as luvas para o exame ginecológico
imposto às visitantes. A porta se fecha, e entendemos, de saída, que boa parte
do filme não irá se construir do que é visto, mas do que permanece extracampo.
Um pouco como acontece na própria experiência das detentas, o exterior vai
sempre tensionar o interior, o que está fora de campo afeta e transforma o
que está em cena.
Em cena, Ana Carolina, Liliane, Dayane e Marcela, quatro protagonistas
com histórias estranhamente parecidas. Há sempre um caso de amor, de delito
e de abandono no extracampo. E há sempre uma criança por vir. Não é inédito o
tema do encarceramento feminino no cinema documentário recente: em 2004,
Lila Stulbach realiza O cárcere e a rua, exibido e premiado na oitava edição do
forumdoc.bh; em 2010, Cláudia Priscilla lança Leite e ferro, filmado no CAHMP
(Centro de Atendimento Hospitalar à Mulher Presa). Em ambos, como agora
em Lírios, o esforço é o de acompanhar presidiárias, por procedimentos de
observação e entrevistas. Variações do mesmo tema, o método comum aos três
filmes parece ser o de colocar-se à escuta das mulheres. Se a imagem tem de
lidar com os limites espaciais das locações, prevalecendo os planos fechados e
194 os quadros dentro do quadro (a porta da cela, a janela do presídio, as paredes,
tudo parece estar “enquadrado”), é a fala das mulheres que vem abrir uma
fenda, um ponto de fuga para o exterior: a vida antes da prisão, os planos de
futuro, os sonhos de liberdade cultivados na clausura.
Para além das semelhanças entre os três filmes, em Lírios algo se renova na
maneira como a obra vai ressaltar, ou enfatizar, a relação entre campo e ante-
campo. Este é o único dos três filmes em que as realizadoras – a maior parte da
equipe é composta por mulheres, vale dizer – aparecem em cena. Nas entrevistas,
não raro escutamos a voz da realizadora fazendo as perguntas. Pontualmente,
temos a imagem da equipe – em um desses momentos, vemos Liliane receber
Fabiana e Daniela com abraços na prisão, como quem recebe a visita de amigas.
Semelhante procedimento apenas confirma a ênfase na relação entre equipe e
personagens, construída a cada encontro entre os muros do cárcere. Confirma
também o pertencimento desta obra a seu tempo: no cinema brasileiro recente,
semelhante investimento nas relações e no afeto tem se provado recorrente, em
uma “virada afetiva” que toma o lugar da explicação e da objetividade, pretensões
nada incomuns ao fazer documental mas vistas com suspeitas e ressalvas por
uma boa parte dos realizadores e das realizadoras contemporâneas.
No primeiro depoimento do filme, Dayanne lê uma carta de amor do pai
de seu filho. Depois, vemos Liliane sentida porque uma amiga havia entregado
o filho naquele dia e porque estava sem notícias do namorado. Também acom-
panhamos a despedida comovente de Carol e seu bebê – a sequência inicial
finalmente encontra sua continuação e desfecho. E ouvimos o pungente desabafo
de Marcela, personagem de participação mais apressada, que parece ter sido
incluída apenas para que houvesse no filme essa frase-síntese da experiência
daquelas mulheres, filhos a tiracolo: “falar dói”.
Dói falar da separação do filho, do amor perdido, dos abusos sofridos por
parentes e companheiros. Dói admitir que há muitas prisões para as mulheres, e
que as mais perversas são de ordem simbólica: o sonho constante de se realizar
ao lado de um homem, a culpa que acompanha boa parte da experiência da
maternidade, as críticas e condenações de uma sociedade machista e misógina,
enfim, as clausuras da identidade feminina. Como escreve Marguerite Duras,
“somos todas instruídas em dor”. Pode não ser acaso, afinal, a recorrência dos
documentários dirigidos por mulheres com personagens presidiárias...
Bastante sensível às dores de suas personagens, o filme no entanto se
esforça em não reduzi-las à dimensão trágica da existência. Há cenas conta-
minadas de leveza e alegria, como aquela em que vemos as companheiras de
prisão deitadas no pátio, mirando o céu (o espaço azul da liberdade) enquanto
enumeram as comidas de que sentem falta – chocolate, Subway, broa de fubá,
açaí, namorado (“Namorado, comida?” – riem as jovens). Na sequência, elas 195
comentam como sentem falta do carinho, das mãos, do perfume dos amantes.
Com essas cenas, entendemos, enfim, que é projeto do filme fazer desses corpos
encarcerados mais do que objetos de estudo ou vítimas sociais: são corpos que
desejam, que fazem escolhas, que sofrem com as consequências de suas ações
mas que permanecem resistentes e vivos. Se o objetivo da prisão, como vimos em
Foucault, é destruir a subjetividade dos sujeitos, formando uma massa amorfa e
impessoal de condenados disciplinados, passivos, desprovidos de ação, o filme
toma a via contrária, justamente por revelar, ao oferecer companhia e escuta a
essas mulheres, o que nelas ainda resiste e ama, deseja e vibra.

196
por Victor Guimarães*

Como filmar uma mulher que dança? Como, num só gesto, fazer justiça à sensu-
alidade e ao prazer que se desprendem de seus movimentos, sem transformá-la
num pedaço de carne, mas sem reduzi-la tampouco a um parágrafo dirigido à
boa consciência burguesa? No primeiro plano de Baronesa (Juliana Antunes,
2017), é preciso começar por filmá-la de lado, num arranjo formal que reúne a
barriga (onde se resolve o complicadíssimo jogo do quadradinho), o braço, parte
do quadril e dos seios; acompanhar o ritmo do funk e o frêmito do corpo em
sinuosos reenquadramentos laterais que exalam energia; e então enquadrar
o rosto de Gabriela (o colar cuidadosamente ajustado no pescoço nos diz seu
nome), seu olhar inteiramente imerso no próprio corpo e entregue à delícia da
música, até que a câmera volta à posição inicial, a canção se encerra, a moça sai
de quadro e surge o emblemático título do filme.
Já na abertura, Baronesa recusa tanto a objetificação grosseira quanto a
sintomatologia frígida, mas o olhar da realizadora se afirma não pelo que rechaça,
e sim porque encontra no mundo uma força viva e forja com ela uma proeza a
um só tempo formal e política. O filme começa como um retrato vivaz do coti-
diano de Andreia e Leidiane, moradoras da Vila Mariquinha, em Belo Horizonte,
e de seu amigo Negão. Em uma montagem que reúne fragmentos precisos e
íntegros, vemos os três em momentos de ócio, a falar sobre a vida e sonhar
com o futuro, a jogar capoeira na rua e a improvisar uma piscina na caixa d’água.
De forma cada vez mais intensa, o peso da tragédia brasileira se adensará
como uma sombra escura, que paira sobre os momentos mais lúdicos, mas
por enquanto quem reina é o desejo – na frente e atrás da câmera. Bem longe

* Crítico, professor e programador. Colaborador da Cinética e de revistas como Senses of Ci-


nema, Desistfilm e La Furia Umana. Programou mostras no Cineclube Comum, Caixa Cultural
RJ, CachoeiraDoc, Semana dos Realizadores e Janela Internacional de Cinema do Recife. 197
do distanciamento asséptico que embaça o que há de pior em certo cinema
de observação contemporâneo, que parte da não-intervenção para reduzir o
olhar à mera constatação ou à celebração automática de uma excentricidade
qualquer, Baronesa é um filme de olhares implicados e de proximidades mútuas.
Os planos são quase sempre próximos e a aposta é em uma performance que
se dá fundamentalmente para a câmera, e nunca a despeito dela.
Não se trata de fazer um diagnóstico (eis a tese vulgar), nem de embe-
lezar a vida dos pobres (eis a cosmética), nem de contemplá-la sobriamente
à distância (eis a assepsia), mas de construir, bem junto dessas pessoas, uma
forma cinematográfica que esteja à altura de sua potência de invenção. Andreia
e Leidiane são as mulheres ilustres que o filme deseja elogiar, mas para isso é
preciso ir além do reconhecimento; é preciso invenção, risco, cinema. Talvez a
forma mais justa de filmar o outro seja tirá-lo para dançar.
Na primeira metade, a alegria do encontro vaza da tela em jorros constantes,
e a riqueza da experiência popular brasileira se traduz com uma raríssima inten-
sidade de prazer: a deliciosa conversa sobre masturbação entre as mulheres da
favela, o sex appeal que exala do malandríssimo Negão. Por momentos, Baronesa
lembra algumas de nossas melhores comédias populares, como a obra-prima
As Aventuras Amorosas de um Padeiro (Waldir Onofre, 1975). Não há risada de
escárnio ou de canto de boca. Enquanto tantos filmes afoitos pela excentrici-
dade instigam o riso em um espectador que se sente superior ao que vê, em
Baronesa é a frequência do humor que circula entre as personagens que nos
contagia do lado de cá.
Mas se não é distanciado, Baronesa tampouco é condescendente. Andreia
reage com exaltação diante de uma possível situação de abuso sexual entre os
filhos pequenos de Leidiane. No primeiro momento, toda a violência acontece
nas adjacências da cena, e não diante do espectador (no extremo oposto do
voyeurismo, o filme retém o afã da exposição e a circunscreve rigorosamente
ao fora-de-campo). No plano seguinte, Andreia explode em fúria diante das
crianças, e aqui está o gesto mais arriscado: como sustentar o plano frente a esse
momento em que a personagem expõe suas fragilidades e seus preconceitos
(ao nosso olhar, claro) de forma tão rasgada? No momento em que a maioria de
seus contemporâneos preferiria cortar; numa época em que certo cinema – e
certa crítica – parece preferir uma tese adequada a uma encenação que encara
de frente as contradições que nos atravessam (e não apenas as personagens,
parece ser necessário lembrar), a realizadora prefere sustentar a tensão e cons-
truir uma protagonista espessa, cheia de contrastes, enfim, uma personagem de
cinema e não um aforismo. Há ainda um terceiro plano: o relato da protagonista
198 sobre sua infância de abandono e de incontáveis estupros sofridos por parte do
padrasto, que culminaram numa facada no pescoço do estuprador quando ela
tinha onze anos de idade, à vista do irmão menor. A violência irrepresentável é
mediada pela memória, o que mantém sua potência de pensamento, despindo-a
do efeitismo do choque. O despudor de Baronesa, sua maneira franca de encarar
as entranhas abertas de uma experiência humana sem dourar a pílula, é sua maior
força e ao mesmo tempo o que não cabe (e ainda bem) na boa consciência de
uma crítica ávida por uma representação lisa, higiênica, correta – e inofensiva.
No decorrer da projeção, a iminência de uma guerra do tráfico – que faz
Andrea decidir fugir do bairro e terminará por ceifar a vida de Negão – se infiltra
na carne do filme como metástase. Juliana Antunes passa a filmar a sombra
trágica que se projeta sobre a exuberância de uma forma de vida – e o faz
em tom menor, atenta aos silêncios, sem afetação alguma, como uma longa
e dolorosa despedida. Baronesa começa como um filme que se deixa imantar
pela vivacidade de suas personagens, um convite para construir junto delas
uma transa cinematográfica, mas no meio do caminho o cinema é (literalmente)
atropelado pela violência do extracampo, e o transe do mundo se impõe como
força imparável. A certa altura, Andreia e Leidiane se põem a refletir sobre a
desigualdade brasileira, sentadas na porta de casa. Elas se lembram de “Povo
da periferia”, de Ndee Naldinho, e começam a cantar o rap. É então que uma
rajada de tiros de grosso calibre intervém com violência na banda sonora. As duas
fogem num rompante, a câmera cai, e o que até então era de uma visualidade
franca é ameaçado pela desfiguração: violentamente esburacada pelo real, é
a carne do filme que se despedaça diante de nossos olhos.
Para mim, que comecei a acreditar em milagres quando vi Stromboli (1950)
de Rossellini, é impossível não qualificar esse momento de Baronesa como um
milagre cinematográfico. Não apenas a junção cósmica entre um desejo de filme
e uma orquestração exata do mundo num momento irrepetível, mas a decisão
de montagem de situá-la nesse lugar (uma ruptura dramática importante, mas
longe ainda do final), que mantém a brutalidade da violência sem se render à
tentação do choque, ao mesmo tempo em que expande os sentidos da ruptura
ao integrá-la à dramaturgia do filme.
Quando Andreia se mudar para a casa nova e encarar o horizonte – e Leidiane
devolver o olhar no plano seguinte, sentada num telhado da Vila Mariquinha –,
os olhares brotarão não da vontade soberana de dizer algo, mas de um terreno
dramático singular, que vinculava as personagens e agora as separa no espaço
e na vida. É por ser fiel à sua própria ficção que Baronesa se ergue com altivez
frente a seus contemporâneos; é por ser justo ao mesmo tempo com quem filma
e com seu próprio desejo que o olhar de Juliana Antunes sobressai de maneira
tão evidente. É impossível ser fiel ao outro sem ser fiel a si mesmo. 199
por André Novais Oliveira*

Corpo Delito (Pedro Rocha, 2017) começa e já somos apresentados ao conflito


do personagem principal. A cena inicial mostra Ivan, homem negro, de 30 anos,
apertando parafusos num típico trabalho maçante em uma fábrica- escola de
uma penitenciária. Logo em seguida, acompanhamos uma conversa na qual ele
expõe para uma psicóloga sua rotina. Ele ainda se considera “preso” dentro do
regime semiaberto: ir do trabalho pra casa e da casa para o trabalho, acompa-
nhado sempre de sua tornozeleira eletrônica, que o monitora noite e dia. Ele
é perguntado se o seu incômodo com aquela situação é pelo seu jeito de ser
impaciente ou por sua personalidade inquieta, que o faz sonhar fazer muitas
coisas. A resposta de Ivan diz respeito a ambas as alternativas. O desejo de viver
é grande e se aflora a cada minuto, deixando-o impaciente, algo que, para o
personagem, parece virar uma bola de neve.
Dado o conflito que se apresenta de forma muito direta e clara, iremos
acompanhar Ivan em sua rotina, principalmente em sua casa, onde passa a
maioria do dia, por obrigação. Em suas atividades, vamos sentindo a passagem
do tempo que parece oprimir Ivan em seu enclausuramento. A tornozeleira em
sua perna faz um sinal sonoro, uma espécie de bip, de tempos em tempos. Neto,
mais novo que Ivan, é um amigo próximo que o acompanha em vários momentos,
assistindo TV, conversando e ouvindo música. Ele é claramente sua ligação com
o mundo exterior que tanto busca. Para Ivan, sair daquela situação por vias
ilegais, o levará apenas a três caminhos: voltar pra cadeia, ir para o cemitério ou
para uma cadeira de rodas. De hora em vez, o assunto de sua liberdade volta e

* Diretor e roteirista. Dirigiu os curtas-metragens Fantasmas (2010), Pouco Mais de Um Mês


(2013) e Quintal (2015) e o longa-metragem Ela Volta na Quinta (2014), entre outros trabalhos.
200 Integra a Filmes de Plástico, produtora de cinema e audiovisual sediada em Belo Horizonte/MG.
a tentação de sair daquele “semi-aprisionamento” esbarra nessa sua conclusão
que o afasta de qualquer investida fora da lei.
Seu tempo inerte é pontuado em alguns momentos por músicas dos
Racionais MCs, e percebe-se o seu conhecimento e domínio das letras do grupo,
cantando junto com o som do rádio verdadeiros hinos da periferia. É impossível
não pensar que ele também conheça as diversas outras músicas do quarteto de
rap e imaginar como isso toca sua vida e seus pensamentos, talvez sua condição
de um ex-carcerário a ouvir O Homem da Estrada, ou pensar sua condição como
negro em Negro Drama, torcer pra uma situação melhor pra todos em sua volta
em A Fórmula Mágica da Paz e analisar a “doideira” que a vida é, e como ele sairá
daquela condição com prosperidade em Vida Loca I e Vida Loca II.
O tempo passa e continuamos o acompanhando na visão de uma equipe
que parece reforçar a ideia de enclausuramento, que fecha o personagem
mais ainda naquele local, corroborando outra forma de aprisionamento: a dos
enquadramentos, que na maioria das vezes o deixam imóvel dentro dos planos,
parecendo lembrá-lo da natureza estática daquele seu momento.
O filme vai para fora, sai dos espaços de clausura como se buscasse ar,
seguindo Neto, amigo de Ivan, que, apesar de estar em muitos momentos com
ele, aproveita sua vida com mais “liberdade” para explorar mais lugares, sozinho
ou acompanhado. Em uma dessas saídas de Neto acontece algo que está ligado
diretamente ao drama de Ivan. Em uma festa, aonde ele se diverte dançando e
bebendo com amigos, acontece uma batida policial. Neto é um dos revistados,
tratando aquilo tudo com muita naturalidade, como se tivesse passado por
várias vezes por aquela situação. E a partir disso podemos ler que Neto também
é “monitorado”. Como todo jovem negro da periferia, Neto é “visado” por onde
anda, mesmo sem uma tornozeleira eletrônica.
Há algo no extracampo, quando o filme retrata o cotidiano de Ivan. A
tornozeleira está ali em sua perna, apitando para lembrá-lo o tempo todo de sua
condição, que ele insiste em esquecer. Mas é difícil não imaginar o local onde
se faz aquela monitoração do sinal da tornozeleira. Difícil não imaginar pessoas
atentas, trabalhadores da polícia, em programas de computador observando
cada passo de Ivan. É uma espécie de sistema panóptico computadorizado e
moderno, algo no estilo da literatura de ficção científica do século passado
que, sem nos darmos conta, já se encontra entre nós, sem muitas vezes perce-
bermos o quão assustador isso é. Esse trabalho do departamento da polícia
está a todo momento presente nas cenas, sem a nenhum instante ser mostrado.
Até que em um momento do filme Ivan recebe uma ligação da polícia quando
parecem lhe questionar a sua mudança de rotina, alterando seu percurso do
trabalho para a casa ou vice-versa. É uma dessas pessoas que podemos imaginar, 201
incidindo diretamente no filme, saindo do extracampo e emergindo através de
uma ligação.
O filme, com uma linguagem e estética similar a de várias outras obras do
cinema brasileiro contemporâneo, se utiliza, de forma bem colocada, de uma
espécie de clichê visto em muitas produções de narrativa mais clássica, que
mostram a passagem do tempo utilizando-se de artefatos como datas comemo-
rativas. Assim acompanhamos a angustiante espera da mudança da situação de
Ivan através do Natal, Réveillon, até chegar no Carnaval. Dentro desse contexto,
o personagem decide encobrir a tornozeleira com papel-alumínio para apagar
o sinal do aparelho, para obter um pouco mais de liberdade.
Corpo Delito termina mostrando Ivan preso novamente. No caso, a prisão
mais convencional no cárcere, que o priva da liberdade. O desejo de liberdade é
inato ao ser humano e, no caso de Ivan, o prazer de vivê-la só é experimentado
quando ele a tem de forma “integral”, ou melhor, quando ele acha que a tem
de forma integral, sendo que a questão de liberdade em termos filosóficos
e psicológicos é muito mais complexa do que o simples desejo de ser livre e
poder andar por aí.
Ainda no final do filme, vemos Neto e um amigo no alto de um prédio
abandonado. Eles olham para parte de Fortaleza, avistam o horizonte, apontam
para lugares como se gozassem da liberdade que Ivan não pode ter, mas quem
sabe um dia terá, quando cumprir toda a sua pena.

202
por Mariana Souto*

Modo de produção é um filme de economia, nos mais abrangentes sentidos.


Atento às relações de trabalho num modo capitalista que prolonga um sistema
colonial (um letreiro inicial diz que o cultivo de cana remonta ao Brasil Colônia),
investiga as vivências e os diálogos travados nos ambientes de um sindicato de
trabalhadores rurais de Pernambuco. Ao mesmo tempo, trata-se também de um
filme econômico em suas escolhas documentais, na maneira de se aproximar
dos personagens e de construir um discurso.
O filme adentra o terreno do sindicato paulatinamente, desde seu abrir
de portas, registrando os recônditos vazios ainda à espera das pessoas que
irão preenchê-los. Ao observar os espaços (os cômodos simples, um ventilador
de teto capenga, as placas desbotadas das salas), vai inserindo e enraizando o
espectador naquela ambientação; sua aproximação é sempre lenta e cautelosa.
As filas se formam, uns são atendidos enquanto outros aguardam. As esperas,
o tédio e a morosidade que são peculiares às instituições burocráticas estão lá,
pautando o ritmo do filme e criando uma conotação de purgatório. Dea Ferraz
aqui se filia ao cinema direto e, em especial, ao trabalho dos cineastas que se
debruçam sobre instituições, de Frederick Wiseman a Raymond Depardon,
avizinhando-se também de Maria Augusta Ramos – Juízo (2007) ressona em
alguns aspectos, como numa certa dificuldade de compreensão do vocabulário
jurídico que trava o fluir da comunicação entre as partes e que constrange os
personagens, alguns deles analfabetos, que se sentam diante da mesa.
Filmado em salas pequenas, com pouco recuo, Modo de produção atinge
um impressionante grau de proximidade com os entrevistados, e alcança a
sensação de que a câmera não está lá – em raros momentos nota-se uma certa

* Doutora em Comunicação pela UFMG, onde pesquisou cinema brasileiro. Professora da gra-
duação em Cinema e Audiovisual da UNA. Trabalha também como curadora e diretora de arte. 203
impaciência ou relutância dos participantes com a presença do aparato fílmico.
O dispositivo1, que se baseia na escolha por esse sindicato como microcosmo
revelador de um contexto maior, rende ao filme um conhecimento para além
daquelas paredes, estratégia que propicia um certo acesso, ainda que de maneira
distanciada (pois situada na urbanidade), às condições do trabalhador do campo.
A conexão do pequeno sindicato de Ipojuca com o contexto brasileiro, econô-
mico e político, que o abarca é costurado pelos letreiros finais, quando o filme
explicita seus temores:

O material bruto desse filme foi captado em 2013. Em 2016 o Congresso e o


Senado brasileiro congelam por 20 anos investimentos em saúde, educação e
previdência social. Em 2017, o Congresso e setores da sociedade civil articulam
mudanças sérias nas regras que regem as leis trabalhistas, e com medidas provisórias
pretendem reformas brutais na previdência social, deixando o trabalhador ainda
mais vulnerável.

Os atendimentos do sindicato revelam situações aberrantes do mundo do


trabalho: sobrecarga física, anos sem férias, salários miseráveis, insalubridade,
má fé dos empregadores no fornecimento de informações (“eles tão fazendo
isso por perversidade”, diz um trabalhador). Ao espectador de classe média é
reservado um mal-estar ao ouvir valores tão irrisórios sendo negociados com
tamanha dificuldade.
A aridez do trabalho (sempre fora de campo) contrasta com duas imagens
de miragens que surgem no filme – aliás, de dois Portos, embora impregnadas
de sentidos opostos. A primeira é de um cartaz turístico colado à parede nua de
uma das salas do sindicato, estampado com as águas claras de Porto de Galinhas,
destino do descanso e do lazer, paraíso longínquo e fora do alcance da maior
parte daquelas pessoas, que mal férias têm. Em meio a tantas internas, esse
imaginário paira como o quadro da mulher na praia, que destoa do quarto escuro
e fechado de Barton Fink (irmãos Coen, 1991). A outra miragem é o próprio Porto
de Suape2, que inicia e encerra o filme, visto ao longe em imagens ondulantes
que sugerem os quilômetros de distância em relação à câmera. Ao contrário
da primeira, lembrança de um oásis inalcançável, esta adquire uma tonalidade
assustadora – uma construção imponente e opressora tornada fantasmagórica
pelo cinema, uma assombração que ronda os trabalhadores a partir de uma
espécie de onipresença imaginária.

1. Dea Ferraz realizara, em 2016, um filme-dispositivo chamado Câmara de espelhos, obra com
intervenções muito mais diretas do que a presença sutil e discreta aqui observada.
2. O letreiro inicial assim define “Suape: porto de containers instalado na região ao sul do
Recife - coração da economia açucareira - e durante alguns anos apresentado como promessa
204 de desenvolvimento econômico e social do Nordeste Brasileiro”.
Discreto, vagaroso e paciente em quase toda sua duração (nessa emprei-
tada de retratar um mundo burocrático), os momentos de maior energia do
filme se concentram numa reunião de mulheres, coordenada por uma senhora
que tenta comunicar valores de saúde, liberdade, tolerância e feminismo às
participantes (“homens também podem cuidar da casa e dos filhos”). Um movi-
mento de câmera panorâmico se desloca para um homem que ouve a conversa,
disfarçando sua curiosidade e possível desconforto. É ela quem demarca, pela
primeira e única vez, as diferenças entre a equipe e os personagens do filme, ao
comentar questões raciais, dizendo ser negra e apontar para a direção da câmera
falando “já elas são bem branquinhas”. É dessa senhora também a última frase
do filme (“faça exercício regularmente sem ultrapassar o limite do seu corpo”),
que ecoa por duas vezes, contrastando com os relatos dos sindicalizados a
respeito dos excessos do árduo trabalho braçal.

205
por Amália Coelho e Paula Kimo*

Em busca de Lélia pode ser pensado tanto pelo viés da memória, quanto pela
perspectiva de uma escrita pessoal. Memória e testemunho se entrelaçam num
"filme de busca", como o próprio título diz, mas também de reconhecimento,
constituído numa narrativa em primeira pessoa conduzida pela diretora Beatriz
Vieirah. Mais do que um filme feito na primeira pessoa do singular, nos depa-
ramos com uma escritura plural, onde as vozes de Lélia e Beatriz se articulam
às vozes de mulheres negras, militantes, amigos e familiares da antropóloga e
professora que revolucionou os movimentos negros e feministas nas décadas
de 70 e 80 no Brasil. Beatriz Vieirah, Annie Ganzala, Lila Raio de Sol Ganzala,
Rubens Rufino, Eliane de Almeida, Kabengele Munanga, Beatriz Nascimento,
Jane Thome, Dulce Maria Pereira, Jurema Batista, Rosalia Lemos, Elizabeth Viana,
Conceição Evaristo, Januário Garcia, Zózimo Bulbul e Mateus Aleluia: todos
estes nomes nos levam à Lélia Gonzalez. Nessa busca, o filme traça e confunde
o percurso de Lélia com a trajetória de vida das demais personagens, retomando
e redescobrindo suas histórias, cruzamentos, teorias e construções políticas.
Em busca de Lélia e em busca de si, Beatriz Vieirah estabelece um percurso
que re-conhece os laços entre as personagens – num filme em que ela, diretora,
é também protagonista – e revisita os locais afetivos e históricos de atuação da
militante, professora, mãe e mulher, Lélia Gonzalez: uma das mulheres negras
mais importantes da história do pensamento brasileiro. Seja por meio das suas
aparições em cena, do diálogo estabelecido no espaço do antecampo ou da

* Amália Coelho de Souza é graduanda em Antropologia na UFMG, realizadora audiovisual na


Placa Provisória Filmes produtora e curadora da Mostra Cinema Negra (2017). Paula Kimo é mes-
tre em Comunicação Social pela UFMG com a pesquisa Modulações das Imagens Insurgentes: a
variação do antecampo nos atos de disputa política. Curadora da seção "Cidade em Movimento"
206 da Mostra CineBH. Cineasta, produtora, ativista social e feminista.
narração em off que atravessa todo o material fílmico, a diretora torna visíveis
as pegadas ancestrais de Lélia inscrevendo seu próprio caminho subjetivo e
poético: “olhava no espelho, por vezes eu via os reflexos de Lélia. Nem sequer
vivi em seu tempo, mas o sinto. Sinto sua história”. Ao fitar seu reflexo nas
águas do Rio Paraguassu, na cidade de Cachoeira no Recôncavo Baiano, Beatriz
estampa o processo de autoconhecimento desencadeado pelo filme que mostra
não só o engajamento mútuo daqueles que conviveram com Lélia em vida, mas
também, daqueles que se projetam através “de seus processos” também de
autoconhecimento e de ancestralidade.
O filme abre com a fala de Lélia Gonzalez: “é dessa consciência… dessa
consciência negra e dessa solidariedade negra, que de repente a gente vê os
caminhos onde é que a gente anda”. Percorrendo os caminhos de Lélia em
depoimentos e memórias afetivas, imagens públicas e conceitos teóricos, o
filme acessa arquivos, adentra lugares e cria circunstâncias passíveis ao reco-
nhecimento de Lélia, porém articuladas à um projeto de busca do inatingível: a
dimensão fundadora de Lélia Gonzalez tanto na história de vida de seus pares,
quanto no fortalecimento dos movimentos negros e feministas no Brasil. Na
perspectiva da mulher, o filme traz a problemática racial no Brasil, o que para
Lélia é um dos principais pontos do Movimento Negro Unificado – MNU: "levar
a questão racial onde quer que você esteja". Apontando críticas à democracia
racial, o filme "fala com" o libertador Zumbi dos Palmares, passa pela história
do MNU, remonta os tempos do grupo Nzinga como perspectiva de poder e
situa a emergência do feminismo negro traduzindo em uma multiplicidade de
vozes aquilo que desponta na luta e sobrevivência de um povo: a consciência
negra, a solidariedade negra e a organização.
Ao longo desse "percurso-filme" alguns caminhos são demarcados: inicial-
mente, outras histórias se inscrevem nessa busca, como no diálogo intergera-
cional que o filme provoca com a personagem Lila Raio de Sol Ganzala, uma
criança de 9 anos que se identifica como trans e re-conhece Lélia na militância
da mãe, Annie Ganzala. Num outro momento, o filme descobre Lélia num lugar
íntimo e familiar: os locais onde morou, a memória dos parentes e amigos:
“vislumbro o bairro Leblon que você morou desde quando mudou-se para cá,
com seu irmão Jaime de Almeida o ex-jogador do Flamengo”. Permeando todo
o material fílmico, as imagens de arquivo das marchas do MNU e das atividades
de organização negra, nas quais Lélia era fortemente atuante, são articuladas
à depoimentos de personalidades como Kebngele Munanga e à voz off de
Beatriz sobre seu processo de busca: “eu busco por Lélia na força do movimento
negro, eis que a vejo”. De forma afetiva e solidária, as mulheres negras ligadas
ao grupo Nzinga rememoram Lélia como companheira de luta destacando sua
207
contribuição incontestável ao feminismo, especialmente ao feminismo negro. A
expertise intelectual de Lélia é testemunhada pela escritora Conceição Evaristo
e a abrangência de sua atuação política é cartografada por Mateus Aleluia: “Lélia
Gonzalez foi uma das pessoas que ajudou a tecer esse desenho humano dentro
da política”. Nas cenas finais, ao aproximar-se de sua trajetória e dos caminhos
de Lélia, Beatriz é filmada numa performance que traz signos do candomblé e
destaca a influência de Lélia em “nossos quilombos”: “nessa busca por Lélia e
de mostrar sua história em um filme eu me vejo e me perco”.
A força e a leveza dos textos1 de Lélia Gonzalez reverberam no filme tanto
na inserção política das imagens de arquivo, quanto nas falas das pessoas entre-
vistadas por Beatriz. Na mesma medida, a forma fílmica compartilha de um modo
de fazer que traduz o conhecimento intelectual e ancestral em uma linguagem
comum e sensível a todos. Assim, Lélia e Beatriz falam juntas, falam de um lugar
comum, de uma luta compartilhada, de um mesmo modo de manusear e tomar a
linguagem como forma de poder e organização. A escrita polifônica e multilocali-
zada segue a intuição de Beatriz que, ao buscar Lélia, não pretende apresentá-la
em uma totalidade, mas, antes, explicitar os caminhos múltiplos e as afecções
que constróem sua figura como mãe, amiga, militante, intelectual, mulher e
negra. Se Beatriz parte "em busca de Lélia", compartilhamos as impressões de
sua busca, admitindo as nuances da diferença e as distintas circunstâncias de
percepção que nos são dadas em uma sociedade estruturalmente machista e
racista: "eis que busco Lélia e meus processos semelhantes aos seus".

1. Dos escritos de Lélia Gonzalez destacam-se A mulher negra na sociedade brasileira, escrito em
208 1979; e Lugar de negro, escrito com Carlos Hasenbalg, em 1982.
por Julia Fagioli*

Uma casa coberta de neve com uma bandeira do Brasil na janela. No interior,
um homem toma Guaraná Antártica e cantarola com um sotaque norte-ameri-
cano Carolina, de Chico Buarque. Alguns instantes depois o áudio é substituído
pela voz de John F. Kennedy, que veremos no plano seguinte, em uma imagem
de arquivo, declarando o lançamento do programa “Corpos da Paz”, em que
voluntários viajariam para países em desenvolvimento para ajudar com serviços
nas áreas de saúde e educação.
Ao término da canção vemos o título do filme, Em nome da América, em
cartelas amarelas com inscrições em vermelho, sobre uma mesa de madeira.
Ao longo de todo o filme as cartelas retornam com palavras e siglas, tais como
“voluntários da paz”, “USA”, “CIA”, “militares”, “igreja católica”, “URSS”, “Cuba”,
“liga camponesa”, entre outras. Cada palavra aparece como uma peça de um
quebra-cabeças que Fernando Weller busca solucionar ao retomar imagens
de arquivo realizadas sob encomenda dos Corpos da Paz em Pernambuco nos
anos 1960 e os testemunhos daqueles jovens, hoje senhoras e senhores, sobre
a experiência como voluntários da paz no Brasil.
Arquivo e testemunho são articulados no filme em busca de uma elaboração
histórica que passa pela compreensão das relações dos Estados Unidos com o
golpe militar no Brasil em 1964. Qual seria a intenção do governo americano ao
enviar jovens voluntários a uma pequena cidade do interior de Pernambuco? A
resposta, como nos sugere a montagem de Weller, está ligada ao combate ao
comunismo nos países da América Latina, e, mais especificamente, nesse caso,
à busca por informações sobre a Liga Camponesa. Mesmo na relação com as

*
Pesquisadora de Cinema. Doutora em Comunicação Social pelo Programa de Pós-Graduação
em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Mestra pela mesma instituição. 209
imagens de arquivo e todos os documentos levantados pelo diretor do filme,
algo permanece em aberto. Não é possível afirmar, com certeza, se haviam e
quem eram os espiões da CIA no Brasil e qual era, de fato, o objetivo deles em
uma cidade como Bom Jardim – PE. A história é construída em torno de lacunas
que não podem ser preenchidas; todavia, o trabalho rememorativo – que se
dá através da montagem das imagens de arquivo associadas aos testemunhos
verbais oferecidos após tanto tempo passado – permanece essencial. (DIDI-
HUBERMAN, 2008)
As imagens de arquivo são provenientes de fontes diversas, tais como
imagens televisivas e imagens oficiais do governo americano – como as da visita
do presidente João Goulart aos EUA em 1962. Há, ainda, imagens fotográficas
cedidas pelos entrevistados, inseridas pontualmente no filme, sem narrações
ou comentários que as expliquem ou as descrevam. O seu sentido se dá a partir
da relação que se estabelece com os relatos.
As imagens retomadas que mais nos chamam atenção e que têm maior
destaque no filme são aquelas produzidas por encomenda do governo ameri-
cano – e acabam resultando em filmes de propaganda anticomunista. Nelas, os
nordestinos são referidos como ignorantes, iletrados e incapazes. Enquanto
isso, a atuação dos voluntários é romanceada, como, por exemplo, nos planos
de mulheres de pele branca e cabelos loiros brincando com crianças negras,
nordestinas, na praia; de uma enfermeira em um hospital; de pessoas tomando
cerveja e conversando, entre outros. Os testemunhos relativizam e rompem
com essa visão: as imagens, quando retomadas, colocadas em perspectiva,
podem ter seu sentido renovado, como defende Sylvie Lindeperg (2010). Além
disso, há ainda que se considerar o momento da tomada, que diz respeito ao
momento em que a imagem é produzida, em que algo possa escapar à intenção
do cinegrafista, como um olhar, uma expressão, ou um gesto.
Em outros filmes, o tom anticomunista se dá de maneira mais enfática,
como naquele em que vemos a imagem de Francisco Julião, líder camponês,
declarado inimigo dos Estados Unidos pelo narrador, por sua associação a Fidel
Castro e Mao Tsé-Tung. Ou, ainda, na entrevista do latifundiário Costa Azevedo,
que diz que os camponeses não poderiam ter um salário digno em razão de
sua ignorância. Nesse tipo de imagem, o ponto de vista estabelecido é sempre
o do americano. Não se dá, em nenhum momento, voz àqueles que são mais
diretamente implicados: os camponeses, os nordestinos.
Há, porém, um contraponto. Em um dos filmes encomendados pelos Corpos
da Paz, filmado na Colômbia: The foreignes (Peace Corps Colombia, 1968), há uma
subversão do propósito inicial da realização das imagens e a palavra é dada
210 aos colombianos. Eles criticam o governo e o acusam de agir sob ordens dos
Estados Unidos que, por sua vez, estariam interessados em se apropriar dos
recursos naturais do país. Ao contrário da ideia de que os latino-americanos
eram ignorantes, os colombianos demonstram clareza de seu lugar no mundo
e dos acontecimentos políticos. Além disso, nas imagens do filme colombiano,
ao contrário dos outros, há uma preocupação maior em mostrar os rostos das
pessoas, a forma como interagem, aqueles que falam e aqueles que escutam.
E apesar do enfoque nos testemunhos dos ex-voluntários dos Corpos
da Paz, há dois momentos do filme em que os ex-voluntários se reencontram
com pessoas com quem conviveram no Brasil, no período que passaram aqui. O
primeiro deles, no encontro entre Nancy Scheper-Hughes, voluntária de 1964
a 1966, e Irene Silva, que ainda hoje reside em Bom Jardim. O segundo se dá
entre Dodó Félix, ex-colaborador do sindicato rural de Bom Jardim, e John
Reeder, voluntário entre 1969 e 1971. Nesses momentos, a partir da troca de
experiências, a elaboração histórica do filme ganha densidade.
A montagem das imagens de arquivo junto aos testemunhos verbais possibi-
lita uma recuperação de acontecimentos pouco conhecidos e, ao mesmo tempo,
de um gesto de rememoração. A partir desse gesto, é possível transformar o
sentido de imagens que foram produzidas a partir de um objetivo político espe-
cífico. Na montagem, mesmo que de maneia sutil, esse sentido é desconstruído,
buscando devolver a subjetividade àquelas pessoas, como por exemplo na
forma como os planos do passado e do presente são associados. Em diversos
momentos esses planos são combinados a partir de semelhanças plásticas ou de
gestos, como quando a imagem de um ex-voluntário que acende um cachimbo
se liga à imagem de arquivo de uma senhora que também acendia um cachimbo
em Pernambuco, nos anos 1960; ou quando à imagem de um entrevistado no
metrô, nos Estados Unidos, é associada a de um homem nordestino que espe-
rava um trem na estação.
Como já dissemos, o trabalho de rememoração através da montagem é
atravessado por suas lacunas, que nunca serão preenchidas. Na enigmática
entrevista com Tim Hogen, conhecido por ser um espião da CIA, não é possível
ainda encontrar informações definitivas sobre a existência desses espiões e os
reais objetivos dos Estados Unidos com o envio dos voluntários ao nordeste
brasileiro. E o plano final, de uma imagem atual de uma entrevista com Dioclécio
de Souza, morador de Bom Jardim, que pouco sabe sobre o significado da réplica
da Estátua da Liberdade na rua em que trabalha, nos mostra o apagamento
dessa experiência.

211
Referências

DIDI-HUBERMAN, Georges. Images in spite of all. Four photographs from Auschwitz. Chicago:
University of Chicago Press, 2008.

LINDEPERG, Sylvie. Imagens de arquivos: imbricamento de olhares. In: Catálogo Forum.doc,


Belo Horizonte, 2010. Entrevista concedida a Jean-Louis Comolli.

212
por Tatiana Carvalho Costa*

Eu não sei se a noite me leva


Eu não ouço o meu grito na treva
E o fim vem me buscar
Trouxe pouco
Levo menos
Pedro Abrunhosa, Balada de Gisberta

A heteronormatividade é uma prática reguladora que coloca o gênero como


condição de inteligibilidade dos sujeitos (BUTLER, 2012, p. 38). Os corpos que
fogem das e/ou tensionam as normas de gênero centradas na hegemonia do
modelo cis-hetero são sistematicamente deslegitimados, invisibilizados, elimi-
nados. O curta documental A Gis, de Thiago Carvalhaes, traz uma história de
transfobia que é reveladora dos efeitos dessa violência simbólica tanto no
apagamento de sujeitos quanto no que ela provoca de resistência aos meca-
nismos da bio e necropolítica1.
O brutal assassinato da brasileira Gisberta Salse Júnior, em 2006, na cidade
do Porto, é um triste, porém importante, marco na história dos direitos LGBTIQ
em Portugal e no mundo. A violência que encerrou sua vida teve continuidade na
mídia e no judiciário, em estereótipos e desumanização. No entanto, a insistente
ação de ativistas conseguiu mudar não só o discurso midiático como também o

*
Colaboradora do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT - NUH / UFMG (2010 a 2016).
É professora do Instituto de Comunicação e Artes no Centro Universitário UNA e co-autora
dos livros Olhares Contemporâneos (2013) e Mulheres Comunicam: Mediações, Sociedade e Femi-
nismos (2016).É também realizadora audiovisual e integrante do movimento SegundaPRETA.
1. As noções de biopolítica e necropolítica são adotados tais como em Michel Foucault e Achil-
le Mbembe. 213
posicionamento da sociedade e da Justiça portuguesas em relação à igualdade
de gênero e à transexualidade2.
Gisberta saiu do Brasil fugindo da violência e em busca de reconhecimento
para seu talento como dançarina. Na Europa, prostituiu-se, contaminou-se com
o HIV, tornou-se imigrante ilegal, toxicodependente e sem-teto. No julgamento
do crime que a matou, mesmo com a confissão dos adolescentes agressores, o
caso foi considerado como “uma brincadeira que acabou mal”3. A trajetória de
Gisberta Salse, como a de tantas outras mulheres trans, dá a ver a violência das
normas de gênero que determinam, por assim dizer, quem pode ser considerado
humano e qual vida pode ser “não-realizável” (BUTLER, 2012).
O Brasil é o país que mais mata mulheres trans no mundo, segundo a ONG
Transgender Europe. Berenice Bento (2014) lista seis recorrências para esse
tipo crime: motivação pelo gênero e não pela sexualidade; morte ritualizada;
impunidade; famílias que raramente reclamam os corpos; desrespeito à identi-
dade de gênero nos noticiários e no sistema judiciário, assassinatos em espaços
públicos. Nesse contexto, A Gis ganha importância por apresentar o percurso
de um corpo invisibilizado, eliminado e tornado político.
Para dar a ver esse percurso, o curta lança mão, com eficácia, de recursos já
excessivamente agenciados no cinema documentário: narração em off intercalada
a depoimentos e imagens de arquivo. Adotados sem excessos, numa estrutura
sem grandes pretensões formais, são articulados em uma certa circularidade
que nos possibilita compreender alguns aspectos de uma personalidade pública
em sua singularidade e em sua representatividade.
A narração em off traz trechos de reportagens, cartas, postais e boletins
de ocorrência, como a que abre o curta:

Porto, Portugal. 22 de fevereiro de 2006. Junto ao corpo são encontrados: uma


tenda improvisada, um colchão, um casaco com forro de pelo, uma echarpe, uma
camisola de malha, dois pares de luvas, dois batons, um rímel, um delineador, uma
gilete, uma pequena caixa com dois espelhos e uma bolsa com seis preservativos
e seis comprimidos.

A maioria dos curtos textos, espalhados ao longo dos 20 minutos do filme,


apresenta informações em listas: objetos, termos no masculino utilizados pela
imprensa, informações de diagnósticos, nomes das instituições por onde ela

2. Relatório Direitos das Pessoas Trans: 10 anos depois da morte de Gisberta Salse Júnior, o que foi
feito e o que falta fazer. Disponível em: <www.ilga portugal.pt/noticias/Noticias/10_anos_di-
reitos_trans.pdf>. Acesso em: 20/10/2017.
214 3. idem.
passou. Um inventário que reforça a existência material daquilo que de Gisberta
possa ser partilhado post mortem, para guarda e utilização.
A locução que inicialmente traz as informações sobre os pertences encon-
trados junto ao cadáver retorna, perto do final do filme, à cena do crime. A
voz feminina com sotaque português, suave e doce, descreve fria, concisa e
pausadamente a sucessão de agressões verbais e físicas sofridas desde 12 de
fevereiro até a data fatal: “quarta-feira, 22 de fevereiro de 2006. Oito e meia da
manhã. Com luvas e sacos plásticos, arrastam Gisberta 100 metros. Atiram-na
por um poço com água no fundo. Ela está viva. Ela morre afogada”.
Fotografias, vídeos, cartas, cartões postais e depoimentos rememoram o
convívio com Gisberta, de pessoas como a profissional de uma associação que
a acolheu, uma amiga e parentes próximos.
O irmão e a cunhada, que aparecem ora juntxs, ora individualmente,
autoencenam sua heteronormatividade. Leonor Salce é suave, indicia alguma
cumplicidade com Gisberta e deixa correr seu choro saudoso. Domingos Salce,
mais severo e contido, articula elementos da recusa em reconhecer a Gis: “uma
coisa é ser o que ele era e uma coisa é o contrário do que Deus fala”.
É importante ressaltar, por fim, que o filme foi realizado por um homem
sem ligação pessoal direta com a personagem. Thiago Carvalhaes conta, em
entrevistas, que foi apresentado à história pela namorada, a partir da música
Balada de Gisberta, de Pedro Abrunhosa e cantada por Maria Bethânia. A música
é utilizada em A Gis com um certo exagero emotivo, mas que não chega a tirar
a dignidade e relevância do filme. Em tempos sombrios de radical regulação
bio e necropolítica, a empatia e o engajamento a partir dela são fundamentais
contra a barbárie que nos cerca.

Referências

BENTO, Berenice. Brasil: país do transfeminicídio. Relatório produzido para o Centro Latino-
Americano em Sexualidade e Direitos Humanos – CLAM e publicado em junho de 2014.
Disponível em: <www.clam.org.br/uploads/arquivo/Transfeminicidio_ Berenice _Bento.
pdf>. Acesso em: 24/08/2015.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

215
por Vinícius Abdala**

Meu Corpo é Político, documentário dirigido por Alice Riff (2017), retrata as
distintas realidades de um homem trans e três travestis, mas que se ligam por
dois pontos de convergência: a identidade de gênero trans e a classe social. O
documentário busca a difícil tarefa de humanizar sujeitos para quem, historica-
mente, a marginalidade fora condição sine qua non; seus deveres estão acima de
seus direitos e seu maior inimigo é o próprio Estado – aquele que não só nega
subsídios para a sua existência de forma digna, mas que também puxa o gatilho
que mata de forma sistêmica. Outrossim, não nos permitamos esquecer de
que a tarefa torna-se ainda mais difícil quando estes mesmos sujeitos também
são a representação material – naquela que permeia o imaginário coletivo – do
que há de pior frente à moral cristã, ao conservadorismo, ao tradicionalismo, a
cisheterossexualidade e a cisheternorma.
Dar a possibilidade de uma nova narrativa que não sejam as pistas e a pros-
tituição é por si só, louvável, uma vez que, de acordo com dados da Associação
Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), citados por Cunha (2017), 90%
desta população encontra-se nesta condição. E é importante pontuar que o
problema aqui não é a prostituição, mas a negação sistêmica de outras opor-
tunidades que também possibilitam a existência em um mundo capitalista,
empurrando sujeitos, mais uma vez, à clandestinidade. O registro se mostra
sensível quando identifica qualidades e competências a seres que ainda lutam
pelo reconhecimento de sua cidadania, e prova que dentro da própria diver-
sidade, há diversidade. Ademais, esta é outra preocupação da diretora: não

*Agradecimento a Helena Vanucci, Sarah Cambraia e Vinícius Santos.


**Psicólogo em formação pela Universidade FUMEC, Delegado Estadual da Conferência de
Direitos Humanos, Pesquisador sobre as temáticas LGBT e Prostituição. Articulador Social na As-
216 sociação de Prostitutas de Minas Gerais e Assistente no Espaço de Cidadania LGBT de Contagem.
universalizar os corpos trans e a periferia. É sobre poder ser diverso, em um
ambiente diverso, que se gera expectativas diversas – ainda que a semelhança
pelas suas condições sociais e de vulnerabilidade social sejam frequentemente
as mais vistas e pontuadas.
Cenas fortes e impactantes fazem parte da composição do documentário.
Registros de momentos que captam o cotidiano íntimo de pessoas trans e
travestis, que habitam corpos não autorizados em uma ditadura cissexista,
revelam-se inquietadores. Destaque especial à cena de Giu, na qual ela se coloca
em frente ao espelho e começa a se barbear, arrancando cada fio de pelo de
seu rosto na busca por eliminar este signo da masculinidade hegemônica – a
barba. Também é facilmente plausível se ver na pele de Linn da Quebrada em
momentos de descontração com amigos dentro de uma casa onde se encontram
somente veados: conversas animadas, músicas de diva pop e uma cumplicidade
entre as personagens que só é possível sentir quem também vive aquilo ali.
Se por um lado, o documentário atinge com eficiência, em determinados
momentos, a difícil tarefa na humanização de sujeitos periféricos e trans para o
cinema, por outro lado, o didatismo faz com que o filme não valorize a capacidade
do espectador de assimilar as informações. A tentativa de despertar sentimentos
como empatia e revolta pode se dissolver no constrangimento do excesso de
pedagogismo, marcado pela retórica e simulação de uma naturalidade para falar
sobre temas que são corriqueiros na vida das personagens. Talvez seja porque
assim fora a realidade de pessoas travestis e trans apresentada à diretora: no
seu contexto das demandas políticas tão e somente. Acredito que por isso
sejam raros os momentos de interações genuínas, de registros não ensaiados,
de maior espontaneidade.
Por fim, o documentário cumpre com a sua finalidade: mostra que os corpos
ali, postos em prática, são diversificados, mas forçados a ocuparem – em muitos
momentos – os mesmos locais de exclusão; potencializa a existência política de
corpos que quebram paradigmas sociais no que toca ao gênero e suas normas
e, ainda que nem sempre de forma despretensiosa, elucida os dissabores – mas
também o orgulho, a resistência – de uma população que, em suma, luta diaria-
mente pelo simples direito de existir.

Referência

CUNHA, Thaís. Não há vagas... Para trans. Disponível em: <http://especiais.correiobraziliense.


com.br/transexuais-sao-excluidos-do-mercado-de-trabalho> acessado em 20/18/2017. 217
por Rafael Barros*

Ascende da escuridão o corpo negro de Nei. Pelos seus contornos é convidado


o espectador a conhecer as marcas que nele deixaram a experiência do vivido.
Sua voz firme e afirmativa sentencia: nós não seremos subjugados mais, nós não
voltaremos para as senzalas, nós não voltaremos para dentro dos armários, nós
não seremos demonizados...
Conta-se, entre tantas narrativas míticas sobre a história de Ogum, que
era o filho mais velho de Odudua, aquele que fundou a cidade de Ifé. Quando
Odudua esteve temporariamente cego, Ogum tornou-se seu regente em Ifé.
Diante a escuridão, foi guia! Foi Ogum quem primeiro forjou o ferro, criador de
todas as ferramentas. Com a foice ele abriu os primeiros caminhos para o resto
do mundo, o que dá a ele o poder de abri-los ou fechá-los.
Nei é também de Ogum. É de terreiro. É gay. É preto, pobre e puto. Morador
de ocupação. Traz consigo vários estereótipos da marginalidade. Sua condição
de cidadão explorado, por outro lado, o forja guerreiro, destemido e sensível,
diante das mazelas da vida.
Em "Devassos no Paraíso", na sua epígrafe, João Silvério Trevisan grafa
um trecho de Drummond:

"Onde é Brasil?
Que importa este lugar
se todo lugar
é ponto de ver e não de ser?"

*
Antropólogo, mestre em Preservação do Patrimônio Cultural, produtor cultural e pesquisa-
dor do CER - Centro de Estudos da Religião Pierre Sanchis/FAFICH/UFMG, tendo sido assessor
técnico do Ministério Publico de Minas Gerais. Atualmente é membro da Associação Filmes de
Quintal e assessor parlamentar da Gabinetona das vereadoras Cida Falabella e Áurea Carolina.
218 É congadeiro, folião e banhista da Praia da Estação!
O curta de Diego Tafarel é um delicado retrato de Nei D`Ogum que se
alinhava a partir do recorte de alguns depoimentos de seu ser fundamental-
mente ativista e libertário. No país que extermina e exotiza, que transforma
existências em manchetes policialescas, somos convidados à elaboração de
um outro exercício: conhecer e reconhecer a potência transformadora de ser.

Referência

TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à


atualidade. Rio de Janeiro: Record, 2007.

219
por Renata Otto*

D.E.: Gostaria de fazer-lhe uma pergunta simples: que é


um mito?
C.L.-S.: Não é uma pergunta simples, é exatamente o
contrário, porque se pode respondê-la de vários modos. Se
você interrogar um índio americano, seriam muitas as
chances de que a resposta fosse: uma história do tempo em
que os homens e os animais ainda não eram diferentes.
Porque, apesar das nuvens de tinta projetadas pela tradição
judaico-cristã para mascará-la, nenhuma situação parece mais
trágica, mais ofensiva ao coração e ao espírito do que a situação
de uma humanidade que coexiste com outras espécies
vivas sobre uma terra cuja posse partilham, e com as quais
não pode comunicar-se. Compreendemos que os mitos se
recusem a tomar esse defeito da criação como original; que
vejam em sua aparição o acontecimento inaugural da
condição humana e da sua fraqueza.

Há três filmes guarani na mostra contemporânea brasileira desta edição do


forumdoc.bh.2017: Naquele tempo todos eram gente (Aline Baiana, RJ, 2016);
Piragui - a dona dos peixes (Luiza Calagian, SP, 2016); e Tekohá - o som da terra
(Rodrigo Arajeju e Valdelice Veron, Brasília, 2017). Mas os filmes indígenas, na

*
Mestre em antropologia social pelo Museu Nacional/UFRJ e doutoranda pelo PPGAS da Uni-
versidade de Brasília. Foi técnica em antropologia da FUNAI entre 2009 e 2014, onde atuou
nas coordenações de delimitação e demarcação de terras; e proteção aos índios isolados e
recém contatados. Co-dirigiu com Isael Maxakali e Sueli Maxakali, o filme Quando os Yãmiy
220 Vêm Dançar Conosco (2012).
temática e até na produção, inscritos para a mostra foram muitos. Na maioria,
expunham sua reivindicação de respeito aos direitos mínimos: territoriais em
primeiro lugar, pois a restrição deste acarreta outras restrições, de saúde, de
alimentação, de autonomia econômica e política. Por esta amostragem, vemos
que os indígenas, de modo geral, respondem a uma situação de guerra: são
perseguidos como inimigos (como bem exibe o filme Martírio com os Guarani Kaiowá)
apenas porque não desejam e nem se vocacionam para o projeto do Estado.
Os três filmes guarani da mostra (há, na mostra contemporânea brasileira,
outros filmes indígenas não-guarani) são, por felicidade do acaso, exemplares
de cada um dos subgrupos guarani que residem atualmente sobre o território
do Brasil, quais sejam, os Kaiowá, cerca de 31 mil no Brasil, em sua maioria no
estado do MS, representados pelo filme Em Tekoha – o som da terra; os Mbyá,
cerca de 7mil, espalhados pelo litoral sul e sudeste e no interior do Tocantins,
representados pelo filme Piragui- a dona dos peixes; e os Ñandeva, cerca de 13
mil vivendo ao sul do Brasil, nos estados RS, SC, PR, MS e SP, representados pelo
filme Naquele tempo todo eram gente. A população guarani é uma das maiores
populações indígenas no Brasil. Juntos, os subgrupos Guarani Kaiowá, Ñandeva
e Mbyá, de acordo com as fontes da SESAI – nas quais nos apoiamos para os
números anteriores – somam cerca de 51 mil pessoas. Mas se nos fiamos na
fonte do Mapa Guarani Continental (acessível também no pib.socioambiental.
org), esta soma chega a cerca de 85 mil Guaranis. Lembremos que no Brasil
existem cerca de 300 povos indígenas, falantes de cerca de 270 línguas diferentes
(de acordo com a pesquisa IBGE 2010-2017). Assim, além dos Guarani, apenas
mais meia dúzia de povos indígenas ultrapassa vinte mil pessoas no Brasil (os
Tikuna, com cerca de 53 mil; os Kaigang, com cerca de 46 mil; os Makuxi, com
cerca de 33 mil; os Guajajara, com cerca de 28 mil; os Terena, com cerca de 26
mil e os Yanomami, com cerca de 23 mil). Nove outros povos indígenas têm sua
população na casa das dezenas de milhares (Xavante e Potiguara têm cerca de
18 mil pessoas; Kokama e Munduruku têm cerca de 14 mil; Sateré, cerca de
13 mil; Huni Kuin e Baré, cerca de 11 mil; Apurinã cerca de 10 mil). Os demais
povos indígenas no Brasil têm poucos milhares, ou centenas, ou dezenas, ou até
unidades de pessoas como todo seu universo de "parentes" (como se pode ver
no filme Piripkura que abre este festival). Assim, os Guarani são um dos povos
indígenas mais expressivos no nosso país. Ou, pelo menos, deveriam ser, já que
foram um dos mais resistentes aqui, desde a invasão pelos europeus. Mas o que
sabemos sobre eles? Quase nada. Se o tríptico guarani da mostra não vêm tapar
essa lacuna, ao menos, vem apontar exemplos da ontologia guarani.
Como se lê na epígrafe deste texto, Lévi-Strauss responde, numa entrevista
concedida a Didier Eribon, à pergunta "o que é um mito?". Pois bem, a história
221
narrada pelo filme Naquele tempo todos eram gente é um mito tal como colocado
por Lévi-Strauss. É uma história do surgimento do pássaro bacurau e, sendo
assim, é uma versão da história de como os animais e os humanos passaram a
existir, tal como existem hoje, isto é, como seres que deixaram de se comunicar.
O mito do pássaro bacurau conta como ele tornou-se o que é hoje, desde um
passado em que fora humano. Esta transformação é o ponto culminante no mito
ñandeva narrado no filme. Mas, antes, esta versão passa pela narrativa de uma
outra história. A história de Kuarahy, o Sol, e Djasy, a Lua. Este ponto é muito
interessante, pois ele mostra como esta outra história é quase incontornável,
para situar o tempo, os personagens, o mundo do mito guarani.
Esta outra história trata-se de um dos mitos mais difundidos na América
do Sul, a história dos gêmeos extraordinários1. As versões tupi-guarani são as
mais conhecidas, mas este mito, em suas variadas versões (inclusive, a contada
pelos Tupinambá da costa, desde a época da invasão europeia, que exibe Maira
e Mucura no papel dos protagonistas), ultrapassa os narradores tupi e chega a
outras famílias linguísticas, aruak (Apurinã) e caribe (Ye'kuana), por exemplo. A
história dos gêmeos extraordinários começa com uma mulher. A história fala
da trajetória da primeira mulher na terra (ou da mulher solitária, caminhando
sozinha na mata). Esta primeira mulher ou esta mulher solitária é uma mulher
grávida, abandonada pelo pai de seus filhos (um demiurgo, um criador, um trans-
formador, ou um transgressor). No mito narrado no filme trata-se de Nhanderu
ete. A versão ñandeva coincide com as demais versões tupi-guarani ao contar
que os filhos, por serem criaturas sobre-humanas, podem conversar com a mãe
ainda no ventre. Os filhos prometem guiar a mãe ao encontro do pai. Mas por
um engano (a má escolha), a mulher enfurece seus filhos, os deixa magoados
consigo. Estes, então, recusam-se a voltar a falar com ela. Sem a orientação dos
filhos, a mulher se perde. Duplamente "abandonada", abandonada e perdida,
ela segue sua busca. Outro engano (uma segunda má escolha) a faz tomar uma
trilha errada e ela termina na casa de inimigos vorazes. Chega à aldeia do povo
dos jaguar eté, as onças verdadeiras. A mulher é recebida por uma velha onça,
que estava sozinha na aldeia. A velha a escuta e a esconde sob um cesto (ou um
pote de cerâmica, dependendo da versão) para que os jaguaretês, seus filhos e
netos, não encontrem a mulher. Mas os jaguaretês, de volta à casa de uma longa

1. O motivo da gemelaridade dos irmãos demiurgos ameríndios foi tratado por Lévi-Strauss
especialmente no último volume das "pequenas" Mitológicas, uma trilogia escrita em para-
lelo e posteriormente aos quatro volumes principais, quais sejam: O Cru e o Cozido, Do Mel
às Cinzas, A Origem das Maneiras à Mesa e O Homem Nu. Esta trilogia está composta, por sua
vez, pelos títulos A Oleira Ciumenta, A Via das Máscaras e Histórias de Lince. Este último trata
especialmente da teoria da gemelaridade impossível, e do clinâmen filosófico no pensamento
ameríndio. Ou seja, evidencia o valor concedido à diferença e à alteridade, ao passo que recu-
222 sa a possibilidade da identidade durar.
caçada, mesmo não vendo a mulher, são capazes de sentir seu cheiro. Eles a
encontram e a devoram. Porém, os filhos que carregava no ventre, sendo filhos
de Nhanderu eté, escapam de serem devorados. São, então, criados pelo povo
dos jaguares, adotados pela velha onça como se fossem seus netos. Portanto, os
gêmeos são criados pelos devoradores de sua própria mãe. Quando descobrem
que passaram a vida enganados, os gêmeos revoltam-se e planejam vingar-se.
Criam um lugar cheio de fartura, com muitos frutos e animais de caça. Mas colocam
este lugar cercado por um grande rio. Por cima da água do rio, atravessam um
tronco, como uma pinguela, qualquer pau que sirva de ponte (ou uma jangada,
como na versão ñandeva do filme). Convidam, então, os jaguares a atravessar
por este pau instável. Combinam entre si que fariam o pau virar, enquanto os
jaguares estivessem atravessando para lançá-los n'água, matando-os afogados
ou devorados pelas criaturas monstruosas da água que também haviam criado
para dar cabo das onças. Porém, o plano não tem sucesso absoluto, pois um dos
gêmeos não cumpre o combinado. A ponte não se revira totalmente e algum
jaguar eté sobra (na versão do filme é uma fêmea, grávida) consegue escapar,
saltando para a margem do lugar criado. A história dos gêmeos conclui que, a
partir de então, jaguares e humanos viveriam sobre a terra, mas seguiriam como
inimigos. Enfatiza o abandono da mulher, a devoração dela por inimigos, a criação
dos filhos pelos devoradores da mãe e a vingança consecutiva dos filhos, donde
a futura separação entre seres de natureza irreconciliável.
Mas o mito narrado em Naquele tempo todos eram gente segue daí e desem-
boca no surgimento de Urutau. Como se ligam estas partes? O que a versão do
filme especificaria?
O mito ñandeva segue depois da vingança com os gêmeos, neste caso, Sol
e Lua (Kuarahy e Djasi), criando para si uma "irmã", para que não se sentissem,
eles mesmos solitários (abandonados), na terra. Mas sabiam que deveriam partir
para o patamar celeste em busca de seu pai. Sabiam que deixariam novamente
uma mulher sozinha (abandonada) na terra. Então, para que ela não penasse
de saudades depois da partida deles para o céu, os irmãos transformaram-na
no pássaro Urutau. Por isso, este pássaro vive chorando seu canto noturno aos
céus, cantando com saudades dos que lhe abandonaram na terra e seguiram
para viverem sua vida de astro no patamar celeste.
As análises feitas por Lévi-Strauss, sobretudo num volume especialmente
dedicado às aparições míticas desse pássaro – A Oleira Ciumenta –, esclarecem
que o sentimento ao qual o Urutau (e seus variantes, bacurau, coruja) está asso-
ciado é o ciúme. Em todo caso, seja ao sentimento de ciúme, seja ao de saudade,
o canto melancólico do pássaro noturno diz respeito ao fato dele ter restado
abandonado na terra, depois de participar de um conflito que tem lugar entre
223
pessoas primordiais de sexo cruzado: um conflito conjugal ou, como no filme, um
conflito entre irmãos de sexo oposto, os irmãos masculinos e a irmã feminina.
O "mitema" a ser considerado na junção ou desdobramentos da história de
Naquele Tempo Todos Eram Gente é, enfim, a condição de abandono, ou melhor,
a condição de abandonados dos humanos nos tempos atuais. Os humanos atuais
são aqueles que restaram na terra, como a mulher humana do mito, depois da
partida do demiurgo para o céu2, ou da mulher pássaro urutau depois da partida
de seus irmãos, astros celestes, para o céu. A partida dos sobrenaturais para o
patamar celeste é o fato que desencadeia a separação entre os próprios pata-
mares celeste e terrestre (antes, indiferenciados) e, assim, também a própria
diferenciação entre os regimes do tempo primordial – aquele no qual os seres
eram "comunicantes", trans-específicos, participando de uma humanidade indi-
ferenciada de fundo – e do tempo atual – este em que os humanos e animais,
assim como todos os seres, passaram a se distinguir uns dos outros em espécies
irreconciliáveis.
"É por isso que Urutau canta um lamento quando o sol se põe. Urutau
chora quando o irmão vai embora, ele canta. Canta para que seus irmãos o
escutem", diz a parte final do mito no filme. Nesse ponto exato, o filme corta
da narrativa mítica para sua atualização: o quadro é tomado em áudio e vídeo
pelo momento em que a polícia retira à força os jovens assentados no chão. O
que eles querem? Garantir que Urutau Guajajara fique pendurado no seu posto,
pendurado no alto da árvore, e possa seguir cantando para seus irmãos, no céu,
em nome de seus irmãos, seus parentes, nessa terra: "Fora Cabral!", "Resiste
Aldeia!", cantam os abandonados da vez!
Piragui - a dona dos peixes também nos dá a ver (como no filme acima
mencionado) a história de uma transformação, tal como prevista numa narrativa
mítica. A história aqui é a de uma mulher (atual) e sua "quase-transformação" em
peixe. Esta história é que se deixa ver em paralelo com a história mítica Mbyá de
Piragui, a dona dos peixes. A história mítica entretanto põe em cena um homem
que faz um acordo com a dona dos peixes, o mito conta como, para receber
uma quantia suficiente de peixes, um homem precisa conceder algo em troca.
Ele mesmo se dará a ela em troca dos peixes ofertados. O mitema aqui é o da
dádiva (em vez do abandono). Congruente com a transformação do mitema (do
abandono dos humanos pelos deuses para a reciprocidade dos humanos para

2. Um exemplo araweté, tupi-guarani, detalhado na tese de Eduardo Viveiros de Castro subli-


nha esta condição: "Os humanos se definem no contexto desta separação [diferenciação en-
tre as camadas ou suportes que hoje compõem o universo] como aqueles que foram deixados
para trás, ‘os abandonados’. Antes disso, os homens e os futuros deuses viviam em comum
na terra – um mundo sem trabalho e sem morte, mas também sem fogo e plantas cultivadas.
Então em consequência de um insulto que ouviu de sua esposa, a divindade Aranami resolveu
224 afastar-se, agastado com os homens" (Viveiros de Castro, 1986, p. 184).
com os animais), o foco do mito Mbyá, do filme Piragui, passa para as relações
entre humanos e infra-humanos (em vez de situar as relações entre humanos
e sobre-humanos, como no mito ñandeva anterior); passa a situar o conflito no
patamar inferior, subterrâneo, subaquático (em vez do patamar superior celeste).
Passa para a trajetória de um homem submetido aos favores dos animais, ou
dos espíritos-animais, donos de animais (em vez da mulher abandonada pelos
deuses). Mas a relação entre o mito e a vida, ou seja, entre a potência virtual e
a atualização do mito segue em Piragui. Mais do que isto, Piragui é um filme que
dialoga com outros filmes indígenas, como Hipermulheres ou O Cheiro do Pequi,
que apostam na encenação do mito, em contraposição, ou melhor, em compo-
sição com um "quase-acontecimento", que é uma (quase) atualização do mito
na vida das pessoas particulares. Dito de outra forma, a história desses filmes
conta como se passaria a um "acontecimento total", caso as pessoas atuais (os
protagonistas) se comportassem cabalmente como no mito. As narrativas dessa
"tradição" vêm, portanto, demonstrar justamente como seria a história atual das
pessoas se o mito não fosse ouvido. Enfim, estes filmes desvelam como o plano
do "mito" e o plano da "história" estão em continuidade na ontologia ameríndia.
Em Tekoha – o som da terra, o terceiro filme do nosso tríptico guarani,
estamos entre os Kaiowá, e sob uma perspectiva mais declaradamente política
desta ontologia. Temos outra vez uma história da mulher abandonada. Mas
aqui este abandono aparece como que redobrado em dois planos, pois se trata
das mulheres atuais, de fato (novamente), abandonadas. E ainda não apenas
abandonadas sobre a terra, mas sob um desterro. Desdobradas ainda no plano
da quantidade, pois vemos ao menos três gerações de mulheres kaiowá que
viram seus homens serem mortos, restando elas sozinhas, mulheres entre si.
Ainda, novamente, mulheres abandonadas com suas crianças. Mas além de tudo,
mulheres, com seu poder de cura, com sua capacidade de transmissão da vida e
dos conhecimentos ancestrais, ligados à sua condição terrana. Enfim, mulheres
com sua potência de guardiãs da vida nesta terra. As mulheres kaiowá estão
sós (como no mito), enquanto passam sua estadia na casa dos inimigos, pois
estão entre cercas, tratores, monocultura, numa terra nua, sem mata, e entre
tiros e arma de fogo. Mas esta terra devastada e ocupada hoje pelos inimigos,
fora antes, a terra delas, seu lugar de parada, como garantem as sepulturas dos
seus. Então, é nessa paisagem devastada que as mulheres kaiowá fazem soar
seus instrumentos femininos sagrados (seus takuapu), batendo-os justamente
no solo fazendo a terra clamar com elas. Elas cantam, elas dançam, elas rezam.
As mulheres realizam a vida de (r)existência nessa terra, realizam, mesmo que
entre devaneios sonâmbulos e pesadelos insones, seu tekoha pe, seu lugar onde
se vive o bem viver, tal como ensinaram as belas palavras dos ancestrais. "Aqui
225
seremos um dia felizes", elas prometem e esperam que as belas palavras se
cumpram, como no mito.
Este nosso "tríptico", além da natureza indígena e do ar de família (guarani),
nos apresenta então um aspecto particular da cosmologia guarani: a potência
das atualizações míticas na vida cotidiana das pessoas.
Num trabalho em preparação, e em consonância com os argumentos de
André Brasil e Bernard Belisário (2016) escrevemos que o cinema indígena
compõe-se numa relação específica e incontornável entre as ordens do "campo"
e do "extra-campo". A primeira ordem seria aquela que a maioria de nós, não-indí-
genas, é capaz de acompanhar minimamente, como aquilo que se passa na cena,
no quadro, como o conteúdo aparentemente tecido pela trama narrativa do filme.
A segunda, a ordem do ante ou extra-campo é aquela que carrega a narrativa
fílmica com as potências virtuais (do mito, e da cosmologia). Esta relação se nos
parece imperceptível, é porque remete aos pressupostos ontológicos indígenas
(sua cosmopolítica), frequentemente, completamente, desconhecidos por nós.
Não se trata, então, de conceber-se o "campo" como a ordem de expressão do
"visível", ao passo que o "ante ou extra-campo" seria a ordem de expressão do
"invisível". Pois pode haver no "campo" componentes invisíveis: a presença dos
mortos, por exemplo, em suas sepulturas, ou no som do instrumento sagrado
feminino fazendo vir do chão o som da terra (em Tekohá – o som da terra); ou
na presença dos espíritos-animais primordiais, re-encenados em Piragui, ou
na voz da mulher narradora em todos os filmes do tríptico. Assim como entes
invisíveis podem estar também no ante-campo, como a consciência coletiva
que pensa Piragui como a dona dos peixes, ou o devir-peixe da mulher, ou na
condição de abandonados dos humanos na terra. Mas é justamente a relação
necessária entre estas ordens (uma relação de oposição inclusiva, analógica e
gradual, ente a narrativa evidente e os pressupostos ontológicos) que determina
a natureza do cinema indígena.
Nesse tríptico guarani, esperamos ter tornado um pouco menos imper-
ceptível que a relação entre as ordens do campo e do ante-campo está para
o cinema indígena, assim como a relação entre a ordem da mitologia e da
história está para a ontologia indígena. Os termos são mutuamente inclusivos
e tendem um ao outro num equilíbrio instável. Finalmente, que no cinema ou
na ontologia indígenas, não há uma narrativa histórica sem uma narrativa mítica,
e vice-versa.

226
Referências

BRASIL, André e BELISÁRIO, Bernard. "Desmanchar o cinema: variações do fora-de-campo


em filmes indígenas". In: Sociologia e Antropologia. v6. n3. Rio de Janeiro: PPGAS/UFRJ, 2016.

LÉVI-STRAUSS, Claude e ERIBON, Didier. De perto e de Longe. Rio e Janeiro: Nova Fronteira,
1990.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Arawetê, os deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.

227
por Els Lagrou*

Estes dois filmes, diretos e poéticos, tratam, respectivamente, do processo


de devir yuxian do agente de saúde Txana Mashã, do rio Humaitá, e da prepa-
ração e execução, no rio Jordão, do importante ritual de iniciação do líder do
canto, o Txirin, batismo do gavião real. Este Txirin foi feito em homenagem ao
falecido pajé Agostinho Muru, importante liderança ritual do Rio Jordão que
faleceu recentemente. Yuxian e Txirin são os nomes dados às duas curtas em
questão. Ambos os filmes foram concebidos e filmados por jovens cineastas
huni kuin que contaram com a colaboração, respectivamente, de Mari Correia
e de Carolina Canguçu para a edição e montagem. Trata-se portanto de filmes
de autoria indígena.
Yuxian é um dos vários tipos de xamã (pajé) que existem entre os Huni
kuin (Kaxinawa), povo indígena conhecido por seu protagonismo no campo da
divulgação do xamanismo. Yuxian significa “aquele que convive com (vê, fala
com e cura com) os yuxin”, seres-imagem, duplos, comumente traduzido, por
falta de palavra melhor, como ‘espíritos’. Os Huni kuin habitam vários rios no
Acre e no Peru e constituem o povo mais numeroso do Estado do Acre, onde
possuem também um importante protagonismo político. Durante a época da
exploração da borracha, um grupo de Huni kuin se rebelou contra o seringalista
e se refugiou nas cabeceiras do rio Curanja no Peru. Este grupo deu origem às
famílias que hoje moram no Peru nos rios Curanja e Purus e no Brasil no Alto
Rio Purus. Estes lugares serviram de reservatório dos saberes dos antigos. Os
Huni kuin que habitam os rios Jordão, Humaitá e outros, são descendentes de
ex-seringueiros que, depois de terem sido obrigados a viverem em colocações
para a extração da seringa, se reorganizaram nos anos setenta em aldeias e

228 * Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ.


empreenderam um vigoroso processo de retomada dos saberes antigos, muitas
vezes contando com a ajuda de parentes do Peru que voltaram a morar com os
parentes que tinham ficado no Brasil. Este processo de retomada e a história
da separação e do reencontro foi registrado em número significativo de filmes
de autoria huni kuin, muitos deles no contexto do projeto vídeo nas aldeias.
A complementariedade entre estas duas trajetórias huni kuin, a que ficou
e se engajou na política indigenista local e a que partiu e conservou o conhe-
cimento ritual, me parece uma das razões do seu atual dinamismo e protago-
nismo no cenário indígena nacional. Se encontramos nas aldeais do rio Purus
do lado brasileiro e peruano uma tradição ritual de transmissão oral que não
foi interrompida pela dispersão forçada pelo trabalho na seringa, estas mesmas
aldeias encontram-se atualmente muito influenciadas pela presença evangélica
que hoje em dia combate a continuidade das atividades ligadas à sociopolítica
xamanística. Desde os anos noventa notava-se no Alto Purus uma tendência
ao ocultamento do xamanismo. O xamanismo, como lógica interpretativa das
relações com os seres não humanos e da causação das doenças, estava em todo
lugar, mas parecia que o que se tinha era um xamanismo sem xamãs. Dizia-se
que os grandes xamãs dos tempos antigos, os mukaya (aqueles que possuíam
o amargo, substância xamanística que pode ser extraída e se tornar visível sob
várias formas), tinham morrido e que somente os vizinhos, principalmente os
Kulina, no caso do Purus, possuíam poderosos pajés capazes de enviar e retirar
dardos xamanísticos. Este ocultamento tinha a ver com a investida missionária
vinda do Peru. Diferentemente do que acontece no Jordão e no Humaitá, hoje
em dia poucas aldeias no Purus recusam a presença evangélica e os que resistem
o fazem com a ajuda de um forte investimento nos rituais de tomada de nixi
pae (cipó, ayahuasca) e do rapé, importantes substâncias/agentes xamanísticas.
Temos assim, em terras Huni kuin, uma fértil tensão entre lugares de
extrema visibilidade do xamanismo, com inclusive, a organização de sessões
xamanísticas para visitantes não indígenas, como no Jordão, e lugares onde ele
existe, porém em estado oculto, em conflito com a visão evangélica que tenta
se impor com força. Este mesmo diagnóstico foi feito pelo cineasta e liderança
indígena Zezinho Yube huni kuin no filme As voltas do kene (vídeo nas aldeias,
2010). Vindo do rio Humaitá, mas com origens no Jordão, Zezinho Yube chega,
acompanhado de sua mãe e de outras tecelãs de sua terra, no Alto Rio Purus à
procura de conhecimentos mais especializados na arte de tecer com desenhos.
As tecelãs do Purus, assim como seus especialistas rituais, são muito respei-
tados pelos parentes de outros rios por causa do conhecimento acumulado
através das gerações nos tempos em que viviam nas cabeceiras dos rios, longe
de qualquer interferência dos brancos. Mas, o que encontram, relata Zezinho 229
no filme, é um ambiente tão influenciado pelo evangelismo que coloca em
risco a transmissão destes mesmos conhecimentos que os parentes de longe
vieram procurar. Hoje em dia, jovens especialistas em rituais do Alto Rio Purus,
alguns deles recém chegados do Peru, encontram em seus colegas do Jordão
e do Humaitá grandes aliados na reconquista de espaço para a defesa de seus
rituais e de seu xamanismo.
O filme Yuxian, filmado e dirigido por Nawa Siã e Siã Inubake (pelo Instituo
Catitu, com a coordenação de Mari Correa), é um filme que nos permite acom-
panhar Txana Mashã, especialista ritual que trabalha neste caminho do conhe-
cimento xamanístico de cura no Rio Humaitá. Txana Mashã é agente de saúde
e conhece bem os remédios de branco. O vemos seguir a cartilha de perguntas
inspiradas no conhecimento médico ocidental e administrar remédios correspon-
dentes aos sintomas. Estas práticas rotineiras, no entanto, vão acompanhadas, de
modo harmônico e complementar, de sopros, massagens e cantos de cura huni
kuin que visam dialogar com o lado yuxin das doenças. Os remédios de branco
ajudam a combater vários dos sintomas das doenças, mas é preciso também
cuidar do yuxin da criança e da sua relação com os yuxin de outros seres, como
dos animais de caça ou dos predadores que podem abduzir o yuxin da criança
ou se alojar na sua barriga, como podemos apreender da tradução de alguns
dos cantos de cura presentes no filme.
Outro aspecto importantíssimo dos procedimentos de cura huni kuin diz
respeito ao conhecimento das plantas medicinais, e estas plantas, por “serem
gente” em outro plano da realidade, por terem sido gente como nós, possuem
yuxin, e é este yuxin o responsável por sua capacidade de cura. Neste universo
animado por seres yuxin é preciso saber se dirigir a eles com os cantos e as pala-
vras corretas para que sua agência se faça presente nas substâncias usadas, nas
folhas espremidas nos olhos para ver e acertar na caça, nos banhos de folhas
para afastar yuxin etc. A planta mestra, huni, gente, e yuxin por excelência, é o
nixi pae, um cipó que nasceu do corpo enterrado do ancestral que conheceu o
ritual da ayahuasca quando foi morar com o povo da jiboia. Ao tomar a bebida
feita deste cipó o olhar, o suor, o sopro e o toque do curador ganham a força
do poderoso yuxin, yuxibu (superlativo de yuxin), Yube, dono desta substância.
É por isso que Txana Mashã se utiliza do cipó no processo de tornar seu sopro
de cura poderoso, porque quando sopra com cipó não é somente ele que sopra,
mas uma multiplicidade de forças da floresta que sopram juntos. O processo
de devir yuxian de Txana Mashã passa pela incorporação destas agências outras
que o ajudam a tirar a doença dos corpos dos seus pacientes.
O filme Txirin, o batismo do gavião, sob direção de Isaka Mateus Huni kuin,
230 acompanha o especialista do canto, o txana Pedro Salomão huni kuin na execução
de um Txirin em homenagem a Agostinho Muru da aldeia Novo Segredo no Jordão.
Durante os últimos quinze anos de sua vida, Agostinho Muru investiu fortemente
no estudo das tradições do seu povo e na partilha destes conhecimentos com
os Guardiões da floresta, aliados brancos nas grandes cidades que se reúnem em
torno do uso ritual do nixi pae e do rapé administrados por especialistas huni
kuin. Como grande mediador entre os mundos urbano e da floresta, Agostinho
se tornou um emblema dos novos tempos e sua recém fundada aldeia continua
funcionando como centro de estudos que recebe periodicamente aliados não
indígenas em torno do uso ritual e terapêutico das ‘medicinas da floresta’.
Um dos motivos para a realização de um Txirin, nos explica o txana Pedro
Salomão no filme, é de dar ânimo e proteger os vivos depois da perda de uma
ou de um importante txana ibu, liderança ritual feminina ou masculina, conhe-
cedor dos pakadin (cantos/reza rituais) e das artes de produzir artefatos. No
Txirin se inicia novos txana’s, se ensina a cantar a novos donos do canto, e ao
cantar bem forte e bonito se chama para perto a caça, o que resulta em abun-
dância e festa. Aqui, como no filme comentado acima, lidamos com o yuxin dos
seres, das coisas e das substâncias. Para que o yuxin do gavião real, poderoso e
generoso predador que abre as primeiras cenas do filme, esteja presente nas
penas que serão usadas para fabricar o adorno dorsal, o tete pei, a enfeitar as
costas do líder de canto, é preciso rezar/cantar seu pakadin, com voz forte e
sem tremer, na hora de abater a ave. O mesmo vale para os caramujos com os
quais se produzem os chocalhos dos tornozelos, a serem usados pelos cantores
ao cantar. Todas estas matérias devem suas qualidades à presença do yuxin do
seus donos que são chamados através dos seus respectivos cantos.
O filme realça o caráter pedagógico deste rito de iniciação. O txana Pedro
explica cada passo de produção do enfeite dorsal do gavião real, assim como
os cantos, que são muitos, seus significados e o momento certo de cantá-los.
O próprio Pedro os aprendeu com os mais velhos, e se utiliza do livro para dar
suporte a sua memória. Na hora de cantar para valer, no entanto, não vemos mais
o caderno, pois o txana já os incorporou. Pedro enfatiza também a complemen-
tariedade das duas metades huni kuin: os duabu, gente do brilho, cujo canto de
txirin é de dia, e os inubu, gente da onça pintada, cujo txirin, nos ensina Pedro,
se faz durante a noite. Tendo em vista que Agostinho era dua bake, filho dos
dua, fez-se o adorno dorsal com ingredientes da família dua e cantou-se os
pakadin de manendabanã, do caminho da miçanga (ou do metal), que é o canto
dos duabu. Assim foi dado continuidade à vida e ao aprendizado reintroduzido
por Agostinho na sua comunidade de parentes no Rio Jordão e voltou-se a criar
alto moral e entusiasmo numa aldeia que até então estava marcada pelo luto
por causa da perda prematura de seu líder. 231
por Paulo Maia*

A Terceira Margem (2017) é o filme de estreia de Fabian Remy como diretor. O


documentário tem como ponto de partida a história de João “Kramura” Abreu
Luz, que em 1945, aos dez anos de idade, foi capturado pelos indígenas Metuktire
Kayapó nas margens do rio Tapirapé, no Brasil Central. O diretor, que também
é o narrador em voz off, recurso utilizado de forma extensiva em todo o filme,
admite que há muito tempo pensava em fazer um filme sobre João, que, após
ter sido sequestrado, viveu cerca de oito anos com os Kayapó até ser descoberto
pelos irmãos Villas Boas em 1953. Em acordo com os Kayapó, João foi levado de
volta para sua família no vilarejo de Mato Verde, mais tarde rebatizada de Luciara,
município do Mato Grosso, nas margens do rio Araguaia, na divisa com Tocantins.
Durante os anos em que ele viveu em Luciara, os Kayapó se deslocaram cerca
de 250 km a pé todos os anos para visitar João e seus parentes não indígenas
na cidade, até que, em 1963, levaram-no de volta com eles.
Remy conta ter ido ao Xingu para encontrar-se com João em 2005, quando
ficou sabendo que ele morrera semanas antes de sua chegada. O projeto foi
interrompido para mais tarde ser retomado, dessa vez em parceria com Thini-á,
indígena do povo Fulni-ô. A expectativa de Remy, em suas próprias palavras, era
de que ele pudesse ser guiado por Thini-á pelos meandros de uma cultura que
lhe era estranha, a saber, a dos Kayapó, e assim desvelar a história de João, um
índio branco, em alusão à obra literária de J.M.G. Le Clézio.
A Terceira Margem é um documentário construído a partir de uma boa
pesquisa histórica e etnográfica e filmado em uma viagem da equipe de filmagem

* Antropólogo, professor da Faculdade de Educação (UFMG), cofundador da Associação Fil-


mes de Quintal e do forumdoc.bh, coordenador do Programa de Extensão forumdoc.ufmg,
curador, no forumdoc, das mostras “Melanésia”, “Direto.doc”, “Animal e a Câmera” e “Queer
232 e a Câmera”, entre outras.
aos familiares de João, tanto seus parentes brancos que vivem em Luciara, no
Mato Grosso, quanto seus parentes indígenas, os Kayapó da Terra Indígena
Kapoto-Jarina, no Xingu. Thini-á, que no fim das contas divide com João o posto
de personagem principal do filme, é quem guia a equipe e, em cena, é o interlo-
cutor principal entre a equipe de filmagem e diferentes pessoas que conviveram
com João. O filme é construído nesse percurso, parte das cenas acontecem em
estradas e caminhos que levam até esses lugares. Cruzamentos e interseções
entre histórias, lugares, pessoas, parentes, indígenas e não indígenas, compõem
a matéria-prima desse documentário. Talvez não seja exagerado dizer que a A
Terceira Margem é antes de tudo um filme sobre a “mediação” entre o mundo dos
brancos e o dos indígenas, mediação revelada pela biografia de João (entre os
Kayapó e os brancos) e a de Thini-á (entre os brancos e os Fulni-ô e os Kayapó),
sendo a primeira contada a partir de depoimentos de parentes e conhecidos
indígenas e não indígenas, além de uma massa de informações suplementares
disponibilizadas pela narração em off, e a segunda pelo relato autobiográfico
de Thini-á, que, ao longo desse percurso, acaba por revelar uma vida marcada
por um grande conflito diante de seu exílio voluntário. Thini-á, quando criança,
testemunhou a morte de seus tios, irmãos de sua mãe, pelos brancos cobiçosos
de suas terras. No filme, ele conta que esse acontecimento lhe causou grande
revolta e, diante de tamanha injustiça, sua reação foi traçar uma linha de fuga
em direção ao mundo dos brancos.
Neste pequeno ensaio, pretendo explorar as falas de Bedjai Metuktire,
Kokonhere Txukarramae e Raoni Metukitire, irmão, tia e pai de Nhudjare, modo
carinhoso como os Kayapó chamam João Krumare. Essas falas são de extremo
valor etnográfico e muito importantes para entendermos, ainda que de forma
parcial, a perspectiva dos Kayapó sobre a captura de João e sua familiarização.
Trata-se de aspectos centrais na economia cinematográfica do filme, mas que
de forma alguma afastam outras possibilidades de leitura, mais ancoradas,
por exemplo, nas falas dos parentes e conhecidos não indígenas de João e na
própria trajetória de Thini-á.
A década de 1940 seria marcada pelo projeto desenvolvimentista do governo
Getúlio Vargas, conhecido pelo nome de “Marcha para o Oeste”, cujo objetivo
era ocupar os territórios de diferentes povos indígenas do Brasil Central e inte-
grá-los ao Estado brasileiro. Os diferentes grupos Kayapó foram amplamente
impactados, suas terras invadidas e parte da população sequestrada ou eliminada,
seja por meio de assassinatos ou em função de diferentes epidemias causadas
pelo contato descontrolado com diferentes frentes de homens brancos.
Os Kayapó, assim como os Xavante e outros povos do Brasil Central, tiveram
um papel crucial na imagem deturpada que o Estado Novo construiu a respeito 233
dos povos indígenas, a fim de legitimar seu projeto de desenvolvimento, que
contava com a ocupação e a exploração de territórios indígenas. Do ponto de
vista do Estado, perspectiva que em larga medida se mantém nos dias de hoje,
os povos indígenas são empecilhos ao “desenvolvimento”, seja aquele implemen-
tado por governos, seja aquele levado a cabo pelo “setor produtivo”. Exemplo
notório dessa perspectiva encontra-se no filme “Sertão – Entre os índios do
Brasil Central” (1949, RJ, 35 mm, 61 min.), dirigido por Genil Vasconcelos, de que
transcrevo o trecho inicial do off , sobreposto no filme à imagem de um sobrevôo
sobre a “cidade maravilhosa”, que se funde a outra imagem aérea, de uma aldeia
indígena do Brasil Central: “Rio de Janeiro, galpão inicial de uma nova incursão
pelos sertões bravios a que o progresso e a civilização não chegaram. O avião
reduzindo as distâncias vai tornando cada vez menos penosa essa penetração
no oeste selvagem”. Esse tipo de documentação arquival se faz presente em
A Terceira Margem de duas maneiras; através do filme “Primeiro Contato com
os Txukarramãe” (1953) e do off que, fora de cena e na voz/posição do diretor,
trata de informar ao espectador sobre o contexto político de cerc(e)amento
da população indígena no Brasil Central, investida contra a qual a captura de
João não é senão uma reação. Encontramos no filme diversas pistas que nos
permitem nos aproximarmos da perspectiva Kayapó sobre os brancos, bem
como sobre a captura, a vida e a morte de João; vou tentar descrevê-la a partir
de três momentos/depoimentos.

A cena começa com Thini-á sendo seguido pela câmera, chegando de forma
lenta e um tanto hesitante em uma residência de uma comunidade indígena
que certamente não é a sua. Uma voz fora de cena lhe informa que o cacique
foi ali... e que iriam lá chamá-lo. Duas mulheres cruzam o fundo do quadro e da
comunidade, dançando e cantando de forma coordenada. Estamos entre os
Kayapó. Thini-á aguarda a chegada do cacique Bedjai Metuktire, que entra em
cena vestindo apenas um calção vermelho e com um terçado em punho. Uma
mulher kayapó pergunta a Bedjai o que a equipe de filmagem está fazendo ali.
A resposta de Bedjai é direta: “Eles vieram fazer um documentário sobre o seu
tio (João)”.
O cenário é composto, Bedjai de frente para a câmera e Thini-á de perfil,
com seu cachimbo, ambos no mesmo quadro. “O João morou aqui?”, indaga
primeiramente Thini-á. Transcrevo em seguida uma sequência de falas de Bedjai
que se segue a essa pergunta.
234
É, foi aqui que foi, cemitério dele tá aqui comigo. [...] Falava kayapó, aprendeu tudo
que nós temos, porque cresceu no meio da gente, vivia entre a gente, aprendeu tudo.
[...] Então, naquele tempo vivia só brigando, entre eles [índios], entre os parentes,
com os brancos. Os primeiros portugueses que chegaram ficaram inimigos nossos.
Aí também ficou inimigos deles. Aê não pára de brigar com branco, porque matou
muita gente, nós, muito, carregou criança, muito, mulher. Aê eles nunca esquecem.
Aê vem brigando. Por isso que a pessoa pega. Ataca pai e mãe, ele é obrigado de
pegar a criança para criar. [...] Ele fica com dó e carrega para lembrança, que é guer-
reiro, tem lembrança dele, tem de mostrar, falar, aquele lá pegou, brigou, pegou
criança para criar, por isso que a pessoa pega. [...] Foi assim que pegou João, meu
pai pegou João.

Essa citação de Bedjai é extremamente potente. Ela primeiramente atesta


um processo muito bem sucedido de adoção/familiarização de João e, em
seguida, esboça uma compreensão geral de uma sociologia indígena a respeito
dos inimigos, entre eles os brancos. Bedjai contextualiza a captura de João em
uma época na qual o “estado de guerra” entre diferentes povos/facções indí-
genas foi acentuado pela presença de diferentes frentes de homens brancos
nesses territórios. Bedjai é taxativo, os brancos são nossos inimigos, e teria
sido portanto a partir dessa economia da vingança que João foi capturado e
criado para mais tarde fazer parte de uma “estratégia kayapó” de se relacionar
com seu “melhor inimigo”. Para os Kayapó, João é um índice da memória do
guerreiro Kromare Metuktire Kayapó, que, em defesa do território e em favor
de sua grandeza, assumiu a captura e a paternidade de João. Parafraseando
Bedjai, um dos principais motivos de Kromare ter capturado João talvez tenha
sido para que lembrassem dele, sua memória estava em jogo e se constituía a
partir da vingança dos parentes mortos e roubados. Em memória de Kromare
Metuktire Kayapó.

A cena se inicia com uma senhora de idade acompanhada de um homem mais


novo, aparentando ser seu filho, no fundo do quadro. Eles passam por um
portão de ferro de uma casa e caminham em direção a câmera. Trata-se da
famosa liderança kayapó Megaron Txukarramae e de Kokonhere Txukarramae,
tia de João “Kramura” Abreu Luz. Vale notar que o filme abre mão de nomear
os personagens/pessoas e os lugares/comunidades que entram em cena, sendo

235
necessário estar atento aos diálogos e à narração em off ou mesmo consultar a
listagem disponibilizada nos créditos finais.
O cenário é novamente composto, Megaron e Kokonhere de frente pra
câmera e Thini-á de perfil, ora dentro do quadro, ora fora. Kokonhere conta
que João havia sido capturado logo na primeira investida de seus parentes e
que haviam matado um outro branco [irmão de João, chamado José] por terem
achado que ele estava armado. Thini-á, interessado em saber se João havia sido
iniciado na cultura kayapó, pergunta se Kokonhere se lembrava da primeira vez
que pintaram João, se haviam dado um cocar kayapó ou se fizeram um ritual.
Megaron traduz a questão em kayapó para Kokonhere, que alisa de forma
carinhosa o braço direito de Thini-á, que responde em kayapó, traduzido para
o português na legenda: “Sim, seu pai [de Megaron] fez um cocar para ele e
ele usou. [...] Ele até dançava o ritual de brigar com o branco. Ele brincava com
quem tinha a idade dele. [...] Quando seu tio foi morto por um homem branco,
aí, o próprio João cantou a música de guerra para matar homem branco”.
Em seguida, em um dos pontos altos do filme, Kokonhere, espontanea-
mente, o que não é incomum quando indígenas de diferentes grupos de norte
a sul do país resolvem narrar eventos importantes de suas vidas, canta uma
música que, diferentemente das demais falas em kayapó, não é traduzida para
o português. Tudo leva a crer que seja a tal música que João cantou e dançou,
música de guerra, vingança e produção da memória entre os Kayapó. Toda a
sequência vem corroborar a mesma tese defendida por Brdjai Metukitire, tese
que também foi defendida por Manuela Carneiro da Cunha e Eduardo Viveiros de
Castro em artigo seminal, que serviu de inspiração ao título do presente ensaio.
Em “Vingança e Temporalidade: Os Tupinambá” (1985), os autores, apoiados
tanto em fontes históricas dos cronistas do século XVI, quanto na etnografia
sul-americana da época, advogaram que

a guerra de vingança tupinambá é uma técnica da memória, mas uma técnica singular:
processo de circulação perpétua da memória entre os grupos inimigos, ela se define,
em vários sentidos, como memória dos inimigos. (...) Não é da ordem de uma recu-
peração e de uma “reprodução” social, mas da ordem da criação e da produção: é
instituinte, não instituída ou reconstituinte. É abertura para o alheio, o alhures e o
além: para a morte como positividade necessária. É, enfim, um modo de fabricação
do futuro. (1985, p. 205)

Interessante notar como essa citação está parcialmente conectada


com a perspectiva de Bedjai Metuktire e Kokonhere Txukarramae mostrada
236 no filme.
A Terceira Margem fará parte de um novo projeto de curadoria em curso que dará
continuidade à série iniciada em 2011 no forumdoc.bh, “Cinemas e Alteridades”.
A mostra por vir, intitulada “Os Mortos e a Câmera”, terá como foco justamente
um dos aspectos principais desse documentário. Trata-se, afinal, de um filme
sobre um morto, sobre sua memória, portanto.
Apesar de ter tido acesso a diferentes arquivos de imagens, a única fotografia
de João encontrada por Remy foi a de sua carteira de identidade. Tirada tardia-
mente, quando João já estava doente e em tratamento em Brasília, a carteira
de identidade foi deixada com o dono de um hotel em São Félix que pertencia
ao patrão de João quando este trabalhou na balsa que dava acesso ao Xingu.
O encontro mais potente produzido pelo filme foi a visita de José, a convite
de Thini-á, ao túmulo de seu irmão João Kramura, na aldeia onde foi enterrado.
Quem o recebe nessa visita é Bedjai Metuktire, também irmão de João Kramura.
Imediatamente, após José ser apresentado às mulheres kayapó presentes, os
três, Thini-á, José e Bedjai seguem até o túmulo e, diante dele, Bedjai faz um
discurso extremamente comovente:

Cemitério dele é esse aqui, nós enterramos com nossos enfeites, nós deixou tudo
festa que ele participou, entregamos tudo para ele, para ele ficar contente com
nós. Ele viveu com nós, cresceu no meio da gente, acostumou com toda vida nós,
costume nós, taí, nós entregou tudo que ele participou, taí [...] Quando você [José]
quiser visitar de novo, pode vir, taí, eu não vou sair fora dele, eu estou aqui junto
com ele, está bom?!

Talvez aquele primeiro cocar que Kokonhere afirmou que o pai de Megaron
havia feito para Nhudjare tenha sido enterrado com ele, juntamente com os
demais enfeites que testemunharam sua jornada com os Kayapó e que Bedjai
guarda com tanto cuidado.
Joanna Miller, em artigo magistral publicado na revista Mana, “Carteira de
Alteridade: Transformações Mamaindê (Nambiquara)” (2015), estabelece uma
conexão parcial entre enfeites corporais e carteira de identidade. Segundo Miller,
um Mamaindê sem seus enfeites corporais torna-se vulnerável ao ataque de
diferentes seres da floresta; do mesmo modo, quando na cidade, sem a carteira
de identidade, torna-se vítima fácil da polícia, que, para os Mamaindê, recorda,
não sem razão, os perigosos espíritos da floresta. A conexão parcial presente
em A Terceira Margem entre a carteira de identidade de João e seus enfeites
com ele enterrados pelos Kayapó, como índices de diferentes potências de 237
produção de memória, ressoa de forma muito interessante a análise proposta
por Miller acerca dos enfeites mamaindê.

A fim de fazer jus à marcante presença de Thini-á, gostaria de encerrar este ensaio
comentando outro encontro, já na parte final do filme, entre Thini-á, Megaron
Txukarramae, Raoni Metukitire e Bedjai Metuktire. A cena se inicia com Raoni,
identificado por seu botoque labial, tecendo um lindo cocar de penas azuis.

João morou com a gente, ele morou com a gente. Ele era como um filho para mim
e para meus irmãos. Tardiamente, me disseram que o João estava doente. [...]
Quando João morreu, eu falei para os meus parentes e filhos trazerem o corpo do
João para ele ser enterrado aqui. Porque ele cresceu no meio da gente, como um
filho. É por isso que vocês têm de trazer o corpo dele aqui, para enterrar ele aqui,
perto da gente. Foi assim que aconteceu, Thini-á.

Raoni, assentado no chão ao lado de Megaron e Thini-á, rememora com


saudade seu filho João. A sequência se desenvolve com Thini-á contando aos
Kayapó presentes que havia ido até Jaciara, onde o João viveu quando voltou
para seus parentes não indígenas, e tinha notado na fala das pessoas de lá que
João não havia se adaptado com a vida longe dos Kayapó. Essa é outra sequência
de grande importância na economia do filme, pois nela Thini-á mescla de tal
forma a história de João na sua, que em certos momentos não sabermos de
quem Thini-á está falando, se de João ou dele próprio. Ao comentar que João
chorava de saudade dos Kayapó, Megaron não consegue conter as lágrimas,
assim como Thini-á, que declara ter ficado emocionado ao descobrir que João
chorava de saudade de seus parentes kayapó na cidade, do mesmo modo ele
próprio já havia chorado de saudade de seus parentes, os Fulni-ô.
Se a princípio A Terceira Margem seria um filme sobre a história de João,
nem branco, nem indígena, índio branco, entre o mundo dos brancos e o dos
Kayapó, entre duas margens – donde a alusão ao conto de Guimarães Rosa –, ao
assumir o risco de dispor de Thini-á como “guia” ou “mediador” nessa jornada,
o filme acaba produzindo, por meio dessa dupla mediação, não apenas a reve-
lação da sinuosa vida de João entre os Kayapó e os brancos, mas também, e
sobretudo, uma transformação em Thini-á, elevando assim seu propósito e sua
força estética. Por meio da busca de traços da biografia de João, a biografia de
Thini-á é ao mesmo tempo narrada, problematizada e transformada. É desse
238 jogo de memórias e perspectivas cruzadas que A Terceira Margem tira sua força.
por André Brasil**

“Mas esse despertar não me incomoda mais


do que os meus sonhos, agora furiosamente nítidos.”
Kafka, em carta a Max Brod, provavelmente de
16 de novembro de 1912

Em seu primeiro documentário sobre o Wai’á Rini, O poder do sonho, de 2001,


Divino Tserewahú retoma os arquivos em torno do ritual de iniciação espiritual
xavante para, em cena, situar seu “lugar” no momento em que fez as imagens:
se em 1987, participava da iniciação como “menino da cabaça”, agora, ele será
“guarda” – aquele que cuida da realização rigorosa das atividades rituais, impedindo,
por exemplo, que as mulheres entreguem água aos jovens sedentos – e, ao mesmo
tempo, cinegrafista. Divino segue descrevendo as mudanças de posição que o
tempo cíclico dos rituais abriga: Jair era “menino da madeira” e agora também
será guarda. Benjamin, que era guarda, assume a função de cantor. Antes, logo
no início, é o pai de Tserewahú, quem explica o ritual, preparando ciosamente a
entrada do espectador no universo do filme: após uma imagem panorâmica de
abertura, que mostra o desenho circular da aldeia xavante, Alexandre Tsereptsé
disserta sobre o sofrimento a que os jovens devem se submeter para “conhecer
as forças sobrenaturais” e sonhar. Permeando a fala do pai, imagens do ritual,
em enquadramentos firmes e fluentes que caracterizam o estilo do cineasta:

* Devo boa parte das hipóteses desse breve comentário à interlocução com Bernard Belisário,
que desenvolve a pesquisa de doutorado acerca do cinema-ritual de Divino Tserewahú, às
estimulantes conversas junto ao Grupo de Pesquisa Poéticas da Experiência e às aulas que
acompanhei, em 2016, na UFMG, ministradas por Divino, Benjamin Wa’aihö e Paixão Wa'umhi.
** Professor do Departamento de Comunicação Social da UFMG, onde integra o Grupo de Pes-
quisa Poéticas da Experiência e a equipe de editores da Revista Devires – Cinema e Humanidades. 239
um travelling lateral acompanha a fila circular dos jovens no pátio; um plano
aberto, fixo, nos dá a dimensão do ritual; agora, a câmera percorre a longa fila,
filmando os integrantes, um a um, como a destacar e singularizar corpos e
rostos, sem perder de vista o vínculo com o coletivo. O pai endereça então sua
fala ao espectador, explicitando o intuito do filme, deliberadamente situado
em um espaço interétnico: as imagens nos ensinarão como é “duro viver a
tradição xavante”. Se, por um lado, o filme é estratégia mnemônica, registrando
o ritual de modo a legar as imagens às outras gerações, ele também se constrói
didaticamente, endereçando-se assim aos espectadores não-indígenas, waradzu.
“Quem sofre mais, sonha mais, e tem mais poder.” A fala de Tsereptsé nos
conduz então ao mundo dos sonhos xavante, entrada que o filme nos possibilita,
entre a precisão dos enquadramentos e a opacidade daquilo que ele, ao tornar
visível, não nos permite acessar plenamente (já que somos estrangeiros àquele
mundo). Essa é a chave que o novo Wai’á Rini, feito por Divino Tserewahú, em
parceria com Bernard Belisário, 15 anos depois, vai retomar e, nos parece, acirrar.

Nesta nova versão, Tserewahú afirma e apura seu modo de filmar: trata-se de
enquadrar com acuidade a cena ritualística e, a despeito da dispersão inevitável
nesse tipo de evento, oferecer ao espectador planos justos, que demonstram
amplo conhecimento da dinâmica ritual (como se um saber tácito, ao mesmo
tempo intuitivo e estratégico, fosse acionado a cada tomada, antecipando
com justeza o lugar onde posicionar a câmera, seus movimentos). Os planos
transitam entre o enquadramento fixo e o travelling, entre o plano geral do pátio
e a atenção aos corpos e aos gestos (geralmente, repetidos e sustentados à
240 exaustão). Essa geometria rigorosa é atravessada e desorganizada pontualmente
pelas entradas disruptivas das mulheres, que saem do extracampo, tentam se
esquivar e driblar a interdição dos guardas. Na montagem, estes planos mantêm
intrincada relação com as situações rituais, preservando sua espessura e duração.
Diferentemente, contudo, da primeira versão do Wai’á Rini, nesta, as
estratégias didáticas se reduzem ao mínimo: nem imagem aérea a situar o
“território” do documentário, nem aparição do cineasta, em cena, a explicitar
seu lugar de fala, entre o ritual e o filme; nem palavra do ancião que, traduzida
ao espectador não-indígena, permita explicar aspectos centrais da iniciação,
nem depoimento dos jovens, em contraponto interno às falas dos mais velhos.
Nada disso está presente no novo filme, que parece se propor como outra
forma de mediação1.

Se antes, a fenomenologia do documentário – a rígida geometria e a densa


tessitura da cena ritual – era entremeada pelas palavras, agora, elas não serão
traduzidas e o espectador waradzu não encontrará qualquer amparo nas falas.
Se há elementos exteriores ao encadeamento das imagens, eles menos ajudam
na compreensão do ritual do que a desconcertam: é o caso dos intertítulos,
que dividem os blocos do filme e que também não se traduzem, e da música

1. Pude ver Waia Rini (2015) em dois momentos: primeiro, em uma belíssima exibição no Cine Olaria, como parte
do curso Cinema, pensamento e política xavante, ministrado por Divino Tserewahú, Benjamin Wa’aihö e Paixão
Wa'umhi, em 2016, no âmbito do Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG. E, depois,
na programação da mostra Cinema: território ameríndio (2017), que contou com curadoria de Júnia Torres e Pedro
Portella. Se a opção por não traduzir as falas pode vir ser uma solução provisória, trata-se, contudo, do modo
como o filme nos chega, por decisão do diretor, nessas duas exibições. 241
incidental, que não parece guardar ligação interna com o ritual e cuja origem nos
é enigmática. Resta, portanto, ao espectador – especialmente, ao espectador
waradzu – adentrar, desamparado, as imagens do sonho xavante; submergir no
sonho do outro; sofrer sua beleza austera.
Sem um texto que as ampare, as imagens, de fato, surgem como as de um
sonho: as longas filas de corpos que atravessam o pátio longitudinalmente; os
enormes círculos que se formam em torno do espaço, o amplo vazio em seu
centro; o modo reiterativo dos cantos; o contínuo bater dos pés (gesto que os
Xavante denominam datsiprabu); a luz do dia filtrada pela poeira e pela fumaça,
as imagens noturnas, em que os corpos quase não se distinguem na penumbra.
Seria preciso, em outro momento, caracterizar estas imagens do sonho,
tal como sonhado pelos Xavante: sua produção se dá em meio a um ritual
coletivo, em que os corpos padecem até desmaiar e, só assim, sonhar. Não se
trata estritamente de sonhos individuais, enigmas, segredos que demandariam
interpretação, mas de sonhos-agência, parte de uma iniciação espiritual que
investe os corpos e os preparam para atuar em dada socialidade. Se a entrada
no mundo dos sonhos se dá por meio de um trabalho exigente e rigoroso, o
gesto de filmar e as imagens dele resultantes parecem contíguos ao sofrimento
e à resistência dos corpos.
Termino esse brevíssimo comentário com uma hipótese, que talvez
mereça atenção. Mais amplamente, a nova versão de Wai’á Rini sugere um
reposicionamento nas relações cosmopolíticas entre os Xavante e os waradzu, aqui
especificamente sob a mediação do cinema: se permanece o desejo de relação,
o intuito de lidar e se relacionar estrategicamente com o mundo do branco; se
se mantém o desejo de apresentar aos espectadores uma manifestação ritual,
central na experiência cosmológica dos Xavante, o filme parece, contudo, alterar
o modo como propõe essa relação, o modo como se propõe como mediação:
ele nos demanda adentrar o mundo espiritual xavante em seus próprios termos,
por meio de uma cena sensível exigente, espécie de lúcida opacidade, na qual,
repetimos, o sonho é contíguo à exaustão dos corpos. Deliberadamente, ele
preserva e nos devolve, com generosidade, a parte de “não-saber” que nos cabe.
Nesse momento em que o sonho do progresso nos faz despertar em meio a um
cenário desoladamente distópico, não se mantém, ali, certa “distância segura”
em relação ao nosso modo de sonhar?

242
por César Guimarães – UFMG

A gente sonha a vida inteira


e só acorda no final.
Racionais MC’s, O homem na estrada

O sono é das poucas experiências que nos restam de


abandono, consciente ou não, aos cuidados de outrem.
Apesar de parecer solitário e privado, ele ainda não foi
apartado da trama de apoio mútuo e de confiança, por
mais danificados que esses vínculos estejam.
Jonathan Crary

Não sabemos por quanto tempo nem por onde perambulou aquele jovem que,
ao final de A vizinhança do tigre (filme anterior de Affonso Uchoa), abandonara
a casa da mãe, com quem vivia, guiado pela esperança de que tudo tinha que
mudar. Em Arábia (realizado em co-autoria com João Dumans), ele ressurge com
outro nome: Cristiano, um trabalhador extenuado precocemente pela exploração
capitalista, trecheiro (depois de uma passagem pela prisão), andarilho, dono de
um percurso errático reconstituído em suas memórias: catador de mexericas
na região de Piracicaba, ajudante de caminhoneiro, peão de obras, operário de
uma tecelagem em Paraíso e numa fábrica de alumínio perto de Ouro Preto.
É contra o fundo da paisagem desértica do bairro Nacional, na orla mais
afastada da região industrial de Contagem, como se fosse um resto de cerrado, 243
que escutamos pela primeira vez a voz do protagonista de Arábia, um pouco
antes de surgir o título do filme: “Eu sou igual a todo mundo. A minha vida é que
foi um pouco diferente. É difícil escolher um momento marcante para contar.
Porque, no final de tudo, o que sobra mesmo é a lembrança do que a gente
passou”. A vida já está no passado, mas a escrita caminha para o futuro (assim
como a voz que narra). Aquele que não pegava num papel e numa caneta há
mais de vinte anos – como acontece a tantos pobres (sem terra, sem trabalho,
sem casa, sem dinheiro ) – agora pode nos endereçar sua palavra.
Em meio a uma história feita de relações desfeitas, em que a exploração do
trabalho vai triturando as vidas, os afetos são as coisas que restam, conservadas
na memória de qualquer um, de todo mundo cuja vida é um pouco diferente da
vida de todos os outros, sem nada especialmente marcante, a não ser as marcas
que a escrita recupera e inventa, ao rasurar o esquecimento com alguns nomes
(de pessoas e cidades), uma coleção de eventos miúdos (os mais relevantes), tal
como Cristiano fez em seu caderno, encontrado por André, o rapaz que mora
na Vila Operária.

Poderia ser um road movie, mas não é. Piracicaba está muito longe da América,
e ninguém lembra mais do seu rio. Os trabalhadores, acorrentados ao subem-
prego na colheita das frutas, não podem seguir nenhuma aventura. O que
sobreviveu do antigo mundo rural, devastado pelo agronegócio, só pode acenar
com a sobrevida em um canto qualquer, como aconteceu com Barreto, o líder
dos camponeses que, depois de passar pelas lutas sindicais em São Bernardo,
retorna à terra natal. Hoje ele pesca na mesma lagoa onde nadara na infância;
mas se a terra é a mesma, está tudo esquisito, ele constata com amargura. As
estradas tornaram-se forças de captura e de apagamento do vivido. A transmissão
também é impedida: nada sabem da terra os jovens que, desajeitadamente,
elogiam o quanto Barreto sabia lidar com as plantações de mexerica, que se
tornaram mais doces com o cuidado dele. A sequência soa quase inverossímil,
tal a impossibilidade atual de se manter com a terra uma ligação como essa.
O trabalho temporário matou de vez o “homem do campo”, essa invenção das
lojas de produtos agrícolas e dos programas de extensão rural promovidos
pelo Estado. Hoje, centenas de boias-frias (arregimentados até entre os povos
indígenas), esgotados pelas condições desumanas do trabalho, desaparecem
sem deixar pistas, adoentados, mutilados, invisíveis, sem nome.
Há uma sequência em que o primo de Cristiano revive, no violão, um resquício
244 do mundo sertanejo. Toda saudade caipira é um pequeno artefato que sobrou
da destruição, fabricado pela indústria fonográfica: o campo nunca existiu, por
isso podemos sonhá-lo como perdido. (Melhor pensar no roçado dos índios e
das plantações dos acampamentos dos sem terra, que ainda guardam alguma
possibilidade de futuro). Nostálgica – mas fora de lugar – a canção Caminheiro
(conhecida pela interpretação original da dupla Liu e Léu) traz o lamento do
filho ausente que pede ao viajante que dê notícias dele à mãe já velhinha, ao
passar pela casa branca da serra. Em seguida, Cristiano pega o violão e canta os
versos iniciais de O homem na estrada, dos Racionais MC’s: “O homem na estrada
recomeça sua vida/sua finalidade/sua liberdade/que foi perdida/subtraída”.
Dois universos contrastantes são aproximados: o rural e o urbano; a cantiga
sertaneja e o rap; o campo e a favela; as esperanças (frustradas) do migrante que
deixara sua casa, por necessidade, e o aprisionamento das populações negras e
pobres no gueto das grandes cidades. Com ritmo entrecortado, asperamente
despidas de melodia, sacudidas por duras síncopes, as palavras falam da estrada
como uma oportunidade para mudar. O mundo real, porém, não demora para
cobrar sua conta frente a esse desejo. No dormitório dos peões que trabalham
nas obras da BR 381, Nato, o amigo de Cristiano, lê para os companheiros
reunidos à sua volta a carta que a mãe lhe enviara: “fico aliviada de você estar
em outro rumo; fico contente de ficar sabendo que você não está aqui”. Estar
longe de casa, submetido a um nomadismo forçado, pulando de um trabalho
a outro, ao sabor das circunstância é uma proteção frente aos muitos perigos
que se avizinham da casa materna: os desmandos abusivos da polícia, o apelo
do crime e das drogas. Ninguém está à espera dos trabalhadores transformados
em trecheiros; tampouco eles podem pedir a alguém que espere por eles.
A vida só pode mudar se ela for abandonando as partes que um dia a
constituíram, em um processo de auto-expropriação induzido de fora para
dentro, do mundo do trabalho para a vida interior, pouco a pouco esvaziada,
desmemoriada, reduzida a um utensílio desgastado.

A liberdade que o cinema já encontrou tantas vezes na vinculação entre a música,


a estrada e o deslocamento dos personagens em fuga, liberados do habitus apri-
sionador, das relações opressoras, surge logo no plano-sequência de abertura
de Arábia, mas de modo invertido, como a mostrar um impasse, um movimento
feito na direção contrária. Tendo ao fundo as montanhas arredondadas, tomadas
pelo verde das árvores, André desce a estrada de bicicleta, num movimento
expansivo e liberador: a câmera o acompanha, filmando-o de frente, ao som de
I’ll be here in the morning, de Townes van Zandt. A descida de bicicleta conduz à 245
cidade dominada pela fábrica, com seu zumbido mecânico, incessante, que faz
a cabeça doer; com sua fuligem que se deposita no beiral da janela e penetra
nos pulmões. Dos trabalhadores do turno noturno ela rouba o sono (e com ele,
o sonho), imergindo-os, durante o dia, num misto de sonambulismo e vigília:
“dormir de dia era um trabalho”, diz Cristiano.
Na casa dos dois irmãos – André e Marcos – planos imóveis mostram o
cotidiano modesto, os gestos rotineiros (dormir, tomar café), a ausência dos
pais, em constantes viagens. Cuidados pela tia, eles dividem a pequena área da
casa, espremida pela presença da fábrica (vista da janela do quarto, ela nunca
dorme, nunca cessa seu rumor, nem deixa de expelir seu veneno).
A fábrica é uma bomba gigantesca que drena para seu interior tudo o que
está próximo, a começar pela força de trabalho dos operários, literalmente
sugada, dia e noite, por turnos. Isso pode durar uma vida ou consumir vidas
inteiras; pode levar uma vida a entrar em colapso, subitamente, completamente
exaurida, como ocorreu com Cristiano. Um dia ele vê sua vida suspendida e acorda
do pesadelo da história. Ele atravessa uma fronteira diáfana, não está mais nesse
mundo. Pela primeira vez o barulho interminável da fábrica é interrompido; a
vida que ela sequestrara retorna em outro estado, transmutada pela palavra e
pela autoconsciência.

Mais de uma vez o filme se vale de referências que a montagem desloca sutil-
mente, concedendo-lhes um sentido enviesado. É que acontece com as canções,
que funcionam à maneira de citações desgarradas, como se não coubessem bem
no lugar onde aparecem. A começar pela cena de abertura, com a canção de
Townes van Zandt. Sem se desvencilhar inteiramente do chamado da estrada e do
vento, do apelo em partir e da triste beleza em contemplar o que ficou para trás,
o eu lírico promete, ambiguamente, retornar e permanecer ao lado da amada:
que ela feche os olhos e ele estará ao lado dela de manhã, por um momento.
O refrão – I’ll be here in the morning – pode ser tomado como uma alusão a
todos aqueles que ainda estão presentes, que sustentam algum tipo de compa-
nhia, mesmo se partiram; ele vale para os que mantêm entre si algum tipo
um laço, ainda que distantes, separados. O refrão pode muito bem valer para
André (que estará em casa quando o irmão menor acordar) e para Márcia, que
espera Cristiano despertar, no hospital. Vale também para o próprio Cristiano,
que resiste à expropriação de sua força de trabalho com o “seu braço forte e
sua vontade de acordar cedo”; e concerne também a Ana, que um dia escreveu
246 ao namorado: “O que eu tenho para você é a minha boca e os meus braços”.
Em comum, essas atitudes dos personagens têm a fragilidade. Como em
outro verso da música – I'll be here for a while – alguém nos promete sua presença,
ao nosso lado. Isso não é pouca coisa, em um mundo que não tem milagre, como
Marcos responde a André quando este pergunta a ele se acredita em Deus. A
fala da criança poderia soar solene, mas é dita sem ênfase, em meio à banalidade
dos afazeres cotidianos e à solidão repartida com o irmão mais velho.
Quando a desolação impera (mesmo se a vida parece apenas seguir seu
curso, desapercebida), o sentido só pode surgir por antítese, como na música de
Renato Teixeira, chamada “Raíz”: “amanhecer é uma lição do universo/é preciso
nascer/somos só eu e o mundo/e tudo começa aqui”. Nada mais distante disso
do que as situações vividas pelos personagens, que, em seu desamparo e desen-
raizamento, perderam toda e qualquer vinculação com o cosmos: a vida social,
empobrecida, encarregou-se de extirpá-la. O amanhecer não guarda nenhum
gesto inaugural, apenas repete a passagem rotineira dos dias e das noites.

Desprovido – à força – de um horizonte de transformação política, o trabalho é


encarado com a esperteza dos que sofrem as suas agruras, tal como na conversa
de Cristiano com Antônio Carlos, o caminhoneiro com o qual trabalhara de
ajudante. “A pior coisa do mundo que tem para carregar é o cimento”, afirma o
rapaz. “Já carregou telha? Tem nada pior do que telha”, retruca o outro. “Lenha é
horrível”, fala Cristiano. “Lenha é mais fácil para mulher”, complementa Antônio
Carlos. “Tijolo e abóbora”, acrescenta o rapaz. “Porco vivo. Não tem nada pior”,
compara o homem. A lista das mercadorias fáceis e difíceis de transportar pros-
segue ao sabor das experiências de um e de outro. “Batata é bão de carregar”;
E café também, concede o caminhoneiro. “Café e semente”, concorda Cristiano.
“Milho, colchão de espuma”, adiciona Antônio Carlos. Emenda Cristino: “arroz, areia...”
Essa conversa despretensiosa, mas apanhada em um enquadramento
rigoroso, nos faz lembrar, por associação livre e por contraste, do diálogo entre
o visitante que retorna à cidade natal e o amolador, em Sicília (o filme de Jean-
Marie Straub e Danièle Huillet, realizado a partir de Conversa na Sicília, de Elio
Vittorini). A comparação é disparatada, mas pode ser útil para recordar que, não
faz muito tempo, os trabalhadores sonharam em fazer do trabalho o meio da
sua emancipação, frente “às ofensas feitas ao mundo, a impiedade e a servidão,
a injustiça entre os homens e a profanação da vida terrestre contra o gênero
humano e contra o mundo”.
Nem o caminhoneiro nem o seu ajudante podem proclamar – algo teatral-
mente, como no filme dos Straub: “O mundo é belo”, diz o amolador. “Acho 247
que sim”, concorda o forasteiro. “Luz, sombra, frio, calor, alegria, não alegria”,
prossegue o amolador. “ Esperança, caridade”, emenda o forasteiro. “Infância,
juventude, velhice”, continua o amolador. Talvez sobreviva em Cristiano um resto
da energia daquele homem Ezechiele que, no romance de Vittorini, passava
seus dias a escrever a história das ofensas feito ao mundo: “O mundo é grande
e belo, mas é muito ultrajado. Todos sofremos, cada um por si mesmo, mas não
sofremos pelo mundo que é ultrajado, e assim o mundo continua a ser ultrajado”.
Com palavras simples, nada eloquentes, retiradas das conversas ordinárias
– mas filtradas pelo texto escrito que serviu de guia para a rememoração em voz
off de Cristiano – Arábia também procura os meios para vencer a insuficiência
do sofrimento de cada um em combater a servidão inoculada pelos poderosos.

Os versos de Noel Rosa em 3 apitos (na interpretação de Maria Bethânia) surgem


pela primeira vez quando Cristiano observa distraidamente um jogo de várzea,
em meio à vegetação ressecada. A chaminé de barro a que o samba alude ficou
para trás, em outra época: acima dos fios elétricos adivinhamos a paisagem bruta
e industrializada do nosso presente. A narrativa do amor pela trabalhadora da
fábrica de tecidos, contudo, permaneceu. Esta é a história que o protagonista
“ia mais gostar de escrever”, aquela que o levou até Ana, na cidade de Paraíso.
Mas para isso foi preciso um recuo, para fazer do tempo perdido o tempo reen-
contrado, um dia, em um parque de diversões.
Insidioso, o funcionamento da fábrica tira o sono, adentra o sonho e, por
dentro dele, alcança o corpo febril de Ana: quando ela descobre que esperava
um filho, já não pode esperar mais. No sonho no qual irrompera a dor, ela corria
atrás dos meninos de rua para protegê-los dos perigos das máquinas, do fogo
do forno. Mesmo sem os operários, com as máquinas funcionando sozinhas, a
fábrica mata a esperança, Cristiano escreveu. A cena na qual Ana narra o que
lhe acontecera dispensa o campo-contracampo. A conversa se dá em planos
separados, pois já não é mais possível devolver o olhar, que deixa de procurar
as bordas do quadro (onde se encontra o outro, o par). Os corpos e os olhares
estão presos no quadro, encerrados cada um em seu espaço. Ana e Cristiano
não são mais um casal.
Assim é que se filma a custosa diferença entre homens e mulheres. Sem
que os homens possam projetar seu imaginário diante da aparição das mulheres.
Os homens são incapazes de sustentar isso, e o cinema já filmou essa fraqueza
uma centena de vezes. Conhecemos o seu desfecho: a separação, a canção da
248
fuga (quando voltam os versos de Townes van Zandt, em planos noturnos), a
carona, o passado no retrovisor, o vazio do futuro, o presente interminável.

Em uma longa e silenciosa meditação (que tira nosso fôlego), quando a fábrica
finalmente tem seu barulho bloqueado, a voz de Cristiano narra, de dentro, seu
próprio colapso, desacordado, lúcido, acordado para outra vida possível: “queria
que todo mundo fosse para casa; que a gente abandonasse tudo, deixasse as
máquinas queimando, o óleo derramando, os pedaços de ferro abandonados;
a esteira desligada, a lava quente derramando, inundando tudo, queimando as
máquinas, a terra, a brita, e a fumaça subindo”...
Por um tempo indeterminado, não-contado, o coração deixa de bombear
bauxita e alumínio; a boca cospe os pedaços de ferro depositados no pulmão,
que expele a fumaça que o intoxicava; a fábrica arde, engolida pela lava que
transbordou dos fornos, a fumaça tampa inteiramente o céu; e o lucro da fábrica
vai todo embora, desperdiçado. Os trabalhadores estão em casa, tomando água,
dormindo à tarde. De dentro do sofrimento individual emerge o chamado cole-
tivo que o operário lança aos companheiros: “eu queria chamar todo mundo,
os forneiros, os eletricistas, os soldadores, os encarregados, os homens e as
mulheres, e dizer no ouvido de cada um: vamos para casa; nós somos só um
bando de cavalos velhos”.
Não sabemos se o acontecimento que irrompeu nesse dia na fábrica pôs
fim à vida de Cristiano. Se há respiração, o corpo resiste; se há palavras, mesmo
poucas, um fio de sentido subsiste, e as imagens irrigam o sonho que teima em
retornar: o operário que passou para outro mundo se vê em uma floresta, sozinho,
perseguido pelas pessoas que o procuravam. Retornam as lembranças de uma
noite traumática, com seu segredo (quanto mais escondido, mais assombrador).
Os gravetos crepitam e as noites se misturam: a do hospital – a do sono mais
profundo – e, dentro dela, embutida, outra noite, a do sonho, iluminada pela
fogueira na beira da estrada. Outrem nos espera, quando acordarmos outra vez.

249
por Isaac Esau Carrillo Can**
tradução: Alice Lamounier Ferreira

– Vamos! – Assoviaram para Manuel os quatro homens com quem ele costu-
mava ir caçar.
– Já vou! – ele respondeu, da mesma maneira.
Deu um abraço apertado em sua esposa e lhe disse:
– Prepare-se, arrume tudo para que amanhã se possa comer o que há de
mais saboroso.
Depois de dar essa instrução, Manuel foi embora com os homens que o
esperavam na porta de casa. O cão, quando viu que seu amo estava saindo,
levantou-se ligeiro para ir atrás dele – não era à toa que lhe chamavam "Macho".
O céu se vestia de escuridão quando os cinco homens se internaram nas
entranhas da selva. Já estava próxima a noite quando desapareceram entre as
luzes intermitentes dos vaga-lumes e o intenso canto da cigarra.
– Querem saber, senhores? Tem algo que me deixa muito preocupado – disse
Manuel a seus companheiros.
– Com certeza você está com medo – eles responderam, e isso foi motivo
de gargalhadas.
– Não! Na verdade, assim que entramos na floresta, pude sentir que algo
tem os olhos sobre nós.
– Deixe de bobagem! Mas, se tem medo, faça o favor de voltar; se nossa
presa sentir o cheiro do seu medo, você colocará tudo a perder. Por isso, se
você está inquieto, regresse.

* Traduzido do espanhol publicado em CACERÍA: < www.tierraadentro.cultura.gob.mx/caceria/>.


** Isaac Esau Carrillo Can (Peto, Yucatán, 1983) escritor maya. Ganhador de vários prêmios de
literatura no México. Autor de U yóok’otilo’ob áak’ab, “Danzas de la noche” (Ed. CONACULTA),
compilador de Kan ik’ti’ilipor (Ed. Ayuntamiento de Mérida) e coautor de Kuxa’an t’aan, Voz
viva del mayab (Ed. Secretaría de la Cultura y las Artes de Yucatán e UNAM). Bolsista do FON-
250 CA no programa Jóvenes Creadores em línguas indígenas 2016-2017.
– Não é medo, é outra coisa. Se tivesse medo, não iria com vocês.
– Então cale a boca e vamos! – eles responderam, e apertaram o passo.
Ao perceber que ninguém deu importância a suas palavras, Manuel optou,
em todo caso, por manter os olhos bem abertos. Apesar de seu cão ir abanando
o rabo atrás dele, não conseguia ficar tranquilo como de costume, porque podia,
inclusive, sentir a cada momento a respiração daquele que os espreitava.
Quando chegaram a um vale ao qual sabiam que os veados desciam para
beber água, planejaram rodeá-lo por cima, de modo que, se alguma presa
chegasse a descer, não teria escapatória. Como os homens eram muito astutos,
combinaram também um assovio de alerta, caso alguém chegasse a escutar ou
ver algo estranho na floresta. Depois, penduraram suas pequenas redes nos
galhos das árvores e se puseram à espera.
Pouco depois, Manuel escutou algo se mexer entre os arbustos debaixo da
árvore em que se encontrava, e ao prestar atenção conseguiu ouvir uns sussurros.
– O que você acha, papai? São cinco os homens que vêm nos matar.
– Sim, tudo indica que sim, filho – respondeu uma voz como a de um homem
adulto. – Mas não se preocupe, nós vamos mostrar-lhes o que é bom, vamos
chamar o resto da manada e regressaremos para dar-lhes um susto.
Ao ouvir a conversa, Manuel inclinou-se para ver quem havia falado e pôde
ver um enorme veado com sua cria. Pouco depois que eles desapareceram entre
os arbustos, Manuel assoviou para os outros homens:
– Vamos embora, não é bom continuar aqui!
Mas ouviu apenas silêncio, ninguém escutou seu assovio, ninguém tampouco
respondeu. Então ele disse:
– Malditos senhores! Certamente dormiram. Irei vê-los.
Desceu da árvore e caminhou com cautela, mas a primeira coisa estranha
que viu foi que, apesar de empurrar o cão com a ponta do pé, ele não despertou.
– E você? Qual o seu problema? – disse ao cão, e se dirigiu aos outros homens
para dizer-lhes para se afastarem daquele lugar. Não tinha ido muito longe quando
viu aproximar-se um estouro de veados; dava para ver que vinham irritados.
– Ali vai um, vamos atrás dele!! – disse um deles, e resolveram perseguir
Manuel. Os homens, que estavam trepados nos galhos das árvores, nem sequer
perceberam o que estava acontecendo. Manuel, ao ver que estava em perigo,
pegou seu rifle, apontou para os veados e disparou sem sucesso. Quando viu
que sua arma não funcionava, arremessou-a, livrando-se dela, e, sem pensar
duas vezes, saiu correndo, mas os veados apenas trotavam, sua intenção não era
devorá-lo, mas meter-lhe muito medo. Depois de correr, e quando sentiu que já
não podia mais, porque seu coração estava prestes a sair pela boca, se deteve.
– Se me comem, já não há nada a fazer – pensou, agitado. 251
Quando parou em frente aos veados, no entanto, eles também se detiveram.
– O que está acontecendo?! – perguntou, explodindo em lágrimas, com
uma mistura de surpresa e terror.
Então, o líder dos veados se aproximou e lhe disse:
– Senhor, hoje é o dia em que o senhor conhecerá como é a nossa natureza,
o dia em que terá que jogar com a vida e a morte. – O veado tentou atacá-lo
com uma mordida, virou-se para o caminho que o tinha trazido e em seguida
saiu correndo, seguido pela manada que o acompanhava.
Por um bom tempo, Manuel esteve caminhando sem rumo; havia se deso-
rientado e, além disso, não se reconhecia, sentia-se estranho.
Quando o dia clareou, continuava cabisbaixo, seguindo sem rumo um
caminho. De repente, o vento lhe trouxe uma conversa.
– Onde vocês acham que Manuel se meteu?
– Hum! Acho que ele ficou com medo e fugiu – respondeu alguém, e caíram
na gargalhada.
– Não estão longe, esperarei por eles aqui – disse Manuel, e dirigiu-se para
a beira do caminho.
– Por onde andaram? – perguntou tão logo os homens apareceram.
– Ei! – disseram todos, apontando seus rifles para ele.
– O que está acontecendo com vocês, amigos?! – acrescentou Manuel,
surpreso, mas como lhe pareceu que eles o ignoraram, decidiu entrar rapida-
mente na densa mata.
– Vamos atrás dele!! Que ele não nos escape!! – disse um dos homens e, em
seguida, correram atrás de Manuel.
Em cada salto que dava, avançava para mais longe. Pouco a pouco percebeu
que seu corpo não era o seu; nunca soube o momento exato em que mudou,
em que seu corpo se converteu no de um veado.
Atrás dele ia latindo seu próprio cão, que tampouco o reconhecia.
– Sou eu, Manuel!!! – Gritava desesperado em sua louca corrida. – Não sou
um veado, por favor não me matem!! – disse inutilmente, sem que entendessem
suas palavras.
E quando deu mais um salto para escapar da morte, ficou preso ao entalar
seus chifres nuns cipós emaranhados; naquele momento, seu cão lhe cravou
os caninos no traseiro.
Não teve tempo de dizer mais nada e recebeu o tiro. Um silêncio profundo
o envolveu.
– O que está acontecendo com este veado? – perguntou um dos senhores.
– Não cala a boca de tanta lamúria, cale sua boca!! – disse, arrematando com
252 sua faca.
Foram certas as palavras de Manuel, em sua casa se comeu do mais deli-
cioso, embora com tristeza tenham empreendido sua busca na mata. Da mesma
carne também se assou, para distribuí-la em sua memória. Quando jogaram um
pedaço de carne para o temível "Macho", lhe disseram:
– Esta é a recompensa por não ter permitido que escapasse, por mostrar
sua hombridade.
O cão então o pegou e afastou-se, relambendo o focinho, com a deliciosa
carne de seu amo.

253
por Joffrey Speno
tradução: Luís Felipe Flores

Você decide reunir diversos acontecimentos que abalaram a capital recen-


temente: os encontros da Nuit debout1, a crise dos refugiados, as manifes-
tações contra a Lei do Trabalho, em um contexto de estado de emergência,
as violências policiais e os traumas pós-atentados. Qual convergência você
deseja criar entre essas lutas?

Está na moda querer dividir, opor, separar elementos ou acontecimentos que,


mais do que nunca, estão conectados de maneira lógica. Aqui ou alhures, aqui
e alhures, as decisões tomadas, as políticas públicas construídas ou conduzidas,
ontem e hoje, pelos representantes políticos dos povos ditos soberanos, trazem
consequências para os lugares, os corpos, as narrativas dos indivíduos e dos povos,
e dão margem, às vezes de maneira deslocada ou imediata em termos espacial e
temporal, a efeitos bumerangue violentos. Além disso, não dá mais para acreditar
que se pode escapar à dialética local-global, microcosmo-macrocosmo: o mundo
é atravessado por todos os tipos de fluxos, movimentos migratórios, movimentos
de capitais ligados à financeirização extrema da economia – fluxos trazidos pelo
advento da nova razão digital. Fluxos marcados pela aceleração das velocidades,
pela perturbação dos regimes do tempo. Isso favorece o emaranhamento do interior
e do exterior, da esfera pública e da esfera privada, do nacional e do internacional.

* Entrevista publicada originalmente na Revista Diacritik, em 27 de março de 2017, editada e


traduzida especialmente para este catálogo.
1. Nota do tradutor: a Nuit Debout, expressão que significa, literalmente, “noite de pé”, consis-
te em uma onda de protestos anti-liberais que começou no dia 31 de março de 2016, com uma
manifestação contra o projeto de reforma trabalhista conhecido como Lei El Khomri, propos-
to pela então Ministra do Trabalho Myriam El Khomri. A partir de então, mobilizou uma série
de ocupações de espaços públicos, com o objetivo comum de lutar pela reinvenção da demo-
cracia em nível global, motivo pelo qual foi comparado aos movimentos ditos anti-austerida-
254 de em outros lugares do mundo, como o Occupy, nos Estados Unidos, ou o 15-M, na Espanha.
Com esse filme, queria continuar um trabalho de longo prazo sobre as
políticas migratórias europeias, com particular interesse, mas de modo não
exclusivo, pela questão dos “menores estrangeiros isolados”. Seus percursos,
vagando nas ruas da capital, Paris, ou na periferia próxima, em Aubervilliers,
permitem elaborar, ao mesmo tempo, uma espécie de exame de uma certa
condição da França e do mundo hoje em dia. Está surgindo uma espécie de
mapeamento espacial de figuras centrais, hiper-lugares atravessados por todo
tipo de população, de movimentos sociais, como, por exemplo, lugares à margem,
interstícios onde esses jovens tentam sobreviver. Assim, podemos ver ou ler
múltiplas formas de violência social e política, territórios discriminados, ou
mesmo segregados, onde se concentram desigualdades múltiplas em matéria
de emprego, de habitação, etc. – e isso durante anos, décadas. De fato, esse
mapeamento espacial é reforçada por uma cartografia temporal que permite
perceber certas formas do impensável, como o impensável colonial, permite ler
o jogo de repetições do “mesmo”, e a necessidade de engendrar a “diferença”.
Uma diferença, uma abertura ao imprevisível que pode ser lida nas dinâmicas,
nas pesquisas políticas experimentais que estão em curso em lugares hetero-
tópicos, do mesmo modo que se pode qualificar a Praça da República, durante
os acontecimentos da Nuit debout, como um eco dos processos Occupy que
atravessaram o mundo a partir de 2011.
Ao mesmo tempo, as múltiplas deambulações dos menores e, mais espe-
cificamente, de Mohamed, sobre as diferentes linhas de fissura, criam pontos
de convergência, permitem conectar problemáticas que certas forças políticas
prefeririam manter fechadas nelas mesmas. Mais precisamente, e isso é bastante
irônico, esses corpos designados como estrangeiros, que supostamente dificultam
e perturbam até mesmo os marcos da identidade nacional, vêm, pelo contrário,
recordar com eloquência quais são os pontos de conexão entre certas realidades,
os pontos comuns: as políticas em curso – políticas nacionais, internacionais,
com consequências devastadoras, sustentadas e legitimadas pelos efeitos do
medo e da estupefação, bem como pela ausência de qualquer tipo de atenção
e consideração pelas populações.

O jovem guineano que você acompanha é o único testemunho presente


no filme. Em qual sentido esse personagem ocupa um lugar particular ali?

A figura de Mohamed, os momentos de intimidade compartilhada, permitem


elaborar uma cartografia das profundezas, sondar as dimensões do espaço e do
tempo. Cotidianamente, enquanto ele está preso nas tarefas do dia e da noite
– sobreviver, evitar ao máximo a polícia, para não ser submetido a abordagens
255
desagradáveis, completar as formalidades administrativas, etc. – ele investiga
a cidade, interroga-a, questiona-a, sonda-a, descobre-a, persegue-a. Ele revela,
nela, belezas e monstruosidades, aspectos solares e polares, travessias e abismos.
Existe algo do arqueólogo-artífice foucaultiano em sua jornada, e evito fazer
uso do maldoso jogo de palavras. Sua travessia de Paris revela um estado de
urgência instaurado há mais de um ano, um quase estado de exceção permanente.
Um estado de exceção que não encontra paralelo desde a guerra da Algéria. O
mesmo regime anteriormente reservado às colônias é aplicado com cuidado
nas democracias ultraliberais. A experiência da “intimidade territorial”, como
diz Jean-François Chevrier, conecta a experiência do ambiente à dos limites,
incertos ou flexíveis, do corpo próprio, dos corpos próprios. Os corpos-párias de
menores imigrantes, o corpo ferido de Mohamed, indicam, ao mesmo tempo, a
necessidade de retrabalhar as questões e condições da vida comum, da abertura
ao outro, a exigência da igualdade verdadeira...

Qual relação você estabelece com a obra de Hemingway, que fornece o


título do filme?

Todos devem se recordar que o livro de Hemingway voltou a ser um best-seller


após a intervenção daquela velha senhora em um canal de notícias, no dia
seguinte aos atentados de janeiro de 2015. O título do livro foi tomado, então,
para batizar um dispositivo criado pela cidade de Paris, destinado a promover
as dimensões culturais e turísticas da capital. Antes da mudança, enfim, ele se
tornaria título de um filme de um cineasta cujas visões estéticas e políticas eu
não partilho necessariamente, sobre jovens que fomentam atentados na capital.
Uma vez que havia, na origem desse filme, uma proposta do programa de
vanguarda Hors Piste e de Géraldine Gomez, de realizar um filme sobre “A arte
da revolta”, achei interessante e divertida a ideia de pôr em prática uma espécie
de “desvio”, ou, antes, uma reversão dialética a partir desse título, dos usos
contemporâneos que fizeram dele. O filme se tornou um longa-metragem ao
qual dei um título diferente, embora tenha conservado a dimensão irônica. Com
efeito, o filme joga com outro tipo de embriaguez, que tem tudo a ver com o
que Frantz Fanon chamava de “festas do imaginário”. São festas realizadas com
poucos meios, baseadas, às vezes, somente nos recursos do corpo, e que operam
deslocamentos, jogos de oscilação entre planos majoritários e minoritários nas
nossas sociedades – festas que criam ou projetam novas formas de existência,
experimentações estéticas e políticas improváveis...

256
Com o subtítulo, você orienta a leitura do filme para uma fragmentação em
18 partes, e conecta esses fragmentos ao caracterizá-los como ondas. Onde
você localizaria suas significações, especialmente ao nível de montagem?

Essas 18 ondas são como 18 cenas que compõem e estruturam o filme. Gosto
de jogar com a polissemia da palavra. E, mais precisamente, com a imposição e
a confiscação do sentido que ela recebe em sua utilização, e com a estigmati-
zação de certas populações que daí decorre como consequência lógica: ondas
de atentados, ondas migratórias, etc. O uso que tento fazer da palavra remete,
pelo contrário, à jornada e ao testemunho de Mohamed, bem como às suas
múltiplas travessias: o mar, o deserto, Paris, etc. E remete, também, às travessias
de muitas pessoas, náufragos, encalhados nas ruas ou nas “margens” de Paris,
ou das grandes cidades: imigrantes, mas não apenas, populações deserdadas,
zonas de relegação, etc. Enfim, os movimentos das ondas, seus ritmos, suas
repetições, suas diferenças, atuam como metáfora para o que foi indicado acima,
a saber, mostrar como a abertura ao desconhecido quebra o ciclo infernal da
repetição e propicia a criação de novas formas estéticas e políticas.

Você parece conceder um lugar preponderante aos objetos da rua: vitrines,


estátuas, restos de manifestações, dejetos, às vezes, que representam um
ambiente mais hostil ou trivial. O que isso significa para você?

O filme opera em diferentes níveis de tempo e de espaço, na “telescopagem”


do passado com o presente. A historiografia que ele mobiliza não é a história
dos vencedores mas, pelo contrário, a dos pequenos sujeitos, dos que foram
relegados às vias de passagem da história oficial, do romance nacional. O filme
forma uma espécie de “constelação dialética”, como dizia Walter Benjamin,
uma “ópera fabulosa”, para citar Arthur Rimbaud, ou, ainda, uma “festa do
imaginário”, para citar Fanon outra vez, na qual as hierarquias tradicionalmente
estabelecidas entre os seres e as coisas deixam de valer, e a atenção se volta ao
conjunto de elementos presentes, sejam eles humanos, animais, vegetais, sejam
eles da esfera do trivial, do comum, do anódino, do farrapo... Esses elementos
são ativados, reativados, interconectados uns com os outros por meio de um jogo
de correspondências, de “telescopagens”, em suas formas, cores, sons, ritmos,
etc., a fim de propor uma “visão”, não totalizante, é claro, e sempre aberta, das
coisas, bem como um certo sentimento de embriaguez – entendida, aqui, como
uma nova relação com o cosmos.

257
Você filma a estátua da Praça da República de maneira singular: ela parece
ganhar vida, observar o que se passa diante dos seus olhos. Com algum risco,
é certo, você empresta seus sentimentos a ela?

A estátua, como todos sabem, é uma alegoria da República. Colocar essa estátua
imponente de bronze em relação com ações e acontecimentos que podem se
desenrolar na praça e na sociedade francesa permite revelar polaridades que
remetem ao contexto político contemporâneo, e também às relações de força
ali presentes: fixidez/mobilidade, permanência/impermanência, ação/reação,
etc. Como uma certa concepção da República, tradicionalmente entendida
como sistema político baseado na soberania do povo, pôde ser considerada por
milhares de manifestantes como abusiva, usurpada por representantes eleitos
e dúbios, que teriam traído suas promessas eleitorais, seus programas políticos.
Como a noção de povo é uma noção não fixada, cuja definição envolve valores
e concepções de mundo variadas, a possibilidade de práticas políticas que são
novas ou não: fundada, ontem, sobre a noção de sangue, e hoje sobre a de solo,
ela poderia se fundamentar na noção de passagem, abrindo-se à possibilidade
de um povo sempre por vir, um povo que vem, para parafrasear o belo texto de
Walter Benjamin, “Programa sobre a filosofia que vem”, uma comunidade sem
pertencimento. Para traduzir politicamente, isso significaria a implementação
de políticas baseadas na abertura, e não no fechamento em relação ao outro,
na possibilidade de integrar a noção de acolhimento como constituinte de uma
certa universalidade: acolhendo o outro, dando-lhe um espaço, um lugar, e o
outro, ao mesmo tempo, me acolhendo da mesma maneira, me deixando um
lugar para existir, para me desenvolver. Isso implicaria, também, uma exigência
de igualdade real entre os indivíduos – que não deve ser entendida como um
nivelamento por baixo, mas sim como um desenvolvimento dos recursos, poten-
cialidades e virtualidades de cada um, multiplicação das potências de ser e de
agir de cada um.

Entramos no filme com uma sensação de desorientação visual e sonora.


Trata-se de adentrar um caos?

A partir do momento em que um filme, seja ele qual for, exprime a sensibilidade
de seu autor, ele propõe uma experiência visual e sensorial singular, e convoca
tanto os afetos quanto as percepções. A ideia não é manipular o espectador,
desorientá-lo para conduzi-lo a algum lugar, como geralmente se pensa, ou
então distraí-lo com uma espécie de atração cinematográfica que o retiraria do
ordinário. Essa concepção, que pertence ao cinema de propaganda, hollywoo-
diano, não coincide com a minha. Um filme, para mim, é um conjunto de meios
258
e recursos sonoros, visuais, plásticos, com os quais um indivíduo-cineasta define
sua relação com o mundo, exprime um estado de mundo e seu estado no mundo,
suas ideias, suas sensações em determinado momento.

Diversas sequências do filme apresentam um aspecto onírico e experimental.


Que lugar elas ocupam nesse conjunto?

O filme emprega diversos regimes de imagem que problematizam as formas


e maneiras de figurar ou transfigurar o real. Deveria haver uma linha que se
assemelhasse à definição tradicional do documentário, da documentação do
real: a partir das entradas que utilizo – lugares, corpos, narrativas –, trata-se
de prestar atenção aos diferentes níveis de realidade, de observar, coletar,
reunir. Evidentemente, esses “documentos” podem ser “produzidos” de dife-
rentes modos, e assumir formas muito diferentes, a depender do tema filmado,
das condições de produção, das culturas, das intenções, das sensibilidades do
cineasta, etc. Aqui, no caso, podemos encontrar cenas, ou ondas, que dão a ver
a atualidade mais imediata, que talvez tenham levado à produção de imagens
televisuais, e que minhas imagens, em sua efetividade, vêm contrariar, contestar.
Penso, por exemplo, no mausoléu profanado pelas forças da polícia, embora em
novembro de 2015 as redes de notícia ou o governo alegassem, continuamente,
que aquilo tinha sido feitos pelos manifestantes.
Uma segunda linha se baseia no documento, ao mesmo tempo em que
começa a convocar o imaginário. É o caso das cenas com Mohamed que são
ancoradas tanto no real – o uso de testemunhos, os cantos, as ações físicas –
quanto na memória e no imaginário, no sentido de que determinados gestos
são reencenados, e alguns lugares visitados por Mohamed, quando ele vagava
por certos espaços e interstícios, são retomados.
Uma terceira linha de acontecimentos que atravessa o filme é a alegórica
e poética. Ela está profundamente ligada ao modo como o cineasta, eu mesmo,
no caso, pode reagir e experimentar face a certos acontecimentos, em deter-
minados momentos do contexto histórico e de seu percurso biográfico. É uma
linha mais ambígua, baseada no imaginário, no trabalho da memória ou do
sonho, e que cria uma espessura, mas também uma instabilidade do sentido.
Essas três linhas dialogam entre si, às vezes se contradizem, mas traba-
lham conjuntamente em uma espécie de pensamento crítico – e, logo,
poético – que vem manter distante e colocar em crise o cosmos organizado,
as imagens da ordem, o princípio de coesão orgânico, a comunidade como
corpo constituído.

259
A sequência na qual as mãos parecem operar uma coreografia é particu-
larmente marcante, e faz lembrar aquela das mãos dilaceradas em Qu’ils
reposent en révolte. Você diria que se trata de um lugar privilegiado do
corpo, no qual se manifesta uma luta?

O filme, como vocês bem viram, tenta mostrar alguns desses gestos, que fazem
parte da festa do imaginário da qual falávamos há pouco. Quer dizer, gestos
que podem tomar múltiplas formas, movidos por uma necessidades profunda, e
que, consumados no espaço, podem adquirir uma potência simbólica e subver-
siva extremamente forte. Em meio a esses gestos, aqueles proferidos pelos
corpos feridos e subjugados recebem um valor particular, ao mostrar as potên-
cias insuspeitadas do corpo, as diferentes possibilidades de transfiguração do
corpo. O movimento do corpo no espaço vem, ao mesmo tempo, simbolizar as
operações de dominação, de sujeição, de designação ao trabalho nas sociedades
contemporâneas, e assinalar operações de ruptura, de desajuste, de liberação.

O filme aborda temas de uma atualidade fervente, que ainda são vistos
com pouco distanciamento. Seria o caso, para você, de testemunhar essa
situação, ou enviar um alerta?

Me parece que a atualidade está sempre articulada com a inatualidade, e que


essa impressão de falta de recuo ou distanciamento em relação aos aconteci-
mentos é mais do que nunca induzida por essa espécie de “imanentismo do
presente”, de “presente imediato” fabricado pelas sociedades midiáticas que
operam com fluxos tensionados e pela persistência do mito do progresso e do
positivismo na sociedade, embora eles sejam, de fato, derrotados nas ciências
humanas. Em outras palavras, e já que não se trata, em absoluto, de ter uma
visão totalizante ou totalitária dos acontecimentos ou do mundo, é “possível”
se posicionar no sentido contrário, e reinscrever um certo número de aconte-
cimentos a longo prazo. Como? Talvez apoiando e promovendo uma historio-
grafia baseada em descontinuidades, rupturas, limiares, saltos temporais, uma
historiografia que poderíamos qualificar, grosso modo, como foucaultiana ou
benjaminiana. Quer dizer, uma atenção extrema conferida às ações do presente,
aos limiares, às falhas e fissuras, um trabalho de consciência do presente que se
abre aos chamados de conjunturas passadas, mostra a interpenetração dialética
de diferentes dimensões temporais, permite que presente e passado se iluminem
e se abram simultaneamente. Esse processo favorece o jogo dos encontros,
prioriza a imprevisibilidade, acolhe o impossível, celebra o desconhecido. Assim,
ele questiona radicalmente as distribuições hegemônicas, as representações
convencionais que uma sociedade pode transmitir a determinados grupos de
260
indivíduos, grupos sociais, grupos étnicos, incluindo aquele ou aqueles do qual
se “provém”, ao qual se “pertenceria”, e que passam despercebidos por nós se
um trabalho de emancipação não é feito.
A partir do momento em que nos comprometemos a descobrir e redefinir
as possibilidades de existência e as maneiras de ser, a interrogar as categorias de
identidade e de alteridade, só nos resta zelar pela marcha do mundo, não aceitar
“o mundo como ele é”, e utilizar os meios ao nosso alcance para considerar as
realidades contemporâneas e prestar atenção a elas. Não se trata, em nada, de
uma postura, mas da profunda necessidade de um indivíduo que tenta definir sua
conduta da maneira que lhe parece a mais justa possível. Por meio da imagem,
da palavra, do gesto, a humanidade está em continua criação, e novas formas
de vida ou existência podem ainda, e sempre, ser inventadas. O cinema, talvez
uma das expressões mais apropriadas da temporalidade imagética da memória
do passado e do presente, pode ser esse meio inesgotável com o qual um indi-
víduo-cineasta pode elaborar essas transfigurações, exprimir sua preocupação
com o homem, afirmar uma posição de testemunho ativo.

261
por Muitxs Outrxs*
tradução: Luís Felipe Flores

262 Moçambique e principais caminhos de ferro


De rios, minas e gente: Muitos são os lugares singulares no mundo. Primeiro
entreposto comercial suaíli, depois cidade colonial portuguesa, então polo de
desenvolvimento de Moçambique independente, Tete está implantada às
margens do Rio Zambeze na confluência com o rio Revubué, que a separa de
Moatize. Uma centena de quilômetros rio acima está a represa de Cahora Bassa.
Desde que foi construída pelo governo colonial português em plena guerra de
independência de Moçambique no final dos anos 1960, a represa alterou para
sempre o fluxo das águas do baixo Zambeze. Hoje 85% da energia produzida
pela represa é vendida para a África do Sul e o Zimbábue. O rio Zambeze corta
de leste a oeste a região central do país e divide Moçambique em dois: norte e
sul. Esta divisão retoma outras, históricas, políticas, econômicas, culturais.
Atravessá-lo foi e continua sendo um desafio. Ou muitos. Quatro pontes de
concreto armado e aço cruzam hoje o rio, duas em Caia, no centro do país, e
duas em Tete. A primeira e a maior é a Dona Ana e a mais recente é de Kassuende.
Dona Ana é uma ponte ferroviária com quase 4km de extensão que desde 1935
cruza o rio na altura de Caia. Kassuende é uma ponte rodoviária concluída em
Tete em 2014 em plena corrida do carvão. Esta ponte vem se somar à ponte
Samora Machel, primeira ponte rodoviária construída no país juntamente com
a represa de Cahora Bassa. Por sob as pontes de Tete correm águas que há
muito alimentam e banham populações tradicionais falantes de Cinyanja,
Cinyungwe e Cisena. Em quantidade sem precedentes estas águas têm sido
desviadas nesta última década para lavar carvão. // Carvão: Há oito décadas se
explora carvão mineral em Moatize de maneira intermitente. No período colonial
as minas eram subterrâneas, os proprietários, portugueses, e os mineiros, moçam-
bicanos. O escoamento era feito por comboio que, desde os anos 1940, seguia
para o porto de Beira pela linha do Sena. Resultantes de um dos processos de
colonização mais violentos de que se tem notícia, a luta armada de independência
nacional de Moçambique e a guerra dos 16 anos dilaceraram o país entre meados
da década de 1960 e o início da de 1990. Com a morte por arma, fome e doença
de centenas de milhares de pessoas, o deslocamento compulsório de outras
tantas e a infraestrutura arrasada, Moçambique se tornou um dos países mais
miseráveis do mundo. Com o fim da guerra dos 16 anos a elite política pós-in-
dependência se manteve, mas a cartilha da economia planificada foi substituída
pela da economia de mercado. O carvão de Moatize, cuja exploração havia sido
nacionalizada após a independência, e que na prática havia sido suspensa por
conta das guerras e da falta de recursos, entrou novamente no horizonte. Estudos
em torno de um novo ciclo de exploração do carvão foram iniciados nos anos
1990 e começaram a se materializar uma década depois. Uma corrida ao carvão
começou a mudar radicalmente a região nos últimos dez anos, desde que em
263
2007 começou ser construída a mina de Moatize I. Alguns dos principais prota-
gonistas desta corrida ao carvão são as grandes mineradoras mundiais, a começar
pela companhia Vale, do Brasil, à qual se somam a Jindal África e a Coal Ventures
Private Limited (ICVL), da Índia, entre outras menores de grupos da Austrália,
do Japão, da Coréia do Sul, da China, da África do Sul, dos Emirados Árabes e
de outros países. Grandes corporações mundiais. Investimento ativo de capital.
Capital intensivo, muita máquina hi-tech, relativamente pouca gente. Brutal
geoengenharia a maquinar impérios. Estima-se que os 240km2 de concessão
controlada pela Vale contenham reservas de quase dois bilhões de toneladas
de carvão bruto. A exploração começou com a construção da mina Moatize I e
investimentos da ordem de quase dois bilhões de dólares. Em 2012 é construída
a nova mina de Moatize II. Com a reforma do Porto de Nacala e a (re)construção
da linha do Norte, o investimento da mineradora brasileira é da ordem de meio
PIB moçambicano. Construtoras brasileiras e chinesas, sobretudo, operam as
obras de infraestrutura. Desde então, e em escalada vertiginosa, gigantescas
quantidades de carvão vêm sendo extraídas das minas a céu aberto da região,
com dispêndios não menos expressivos da água dos rios e das vidas dos que ali
vivem e viviam. Limpo pela água que ele suja, o carvão de Moatize alimenta
termoelétricas na Índia e siderúrgicas na China. A linha do Sena e o porto da
Beira viraram gargalos logísticos, além de alvos de ataques armados em virtude
do recrudescimento dos conflitos políticos no país. A Vale apostou noutra direção.
// Comboio carvão: O primeiro caminho de ferro de Moçambique foi aberto
no sul do país no final do século XIX para ligar o porto de Maputo, então Lourenço
Marques, às minas de ouro do Transvaal; o segundo foi a linha do Sena, ligando
o porto da Beira às minas de ouro e pedras preciosas da Zâmbia e do Zimbábue,
então Rodésias do Sul e do Norte; o terceiro, a partir dos anos 1950, foi a linha
do Norte, ligando o porto de Nacala a Cuamba, Lichinga e, por extensão, ao lago
Niassa e ao Malaui. Como em muitos outros lugares, a história dos caminhos de
ferro de Moçambique é inseparável da história dos portos e da exploração de
minerais preciosos, é inseparável da colonização das populações locais por
estrangeiros. Carvão não é ouro. Para que renda como se fosse é preciso explo-
rá-lo em escalas colossais. Ainda assim as minas que minam a terra são quase
invisíveis, pois só se deixam ver de muito longe. As que hoje se vê à beira da
estrada são miniaturas das gigantescas que se escondem atrás de cercas e de
inúmeros outros dispositivos de segurança. Em Moçambique se diz que o invisível
é poderoso e perigoso. Feitiço que come a terra e os outros para extrair quan-
tidades assombrosas do mais puro carvão mineral lavado com água limpa dos
rios. E para tanto carvão são necessários novos trilhos, novas pontes, novos
vagões e novas locomotivas que vêm de muito longe e movimentam portos,
264
bolsas e bolsos. Os interesses da Vale mais uma vez se cruzam, não sem tensões,
com os do governo e os dos empresários nacionais e, com a participação de
empreiteiras do Brasil e de muitos outros países, notadamente da China, a linha
do Norte que ligava Nacala a Lichinga e que estava em precárias condições de
funcionamento é refeita, sendo construído um novo trecho ligando as minas
de Moatize à rede ferroviária do Malaui e, desta, a Cuamba e à linha do Norte.
Assim se materializa o corredor logístico de Nacala. Organizações da sociedade
civil moçambicana reclamam de muitas coisas. A começar da falta de transpa-
rência, do sigilo, do segredo. O projeto de desenvolvimento Corredor de Nacala
lançado pelo governo moçambicano nos anos 1990 ganhara um poderoso e
inesperado aliado, o carvão. Almejando catapultar o desenvolvimento econômico
do norte do país, o projeto previa a recuperação da linha até Lichinga e a conexão
com a rede do Malaui, mas não estava nos planos atravessar o Vale do Rifty para
reentrar em Moçambique em direção a Tete, ao menos não nos planos da CDN
(Corredor de Desenvolvimento do Norte), empresa de capital misto concessio-
nária da linha do Norte desde 2001, quando a CFM (Caminhos de Ferro de
Moçambique) deixou de gerir diretamente a linha. Uma vez que uma das rami-
ficações principais do projeto de desenvolvimento, a do ProSAVANA, estava
encontrando muito mais resistência por parte dos movimentos sociais do que
se imaginava, o fluxo de recursos do carvão e o do próprio carvão tornaram o
desvio por Moatize um ponto de passagem obrigatório. Era preciso fazer a linha
do Norte chegar até lá. E assim foi feito. A partir de setembro de 2015 come-
çaram a circular regularmente nesses novos trilhos os novos e quilométricos
comboios de carvão mineral da Vale. Puxados por quatro locomotivas GE Dash
9W de 172 toneladas de peso, 23 metros de comprimento, 4.8 metros de altura
e 4.000 HP de potência cada uma, seguem duas centenas de vagões tipo gôndola
com 13 m de comprimento e 3,2 de altura e peso bruto de 19,7t cada vagão.
Desde então descem em direção a Nacala carregados de carvão mineral e
regressam vazios a Tete em busca de mais carvão mineral. No final de 2016 os
comboios passavam em direção a Nacala apinhados de carvão cerca de dez
vezes por dia. Estimava-se então que 8 milhões de toneladas já estavam passando
por ali por ano. Também se falava em dobrar este fluxo até este ano, o que foi
feito, e em chegar a 22 milhões de toneladas no ano que vem, tão logo as
condições logísticas e econômicas o permitissem. Um problema crônico é que
a linha é única, o sentido é duplo, são poucos os desvios e são muitos os comboios.
Para passar um, outros têm que acuar ou sair da frente. Para passar muitos,
muitos mais têm que parar ou desviar. // Comboio gente: Nampula é a cidade
política e economicamente mais importante do norte de Moçambique, capital
da província homônima. Principal entroncamento das rotas do norte, Nampula
265
recebe e distribui a maior parte do contingente de pessoas e coisas que circulam
pela região, que é também a mais populosa do país. Nó de rede. Ponto de
passagem obrigatória. A linha do Norte cruza o centro da cidade. A maioria
absoluta dos habitantes de Nampula fala Emakhuwa, embora haja também
falantes de português, de Ekoti e de outras línguas moçambicanas. Em Nampula
também se encontram muitos descendentes das levas históricas de indianos,
portugueses que ficaram ou que voltaram, africanos migrantes dos países vizi-
nhos, e paquistaneses e indianos e brasileiros e chineses e tantos outros que
de diferentes maneiras têm afluído nos últimos anos para esta região. Nó de
rede, é por Nampula e, desde meados do século passado, é de comboio que se
vai a Cuamba e a Lichinga, ao lago Niassa e ao Malaui. Como lembrou o cineasta
Licínio Azevedo, mesmo em tempos de guerra era preciso atravessar Nampula
para trocar o sal pelo açúcar. Afetos. Quatrocentos milhares de pessoas vivem
em Nampula. Outros milhares vivem a ela conectados. O comboio de passageiros
entre Nampula, Cuamba e Lichinga foi durante décadas o principal meio de
conexão. Levava a produção das machambas para Nampula e trazia produtos
industrializados. Levava pessoas, muitas pessoas. E trazia pessoas. Levava e
trazia de tudo que é localidade, Rapale, Mutivaze, Namina, Ribáuè, Iapala,
Matocorre, Saíte, Mucona, Riane, Namecuna, Malema, Mutuali e Lurio, entre
muitas outras. Lotava. E tinha de tudo no vagão. Trocava-se de tudo. Vendia-se
de tudo. Agora não tem mais, não se troca mais, não se vende mais. Ao menos
não do mesmo jeito. Está tudo mais ordenado. Todos têm que ficar sentados
para que o comboio ande. E ele só anda duas vezes por semana para ir. E duas
para voltar. Já andou muito menos, em tempos de guerra ou de carestia. Mas
também já andou mais, e agora anda menos para deixar mais trilho para os
outros comboios passarem. Nampula, que fora sede do quartel-general portu-
guês durante a guerra de independência, é onde hoje se encontra o centro de
controle da linha do Norte. É por lá que passam os comboios de carvão da Vale.
Por isso a redução das estações intermediárias ou dos apeadeiros. Que ainda
assim continuam apinhados de gente que interage intensamente. Essa gente
que depende do comboio de passageiros, que já não passa tanto quanto passava
e que já não para tanto como parava, é obrigada a transferir para os chapas,
que circulam pela recém inaugurada rodovia de asfalto que corre nas proximi-
dades do caminho de ferro, parte das demandas que antes resolviam com a
passagem dos comboios. Tudo isso a custos humanos e financeiros muito mais
elevados para as pessoas, ao menos para aquelas que já não circulam tanto
pelos comboios que diminuíram de circular. Custos irrisórios para aquelas pessoas
outras que põem para circular comboios de carvão limpos com água. Custos
irrisórios se o que se vê da janela recém-blindada por temor de atentados da
266
locomotiva do comboio de passageiros são as linhas desertificadas para o desim-
pedido progresso das mercadorias. // Deslocados: De fora daqui. Viente. D´outro
lugar. São muitos os que mudam. Uns vêm de longe, de muito longe, para
fazerem as máquinas e outras máquinas funcionarem. Outros são movidos pelas
máquinas vorazes que os que vêm de longe colocam para funcionar. Removidos,
reassentados, realojados, reinstalados, são muitos os neologismos para os deslo-
camentos forçados. Para fazer mina, caminho de ferro ou porto, é preciso tirar
de cima, da frente ou de baixo o que impede o carvão de circular, é preciso
retirar para fazer passar. São inúmeros os motivos alegados para os desloca-
mentos. São muitos os que se movem porque outros se movem ou para que
outros se movam. Mas mesmo com tantos movimentos é preciso parar, conter,
encerrar. Condomínios fechados. Containers modificados. Conjuntos habitacio-
nais. Remoções. O reassentamento de Cateme é o mais famoso. 776 famílias
foram mandadas para um terreno ruim a 36km de distância de Moatize em
2009. Elas viviam onde hoje é a mina da Vale. O solo onde viviam e de onde
tiravam o sustento foi reconceituado pelos mineradores. Na mina virou “estéril”
que precisa ser removido para se chegar ao valioso minério. Muitas outras
famílias foram removidas ao longo da linha. Foram parar em lugares distantes
daqueles onde viviam e onde enterraram seus mortos. Ou então foram os mortos
que foram removidos. Para o assombro dos que ficaram, centenas de campas
foram parar em outros lugares. Os vivos ganharam casas de cimento com teto
de zinco. Ou não ganharam nada e reclamam indenização. Reclamam das difi-
culdades de acesso aos novos locais e da qualidade da terra. Reclamam também
das casas de cimento, piores que as palhotas, que são frescas e que se pode
reparar sem ter que pagar mão de obra especializada para consertar, enquanto
as outras são quentes e racham frequentemente. Casas de containers em condo-
mínio de trabalhadores das empresas de mineração são outro forno, além de
minúsculas. Outros condomínios de trabalhadores têm outras casas. Maiores.
Melhores. Condomínios estratificados. Segregados. Morar neles é símbolo de
status para muitos. Mas muitos não querem, pois os controles são vários e a
privacidade, irrisória. // Ocupando trilhos: Trilhos cortam cidades que atravessam
trilhos. A pé, de bicicleta, de moto, de carro pelos trilhos se anda. Pois é preciso
atravessar esses trilhos que atravessam os caminhos de quem vai à escola, ao
posto de saúde, ao cemitério, ao mercado que fica do outro lado da linha e
aonde não é tão complicado chegar quando se tem apenas que cruzar os trilhos.
Sobretudo quando não há muros, decerto. E quando não são muitos, grandes
ou velozes os comboios que costumam passar por ali. Assim dá para fazer outras
coisas nos trilhos, apesar das campanhas que dizem o contrário. Pelos trilhos
também se brinca, se deita, se senta, se descansa. Nos trilhos se encontra gente,
267
gente se encontra nos trilhos. // Murando trilhos: Trilhos cortam cidades que
atravessam trilhos. A linha do Norte atravessa o centro de Nampula. E de muitas
outras cidades pelo caminho. Para os comboios passarem é preciso deixar os
trilhos desimpedidos. Há que se empurrar as construções e as pessoas para fora.
Seis metros para um lado, seis para o outro, assim locomotivas com quase cinco
metros de altura podem passar com mais desenvoltura. E os trilhos que eram
quintal das casas estão agora atrás dos muros colados às casas. A campanha
educativa pintada no muro mostra o que é verde e o que é vermelho, diz o que
é certo e o que é errado. Diz que o muro existe para a proteção das pessoas.
Que não é para urinar no muro. Que não é para quebrar o muro. Que não é para
saltar o muro. Que não é para danificar a cerca do muro. E que é para usar a
passarela. Se não o comboio pega. // Vazando muros: Trilhos cortam cidades
que atravessam trilhos. Usar as passarelas? Dar todas essas arriscadas voltas?
Por que não dar outras voltas ao muro? Fazer um buraco no muro. Alimentá-lo
até que cresça e vire uma passagem, um portal. Ou então fazer muitos buracos.
Transformar os muros em escadas enchendo-o de buracos-degraus. Empurrar
a cerca, retirá-la. Abrir passagem. Retomar os caminhos de há muito tempo.
Cortar o que corta para continuar fluindo o mesmo fluxo agora tornado outro
pela dupla existência do muro e dos buracos no muro. Contrariando a campanha
oficial, para quem carrega baldes de água atravessar o muro continua sendo
melhor do que encarar passarelas. // Domesticando passagens: Trilhos cortam
cidades que atravessam trilhos. Passarelas. Passadeiras. Pontes elevadas.
Provisórias e definitivas. Passagem percurso a que se obriga para que outros
passem por baixo sem ser molestados. Passarelas para proteção das pessoas e
das coisas. Para permitir que os fluxos fluam de forma canalizada, uns nos trilhos,
outros nas passarelas. Pois do contrário não convém. Ao menos não para os que
administram os trilhos, que preferem o caminho limpo, liberado. Nem que seja
fazendo o fluxo das pessoas dar incríveis voltas, para frente e para trás, para
cima e para baixo. Tudo flui melhor quando passa por seus devidos canos. Ou
fluiria, não fossem as passarelas tão vazias. Desertas. Só não são mais desertas
porque crianças brincam nelas. Ou porque viram trilhas para motos. De um
modo ou de outro ficam também conhecidas na vizinhança pela fama de lugar
perigoso, lugar de bandido. E ficam assim compondo a cena urbana ao lado de
muros furados e de muros pintados com campanhas educativas. Para que ninguém
possa errar o caminho. Sobretudo o do carvão, da mina ao porto. // Entradas
e saídas: Muitos são os lugares singulares no mundo. Baías de águas profundas
formam alguns deles. A baía de Bengo é a mais profunda de toda a costa oriental
da África. Fica em Nacala, pouco acima da Ilha de Moçambique, primeira capital
colonial que deu nome ao país. Nacala vem passando por uma série de
268
transformações. Como Tete e Nampula, cresceu acentuadamente na última
década, atraindo moçambicanos de outras partes, africanos de outros países e
gente de outros cantos do mundo. E mudou mais uma vez por causa da baía,
que dá bons portos, como há séculos o sabem os macuas e os suaílis, os árabes,
os indianos, os portugueses e tantos outros que passaram por este litoral.
Quando os portugueses se estabeleceram havia Nacala num canto do lado norte
da baía. Porto pesqueiro. Entreposto comercial. Até que em meados do século
passado fizeram o porto, o porto de cimento, o porto de Nacala. Fizeram do
lado sul da baía aonde não havia quase nada e aonde cresceu uma nova cidade.
A cidade de Nacala-Porto, que ficou maior do que aquela que a partir de então
passou a se chamar Nacala-a-Velha. Pelo porto de Nacala passam algodão,
gergelim, toras de madeira e containers com produtos industrializados, entre
outros produtos. Em geral os industrializados chegam, enquanto os produtos
da terra partem. Nos últimos anos passaram também pelo porto cargas impres-
sionantes de trilhos e vagões e locomotivas de aço e mil outras máquinas e
ferramentas novinhas em folha. Tudo para (re)construir a linha do Norte. E para
fazer o novo porto de Nacala. Logo em frente. Um novo porto em Nacala-a-Velha
com o que chega pelo velho, outrora novo, porto de Nacala-Porto. Para fazer
também o aeroporto internacional de Nacala. Aeroporto de primeira linha. Feito
para agilizar as entradas e as saídas. De gente e de mercadorias. Nacala-Porto
então cresce como nunca. Vem gente de toda parte para tocar as obras. Grandes
empreiteiras do Brasil e da China erguem boa parte das novas construções.
Inclusive o novo porto de Nacala-a-Velha, ou o porto da Vale, como é conhecido.
Porto especializado, é feito sob medida para carregar em tempo recorde gigan-
tescos navios com as absurdas quantidades de carvão mineral que agora chegam
em comboios incrivelmente extensos pelo hoje operante Corredor de Nacala.
Pela boca da baía de Bengo com suas águas cor de turquesa estreitadas por
praias de areia branca agora flui carvão negro extraído do ventre da terra afri-
cana às expensas de boa parte da gente negra que vive na região. Enterrados
nos porões dos navios tornados minas ambulantes de puro carvão, seguem
invisíveis, poderosos e perigosos, para arder em fornalhas alheias sob o efeito
do feitiço das mercadorias. Era uma vez o Antropoceno.

Autorias e ou(tros)trens
Muitxs Outrxs* é um coletivo de pessoas e outros entes que torna esta exposição possível. Cada
um de nós que agenciamos para efetuá-la assinamos, em regime de autoria distribuída, Nome
Próprio & Muitxs Outrxs*. Os xis dobrados de Muitxs Outrxs* são para marcar os muitos gêneros,
espécies e condições (i)materiais de existência desta exposição e de tudo o mais; os Nomes Próprios
respondem às obrigações de prestação de contas e de registro no Lattes. Realização: Laboratório
de Antropologia das Controvérsias Sociotécnicas (LACS) – UFMG / Parceria: Universidade do Lurio
(UniLurio), Moçambique / Pesquisa de Campo: Ana Esperança Jafete Gule, Ana Luisa Jorge Martins,
Daniel Alves de Jesus, Eduardo Viana Vargas, Helena Santos Assunção, Patrick Arley de Rezende, Raul
Lansky de Oliveira / Pesquisa de Laboratório: Ana Esperança Jafete Gule, Ana Luisa Jorge Martins, 269
Angelina Moura Parreiras e Silva, Cecília Reis Alves dos Santos, Daniel Alves de Jesus, Eduardo Viana
Vargas, Elisa Hipólito do Espírito Santo, Hannah Machado Cepik, Helena Santos Assunção, Iago Vinicius
Avelar Souza, Lucas Vinícios Emerick Rodrigues, Luciana Maciel Bizzotto, Maria Bonome Pederneiras
Barbosa, Patrick Arley de Rezende, Raul Lansky de Oliveira / Fotografias: Ana Esperança Jafete Gule,
Eduardo Viana Vargas, Helena Santos Assunção, Patrick Arley de Rezende, Raul Lansky de Oliveira /
Curadoria: Eduardo Viana Vargas / Projeto expositivo: Caio Brant Vargas e Eduardo Viana Vargas
/ Desenho esquemático do mapa: Cecília Reis Alves dos Santos / Colaboração: Aunício da Silva,
Aurélio Ginja, Domingos Jafete, Helder Xavier, Julio Paulino, Justino Cardoso, Karenina Andrade,
Letícia Cesarino, Miguel Arcanjo, Ruben Caixeta de Queiroz / Colaboração especial: Luis Jorge
Manuel António Ferrão / Apoios: CAPES, CEA–UFMG, PPGAN–UFMG, FORUMDOC.BH, Palácio das
Artes / Agradecimentos: Adriano Félix, Andréa Zhouri, Antônio Romano, Borges Jorge, Brisa Catão,
Bruno Albertini, Bruno Neves, Clélio Campolina Diniz, Emídio Gune, Énio Tembe, Fábio Bonfim, Fátima
Gunle, Flora Gonçalves, Francisco Noa, Guilherme Knauer, Iara Vali, Inocêncio Francisco, Jéssica Jossias,
José Ildefonso Dutra, Júnia Torres, Lêda Brant, Leo Nabuco, Levindo Pereira, Marcelo Dias, Lourenço
do Rosário, Lucília Jafete, Mahamudo Amurane, Mariana Santarelli, Omar Ribeiro Thomaz, Rogério
Brittes, Rogério do Pateo, Rosania Silva, Seana Davis, Stelio Marras, Vanessa Oliveira, Vanicléia Santos
/ Agradecimentos especiais: Abel Paulo, Abodul Arlindo, Abubacar Abodolamo, Adamo Cataro,
Adelia Faustino, Adelino Alberto, Adelino Gabriel Bernardo, Adriano André, Afonso Fernando, Afonso
Vasco da Cunha, Agostinho Alfredo, Alex Luís, Alfredo Francisco, Alibay Abacai Braimo Ussime, Allan
2, Alnício da Silva, Alves Missomal, Aly Momade, Amado Mussa, Amândio Manuel, Amelia Augosto,
Américo Antonio, Amido Momade, Ana Raimundo, Anabela Manuel Francisco Matola, Anabela Matola,
Andrade Vaykey, André Valério, Angela Lopes, Anifa Abacar, Anita Amoren, Anselmo Pinto, Armando
Jorge Leite Couto, Armando Sumaila, Arminda João, Asanine Celestino Celestino, Atumane Abdala,
Augosto Antonio, Azania Carlos, Bager Antônio, Basílio Joaquim, Beatriz Francisca Neto Bomba,
Benedito Gito, Benito Nordino, Bento Esfraimo, Borges Jorge, Borges Nhamire, Caetano Assado,
Carlos Alberto, Carlota Jorge, Carolina Alide Nsseu, Carriço Massinga, Castelo Mário, Celestina
Alberto, Celestino Amoren, César Miranda, Chale Ossufo, Daniel Francisco Chapo, Danilo Nahla, Delfim
Teotonio A. Saide, Desalio Joaquim Alberto Tovela, Dionezio Bernardo, Domingos Gunle, Edmilsom
Campos, Eduardo Margarido, Elias Rosário, Elisa Joaquim, Ema José Salimo, Ermelinda Afonso, Ernesto
Joaquim, Ernesto Lopes, Esmeralda Eduardo Carlos, Esmilarda Carlos, Esperança João, Ester Cotinho,
Eurico Rafael Muchanga, Euzebio Daniel, Fatima Ramadane Amoren, Felomena Manuel, Fernando
Amado Leite Couto, Fernando Niconde, Fez Francisco, Fidelga Lopes, Fidnécio Paulo Julio, Fina
Victor, Flex Joaquim, Francisco Fernando, Francisco Muito, Francisco Paulo, Genito Alberto, Graça
Samuel, Hermenegildo Iampita, Inocêncio Antônio Cardoso, Inocêncio Francisco Tomás, Isaura de
Rosema Saulino Rosário, Jacinto Alfredo João, Jaclene Zacaria, Jaime Auiba Jaime, Jaimito Joaquim,
Janete Bernardo, João Manuel Ferreira dos Santos Mosca, Jorge Domingos Lenson, Jorge Ferrão,
José Lourenço, Josefina Pés, Julio Paulino, Juma Esimila, Juma Momade, Justino Cardoso, Leonilde
Bazar, Licínio Azevedo, Liquilila Antõnio Daimo, Lourenço André, Lourenço do Rosário, Lucas Saíde
Riquela, Lúcia Ernesto, Luiza Ernesto, Lurdes Cumua Cumua, Mahamudo Amurane (in memoriam),
Manoel de Oliveira Mucussete, Manuel Armando Citora, Manuel Benete, Manuel Chale, Marcelino Vila,
Márcia Antônio, Márcia Issa, Margarida Inote, Maria Alice Mabota, Maria do Céu Salvador, Marinjane
Bachir, Mário José, Mercia Manuel, Miguel Arcanjo, Miguel Gastomo, Milenio Carlos, Mukussakame
(Elfanelino Carlos Haiaca – in memoriam), Naiscemento Hergolano Lodrequis, Nelson Faustino, Nercio
Luís, Noemia Augosto Helias, Orgines Jorge, Orlando Gil, Orlando Mona, Osvaldo Domingos, Paulo
Sérgio David Paunde, Pedro Carlos Bernardo, Pedro Oscar, Pedro Salvado, Piedade Charles, Queto
Mamoede, Quimildo Damião, Ragide Alberto, Ramadane Amoren, Rodrigo Baena Soares, Rose José
Malunga, Saide Arfaia, Saíde Tomas, Salvador Munambo, Samuel André Soares, Samuel Mondlane,
Sefinia Joaquim, Sifa Juma, Sonia Joaquim, Sorinha Juma, Tereza Daniel, Thomas Selemane, Valdo
Teotonio A. Saide, Valodia João, Vicente Adriano, Victória Bento, Xavier Machado, Zunoto Manuel,
e tantas outras pessoas que se deixaram fotografar em Moçambique para que dessa maneira elas
e Muitxs Outrxs* pudessem realizar esta exposição.

Pesquisa
Esta exposição faz parte de pesquisa realizada desde 2014 pelo Laboratório de Antropologia das
Controvérsias Sociotécnicas (LACS) da Universidade Federal de Minas Gerias (UFMG), Brasil, em parceria
com a Universidade do Lúrio (UniLurio), Moçambique. O objetivo da pesquisa é mapear as controvérsias
sociotécnicas envolvidas na implantação do Corredor de Nacala no norte de Moçambique. Desde o
início esta pesquisa conta com o apoio financeiro da CAPES no contexto do Programa Pro-Mobilidade
CAPES/AULP, projeto #48/2014. Esta pesquisa não recebe apoio financeiro de mineradoras ou de
270 empreiteiras. Até o momento dois estudantes moçambicanos e outros cinco estudantes brasileiros já
realizaram missões de mobilidade acadêmica no contexto deste projeto. Uma terceira moçambicana
conclui no Brasil dissertação sobre o tema com apoio do CNPq. As fotos foram tiradas em missões em
campo realizadas entre os meses de janeiro e maio e de novembro e dezembro de 2015, em junho,
novembro e dezembro de 2016 e em abril e setembro de 2017. Obtivemos autorização de uso de
imagem da maior parte das pessoas retratadas. Mesmo em casos em que obter autorização de cada
pessoa era praticamente impossível, como nas cenas de grandes concentrações de pessoas, tínhamos
as permissões institucionais para fazê-lo, e nos empenhamos para tornar público, negociar e obter
consentimento antecipadamente à realização das fotos. As fotos onde não aparecem pessoas foram
feitas, via de regra, em locais públicos.

271
Abdoul Aziz Cissé, 33 Kamikia Kisedjê, 25
Adenilson Mineirinho, 38 Kapwani Kiwanga, 34
Adilson Baniwa, 38 Larissa Ye’padiho Duarte Tukano, 38
Adirley Queirós, 29 Luisa Lanna, 29
Affonso Uchôa, 77 Luiza Calagian, 56
Ágnes Hranitzky, 36 Ma Li, 73
Albertina Carri, 70 Manon Ott, 35
Alberto Alvares, 30 Maria Milena Zuluaga Valencia, 33
Alice Riff, 54 Mariana Oliva, 15, 37
Aline Baiana, 55 Mathew Orzel, 41
Amanda Russi, 26 Mosha Michael, 32
Ana Vaz, 25 Nawa Siã, 59
André Lopes, 41 Neil Henderson, 40
Arthur Leite, 50 Nikolaus Geyrhalter, 31, 37
Beatriz Vieirah, 52 Pedro Aspahan, 81
BélaTarr, 36 Pedro Neves Marques, 27
Ben Russell, 34 Pedro Rocha, 51
Beth Formaggini, 78 Peter Hutton, 40
Boris Lehman, 72, 73 Philipp Hartmann, 80
Bruno Jorge, 15, 37 Pierre-François Sauter, 69
Caio Baú, 54 Raymonde Carasco, 39
Carlos Adriano, 53 Renata Terra, 15, 37
Caroline Parietti, 28 Riccardo Giacconi, 70
Charles Bicalho, 42 Robert Todd, 27
Clarisse Alvarenga, 77 Rodrigo Arajeju, 58
Claudiney Ferreira, 79 Rogério Corrêa, 79
Cyprien Ponson, 28 Sebastian Mez, 35
Dea Ferraz, 55 Sebastian Wiedemann, 72
Deb Todd Wheeler, 27 Siã Inubake, 59
Diego Tafarel, 57 Sylvain George, 80
Divino Tserewahu, 78 Sylvie Bayonne, 31
Edgar Corrêa kanaykõ, 15 Thiago Carvalhaes, 49
Eduardo Williams, 71 Tristan Bera, 25
Fabian Remy, 49 Tyna Apalai Wayana, 41
Fabiana Leite, 53 Umbando, 30
Fausto Campoli, 42 Valdelice Veron (Xamiri Nhupoty), 58
Fernando Weller, 52 Vincent Carelli, 42
Gabriela Albuquerque, 29 Wallace Nogueira, 25
Grégory Cohen, 35 Yudji Oliveira, 51
Hartmut Bitomsky, 39 Zacharias Kunuk, 32
Heidi Brandenburg Sierralta, 41 Zhao Liang, 28
Heinz Emigholz, 69
Ian Mauro, 32
Isabela Izidoro, 26
Isael Maxakali, 42
Isaka Mateus Huni Kuĩ, 58
Iulik Lomba de Farias, 56
J.P. Sniadeck, 71
James Benning, 36
João Dumans, 77
Jorge Prelorán, 81
Joshua Bonnetta, 71
Josias Pires, 57
272 Juliana Antunes, 50
2+2=22 [The Alphabet], 69 O Cavalleiro, Elyseu, 56
66 Kinos, 80 Oublis, Regrets et Repentirs, 73
A Film, Reclaimed, 25 Our Daily Bread, 37
A Gis, 49 Paris est une fête - un film en 18 vagues, 80
A Terceira Margem, 49 Pastor Cláudio, 78
A Torinói Ló (O Cavalo De Turim), 36 Patxohã - Língua De Guerreiros, 79
A Última Volta Do Xingu, 25 Piragui - A dona dos peixes, 56
Abissal, 50 Piripkura, 15, 37
Águas Sagradas, 26 Pobre Preto Puto, 57
Aprender a Viver com o Inimigo, 27 Qapirangajuq - Inuit Knowledge and Climate
Arábia, 77 Change, 32
Araucanos de Ruca Choroy, 81 Qiu (Internos), 73
Artificial Atmospheres, 27 Quilombo Rio dos Macacos, 57
ATL, 15 Roça da Sogra, 38
Baronesa, 50 Staub, 39
Behemoth, 28 Tekoha - Som da Terra, 58
Be'Jam Be - The Never Ending Song, 28 Territórios de Invenção, 81
Bento, 29 The Hunters (Asivaqtiin), 32
Calabria, 69 Three Studies In Geography, 40
Conselheiro Crispiniano, 51 Time And Tide, 40
Corpo Delito, 51 Txirin, o batismo do gavião, 58
Cuatreros, 70 Wai'a Rini, 78
Due, 70 Wapu - O Açai dos Wayana, 41
El Auge del humano, 71 Wehsé Darasé – Trabalho da Roça, 38
El Mar La Mar, 71 When Two Worlds Collide, 41
Em busca de Lélia, 52 Yaõkwa, Patrimônio Ameaçado, 42
Em Nome da América, 52 Yuxiã, 59
Era Uma Vez Brasília, 29
Erosões, 30
Felicidade, 26
Festejo Muito Pessoal, 53
Funérailles (De l’art de mourir), 72
Guardiões da Memória, 30
Hexagramme 27: YI-LA Nourriture, 31
Homem-peixe, 77
Homo Sapiens, 31
Jaidukamá - En La Tierra de Los Seres Rojos, 33
Konãgxeka: Dilúvio Maxakali, 42
Krenak, 79
La Breche, 33
La Fêlure Du Temps - Tarahumaras 2003
(A Fissura Do Tempo - Tarahumaras 2003), 39
Les Eaux (As Águas), 34
Let Us Persevere In What We Have Resolved
Before We Forget, 34
Lírios não nascem da lei, 53
Los (De)pendientes, 72
Luiza, 54
Metamorphosen, 35
Meu Corpo é Político, 54
Modo de Produção, 55
Naquele tempo todos eram gente, 55
Narmada, 35
Natural History, 36 273
bolsistas
Jéssica Dionísio
Marcos Martins
Luís Oliveira

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tradução consecutiva
Ana Siqueira
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documentário e etnográfico supervisão de registro
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Júnia Torres Glaura Cardoso Vale
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produção captação de recursos
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Luisa Lanna Layla Braz
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coordenação de tradução/logística
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Ana Carolina Antunes
programa de extensão forumdoc.ufmg Daniel Ribeiro
Cláudia Mesquita Frederico Sabino
Paulo Maia Gabriela Figueiredo
274 Ruben Caixeta Henrique Cosenza
forumdoc.bh.2017

Julia Fagioli cine 104


Laís Ferreira produção executiva/coordenação
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Luís Felipe Flores programação
Marina Gazire Juliana Antunes
Oswaldo Teixeira projecionistas
Roberto Romero Leonardo Luchino Fortinho
Victor Guimarães Yuri Borges

legendagem colaboraram com a mostra/seminário


Frames os fins neste mundo: imagens do antropoceno
Gabriela Albuquerque Ana Carvalho
André Di Franco
cabine de projeção Luís Felipe Flores
Bernard Machado Renata Marquez
Julio Cruz Wellington Cançado

assessoria de imprensa
agradecimentos
Equipe Filmes de Quintal
Diretoria da Fafich/UFMG Prof. Dr. Orestes
Diniz Neto (diretor) , Prof. Dr. Bruno Pinheiro
colaboração | equipe de cobertura
Wanderley Reis (vice diretor), NPGAU -
Ana Lívia Rodrigues/UFMG
Programa de Pós-graduação em Arquitetura
Ana Luisa Faria Matos/UNA
e Urbanismo da UFMG, Divisão de Audiovisual
Francisco Pereira
do Ministério de Relações Exteriores, Diogo
Izabela Silva/PUC Minas
Mendes de Almeida, Daniel Castanheira Pitta
Liendria Malcher/UFOPA
Costa, Daniela Maria Medioli, Marina Medioli,
Raquel Libório/UFMG
Alice Lamounier, Cristina Amaral, Bernard
Ricardo Viotti/UNA
Belisário, Daniel Queiroz, Juca Ferreira, Rafael
gerência de cinema cine humberto mauro Barros, Leonardo Lessa, Rosângela Pereira
gerente Tugny, Augustin Tugny, Bruna Franchetto,
Bruno Hilário Ana Vaz, Pedro Marques, Juliana Antunes,
coordenador Gustavo Ruas, Julia Bernstein, Edgar Correa
Vitor Miranda Kanayko, Luciana Oliveira, Ana Lúcia Mercês,
produção Marcos Mardem Júnior (Fundep), Ana Martins
Mariah Soares Marques, Bruno Vasconcelos, Milene MIgliano,
Matheus Pereira Ana Carvalho, Pedro Marra, Pedro Aspahan,
equipe técnica Luís Felipe Flores, Carolina Fenati, Fernanda
Mercídio Allvinho Scarpelli Torres, Guarda de Moçambique Treze de
Milton Célio Rodrigues Maio, Divino Tserewahú, Alberto Alvares,
Rufino Gomes Araújo Nego Bispo, Ailton Krenak, Alberto Pizango,
suporte administrativo Segundo Chota, Isael Maxakali, Sueli Maxakali,
Roseli Miranda Douglas Krenak, Genito Gomes, Adirley Queirós,
Eduardo Viveiros de Castro, Déborah Danowski,
Règis Hebraud, Déborah Lima, Cesar Guimarães,
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