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Juliana Fausto de Souza Coutinho

1959, um ano antes de descobrirem o rato, foram vítimas de um massa-


cre, que ficou conhecido como o massacre de Pacheco Fernandes Dantas;
depois de uma confusão no refeitório da empresa, um grupo de can-
dangos enxotou dali para fora a GEB – Guarda Especial de Brasília, que
Do Antropoceno como pobreza de mundo* havia sido chamada para contê-los. Durante a noite, a polícia retornou.
As versões oficiais falam em entre um e nove mortos, mas a memória sub-
terrânea daqueles que estavam lá narra uma história em que caminhões-
-caçamba ensanguentados transportaram corpos no meio da noite. Um
jornalista que conversou com os sobreviventes conta:

Nenhum dos operários falou em menos de 50 [mortos]. Houve


Juliana Fausto de Souza Coutinho quem estimasse em 120. Mas, para mim, o dado convincente
PUC-Rio foi o seguinte: apareceram cerca de 93 malas sem dono dentro
do acampamento, no dia seguinte. Esse número, 93, é extrema-
mente convincente.2
Em 1960, talvez um pouco antes ou um pouco depois da inaugu- Diz-se que Brasília foi erguida em cima do sangue dos candangos.
ração de Brasília, a cidade que deveria sintetizar a política desenvolvi- Os ratos que lhes são epônimos nunca mais foram vistos desde aquela
mentista de Juscelino Kubitschek, um grupo de candangos, os trabalha- primeira vez, nos canteiros de obra. Foram declarados extintos, a causa
dores da construção civil, imigrantes nordestinos que ainda levantavam sendo a perda de seu habitat: Brasília e o desenvolvimentismo não com-
a cidade, encontrou, ao terraplanar uma área, alguns ninhos de rato. portam nenhuma espécie de candango. E, se desenvolvimento é o nome
Esses ninhos ficavam debaixo da terra e seu habitante, um bichinho de do jogo que resultou no Antropoceno, então o massacre de populações
pelo alaranjado, com uma listra escura no dorso, focinho longo e cauda sub-humanas e não-humanas é sua moeda corrente. Dos operários as-
grossa, revelou-se, quando examinado pelo pesquisador João Moojen, sassinados não se encontraram os corpos; dos ratos, os oito espécimes
não apenas uma espécie desconhecida: tratava-se de um novo gênero da descritos em 1965 por Moojen encontram-se empalhados no Museu Na-
família de roedores Cricetidae. Moojen, que recebeu, examinou e des- cional/UFRJ. Os outros, que compunham todo um povo, jazem anôni-
creveu oito desses ratos, homenageou o presidente e seus descobridores mos com seus operários sob o solo de nossa capital. São seus fantasmas.
ao nomeá-los: Juscelinomys candango, o rato candango de Juscelino1. A
nomeclatura popular dispensou o político e o bicho ficou sendo só rato- ***
-candango, como os trabalhadores que o encontraram. Esses homens, Donna Haraway costuma dizer que a civilização baseada na
que à época da inauguração de Brasília contavam cerca de 40 mil, eram queima combustíveis fósseis é também aquela comprometida com a
submetidos a jornadas exaustivas de trabalho, racionamento de água, produção acelerada de novos fósseis. E, de fato, como o cientista do
alimentação de péssima qualidade e viviam em acampamentos precá- clima Will Steffen explicou:
rios providos pelas construtoras da cidade da integração nacional. Em
2
A entrevista completa com Jorge Frederico de Almeida Santos encontra-se em http://zona-
* Gostaria de agradecer a algumas pessoas cuja interlocução foi fundamental para a escrita sulnatal.blogspot.com.br/2004_04_01_archive.html Para uma discussão alongada e depoi-
deste texto: Marco Antonio Valentim, Alexandre Nodari, Flávia Cera, Déborah Danowski, mentos, cf. o extenso trabalho de Nair Heloisa Bicalho de Souza em livros como Construtores
Eduardo Viveiros de Castro, Roberto Romero e Cecilia Cavalieri. de Brasília (Editora Vozes, 1983) e Trabalhadores pobres e cidadania: a experiência da exclusão e da
1
Para a página, na IUCN Red List, sobre o Juscelinomys candango, consultar http://www. rebeldia na construção civil (EDUFU, 2007), além do filme documentário de Vladimir Carvalho
iucnredlist.org/details/10946/0 Conterrâneos velhos de guerra, de 1990.

Carvalho, M.; Danowski, D.; Salviano, J. O. S. Temas de Filosofia. Coleção XVI Encontro ANPOF: 44
ANPOF, p. 43-51, 2015.
Do Antropoceno como pobreza de mundo Juliana Fausto de Souza Coutinho

Curiosamente, a mudança climática não é o argumento mais for- sobre as folhas, esse ponto de vista não existe mais, você se dá
te [para a proposição de uma nova época geológica, o Antropoce- conta […] o mundo de repente encolheu [...]. É todo um aspecto
no]. O argumento mais forte é a biodiversidade. E por quê? Mui- da realidade que colapsou, uma concepção completa e articulada
tas das épocas da Terra são definidas por mudanças agudas no dos fenômenos que fará falta doravante à nossa filosofia (Ché-
registro fóssil (...) Estamos vendo isso agora. A taxa de extinção villard, 2007, p. 18).
está entre 100 e 1000 vezes maior que o nível de fundo. Devido a
nós, claro (Steffen, 13’18”, 2010). O mundo, em uma palavra, empobrece a cada extinção. É interes-
sante que Chévillard mencione a filosofia, que, em grande parte de sua
Muitos concordam hoje que estamos vivenciando a Sexta Grande história, pelo menos a majoritária, se esforçou para retirar dos animais
Extinção, também chamada de Extinção do Holoceno ou Extinção do qualquer ponto de vista, culminando na famosa teoria acerca de sua
Antropoceno. Queimando fósseis antigos, não paramos de criar novos pobreza de mundo. Seguindo Chévillard, podemos nos perguntar se o
fósseis. Do ponto de vista desses novos fósseis, dos que se extinguem mundo dos animais é pobre nele mesmo ou se é o mundo configurado
para se tornar, por exemplo, pedras, o Antropoceno, mais que uma épo- pelo anthropos que é cada vez mais pobre; este homem que fala e forma
ca geológica, é sistema de governo: regime de exceção. Subversivos pelo mundos empresta seu nome a uma época cujo próprio é a pobreza on-
desacordo entre seu modo de vida e aquele único aceito pelo poder que tológica. Heidegger escreveu que “o salto do animal vivente ao homem
se impõe sobre eles, inumeráveis espécies animais sucumbem diaria- falante é tão grande, ou até maior, que o da pedra sem vida ao ser vivo”
mente, caçados direta ou indiretamente – por exemplo, pela precariza- (Heidegger, 2004, p. 76). No Antropoceno, essa afirmação perde seu cará-
ção de seus habitats. São os desaparecidos do Antropoceno. Desapareci- ter supostamente descritivo e aparece como uma tarefa que o configura-
dos políticos, criminosos radicais na monocultura civilizacional. dor de mundos tomou para si: aproximar cada vez mais os animais das
Em um texto chamado “Carta ao artista”, dirigida a Alexis Rock- pedras, transformando-os em fósseis. A clareira do ser, isto é, o deserto.
man, a filósofa e psicóloga Vinciane Despret discute a questão da ex-
tinção a partir da falta que os desaparecidos fazem no mundo. Ela diz: ***
Entre extintos e extantes, o vocabulário mobilizado pelas ciências
A questão não é mais a tristeza ou o luto que experimentamos com é oriundo do mito ou da ficção: há as espécies lázaro, que, consideradas
cada perda, mas o que este mundo está perdendo. Pois, se a rea- extintas, reaparecem; as espécies elvis, que, mesmo extintas, não param
lidade mesma deste mundo é composta de pontos de vista múlti- de ser vistas (são espécies muito parecidas com as desaparecidas ou hí-
plos sobre ele, de diferentes maneiras de viver nele e de habitá-lo, bridas dessas); e as espécies mortas-vivas, que ainda contam com alguns
de todos os usos, invenções e percepções que o fazem existir e lhe indivíduos, mas são incapazes de se reproduzir, estando condenadas à
dão sua espessura e densidade ontológicas, então, com cada extin-
extinção próxima. Chama a atenção nessa nomenclatura a situação onto-
ção, uma parte da realidade se perde (Despret, 2013, s/p).
lógica ambígua desses animais, como se a possibilidade de seu desapa-
recimento os situasse em um limbo existencial, nem vivos nem mortos.
Ela cita o romance de Éric Chevillard, Sem o orangotango, quando
Falei em fantasmas para me referir aos extintos no começo desse texto, e
o escritor descreve a morte do último desse povo:
a essa altura o termo não parece fora de lugar. Poderíamos juntar ainda a
O ponto de vista do orangotango, que não significou pouca coisa esse grupo mítico as espécies que se extinguem sem que cheguemos a co-
na invenção do mundo e que segurava o ar no globo terráqueo, nhecê-las, espécies fabulosas, cuja história permanece matéria fantástica.
com suas frutas carnudas, seus cupins e seus elefantes, esse pon- Percebemos, assim, como a questão da extinção é moldada em
to de vista único ao qual se deve a percepção dos trinados de um certo imaginário segundo categorias da ficção científica. A antro-
tantos pássaros cantores e aquela das primeiras gotas de orvalho póloga Genese Sodikoff, a esse respeito, comentou que

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A adoção, por parte dos biólogos conservacionistas, da metáfora futuro? [...] 6. As circunstâncias socioeconômicas, as atitudes das
do zumbi (...) e a imensa popularidade dos temas apocalípticos e comunidades, os valores, as motivações, as expectativas e os be-
de zumbi nas TVs europeia e americana diz algo sobre a experi- nefícios e custos antecipados são prováveis de serem aceitos pelas
ência subjetiva da mudança planetária no Norte do globo e sobre comunidades humanas dentro e no entorno da área de soltura?
os modos como projetamos a forma das coisas que virão. ‘Este é [...] 7. Há algum risco de impacto negativo sobre as espécies, co-
nosso evento de extinção’, diz um personagem na série de zum- munidades ou sobre o ecossistema da área que vai recebê-las? [...]
bis The Walking Dead” (Sodikoff, 2013, p. 142). 9. Há um risco aceitável de um impacto nocivo para os humanos?
[...] 10. Será possível remover ou destruir indivíduos translocados
O possessivo nosso, na expressão “nosso evento de extinção”, e/ou sua prole da área de soltura ou de uma área mais ampla no
parece apontar para dois significados: trata-se da extinção deflagra- evento de impactos ecológicos e socioeconômicos inaceitáveis?
(Seddon, Moehrenschlaher e Ewen, 2014, p. 143-145).
da por nós e, ao mesmo tempo, da nossa extinção, da extinção da hu-
manidade – de fato, é a segunda acepção que predomina nesse ima-
Esses critérios, que se assemelham sobremaneira ao roteiro de
ginário. Nem na série citada nem nos filmes de George Romero, por
Jurassic park (1993, de Steven Spielberg) –, parecem mais impedir o
exemplo, os animais são levados em consideração. No mais das vezes
projeto que viabilizá-lo, desde o primeiro deles; pois, como endereçar
são imunes à epidemia zumbi; aliás, se cabe outro comentário sobre
as causas da extinção se são essas causas mesmas o sustentáculo de
esse gênero, é que ele se desdobra em um ambiente social radicalmente nosso modo de vida?
humano: em vez de caçarem ou plantarem, os personagens costumam É como se o Antropoceno enquanto época geológica e sistema de
comer comida enlatada. Fazem expedições às cidades desertificadas governo fosse terrivelmente eficaz em fazer entrar neste mundo aquele
para pilhar bens produzidos pela antiga sociedade de consumo; vivem da ficção científica. Senão, como explicar que nos parece menos incrí-
deles. Nessas obras, perde-se toda a referência ao mundo externo. vel satisfazer todos os critérios para a zumbificação dos extintos do que
Em O dia dos mortos (1985), de Romero, o mundo pós-apocalípti- habitar o mundo imaginado por Philip K. Dick em Do androids dream
co se concentra em uma base militar, e os humanos remanescentes são of electric sheep? No romance, a Guerra Mundial Terminus exterminou
governados por dois poderes: o exército, de um lado, e a ciência, de a tremenda maioria dos animais e possuir um, coisa raríssima, é um
outro. Os zumbis são sistematicamente capturados por soldados para sinal de distinção tal que se desenvolveu todo um mercado de réplicas
servirem de cobaias para cientistas; esses experimentos sangrentos e eletrônicas, compradas pelos mais pobres. Isto é, a categoria de ani-
repugnantes são mostrados em detalhe e espelham a relação entre ani- malidade, ainda que transfigurada por componentes eletrônicos, quer
mais não-humanos e alguns cientistas em laboratórios. Aí, os zumbis dizer, por minério, é mais uma vez convocada para que a humanidade
são animalizados. Com os extintos, a relação se inverte, e eles é podem possa se conceber como domínio autônomo. Esses animais-máquina,
vir a ser zumbificados. Trata-se dos projetos de desextinção que pre- uma atualização distópica do delírio de Descartes, infestam a Terra
tendem trazer de volta à vida espécies já desaparecidas. Neste momen- pós-catástrofe e reasseguram os sobreviventes de sua humanidade – a
to, um debate acalorado tem por intenção estabelecer os critérios para empatia que se sente por eles é prova de pertencimento à espécie homo
sua ressurreição. Alguns desses critérios seriam3: sapiens, e uma das maneiras pelas quais se distinguem os verdadeiros
dos andróides. As ovelhas de Dick responderiam aos cientistas e sua
1. As causas passadas e futuras da extinção podem ser identifi- fantasia de ressurreição que elas só podem retornar como máquinas,
cadas e endereçadas? [...] 4. Há uma área suficiente de habitat seus duplos tal como sonhados pela modernidade.
adequado e apropriadamente administrado disponível agora e no
***
3
Esses critérios, discutidos no artigo “Reintroducing resurrected species: selecting DeExtinc-
tion candidates”, são, conforme seus autores, uma tradução em forma de questões daqueles
No Sul, já que falei tanto do Norte, por jamais terem sido moder-
propostos pela International Union for the Conservation of Nature (IUCN). nos, há quem sonhe de outro modo. Refiro-me a gente que, obrigada a

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Do Antropoceno como pobreza de mundo Juliana Fausto de Souza Coutinho

habitar um mundo desertificado, sempre entreteve uma outra relação Essa viagem foi ocasião do rememoramento de muitas histórias,
com ele. Nas palavras de Rosângela de Tugny, os maxakali (ou tikmu’un, deixando evidente a intimidade dos tikmu’un com a terra que habitam
como se referem a si mesmos) são um povo que cultivou “milenarmen- – e terminou sem nenhum encontro com animais.
te uma paciente observação dos comportamentos dos incontáveis seres É claro que, para falar bem, eu precisaria problematizar os pró-
vivos e [construiu] com eles um modo de relacionamento oposto à so- prios conceitos de animal e de espécie para os tikmu’un, mas me fal-
lidão antropocêntrica dos cientistas europeus” (Tugny, 2011, s/p). Esses tam, aqui, o tempo e a competência. Também não quero dizer que
índios, que hoje são cerca de 1.600, habitam uma pequenina terra indíge- eles não experimentam em sua carne, com sua terra e seus animais, a
na, de cinco mil hectares do que um dia foi a exuberante Mata Atlântica, devastação. Pelo contrário, se há quem possa falar com propriedade
mas hoje é um território arrasado onde abunda o capim de pasto que, sobre a devastação e a extinção, são essas pessoas. Nas palavras de
ironicamente, se chama capim-colonião. Tugny, que trabalha com eles Damazinho Maxakali:
há mais de 10 anos, conta que, durante a pesquisa para a publicação de
um livro com seus cantos, diversas vezes precisou recorrer a especialis- Antigamente tinha muita floresta A floresta é muito forte, nos
tas em zoobotânica para saber a que espécies os maxakali se referiam, criou, os Maxakali, e também criou todos os animais. Antiga-
mente tinha alimento dentro da floresta para Maxakali comer.
tamanha a quantidade e variedade de seres que ali compareciam. Com Antigamente, e no nosso tempo, os espíritos moravam dentro
e nesses cantos-espíritos, os yãmîy, os maxakali atualizam a relação com da floresta. Agora não tem mais floresta, não tem mais alimentos
uma série de entes, como animais que muitos deles nunca chegaram a antigos e também não tem mais animais. Nós queremos a flores-
conhecer. Se a forma corporal dos animais desapareceu de suas terras, ta de volta para nossos espíritos morarem (Maxakali, 2012, s/p).
vítima do Antropoceno, na forma de espírito-canto eles continuam pre-
sentes, afetando e sendo afetados pelos maxakali. Roberto Romero, que A cosmologia tikmu’un comporta um ser que se assemelha, em
também trabalha com eles, me contou que alguns aspectos, aos zumbis de que falávamos. Trata-se do inmõxã, um
corpo morto que não se transforma em yãmîy, que não passa a fazer
[...] em campo, eu tinha a impressão por vezes de que os ani-
mais como que estivessem ‘por ali’. Assim, na pequena faixa de parte dos povos-espíritos. Rosângela de Tugny conta:
mata que resiste na aldeia ou nas fazendas ao seu redor, acom-
panhava meus amigos em expedições de caça e pesca, prepará- Saiu da cova. Sua pele amolecida pela umidade fechada da ter-
vamos armadilhas e eles costumavam brincar que alguma caça ra, ao contato do sol, tornou-se dura e impenetrável. Suas mãos
grande cairia […] Via de regra, contudo, voltávamos com um transformaram-se em facas com as quais corta as cabeças dos pa-
punhado de peixes miúdos, algum pequeno roedor e, quando rentes que deixou em vida. É um devorador que assusta os mais
se tratava de caça para ritual, acabavam perseguindo no pasto íntimos. Não canta, não dança, não vive em aldeias. Suas mãos
os bois do rebanho...4 cortantes não recebem e não trocam (Tugny, 2013, p. 60).
Rosângela de Tugny, certa vez, empreendeu com eles uma via-
Segundo os tikmu’un, os brancos nasceram dos inmõxã. Não di-
gem de quase um mês na tentativa de encontrar alguns dos animais
ferem, não trocam, não esperam, não conversam.
que fazem parte de seu repertório:
Sodikoff comentou que:
Fomos até cachoeiras, atravessamos cercas de fazendas para co-
letar jacas, descemos por boqueirões, visitamos antigos cemité- As criaturas sugadoras de vida que nos fascinam na tela e nas pá-
rios, fugimos de ameaças de fazendeiros quando colhíamos suas ginas dramatizam e invertem a relação entre humanos e não-hu-
bananas, pescamos em riachos que podiam frequentar livremen- manos. Do ponto de vista, digamos, de um carneiro-da-Barbária,
te outrora (Tugny, 2011, s/p).
de um trilho de Guam ou de um membro de qualquer das espé-
cies que foram extintas na natureza, os humanos são os monstros
4
Comunicação pessoal. E-mail de 15/08/2014. a serem temidos (Sodikoff, 2012, p. 2).

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O que o imaginário da epidemia zumbi cria é uma reversão da re-


lação da chamada civilização com outros povos, sub-humanos e não-hu-
manos. Estamos, nós, os humanos, histéricos diante da possibilidade do
fim do nosso mundo. Temos medo de que, como górgonas do desenvol-
vimento, acabemos nos olhando no espelho. Enquanto isso, para a ma-
nutenção do que pretendemos salvar, aniquilamos diariamente muitos
mundos e pontos de vista. De súbito, todos os fantasmas se levantam,
apontam para nós e as perspectivas embaralhadas encontram seu lugar.
Nos damos conta de que não temos o que temer. Somos nós os zumbis.

Referências

Chevillard, E. Sans l’orang-outan. Paris: Les Éditions de Minuit, 2007.


Despret, V. “A Letter to the Artist”, 2013. Disponível em http://www.publi-
cbooks.org/artmedia/alexis-rockman-drawings-from-life-of-pi-with-a-letter-
-to-the-artist
Heidegger, M. Hinos de Hölderlin. Trad. Lumir Nahodil. Lisboa: Instituto
Piaget, 2004.
Maxakali, D. “Mimãti’ yõg hãm ‘ãgtux xi kõnag yõg”, in MAXAKALI,
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xakali conta sobre a floresta. Belo Horizonte: FALE/UFMG: Literaterras, 2012.
Disponível em http://livrosdafloresta.com/LivroDaFloresta.pdf
Seddon, P.J., Moehrenschlaher, A e Ewen, J. “Reintroducing resurrected
species: selecting DeExtinction candidates”, in Trends in Ecology and Evolu-
tion, 2014 Mar 8;29(3). Epub 2014 Feb 8, p. 140-147.
Sodikoff, G.M. “Introduction. Accumulating Absence”, in The Anthropol-
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Bloomington: Indiana University Press, 2012, p. 1-17.
____. “The Time of Living Dead Species: Extinction Debt and Futurity in Mad-
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Paik and Merry Wiesner-Hanks. Bloomington: Indiana University Press, 2013,
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Steffen, W. “The Anthropocene”, TedxCanberra, 14/11/2010. Disponível
em http://tedxtalks.ted.com/video/TEDxCanberra-Will-Steffen-The-A
Tugny, R de. Trem do progresso. PISEAGRAMA. n. 01. Belo Horizonte, Janei-
ro 2011. Disponível em http://piseagrama.org/artigo/333/trem-do-progresso/
____. Um fio para o inmõxã: aproximações de uma estética maxakali. In Coló-
quio de Etnomusicologia da UNESPAR/FAP: Etnomusicologia, Universidade
e Políticas do Comum, I, 2013. Curitiba. Anais... Curitiba, 2013, p. 58-76.

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