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Narcisismo e Dispersão na

Interpretação de Trakl por Heidegger


em 1953

O pensamento de Martin Heidegger continua a ter uma influência massiva - e em constante


crescimento - sobre o desenvolvimento da 'filosofia' moderna; na formulação de suas
questões, na seleção de seus 'objetos' e nas construções de sua história. Ainda assim, por
si só isto poderia não ser suficiente para explicar por que seu ensaio de 1953 sobre o poeta
austríaco Georg Trakl deveria ser de interesse para nós. O ensaio de Heidegger talvez
represente Trakl para nós de uma maneira que seja esclarecedora ou informativa? Ele nos
diz algo sobre poesia, ou história, ou língua em geral? Ele, na verdade, tem sucesso em
fazer qualquer coisa que seja? Em seu texto seguramente vazio sobre a poesia de Trakl,
Herbert Lindenberger escreve:

Pareceria gratuito reclamar da birra da abordagem de Heidegger à Trakl, pois


Heidegger nem sequer finge usar os poetas sobre quem ele escreve para qualquer
propósito além da exposição de sua própria filosofia. Mas o estudo de Heidegger
sobre Trakl parece-me consideravelmente menos bem-sucedido do que seu estudo
de Hölderlin...1

Lindenberger não pergunta qual significado pode ser dado a 'sucesso' dentro de uma
história - como a história do ser de Heidegger - para a qual o sentido apropriado de
progresso sempre foi a expansão da devastação; uma história, isto é, que tem sido
perpetuamente desviada do pensar por uma tradição teo-técnica generalizada. A cultura
platônica-cristã tornou não apenas possível, mas também imperativo, pensar a poesia como
o produto de um poeta e, derivadamente, como algo a ser 'usado' por um filósofo para o
propósito de ilustrar conceitos representacionais. É esta tradição que nos dirige a pensar
sobre a utilidade e sobre a adequação representacional do ensaio de Heidegger. Tais
questões são sintomas de um analfabetismo profundo e positivamente constituído, cuja
hegemonia tem sido a tarefa intelectual da era (pós-)moderna questionar.
Quanto a Trakl - que falhou em organizar seus desejos de acordo com as leis de sua
civilização, falhou em manter um emprego, se tornou viciado em ópio, enredado em
alcoolismo, falhou em derrotar sua psicose e morreu de uma overdose de cocaína em uma
farmácia militar - o que poderíamos estar lhe fazendo, se disséssemos que foi 'bem-
sucedido' como poeta? Apropriando seu ardor delicado e fútil a uma sociedade que se
esqueceu de como desprezar a si mesma? Os traços de Trakl são as ruínas de uma falha
miserável e até mesmo horrível. Uma falha em se adaptar ou se conformar, em repreender
ou sublimar adequadamente, em produzir, resolver, confortar ou concluir. Esta falha não é
meramente um padrão, contudo, mas uma condição violentamente traumática.
1
H. Lindenberger, George Trakl (NY: Twayne, 1971), 141.
NÚMENOS COM PRESAS

A evolução de seu estilo, se ainda é possível escrever coerentemente sobre tal


coisa, é um ímpeto em direção à dissolução de todo critério de avaliação. É sobretudo isto
que ele aprende de seus encontros decisivos com Rimbaud e Hölderlin. A estética
tradicional que distinguiria um conteúdo traumático de uma apresentação formal
perfeitamente 'acabada' perde toda a pertinência, na medida em que Trakl empurra a língua
para as sombras. A última coisa que deveríamos querer é que Heidegger 'dominasse' estes
sinais traumatizados. Aprender com Trakl é escrever em cinzas.
Um longo ensaio de Heidegger apareceu na sexagésima primeira edição (1953) do
periódico literário alemão Merkur, o qual discutia a obra de Georg Trakl. Este misterioso
texto, de uma só vez intensamente pessoal e estranhamente desapegado, era intitulado
'Georg Trakl. Eine Erörterung seines Gedichtes' ('Georg Trakl. Uma situação de sua
poesia'). O mesmo ensaio, renomeado 'Die Sprache im Gedicht' ('A língua no poema') e
agora com o subtítulo 'Eine Erörterung von Georg Trakl Gedicht' ('Uma situação da poesia
de Georg Trakl') foi mais tarde publicada (em 1959) como a segunda divisão do livro
Unterwegs zur Sprache (A Caminho da Língua). O ensaio que o precede no livro, 'Die
Sprache' ('A Língua'), também se refere a Trakl, ou, mais precisamente, à leitura de um
único poema de Trakl, Ein Winterabend ('Uma Tarde de Inverno'). 'Die Sprache im Gedicht',
em comparação, cita ou situa não menos que quarenta e três dos poemas de Trakl no curso
de uma abrangente busca pela fonte de sua linguagem peculiar. Fora destes dois textos,
Heidegger faz apenas referências de relance à obra de Trakl e ao impacto que ela teve em
seu próprio pensamento.
O ensaio de 1953 consiste de três seções numeradas de tamanho irregular,
prefaciadas por uma curta introdução ou prólogo sem título. Estas partições básicas não
estão inter-relacionadas de acordo com nenhum princípio pedagógico convencional e não
desenrolam os estágios de um argumento em desenvolvimento. É, por exemplo, muito difícil
discriminar entre as três principais seções do ensaio em termos de teses ou temas, uma vez
que cada seção sucessiva recorda a discussão da última e a desloca sutilmente. Para
descrever esta complexa progressão talvez seja necessário tomar emprestada a 'metáfora'
a que o próprio Heidegger recorre, aquela de uma onda, que descreve o movimento se
enrolando em uma enigmática pulsão e repetição cíclica. Ainda assim, os picos e valas que
se alternam dentro do texto de Heidegger não seguem o traço regular de um oscilógrafo;
eles recortam um caminho irregular e confuso. Conforme se elevam, um 'tema' distinto
emerge, momentaneamente isolado de um turbilhão de correntes entrelaçadas. Devido à
intensidade da linguagem de Trakl e ao ímpeto historicamente investido dentro dela, cada
tema se despedaça em espuma ofuscante, quando varrido até seu ápice, e afunda
novamente em profundezas rodopiantes. Neste ensaio eu tentarei apenas explorar
extensões limitadas ao longo de uma única destas correntes entrelaçadas: perseguir
elementos de reflexão e dispersão na leitura de Heidegger do poema Geistliche
Dämmerung de Trakl.
As leituras de poesia de Heidegger são talvez mais distintivamente caracterizadas
pela recusa a se participar afirmativamente do discurso da estética europeia e do projeto
associado de rigorosamente agrupar categorias epistemológicas de sujeito-objeto. Ele
argumenta que, quando as categorias da estética são levadas ao domínio da linguística ou
de outras variedades do estudo da língua, elas tomam a forma de uma distinção entre uma
linguagem normal e uma metalinguagem. A noção mínima de metalinguagem é uma
terminologia técnica que é distintiva do texto crítico ou interpretativo. Esta terminologia traça
uma ancestralidade para si mesma que é divergente, em princípio, daquela dos textos aos
quais ela é 'aplicada'. O parentesco entre 'pensador' e 'poeta' é aniquilado. Em desacordo
NARCISISMO E DISPERSÃO

com essa sedimentação da metafísica, Heidegger persegue uma tendência ao extremo


apagamento da distinção terminológica. A linguagem da poesia não deve ser traduzida, mas
simplesmente orientada para dentro de um relacionamento consigo mesma. E esta
orientação não dever ser aquela do pensador enquanto sujeito, mas aquela de um
pensamento impessoal que não está mais disfarçado com o manto da filosofia. A filosofia
não mais seria a guardiã desta relação, uma vez que a época da filosofia é simultânea
àquela da metalinguagem. Ou, colocado de maneira diferente, a metalinguagem é
preeminentemente a linguagem da metafísica.
O ensaio final em Unterwegs zur Sprache, intitulado 'Der Weg zur Sprache', começa
citando uma frase do texto de 1798 de Novalis, Monolog: 'Precisamente o que é mais
peculiar sobre a linguagem, que ela apenas se preocupa consigo mesma, ninguém sabe'2.
É a partir deste pensamento - da linguagem explicando a si mesma em si mesma - que
Heidegger começa sua meditação sobre a poesia. O vocabulário para a meditação deve
decorrer da própria leitura. De fato, o pensamento deve ser cuidadosamente dissolvido em
poesia, mas apenas de maneira tal que a poesia seja fortalecida em seu pensamento.
Heidegger confia que a chave para o que é dito na reserva das línguas ocidentais, ao passo
que é em si reservado, ainda é capaz de ser descoberto. Ele sugere:

Assim lançada em sua própria liberdade, a língua pode se preocupar unicamente


consigo mesma. Isto soa como o discurso sobre um solipsismo egoísta. Mas a
língua não insiste em si mesma no sentido de um auto-espelhamento autocentrado
que tudo esquece. Enquanto dizer, a trama da língua é a demonstração apropriativa,
que desvia com precisão seu olhar de si mesma, a fim de libertar o que é
demonstrado dentro de seu aparecimento apropriado.3

A língua deve ser entendida de uma maneira que poderia ser mal interpretada como uma
teoria do narcisismo, uma vez que ela se relaciona consigo mesma e isto poderia ser
considerado como sendo análogo à autoestima de um sujeito extasiado por sua própria
reflexão. O discurso sobre a língua deve, portanto, afastar uma má interpretação que
ameaça apropriá-la, ou pelo menos desviá-la, para dentro de uma psicanálise do signo.
Neste momento crucial o círculo da língua parece sintomatizar um tipo de autoerotismo,
deslocando-se para dentro de uma figura geométrica de desejo. Ao insistir que sua
abordagem à língua não deve ser confundida com uma dissolução do sujeito em energética
inconsciente - e, no prólogo a 'Die Sprache im Gedicht', a referência à psicanálise é explícita
- Heidegger marca uma encruzilhada histórica crucial na interpretação da doutrina de
Nietzsche do círculo cósmico, o eterno retorno do mesmo. Heidegger busca rigorosamente
distinguir sua própria leitura do eterno retorno - como a última tentativa de conceber a
temporalidade dos seres, como recapitulação da história do ser, como círculo da língua e
mesmo como a 'onda glacial da eternidade' de Trakl - do que tem sido interpretado dentro
do programa de pesquisa freudiano como a 'pulsão de morte', como a economia do desejo
e como o retorno do inorgânico. O retorno, que talvez seja o pensamento crucial da
modernidade, agora tem que ser lido em outro lugar. A dissolução do humanismo é

2
Novalis, Dichtungen (Reinbek bei Hamburg: Rowohlt: 1963), 5; M. Heidegger, Unterwegs zur
Sprache (Pfullingen: Neske, 1982), 241; tr. P.D. Hertz, J. Stambaugh como On the Way to Language
(London: Harper & Row, 1982).
3
Heidegger, Unterwegs zur Sprache, 262.

3
NÚMENOS COM PRESAS

despojada até mesmo da terminologia que vela o colapso com a máscara de domínio
teórico. Ela tem que ser arriscada à poesia.
Geistliche Dämmerung4 é o único poema citado por Heidegger em sua totalidade no
ensaio, e isto é de uma considerável significância. Dissolver a unidade e a especificidade
dos poemas separados desempenha um papel vital no projeto de Heidegger de descobrir
um local [Ort] que se relacione ao corpus de Trakl indiferentemente e como um todo. Até o
ponto em que Geistliche Dämmerung é introduzido, Heidegger conserva o status deste local
como a única totalidade 'ontologicamente' significante ao estilhaçar, rearranjar e repetir
fragmentos dos poemas individuais. A integridade resiliente deste poema em particular no
texto de Heidegger poderia, portanto, indicar uma dificuldade especial, uma que obstrui o
processo de assimilação e resiste à hegemonia do local. Se é assim, é possível que uma
questão esteja em jogo na leitura deste poema que resiste à absorção em qualquer verdade
prontamente comunicável sobre a poesia de Trakl, uma questão que talvez permaneça, em
algum sentido, exterior a um 'diálogo pensante' com o poeta, mas uma que também retém
uma peculiar insistência. Conforme a leitura de Heidegger se desenrola, ela vem a traçar
um fechamento de comunicação precisamente desse tipo.
Não há qualquer ponto inequívoco em que a discussão de Geistliche Dämmerung
começa. Ele é abordado através de uma discussão das linhas finais de Sommersneige
('Solstício de Verão') em que os passos de um estranho soam através da noite prateada, e
uma besta azul é levada à memória de seu caminho, a melodia de seu ano de
espiritualização. A isto é conjugado o jacinto do crepúsculo do poema Unterwegs ('A
Caminho'). Heidegger introduz o poema a fim de abordar o que é nomeado em seu título,
sem qualquer pista de que a figura desconcertante da irmã irá assombrá-lo tanto aqui
quanto em sua citação posterior5, deslocando todas as outras preocupações. Ali se lê:

Stille begegnet am Saum des Waldes


Ein dunkles Wild;
Am Hügel endet leise der Abendwind,

Verstummt die Klage der Amsel,


Und die sanften Flöten des Herbstes
Schweigen im Rohr.

Auf schwarzer Wolke


Befährst du trunken von Mohn
Den nächtigen Weiher,

Den Sternenhimmel.
Immer tönt der Schwester mondene Stimme

4
O alemão Dämmerung é tão ambíguo quanto o inglês 'twilight' ['crepúsculo'] e pode significar a
meia-luz do amanhecer assim como aquela do entardecer. Como Baudelaire é quase certamente a
primeira grande influência poética de Trakl (O. Basil, Trakl [Reinbek bei Hamburg: Rowohlt, 1965],
42-9) é tentador ler o título Geistliche Dämmerung como uma tradução de L'Aube spirituelle
('Amanhecer espiritual'), o quadragésimo sétimo poema de Spleen et Idéale (C. Baudelaire, Œuvres
Completes [Paris: Gallimard, 1975], vol. 1, 46). Heidegger, contudo, está determinado a manter a
ambiguidade de Dämmerung em sua interpretação (Heidegger, Unterwegs zur Sprache, 42-3), e a
importância de Abend ('anoitecer') na poesia de Trakl empresta peso a esta 'decisão'.
5
Ibid., 67-81.
NARCISISMO E DISPERSÃO

Durch die geistliche Nacht.

(O silêncio encontra, na borda da floresta/ Uma besta sombria;/ Na colina, morre quieto o
vento da noite, // Cala-se o lamento do melro, / E as flautas gentis do outono / Silenciam-se
no tubo. // Em nuvens negras / Velejas tu, bêbado de papoulas, / A lagoa noturna, // O céu
estrelado. / Para sempre soa a voz lunar da irmã / Pela noite espiritual.) 6

A tradução de 'besta' para Wild é, claro, insatisfatória. Em alemão, a palavra Wild denota
um animal selvagem, em especial um que serve de caça e, às vezes, ela especifica tais
animais como cervos. Além disso, ela conota selvageria e selva, uma vez que o adjetivo
'wild'['selvagem'] existe em alemão assim como no inglês. Ainda mais, ela provavelmente
está etimologicamente relacionada à palavra similar Wald (floresta). Esta rede de
associações parece impossível de sequer se abordar em tradução. Tais dificuldades são
particularmente frustrantes na medida em que esta tradução tem que suportar quase todo o
peso da exploração da animalidade feita por Trakl e as ênfases adicionais da resposta de
Heidegger a ela.
Para Heidegger, a 'besta sombria' é claramente a 'besta azul' que negocia a
diferença entre animalidade e a abertura do horizonte do ser - der Mensch. A selvageria da
besta não é engolida pela floresta; em vez disso, ela dá à floresta uma margem. Mas esta
margem não é uma demarcação fixa e não está iluminada pela luz do dia. O animal
umbroso, trêmulo de incerteza no vento da noite, é homem:

A besta azul é um animal cuja animalidade presumivelmente repousa não em ser


animal, mas sim naquele olhar pensativo, pelo qual o poeta clama. Esta animalidade
está ainda distante e dificilmente é para ser registrada, de modo que a animalidade
do animal notada aqui oscila no indeterminado. Ela ainda não é trazida à sua trama
[Wesen]. Este animal, o que pensa, animal rationale, humanidade, de acordo com as
palavras de Nietzsche, ainda não está firmemente estabelecido [fest gestellt].7

Heidegger considera que a trama da distância que separa a humanidade das bestas da
selva repousa em um tipo de pensamento que é irredutível ao cálculo biológico adaptativo.
Tal pensamento está enraizado na temporalização da diferença ontológica e foi
tradicionalmente unificado - mesmo que apenas de maneira confusa - acerca do
pensamento de transcendência. O pensamento transcendental tem a característica peculiar
de se relacionar à temática do pensamento em si, uma tendência que foi sistematizada
dentro da filosofia epistemológica. Dentro da tradição ocidental, este tipo de cognição foi
designado 'reflexão'. O humano é aquele animal preso no jogo de sua reflexão. A linha de
abordagem que Heidegger segue, no que é para ser seu primeiro e único encontro decisivo
com o poema, começa com sua última estrofe:

O céu estrelado é retratado [dargestellt, encenado, colocado ali, o stellen é sempre


decisivo para Heidegger] na imagem poética da lagoa noturna. Assim nossa
representação habitual [vor-stellen] o pensa. Mas o céu da noite é, na verdade de

6
Ibid., 48; G. Trakl, Das dichterische Werk (München: Deutscher Taschenbuch Verlag, 1972), 66.
Para uma recente tradução em inglês da maioria dos poemas de Trakl aos quais se faz referência
neste ensaio, vide G. Trakl, Poems and Prose: A Bilingual Edition tr. A. Stillmark, (Illinois:
Northwestern University Press, 2005).
7
Heidegger, Unterwegs zur Sprache, 45.

5
NÚMENOS COM PRESAS

sua trama, esta lagoa. Defronte disto, o que de outra forma chamamos de noite
permanece apenas uma imagem, a saber, a desbotada e vazia imagem residual
[Nachbild, talvez também 'cópia'] de sua trama.8

A insistência de que o céu da noite é, na verdade, uma lagoa não é irredutível nem à
teimosia fenomenológica de Heidegger, nem a uma defesa da primordialidade da metáfora.
Está bem mais intimamente conectada à problemática da espacialidade no pensamento
pós-kantiano e, para além disso, com o pensamento grego sobre os céus como χαος. Estas
preocupações estão ligadas à busca de Heidegger por aquela reflexão que produz uma
imagem da transcendência humana e, portanto, marca uma separação firmemente
estabelecida entre o Dasein e a psicologia dos animais. Esta busca é talvez o aspecto da
obra de Heidegger que está mais próximo das preocupações da tradição ontoteológica, o
ponto em que seu pensamento é mais 'humano, demasiado humano'. Mas há, não
obstante, algo tanto crucial quanto 'tecnicamente' preciso em debate neste jogo de
espelhos. A passagem continua:

A lagoa e o espelho-lagoa frequentemente recorrem na poesia do poeta. A água, às


vezes azul, às vezes negra, mostra à humanidade seu próprio semblante, seu olhar
que retorna. Mas, na lagoa noturna do céu estrelado, aparece o azul crepuscular da
noite espiritual. Seu brilho é frio.9

O céu estrelado tem uma relação integral com a reflexão, mas uma que é de assustadora
complexidade. Heidegger primeiro se volta para a lagoa em si, ao lado da qual a
humanidade jaz, perdido em devaneios narcisistas. Aqui, a humanidade olha fixamente para
si mesma, embora não nos seja dito se, como Narciso, este olhar está inflamado de desejo.
Heidegger acha que o caráter compulsivo das imagens de Trakl são indicativos de
uma repressão, mas uma que não parece ser - pelo menos superficialmente -
primariamente sexual. Ele considera que a reflexividade dos espelhos de Trakl excedem
toda representação e objetividade [Vorhandenheit] ôntica. Na lagoa escurecida, o olhar não
retorna em uma forma familiar; ele revela, em vez disso, um azul abissal crepuscular, que
colore tanto o amanhecer quanto o anoitecer da noite espiritual. A imagem de nenhuma
coisa retorna. A reflexão é despedaçada contra o impessoal, contra o tom impassível de
uma abertura ou fenda pura nos seres. A humanidade é, assim, refletida como o padrão de
uma imagem (ôntica); como uma falta de fundamento ou Abgrund que é a condição
transcendental de qualquer ontologia possível. Os céus são um abismo: χαος. Conforme
seguimos a discussão de Heidegger sobre Geistliche Dämmerung mais além, esta
compreensão clássica do caos entra em uma negociação problemática com o sentido
contemporâneo da palavra enquanto desordem. É esta negociação que reabre o caminho
para as explorações mais cruciais de Trakl.
Conforme a leitura de Geistliche Dämmerung procede, a discussão de Heidegger
repentinamente muda de chave, sem indicar que haja qualquer unidade temática entre o
espelho e a misteriosa figura que agora é introduzida, a irmã:

A luz fria resulta do brilhar da mulher lunar [Möndin] (Selanna). Circulando sua
luminosidade, como o antigo verso grego diz, as estrelas desbotam e mesmo

8
Ibid., 48.
9
Ibid., 48.
NARCISISMO E DISPERSÃO

esfriam. Tudo se torna 'lunar'. O estranho [der Fremde, o masculino alemão] que
percorre a noite é chamado de 'o lunar'. A 'voz lunar' da irmã, que para sempre soa
através da noite espiritual, é então ouvida pelo irmão em seu barco quando ele tenta
seguir o estranho em uma jornada noturna através da lagoa, que ainda é 'negra' e
pouco iluminada pela qualidade áurea do estranho.10

A irmã é aliada à lua e, assim, à luminosidade da noite. Seu poder de tornar um mundo
visível predomina na época de escuridão caluniadora do mundo, iniciada pela fuga dos
deuses helênicos, cujo fim é anunciado pela qualidade áurea do estranho, que é a luz
vacilante de um novo amanhecer. É a irmã que guia o caminho do andarilho através das
metamorfoses niilistas, durante as quais as seguranças da ontoteologia perdem sua
autoridade e desaparecem em seu crepúsculo e antes do surgimento daquele novo
pensamento que se revela apenas em pistas quase imperceptíveis. A irmã é associada à
transição e à indeterminação de um tempo desenfiado. Mesmo os selos corrompidos que
estampavam a marca distintiva do escolasticismo e da apologética teológica estão
quebrados, e nenhum tipo novo tomou seu lugar. A voz assombrosa da irmã é ouvida
conforme o irmão se afasta do antigo gênero de metafísica teológica e em direção ao
gênero do estranho. Ainda assim, a voz da irmã não pode ser identificada com o tipo do
passado ou com aquele do futuro, ela não pode ser subsumida em um gênero.
A passagem não é tão facilmente reduzida sequer a esta familiaridade metafísico-
histórica tentativa, contudo, uma vez que Heidegger não apenas menciona a irmã, mas
também Selanna; os estranhos (der Fremde, der Fremdling - o gênero de das Fremde de
Unterwegs zur Sprache11 - agora estranhamente se metamorfoseou); e o irmão da irmã.
Qual é o significado deste elenco desconcertante? Que relação Selanna, a mulher lunar,
tem com a irmã que fala em tons lunares? Sobre Selanna, David Farrell Krell escreve:
'Heidegger relembra a maneira em que os antigos líricos gregos falam sobre a lua e as
estrelas; no contexto da abscisão, do duplo confluente, e Seléné que, como Sêmele, é a
mãe de Dionísio...'12. No mito clássico, Sêmele é induzida por Hera a exigir que seu amante
(Zeus) se revele para ela em sua presença completa, e, quando ele o faz, ela é morta por
seu brilho. Um evento que poderia sugerir alguma relação com a 'qualidade áurea do
estranho'. Mas até mesmo seguir este caminho aparentemente inequívoco rapidamente nos
leva a um tipo de aporia mitológica, uma vez que, como Robert Graves nota em The White
Goddess:

O Dionísio-Videira já não teve pai algum, também. Sua natividade parece ter sido
aquela de um Dionísio anterior, o deus-cogumelo; pois os gregos acreditavam que
cogumelos eram gerados por relâmpagos - não surgiam a partir de sementes como
todas as outras plantas. Quando os tiranos de Atenas, Corinto e Sicião legalizaram o
culto de Dionísio em suas cidades, eles limitaram as orgias, parece, substituindo
vinho por cogumelos; assim o mito do Dionísio-Cogumelo ficou associado ao
Dionísio-Videira, que agora figurava como um filho de Sêmele, a tebana, e Zeus,

10
Ibid., 48-9.
11
Ibid., 41.
12
D.F. Krell, Intimations of Mortality: Time, Truth and Finitude in Heidegger's Thinking of Being
(University Park, Penn.: Penn. State University Press, 1986), 171.

7
NÚMENOS COM PRESAS

senhor dos relâmpagos. Ainda mais, Sêmele era a irmã de Agave, que arrancou a
cabeça do filho dela, Penteu, em um frenesi dionisíaco.13

A atribuição de uma genealogia (patrilinear) a Dionísio é cúmplice de um projeto de


repressão. Pede-se que uma intoxicação que veio de lugar nenhum, de um raio de luz,
mostre uma certidão de nascimento. Vinho, que Platão irá mais tarde acomodar até mesmo
à dialética, substitui o fungo dos cultos dionisíacos (Amanita Muscaria). O sagrado
cogumelo dos cultos é considerado ser responsável por aqueles delírios socialmente
inassimilável que são uma ameaça para a πολις.
Mas qual é a relação entre este antigo policiamento da patologia social e a
interpretação de Trakl por Heidegger? Como pode ser construída uma ponte entre tal
história ôntico-empírica e a questão onto-transcendental relativa ao local da poesia? O
atravessamento de tal golfo tem sido dificultado pela medicalização da história do
desarranjo e por sua redução ao estudo histórico e psiquiátrico da loucura. Mas esta
investigação regional não é nada mais do que o exemplo contemporâneo daquele discurso
da πολις que primeiro instituiu uma genealogia de Dionísio. Tal construção falha
patentemente em marcar o caráter inerentemente delirante da história ocidental e, portanto,
da cientificidade em si. Isto não é apenas uma questão de a ontoteologia estar enraizada
em uma amnésia específica. Um delírio integrante da ordem gráfica ocidental implica, de
maneira mais radical, que qualquer história possível tem que surgir a partir do esquecimento
(ou repressão secundária) de uma arqui-amnésia constitutiva (a elipse integrante da
inscrição). Klossowski foi até mesmo levado a sugerir que a ciência ocidental é afásica,
porque é iniciada no padrão de um discurso fundador.14 Este padrão não meramente uma
patologia passivamente aceita, ele é uma fármaco-patologia inscrita, prescrita ou
ativamente administrada. A resposta do Ocidente à escrita de si mesmo tem sido aquela de
um envenenamento. É por isto que o fato de que Selanna substitui um delírio sem origem -
que é igualmente um delírio de origens - parece ressoar com o que Derrida intitula uma
agression pharmakographique.
No Geistliche Dämmerung de Trakl, o caminho do pharmakon, a viagem intoxicada
através da lagoa noturna, parece evadir o Geschlecht (o recurso geral da tipografia). Em
vez disso, ele cruza o céu estrelado, através do qual a voz lunar da irmã ressoa. Uma
problemática da lua é introduzida, exigindo algum gesto mínimo de interpretação. Talvez
falar do 'lunar' desta maneira seja simplesmente falar da forma em que as coisas aparecem
à noite.15 No poema In der Heimat, por exemplo, a irmã é vista adormecida, banhada pelo
luar:

Der Schwester Schlaf ist schwer. Der Nachtwind wühlt

13
R. Graves, The White Goddess: A Historical Grammar of Poetic Myth (London: Faber & Faber,
l96l), 159.
14
P. Klossowski, Nietzsche et le cercle vicieux (Paris: Mercure de France, 1978), 16; tr. D. W. Smith
como Nietzsche and the Vicious Circle (London: Continuum, 2005), xvii.
15
Trakl termina o poema Am Moor ('Na Charneca') com o verso Erscheinung der Nacht: Kröten
tauchen aus silbernen Wassern ('Aparência da Noite: sapos mergulham para fora de águas
prateadas') (Trakl, Das dichterische Werk, 54) sugerindo que há de fato uma questão de
luminosidade noturna na poesia de Trakl; um devir visível à noite, que é também uma aparência da
noite em si. A noite não é meramente uma condição formal ou cena para certas aparições, ela é
também o que é 'expresso' na luz prateada da lua e das estrelas. A noite em si encontra uma voz na
'voz lunar da irmã', que é também uma Silberstimme ('voz de prata'), uma palavra que é usada no
poema Hohenburg (Ibid., 51) e duas vezes no poema Sebastian im Traum (Ibid., 53).
NARCISISMO E DISPERSÃO

In ihrem Haar, das mondner Glanz umspült.

(O sono da irmã é pesado. O vento da noite se agita/ Em seu cabelo, banhando no brilho da
lua.)16

Essa aparente redução ou simplificação do problema apenas desloca nossas dificuldades,


contudo. A noite [Nacht] trakleana é, como vimos, o tempo de desarranjo [Umnachtung],
consoante, talvez, com a 'mania' que deriva, como 'moon' ['lua'] (e 'mind' ['mente']), da
estrada indo-europeia (*men(e)s). Que a lua está associada com mulher é indicado pelas
relações etimológicas entre 'moon' ['lua'], 'month' ['mês'] e 'menses' ['menstruação'], mas é
também a companheira de lunáticos e lobisomens; figuras com quem o leitor de Trakl
certamente está familiar.
É, apropriadamente, nos versos culminantes de Traum und Umnachtung que estas
imagens cruzam um limiar culminante:

Steinige Oede fand er am Abend, Geleite eines Toten in das dunkle Haus des
Vaters. Purpurne Wolke umwölkte sein Haupt, daß er schweigend über sein eigenes
Blut und Bildnis herfiel, ein mondenes Antlitz; steinern ins Leere hinsank, da in
zerbrochenen Spiegel, ein sterbender Jüngling, die Schwester erschien; die Nacht
das verfluchte Geschlecht verschlang.

(Ele encontrou uma desolação petrificada no anoitecer, a companhia de um falecido,


enquanto entrava na casa sombria do pai. Nuvens roxas cercavam sua cabeça, de modo que
ele caiu sobre seu próprio sangue e imagem, um semblante lunar; e desmaiou petrificado no
vazio quando, em um espelho estilhaçado, uma jovem morta apareceu, a irmã: a noite
envolveu o gênero amaldiçoado.)17

Com uma passagem de tamanha beleza e profundezas labirínticas, qualquer resposta tende
a, na pior das hipóteses, meramente irritar e, na melhor, a aumentar nossa perplexidade. Eu
tentarei apenas fazer uma pergunta simples. Há uma conexão a ser feita entre o
estilhaçamento do espelho e um movimento de imagens astronômicas; entre uma explosão
de desejo que excede toda introversão ou reflexão, por um lado, e um processo noturno ou
lunar, por outro? Se tal conexão fosse feita, ela certamente passaria por meio da irmã, que
é, ela mesma, um limiar entre a ordem reflexiva da casa do pai e a diferença ilimitativa do
céu da noite. É a 'lagoa noturna', com suas luminosidades sutilmente diferenciadas - uma
série de intensidades que desafiam a resolução dentro de qualquer dialética de presença e
ausência -, que inunda por sobre o espelho junto com a irmã; estilhaçando todo poder de
representação. No ponto de um certo delírio noturno (ou lunático), a relação da irmã com a
família é metamorfoseada. Ela não mais obedece a lei da fronteira, mediando a família
consigo mesma, sublimando seu narcisismo ou estabelecendo sua inserção na ordem de
significação, desaparecendo (deixando a casa do pai de acordo com os padrões de troca da
exogamia patrilinear e, assim, como um momento metabólico ou reprodutivo dentro de uma
estrutura de parentesco). Em vez disso, ela rompe a família, abrindo-a para uma alteridade
que não foi adequada com antecedência a nenhuma estrutura profunda ou sistema

16
Ibid., 35.
17
Ibid., 84.

9
NÚMENOS COM PRESAS

abrangente. Uma noite que fosse uma alteridade indeterminável como essa seria uma
diferenciação totalmente positiva do dia.18
Talvez o texto mais importante de todos de Trakl sobre este tema, além da
culminação de Traum und Umnachtung, seja um poema chamado Geburt ('Nascimento')19,
em que as imagens lunares funcionam, de maneira similar, como uma hemorragia da
interioridade familial. O poema gira em torno de um verso no final da terceira estrofe em que
uma incestuosidade sublimada funciona como um movimento asfixiante de interiorização
Seufzend erblickt sein Bild der gefallene Engel ('Suspirando, o anjo caído vislumbrou sua
imagem'). Poderia parecer como se o nascimento da irmã devesse ser absorvido em uma
retirada para dentro do coração claustrofóbico do Geschlecht. Mas, embora a quarta estrofe
comece com um despertar em um quarto mofado [dumpfer Stube], o que assim desperta é
'um pálido' [ein Bleiches]; 'lunar'. Os olhos da mãe (ou da parteira) [steinernen Greisin] são
descritos como 'duas luas', uma referência que nos leva de volta para fora na noite (cuja
'asa negra toca o templo do garoto') e de volta para uma imagem crucial da segunda
estrofe; aquela de uma lua decaída20:

Stille der Mutter; unter schwarzen Tannen


Oeffnen sich die schlafenden Hände,
Wenn verfallen der kalte Mond erscheint.

(Silêncio da mãe; sob negros pinheiros / Abrem-se as adormecidas mãos / Quando a lua fria
e arruinada aparece.)21

Seria possível interpretar esta ruína da lua como uma restauração dialética do interior, sua
ordem e suas seguranças, como se o que houvera desafiado o interior estivesse agora
desaparecendo em auto-aniquilação. Poderia, assim, ser afirmado: 'Este caminho noturno,
afastando-se de tudo em que sempre acreditamos, agora colapsou em caos. Não era óbvio
que iria dar terrivelmente errado? Você deveria ter ouvido seu padre/pais/professores/a
polícia'. Ainda assim, esta não é a única leitura aberta a nós.

18
A irmã também é associada à lua no final do poema em prosa Offenbarung und Untergang,
primeiro no verso hob sich auf mondenen Flügeln über die grünenden Wipfel, kristallene Klippen das
weiße Antlitz der Schwester ('levantados por asas lunares acima das copas verdejantes das árvores,
penhascos de cristal do semblante branco da irmã') que acaba o penúltimo parágrafo. O parágrafo
final começa Mit silbernen Sohlen stieg ich die dornigen Stufen hinab ('Com solas de prata, eu desci
os degraus espinhosos') e fala sobre ein mondenes Gebilde, das langsam aus meinem Schatten trat
('uma forma lunar, que lentamente saiu de minha sombra') (Ibid., 97). Ao sair da sombra de seu
irmão, a irmã escapa às determinações de imagem, reflexão ou cópia que poderiam ser retornadas
ao mesmo; para um narcisismo auto-mediado brincando com representações como sua própria (ou
apropriada) alteridade.
19
Ibid., 64.
20
A lua arruinada é também mencionada em Sebastian im Traum no verso Da in jenem März der
Mond verfiel. ('Ali, naquela marcha, a lua estava arruinada.') (Arruinar, do latim ruere 'ruir', não pode
ser usado de modo intransitivo para capturar a utilização precisa de verfallen neste caso.) (Ibid., 53).
A ruína da lua é aqui considerar como um evento datável, enfatizando seu emaranhamento
referencial nos processos de gênero. A mobilização de Trakl da metáfora astronômica não é um
recuo da história para dentro de um simbolismo atemporal ou arquetípico, é, pelo contrário, uma
historicização dos céus; a abertura de uma genealogia através da conjugação com forças
astronômicas. Para os comentários mais explícitos de Heidegger sobre Trakl e história; vide Die
Sprache im Gedicht em particular (Heidegger, Unterwegs zur Sprache, 80).
21
Trakl, Das dichterische Werk, 64.
NARCISISMO E DISPERSÃO

A ruína da lua poderia parecer bloquear o movimento noturno que passa de um


interior claustrofóbico para o espaço infinito e que conjuga a dinastia com uma alteridade
ilimitada. Mas este não seria o caso se a lua em si fosse, pelo menos parcialmente, um
elemento restritivo atravessando o caminho da partida, em vez de ser o único portal para os
céus. A ruína da lua seria, então, uma protração da trajetória noturna; uma dissolução do
lunar que procede não como uma negação da noite, mas como um desaparecimento do que
ainda é demasiado similar ao sol. Esta segunda possibilidade é suportada pelos termos da
leitura de Heidegger. Ele é bastante preciso, em sua interpretação da jornada delirante
através da lagoa noturna, sobre o que ele considera que seja o significado da lua: uma
constrição da luminescência estelar, em vez da eliminação absoluta da luz solar; um
desbotamento e resfriamento das estrelas:

A luz fria resulta do brilhar da mulher lunar [Möndin] (Selanna). Circulando sua
luminosidade, como o antigo verso grego diz, as estrelas desbotam e mesmo
esfriam.22

Esta interpretação poderia parecer carecer de todo rigor filosófico e talvez mesmo
abandonar qualquer possível referência 'teórica'. Na verdade, ela contribui para uma
problemática de enorme importância, embora uma que tenha sido fragmentada e
grandemente obliterada pela constituição da astronomia e da astrofísica enquanto ciências
positivas nos tempos modernos. Este problema é aquele das diferenças reais (e
astronomicamente evidentes) que são, em princípio, irredutíveis ao formalismo matemático
e que são, além disso - como Deleuze demonstrou nas seções finais de Difference et
Répétition23 -, uma base potencial para uma abordagem bastante diferente e mais
abrangente à matematização (ou quantificação teórica), sem qualquer recurso à identidade
absoluta ou igualdades. O obscurecimento de tais diferenças, dentro da constituição da
astro-ciência, tem sido um adiamento e não uma resolução do problema de diferenças
radicalmente informais, deixando este assunto como uma ameaça explosiva para as
fundações da cosmologia moderna. Talvez o último tratamento confiante, unitário e explícito
da questão se encontre na 'Enciclopédia' de Hegel, no Zusatz à transição da Mecânica
Finita para a Mecânica Absoluta:

Pode-se admirar as estrelas por causa de sua tranquilidade: mas elas não são de
igual dignidade para o indivíduo concreto. O enchimento do espaço irrompe
[ausschlägt] em infinitos tipos de matéria; mas esta [isto é, a moldagem das estrelas]
é apenas a primeira erupção [Ausschlagen] que pode deliciar o olho. Esta erupção
de luz [Licht-Ausschlag] não é mais digna de admiração do que aquela de uma
erupção cutânea no homem ou do que um enxame de moscas.24

A filosofia deve voltar seu olhar para longe das estrelas, aprendendo com Tales talvez, que
caiu em um buraco enquanto estava absorto em contemplação astronômica. Em um sutil,
mas vigoroso neo-ptolemaismo, Hegel subordina o momento estelar ao concreto e aos
corpos ordenados do sistema solar, e estes corpos são, por sua vez, subordinados ao
22
Heidegger, Unterwegs zur Sprache, 48-9
23
G. Deleuze, Difference et Répétition (Paris: Press Universitaire de Paris, 1968); tr. P. Patton como
Difference and Repetition (NY: Columbia University Press, 1994), 262-304.
24
G.W.F. Hegel, System der Philosophie Zweiter Teil. Die Naturphilosophie, dos Sämtliche Werke,
Volume 9 (Stuttgart, Fr.: Frommanns Verlage, 1929), 118.

11
NÚMENOS COM PRESAS

desenvolvimento da vida terrestre. Isto se deve à dignidade dialética da realidade


particularizada, em comparação com o princípio abstrato, de modo que as leis astrofísicas
são assimiladas em suas exposições sucessivamente mais concretas na geologia, na
biologia, na antropologia e na história cultural. Ainda assim, há algo mais primordial e
incontrolavelmente perturbador na vasta e sem sentido dispersão das estrelas, algo que é
mesmo medonho, como uma doença da pele.
O que ofende Hegel a respeito das estrelas é a facticidade irracional de sua
distribuição; uma dispersão que não obedece a qualquer lei discernível. Ele expressa seu
desdém por esta distribuição e sua ansiedade ante a ela em uma palavra que é tanto uma
poderosa descrição quanto um reconhecimento: Ausschlag, que pode significar balanço ou
deflexão, mas, neste contexto, significa 'erupção', no sentido de uma erupção cutânea. O
verbo ausschlagen é ainda mais multifacetado e pode significar (entre outras possibilidades)
nocautear ou derrotar, renunciar, brotar ou florescer ou suar. Mas Hegel não está falando do
florescimento das estrelas aqui ou, pelo menos, ele não quer o fazer. Devemos ser
cuidadosos para não perder de vista o 'objeto' que Hegel está isolando aqui: é uma
diferenciação que é, de uma só vez, sem sentido e sensata, uma erupção de irracionalidade
no reduto da razão, similar àquela que Kant reconhece no Schematismuslehre. É o princípio
diferencial de estrelas, moscas, bandos de pássaros e poeira; de erupções astronômicas,
geológicas, ornitológicas25 e epidérmicas. Trakl lhe dá o nome, com hábil precisão, de Staub
der Sterne ('poeira das estrelas'). Em sua leitura de Trakl, Heidegger também reconhece
esta unidade de aus e Schlag como uma ruptura 'de' senciência, mas apenas se o 'de' for
lido de acordo coma sintaxe subversiva do pensamento heideggeriano; como um 'de' que
não mais presume um antecedente e um sujeito ininterrupto. Para Heidegger, a senciência
não é explodida ou ameaçada a partir do exterior pelo Ausschlag, ela está sempre já sob a
influência da erupção que será derivadamente apreendida como sua subversão:

Trakl vê 'senciência' [Geist] em termos daquela trama [Wesen] que é denominada na


significação primordial da palavra Geist; uma vez que gheis significa: irritado,
deslocado, estar fora de si [aufgebracht, entsetzt, außer sich sein].26

A senciência hegeliana poderia ser descrita como entsetzt pela erupção cosmológica, mas o
sentido deste ultraje muda com a abordagem radicalizada de Heidegger, na qual Entsetzheit
não pode ser pensado como uma resposta delimitadora para a exploração anárquica de
detritos cósmicos, mas apenas como sua protração inercial. Heidegger, assim, nos fornece
uma chave hermenêutica de acordo com a qual toda reação senciente ao Ausschlag pode
ser lida como um sintoma ou repetição da 'própria' erupção. Não é mais sequer que a
senciência é infectada pela irracionalidade; é, antes, que a senciência foi dissolvida dentro

25
A associação entre voo de pássaros e a emergência de signos é uma das linhas mais ricas da
poesia de Trakl. Em In einem verlassenen Zimmer ('Em um Quarto Abandonado') ocorre o verso
Schwalben irre Zeichen ziehn ('Andorinhas traçam signos dementes') (Trakl, Das dichterische Werk,
16); a estrofe final de Traum des Bösen ('Sonho do Mal') começa Des Vogelflugs wirre Zeichen lesen
/ Aussätzigen ('Leprosos leem os signos confusos do voo dos pássaros') (Ibid., 19); a segunda
estrofe de An den Knaben Elis ('À Jovem Elis') termina com as palavras dunkle Deutung des
Vogelflugs ('a sombria significância do voo dos pássaros') (Ibid., 17, 49) e Der Herbst des Einsamen
contém o verso Der Vogelflug tönt von alten Sagen ('O voo dos pássaros ressoa com antigas sagas')
(Ibid., 62). Onde que quer haja dispersão errática e movimento em espaço não demarcado, Trakl
antecipa o surgimento do sentido e uma questão de leitura.
26
Heidegger, Unterwegs zur Sprache, 60.
NARCISISMO E DISPERSÃO

do próprio movimento de infecção, se tornando um elemento virulento de matéria


contagiosa.
Uma vez que a luz das estrelas não é um fundamento transcendental da
fenomenalidade, mas sim um efeito diferencial derivado do isolamento ou da distribuição
irregular de intensidades, Hegel considera sua reivindicação de dignidade filosófica como
uma ofensa. Ele determina a luz das estrelas como uma luminescência patológica, sem
ordem ou inteligibilidade. O desbotamento das estrelas é, portanto, entre outras coisas, um
nome para um estágio necessário no sistema de Hegel. A distribuição sem sentido do
material estelar é repreendida no interesse do corpo (sub-)planetário particularizado, o que,
por sua vez, promove o geocentrismo e a infinitização da luz. Este movimento esmaga a
diferença sob uma noção logicizada de significância. Em contraste, Trakl congrega o
pensamento sobre signo com aquela sobre a dispersão estelar, escrevendo: O, ihr Zeichen
und Sterne ('Ó, vocês signos e estrelas')27. E - ecoando, parcialmente, as palavras de
Rimbaud - Un chant mystérieux tombe des astres d'or ('um canto misterioso cai das estrelas
de ouro') - ele menciona die Silberstimmen der Sterne ('a voz prateada das estrelas')28 e
Das letzte Gold verfallener Sterne ('O último ouro das estrelas arruinadas')29. A palavra
alemã Stern deriva da raiz indo-europeia *ster-, que significa estender ou se espalhar. É
desta raiz que a palavra inglesa 'strew'['espalhar'] - assim como 'star'['estrela'] - descende. A
estrelas são traços de um espalhamento primordial; uma dispersão explosiva que, em sua
falta de forma, desafia a matematização ou a redução à ordem. É a onda de choque dessas
metáforas que assolam as especificações de Trakl sobre o signo, e talvez seja por esta
razão que Trakl escreve sobre ruína [Verfallen] neste contexto. Qualquer ordem que deva
ser extraída do espalhamento da diferença será dependente desta 'difusão' (latim sternere),
não será metafísica - dependente de uma diferença transcendental - mas 'estratofísica'; um
movimento entre planos, ou graus, de dispersão. Onde a metafísica sempre fixou a
desordem em uma relação dicotômica com um princípio absoluto de forma coerente ou
licitude absoluta, uma estratofísica localizaria a ordem regional dentro de uma diferenciação
na taxa de dissipação. Ela constitui, desta forma, um relativismo abissal, embora não um
que esteja enraizado em perspectivas subjetivas, mas sim nas estratificações abertas de
forças físicas impessoais e inconscientes. A astrofísica é marcada por sua etimologia como
estratofísica - um estudo materialista de planos de intensidades distribuídas - e, portanto,
pode ser vista abandonar suas potencialidades mais extremas quando se subordina à física
matemática.
A questão de estratos pode se insinuar para dentro de cada palavra do texto de
Trakl, porque ela está no 'cerne' de qualquer grafemática rigorosa. Cada estrato é uma
dimensão de dispersão, achatada como uma galáxia espiral. Este achatamento é
exatamente tão crucial ao estudo das intensidades quanto as trajetórias traçadas dentro
dele, uma vez que a estratificação ou empilhamento de níveis organizacionais é a forma
básica de qualquer excedente energético possível, o princípio irredutível ou final da 'forma
real': a redundância. Cada estrato tem sua 'negentropia' específica ou gama positiva de
composições, 'selecionando' apenas uma série relativamente estrita de combinações do
estoque de elementos gerados por seu substrato. Um estrato, assim, herda um 'grau de
diferença' agregado, ou gramática, que o distingue de uma certa potencialidade de
'aleatoriedade' (redutibilidade não problemática ao seu substrato) e que constitui um

27
Trakl, Das dichterische Werk, 63.
28
Ibid., 53.
29
Ibid., 50.

13
NÚMENOS COM PRESAS

potencial para a ilusão teleológica (redução não problemática de seu substrato). Esta
estratificação de positividades intensivas, que é mais claramente indexada pelas unidades
sucessivas de letra, palavra, frase, etc. que são precipitadas para fora de um 'plasma
gráfico' comum, ou substância semiótica, dentro de regimes alfabéticos, é a única base
rigorosa para uma arquitetônica do signo. Somente por causa de tal redundância gráfica -
por exemplo, aquela armazenada na diferença entre letra e palavra - entre as palavras que
um alfabeto torna possível e aquelas que são efetuadas - é que a energia pode ser
irregularmente distribuída dentro de um estrato, e as intensidades, geradas.30 Trakl
reconhece este eixo excitatório, que perfura e intensifica cada plano de distribuição, no uso
de palavras relacionadas ao verbo alemão sinken (afundar). Assim, ele escreve:

Von Lüften trunken sinken balde em die Lider


Und öffnen leise sich zu fremden Sternenzeichen.

(Bêbadas de brisas, as pálpebras logo cedem / E se abrem para estranhos signos


estelares.)31

E:
Zeichen und Sterne
Versinken leise im Abendweiher.

(Signos e estrelas / Mergulham quietamente na lagoa da noite.) 32

A explosão de materiais estelares e semióticos gera uma combinação de processos intra-


estratais e trans-estratais, os primeiros dos quais têm sido historicamente determinados
como 'causais' ou 'legislados', e os últimos como 'intelectuais', 'teleológicos' ou 'legislativos'.
Esta é uma ramificação (especulativa, admito) do vocabulário de Trakl sobre Stufen
('passos') de diferenciação geminada (um tema que eu espero explorar de maneira mais

30
A teoria da informação de Claude Shannon entende a redundância como a dimensão de uma
mensagem que não funciona no nível da comunicação, mas sim funciona como um recurso para a
discriminação entre o não comunicativo ('ruído') e a comunicação em geral, assim fornecendo uma
camada de isolamento contra a degradação da mensagem. Esta formulação me parece carecer de
dois elementos cruciais: 1) Ela falha em fornecer qualquer sugestão sobre como a mensagem
participa da constituição de redundâncias (tomando, assim, a redundância como uma condição
transcendental da comunicação). Este primeiro padrão leva à preservação da distinção metafísica
entre processos semióticos e materiais (mensagens e técnicas), que é, de outra forma,
profundamente abalada pelo pensamento da redundância; o pensamento, isto é, de um isolamento
ou 'desnaturalização' do estrato semiótico que procede por meio de intensidades ou excedentes, que
não invocam quaisquer elementos de negatividade, mas apenas gradações. 2) Ela falha em
reconhecer a dimensão política da redundância como meio de aprisionar sinais perturbadores. É este
'aprisionamento' dentro de uma zona intermediária entre estratos que primeiro possibilita que as
categorias de loucura, perversão, deformidade, desobediência e indisciplina sejam constituídas,
fornecendo, assim, a base para os programas disciplinares associados mas contrapostos da
pedagogia, psiquiatria, punição, etc. Falhar em reconhecer tais questões é tomar a noção de ruído
como uma interrupção puramente passiva e não-senciente, em vez de como uma 'interferência'
estrategicamente orientada da mensagem e, desta forma, ignorar os aspectos conflituosos tanto de
gramáticas quanto de subterfúgios anti-gramáticos, enquanto eles lutam dentro do espaço flutuante
da redundância ou controle. Este padrão é típico de uma cientificidade tecnocrata que considera a
questão do poder como já estando sempre resolvida antes da questão da técnica.
31
Trakl, Das dichterische Werk, 18.
32
Ibid., 51.
NARCISISMO E DISPERSÃO

completa em outro lugar). A estratificação é o processo fisiológico complexo, o único, no


qual a distinção entre matéria e significado não pode ser sustentada.33
As ferramentas de que Heidegger depende em sua abordagem das questões sobre
exílio na noite e dispersão astronômica derivam das 'análises ecstativas' de suas
meditações de Marburgo. O termo em que ele foca como um possível ponto de entrada
para tal discussão é 'flama'. Ele primeiro reúne a temática estelar de Trakl com aquela da
flama, com a sugestão: 'A noite inflama como o espelho iluminado do céu estrelado'34. Ele
então procede: Das Flammende ist das Außer-sich, das lichtet und erglänzen läßt, das
indessen auch weiterfressen und alles in das Weißeder Asche verzehren kann. ('Aquilo que
inflama é o próprio exterior, aquilo que ilumina e dá brilho e aquilo que, ao fazê-lo, pode se
expandir vorazmente, de modo que tudo é consumido para se tornar cinzas brancas.' [A
expressão Außer-sich é um índice tão claro da noção de êxtase de Heidegger que Hertz
emprega 'ek-stasis' como sua tradução, na sua versão desta sentença])35. A flama das
estrelas é explosiva - ou fora de si mesma - mas esta Ausschlag pode ser uma gentil
iluminação ou uma devastação descontrolada (um Aufruhr, 'revolta', 'tumulto')36. É sobre
este 'ou', com o qual estou tentando indicar a esperança de Heidegger de que o
Weiterfressung possa ser desviado ou suspenso em contingência, que o caminho ambíguo
de sua leitura gira.
Dez páginas mais cedo, Heidegger postula este sentido de uma alternativa entre
moldagens [Schläge] de maneira mais aguda e, ao fazê-lo, nos retorna à questão da
infecção. Examinando a expressão de Trakl das verfluchte Geschlecht ('o gênero
amaldiçoado')37, ele aponta para uma palavra grega que pode ser traduzida igualmente
como Schlag ou Flucht; πληγη ('praga'). πληγη também é traduzida pelo latim plangere, da
qual derivamos o inglês 'plague' ['peste'] e o alemão Plage (encontrado no sexto verso do
poema Föhn38 de Trakl e no décimo quinto verso de Allerseelen ['Dia de Todas as
Almas'])39. O texto de Heidegger (que eu não posso confiantemente arriscar à minha
tradução apenas) diz:

Womit ist dieses Geschlecht geschlagen, d.h. verflucht? Fluch heißt griechisch
πληγη, unser Wort 'Schlag'. Der Fluch des verwesenden Geschlechtes besteht darin,
daß dieses alte Geschlecht in die Zwietracht der Geschlechter
auseinandergeschlagen ist. Aus ihr trachtet jedes der Geschlechter in den
losgelassenen Aufruhr der je vereinzelten und bloßen Wildheit des Wildes. Nicht die
Zwiefache als solches, sondern die Zwietracht ist der Fluch. Sie trägt aus dem
33
Por exemplo, em Kleines Konzert ('Pequeno Concerto') Aussätzigen winkt die Flut Genesung ('Aos
leprosos, a torrente acena para a convalescença') (Ibid., 25); em Drei Blicke in einen Opal ('Três
Vislumbres em uma Opala') Die Knaben träumen wirr in dürren Weidensträhnen / Und ihre Stirnen
sind von Aussatz kahl und rauh ('Os jovens sonham confusamente entre os fardos secos do pasto / E
suas testas estão nuas e ásperas de lepra') (Ibid., 39; vide também Ibid., 40); no final de Helian (em
um verso que já citei) Helians Seele sich im rosigen Spiegel beschaut / Und Schnee und Aussatz von
seiner Stirne sinken ('A alma de Helian fita-se no róseo espelho / E neve e lepra mergulham de sua
testa') (Ibid., 43); e em Verwandlund des Bösen ('Metamorfoses do Mal') há um Minute stummer
Zerstörung; auflauscht die Stirne des Aussätzigen unter dem kahlen Baum ('momento de muda
devastação; a testa do leproso escuta sob a árvore nua') (Ibid., 56).
34
Heidegger, Unterwegs zur Sprache, 66.
35
Ibid., 60.
36
Ibid., 60.
37
Trakl, Das dichterische Werk, 84.
38
Ibid., 67.
39
Ibid., 211.

15
NÚMENOS COM PRESAS

Aufruhr der blinden Wildheit das Geschlecht in die Entzweiung und verschlägt es so
in die losgelassene Vereinzelung. Also entzweit und zerschlagen vermag das
'verfallene Geschlecht' von sich aus nicht mehr in den rechten Schlag zu finden.

(Com o que este gên-ero é moldado, isto é, amaldiçoado? Amaldiçoado nomeia o grego
πληγη, nossa palavra 'moldagem'. A maldição do gên-ero decomposto consiste nisto, que
este antigo gên-ero é moldado em pedaços na discórdia de gên-eros. Cada um dos gêneros
luta pela revolta desatada em uma sempre individuada e nua selvageria da besta. Não é o
duplo que é a maldição, mas sim a discordância dos dois. Para fora da revolta da cega
selvageria, ela carrega o gên-ero, moldado em rota dualidade e desatada individuação.
Assim dividido e abatido, o 'gên-ero arruinado' não é mais capaz de encontrar o 'molde
correto'.)40

Seria possível ler esta passagem como se ela fosse um desenvolvimento inteiramente
interno à 'filosofia' de Heidegger e como se a leitura de Trakl, na qual ela está incorporada,
fosse uma mera excentricidade ou modulação no vocabulário de uma busca intelectual
inabalável. Tal leitura relembraria que, de acordo com Heidegger, a ontoteologia é a
maldição que leva os seres a se esforçarem pelo domínio absoluto da terra, apagando todo
traço de sua dependência do ser. Aquela diferença de cada ser em relação ao ser é
deslocada pelas diferenças entre seres, e o ser é convertido em um mero território
disputado, a ser subdividido entre seres conflitantes. Ela também relembraria que, dentro
dessa história, tudo pensado como 'real' foi distribuído entre conceitos exclusivos, através
dos quais os seres se representam para si mesmos em sua distinção competitiva, de modo
que as diferenças, discriminações e determinações dos seres deixam de falar sobre o ser.
Ela concluiria que o que é metafísico (no sentido em que Heidegger o entende, como o
ontoteológico) nas dualidades do gênero não é que eles são binários, mas que esta
binaridade monopoliza a interpretação da diferença entre o ser e ser. O que se perde na
interpretação ôntica é o ser do gênero em si, a composição da diferença ôntica a partir do
não-ôntico. Em outras palavras, para pensar Geschlecht de maneira abstrata, mas, em um
certo sentido, para além da ontoteologia, seria necessário apenas insistir (em um tropo
heideggeriano decisivo) que a diferenciação ôntica não é, ela mesma, nada ôntica.
Ainda assim, Heidegger não está simplesmente interpretando uma palavra que
circula livremente dentro da língua alemã. Ele está tentando ler esta palavra conforme ele a
encontra dentro do labirinto tortuoso e vespertino da poesia de Trakl. Devemos retornar à
questão de Heidegger e tentar fazê-la junto com ele: o que é este molde, esta maldição ou
epidemia? Somos assistidos nisto pelas palavras de Trakl, que nos emprestam uma
resposta vacilante para colocarmos ao lado da discussão de Heidegger; o molde que nos
amaldiçoou, certamente isto é o que Trakl chama de Aussatz; lepra, infecção e (assim)
exclusão. Os espaços de diferença através dos quais a Zwietracht se estende e se desloca
(seguindo a instabilidade semântica de Geschlecht) nunca são encontrados sendo descritos
por Trakl em termos que poderiam ser reduzidos a disjunções formais ou articulações
negativas. Em vez disso, ele escreve sobre Mauern voll Aussatz ('muros cheios de lepra')41,
ecoando Rimbaud que, durante sua Saison en Enfer se encontra assis, lépreux, sur les pots
cassés et les orties, au pied d'un mur rongé par le soleil ('sentado, leproso, sobre potes
quebrados e urtigas, ao pé de um muro roído pelo sol')42. Parece, a princípio, surpreendente

40
Heidegger, Unterwegs zur Sprache, 50.
41
Trakl, Das dichterische Werk, 41.
42
A. Rimbaud, Collected Poems, tr. O. Bernard (Harmondsworth: Penguin, 1980), 302-3.
NARCISISMO E DISPERSÃO

que Heidegger não faça qualquer menção das frequentes referências à lepra em toda a
poesia de Trakl, uma vez que Aussatz aponta para um Aus-setzung (a fonte no alto-alemão
antigo Uzsazeo significa 'aquele que foi ausgesetzt ou "expulso"["cast out"] da sociedade'),
uma cunhagem que está em profundo acordo com a orientação ecstativa da leitura de
Heidegger. Heidegger tem até mesmo um espaço especificamente alocado para a doença
em sua leitura. Não que ele esteja particularmente preocupado com o equivalente alemão
desta palavra: Krankheit (embora ele cite o verso de Trakl Wie scheint doch alles Werdende
so krank! ('Quão doente tudo que devém parece!')43). A doença que encontra um lugar no
texto de Heidegger é aquela mesma que obceca Trakl; é a cauterização das estrelas, ou a
erupção primordial e contagiosa do patológico. Mas o suplemento de Heidegger ao texto de
Trakl é decepcionantemente regressivo nesta questão, e minha breve questão final toca em
um exemplo da repugnante obstinação e religiosidade do ensaio de 1953, ao perguntar: por
que Heidegger se recusa a seguir Trakl e chamar a erupção ecstativa de Aussatz?
Ao concluir a questão da maldição que linda o tema de Trakl do Geschlecht,
Heidegger distingue entre dois moldes (castas) e duas dualidades. Há um molde ou selo
amaldiçoador que está associado a uma individualização imprudente e destrutiva e que
gera uma binaridade antagônica ou conflituosa [Zwietracht], e há uma gentil binaridade sanft
[Zwiefalt] que escapa ao contágio da maldição. Como é tão típico de Heidegger, Zwiefalt
simultaneamente marca uma aspiração à pedra pós-filosofal (schellingiana) de uma
diferença intervalar alógica e o sonho do teólogo de uma concepção imaculada ou não
contaminada. Baseando-se em um pensamento sobre dor [Schmerz] enquanto um limiar e
relação, Heidegger busca melhorar o abrasamento patológico das estrelas: 'a gentileza é,
seguindo a palavra das Sanfte, o reunidor pacífico. Ela metamorfoseia a discórdia, na
medida em que transforma o que é lesão e cauterização na selvageria em dor aliviada' 44.
Esta tentativa de se estabelecer distinções pura e dicotômicas que tanto explicam quanto
escapam à história do pensamento opositivo necessita de uma discriminação entre (dois)
tipos de dualidade. (É precisamente porque Derrida recusa se subscrever a tal
discriminação que ele se volta, em vez disso, para uma reinscrição de continuidades que
são capazes de abranger e parcialmente assimilar o aspecto 'ruptural' de sua própria obra,
resignado a uma 'inadequação estruturalmente necessária' na prossecução da
desconstrução. Tanto Heidegger quanto Derrida parecem concordar, contudo, em
considerar o sentido da dicotomia como sendo irremediavelmente polar e reciprocamente
definitiva, em vez de estratal e unilateralmente ou impulsivamente protrátil.)
O predicamento histórico que Heidegger e (de uma maneira diferente) Derrida
traçam aqui e que encontra seu sintoma nesta problemática 'antinomia' de escapada e
recaptura, esperança e desespero, com todos os compromissos instáveis e momentos
evanescentes de indecisão ou indiferença que ela gera, é complexo demais para se
delinear neste artigo. Eu sugerirei apenas que, ao manter Zwietracht e Zwiefalt separados
neste ponto e ao recusar abandonar a esperança de que a dicotomia formal ou final
pudesse ser redimida pelo pensamento futuro, Heidegger está engajado no que poderíamos
legitimamente descrever como 'crítica gentil' da história da metafísica, uma grotesca
recapitulação do compromisso de Kant com a tradição ontoteológica (e a tradição sempre
pertence à igreja). A tentativa de Heidegger é de limitar o Aufruhr que constitui a
contracorrente intensiva da textualidade trakleana. A sua esperança é a esperança estéril
de um filósofo envelhecendo com instintos platônicos, a ilusão de que a dissipação

43
Trakl, Das dichterische Werk, 29; Heidegger, Unterwegs zur Sprache, 64.
44
Ibid., 45.

17
NÚMENOS COM PRESAS

culminante da civilização ocidental pode ser evadida e que a acumulação de força de


trabalho fossilizada pode encontrar uma ordem social eternamente reformável. Ele não
estava completamente inconsciente da profunda luta entre a enfadonha arregimentação da
burguesia patriarcal e uma poça flutuante de energia insurrecionaria que traça sua
genealogia à ur-catástrofe da matéria orgânica. Mas ele se sentia nauseado pelo
pensamento de perder o controle e talvez ele ainda acreditasse em Deus. Zwiefalt
certamente seria um distanciamento deste ruído e deste fermento implacável, um fim ao
contágio, uma paz final? É de acordo com a esta 'lógica' profundamente enraizada de
purificação e transcendência, o tropo mais insidioso de uma teologia em decomposição, que
a irrupção de diferença ecstativa recusa o nome Aussatz, e Heidegger - exausto e
desconfortavelmente febril - abandona sua cópia dos poemas de Trakl e fecha seus olhos.

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