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Luiz Carlos de Barros Silva

Mestrando em Estudos Literários na Universidade Federal de Pernambuco.

“Efebo de tres mil noches”: hermetismo na homopoética de


Federico García Lorca.

Resumo: Neste artigo, demonstramos, através da análise de alguns poemas do Romancero


Gitano, do poeta García Lorca, a existência, no âmbito da poesia moderna, de uma tendência
poética que nomeamos de hermetismo, na qual Lorca se insere. Esse hermetismo se refere a
uma linha de criação que transpassa toda a modernidade, partindo do Romantismo, passando
pelo Simbolismo e por algumas poéticas modernistas não alinhadas precisamente às
experiências mais radicais de vanguarda. Defende-se aqui que este hermetismo, em Lorca, foi
uma alternativa encontrada para a formulação de uma homopoética em um meio sócio-
literário adverso.

Palavras-chave: Hermetismo; homopoética; García Lorca.

Resumen: En este artículo demostramos, a través del análisis de algunos poemas del
Romancero Gitano, del poeta García Lorca, la existencia, en el ámbito de la poesía moderna,
de una tendencia poética que llamamos hermetismo, de la que Lorca forma parte. Este
hermetismo remite a una línea de creación que permea toda la modernidad, partiendo del
Romanticismo, pasando por el Simbolismo y algunas poéticas modernistas no precisamente
alineadas con las experiencias de vanguardia más radicales. Se sostiene aquí que este
hermetismo, en Lorca, fue una alternativa encontrada para la formulación de la homopoética
en un entorno socioliterario adverso.

Palabras clave: Hermetismo; homopoética; García Lorca.


As palavras da boca do sábio são cheias de graça, mas os lábios do
tolo o devoram. No início as suas palavras são mera tolice, mas no
final são loucura perversa.

Eclesiastes, 10, 12-13.

Roçando a faculdade divina do creatio ex nihilo, o poeta medieval Guilhem de Peitieu


(1071-1126) compõe o seu memorável verso “Farai un vers de dreit nien” (Riquer I, 115).
Nesse verso, escutamos uma voz que se mostra tão confiante de suas possibilidades que é
capaz inclusive de escrever um poema a partir de nada. Experimentando a novidade, a
interação lúdica e a satisfação de compor para além da utilidade ou funcionalidade que
possam ter os poemas, Peitieu possivelmente tinha a consciência de que a forma não é algo
que está meramente ao serviço do sentimento que se quer expressar, mas que também tem
suas próprias leis e uma importância intrínseca. Nesse sentido, Victoria Cirlot (1999, p. 30)
concorda que nesse verso de Peitieu há “una ruptura de los moldes de la retórica clásica y la
instauración de otros en los que se sitúan los orígenes de la poesía europea”.
Mas ao que nos referimos ao falar de retórica clássica? Aristóteles (1998, 177), na
Arte retórica, procura conferir autonomia para a técnica retórica. Contrapondo-se ao seu
mestre Platão, sugere uma desvinculação entre filosofia e retórica. Porém, para o tema que
vamos aqui tratar, chama a atenção o fato de o filósofo se referir no seu tratado a “enigmas
velados”, mas “bem-sucedidos”, o que pode ser entendido como uma espécie de censura
indireta às propostas mais ousadas que pudessem vir a quebrar o métron grego. Aristóteles
assinala, desse modo, os limites da metáfora e conclui: “De um modo geral, de enigmas bem
feitos é possível extrair metáforas apropriadas, porque as metáforas são enigmas velados e
nisso se reconhece que a transposição de sentido foi bem-sucedida”. Em outro momento da
Arte Retórica, o filósofo faz referência ao mau uso e ao “emprego de palavras compostas”, o
“uso de epítetos demasiado longos” e as “metáforas incovenientes”, sendo estas
caracterizadas por imagens obscuras (Aristóteles 1998, 180).
Na Poética, ao referir-se às qualidades da elocução, Aristóteles afirma de maneira
mais categórica que o poeta não pode prescindir da clareza: “A qualidade basilar da elocução
poética consiste na clareza, mas sem trivialidade. Obtêm-se a clareza máxima pelo emprego
das palavras da linguagem corrente, mas à custa da elevação” (Aristóteles, 1998, 276). Em
outra passagem da Poética, Aristóteles deixa estabelecido os pilares que vão sustentar o fazer
poético ocidental a partir da idade média: a clareza e a objetividade. Escreve o Estagira: “Os
assuntos poéticos não só não devem ser constituídos de elementos irracionais, mas neles não
devem entrar nada de contrário à razão” (1998, 276).
Tendo em consideração essas informações, podemos supor a estranheza que o verso de
Guilhem de Peitieu provocou. No medievo, encontramos a conhecida tensão do Trobar clus,
trobar ric. O trobar clus se refere a uma poesia áspera, dura, obscura, que tende à alegoria e
que se contrapõe ao trobar ric, caracterizado por um estilo suave e límpido. Nesse sentido,
Emil Noulet (apud Cussen, 2007, p. 20) afirma: “Symbolisme, code secret, hermétisme, son
en effet, des phénomènes parallèles qui semblent surgir dans l’historie du langage d’une
manière périodique sinon permanent”. Octavio Paz, nesse sentido, vai destacar a maior
presença que teria o hermetismo em períodos críticos da história e comenta os preconceitos
negativos que esse fato implica, quando:

afirman que las épocas de crisis o estancamiento producen automáticamente una


poesía decadente. Condenan así la poesía hermética, solitaria o difícil. Por el
contrario, los momentos de ascenso histórico se caracterizan por un arte de plenitud,
al que accede toda la sociedad. Si el poema está escrito en lo que llaman el lenguaje
de todos, estamos ante un arte de madurez. Arte claro es arte grande. Arte oscuro y
para pocos, decadente. Ciertas parejas de adjetivos expresan esta dualidad: arte
humano y deshumano, popular y minoritario, clásico y romántico (o barroco) (PAZ,
1994, p. 68).

Neste aritigo, não vamos nos deter ao debate do conceito fenomenológico de um


“hermetismo eterno”, mas nos centrar nas particularidades que essa constância assume na
modernidade. São muitos os críticos e poetas que chamam a atenção sobre a inédita
acentuação desta questão na lírica moderna, como Hugo Friedrich, que nos norteará neste
sentido, com a sua obra Estrutura da Lírica Moderna, publicada em 1956.
Quais particularidades apresenta o hermetismo poético moderno que o difere das
épocas anteriores? No seu trabalho Estrutura da Lírica Moderna, Friedrich põe em foco a
variedade de categorias negativas que determinam a criação lírica do século XX, entre as
quais a obscuridade é uma das mais recorrentes. Afirma o autor que:

A lírica moderna impõe à linguagem a tarefa paradoxal de expressar e, ao mesmo


tempo, encobrir um significado. A obscuridade converteu-se em princípio estético
dominante, afastando demais a poesia da função normal de comunicação da
linguagem, para mantê-la flutuando numa esfera da qual pode mais afastar-se que se
aproximar de nós (FRIEDRICH, 1991, p. 178).

Tanto neste parágrafo quanto em outros, observa-se a relevância que atribui Friedrich
à autonomia que a poesia obtém ao desprender-se da sua capacidade comunicativa. Logo,
Friedrich vai delimitar os elementos que, a seu parecer, provocam o hermetismo a nível
formal, que são: mudança da função das preposições, dos adjetivos e advérbios e das formas
verbais temporais e modais; alteração da ordem normal dos períodos; tendência a frases
abertas, que por exemplo, podem ser formada somente com nomes aos quais não acompanha
nenhum verbo; orações subordinadas às quais não sucede nenhuma principal; substantivos
usados sem artigo; uso de palavras que se explicam apenas pela raiz, mas que não são usadas,
etc.
Friedrich também se refere à recepção e reação do leitor, em uma definição que nos
parece bastante acertada, já que alude à mistura de atração e estranheza que pode produzir o
texto hermético. Afirma Friedrich: “Sua obscuridade o fascina, na mesma medida em que o
desconcerta. A magia de sua palavra e seu sentido de mistério agem profundamente, embora a
compreensão permaneça desorientada” (p. 15).
Para Friedrich, Mallarmé (aquele que abre-se aos “raios primitivos da lógica”) é um
dos baluartes destas novas concepções, e atribui ao poeta as seguintes características:

Também em Mallarmé constatamos: ausência de uma lírica do sentimento e da


inspiração; fantasia guiada pelo intelecto; aniquilamento da realidade e das ordens
normais, tanto lógicas como afetivas; manejo das forças impulsivas da língua;
sugestionabilidade em vez de compreensibilidade; consciência de pertencer a uma
época tardia da cultura; relação dupla para com a modernidade; ruptura com a
tradição humanística e cristã; isolamento que tem consciência de ser distinção;
nivelamento do ato de poetar com a reflexão sobre a composição poética,
predominando nesta as categorias negativas (FRIEDRICH, 1991, p. 95).

Em suma, segundo Friedrich, a obscuridade era uma das características principais da


poesia após a virada do século. Essa obscuridade, por sua vez, trouxe consigo uma crise
irreversível entre a criação e a recepção das artes. Para contribuir neste debate, temos a
formulação importante de Ortega y Gasset, em “La deshumanización del arte”, quando o
filósofo cita uma vontade “antipopular” divide o público em dois grupos: “los que lo
entienden y los que no lo entienden”. A recepção por parte de público da arte anterior,
dependia de um gosto favorável ou não. A diferença daquela, esta nova arte dependia da
capacidade de compreensão do público: “cuando el disgusto que la obra causa nace de que
no se la ha entendido, queda el hombre como humillado, con una oscura conciencia de su
inferioridad que necesita compensar mediante la indignada afirmación de sí mismo frente a
la obra” (ORTEGA Y GASSET, 1987, p. 62).
Em Estrutura da Lírica Moderna, Hugo Friedrich dedica atenção à poesia espanhola
moderna, de modo especial, a Federico García Lorca, o poeta cuja obra compõe o texto
estudado neste trabalho. Explica Friedrich que a partir de fins do século XIX, nasceu na
Espanha um desejo de renovação nascido do “fastio de uma poesia declamatória, sentimental
e naturalística” (p. 115). Além disso, contribuiu para essa renovação também levada a cabo
por nomes como Antonio Machado, Alexandre, J. Ramón Jiménez, a (re)descoberta de um
poeta com forte parentesco com a modernidade: Luís de Góngora (1561-1627).
A presença de Luís de Góngora como precursor de Lorca pode ser observada em uma
conferência que se intitula “La Imagen Poética en Don Luís de Góngora”, lida pelo próprio
poeta, em 1926. O hermetismo que havia sido condenado em Góngora pela tradição clássica,
é agora um ponto de referência para Lorca e os demais poetas da Geração de 27: “Y Góngora
ha estado solo como un leproso lleno de llagas de fría luz de plata, con la rama novísima en
las manos esperando las nuevas generaciones que recogieran su herencia objetiva y su sentido
de la metáfora” (p. 84).
Lorca procura na sua conferência dar legitimidade ao hermetismo gongorino e justifica
que “en Andalucía la imagen popular llega a extremos de finura y sensibilidad maravillosas, y
las transformaciones son completamente gongorinas'' (p. 1-2).
Neste artigo, procuramos entender o hermetismo na obra de García Lorca como uma
forma de expressão/ocultamento da sua sexualidade. Para ressaltar essa homopoética em
Lorca, vamos analisar três poemas do Romancero Gitano, obra de 1928: San Miguel, San
Rafael e San Gabriel.
Antes de mais nada, é importante ressaltar o curioso dado que é a escassez de estudos
e debate em língua espanhola sobre a sexualidade de Garcia Lorca, que era homossexual, e
reflexo desse fato na obra do autor. Por mais estranho que possa parecer atualmente, durante
certo tempo, buscou-se esconder a sexualidade de Lorca; quando não foi mais possível
esconder, argumentou-se que se tratava de um fato menor, sem ênfase na obra do poeta.
Como lembra Mateos-Miera (2003), em alguns textos de Luis Cernuda, Federico García
Lorca, Emilio Prados ou Vicente Aleixandre, a identidade homossexual só pode ser percebida
através de um trabalho desocultação.
Para tratar do assunto, recorremos ao poeta espanhol Luis Antonio de Villena, que se
dedicou com especial interesse pela vida (la mala vida) privada de García Lorca e por avultar
a homopoética na obra lorquiana. Do autor, dispomos de dois materiais principais sobre o
tema: um ensaio de 1979, intitulado La sensibilidad homoerótica en el Romancero Gitano, e a
conferência Lecturas homoeróticas de Federico García Lorca, realizada na Casa de América,
em 2011.
A força e a tensão entre o sexo masculino e a liberdade são um dos motores e o núcleo
não só dos poemas analisados, mas do Romancero Gitano. É importante ressaltar que não
afirmamos que o livro seja inteiramente homoerótico, nem que o homoerotismo seja seu tema.
Ressaltamos, sim, que para compreender alguns símbolos e o transfundo íntimo de quase
todos os poemas do livro, é necessário ter em conta a sensibilidade homossexual do autor.
Em um artigo de título sugestivo (El sonambulismo de Federico García Lorca), J. M.
Aguirre lembra que Lorca foi “un poeta que ha tenido mala muerte con sus críticos”. Quais as
razões que levavam Lorca ter essa recepção na crítica? Além dos motivos já bem estudados e
documentados, um é relegado ao silêncio, ainda que seja um dos mais certos: o fundo motriz
do sexo homoerótico que move e gera quase a toda a obra de García Lorca.
Luis Antonio de Villena, na conferência citada, lembra ser comum nos jornais
conservadores a prática de, ao anunciar algum evento ou peça de Lorca, cometerem uma
errata proposital e omitirem o r do sobrenome do poeta. Assim, divulgavam-se sob o nome
Federico García Loca (louca), numa nítida referência à sexualidade do poeta.
San Miguel é o primeiro dos três poemas dedicados às três cidades andaluzas:
Granada, Córdoba e Sevilha, além de ser os três poemas mais evidentes para o nosso
comentário. Nesse poema, que Villena bem lembra ser “una metáfora sacro-profana”,
notamos o Arcanjo Miguel, que desde a varanda da sua torre vê chegar a procissão que deve
levá-lo até uma ermita. As primeiras estrofes evocam a romaria de São Miguel, realizada a
cada setembro em Granada, com ênfase na repetição de imagens acústicas e visuais: os
romeiros chegam “por el monte, monte, monte” à torre onde está guardado o arcanjo. São
Miguel é então um belo rapaz andrógino, que está endereçado por trajes e saiote que ressaltam
a sua graça efébica. Logo após descrever a romaria, foca-se na detalhes do arcanjo-efebo:

San Miguel lleno de encajes


en la alcoba de su torre,
enseña sus bellos muslos,
ceñidos por los faroles
(LORCA, 2003, p. 210).

No livro Canciones, anterior ao Romancero Gitano, Garcia Lorca já havia se ocupado


dos populares mariquitas das vilas andaluzes. Na célebre Canción del mariquita, percebemos
esse personagem corriqueiro, o do moço afeminado dos povoados que embora seja tema de
chacota, não perde o seu tom provocador.

El mariquita organiza
los bucles de su cabeza.

El mariquita se adorna
con un jazmín sinvergüenza.
Note-se que esse tema reaparece no poema San Miguel. Como o mariquita, o
“arcangel domesticado”, esse rapaz belo que aguarda na torre, se enfeita, de adorna e se olha
ao espelho enquanto

finge una cólera dulce


de plumas y ruiseñores.
(LORCA, 2003, p. 170).

Sobre este último verso, Luis Antonio de Villena afirma que “viene aquí bien
recordar que pluma (en el argot homosexual) vale por gesto llamativo, típico de quien
pudiera ser calificado de mariquita”. O tom provocador com o que Lorca tinge a imagem de
San Miguel vai além. Correlacionando o arcanjo-efebo a uma certa artificialidade (que nós
lembra a imagem de um dandi), o poema se encerra com a visão do arcanjo ensaiado,
devolvido à “alcoba de su torre”, ficando posto um elogio à graça masculina-efébica, a qual
Lorca não poderia louvar se não fosse através de metáforas sublimes, para poucos e
herméticas. Binding comenta sobre a justaposição entre o religioso e o homosexual do poema:

San Miguel—of Granada itself—provides an even more interesting occasion for


Lorca to connect his own homosexual feelings with those accepted, but not named,
by an Andalusian community. [...] With San Rafael and San Miguel, Lorca draws
our attention to a homosexuality outside himself, and present in conventional
religious ritual and iconography (BINDING, 1985, P. 70).

A voz de García Lorca é um som que deve comunicar em segredo, embora a


mensagem seja algo tão presente na vida do poeta. Como lembra Villena, Lorca tinha uma
sexualidade ativa e que partilhava em conversa com poucos amigos, sendo esses, também
gays ou bissexuais, como Vicente Alexandre e Martínez Nadal. Apenas. Como afirma o
escritor madrilenho, Francisco Lorca, irmão do poeta, como certamente os demais membros
da família Lorca, era avesso à ideia da homossexualidade do poeta, que foi assumida décadas
após a sua morte, quando já não era possível esconder, principalmente, após a reimpressão da
obra El Público. Por isso, é certo o que Friedrich afirma: “García Lorca é um mestre no
grande domínio da poesia moderna, no domínio do anônimo” (p. 171). Ao falar de um tópico
tão forte na sua vida e na dos demais poetas amigos seus, Lorca só podia escrever
hermeticamente.
Seguindo a tendência sacro-profana já citada, García Lorca compõe San Rafael, o
segundo poema da tríade. Agora, não vamos observar nem torres, nem ermitas e nem
procissão com uma diversidade de gente como no poema anterior (manolas gitanas, altos
caballeros, damas de triste porte, morenas, obispo de Manila), que estava precedida por San
Miguel, o “efebo de tres mil noches”, “el rey de los globos”, esse “arcángel domesticado”.
Em San Rafael, vamos observar vamos presenciar o mais sensual dos três arcanjos, a
banhar-se nu com os demais rapazes no rio Guadalquivir, em Córdoba, em um dia festivo.
Após a primeira parte do romance, que se ocupa da descrição imagética do rio e dos que nele
se banham, Lorca propõe na segunda parte do poema um elogio à graça masculina dos
rapazes que com alegria se banham no rio. Villena ressalta que na “habla popular andaluza,
niño tiene, a veces, el sentido de muchacho o joven”.

Niños de cara impasible


en la orilla se desnudan,
aprendices de Tobías
y Merlines de cintura,
para fastidiar al pez
en irónica pregunta
si quiere flores de vino
o saltos de media luna.
(LORCA, 2003, p. 213).

Os rapazes são aprendizes de Tobias e “Merlines de cintura”, isto é, que possuem uma
beleza física que enfeitiça, o que em Andaluzia recebe o nome “juncalismo”. As águas do rio
Guadalquivir ficam a“alisar” esse “romano torso desnudo”. Essa mistura de elementos
bíblicos com a mágica e imagens da cultura cigana-andaluza vai ser um tópico em todo o
Romancero, como vemos neste e também no próximo poema da tríade, San Gabriel.
Certamente, San Rafael é o poema mais enigmático dos três dedicados aos Arcanjos.
As metáforas são ressoantes e herméticas: “Pétalos de lata débil”, “vendedores de tabaco” e
aquela que mais está presente no poema, encarnada na figura do peixe solitário “que a las dos
Córdobas junta”. Luis Antonio de Villena não duvida em associar a figura desse “pez” a um
símbolo fálico. Sem descartar essa interpretação, propomos que Lorca, para acentuar as
imagens de Tobias e do próprio São Rafael, faz referência na imagem do peixe à historieta
bíblica do rapaz israelita, Tobias, e seu protetor, o Arcanjo Rafael, tão bem retratada na
conhecida pintura de Filippino Lippi, “San Rafael guiando a Tobías”. No quadro, o anjo
Rafael é quase feminino e o jovem Tobias segura sua mão com confiança.
O terceiro poema arcangélico, San Gabriel, é um louvor à graça masculina juvenil, à
graça efébica. Os primeiros versos do poema dão conta de imprimir a beleza do terceiro
arcanjo, que entrará no jogo sacro-profano proposto pelo poeta:

Un bello niño de junco,


anchos hombros, fino talle,
piel de nocturna manzana,
boca triste y ojos grandes,
nervio de plata caliente,
ronda la desierta calle
(LORCA, 2003, p. 218).

Já ornamentado de flores e vestido com as roupas apresentadas pelos ciganos, San


Gabriel, o arcanjo mensageiro, está pronto a cumprir sua missão, que é anunciar à cigana
Anunciación de los Reyes, “bien lunada y mal vestida”, o nascimento de uma criança cigana,
que não só será cabalista, mas fundador de dinastia. Note-se que esta é a única cigana feliz do
Romancero.
En la ribera del mar
no hay palma que se le iguale,
ni emperador coronado
ni lucero caminante.
Cuando la cabeza inclina
sobre su pecho de jaspe,
la noche busca llanuras
porque quiere arrodillarse.

Dios te salve, Anunciación.


Madre de cien dinastías.
Áridos lucen tus ojos,
paisajes de caballista
(LORCA, 2003, p. 222).

A riqueza linguística dos versos de Lorca é aqui alçada à descrição sensual de uma
beleza juvenil, camuflada na história dos ciganos e dos arcanjos. Através dos poemas
analisados, em um exercício de desocultação, observa-se a trajetória de auto-expressão de
Lorca. O poeta passeia pelo religioso e pelo pagão, propondo uma poética homoerótica que
sugere uma união entre si próprio, a sua Andaluzia morisca e católica, e o estético e o belo
dos corpos masculinos.
Referências bibliográficas

Aristóteles. 1998. Arte retórica e Arte poética. Tradução e notas de Antônio Pinto de
Carvalho. 16ª edição. São Paulo: Ediouro.

Binding, Paul. Lorca: The Gay Imagination. London: GMP, 1985.

Cirlot, Victoria. “Acerca de la nada de Farai un vers de dreit nien de Guilhem de Peitieu”. ER
Revista de de Filosofía. Número especial: Nada, mística y poesía, 24/25, 1999.

Friedrich, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. Trad. de Marise M. Curioni. Duas Cidades:
São Paulo, 1991.

García Lorca, Federico (1994). Obras IV: Prosa 1. Edição de Miguel Ángel García Posada.
Madrid: Akal.

________________ . Poesía Completa. New York: Vintage Español. Print, 2003.

Mateos-Miera, E. (2003). Máscara y verdad: identidades homoeróticas del 27. Orientaciones:


revista de Homosexualidades. 6, 69-90.

Paz, Octavio. La casa de la presencia. Poesía e historia. Obras Completas, edición del autor,
tomo I. Segunda edición. México D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1994.

Ortega y Gasset, José. La deshumanización del arte y otros ensayos de estética. Prólogo de
Valeriano Bozal. Madrid: Espasa Calpe, 1987.

Villena, Luis Antonio de. Lecturas homoeróticas de Federico García Lorca. YouTube, 10 de
novembro de 2011. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?
v=uw0xOPL5_7I&t=1851s>.

Villena, Luis Antonio de. La sensibilidad homoerótica en el Romancero gitano. Castilla.


Estudios de Literatura, [S. l.], n. 2, p. 501–516, 2011. Disponível em:
https://revistas.uva.es/index.php/castilla/article/view/79. Acesso em: 03 dez. 2022.

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