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4/11/2018 Rio Grande e a ditadura: um texto necessário* | TUCO TUCO

TUCO TUCO

Rio Grande e a ditadura: um texto necessário*

30/03/2014 · por admtucotucorg · em Colaboradores, Geral, Política. ·


O cinquentenário do Golpe Civil-Militar de 1964 é o tema da vez. Pudera: da quartelada que derrubou Jango
até a eleição indireta de Tancredo Neves, em 85, foram 21 anos de desmandos, abusos, corrupção, torturas,
desaparições e mortes. Tudo sob a chancela do Estado autoritário, que, para se manter no poder, implantou o
terror. Os “Anos de Chumbo” foram, de longe, os mais marcantes da História Contemporânea brasileira.
Daqueles tempos inglórios, restaram o medo, a dificuldade em se estabelecer uma “tradição democrática” e
uma imensa crise – econômica, institucional e de valores éticos.

Rio Grande não esteve à margem do processo desencadeado a partir de 1º de abril de 1964. Ao contrário:
a cidade portuária, foco de efervescentes manifestações dos trabalhadores, esteve nos planos da ditadura
desde o início. E com destaque. Ao menos é isso que apontam quatro pesquisas recentes sobre a cidade
naquele período. Os trabalhos de Eduardo Gandra (1999), Leonardo Kantorski (2011), Lidiane
Friderichs (2013) e Leandro da Costa (2014), todos historiadores, abordam o período por diferentes
óticas, mas utilizando Rio Grande como cenário (veja as referências completas ao final do texto). As
quatro dissertações – nenhuma delas produzida no âmbito da FURG, que mantém larga tradição em
silenciar sobre temas “espinhosos” – mostram a ditadura sob o prisma dos trabalhadores (portuários,
professores, ferroviários e músicos, respectivamente). Mais do que isso, estes trabalhos remontam os dias
difíceis de uma cidade que, hoje, prefere lembrar com saudades dos tempos da “Revolução”.

(h ps://tucotucorg.files.wordpress.com/2014/03/arquivo-publico-rs-rio-grande-cidade-historica1.jpg)

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Pichação no pórtico de entrada de Rio Grande: o “perigo comunista” serve de pretexto para o Golpe
(Arquivo Público do Rio Grande do Sul/ Rio Grande – Cidade Histórica)

Farydo Salomão e os trabalhistas: o alvo

Agora eu (1980) é um documento quase esquecido. Seu autor, o capitão da Brigada Athaydes Rodrigues,
o escreveu para que seus conterrâneos não se alijassem do próprio passado. O livro, que hoje é peça rara
pelas bibliotecas do município, conta como foram aqueles dias que antecederam o Golpe, em Rio
Grande. Ao relembrar o clima de tensão que dominava a cidade, Rodrigues parece abrir caminho para
as mesmas constatações obtidas em pesquisas mais recentes: Rio Grande, que tinha prefeito e maioria de
vereadores pertencentes ao PTB de Jango, era vista pelas elites conservadoras (locais e de fora) como um
ninho de comunistas, mar vermelho de barbudos prontos para levar a cidade (e o país) a uma ditadura
do proletariado.

Localmente, o alvo era Farydo Salomão, professor e prefeito eleito, homem de boa reputação que gozava
de grande popularidade nos idos de 64. Para os oposicionistas, Salomão era uma ameaça, político ligado
a João Goulart e Leonel Brizola, os dois maiores exemplos do “comunismo em marcha” que seria
implantado no Brasil (vale lembrar que, em 64, a dialética capitalismo versus comunismo convencia
muito mais gente do que hoje, fator amplamente utilizado pelos golpistas). Os sete vereadores que
apoiavam o prefeito (todos do PTB) também eram considerados assim.

O maior jornal da cidade à época, o Rio Grande, encabeçava a campanha contra o prefeito do PTB. Anos
mais tarde, pesquisas revelariam que este mesmo periódico mantinha vínculos estreitos com o
IPES/IBAD, braço civil do processo de desgaste e desestabilização do Governo Goulart e seus
seguimentos. Este jornal, que depois desapareceria, noticiou com alegria a realização da Marcha com
Deus pela Família local – que acabaria acontecendo só depois do Golpe. Da mesma maneira, a folha
condenou Farydo Salomão por não apoiar a Marcha, preferindo defender as Reformas de Base da
política de Jango. A propósito: poucos dias depois do célebre Comício da Central, para muitos o
momento-chave da política janguista, o prefeito de Rio Grande realizaria seu próprio comício em defesa
da democracia e das Reformas. Neste dia, conforme conta Athaydes Rodrigues, Farydo Salomão
defendeu a encampação da Refinaria de Petróleo Ipiranga, maior ícone da industria local naquela
primeira metade da década de 60. Conforme o relato do capitão da Brigada, dias depois, a refinaria
fundada pelo “ilustre” Francisco Martins Bastos (que enriqueceu muito durante os anos de
autoritarismo) cederia caminhões e combustível para que os militares levassem a cabo o Golpe em Rio
Grande.

O combate aos petebistas que dominavam a política local riograndina tinha como objetivo maior atacar
o movimento organizado dos trabalhadores em suas diferentes categorias. Eduardo Gandra e Lidiane
Friderichs contam, com riqueza de detalhes, os meandros que levaram a ditadura – depois do Golpe – a
destruir as organizações sindicais e associações de classe, reprimindo e eliminando instituições inteiras,
como a Sociedade União Operária – que foi literalmente exterminada da vida papareia. Tempos
sombrios se anunciavam…

Canopus: violência em alto-mar

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(h ps://tucotucorg.files.wordpress.com/2014/03/c042-f01.jpg)
Navio Canopus: das pesquisas na costa a “gaiola” de presos políticos (Marinha do Brasil)

O Golpe de 64 chegou com eco em Rio Grande. Preocupados com a possibilidade de resistência, os
militares focaram suas atenções no domínio de praças mais “tensas”, sobretudo as capitais. Porém, tão
logo João Goulart abriu mão da luta, começaram as ações locais. De acordo com Leandro da Costa e
Lidiane Friderichs, nos primeiros dias pós-Golpe as Forças Armadas iniciariam duas operações: a
limpeza (que visava retirar os opositores do Golpe de cena) e a gaiola (que tinha por objetivo prender
líderes de setores que pudessem oferecer algum “perigo” à recém-implantada ditadura).

Athaydes Rodrigues foi uma das primeiras vítimas das operações. Ele foi preso dias depois do Golpe, de
pijama, em casa. Não ofereceu resistência, porque não acreditava ter feito algo de errado (e de fato não
fizera; na época ele apenas exercia seu cargo de vereador eleito). Junto com o capitão da Brigada, líderes
sindicais também foram aprisionados. De acordo com Friderichs, dos 242 presos políticos gaúchos de
“primeira hora”, 20 foram detidos em Rio Grande (o maior contingente no interior do Estado). A
limpeza havia chegado à Noiva do Mar.

Em 24 de abril de 1964, pouco mais de duas semanas depois do Golpe, o prefeito Farydo Salomão foi
cassado pela operação limpeza e aprisionado pela gaiola. Seu vice, Álvaro Pereira, preferiu não assumir.
O comando do Executivo local foi entregue ao capitão Martinho de Oliveira, depois de uma eleição
indireta na Câmara de Vereadores – que também já havia sido “limpa” e, agora, era controlada pelo
capitão do Exército Mário Rodrigues da Costa. O novo vice-prefeito da cidade seria o professor Loréa
Pinto. Dali por diante, até 1985, os riograndinos não elegeriam mais o chefe do Executivo.

Farydo Salomão teve o mesmo destino de Athaydes Rodrigues e dos líderes operários perseguidos pelo
novo regime. Um IPM (Inquérito Policial Militar) foi instalado para investigar suas participações no
regime recém-derrubado. Salomão e os demais acabaram presos no navio hidrográfico Canopus, que se
tornaria uma “lenda” local. De acordo com informações obtidas junto à Marinha, o Canopus era um
navio destinado a realizar pesquisas na costa brasileira. A belonave foi utilizada durante mais de seis
décadas, mas, naqueles idos de 1964, os militares preferiram deixar as pesquisas cartográficas de lado
para transformar o navio em prisão política. Como seriam levados até Porto Alegre, os principais
“subversivos” locais – dentre eles o agora ex-prefeito – foram aprisionados no barco. Um destes presos
teria se suicidado e há relatos de que, nas caldeiras do barco, alguns dos presos foram submetidos a
graves torturas em condições desumanas, já que as altas temperaturas da sala de máquinas teriam sido
utilizadas para piorar a condição dos interrogatórios.O novo regime dava às caras.

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A título de curiosidade e de resgate de memória, vale lembrar que o capitão do Canopus, nesta época,
era ninguém menos que o Almirante Maximiano da Fonseca, que hoje dá nome a uma das muitas
avenidas de Rio Grande, num ato de descalabro com a História.

Dinheiro, Golbery e a área de segurança nacional

A visão de guerra dos militares brasileiros – incentivada por doutrinas importadas dos Estados Unidos –
pregava que os problemas brasileiros se resolveriam por duas vias: desenvolvimento e segurança. Assim
rezava a cartilha da Doutrina de Segurança Nacional que, poucos anos depois do Golpe, fecharia por
completo a torneira da liberdade para investir no terrorismo de Estado e naquilo que o historiador
Leandro da Costa denominou de “sensação de amparo”.

Rio Grande exemplifica bem esse processo. Limpa e engaiolada a oposição ao novo governo, os novos
interventores municipais começam a investir pesado em velhas reivindicações locais. Pouco tempo depois
de instalada a ditadura, o conjunto de escolas de nível superior criadas para atender a demanda de mão-
de-obra exigida pela Refinaria Ipiranga é transformado em universidade federal, dando origem à FURG
(injeção de dinheiro público na formação de trabalhadores especializados para o capital privado);
também nesta época, tem início algumas obras emblemáticas, dentre as quais aquela que transformaria
o Canal São Gonçalo na principal fonte de água do município.

(h ps://tucotucorg.files.wordpress.com/2014/03/medici-outubro-72-leandro.png)
O ditador Emilio Garrastazu Médici visita Rio Grande, em 1972 (foto publicada por Leandro da Costa
em sua dissertação de mestrado)

A propósito deste episódio, Leandro da Costa traz dados que ilustram de que forma as decisões eram
tomadas na ditadura. De acordo com o historiador, havia forte oposição ao uso das águas do Canal São
Gonçalo, sobretudo em virtude da existência de um serviço municipal de água e esgoto que fazia frente à
CORSAN. Riograndino, poderoso e pouquíssimo afeito aos valores democráticos, Golbery do Couto e
Silva (um dos artífices da ditadura que esteve às sombras do poder durante duas décadas) fazia coro aos
militares papareias e queria que o serviço municipal deixasse de existir. Como havia resistências na
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Câmara de Vereadores, o interventor Cid Scarone decidiu apelar ao “ilustre” Couto e Silva. Num
arroubo de autoritarismo, a Câmara foi fechada, o projeto do canal foi aprovado (por decreto) e, no dia
seguinte, o Legislativo voltou a funcionar.

As águas do São Gonçalo ajudariam a dar vida ao projeto do Super Porto, implantado pela ditadura no
início dos anos 70. Através do Super Porto e da corrupção inveterada e irrefreável advinda dos dólares
investidos na região, alguns riograndinos fizeram fortuna do dia para a noite, ao passo que outras
famílias mais tradicionais – no afã por manter o poder concentrado durante anos – simplesmente se
valeram de toda e qualquer forma de benefício oferecida pela ditadura. É bom lembrar que o “Milagre
Econômico” brasileiro, aclamado pelos defensores do regime, foi um dos projetos mais desastrosos dos
Anos de Chumbo. Para que se tenha uma ideia, neste período a dívida externa do país se multiplicou em
várias vezes. Em 64, ela era de cerca de 3 milhões de dólares; no início dos anos 80, já passara de cem
milhões.

Da época de ouro das intervenções e canetaços de Golbery em Rio Grande, data também o início da
derrocada ambiental. O Super Porto, a Ipiranga e a indústria pesqueira foram, em larga escala, agentes
de destruição das riquezas naturais do município. Nos anos 80, um estudo da FURG chegou a ser notícia
em todo o país, depois de alertar para o alarmante número de crianças natimortas nas vilas do entorno
do Porto Novo e da Barra.

Violência, Opalão e redemocratização

A sensação de amparo se mistura com a de medo. Ao falar em segurança, muitas testemunhas daquele
tempo confundem a autoridade com autoritarismo. Quiçá este seja um dos maiores saldos negativos da
ditadura: com a imprensa livre, hoje sabemos que há corrupção, violência e desmandos, inclusive (e
principalmente) do Estado. Naqueles tempos, a alienação não era uma opção.

Difundida por toda a vida brasileira, a violência de Estado implantada pela ditadura de 64 marcou
presença constante em Rio Grande. A proscrição de várias organizações sindicais, a implantação de
dispositivos que garantissem a ineficácia das entidades de classe, a destruição dos mecanismos de
participação cidadã e a violência nua e crua das salas de interrogatório, dos atestados de bons
antecedentes, da exigência de uma carteira de trabalho assinada e da censura eram parte do cotidiano
nacional, ainda mais em uma cidade considerada (desde 1968) Área de Segurança Nacional, como era o
caso de Rio Grande.

Casos desta violência não faltam. Leandro da Costa, que entrevistou agentes da repressão, colheu
depoimentos arrepiantes sobre aquele período. Em um deles, um policial civil conta que os presos –
mesmo os comuns, que eram transformados em “comunistas” e “subversivos” quando havia interesse
por parte da polícia – eram espancados e levados à Praia do Cassino. No mar, o detido era submetido a
interrogatórios violentos, simulações de afogamento (o famoso “caldinho”) e choques elétricos com cabos
ligados ao dínamo do “Opalão” – numa referência ao automóvel utilizado pela polícia na época. Para
garantir a “segurança”, violência.

O clima de terror e medo, no entanto, não impediu que houvessem contestações. No trabalho de
Leandro da Costa, que aborda o papel dos músicos em Rio Grande, há provas cabais de que existiam
vozes dissonantes na universidade, entre os compositores e cantores e até na imprensa local. A propósito
disso, é no mínimo surpreendente perceber que, naqueles tempos, um dos meios de comunicação menos
ligados ao discurso oficial era o ainda jovem jornal Agora – que nasceu em oposição ao Rio Grande e que
fazia um jornalismo sério e envolvente, característica perdida ao longo dos anos.
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Das contestações, vieram as vozes das ruas, que se levantaram contra a ditadura a partir da distensão.
Quando a luta pelas eleições diretas tomou conta do país, no início dos anos 80, Rio Grande recebeu um
dos tantos comícios liderados por Leonel Brizola, Lula, Mário Covas, Fernando Henrique Cardoso e
outros nomes que, mais tarde, adotariam diferentes discursos e formas de interpretar a democracia.
Naquele momento, com o Milagre Econômico arruinado, Golbery alijado do poder e os militares em
franca decadência, os riograndinos perceberam que era possível ir mais além. Em 1985, depois de vinte
anos sem votar para prefeito, os papareias voltaram às urnas, demonstrando que o medo ainda era
maior que o anseio por mudanças. Devotados aos “gloriosos” períodos de suposta bonança dos anos 70,
23 mil papareias elegeram o empresário Rubens Emil Corrêa como o primeiro prefeito depois da
ditadura. Correa já havia sido Interventor nomeado pela ditadura, no auge do Milagre. Seu segundo
governo, porém, foi desastroso. Em 1988, finalmente a mudança venceu o medo. O partido que a
ditadura legou ao Brasil como herança, o famigerado PDS, havia desaparecido para dar espaço a siglas
menores, como o PFL, que ficou em último nas eleições daquele ano. PT, PDT e PMDB, as maiores
agrupações anti-ditadura, dominaram o pleito que elegeu Paulo Vidal ao Paço Municipal. Nunca mais
um partido com passado ligado diretamente à ditadura voltaria ao Executivo rio-grandino.

(h ps://tucotucorg.files.wordpress.com/2014/03/tse-eleicoes-76.jpg)
Ata das eleições municipais de 1976 mostra que votar para prefeito não era uma opção em Rio Grande
(Tribunal Regional Eleitoral/RS).

Memória, justiça e verdade

Em 2011 a Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi criada para elucidar os crimes cometidos pelo
Estado durante a ditadura. Três anos depois, o projeto inicia sua fase final. Embora condenado por
tribunais internacionais – principalmente por manter viva uma Lei de Anistia que protege assassinos que
atuaram à serviço do Estado – o Brasil caminha a passos lentos no que diz respeito à condenação dos

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responsáveis – civis e militares – pelas atrocidades cometidas naqueles tempos. O lobby das Forças
Armadas e da sociedade civil conservadora é grande e, mesmo tendo reconhecido passado de lutas, a
presidente Dilma Rousseff ainda não conseguiu virar a página da impunidade no Brasil.

Isso não significa, porém, que estes crimes estejam isentos na História e na memória brasileiras. Em
2011, mesmo ano de criação da CNV, o então vereador Renato Albuquerque (ex-Arena, ex-PDS, atual
PMDB), criou uma série de projetos para homenagear Golbery do Couto e Silva com nomes de bairro,
rua e até um busto a ser instalado na Praça Tamandaré. O prefeito da ocasião, Fábio Branco, autorizou a
instalação da homenagem ao artífice da ditadura e mentor da versão tupiniquim da Doutrina de
Segurança Nacional, mas a grita de blogueiros, jornalistas, historiadores e cidadãos que se sentiram
desrespeitados pela reverência fez com que a Prefeitura Municipal desistisse do preito. Na época, o chefe
de gabinete do prefeito, Edes Cunha (uma das figuras mais alinhadas aos militares durante a ditadura)
afirmou que Branco aprovara a lei levado pela História que lhe fora contada, afinal “não era nem
nascido” na época da ditadura.

A fala de Edes Cunha nos remete à importância de relembrar e pesquisar aquele período. O suposto
desenvolvimento (há que se questionar a que preço) e a “sensação de amparo” daqueles tempos não
servem como justificativa para a implantação do regime de terror e violência vigentes na ditadura e nem
isentam militares e civis do passivo de corrupção e destruição das instituições democráticas. É preciso
estar atento ao fato de que, se hoje engatinhamos nos preceitos básicos da democracia, é porque vivemos
durante mais de vinte anos sem tê-los.

Além disso, é necessário também questionar até que ponto o alardeado “desenvolvimento” trazido pela
ditadura a Rio Grande foi mesmo tão benéfico à cidade. Uma reportagem do jornal Correio do Povo,
publicada em 1983, noticiava que, a cada mil recém-nascidos na cidade, quarenta morriam antes de
completar um ano de vida – o maior índice de mortalidade infantil do Estado, então. Na mesma ocasião,
o cientista Paulo Croccia (da Virginia University) denunciou que Rio Grande contava com um dos mais
altos índices de infecções pulmonares do mundo (1500 casos para cada cem mil habitantes).
Analfabetismo, desemprego (principalmente depois da quebra da indústria pesqueira) e crise de
infraestrutura básica são heranças daqueles tempos.

Por estas e tantas outras razões, rememorar é preciso. Com calma, serenidade e, principalmente,
seriedade. Os documentos estão aí. Cabe aos historiadores e às pessoas comuns interessadas no resgate
da memória o papel de lançar luzes sobre a escuridão, como fizemos em 2011, quando Renato
Albuquerque e seus companheiros se aproveitaram do desconhecimento histórico alheio para lançar o
projeto de homenagem a Golbery. É preciso estar atento. Há uma bibliografia “especializada” em
limpar a barra de figurões que contribuiram, em muito, com a ditadura e seus crimes. A História,
documentada e crítica, serve para desmenti-los.

Para que não se esqueça.

Para que nunca mais aconteça.

Saiba mais:

“Saindo dos trilhos: os ferroviários riograndinos durante a Ditadura Civil-Militar (1960-1970), por
Lidiane Friderichs (link (h p://ich.ufpel.edu.br/ppgh/publicacoes/dissertacao-lidiane-
friderichs.pdf));

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“O cais da resistência: a trajetória do sindicato dos trabalhadores nos serviços portuários de Rio Grande
no período de 1959 a 1969”, por Eduardo Gandra.

“Expurgos de Docentes na Lógica da Doutrina de Segurança Nacional: o caso da FURG (1969-1977)”,


por Leonardo Kantorski.

“Festivais de música em área de segurança nacional: a periferia da Música Popular Brasileira na cidade
do Rio Grande (1970-1976), por Leandro da Costa.

* Colaboração de Chico Cougo, que é historiador e autor do blog www.memóriasdochico.com (h p://www.xn-


-memriasdochico-nob.com/)

Tags: Chico Cougo, ditadura, Edes Cunha, política, Rio Grande


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12 Respostas para “Rio Grande e a ditadura: um texto


necessário*”

1. Rafael Diverio 30/03/2014 às 23:49 · · Responder →


Gostei muito do texto. Tinha lido pouco sobre o período da ditadura em Rio Grande. Em algumas
pesquisas que fiz, sobre outros assuntos, alguns desses nomes citados apareceram em contextos
completamente diferentes. Enfim, apesar de ter achado um belo tratado, queria entender esse trecho:

“(…) o conjunto de escolas de nível superior criadas para atender a demanda de mão-de-obra exigida
pela Refinaria Ipiranga é transformado em universidade federal, dando origem à FURG (injeção de
dinheiro público na formação de trabalhadores especializados para o capital privado) …”

1) O texto dá a entender que ter “criado” a Furg foi uma coisa “ruim”, porque a origem foi atender a
demanda que a refinaria precisou pra funcionar em Rio Grande.

2) Hoje, a Furg ampliou o número de engenharias (são 11, né?) pra, justamente, atender a
necessidade do polo naval. E todo mundo exalta isso como algo positivo.

Entre outros atributos da Universidade, um deles não é suprir a mão-de-obra do mercado?!

De resto, parabéns pelo texto!

Abraço

2. Ovelha Selvagem 31/03/2014 às 10:29 · · Responder →


Bah, teu ranço contra a FURG e o curso q te formou esta demais. Tu ficas militonteando onde não há
necessidade.

3. Marina Born 31/03/2014 às 14:02 · · Responder →


Muito bom!!! Parabéns…
Esclarecedor pra mim que cheguei em Rio Grande já em pleno século XXI !

4. Anônimo 31/03/2014 às 15:09 · · Responder →


Parabéns pela reportagem. Uma síntese de um período histórico que merece estar sempre vivo e
evidenciado em nossas escolhas.
Quanto as ressalvas em discussão, não vi nenhum teor ideológico na abordagem à FURG, mas

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apenas um registro. Posso estar sendo ingênuo, ou talvez a discussão esteja impregnada de
subjetividades que desconheço. Aí é com vocês, kkkkk.

5. giovana Rocha 31/03/2014 às 22:39 · · Responder →


Ótimo texto. Muito esclarecedor. Conheci Athaídes Rodrigues pessoalmente quando criança. Meu pai
foi um operário da fábrica Renghan que lutou muito pela sua classe, defendendo os colegas da
opressão dos “alemães capitalistas” como ele dizia. Homem do povo, não tinha muita noção do seu
papel político, mas o fazia de forma espontânea e fazia a diferença.
Esse texto me fez relembrar muitas coisas. Inclusive que eu quando criança, estudante do Buchholz,
ia com a professora para a Av Santos Dumont, abanar uma bandeirinha para os presidentes militares
Emílio Médice e João Figueiredo. Achavamos bonito, chique, perfeito.
Fui crescendo e mudando minha visão política. Ajudei a eleger Paulo Fernando Vidal p/ a prefeitura
aos 18 anos. Segui me envolvendo bastante com as questões políticas e sociais, até porque acho que é
uma das missões do educador.
Quanto a criação da FURG, é claro que foi super positiva, apenas o autor ressaltou que o capitalista
não faz nada de bonzinho, como tenta transmitir.
E a história do busto do Golbery, acho que é pura ignorância do sr. Fábio Branco, influenciado pela
raposa velha chamado Renato Albuquerque.
Belo texto, serviu para desabafar.

6. Chico Cougo 02/04/2014 às 0:23 · · Responder →


Agradeço às palavras de todos.
Vou esclarecer o ponto referente à criação da FURG. Relendo o texto, percebi que realmente ficou
dúbio – como afirma o Rafael Diverio.

Não considero a criação da FURG um erro, antes pelo contrário. A pressão para que as escolas que
existiam na cidade fossem unificadas numa universidade foi enorme e de vários setores.

A iniciativa privada, em especial a Ipiranga (maior empresa local à época), foi quem mais definiu
para que lado a balança penderia. Como sabemos, daí nasceu a URG, depois FURG.

Os militares atenderam ao anseio do capital. Não critico a criação da universidade em si. Só que, na
minha visão, escolas de ensino superior não devem nascer tendo por fim a formação de mão-de-obra
para o capitalismo. Universidades, antes de tudo, são centros de formação cidadã, onde se criam
profissionais com pensamento crítico (independente da área de atuação) que, consequentemente,
atuarão em suas comunidades (ou em outras).

Não foi este o caso da universidade na época da ditadura, altamente tecnicista e muito aferrada à
formação pura e simples de operários qualificados. Até hoje a universidade brasileira não se
desvencilhou dessa tradição.

Mas este tema dá margem para outras linhas. Quem sabe numa próxima colaboração!

7. José Protas 03/04/2014 às 17:29 · · Responder →


É óbvio que o capitalista não irá dar alguma coisa sem querer algo em troca. As faculdades, como
também SENAI e SENAC sempre serviram para suprir a necessidade de mão de obra especializada.
Isto é ruim? Claro que não! Tudo é um jogo de interesses.

8. Anônimo 02/05/2014 às 7:48 · · Responder →


Excelente texto e contribuição!Só observando uma informação sobre a bibliografia. Foi o Edgar Ávila
Gandra o autor da dissertação que virou livro sobre os portuários de Rio Grande. e não Eduardo
Gandra. forte abraço!

9. Anônimo 20/05/2014 às 22:41 · · Responder →


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fnvgsdc

10. Luis Heinrich 25/11/2014 às 23:09 · · Responder →


Esclarecedor, estava procurando algo sobre o navio kanopus e acabei por conhecer um pouco mais
da história da “terrinha”.
Quanto mais conheço os fatos ocorridos na ditadura, mais fico motivado a seguir a carreira militar.
Estou ansioso para “meter o pau” nos “filhos e filhas daputa” que estão pedindo intervenção militar.
Perdoe o desabafo.
DITADURA NUNCA MAIS!

11. andreadeoliveira2009 17/03/2015 às 14:49 · · Responder →


Republicou isso em andreadeoliveira2009.

12. andreadeoliveira2009 17/03/2015 às 18:05 · · Responder →


O professor Carlos Loréa Pinto é meu avô materno, Morei em Rio Grande até os 5 anos, quando nos
mudamos (pai, mãe e eu) para o Rio de Janeiro.Depois,eu passava todas as férias no Cassino, “na
casa do vô”. Foi muito difícil a leitura deste texto, Parei várias vezes. Chorei muito. Lembro de muitas
coisas relacionadas a ele que foram fundamentais na construção do meu caráter e nas minhas
escolhas pessoais, profissionais… Isso do silêncio que pairava no ar, durante a funesta ditadura
militar, eu me lembro bem. Um medo silencioso que perpassava as relações sociais e familiares…
Criança, eu percebia isto com nitidez . Foi doloroso relembrar estas emoções que eu não sabia
expressar à época. Só sentia. Como se sentir fosse pouco…
Certa vez, eu disse que iria “votar na arena” -(com letra minúscula mesmo, pois não merece letra
maiúscula nenhuma!). Quando ele ouviu aquilo, virou-se muito sério para mim e falou: “Não digas
isto nem de brincadeira, guria!!” Eu tinha 4 anos. Entendi que a tal “arena” era do mal.Ficou bem
claro. Perguntei:”Por que, vô?” Bastou para ele me explicar muito bem explicado…Ali mesmo, no
calçadão do Centro de Rio Grande, ele parou e deu uma senhora aula sobre o momento político da
época. Explicou o que era partido político, ditadura militar, golpe, “arena”, MDB, a diferença entre
disciplina e repressão, liberdade pessoal e direitos sociais, Não sei explicar como entendi tudo aquilo
com 4 anos; sei é que nunca mais me esqueci da melhor aula de história de minha vida. E o melhor :
enquanto ele estava falando não senti aquele tal medo escondido emanado pelos outros adultos.
Mais tarde compreendi, como professora, a aula pública que o Professor Loréa tinha dado para povo
que transitava pela rua. Aprendi que o medo não pode regular a vida de um professor, mesmo
desagradando alguns e perdendo certos “benefícios”. Este homem viveu do seu salário e morreu
como todo operário morre: deixando os filhos trabalhando uns, estudando outros. Somente deixou de
herança o seu exemplo. Como se exemplo fosse pouco…
Haveria muitas coisas para contar ainda… por enquanto está bom. Preciso digerir estas
lembranças,,,emotivas todas. Posso ouvir a voz do “vô Carlos” me dizendo: “Tá, guria, já é suficiente.
Tudo tem a sua hora… agora vai buscar teu guri na escola!”
Muito obrigada ao autor do texto por me possibilitar entrar em contato com tudo isso de um modo
tão autêntico e não silencioso! Muito obrigada!

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