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Conceito de Deficiência
Conceito de Deficiência
16642016 3061
ARTIGO ARTICLE
a partir das noções de autonomia e normalidade
Paula Gaudenzi 1
Francisco Ortega 2
Abstract This is a conceptual theoretical study Resumo Trata-se de um estudo teórico concei-
to reflect upon disability and some basic concepts tual para pensar a deficiência e alguns conceitos
that are involved in its profiling. The scope of the -base que são manejados para a caracterização
article is to broaden the outlook upon disability re- da mesma. O objetivo do artigo é ampliar o olhar
moving it from a description that reduces it to an sobre a deficiência retirando-a de uma descrição
ailment. For this purpose, we situated the Disabil- que a reduza à doença. Para tanto, situamos his-
ity Studies historically presenting the Medical and toricamente os Disabilty Studies apresentando os
Social Models of Disability and problematized the Modelos Médico e Social da Deficiência e proble-
concepts of autonomy and normality. These con- matizamos os conceitos de autonomia e normali-
cepts and their correlated aspects – independence, dade. Estes conceitos e seus correlatos – indepen-
functionality and the norm – are used as a tacit dência, funcionalidade e norma – são utilizados
touchstone to differentiate some bodily variations como fundamento tácito para diferenciar algumas
that are identified as different lifestyles from oth- variações corporais que são identificadas como es-
ers that are often called disabilities. We conclude tilos de vida diferentes de outras que são, muitas
by stating that disability can be analyzed based on vezes, denominadas de deficiências. Concluímos
other interpretations that do not construe it as a afirmando que a deficiência pode ser analisada a
synonym for ailment if we consider the notions of partir de outras chaves de leitura que não a colo-
interdependence, normativity and creation of the cam como sinônimo de doença se considerarmos
self in the world as basic concepts to describe it. as noções de interdependência, normatividade
Key words Disability, Medical model of disabili- e criação de si no mundo como conceitos básicos
ty, Social model of disability, Autonomy, Normal- para descrevê-la.
ity Palavras-chave Deficiência, Modelo médico da
deficiência, Modelo social da deficiência, Autono-
1
Instituto Nacional de
Saúde da Mulher, da mia, Normalidade
Criança e do Adolescente,
IFF, Fiocruz. Fiocruz.
Av. Rui Barbosa 716,
Flamengo. 22250-020 Rio
de Janeiro RJ Brasil.
paula.gaudenzi@gmail.com
2
Instituto de Medicina
Social, UERJ. Rio de Janeiro
RJ Brasil.
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Gaudenzi P, Ortega F
Para estes, a experiência da “deficiência” propor- considerada nas perspectivas dos primeiros teó-
ciona um sentido de comunidade que é aprovei- ricos da deficiência. Perceber nas estruturas so-
tado na intenção de exaltar os valores fundamen- ciais uma importância maior para incorporar a
tais da vida, os direitos humanos e a celebração diversidade corporal do que nas vantagens que a
da diferença17. Trata-se de mais uma expressão biomedicina poderia oferecer ao corpo deficiente
de um fenômeno cultural que se desenvolveu nas fez com que os teóricos ignorassem a dimensão
últimas décadas que foi a emergência de movi- da lesão e da necessidade de cuidados especiais
mentos de defesa de plena cidadania daqueles dos deficientes. A entrada das teóricas feministas
que falam em nome da diferença. Indivíduos na discussão – que marcaram a segunda gera-
com conformações corporais e/ou mentais ante- ção dos estudos da deficiência – complexificou a
riormente classificadas como patológicas reivin- problemática ao considerar a lesão no debate e
dicam o estatuto de singularidades atípicas não ao negar a suposição de que todos os deficien-
patológicas. tes desejam a independência ou são capazes de
Desenvolve-se a ideia da “deficiência como alcançá-la. Argumentando que todas as pessoas
cultura” e como “categoria diversa” similar à raça são dependentes em diferentes momentos da
e orientação sexual. O campo passa a ter afini- vida, algumas feministas introduziram a ideia da
dades com disciplinas que lidam com noções de igualdade na interdependência como um prin-
identidade política, como os estudos de gênero cípio mais adequado à reflexão sobre questões
e de diversidade sexual10. Portanto, a forma de de justiça para deficientes20. A ambição por in-
compreender e tratar a deficiência passou a ser dependência, dizem, é um projeto moral que se
comparada com outras formas de humilhação e adéqua às aspirações das pessoas não deficientes.
opressão pelo corpo como o sexismo e o racismo. Mas, autonomia, independência e produtividade
Neste sentido, cria-se o neologismo disablism não são valores morais inquestionáveis. É preciso
para denunciar a cultura da normalidade que considerar a diversidade da experiência de viver
oprime e discrimina os portadores de impedi- em um corpo lesionado21.
mentos corporais17.
A tomada de consciência desse movimento Deficiência e Autonomia
vem produzindo processos de coming out defi-
ciente, análogos aos coming outs de gays, lésbicas A mudança na forma de compreender a cau-
e negros, declarando um “orgulho deficiente”. A salidade da deficiência, deslocando a desigualda-
afirmação “sou deficiente” constitui uma afirma- de do corpo para as estruturas sociais fragilizou a
ção de autocategorização, um processo de subje- autoridade dos discursos curativos e abriu possi-
tivação e de formação de identidade. Para os teó- bilidades analíticas para uma redescrição do sig-
ricos do campo essa afirmação permite um des- nificado de habitar um corpo com deficiências17.
locamento do discurso dominante da dependên- A passagem simbólica do tema da deficiência do
cia e anormalidade para a celebração da diferença espaço doméstico para o público forçou a ques-
e o orgulho da identidade deficiente18. Trata-se tão sobre que tipo de sociedade pode garantir os
tanto de um compromisso coletivo e político de direitos específicos das pessoas com determina-
protesto contra as barreiras sociais incapacitantes dos tipos de impedimentos sem que sejam consi-
encaradas pelos indivíduos com algum tipo de le- derados sujeitos de “segunda categoria”.
são, como de uma transformação da identidade Nosso ponto de vista leva em consideração o
pessoal vivenciada com orgulho. trabalho do filósofo sueco Lennart Nordenfelt22,23
Por outro lado, “passar por” (passing) é o ter- e segue a linha argumentativa da segunda gera-
mo usado para descrever aqueles que escondem ção dos estudos da deficiência. Uma das grandes
os seus prejuízos (impairments) ou não querem controvérsias entre os estudiosos da deficiência
“sair do armário” (come out) enquanto deficien- é sobre a necessidade de desacoplar a análise da
tes. Ambivalências identitárias como estas e as di- mesma de dentro do quadro conceitual episte-
ferentes experiências de pessoas que vivem com mológico da saúde e da doença. Os defensores
alguma deficiência são frequentemente ignora- do Modelo Social tiveram o mérito de rechaçar o
das por ativistas radicais dentro do movimento modelo biomédico hegemônico da análise sobre a
da deficiência e desclassificadas como opressão deficiência, mas teorias que aproximam a doença
internalizada ou falsa consciência19. da deficiência não se restringem a este modelo.
Vemos que, em geral, a dimensão da lesão, Nordenfelt, por exemplo, trabalha os concei-
isto é, da limitação imposta pelo corpo com al- tos de saúde e doença de forma holística e dialoga
gum tipo de redução da funcionalidade, é des- com os estudiosos da deficiência. Na concepção
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cial. O self nessa representação é entendido como Trata-se de uma forma de compreender o
uma confluência de relações e obrigações sociais indivíduo e a moralidade diferente da definição
constitutivas da identidade. Somos, fundamental- tradicional do ser humano nas sociedades capi-
mente, traços de identificações com os outros e a talistas ocidentais, em que o indivíduo é priorita-
autonomia é um valor subordinado a tais prin- riamente percebido como sujeito independente,
cípios morais. Nesta concepção, não há um self a submetido apenas a si mesmo e ao comando da
ser revelado, ou uma identidade que reside sepa- razão.
rada da experiência intencional com o outro. Para Nesta concepção, o cuidado também é uma
Mead26, por exemplo, o self é um processo social demanda de justiça social. Afirmando que as re-
individualmente interiorizado. A relação com o lações de dependência são incontornáveis e que
outro é a unidade básica para a construção do self. o discurso da absoluta independência é perverso,
Trata-se claramente de uma disputa ideológi- posto que implique o desamparo como horizon-
ca. A concepção atomística do ser humano consi- te de nossas debilidades, o estudo da autora aju-
dera a confiança, a amizade, a lealdade, o cuida- da a ver o indivíduo autônomo como aquele que
do e a responsabilidade atributos secundários em exerce uma escolha autônoma e não obrigatoria-
relação à autodeterminação e à autorrealização. mente como aquele que é capaz de agir de forma
A segunda geração dos estudiosos da defici- independente.
ência marcada pelas teóricas feministas da área Esvaziar as noções de capacidade individual
assimila que a ambição por independência é um e independência e fortalecer as ideias de interde-
projeto moral que se adéqua às aspirações das pendência e relação interpessoal como critérios
pessoas não deficientes e que ela não é um valor de julgamento da condição variante permitem
inquestionável22. A demanda por justiça não pode que o julgamento da deficiência seja relativizado.
ser referida à ética individualista subordinada à
hipervalorização da ideia de independência. Cri- Deficiências, Normalidades
ticam a primeira geração do Modelo Social por e Normatividades
priorizar a inclusão dos deficientes na lógica ca-
pitalista em detrimento da problematização dos A segunda geração dos estudos da deficiência
pressupostos morais da organização social que trouxe a contribuição de realçar que a dependên-
gira em torno do trabalho e da independência5. cia é um fenômeno universal e que a percepção
Negando a suposição de que todos os deficien- da mesma está relacionada às dependências que
tes desejam a independência ou são capazes de consideramos (i)legítimas em determinada so-
alcançá-la, introduziram a ideia da igualdade na ciedade. Pressupondo a ideia de eficiência ou ca-
interdependência como um princípio mais ade- pacidade, a conceitualização da deficiência traz o
quado à reflexão sobre questões de justiça para problema de demarcar quais são as capacidades
deficientes20. que queremos e quem as define.
A filósofa feminista Eva Kittay20,27 preocupa- De fato, na CIF4 um dos conceitos fundamen-
se em desmontar as teorias liberais da justiça e tais para a caracterização da deficiência é a parti-
igualdade, ao sustentar que as relações de depen- cipação, que pode ser indicada pela avaliação do
dência são inevitáveis na vida social e inescapá- desempenho do indivíduo no meio em que vive,
veis à história de vida de todas as pessoas. Cui- este último termo usado explicitamente no Esta-
dado e interdependência, diz, são princípios que tuto da Pessoa com Deficiência, de 20156. Neste
estruturam a vida social e impõem a centralidade sentido, pode-se dizer que não é a natureza que
da dependência nas relações humanas. oprime, mas a cultura da normalidade que des-
A autora americana fez uso da ideia de que creve algumas performances como indesejáveis.
“somos todos filhos de uma mãe” para dizer A pergunta que se faz necessária é quais per-
que todos somos cuidados por alguém em al- formances são consideradas aceitáveis e quais
gum momento da vida. A partir da noção de self devem ser “reparadas”. O filósofo Ron Amund-
transparente, isto é, do self moral daquele que son28 nos oferece alguns indícios. Aproveitando
tem o dever de cuidar de outras pessoas e é mo- o trabalho de Stokoe29 que demonstra que a lin-
vido por um ideal altruísta, baseado nos laços de guagem dos sinais tem a complexidade estrutural
afeto e preocupação, reitera que o sujeito moral e os poderes cognitivos e expressivos da lingua-
é inerentemente relacional, contrapondo-se à in- gem falada e que injúrias cerebrais que causam
terpretação de self da tradição liberal. Nesta con- certos tipos de afasias na linguagem falada têm
cepção, o self transparente é o elemento moral efeito similar na linguagem dos sinais, Amund-
central da ética do cuidado. son propõe duas formas de interpretar esta con-
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noção de autonomia que é relevante para abalar aspecto, o deficiente não deve ser ajustado à nor-
nossas certezas sobre a natureza da deficiência. A ma social, mas deve ter o direito de normalizar
relação entre as ofertas do meio e a capacidade por si mesmo sua própria vida de acordo com
individual é igualmente importante. A sociedade suas potencialidades.
constitui o contexto de ação dos indivíduos, pois
o background do ambiente pode favorecer a exe-
cução de certa ação, pode torná-la mais difícil ou Considerações Finais
impossibilitá-la.
Em muitos casos, a suposta falha no desem- Neste artigo pretendemos mostrar como as no-
penho pode ser reparada pela tecnologia aplicada ções de autonomia e normalidade ajudam a pro-
pelos humanos. É o caso dos óculos, dos apare- blematizar a noção de deficiência.
lhos de surdez, da comunicação de autistas facili- O conceito de autonomia nos parece útil para
tada por computador e das inúmeras próteses. A a reflexão sobre a deficiência a partir de dois ei-
ação deliberada de adequação do meio para ma- xos de análise interligados. O primeiro refere-se
nutenção de uma vida satisfatória permite que o à consideração da autonomia como conceito
disfuncional em alguns casos se torne perfeita- chave para a caracterização de uma condição
mente funcional. E, desse prisma, o saudável pode corporal atípica como normal ou patológica. É
ser entendido, à maneira de Canguilhem, como precisamente tal consideração que permite re-
normativo, isto é, capaz de enfrentar as injúrias tirar a deficiência da condição de doença, pois
do meio a partir da criação de novas normas de muitos sujeitos que possuem variações corporais
funcionamento. Para Canguilhem, o vivente não podem realizar suas metas vitais, como diz Nor-
se adapta mecanicamente ao meio, confronta-se denfelt. Isso se dá, sobretudo, quando se modifica
com o meio, o transforma e se transforma. Cabe o comportamento mediano e o equipamento do
a nós acolhermos ou não o diferente, criando ambiente que em geral não atendem às pessoas
condições de estímulo às respostas normativas atípicas.
dos sujeitos individuais. Como diz Canguilhem34: Mas há outra dimensão da questão que nos
“Num certo sentido, não há seleção na espé- leva ao segundo eixo de análise. Quando identi-
cie humana, uma vez que o homem pode criar ficamos a deficiência com o impedimento de re-
novos meios em vez de suportar passivamente as alização dos projetos pessoais permitimos que os
mudanças do antigo. Em outro sentido, a seleção projetos sejam descritos de outra forma, devendo
no homem alcançou sua perfeição limite, visto ser alargados. Para tanto, é necessário redefinir a
que o homem é este vivente capaz de existência, ideia de autonomia para deixar fluida a fronteira
de resistência, de atividade técnica e cultural em entre eficiência e deficiência. Tauber25 nos mostra
todos os meios”. que ao invés de pensar a autonomia como sobe-
Mas a fabricação e a incorporação tecnológi- rania, podemos considerá-la dentro de uma ética
cas não parecem suficientes para o atípico se tor- de cuidado, de dependência e participação. En-
nar normal. Amundson28 sugere que o julgamen- tender autonomia nestes termos permite preser-
to da normalidade costuma se basear no modo e var a atipia, a priori, como diferença e não como
não no nível de desempenho, isto é, aspectos cos- doença ou deficiência.
méticos do aspecto funcional importam mais do No que se refere à noção de normalidade,
que aspectos pragmáticos no julgamento de ati- demonstramos que é uma noção altamente con-
pia biológica como anormalidade ou deficiência. troversa e que pode ser entendida a partir de di-
A grande fascinação pelo modo de funcionamen- ferentes referenciais. No caso da caracterização
to, ou pela normalidade estética é ela mesma um de determinada condição como deficiente, pa-
obstáculo para a performance funcional, o que rece-nos que o sentido de normalidade utilizado
demonstra o preconceito por formas diversas de está próximo daquele de capacidade. Vemos que
experimentar o corpo e de agir no mundo atra- são determinadas performances – consideradas
vés dele. A doutrina da normalidade biológica e a normais ou anormais de acordo com a cultura
falácia da normalidade funcional são sustentadas da normalidade subjacente – que darão suporte à
por uma ideologia que visa manter os corpos atí- noção de deficiência.
picos relegados ao ostracismo social. Apontamos o trabalho de Amundson como
Parece-nos, portanto, mais interessante – referência importante para a compressão sobre
em termos éticos e políticos – considerar, assim quais performances são consideradas aceitáveis
como faz Canguilhem30, a deficiência como mo- e quais devem ser “reparadas”. O autor deno-
dalidade de vida qualitativamente distinta. Deste mina de “normalidade cosmética” a cultura da
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Colaboradores
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