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26/03/2021 O gambito do rei: Bobby Fischer e a era pop do xadrez | Super

Texto: Rafael Battaglia | Ilustração: Vinicius Capiotti | Design: Juliana Alencar | Edição: Bruno
Vaiano

A
Rússia é para o xadrez o que o Brasil é para o futebol. A diferença é
que eles nunca levaram um 7×1. O histórico de paixão é longo: Ivan, o
Terrível, estava jogando uma partida quando um derrame o matou, em
1584. A Condessa de Stroganoff, da família que deu nome ao prato, organizou
um duelo entre a imperatriz Catarina 2ª e o rei sueco Gustavo 4º em 1796.
Detalhe: era xadrez gigante, com peças humanas.

Em uma foto de 1908, o líder bolchevique Vladimir Lênin joga uma partida com
seu rival de partido Alexander Bogdanov – autor de ficção científica e médico
pioneiro da transfusão sanguínea. Eles estão na casa do célebre escritor Maxim
Gorki, na Itália. Lênin (que, segundo Gorki, tinha chiliques mimados quando
perdia) não deixou de jogar nem durante o exílio de três anos na Sibéria antes da
Revolução de 1917: os movimentos das peças iam e voltavam por
correspondência.

O xadrez surgiu a partir de um jogo indiano do século 6, chamado chaturanga –


que tinha um elefantinho no lugar do bispo. Chegou aos persas, espalhou-se pela
Ásia e entrou na Rússia pela Sibéria no século 9. Deu match com o temperamento
russo e virou o passatempo preferido da aristocracia imperial. Mas só caiu de vez
no gosto do povo séculos depois, de maneira premeditada – quando foi
transformado em arma política pelos soviéticos. Nikolai Krylenko, um influente
assecla de Stálin, disse: “Vamos organizar brigadas de choque de jogadores, e
começar um plano quinquenal”.

A ideia era que um jogo lógico e racional – o favorito do alemão Karl Marx,
diga-se – servisse como demonstração da superioridade intelectual da URSS
sobre os países capitalistas. Seria fácil implantá-lo: as peças podem ser fabricadas
em larga escala, e a única infraestrutura necessária é uma mesa. Além disso, a
população já nutria alguma simpatia pelo tabuleiro alvinegro, e havia um herói
nacional recente para exaltar: Mikhail Chigorin, que esteve no top 5 mundial no
final do século 19 e batizou vários lances. Logo, o xadrez foi incorporado ao
treinamento de todos os recrutas das Forças Armadas.

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“O Partido Comunista acreditava que o xadrez poderia ser de grande utilidade


para elevar o nível cultural das massas trabalhadoras”, escreveu o historiador
Michael A. Hudson. “O encorajamento oficial fez do xadrez um componente
cultural significativo na vida dos cidadãos.” Stálin mobilizou a máquina de
propaganda, e seus assessores chegaram a forjar as sequências de movimentos de
partidas fictícias do ditador.

Todo esse incentivo rendeu frutos em 1948, quando Mikhail Botvinnik venceu o
primeiro Campeonato Mundial organizado pela Federação Internacional de
Xadrez, a Fide. Foi o início da hegemonia soviética na competição: todos os
campeões das duas décadas seguintes eram de lá. Os EUA, do outro lado da
Guerra Fria, sequer conseguiam chegar à final. Vontade de provocar os soviéticos
não faltava. Faltava tradição mesmo. A sorte ianque só começou a mudar no fim
dos anos 1960, graças a um garoto tímido do Brooklyn.

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O GÊNIO

O
xadrez não é algo que enlouquece as pessoas. O xadrez é algo que
mantém as pessoas loucas sob controle”, disse o psicólogo (e
enxadrista) William Hartston. De fato, Robert James Fischer – vulgo
Bobby Fischer – era uma criança obcecada. Durante as refeições, era comum
haver livros de xadrez sobre a mesa, dividindo espaço com a comida. Ele jogava
contra si mesmo até no metrô – mexendo peças de velcro em um tabuleiro
portátil de tecido enquanto o trem cruzava as pontes de ferro de Nova York.

Não demorou para que o prodígio ganhasse notoriedade no clube de xadrez de


Manhattan e, depois, em torneios regionais. Em 1958, aos 15 anos, Bobby se
tornou o mais jovem Grão-Mestre (GM) até então – e esse é o título mais alto que

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um enxadrista pode conseguir. A faixa preta. Na mesma época, conquistou o


primeiro dos seus oito campeonatos nacionais. Em 1964, com 21 anos, participou
de uma partida simultânea contra 50 pessoas e venceu 47 delas. Quem viu O
Gambito da Rainha na Netflix já notou que ele é uma versão masculina da
personagem Beth Harmon.

Fischer era a Beth Harmon da vida real: um


americano contra a URSS.

Como Beth, o herói da vida real tinha problemas familiares. A mãe do prodígio,
Regina, era suíça, filha de judeus poloneses, e fugiu para os EUA na 2ª Guerra
para escapar dos nazistas em 1939. Bobby nasceu em Chicago em 1943, e a
família viveu quase como nômade até se estabelecer na periferia de Nova York. A
mãe criou sozinha Bobby e sua irmã mais velha, Joan, e escondeu dos filhos a
identidade do pai – o jovem Fischer só descobriu que era filho de um cientista
alemão aos 9 anos.

Nos anos 1960, Regina se tornou ativista ferrenha contra a Guerra do Vietnã, o
que rendeu uma ficha de 994 páginas no FBI. Já é envolvimento demais com o
governo para uma família só. Mas Bobby logo seria mais vigiado que a mãe:
quando ficou claro que ele era o melhor enxadrista dos EUA, ficou claro também
que ele era a única esperança do Tio Sam contra a hegemonia soviética no
tabuleiro.

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O SUMIDO

A
Copa do Mundo do xadrez é o Torneio de Candidatos, disputado por 8
a 16 enxadristas. Esses jogadores de elite, que se qualificam jogando
outros campeonatos, se enfrentam em um mata-mata tradicional:
oitavas – caso haja jogadores suficientes –, quartas, semifinais e final. O
vencedor ainda não é o campeão do mundo: ele ganha o direito de jogar uma
partida contra o campeão do mundo. É como se o Palmeiras, após vencer a
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Libertadores 2020, tivesse um lugar garantido na final de 2021 – e aí os demais


clubes brigassem para ver quem vai desafiar o porco.

Em um mata-mata de futebol, cada par de times disputa um ou dois jogos. No


basquete da NBA, os times travam sete jogos entre si – quem ganhar quatro
primeiro leva. No xadrez daquela época, as disputas eram de até 24 jogos,
espaçados um ou dois dias entre si. Cada jogo valia um ponto; o empate, meio
ponto.

Em outubro de 1971, com 28 anos, Bobby Fischer chegou à final do Torneio de


Candidatos contra o soviético Tigran Petrosian, em Buenos Aires. Era uma
melhor de 12. O americano ganhou cinco, Petrosian, só uma. Eles empataram
três. Placar final: 6 ½ x 2 ½. Assim, Fischer pôde desafiar o soviético Boris
Spassky, que detinha o título mundial desde 1969. O primeiro jogo ocorreria em
Reykjavik, capital da Islândia, em 2 de julho de 1972. Bobby estava confiante.
Contratou um treinador olímpico para praticar natação e musculação – incluindo
exercícios para fortalecer o antebraço: “Quando eu apertar a mão do russo, quero
que ele sinta para valer”.

Em uma entrevista no talk show de Dick Cavett, meses antes da final, Bobby
simulou no tabuleiro a vitória contra Petrosian na Argentina. Egocêntrico, falava
largado na poltrona e batia as peças com violência no tabuleiro, como se elas lhe
devessem dinheiro. Cavett perguntou: “Se Spassky empatar todos os jogos de
propósito, ele continua com o título. Um Grão-Mestre faria isso?” “Claro que
faria. Mas eu não vou deixar.”

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Ilustração: Vinícius Capiotti/Superinteressante

A data se aproximou. E a mídia deu atenção inédita: após anos de soviéticos


disputando o troféu entre si, a Guerra Fria finalmente seria encenada no tabuleiro.
Spassky, na época com 35 anos, tentou driblar o fuzuê. Seguindo a cartilha de
outros enxadristas soviéticos, chegou a Reykjavik 12 dias antes da final, para se
ambientar. Em sua comitiva havia outros dois GMs, que o ajudariam a bolar
estratégias. Por sua vez, Fischer se refugiou em uma casa isolada em Long Island,
fora dos limites de Nova York. Permaneceu incomunicável até a data do jogo – e
aí deixou o avião decolar para a Islândia sem ele. A Fide, consternada com a
ausência, prorrogou o prazo, mas deu um ultimato: se Bobby não aparecesse nas
próximas 48 horas, o título continuaria com o russo.

O sumiço não era novidade: o americano tinha um caso clínico de paranoia, e já


havia abandonado campeonatos antes dizendo ser vítima de boicote. No caso da
final contra Spassky, a primeira alegação foi que o prêmio (US$ 774 mil em
valores de hoje) não condizia com a importância da partida. James D. Slater, um
banqueiro e fã, dobrou a grana. Até o diplomata Henry Kissinger, assessor sênior
e confidente do presidente Nixon, ligou para Fischer para convencê-lo a aceitar.
A palhaçada ufanista atingiu níveis extraordinários: o enxadrista cedeu e
embarcou em 4 de julho – dia da Independência dos EUA.

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O DUELO

Ilustração: Vinícius Capiotti/Superinteressante

O faniquito virou piada no mundo todo: “Se Fischer gostar da iluminação, não
implicar com o peso das peças, achar boa a distância que os espectadores
manterão e aprovar o ar de Reykjavik, então tudo estará bem. E começará hoje, às
17 horas (de Brasília), o primeiro dos 24 jogos entre ele e Boris Spassky pelo
título mundial de xadrez.” Isso é um texto que saiu na Folha de S. Paulo em 11
de julho de 1972. Sim, na Folha. Xadrez, na época, era assunto para jornal.

Nervoso com a transmissão ao vivo, Fischer deu bobeira no final do primeiro


jogo, pôs um bispo em uma posição ruim e perdeu. Consternado, não saiu do
quarto do hotel para a segunda partida – e os juízes anotaram mais um ponto para
Spassky. Impaciente com o sumido, Spassky concordou em realizar o terceiro
jogo em um quarto de vassouras nos fundos da arena, para tranquilizar Fischer.
Apenas uma câmera de segurança vigiava os dois. E assim Fischer anotou a
primeira vitória. 2 x 1.
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“No Brasil, as jogadas chegavam por telex [aparelho semelhante ao telégrafo]”,


conta Herman Claudius van Riemsdijk, enxadrista brasileiro nascido na Holanda
e três vezes campeão nacional. Ele manteve uma coluna sobre o esporte no
Estadão por mais de 30 anos. “Assim que as informações chegavam, eu corria
para escrever as análises. Em dias de jogo, ajudava também a Rádio Eldorado,
que fazia boletins a cada meia hora.”

A sexta partida, em 23 de julho, é considerada a mais emblemática da história do


xadrez. Fischer começou com as peças brancas, que sempre dão o primeiro lance.
E, quando estava de brancas, ele fazia sempre a mesma coisa: começar andando
duas casas com o peão que fica na frente do rei, na fileira E. É a abertura mais
tradicional do jogo. Nessa ocasião, porém, abriu com o peão da fileira C, a do
bispo. E aí transpôs a partida para algo chamado gambito da dama – quando as
brancas oferecem um peão às pretas no lado esquerdo do tabuleiro (o lado da
dama) em troca de uma posição melhor. Essa é a origem do nome da série da
Netflix: em português, “rainha” é errado – o nome da peça é “dama”.

(Clique no gráfico para ampliar.)

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Foi a primeira vez que Fischer jogou o gambito na vida. Spassky até ouviu boatos
de que isso ocorreria e preparou uma defesa com a qual era invicto. Mas não foi
suficiente. Fischer navegou a estratégia alienígena com perfeição e dominou o
jogo do começo ao fim. Foi aplaudido de pé, inclusive por seu oponente. Dick
Cavett comparou o evento ao Super Bowl, a final do futebol americano. Alguns
jogos passaram a ser transmitidos nos telões da Times Square, em Manhattan.

A dupla jogou outras 14 partidas, que se estenderam até o final de agosto. No


gráfico abaixo, você vê todas as vitórias, empates e derrotas, bem como a duração
dos jogos. No dia 31, eles se encontraram para o 21º confronto. O placar, àquela
altura, era 11 ½ x 8 ½ para Fischer. Spassky precisava no mínimo de um empate
– se o americano ganhasse, faria 12 ½ e levaria o mundial.

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Fischer e Spassky passaram 4h40 no jogo. E aí concordaram em pausá-lo para


pensar e dormir. Quando isso acontece, um dos jogadores anota qual será o
primeiro lance do dia seguinte em um envelope – que só é aberto na hora de
retomar o jogo. Na manhã seguinte, porém, os dois sequer apareceram. Após
ponderar sobre sua posição no tabuleiro, Spassky desistiu por telefone. Fischer
fugiu da imprensa para observar, sozinho, os animais em uma colina nos
arredores da cidade. Ele era o Maradona do xadrez; seu personagem era tão
grande quanto o talento.

(Clique no gráfico para ampliar.)

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O BRASILEIRO
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D
e um dia para o outro, todo mundo quis ser enxadrista. “O número de
membros do clube de São Paulo saltou de 300 para mais de mil”, conta
Herman van Riemsdijk. Mas o verdadeiro fenômeno brasileiro já
estava saindo do forno no Rio Grande do Sul – e calhou de viver o
auge de sua carreira justamente na época em que o jogo viveu esse pico de
popularidade.

Nos anos 1950 – quando os EUA nem sonhavam que venceriam a URSS um dia
–, Herman e a família foram morar em Pelotas. Lá, o jovem holandês começou a
jogar xadrez com um garotinho chamado Henrique Costa Mecking, o Mequinho.
Com 5 anos, o garoto já era um gênio das damas. Com 6, aprendeu xadrez – e se
tornou implacável. Aos 12 anos, Mequinho já era campeão estadual. Faltava o
troféu nacional, que veio no ano seguinte. Em 1971, com 19 anos, venceu o seu
primeiro torneio internacional e foi recebido no Aeroporto do Galeão por uma
bateria de escola de samba da torcida do Flamengo.

O brasileiro Mequinho era o 3º do mundo em 1978


– foi capa da Veja.

No início de 1972, Mequinho se tornou o primeiro Grão-Mestre brasileiro. A


conquista, aliada à proximidade da final Fischer vs. Spassky, fez com que ele
virasse um ícone pop. Em 1973, estampou uma capa da Veja. Franzino, com
cabelo mal-ajambrado e óculos fundo de garrafa, foi o primeiro herói nerd do
Brasil. Herói mesmo. Em 1974, na música “Super-Heróis”, Raul Seixas cantou:
“Quem que no Brasil não reconhece / o grande trunfo do xadrez? / Saí pela
tangente disfarçando uma possível estupidez./ Corri para um cantinho pra dali
sacar o lance de mansinho. / Adivinha quem era? Mequinho!”

Ele chegou a figurar em terceiro lugar no ranking mundial da Fide. Participou


duas vezes do Torneio de Candidatos, mas não teve lance de mansinho: caiu na
primeira fase em ambas.

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Mequinho: aos 19 anos, o prodígio se tornou o primeiro Grão-Mestre brasileiro. Ilustração: Vinícius
Capiotti/Superinteressante

Outro enxadrista que Herman conheceu foi o próprio Fischer. O encontro


aconteceu em Buenos Aires, na já mencionada final contra Petrosian – em que
Fischer se classificou para desafiar Spassky.

Herman saiu do Teatro San Martin, onde um dos jogos da série havia acabado de
acontecer, deu uma passadinha no hotel e rumou em direção ao Clube Argentino
de Xadrez, criado em 1905 (é o segundo mais antigo da América do Sul – só
perde para o de São Paulo, fundado em 1902). O lugar fica em um antigo prédio
de três andares com ornamentos clássicos de ferro nas portas e varandas. É fácil
distingui-lo: na entrada, há o desenho de um cavalo.

Herman estava sozinho em uma ala histórica do edifício quando avistou dois
vultos subindo as escadas. Eram Miguel Quinteros, enxadrista argentino, e
Fischer. O brasileiro já conhecia Quinteros, que tratou de fazer o meio de campo
das apresentações. “Para a minha surpresa, Fischer não só sabia das partidas que
eu já havia disputado, como também detalhes dos meus movimentos”, lembra
Herman. “Tinha uma memória espetacular.”

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Fischer também acabou indo para Tucumán jogar algumas simultâneas e estendeu
o contato com Herman. No jantar de encerramento da competição, eles
conversaram um tempão. “Fischer era reservado e desconfiado. Tinha medo de
que as pessoas pudessem tirar proveito do seu sucesso. Mas, se ele simpatizasse
com você, tornava-se alguém muito afável,” disse o brasileiro, que lamenta não
ter tirado nenhuma foto com o jogador – avesso às câmeras. “O único registro
daquela semana é uma imagem de Fischer observando um jogo comigo, de
costas, atrás.”

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A QUEDA

A
o longo da década de 1970, a fama e a paranoia de Fischer cresceram
no mesmo ritmo. Em 1975, cobrou que a Fide acabasse com o formato
de 24 jogos das finais porque ele estimulava que os jogadores
forçassem empates. A Fide até acatou a exigência, mas eles discordaram nos
detalhes e Fischer não quis defender o título, que caiu automaticamente nas mãos
daquele que seria seu desafiante, o soviético Anatoly Karpov.

Com o tempo, a reclusão aumentou, Bobby parou de frequentar torneios e se


envolveu com uma seita religiosa. Em 1992, Fischer e Spassky jogaram uma
reedição comemorativa da final de 1972. O confronto aconteceu na Iugoslávia –
que, na época, estava no meio de uma guerra que desmembrou o país. O
problema: a presença de Fischer naquele território violaria um embargo das
Nações Unidas, gerando um quiprocó diplomático para os EUA. O governo
enviou uma carta a Bobby, pedindo para que ele não jogasse. Em uma coletiva de
imprensa, ele cuspiu no documento.

Fischer venceu Spassky novamente, embolsou alguns milhões de dólares e nunca


mais pisou nos EUA – havia um mandado de prisão esperando por ele. Passou o
restante de seus anos como um nômade; morou na Hungria e no Japão. Vez ou
outra, aparecia na mídia com opiniões dignas de caixa de comentários do G1: no
11 de Setembro, por exemplo, disse que “já era tempo de os EUA levarem uma
surra”. Em 2005, a Islândia ofereceu cidadania e moradia a Bobby. Ele morreu
em 2008, aos 64 anos, na mesma terra em que se consagrou.
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Fischer, já idoso, ganhou abrigo na Islândia. Morreu em 2008, aos 64 anos. Ilustração: Vinícius
Capiotti/Superinteressante

A carreira de Mequinho também foi interrompida prematuramente, aos 25 anos,


quando descobriu ser vítima de miastenia, uma rara doença autoimune que
compromete a comunicação entre o sistema nervoso e os músculos. Hoje, ele
mora em Taubaté (SP). Quase curado, disputa torneios às vezes. É católico
fervoroso e compartilha com Fischer a genialidade, o trauma dos soviéticos e a
paranoia: “No terreno do xadrez houve muitos crimes e terrorismo”, afirmou em
entrevista à Veja em 2020. “Tentaram derrubar meu avião para as Filipinas,
ameaçaram envenenar minha comida. Não vou citar nomes, mas tem um país
comunista que sempre quis que só os representantes deles fossem campeões.”

O xadrez dificilmente terá de novo a mesma relevância geopolítica dos anos


1970. Mas o jogo está passando por um surto de popularidade graças à pandemia
e à série O Gambito da Rainha. No começo de 2020, segundo a Fide, rolavam 11
milhões de partidas diariamente. O número subiu para 17 milhões.

Muitos jogadores de alto nível atuais (incluindo Grão-Mestres) são youtubers


millennials bem-humorados, que dão aulas em seus canais, fazem memes sobre
lances bizarros e jogam ao vivo contra fãs. Esses novos ídolos têm algo em
comum: todos já postaram um vídeo disputando contra uma inteligência artificial
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do site chess.com que simula Beth Harmon (a personagem tem um estilo próprio
realista, já que a Netflix chamou GMs para criar as partidas da série). Se Bobby
Fischer era o ídolo perfeito para os anos 1970 – um Rocky do tabuleiro vigiado
pela CIA –, então a diva vintage da Netflix é uma heroína talhada para os anos 20
do século 21. Cada geração com seu grande trunfo do xadrez.

Fontes: livros Fischer-Spassky: Move by Move, de Larry Evans e Ken


Smith; Reconstructing Lenin, an Intellectual Biography, de Tamás Krausz; The
Immortal Game: A History of Chess, de David Shenk; documentário Bobby
Fischer contra o mundo, da HBO; site Chess.com e acervos dos jornais Folha de
S. Paulo, O Estado de S. Paulo, The New York Times e das revistas Veja e Time.
Agradecimento: Marius van Riemsdijk, professor e árbitro internacional de
xadrez.

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