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O xadrez como ferramenta heurística

Há quem pense que o xadrez é um simples jogo de tabuleiro, equiparável a tantos


outros: pura ilusão de ótica. O xadrez pode ser, de facto, um mero passatempo para os
milhões de indivíduos que o praticam todos os dias, mas também uma ferramenta
poderosa para compreender melhor a complexidade humana, permitindo a descoberta de
outras realidades. Noutros termos, o xadrez tem a capacidade de ser uma ferramenta
heurística e não faltam exemplos ao longo da história recente a ilustrar esta ideia.

Comecemos no campo da ciência. O xadrez tem sido frequentemente usado como


ferramenta heurística em experiências científicas no sentido de permitir uma melhor
compreensão das atividades cognitivas. Um dos primeiros cientistas a usar o xadrez foi
Alfred Binet. Em 1894, Binet publicou um livro intitulado Psicologia dos grandes
calculadores e jogadores de xadrez, no qual analisava as capacidades cognitivas dos
jogadores de xadrez e muito particularmente as técnicas mnemónicas usadas pelos
mestres para jogarem xadrez “às cegas”. Umas décadas mais tarde, nos anos 40 do
século XX, Adriaan de Groot voltou a usar este jogo para estudar os processos de
pensamento dos jogadores de xadrez. Os resultados desta sua investigação foram
publicados originalmente em holandês em 1946 e traduzidos para inglês em 1965,
dando origem a um livro que ainda hoje é uma referência no campo da psicologia
cognitiva: Thought and choice in chess. Mais recentemente, o xadrez voltou a ser usado
para comparar as capacidades cognitivas humanas com as proezas “inteligentes” da
máquina. O embate entre Kasparov e o computador Deep Blue está ainda bem presente
na memória de todos nós, bem como o resultado final do match de 1997, que deu a
vitória à máquina.

O xadrez mostrou ser uma ferramenta eficaz para testar as capacidades cognitivas bem
como para compreender melhor os motivos inconscientes que se escondem por detrás
dos lances. O primeiro autor a usar o xadrez no âmbito da psicanálise foi Ernest Jones,
num célebre estudo intitulado “O problema de Paul Morphy”, lido inicialmente em 1930
na British Psychoanalytical Society e publicado no ano seguinte. Neste texto, Jones
chama a atenção para o desejo inconsciente edipiano que o jogo veicula, bem como para
a qualidade matemática do xadrez, o que lhe confere um carácter anal-sádico. Estas
ideias foram aproveitadas e expandidas por outros psicanalistas, nomeadamente por
Reuben Fine, que em 1956 publicou um ensaio que se transformou num texto canónico
sobre este assunto: Psychological observations on chess and chess masters.

Lembremo-nos que no jogo de xadrez tudo se centra em torno do Rei. O Rei é a peça
mais poderosa em termos simbólicos, em nome da qual todas as outras peças se movem,
mas também a mais frágil, aquela que tem de ser melhor protegida. Vendo por este
prisma, facilmente se compreende o interesse psicanalítico em torno do monarca. O Rei
é o phalus que todos desejam possuir e jamais perder. Perdê-lo representa a castração, a
humilhação, a efeminização do sujeito perante o poder fálico do pai. Talvez por isso
alguns dos mais célebres jogadores de xadrez tenham perdido o “juízo” no reino do
xadrez, bem como tenham desenvolvido delírios persecutórios em relação ao seu pai.
Paul Morphy, William Steinitz e Bobby Fischer são alguns exemplos bem conhecidos
de um conjunto de jogadores que não lidou bem com esta pressão inconsciente, o que
contrasta com os milhões de jogadores que o praticam todos os dias e que usam o jogo
de xadrez para sublimar os seus desejos ambivalentes mais profundos.
O xadrez pode também ser um meio muito eficaz para compreendermos melhor as
forças “inconscientes” que estão a despontar em determinadas épocas históricas.
Philidor terá sido eventualmente um dos primeiros jogadores a compreender esse
fenómeno, quando umas décadas antes da revolução francesa afirmou: “os peões são a
alma do xadrez”. Os “peões” representam evidentemente, em termos simbólicos, o povo
e a história mostrou de forma bem clara que o xadrez dizia a “verdade”.

Algo de semelhante aconteceu no século XX, no célebre embate entre Boris Spassky e
Bobby Fischer. Quando estes dois jogadores chegaram a Reykjavík em 1972 para
disputarem o campeonato do mundo, os observadores mais atentos rapidamente
perceberam que não se tratava apenas de mais um match, mas sim do combate do
século, do embate que melhor simbolizava a Guerra Fria. O que estava ali em causa era
um confronto entre duas ideologias absolutamente distintas. Spassky representava a
coletividade, o poder do grupo, a glória do conhecimento soviético adquirido ao longo
de várias gerações. Fischer, por sua vez, simbolizava o rasgo individual norte-
americano.

Daí que estes dois jogadores se fizessem acompanhar de equipas tão distintas. Spassky,
quando chegou à capital da Islândia, levava consigo uma vasta equipa constituída por
treinadores, consultores, psicólogos, massagistas, políticos, e diversos outros técnicos.
Fischer, em contrapartida, chegou acompanhado pela sua mãe, um consultor técnico,
que o Grande Mestre norte-americano ignorou durante todo o match, e uma série de
jornalistas. O resultado final é por demais conhecido: Fischer ganhou. Num certo
sentido, foi como se o individualismo derrotasse o coletivismo. Uma vez mais, o xadrez
falava a “verdade”, conseguindo antecipar uma série de transformações que já estavam
em curso, mas que ainda não eram evidentes para a maioria. Uns anos mais tarde não
era apenas a equipa de xadrez que caía aos pés do individualismo capitalista. Era todo o
bloco de Leste!

O xadrez também foi usado recentemente por uma investigadora norte-americana para
compreender melhor a ascensão do poder feminino na Europa medieval. O livro
intitula-se Birth of the chess queen: a history, foi escrito por Marilyn Yalom, e
publicado em 2004. Nesta obra, Yalom debruça-se sobre um mistério que vem há muito
intrigando os historiadores de xadrez: o aparecimento da Dama no xadrez. Para quem
não sabe, a Dama (ou Rainha como comummente é chamada) não existia nas très
versões, indiana, persa e muçulmana, que antecederam a versão europeia deste jogo. No
lugar desta peça, encontrava-se uma figura masculina, uma espécie de conselheiro do
monarca, que tinha sérias limitações de movimento: só podia andar uma casa na
diagonal. Entretanto, por volta do século X, com a chegada do xadrez à Europa através
da invasões muçulmanas, esta peça começa a transformar-se. Inicialmente, muda de
género e progressivamente vai adquirindo poder, até se tornar na peça mais poderosa,
em termos efetivos, em cima do tabuleiro. Atualmente, uma Dama pode movimentar-se
em todas as direções horizontais, verticais e diagonais, e consegue dominar 27 casas do
tabuleiro, praticamente o dobro da Torre.

Esta extraordinária transformação, que levou cerca de cinco séculos a concretizar-se na


sua plenitude, chamou a atenção de Yalom, levando-a a realizar uma investigação
histórica no sentido de a compreender. Do ponto de vista da investigadora, a
transformação da Dama resultou de um conjunto de forças culturais que ocorreram na
Europa durante este período. Em primeiro lugar, as mulheres começaram a ter maior
poder efetivo nos reinos e condados, enquanto companheiras, herdeiras ou mães dos
reis. Em segundo lugar, o culto da Virgem Maria, mãe de Cristo, ganhou por volta do
século XI uma preponderância que não tinha até então, conferindo poder a uma figura
feminina no seio da poderosa Santa Madre Igreja. Em terceiro lugar, o culto do amor
cortês, que deu igualmente à mulher relevância na relação amorosa que não existia
anteriormente. Resumindo, todo este poder, arduamente conquistado pelas mulheres,
durante aquele longo período de tempo, foi absorvido pelo xadrez, permitindo a
emergência de uma nova peça feminina toda poderosa: a Dama “rabiosa”, como na
altura era descrita. Recordemos que a prova material que demonstra a existência desta
peça é um documento escrito por volta de 1480, uns anos antes de Isabel de Castela
subir ao poder para passar a dominar metade do mundo. A outra metade, como bem
sabemos, pertencia, segundo o Tratado de Tordesilhas, aos portugueses, mas isso é
história passada.

Um último exemplo duma área em que o xadrez teve, e continua a ter, poder heurístico,
é a arte. Como todos nós bem sabemos, não faltam exemplos de apontamentos
“xadrezísticos” em filmes, quadros, obras literárias, peças escultóricas. Para citar apenas
alguns exemplos clássicos bem conhecidos, lembremo-nos da Defesa Luzhin, o conto de
Vladimir Nabokov; a partida “imortal” jogada no filme Blade runner, de Ridley Scott;
os Reis e Damas escultóricos de Max Ernest; ou então os quadros “xadrezísticos” de
Maria Helena Vieira da Silva.

Lembremo-nos também de Marcel Duchamp, seguramente um dos artistas mais


decisivos na história da arte do século XX, que dedicou parte significativa do seu tempo
a este jogo. Duchamp chegou à categoria de mestre nacional de xadrez, tendo
representado a França em várias olimpíadas. Ele usou temas de xadrez em vários
quadros. Duchamp escreveu abundantemente sobre este jogo numa coluna de um jornal
que animou durante décadas. Ele criou cartazes para torneios de xadrez, um conjunto de
peças de xadrez, alguns carimbos para poder jogar xadrez por correspondência, um
xadrez de bolso para poder analisar a partida em curso. Enfim, Duchamp viveu
intensamente o xadrez. Por isso não é de estranhar que a sua imagem apareça tantas
vezes associada a este jogo em fotografias. O célebre instantâneo capturado por Juliam
Wasser, em 1963, uns dias antes da inauguração da primeira grande retrospetiva da obra
de Duchamp nos Estados Unidos, no Pasadena Art Museum, no qual podemos ver o
artista a jogar xadrez contra uma mulher despida, é porventura uma das fotografias mais
conhecidas.

É neste âmbito, da arte, e na companhia deste conjunto de ilustres artistas, que se


enquadra o trabalho de Virgínia Goes, Margarida Pimentel e Mafalda Portocarrero.
Estas três criadoras usaram o Jogo dos Reis para dar corpo a um conjunto de peças
extremamente imaginativo e pejado de simbolismo. Sobre os possíveis significados das
peças não me pronunciarei, porque é um território que não domino. Prefiro ficar a
contemplar este belo tabuleiro de xadrez, com as suas intrigantes peças, recitando
mentalmente o soneto do Jorge Luís Borges sobre este tão extraordinário jogo, com
capacidades heurísticas, que tanto nos pode revelar sobre a condição humana.

Tenue rey, sesgo alfil, encarnizada


reina, torre directa y peón ladino
sobre lo negro y blanco del camino
buscan y libran su batalla armada.

No saben que la mano señalada


del jugador gobierna su destino,
no saben que un rigor adamantino
sujeta su albedrío y su jornada.

También el jugador es prisionero


(la sentencia es de Omar) de otro tablero
de negras noches y de blancos días.

Dios mueve al jugador, y éste, la pieza.


¿Qué Dios detrás de Dios la trama empieza
de polvo y tiempo y sueño y agonía?

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