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O xadrez mostrou ser uma ferramenta eficaz para testar as capacidades cognitivas bem
como para compreender melhor os motivos inconscientes que se escondem por detrás
dos lances. O primeiro autor a usar o xadrez no âmbito da psicanálise foi Ernest Jones,
num célebre estudo intitulado “O problema de Paul Morphy”, lido inicialmente em 1930
na British Psychoanalytical Society e publicado no ano seguinte. Neste texto, Jones
chama a atenção para o desejo inconsciente edipiano que o jogo veicula, bem como para
a qualidade matemática do xadrez, o que lhe confere um carácter anal-sádico. Estas
ideias foram aproveitadas e expandidas por outros psicanalistas, nomeadamente por
Reuben Fine, que em 1956 publicou um ensaio que se transformou num texto canónico
sobre este assunto: Psychological observations on chess and chess masters.
Lembremo-nos que no jogo de xadrez tudo se centra em torno do Rei. O Rei é a peça
mais poderosa em termos simbólicos, em nome da qual todas as outras peças se movem,
mas também a mais frágil, aquela que tem de ser melhor protegida. Vendo por este
prisma, facilmente se compreende o interesse psicanalítico em torno do monarca. O Rei
é o phalus que todos desejam possuir e jamais perder. Perdê-lo representa a castração, a
humilhação, a efeminização do sujeito perante o poder fálico do pai. Talvez por isso
alguns dos mais célebres jogadores de xadrez tenham perdido o “juízo” no reino do
xadrez, bem como tenham desenvolvido delírios persecutórios em relação ao seu pai.
Paul Morphy, William Steinitz e Bobby Fischer são alguns exemplos bem conhecidos
de um conjunto de jogadores que não lidou bem com esta pressão inconsciente, o que
contrasta com os milhões de jogadores que o praticam todos os dias e que usam o jogo
de xadrez para sublimar os seus desejos ambivalentes mais profundos.
O xadrez pode também ser um meio muito eficaz para compreendermos melhor as
forças “inconscientes” que estão a despontar em determinadas épocas históricas.
Philidor terá sido eventualmente um dos primeiros jogadores a compreender esse
fenómeno, quando umas décadas antes da revolução francesa afirmou: “os peões são a
alma do xadrez”. Os “peões” representam evidentemente, em termos simbólicos, o povo
e a história mostrou de forma bem clara que o xadrez dizia a “verdade”.
Algo de semelhante aconteceu no século XX, no célebre embate entre Boris Spassky e
Bobby Fischer. Quando estes dois jogadores chegaram a Reykjavík em 1972 para
disputarem o campeonato do mundo, os observadores mais atentos rapidamente
perceberam que não se tratava apenas de mais um match, mas sim do combate do
século, do embate que melhor simbolizava a Guerra Fria. O que estava ali em causa era
um confronto entre duas ideologias absolutamente distintas. Spassky representava a
coletividade, o poder do grupo, a glória do conhecimento soviético adquirido ao longo
de várias gerações. Fischer, por sua vez, simbolizava o rasgo individual norte-
americano.
Daí que estes dois jogadores se fizessem acompanhar de equipas tão distintas. Spassky,
quando chegou à capital da Islândia, levava consigo uma vasta equipa constituída por
treinadores, consultores, psicólogos, massagistas, políticos, e diversos outros técnicos.
Fischer, em contrapartida, chegou acompanhado pela sua mãe, um consultor técnico,
que o Grande Mestre norte-americano ignorou durante todo o match, e uma série de
jornalistas. O resultado final é por demais conhecido: Fischer ganhou. Num certo
sentido, foi como se o individualismo derrotasse o coletivismo. Uma vez mais, o xadrez
falava a “verdade”, conseguindo antecipar uma série de transformações que já estavam
em curso, mas que ainda não eram evidentes para a maioria. Uns anos mais tarde não
era apenas a equipa de xadrez que caía aos pés do individualismo capitalista. Era todo o
bloco de Leste!
O xadrez também foi usado recentemente por uma investigadora norte-americana para
compreender melhor a ascensão do poder feminino na Europa medieval. O livro
intitula-se Birth of the chess queen: a history, foi escrito por Marilyn Yalom, e
publicado em 2004. Nesta obra, Yalom debruça-se sobre um mistério que vem há muito
intrigando os historiadores de xadrez: o aparecimento da Dama no xadrez. Para quem
não sabe, a Dama (ou Rainha como comummente é chamada) não existia nas très
versões, indiana, persa e muçulmana, que antecederam a versão europeia deste jogo. No
lugar desta peça, encontrava-se uma figura masculina, uma espécie de conselheiro do
monarca, que tinha sérias limitações de movimento: só podia andar uma casa na
diagonal. Entretanto, por volta do século X, com a chegada do xadrez à Europa através
da invasões muçulmanas, esta peça começa a transformar-se. Inicialmente, muda de
género e progressivamente vai adquirindo poder, até se tornar na peça mais poderosa,
em termos efetivos, em cima do tabuleiro. Atualmente, uma Dama pode movimentar-se
em todas as direções horizontais, verticais e diagonais, e consegue dominar 27 casas do
tabuleiro, praticamente o dobro da Torre.
Um último exemplo duma área em que o xadrez teve, e continua a ter, poder heurístico,
é a arte. Como todos nós bem sabemos, não faltam exemplos de apontamentos
“xadrezísticos” em filmes, quadros, obras literárias, peças escultóricas. Para citar apenas
alguns exemplos clássicos bem conhecidos, lembremo-nos da Defesa Luzhin, o conto de
Vladimir Nabokov; a partida “imortal” jogada no filme Blade runner, de Ridley Scott;
os Reis e Damas escultóricos de Max Ernest; ou então os quadros “xadrezísticos” de
Maria Helena Vieira da Silva.