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WILLIAM CAREY
“Espere coisas grandes de Deus; tente coisa grandes para Deus”1
Por Charley Fernandes de Souza

1. INTRODUÇÃO.
William Carey é conhecido como o “pai das missões modernas”, tendo vivido em um tempo em
que o movimento missionário protestante alcançou seu ápice com a sua partida para a Índia, no dia
13 de junho de 1793. Sua história impressiona muito, por ter nascido em uma família pobre da
região central da Inglaterra, deixado a profissão de sapateiro e se tornado pastor e depois
missionário na Índia, onde morreu. Ele foi para a Índia como missionário aos 40 anos, sendo
contemporâneo de outros notáveis como David Livingstone, Henry Martin, John Wilson, Alexander
Duff, Adoniram e Ann Judson, Robert Morisson e outros.
Carey esperava que o elogiassem somente depois de sua morte2. Ele era uma pessoa que
rejeitava o “culto à personalidade” e não gostava que falassem bem dele, nem mesmo ficassem a
colecionar “relíquias” de sua infância ou juventude, com a finalidade de projetar sua imagem para o
futuro. Ele mesmo declarou certa vez: “quanto menos falarem de mim, melhor” 3.
O propósito deste artigo é inspirar novas vocações missionárias e contemplar 8 missionários
extremamente relevantes na história das missões. É impossível conhecê-los e não ser contagiado por
estes exemplos tão abnegados pela obra missionária. Primeiro, do nascimento ao pastorado e
segundo, sobre a missão, desafios e realizações que deixou.

2. QUEM FOI WILLIAM CAREY.


UMA CRIANÇA PRECOCE.
William Carey veio a este mundo no dia 17 de agosto de 1762 em uma família de classe média
baixa. Nasceu numa pequena vila de uma cidade igualmente muito pequena da região central da
Inglaterra, chamada Northamptomshire, na mesma região que produzira seu xará William
Shakspere, que fomentara John Wyclif e John Bunyan, de John Newton e Thomas Scott e também
William Cowper, o poeta das missões4. Em Paulerspury havia apenas 800 habitantes (atualmente
7055), vila cercada de matas e campos, um lugar cheio de histórias de bruxaria, fantasmas e
duendes. Seus pais, Edmund e Elizabeth Carey, colocaram seu nome William por causa de sua avó
Ann, que perdera um filho com esse nome, de forma prematura em 1743 6. Edmund trabalhava em
um tear em sua própria casa, o que lhe proporcionava uma vida simples, num tempo em que a
Revolução Industrial estava para eliminar atividades caseiras como esta 7. Quando tinha seis anos de

1 A vida e a obra de William Carey, p.61 – Esta foi a ênfase do sermão de Carey perante as 24 igrejas da região central
que se reuniram em Nottingham, marcando o seu chamado missionário. Ele pregou em Isaías 54.2-4 e derramou seu
coração naquele último dia de maio de 1792.
2 A vida e a obra de William Carey, p.26.
3 Ibid, p.26.
4 Life of William Carey, p.1.
5 https://es.wikipedia.org/wiki/Paulerspury
6 Ibid, p.28.
7 Missões até os confins da terra, p.139.
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idade, seu pai deixou a profissão de tecelão para se dedicar ao ensino em uma escola de caridade na
vila, criada para ensinar as crianças de classe mais baixa a ler e escrever 8.
William era uma criança precoce no sentido de gostar de ler, desde pequeno. Apesar de ser
amado pelos meninos de sua idade, por ser robusto e ativo nas recreações 9, tinha gostos mais
refinados do que meras traquinagens e brincadeiras de meninos. Ele mesmo disse sobre sua leitura
das Escrituras desde pequeno e que estava sempre disposto a aprender. Lia, além da Bíblia, livros
de aventura, ciência e história. Aprendeu a ler periódicos das viagens do capitão James Cook,
explorador, navegador e cartógrafo da Marinha Real Britânica10. Foi lendo esses periódicos que lhe
despertaram o interesse pelas terras distantes e pela geografia 11. Ele era um menino que gostava de
andar pelas matas e, quase sempre, voltava para casa com sapatos e roupas enlameados, tudo para
buscar uma planta nova ou um inseto que lhe chamasse mais a atenção. Em sua casa havia um
pequeno quarto, transformado quase em um laboratório de história natural. Esse lado naturalista o
acompanhou até a morte, como uma paixão que nunca deixou, pois suas cartas e escritos estão
repletos dessas curiosidades12. Ele gostava de receber de presente raízes, bulbos, conchas bonitas ou
feias, caranguejos, e plantas parasitas. Certa vez, disse: “escolhi ler livros de ciência, história,
viagens, etc... Romances e peças de teatro me davam nojo e eu os evitava tanto quanto os livros de
religião, e talvez pelo mesmo motivo” 13. Certamente, ainda não havia se convertido quando disse
essas palavras.
UM HABILIDOSO SAPATEIRO
Os jovens começavam a trabalhar cedo naquele tempo. Carey, que tinha o sonho juvenil de ser
jardineiro, viu sua aspiração ser interrompida por suas constantes crises alérgicas14 e por uma
doença na sua pele, que se irritava após longa exposição ao sol 15. Por isso, ao invés de trabalhar
como jardineiro, acabou se dedicando a uma atividade que lhe permitisse trabalhar dentro de casa.
Aos 14 anos foi trabalhar em Clark Nichols como aprendiz de sapateiro, começando com o furador
e fôrma de sapateiro. Essa profissão supriria seu sustento até os seus 28 anos.
Os sapateiros tinham certo destaque naquele tempo, trabalhando com artefatos de couro para as
pessoas em geral, suprindo lojas de sapatos e até exportando seus produtos para lugares distantes.
Carey aprendeu essa profissão com rapidez e se tornou muito hábil.
Há um aspecto surpreendente da providência de Deus, ao torná-lo sapateiro, pois ela “o ligou
assim aos primeiros missionários latinos de Alexandria, da Ásia Menor e da Gália, que eram
sapateiros, e a uma sucessão de eruditos e teólogos, poetas e críticos, reformadores e filantropos,
que usaram a vida de sapateiro para se tornarem ilustres”. Pode-se citar “Hans Sachs, o sapateiro de
Nürnberg, amigo de Lutero, o cantor da Reforma e também outro sapateiro alemão, Boehme, cuja
exaltada teosofia exposta por William Law tornou-se um elo na cadeia que atraiu Carey para Cristo,
influenciando Wesley e Whitefield, Samuel Johnson e Coleridge. George Fox tinha apenas
dezenove anos quando, após oito anos de serviço com um sapateiro em Drayton, Leicestershire, não
muito longe do condado de Carey, ouviu a voz do céu que o enviou, em 1643, para pregar a justiça,
a temperança e o julgamento por vir”.16

8 Ibid, p.29. História do movimento missionário, p.235.


9 Life of William Carey – Shoemaker & Missionary, p.2,3
10 https://pt.m.wikipedia.org/jamescook
11 História do movimento missionário, p.235.
12 A vida e a obra de William Carey, p.30.
13 Life of William Carey, p.3.
14 Missões até os confins da terra, p.139.
15 A vida e a obra de William Carey, p.31.
16 Life of William Carey, p.4,5.
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Mas, como ele mesmo disse mais tarde, “seu coração não estava nisso”. Certa vez, convidado
para um jantar na casa do governador da Índia, um dos convidados perguntou a um empregado da
casa se Carey não havia trabalhado fabricando sapatos, ao que respondeu: “Nem sequer isto, meu
senhor; eu só os consertava”17. Apesar de ter sido um bom sapateiro, certamente teria gostado mais
de animais vivos do que de dar formas novas ao couro de animais mortos. Certamente, o efeito de
suas leituras sobre povos distantes e geografia já começava a incomodar.
UMA PESSOA INTERIORMENTE TRANSFORMADA
Certa vez, Carey declarou que, apesar de sua criação sob os moldes da religião anglicana, era
completamente ignorante do meio de salvação por Cristo. Confessou que, até seus 14 anos, não
havia ouvido falar nada sobre a religião real e experimental 18. Ou seja, apesar de participante dos
cultos na igreja anglicana sob a orientação do seu pai Edmund, escrivão da paróquia, não havia
nascido de novo em Cristo.
Sua conversão verdadeira a Cristo se deu pela insistência de um companheiro de trabalho na
sapataria, um rapaz chamado John Warr, membro de uma família de dissidentes, reformadores
ingleses inconformados com a igreja anglicana, que fundaram igrejas “livres”. Este jovem era
persistente em dar testemunho de Cristo ao seu colega Carey, a ponto dele mesmo registrar que “ele
o importunava... emprestando-me os muitos livros que tinha em casa, que lentamente operaram uma
mudança em meu pensamento, e minha inquietação interior aumentou” 19, de tal forma que duas
coisas o perturbavam muito: sua condição de pecador e sua incapacidade de salvar-se a si mesmo. À
medida em que tomava consciência dos seus pecados, como o hábito de falar palavrões, mentir e
falar coisas obscenas, havia também uma tentativa moralista de reformar-se, com a decisão de
mudar suas palavras e mentiras, contudo, sem efeito maior.
O impacto maior promovido por Deus em sua vida, para sua conversão foi quando fez algumas
compras em Northampton e pagou com o “xelim” (moeda antiga do Reino Unido) falso. Ao
retornar para sua casa, foi tomado por um profundo senso de culpa, orando a Deus para que o
perdoasse. Mas já era tarde, pois, “o Deus bondoso não me deixou escapar desta. Eu logo concluí
que toda a vila sabia do meu roubo. Encondi-me de todos, tanto quanto eu podia, e fiquei tão
coberto de vergonha que levou bastante tempo até que eu saísse de novo”, disse ele mais tarde20.
Carey compreendeu que era necessária uma transformação muito mais profunda do que ele mesmo
poderia operar. Outros problemas e diversas conversas com cristãos mais maduros o conduziram a
uma dependência total de Cristo, para seu perdão, salvação e busca de um sistema de doutrinas na
Palavra de Deus, a partir desse dia marcante21.
Após a sua conversão, Carey e John Warr, seu companheiro de sapataria, insistiam com os
outros a se renderem a Cristo. E Carey começou justamente com seus parentes, se dispondo a orar
por eles, sempre de forma insistente e até impaciente. Polly, sua irmã, disse certa vez que imaginava
que ele considerasse os da família mais sujos que ele próprio. Para Carey a evangelização era a
força motora de toda pessoa que foi libertada das trevas para a luz de Cristo. Nesses dias abraçou a
dissidência batista, tempo em que mais de 2.000 pastores foram demitidos da Igreja Anglicana por
não concordarem integralmente com o Livro Comum de Oração e também não buscarem
reordenação por um bispo anglicano. As penas aos insubordinados eram duras, como aconteceu
com John Bunyan, que foi preso durante doze anos e também George Fox, trancafiado no castelo de
Scarborough, exposto ao vento, chuva e frio. Os Dissidentes eram infamados pelos oficiais e

17 Ibid, p.31.
18 Ibid, p.32.
19 Ibid, p.32.
20 A vida e a obra de William Carey, p.33.
21 Life of William Carey, p.5,6.
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membros da igreja anglicana como “mendigos infames em rebelião”. Mas essas perseguições não
desanimaram Carey, que se firmou ainda mais na fé, levando sobre si essa vergonha por amor a
Cristo, como pregava sempre Thomas Chater, que muito influenciou Carey na sua decisão de seguir
a Dissidência. Dizia ele: “Portanto, saiamos até ele, fora do acampamento, suportando a desonra
que ele suportou”22 (Hb 13.13). Assim, foi batizado no dia 05 de outubro de 1783, no rio Nene,
oficiado por John Ryland Júnior, juntamente com três diáconos da igreja College Lane 23.
UM PASTOR RESPEITÁVEL E PERSISTENTE
Após seu batismo em 1783, Carey se dedicou ao pastorado durante dez anos, antes de partir para
a Índia. Ele se tornou um respeitável pastor durante este tempo. Foi nessa década que ele se casou
com Dorothy Plackett, especificamente em 10 de junho de 1781, na igreja de Piddington. Ele tinha
19 anos e ela 24, cinco anos mais velha que ele. A lei permitia que se casassem tão novos, a moças
com 12 e os rapazes com 14 anos. Como Dolly (carinhosamente chamada por Carey), tinha
“passado da idade” de se casar, surgiram fofocas na vila em torno de como o jovem Carey a teria
salvo de “ficar para titia”. Nasceu a primogênita Ann, nome da avó e da irmã de William, vindo
morrer de febre no seu segundo ano de vida.
Nesta mesma década, Carey adoeceu da mesma febre, tendo que receber os cuidados de sua mãe
Elizabeth, visto que sua esposa estava angustiada. Como se não bastasse, quando estava melhorando
da febre, recebeu a notícia da morte de Thomas Old, deixando sob sua responsabilidade sua
cunhada viúva e seus quatro filhos. Se as dificuldades financeiras eram duras, se tornaram ainda
mais. Por isso, para completar a renda, abriu uma escola noturna para crianças da vila de
Piddington. Vendia sapatos durante o dia, ensinava à noite e pregava aos domingos. Ele recebia
cerca de dez libras por ano em Moulton. Segundo Eustace, seu primo e primeiro biógrafo, desistir
não era uma característica de Carey. Disse Carey sobre essas dificuldades: “Se, depois que eu for
levado, alguém achar que vale a pena gastar seu tempo para escrever a minha vida, eu vou lhe dar
um critério para que você possa julgar se ele é correto: Se ele me der crédito como um trabalhador,
ele estará sendo justo. Qualquer coisa além disso, será demais. Eu sei trabalhar. Eu sei perseverar
em perseguir qualquer alvo definido. A isto eu devo tudo” 24.
Seu ministério começou com um convite mais direto de John Sutcliff, pastor de Olney, pois, até
o momento ele não estava ligado a nenhuma igreja oficialmente. A igreja batista de Olney era uma
das mais prósperas da região central da Inglaterra, que remontava a John Bunyan, tendo começado
suas reuniões num galpão no ano de 1672. Olney tinha espaço para acomodar facilmente cerca de
700 pessoas sentadas25.
Merece também um registro especial as diversas reuniões de oração ocorridas no ano de 1784,
buscando derramamento do Espírito Santo sobre os pastores e igrejas, conversão dos pecadores,
edificação dos crentes, reavivamento do interesse na religião cristã e glorificação do Nome de Deus.
As igrejas se dedicaram à oração e ao jejum de forma conjunta nos dias 9, 13, 19 de julho e também
em 6 de dezembro e 7 de março de 1785. O movimento de oração encontrou receptividade não
somente em Northamptonshire, mas também entre os batistas de Yorkshire e os congregacionais de
Warwickshire. Carey participava tanto em sua igreja, como em outros locais26.
A paróquia de Olney tinha John Newton, o capitão do navio de escravos que se converteu e que
se tornou seu pároco por 15 anos, juntamente com William Cowper, ambos editores dos Hinos de
Olney, entre os quais se destaca Amazing Grace. Em 17 de junho de 1785 pregou seu sermão para
22 A vida e a obra de William Carey, p.36.
23 Ibid, p.38.
24 A vida e a obra de William Carey, p.43.
25 Ibid, p. 43.
26 A vida e a obra de William Carey, p.83.
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avaliação pela igreja e a reação de Sutcliff não foi boa, submetendo Carey a novo exame em 16 de
junho de 1786, sendo que neste, obteve votação unânime e favorável à sua ordenação. Em 1787 ele
foi demitido da igreja de Moulton, com vistas à sua ordenação em Olney naquele mesmo ano, em 1º
de agosto de 178727.
Uma das características do pastorado de Carey era o seu amor e atenção constante pelas pessoas.
Ele mesmo disse: “O pastor precisa ter sempre um caráter de um professor, um mentor, tanto ao pé
da lareira como no púlpito. A importância das coisas com que lidamos deve sempre encher nossas
mentes, nossos estudos pessoais, nossas orações a Deus, nossos esforços no púlpito. A Palavra de
Deus (...) que nunca brinquemos com coisas tão importantes” 28. Quando sua vila foi assolada por
varíola, visitou os doentes e os confortou profundamente.
Um dos seus maiores anseios em Moulton era o alcance dos pagãos pelo evangelismo. Há vários
registros de reuniões de pastores ocorridas entre 1787 a 1790 tratando deste tema de forma
recorrente e por horas. Ele procurava saber de tudo sobre terras distantes e povos estranhos. Andrew
Fuller, pastor de Kattering, lhe fez uma visita em Moulton e, ao entrar em sua oficina de sapatos, se
deparou com um grande mapa mundial na parede, com a população, religião e outras características
de cada país. Ele foi reunindo material, até escrever e publicar um livro em 1792, com o título: Uma
investigação da obrigação dos cristãos de usar meios para a conversão dos pagãos, em que são
considerados a situação religiosa das diferentes nações do mundo, o sucesso de empreendimentos
anteriores e a probabilidade de empreendimentos futuros. Essas coisas encheram o coração de
Andrew Fuller de admiração naquele dia 29. Provavelmente, o texto que mais o movia neste afã
missionário era Isaías 62.1: “Por amor de Sião, não me calarei e, por amor de Jerusalém, não
descansarei”, disse sua irmã, após ouvir uma mensagem dele.
Para evidenciar ainda mais sua persistência, Carey insistiu no assunto com Fuller, Sutcliff e
Ryland que, finalmente, se deixaram convencer por seus argumentos. Fuller mesmo testemunhou:
“Ele falava com cada um de nós até nos deixar impressionados” e também, “ele não desistia” 30. Ou
seja, já era possível ver, claramente, o nascedouro das suas convicções missionários futuras em
direção à Índia.
Seu ministério em Moulton também foi marcado por muito estudo das Escrituras e também das
línguas, tanto originais das Escrituras, quanto francês e holandês. Já havia aprendido latim sozinho,
grego quando trabalhava na sapataria de Clarke Nichols e aprendeu hebraico com seu amigo pastor
John Sutcliff. Realmente, ele era genial para aprender línguas. Dizia que, não era necessário ser
muito talentoso para aprendê-las, pois se houvesse dedicação por um espaço de um ou dois anos,
poderia aprender qualquer uma delas31. Mal sabia ele que esta era uma habilitação divina deveras
útil em seu trabalho na Índia, onde traduziria a Bíblia para perto de 40 línguas e dialetos jamais
antes usados para este fim.
Em seu último ano de pastorado em Moulton, apareceram dois colaboradores muito
importantes, que marcariam seu ministério profundamente adiante. Primeiro, Tomas Grotch,
diácono da igreja de Andrew Fuller, que lhe garantiu uma oferta de 10 xelins mensais, não mais
para prestar serviços de sapateiro, mas dedicar-se aos seus estudos de latim, hebraico e grego.
Segundo, o também diácono Thomas Potts, conhecido de uma visita de Carey a Birmingham. Potts,
igualmente a Carey, era contrário ao comércio de escravos e ficou impactado em ouvir Carey
discorrer sobre seu desejo de alcançar esses povos, começando com as ilhas dos mares do sul, lidas

27 Life of William Carey, p.11.


28 A vida e a obra de William Carey, p.46.
29 A vida e a obra de William Carey, p.49.
30 Ibid, p.50.
31 Ibid, p.52.
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no diário do capitão Cook. Potts leu o artigo missionário de Carey e, imediatamente o incentivou a
publicá-lo, doando 10 libras para esta publicação.
Em 2 de abril de 1789 a igreja batista de Moulton registra o convite da igreja de Leicester a
Carey para ser seu pastor. Ele mesmo disse sobre o convite: “Se eu pensasse somente nas coisas
mundanas, iria sem hesitar, mas quando reflito sobre a situação das coisas aqui, não sei o que
fazer”. Isso evidenciava seu amor pelo pequeno rebanho de Moulton e também suas profundas
raízes fincadas ali. Apesar de relutante, aceitou o convite de Leicester. Ele se mudou para uma
casinha simples da igreja de Harvey Lane. Seus ganhos ainda estavam pequenos e teve que
continuar a fazer sapatos e dar aulas, até porque, Dolly estava grávida.
Em Harvey Lane, seu ministério ia bem, envolvendo-se com um grupo de ativistas humanitários
e pôde se dedicar mais aos estudos. Muito metódico em seus estudos, registrava o conteúdo
estudado a cada dia da semana, começando com tradução na segunda, ciência e história na terça,
pregação na quarta. Ele mesmo registrou que pregou o livro de Apocalipse durante 12 meses 32. Até
que soube que, nos três anos anteriores a ele, haviam passado igualmente três pastores. O número
dos membros começou a diminuir e também as arrecadações, tudo por uma divisão interna acerca
do uso da Lei Moral, se era ou não obrigatória – antinomianismo. Na prática, os membros e alguns
diáconos eram influenciados por essa tendência a levar uma vida libertina e indisciplinada. Por isso,
a liderança da igreja decidiu extinguir a igreja e começar de novo, exigindo de cada novo membro
um compromisso formal com a doutrina da igreja e também a manter a disciplina da igreja como
uma marca de sua vida saudável. O impacto dessa correção doutrinaria e disciplinar foi tão grande
que o pastor da igreja anglicana perguntou a Carey se ele estava a “roubar ovelhas dos outros”, ao
que respondeu: “Fui instrumento para converter mendigos que varrem as ruas, e não fazer
proselitismo com as pessoas melhores e mais ricas nas comunidades dos outros”. A igreja teve que
fazer uma galeria nova para acomodar as multidões que vinham de várias cidades ao redor também.
No seu segundo ano em Leicester, Carey e Dolly perderam sua segunda filha. A mortalidade
infantil era grande naquele tempo. Em todas as cartas que escreveu, mencionou a perda dessas duas
crianças muito queridas.
UM PASTOR CHAMADO PARA AS MISSÕES
A primavera de 1791 foi marcada pelo culto de posse formal de Carey em Harvey Lane, com a
presença dos amigos Fuller, Ryland e Sutcliff, com a pregação de Samuel Pearce, (a quem conheceu
naquela mesma noite) em Gálatas 6.14 – Quanto a mim, que eu jamais me glorie, a não ser na cruz
de nosso Senhor Jesus Cristo, por meio do qual o mundo foi crucificado para mim e eu para o
mundo. Esses dois jovens pastores bem que poderiam ter se tornado famosos como pregadores em
seu tempo, se este fosse seu maior interesse. Mas eles eram mais dispostos a servir a Deus que aos
seus próprios interesses.
No dia 27 de abril de 1791, em Leicester Carey organizou uma sociedade para propagar o
evangelho em terras ainda não evangelizadas e Andrew Fuller foi o pregador no culto de
organização dessa agência missionária, pregando um sermão intitulado O perigo do adiamento, em
Ageu 1.2. Visivelmente, Fuller estava contagiado com a empolgação e disposição de William
Carey.
Apesar disso, os pastores de Northamptomshire, em Clipstone, não estavam prontos a dar esse
passo ousado, mesmo após a impactante mensagem de Fuller sobre o perigo do adiamento. Ele
imprimiu seu artigo sobre a investigação33, vendido por um xelim e seis centavos o exemplar, na

32 Carta enviada para seu pai no dia 12/11/1790 – A vida e obra de William Carey, p. 55.
33 Página 5.
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tentativa de influenciar mais pessoas. George Smith chamou seu artigo de “o primeiro e maior
artigo sobre missões em língua inglesa”34.
No último dia de maio de 1792, um ano depois que Carey leu seu artigo para Sutcliff, Ryland,
Fuller e Pearce, as 24 igrejas associadas estavam novamente reunidos para orar e para cultuar a
Deus. Carey pregou um sermão em Isaías 54.2-4 (Sociedade Bíblica Britânica) – Alarga o lugar da
tua tenda, e estendam-se as cortinas das tuas habitações; não o impeças; alonga as tuas cordas, e
firma bem as tuas estacas. Porque trasbordarás para a direita e para a esquerda; e a tua
posteridade possuirá as nações e fará que sejam habitadas as cidades assoladas. Não temas. Carey
derramou seu coração neste sermão, falando dos diversos imperativos do texto de Isaías 51,4 até
54.4. Disse ele, pregando: “O chamado para missões aqui é enunciado numa linguagem que ecoa
por todo o Novo Testamento: montanhas que ficam bonitas com os pés dos mensageiros que trazem
boas novas e anunciam a salvação, arautos do Rei que proclamam: ‘O teu Deus reina!’ (Isaías
52.7)”35.
Carey estava profundamente impactado com a obra de Cristo anunciada desde os tempos
antigos e com o crescimento que Deus faria nesse tempo de alargamento da tenda da Igreja. O
pastor Ryland disse que ele terminou seu sermão com a seguinte sentença: “Espere coisas grandes
de Deus; tente coisas grandes para Deus”.

Na manhã seguinte à pregação, todos estavam reunidos para tratar de coisas da associação,
ainda muito impactados com a pregação de Carey, contudo, ainda hesitantes. No momento em que
deveriam tomar a decisão, Carey agarrou o braço de Fuller, dizendo em voz alta: “Não há mais nada
a ser feito, senhor?”. Este é o momento mais marcante do chamado de William Carey e também da
história das missões modernas, em busca da evangelização do mundo. Foi por causa dele que
Andrew Fuller propôs a seguinte resolução, em nome da Associação Batista de Northamptonshire:

Foi resolvido que seja elaborado um plano até a próxima conferência de pastores em Kettering para a formação
de uma sociedade batista para a pregação do evangelho entre os pagãos.36

A partir dessa resolução, foi desencadeada uma série de eventos, chegando até a fundação da
primeira sociedade missionária para a evangelização de não cristãos. Essa Sociedade faz parte de
um quadro de preparação providencial pelo qual a Igreja de Jesus Cristo foi despertada de um longo
sono e reavivada para cumprir sua missão no mundo. Porém, antes de destacá-los, há que se pontuar
os vários desafios a serem enfrentados.

3. OS DESAFIOS QUE ENFRENTOU.


CINCO IMPEDIMENTOS NO CAMPO.
Para Carey havia cinco impedimentos no caminho de levar o Evangelho aos pagãos: (1) Sua
distância de nós – sobre esse ponto, argumentou sobre as facilidades de navegação daquela época e
também sobre as rotas de comércio já abertas e em pleno uso; (2) Sua barbárie – deveria servir de
motivação para promover o bem a esses bárbaros. Se esse argumento fosse prevalecer, os apóstolos
jamais teriam saído de Jerusalém. Pelo contrário, lugares que não foram dominados pelos romanos,
o foram pelo cristianismo. Por estarem sem o evangelho, governo, leis, artes e ciência, isso deve ser
um motivo a mais para alcançá-los; (3) O perigo de ser morto por eles – argumentou sobre a
possibilidade de estes terem recebido motivo justo para estas agressões. Por isso, citou o exemplo
34 A vida e a obra de William Carey, p.60.
35 Ibid, p.60,61.
36 Ibid, p.63.
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dos missionários Morávios que, raramente foram molestados em missão; (4) A dificuldade de
procurar as necessidades da vida – Segundo Carey, um ministro cristão é uma pessoa que, num
sentido peculiar, não é dele; ele é o servo de Deus e, portanto, deve ser inteiramente dedicado a Ele.
Ao entrar nesse ofício sagrado, ele se compromete solenemente a estar sempre envolvido, tanto
quanto possível, na obra do Senhor, e não a escolher seu próprio prazer, ou emprego, ou perseguir o
ministério como algo que serve aos seus próprios fins, ou interesses. Ele se compromete a ir aonde
Deus quiser, e a fazer ou a suportar o que ele ordenar no exercício de sua função. Ele praticamente
se despede de amigos, prazeres e confortos e está pronto para suportar os maiores sofrimentos na
obra de seu Senhor e Mestre. Assim os apóstolos agiram, nos tempos primitivos e suportaram a
dureza, como bons soldados de Jesus Cristo; e embora nós, vivendo em um país civilizado onde o
cristianismo é protegido pela lei, não sejam chamados a sofrer estas coisas enquanto continuamos
aqui, ainda assim eu questiono se todos estão justificados em permanecer aqui, enquanto tantos
estão perecendo sem meios de graça em outras terras; (5) A ininteligibilidade de suas línguas –
Segundo Carey, os missionários devem ter paciência e se misturar com o povo, até que tenham
aprendido muito de sua língua a ponto de poder comunicar suas ideias a eles. É bem conhecido não
exigir talentos muito extraordinários para aprender, no espaço de um ano, ou dois, no máximo, a
linguagem de qualquer povo na terra, tanto assim, pelo menos, para ser capaz de transmitir
quaisquer sentimentos que desejamos. Quando chegarem ao local de seu destino, sua primeira
atitude deve ser conhecer o idioma dos nativos (para o qual dois seriam melhores do que um) e, por
todos os meios legais, esforçar-se para cultivar uma amizade com eles, e, assim que possível,
informá-los sobre a missão para a qual foram enviados. Eles devem esforçar-se para convencê-los
de que foi apenas o seu bem que os induziu a abandonar seus amigos e todos os confortos de seu
país natal.37
DIVERGÊNCIAS TEOLÓGICAS.
Outro desafio enfrentado por William Carey foi no contexto batista, por causa das diferenças de
entendimento sobre a teologia de missões. Os batistas ingleses estavam divididos em dois grupos –
“particulares” e “gerais”. Os “gerais” rejeitavam as doutrinas calvinistas do pecado original e da
eleição predestinada. Por essa causa, muitos deles acabaram por negar a divindade de Cristo e a
doutrina da Trindade, por causa de sua teologia racionalista. Por se recusarem subscrever a
confissão trinitária, muitos deles se tornaram unitarianistas ou unitaristas. Bunyan, Benjamin
Keach, William Carey, Fuller, Ryland Jr, Pearce e Sutcliff pertenciam ao grupo dos “particulares”
ou calvinistas. Certa vez, em um encontro de pastores, John Ryland pai pediu que os colegas
propusessem um tópico para discussão e Carey propôs que discutissem sobre “a obrigação dos
cristãos de tentar difundir o evangelho entre as nações pagãs”. Ryland ficou visivelmente atônito e
repreendeu Carey dizendo: “jovem, sente-se! Quando Deus quiser converter os pagãos, ele o fará
sem a sua ajuda ou a minha”. Segundo o testemunho de alguns, Ryland chamou Carey de
“entusiasta miserável”, com base nesses argumentos calvinistas, que o próprio Carey admitia e
seguia. Fuller, contudo, adotou três formas de lidar com essa questão de aproximar-se do não cristão
para pregar: primeiro, estudar textos que falavam da necessidade de arrependimento dos pecadores;
segundo, ler sobre homens como Eliot e Brainerd, que não tinham inibição de pregar aos perdidos;
terceiro, sua descoberta da Investigação da liberdade da vontade, de Jonathan Edwards. Ele
concluiu que o calvinismo e o evangelismo são harmonizáveis, não contraditórios. A decisão de não
crer resultava de uma incapacidade moral, que era resultada da capacidade humana pervertida,
segundo Edwards.
Por isso, Fuller escreveu um artigo contendo estes pontos de vista.. Obviamente que, tanto
arminianos como hipercalvinistas expuseram Fuller ao ridículo, mas, Carey recebeu seu
37 Life of William Carey, p.16-19.
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posicionamento com proveito, fundamentando a visão missionária moderna por decorrência. O


cerne dessa visão que está resumido na frase de Fuller, era: “Evangelho digno de inteira aceitação”.
E Carey iria desenvolver sua visão missionária baseada nessas convicções básicas: Se os pecadores
são “obrigados” a se arrepender e crer em Cristo, será que não havia outra “obrigação”, a saber, se
os cristãos já libertos da escuridão não eram “obrigados” a apresentar o ensino de Cristo aos que
nunca ouviram. Fuller era o teólogo e Carey o visionário e ativista do despertamento missionário.
Carey tinha em sua estratégia três fundamentos, antes de qualquer atitude de sua parte: 1)
Oração – oração fervorosa e unida como um pré-requisito indicado por Deus para o reavivamento,
parafraseando Zacarias 4.6, nem por força, nem por violência, mas pelo derramamento do Espírito
Santo; 2) Planejamento – é preciso um grupo sério de cristãos, missionários devem ser recrutados,
avaliados e enviados, é preciso reunir informações sobre o campo e desenvolver uma estratégia para
a missão. Segundo ele, é melhor desenvolver essa estratégia dentro das estruturas eclesiásticas em
sua denominação, mas todos os cristãos evangélicos devem atender o chamado para “passar à
Macedônia”; 3) Doação – o empreendimento missionário precisam de cristãos que doem recursos
com liberalidade, mas também cada cristão tem algo a oferecer. Mesmo que seja apenas um centavo
por semana, deve-se desenvolver o hábito de levantar esses recursos nas igrejas. “Se todos os
cristãos dessem o dízimo do que ganham, haveria abundância de recursos para sustentar o
ministério do evangelho em casa, bem como patrocinar a causa de Cristo além-mar”, disse Carey.
UMA ESPOSA RESISTENTE.
Um dos maiores problemas que enfrentou foi com sua própria esposa. Ela se posicionou claramente
contra a ida para a Índia38. Ela estava grávida e estava decidida em não partir. Contudo, após o
adiamento da primeira viagem, ela escreveu uma carta a Carey relatando o parto bem sucedido, o
que alegrou muito seu coração. Realmente era difícil partir com três crianças de 9 anos e uma
recém-nascida. Por fim, ela concordou com a viagem, sob a condição de levar sua irmã. Contudo,
mesmo na Índia, Dolly, como Carey carinhosamente a chamava, continuava uma pessoa de difícil
convencimento e trato. Apesar de não deixar transparecer, Carey sofreu muito com seu abatimento
constante, amargura, queixas, brigas e “língua venenosa”, nas palavras de George Smith 39. Apesar
de muitos quererem que fosse internada em um asilo, Carey sempre a tratou com cortesia e
amabilidade, cuidando dela até a sua morte. Sua persistência marcante também se evidenciou com
sua esposa e família. Se ela não se saiu bem na avaliação como esposa de Carey, não foi pelas
palavras do seu marido, mas dos biógrafos.

4. O LEGADO DE WILLIAM CAREY.

Em 1793 foi consagrado como missionário para Bengala, na Índia, junto com John Thomas. A
sociedade missionária concluiu em 9 de janeiro de 1793, após uma reunião de oração pela manhã,
que Carey e Thomas seriam seus missionários na Índia. Eles caíram nos braços um do outro,
chorando muito pela decisão40. Mais tarde, Fuller disse:

Pelos relatos do Sr. Thomas, vimos que havia uma mina de ouro na Índia, mas ela parecia ser quase tão
profunda como o centro da terra. Quem se arriscará a explorá-la? “Eu irei descer”, o Sr. Carey disse aos seus

38 A vida e a obra de William Carey, p. 128.


39 Ibid, p. 211.
40 Ibid, p.114.
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irmãos, “mas lembrem-se de que vocês têm de segurar as cordas”. Nós nos comprometemos solenemente a fazer
isto; não o abandonaríamos enquanto vivêssemos.41

Com isso, a data de partida foi marcada para 3 de abril de 1973. Essa decisão foi comunicada à
Dolly, sua esposa, que, imediatamente se recusou a ir. Mas ela acabou consentindo que Carey fosse
e levasse Félix, o filho mais velho deles, assumindo o compromisso de voltar para buscar o restante
da família em dois ou três anos. A propósito, o casamento de Carey com Dorothy foi bastante
problemático, especialmente por suas angústias constantes e resistência ante a visão missionária de
seu marido42. Eles já tinham três filhos e mais um estava a caminho. A primeira tentativa de
embarcar foi adiada para o dia 13 de junho de 1793, agora com Dolly e toda a família, incluindo a
irmã de Dorothy, Katherine Plackett, como condição imposta a Carey, que aceitou. John Thomas
escreveu que Dolly “era como a esposa de Ló”43, ficava olhando para trás, até que passassem o
Cabo da Boa Esperança. Dali em diante, ela passou a olhar para frente, em direção à Índia. Foram
longos cinco meses no mar, entre ventos fortes, tempestades e consertos.

Ao chegar na Índia, Carey pôs em prática dois fundamentos de sua missão: 1) Colocar-se em
igualdade às pessoas as quais ministrava; 2) Conseguir meios de se manter. Ele foi para uma região
de mata fechada em Debata, região de Sudarbans, perto de Calcutá. Para lá ele foi com sua esposa
doente, a cunhada infeliz, um bebê de colo e outros três filhos com menos de dez anos, tendo
também que conviver com tigres, leopardos, rinocerontes, antílopes, búfalos, etc. Depois, os Carey
se mudaram para Mudnabatty no verão de 1794, um povoado a 50 quilômetros de Malda, na
margem do rio Tangan. Lá, trabalhou numa plantação de índigo. Ao descrever esses trabalhos todos
em carta à Sociedade Missionária, os membros mais jovens, que não o conheciam pessoalmente,
questionaram seus interesses, insinuando que ele queria “ficar rico”. Esta insinuação fez Carey ficar
muito ofendido, enviando uma resposta com as seguintes palavras: “Eu sou pobre e continuarei
sendo, até que a Bíblia seja publicada em bengali e hindustani” 44. A Sociedade enviou ajuda a
Carey em 1796, na pessoa de um jovem chamado John Foutain. Em outubro de 1796, ele registrou
os trabalhos de tradução de Carey no Novo Testamento, dizendo que já estava quase no fim.
Registrou também que Carey lia e pregava um capítulo todo dia a cerca de cinquenta indianos.
Foutain registrou: “Ele parece mesmo com a pessoa que ele descreve em suas publicações, onde ele
diz: Um ministro cristão é uma pessoa que, em certo sentido, não pertence a si mesma; ele é um
servo de Deus e por isso deve ser totalmente dedicado a ele” 45. Em 1797 completou a primeira
versão de sua tradução do Novo Testamento para o bengali. Em 1799, seu trabalho com a produção
de índigo na fazenda em Mudnabatty ficou impraticável e se mudou para Kidderpore, vinte
quilômetros distante. Mais tarde, registrou que “trabalhava demais e avançava centímetros” 46. Mas
“manteve suas mãos no arado, certo de que um dia Deus daria o crescimento”, disse ele às suas
irmãs, numa carta datada de 10 de abril de 1796.

Em 10 de janeiro 1800, Carey se mudou para Serampore, às margens do rio Hugli, onde
organizou uma comunidade de missionários, trabalho conjunto com William Ward e Joshua e
Hannah Marshman. Apesar de ter gastado todas suas economias em Kidderpore, cerca de 500
libras, gastas em construções e na terra, resolveu deixar tudo e seguir para Serampore, “seguindo o

41 Ibid, p. 114. Parece que Carey sugeriu a figura de linguagem aos demais de “segurar as cordas”. Carey também fez
cada um prometer que, enquanto vivessem, não soltariam as cordas na entrada da mina.
42 Ibid, p. 20.
43 Ibid, p. 131.
44 A vida e a obra de William Carey, p. 153.
45 Ibid, p. 164.
46 Ibid, p. 165.
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nosso Salvador”, como disse, esta que seria sua cidade refúgio na Índia. Lá, Carey foi
calorosamente recebido pelo governador Bie, compraram um bom pedaço de terra e prepararam
tudo para a impressão em gráfica do Novo Testamento. Como agiam os moráveios, esses
missionários decidiram viver, tendo tudo em comum, rendimentos do trabalho depositados numa
conta comum e o lucro investido nas missões. Acordavam às seis horas todo dia, duas vezes por dia
liam as Escrituras e oravam. Todas as quintas-feiras davam testemunhos no trabalho, pedidos de
oração e lições aprendidas. As refeições eram tomadas em grupo, ao qual Carey chamava de
“irmandade”. Nos sábados à noite eles se reuniam e aparavam as arestas, guiados pela regra: “fale
ou cale-se”, além de honestidade, igualdade e intimidade como lemas.
O acordo entre eles em Serampore tinha onze declarações: 1) Conferir um valor infinito às
almas das pessoas; 2) Tomar conhecimento dos ardis que prendem as mentes das pessoas; 3)
Abster-se de tudo que possa aumentar o preconceito contra o evangelho na Índia; 4) Estar atento a
todas as oportunidades para fazer o bem às pessoas; 5) Pregar o “Cristo crucificado” como o grande
meio de salvação; 6) Ter estima pelos indianos e trata-los sempre como iguais; 7) Receber e edificar
as multidões que se reunirem; 8) Cultivar os dons espirituais deles, mostrando-lhes suas obrigações
missionárias, pois só os indianos podem conquistar a Índia para Cristo; 9) Trabalhar sem descanso
na tradução da Bíblia; 10) Insistir no aprofundamento da vida cristã pessoal; 11) Entregar-se sem
reservas à Causa, “não considerando suas nem as roupas do corpo” 47.
Era muito comum ver cantores indianos de baladas nas ruas e mercados. Em 30 de março de
1800, Carey, Marshman e Ward (Trio de Serampore48), de pé numa esquina, começaram a cantar
uma “balada cristã”, o que causou admiração nos indianos do lugar. Eles imprimiram e distribuíram
cópias da “balada” – um hino composto por Carey em bengali, mostrando um indiano deixando seu
passado idólatra e aceitando Cristo como seu Senhor 49.
Esse ano de 1800 foi emblemático, pois foi o ano do batismo dos primeiros cristãos hindus,
Krishna e seu filho Félix. Isso aconteceu no dia 28 de dezembro. O governador da Índia não pode
conter suas lágrimas ao ver o batismo. Naquela mesma noite também celebraram a primeira Ceia do
Senhor em bengali, após um sermão proferido por Carey, sobre o batismo, também na língua
nativa50.

Carey havia começado a aprender o bengali no navio Kron Princessa Maria, ensinado por
Thomas e depois com a ajuda de Rom Rom Basu, corrigindo a primeira tradução feita por Thomas
no Evangelho de Mateus. Seus filhos, especialmente os mais novos, se tornaram professores, pois
aprenderam a língua com maior fluência. Ele tinha certa dificuldade para encontrar os equivalentes
verbais certos em bengali, como para as palavras amor e arrependimento, bem como para diabo e o
Filho de Deus. Disse ele: “Se eu falo Filho de Deus, talvez um em cem compreenda a palavra para
Filho, mas se falo Rapaz de Deus, isto se encaixa bem na compreensão deles”.

No dia 7 de fevereiro de 1801, Carey, com a ajuda de William Ward, completou a primeira
edição do Novo Testamento em bengali, usando a impressora de madeira que tinha comprado em
Calcutá, após sete anos de labuta intensa para ver esse dia. Ele colocou o exemplar encadernado na
mesa da Ceia em Serampore, com as famílias dos missionários, dando graças por poder dar aos
indianos o Novo Testamento que nunca haviam visto. Foram impressas 2000 cópias, que foram
chamadas por Ward de “dois mil missionários”. Um destes exemplares foi parar numa aldeia de
camponeses, evangelizada 17 anos mais tarde. Quando os missionários chegaram lá, os nativos
47 A vida e a obra de William Carey, p. 171,172.
48 Uma história do Cristianismo, Vol 2, p. 1399.
49 Ibid, p. 177, 178.
50 Ibid, p. 182.
12

disseram que “estavam esperando por um professor que lhes explicasse a fé que tinham aprendido
das páginas gastas de um velho livro guardado numa caixa de madeira”. O livro era um dos Novos
Testamentos impressos naquela primeira edição 51.

Em 1807, seu filho Félix foi enviado como missionário à Birmânia, recebendo seu seguinte
conselho:

Com respeito à língua da Birmânia, que isto ocupe seu tempo mais precioso e sua dedicação mais ansiosa. Não se
contente em adquirir um conhecimento superficial do idioma, mas torne-o seu, da raiz aos ramos. Para tornar-se
fluente nele, você precisa prestar atenção, com uma curiosidade indiscreta, nas formas de linguagem, na construção
e na pronúncia dos nativos.52

Sobre esta primeira edição foram feitas várias revisões, em 1806, uma terceira em 1811, quarta
em 1816 e assim por diante, até a edição final em 1832. O Antigo Testamento em bengali foi
concluído por partes, entre 1802 e 1809, tendo passado também por cinco reedições antes da morte
de Carey53.
Em 1811, foi publicado o primeiro jornal semanal – Darpan, com a intenção de familiarizar os
bengalis nativos com versão impressa das Escrituras para seu idioma. Apesar da conclusão das
Escrituras para o bengali, Carey continuou seu trabalho de tradução para diversos outros dialetos e
também línguas faladas na Índia, até de outros países. Ele mesmo disse que se não faltarem
recursos, em quinze anos ele poderia traduzir as Escrituras para todas as línguas do oriente, dentre
elas, hindustani, maharástia, uria, telinga, botan, birmanês, chinês, cochinchinês, tonquinês e
malaio54. Até 1837, ano da morte de Marshman, Carey e seus colegas já tinham traduzido a Bíblia
para mais de 40 línguas e dialetos. Carey foi responsável pela tradução da Bíblia inteira para
bengali, uria, maráti, hínqui, assamês, e sânscrito, bem como de porções para mais de 29 línguas 55.
Esse, sem dúvida, é um feito notável, que coloca Carey na primeira fila dos tradutores da Bíblia, ao
lado de Jerônimo, Wycliffe, Lutero, Tyndale e Erasmo.
O ano de 1815 foi marcado ano do envio dos filhos de Carey a Burma e às Índias Orientais56.
Carey ordenou seu filho Jabez para ser missionário em Amboyna, nas Molucas, e Félix na Birmânia
e Indo-China57.
Todo esse trabalho dos filhos e da equipe de Carey só teve êxito por causa do trabalho com
escolas. Carey dizia que, além do trabalho de pregação e tradução da Bíblia, a educação foi o meio
mais importante empregado pelos missionários de Serampore em seus esforços para evangelizar a
Índia. Ele entendia e priorizava a abertura de escolas, antes até do começo da evangelização.
Quando seu filho Jabez foi para Amboyna, Carey lhe deu este conselho: “Dedique a maior atenção
possível às escolas. Considero a escola um dos meios mais eficientes para difundir a luz do
evangelho pelo mundo”58. A primeira escola fundada por Carey foi em Mudnabatty, com vinte e
uma crianças que aprendiam a ler, em bengali, participavam dos cultos matinais e cantavam hinos.
Carey entendia que a alfabetização era fundamental para a leitura e entendimento da Palavra de
Deus. Por isso, entitularam o trabalho de Carey em Serampore como a “Nova Reforma”, também
por seu trabalho de ensino como professor. Hannah Marshman fundou uma rede de escolas

51 Ibid, p.190.
52 Ibid. p. 189.
53 A vida e a obra de William Carey, p. 190.
54 Ibid, p. 191.
55 Life of William Carey – Shoemaker & Missionary, p. 53,54.
56 Uma história do Cristianismo, Vol 2, p. 1400.
57 Life of William Carey – Shoemaker & Missionary, p. 72.
58 A vida e a obra de William Carey, p. 194, 195.
13

femininas, inicialmente para ensinar às mulheres higiene, seguida de outras vinte e quatro escolas só
para mulheres. Em 1816, John Marshman publicou um manual para professores do sistema escolar
em Serampore, adaptando o padrão educacional definido pelo reformador pedagógico britânico
Joseph Lancaster para as escolas da Índia. O currículo tinha ênfase em pronúncia, gramática,
aritmética, redação, história, geografia, ciências naturais, ética e moralidade. Carey tinha como
filosofia desenvolver nos indianos um espírito pesquisador e também a curiosidade. Ele rejeitava a
separação entre ciência e religião, que caracteriza a prática educacional desde o iluminismo.
Até 1817, os missionários batistas tinham aberto 103 escolas, com uma frequência média de
6.703 alunos. Carey foi nomeado diretor do Fort William College, em Calcutá, escola fundada pelo
Lorde Wellesley, governador geral, para dar educação avançada aos filhos dos funcionários da
companhia, sediados na Índia. Em 1818, criou o Serampore College, com 37 alunos, dos quais 19
eram indianos cristãos e os demais, hindus. Em 1821 foi construído o seu edifício com colunas
góticas. Este colégio incorporou a escola de Teologia e tinha como lema estatutário: “nem casta,
nem cor, nem nacionalidade devem impedir nenhuma pessoa de frequentar o Serampore College”.
Carey dava aulas de teologia, botânica e zoologia59.
Em 17 de agosto de 1831, já com 70 anos, encontrou tempo para reavaliar seu trabalho e dizer o
seguinte: “Hoje estou com setenta anos, o que é um monumento à misericórdia divina. (...) Meus
pecados ostensivos concretos são inumeráveis, minha negligência no trabalho do Senhor foi grande,
não promovi sua causa nem busquei sua glória e honra como deveria” 60. Esta atitude também é um
forte legado – sua humildade e dependência de Deus.
O que dizer também da insanidade mental de sua esposa Dorothy, que aumentou gradativamente
até sua morte em 8 de dezembro de 1807? A febre que a acometeu no início, gerou uma “derrocada
mental”, facilmente constatada nas cartas de Carey a seu pai, por exemplo: “A pobre Sra. Carey é
obrigada a ficar confinada ou vigiada de perto constantemente” 61.
Carey se casou depois com Charlote von Rumohr, que faleceu aos 60 anos em 1821, por uma
doença que a acompanhava desde a infância. Casou-se pela terceira vez com Grace Hughes, em
1822. Ela cuidou de Carey no fim de sua vida. Em seu testamento, Carey deixou Grace escolher os
livros em inglês de sua biblioteca, pois tinham um valor considerável.
Antes de falecer, Carey pediu para ser enterrado ao lado de sua segunda esposa, Charlote Emilia
Carey, quem muito amava. Ele faleceu às 5:30 do dia 9 de junho de 1834, aos 73 anos, em
Serampore. Seu último pedido foi que escrevessem na sua lápide, na verdade uma tabuleta para
identificação do seu túmulo, um verso de um dos seus hinos prediletos, de Isaac Watts: “Eu, verme
miserável, pobre e incapaz, caio em teus braços carinhosos”62.

5. CONCLUSÃO – UM EXEMPLO ÀS NOVAS VOCAÇÕES.


ASPECTOS TEOLÓGICOS E MISSIOLÓGICOS.
Suas convicções na soberania de Deus, exclusividade de Jesus Cristo para salvação e autoridade
plena das Escrituras Sagradas são muito contundentes. Apesar das divergências entre “particulares”
e “gerais”, soube buscar nas Escrituras o fundamento do seu ministério, entendendo a ordem de
pregar ao pecador sem Cristo. Por isso, sua prioridade sempre foi a tradução das Escrituras para a
língua do povo a ser alcançado. Essas convicções foram sua força motriz, nelas estavam sua
resiliência e motivação, que o fizeram superar tudo. Sua contextualização é sóbria, tanto em cantar

59 A vida e a obra de William Carey, p. 201.


60 Ibid, p. 209 – Carta de Carey a Jabez, seu filho, em 17 de agosto de 1831.
61 Ibid, p. 213 – Carta a seu pai, em Calcutá, 1 de dezembro de 1802.
62 Ibid, p. 225.
14

“baladas” na rua, abster-se de tudo que impedisse o contato com as pessoas evangelizadas, bem
como em abrir escolas como estratégia inteligente. Suas raízes reformadas estão claras na sua
prática.
Outra ênfase que precisa ser fortemente destacada é a do trabalho em equipe. Andrew Fuller e
as igrejas associadas na manutenção, segurando a corda na entrada da mina, e Carey e seus
companheiros descendo fundo para resgatar as almas valiosas. Diversos livros destacam como ele
apaziguava ânimos e resolvia demandas com facilidade. Em seu planejamento, Carey deixou um
legado maravilhoso em três níveis: 1) Orar; 2) Planejar; 3)Dar. Suas amizades e contatos
possibilitaram essa rede de sustentadores e ajudadores da missão.
ASPECTOS FAMILIARES.
Apesar da resistência expressa de sua esposa Dorothy em não ir para a Índia, Carey se manteve
firme e, ao mesmo tempo, paciente e amável. Ele soube contornar esse sério problema. Sua mulher
é descrita por vários biógrafos como briguenta, queixosa, amargurada e de língua venenosa. Esta
mulher quis matar Carey, mais de uma vez 63. É sabido que este problema não é incomum, contudo,
o que é incomum a forma como tratou Dolly, sem deixar de cumprir seu dever e vocação. É notável
o resultado disso nos filhos, em como seguiram seu exemplo e se deram às missões, especialmente
Jabez e Félix. Convém lembrar que, nessa jornada, Carey perdeu duas filhas muito amados, ainda
na infância, mas isso não o desmotivou e impediu. Ele certamente pensava nos inúmeros filhos
espirituais que faria na Índia e por todo mundo.
ASPECTOS INDIVIDUAIS E PESSOAIS.
Igualmente notável é a sua abnegação pela Causa. Sempre muito simples, modesto em tudo
(vestes, alimentação, residência, etc), Carey rechaça essa tendência moderna de reclamar da falta de
suprimento, conforto e condições de trabalho. Se faltava ele trabalhava com as próprias mãos e
obtinha, da parte de Deus, os meios para alcançar seus objetivos. A propósito, como ele era
determinado e resiliente em tudo. Ele mesmo disse que devia tudo a isso: “Eu sei trabalhar. Eu sei
perseverar em perseguir qualquer alvo definido. A isto devo tudo!”. Ele não reclamava de nada. Isso
é invejável!

6. BIBLIOGRAFIA.
6.1. Latourette, Kenneth Scott, Uma história do Cristianismo – vol 2, (Hagnos, 2006), p. 1398-
1401.
6.2. George, Timothy, A vida e a obra de William Carey – Fiel Testemunha, (Vida Nova 1997).
6.3. Ferreira, Franklin, Servos de Deus¸(Fiel, 2013). Capítulo 24 – e-book.
6.4. González, Justo; Orlandi, Carlos Cardoza, História do movimento missionário, (Hagnos,
2010), p. 234-259.
6.5. Tucker, Ruth A., Missões até os confins da terra – uma história biográfica, (Shedd, 2014),
p.138-148.
6.6. Smith, George, Life of William Carey – Shoemaker & Missionary, (C.I.E., LL.D), tradução
minha.

63 Ibid, p. 213.

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